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Mídia, jornalismo e sociedade: a

herança normalizada de Bourdieu

Jairo Ferreira

Resumo Abstract
Quais as contribuições de Pierre Bourdieu à compreen- What are Pierre Bourdieu’s contributions to the un-
são das relações entre mídia, jornalismo e sociedade, derstanding of the connections among media, journa-
considerando o lugar singular ocupado pelo campo lism and society, considering the singular place occu-
midiático? Em torno dessa questão, procuramos veri- pied by the media? This article examines Bourdieu’s 35
ficar as relações teóricas, conceituais e metodológicas theoretical, conceptual and methodological contribu-
oferecidas pelo sociólogo ao campo acadêmico da comu- tions to the communication field, in special those that
nicação que incidem principalmente nas formulações analyze the media and society and, as a consequence,
e reformulações das relações entre mídia e sociedade, journalism’s standpoint in contemporary social proces-
e, por esse caminho, do lugar ocupado pelo jornalismo ses.
nos processos sociais contemporâneos.

Palavras-chave Keywords
Mídia, jornalismo e processos sociais Media, journalism, social processes
Introdução a) nos anos 60, a crítica aos conceitos de
Quais as contribuições de Pierre cultura de massa e de “mass-media”, con-
Bourdieu à compreensão das relações siderados abstratos, e em defesa da pes-
entre mídia, jornalismo e sociedade, quisa empírica e experimental;
considerando o lugar singular ocupado b) nos anos 70-80, a crítica ao jornalismo
pelo campo midiático? Em torno dessa como espaço estratégico de ação vulgari-
questão, procuramos verificar as relações zadora dos campos político e acadêmico e/
teóricas, conceituais e metodológicas ou produto cultural de distinção e reprodu-
oferecidas pelo sociólogo ao campo ção;
acadêmico da comunicação que incidem c) e, finalmente, nos anos 90, a crítica
principalmente nas formulações e ao jornalismo como campo de autonomia
reformulações das relações entre mídia e incompleta, subordinado e constituído con-
sociedade, e, por esse caminho, do lugar forme as estratégias do campo econômico,
ocupado pelo jornalismo nos processos com efeitos de homogeneização e heteroni-
sociais contemporâneos. mização sobre os campos culturais e polí-
O pressuposto epistemológico é de que o ticos.
campo acadêmico da comunicação deve se As duas últimas perspectivas já tínha-
diferenciar da sociologia e das ciências so- mos identificado em nossas investigações,
ciais em geral, mas, ao mesmo tempo, usu- tendo como central a crítica à ausência,
fruir de suas contribuições para escandir na análise social do jornalismo na década
seus objetos singulares. Isto é, parte-se do de 90, de uma metodologia coerente com
36 princípio de que as ciências da natureza, as obras anteriores, e o deslocamento de
as ciências sociais, a psicologia e as tecno- uma abordagem da cultura como espaço de
lógicas (como a informática) contribuem distinção e diferenciação sociais para uma
aos estudos da comunicação no sentido de concepção de cultura homogênea que apro-
compreensão de seu núcleo etéreo1, atra- xima o sociólogo da Teoria Crítica. Essa
vés de investigações diretamente ligadas crítica pode ser vista em Lemieux (2001), 1
Os termos “núcleo etéreo” têm,
à mídia, ou com seus estudos sobre inte- Rüdiger (2002) e Ferreira (2002, 2003 e aqui, um valor intuitivo e metafórico.
rações e produção social de sentido. Nesta 2004). Já a primeira perspectiva aparece Substituem o conceito de núcleo
perspectiva, nenhuma das contribuições especificamente em Lemieux (a qual resu- duro. A sugestão é do professor José
dos campos acadêmicos ao da comunicação mimos para localizar alguns dilemas das Luiz Braga. A mudança de conceito
contribuições de Bourdieu ao estudo das está por ser trabalhada, mas se
deve ser analisada por apropriação direta
refere a uma compreensão aberta
dos problemas de seus espaços de origem, mídias e do jornalismo e sociedade).
das teorias e modelos explicativos
mas por reflexões que permitam transfe- Na primeira fase, na crítica ao conceito do objeto do campo acadêmico da
rências teóricas pertinentes com um con- de cultura de massa, Bourdieu e Passeron comunicação, ultrapassando a idéia
junto de objetos em construção em nosso acentuam o caráter abstrato do mesmo, em de fechamento como condição de
campo epistemológico (Ferreira, 2004a). defesa da pesquisa experimental e empíri- acesso ao saber científico. De minha
ca, que identifique a diversidade de condi- parte, a sugestão corresponde
ções de produção, mensagens e consumo. com maior proximidade ao
Três perspectivas críticas de conceito de campo epistemológico
Bourdieu sobre a mídia, jornalismo Essa formulação pouco inova em termos
da comunicação que apresentei
e sociedade de hipótese geral sobre a comunicação mi- em encontro da Compós de 2003
Há três perspectivas críticas nos escritos diática e as metodologias de pesquisa. A (Ferreira, 2004).
de Bourdieu sobre a mídia: própria pesquisa já superara nas décadas

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de 50, 60 e 70 os conceitos de cultura de midiáticos, os quais vão buscar a legitimi-
massa em direção a perspectivas diversas dade de suas produções nesta esfera, num
(na perspectiva psicológica superou a teo- jogo duplo, entre saber científico e de sen-
ria comportamentalista, na sociológica, a so comum, em relações promíscuas com
idéia de um consumo homogêneo da men- jornalistas que os promovem, apesar de
sagem, e na esfera da linguagem a idéia poucos capitais científicos, como nomes re-
da mensagem como conteúdo transmissí- putados do campo acadêmico. Desses escri-
vel e/ou código unidimensio-nal). tos, queremos destacar um objeto que será
Suas formulações apenas tangenciavam conservado na terceira fase: as relações
a questão das mídias, mas através dessa entre campo das mídias e outros campos
crítica Bourdieu se colocava contra Mo- sociais (o campo político e o campo acadê-
rin, Barthes, Marcuse e Adorno e a favor mico), mediadas através da atividade jor-
de Katz e Lazarsfeld. Ou seja, a favor da nalística. Independente dos rumos em que
sociologia empírica e contra a teoria so- esse objeto será construído, avaliamos que
cial que considerava abstrata e especula- ele é uma das maiores heranças de Bour-
tiva, ao mesmo tempo em que atacava a dieu aos estudos do campo das mídias, e ao
“massmediologia” como objeto científico. campo jornalístico .
Veremos, no desenvolvimento da reflexão, La Distinción (2000), publicado em 1979
que a sua defesa da sociologia experimen- na França, pertence a essa fase. O consu-
tal e empírica se enfraquece, se aproxima mo midiático é, finalmente, investigado
do conceito de cultura de massa (retorna empiricamente, e ligado ao habitus de clas-
ao denegado?) e reflete sobre processos se, sendo portanto analisado como resul- 37
especificamente midiáticos, em particular tante de condições objetivas e subjetivas
sobre linguagens e rotinas de produção de estilos de vida na esfera da cultura. As-
jornalísticas. sim, no Gráfico 21 (p.463), localiza o consu-
A segunda fase é de reflexões no âmbito mo dos jornais franceses conforme vários
de suas teorias de campos sociais, tendo quadrantes, utilizando o mesmo esquema
como objeto as relações entre os campos apresentado, depois, em Razão Prática
político, científico e jornalístico, tomando, [1997], com quatro quadrantes distribuí-
como empírico, sondagens, pesquisas de dos conforme a posse de capitais culturais
opinião e enquetes divulgadas em mídias. e econômicos. No quadrante com mais ca-
Em vários de seus escritos, abordará pitais econômicos e menos capitais cultu-
“...as relações entre
como as técnicas de pesquisa acadêmicas rais, predomina o consumo dos L ‘Express,
são apropriadas estrategicamente para a campo das mídias Le figaro, Le point, L’Aurore; no quadrante
produção de uma “opinião pública” atra- e outros campos com mais capitais culturais e menos, eco-
vés das mídias, em particular através do sociais, mediadas nômicos, o Le monde; com menos capitais
trabalho jornalístico de divulgação de son- culturais e econômicos, Le Nouvel Obser-
dagens. A crítica se dirige ao caráter ma- através da atividade vateur e L’Humanité. Há, portanto, uma
nipulador de técnicas científicas visando jornalística, (...) é homologia entre o espaço de produção mi-
criar um efeito de cientificidade e de de- uma das maiores diática e o de consumo. Neste sentido, aqui
mocracia, vulgarizando a própria sociologia. se realiza experimentalmente a promessa
A vulgarização do campo científico apa-
heranças de implícita da primeira fase: a de que a da
recerá também na crítica aos intelectuais Bourdieu...” crítica de uma teoria sobre a mídia base-
ada numa “sociologia fantástica” (porque “...essa passagem ações “brutais”) mas subalternas, ao con-
especulativa) deve se expressar na pesqui- trário de camadas médias (cujas formas
pela mídia é
sa experimental. criativas convergem com a linguagem pro-
No âmbito dessa segunda fase podem ser condição de acesso duzida pelos jornalistas). Nesse sentido, a
incluídas as reflexões de Patrick Cham- ao campo político, competência de acesso ao capital midiático
pagne (1990), quando analisa como o mo- sendo distinto é distinta conforme as classes sociais em
vimento social se transforma, se diferen- movimento no campo político, o que signi-
cia, em torno de ações que possam suscitar conforme os capitais fica compreender os capitais midiáticos em
efeitos na mídia, o que significa utilizar, econômicos, políticos correlação com os capitais econômicos, po-
na sua produção, a lógica da produção da e culturais dos líticos, culturais dos agentes individuais e
mídia, em particular do jornalismo. Mais institucionais.
uma vez, a análise vai acentuar as trans-
agentes individuais e Nesta fase, portanto, se articulam refle-
formações do campo político por demandas institucionais.” xivamente as seguintes relações:
específicas do campo midiático, em parti- a) entre campos (político e midiático) e a
cular do campo jornalístico: distinção (homologia entre classes e consu-
mo cultural);
“Poderemos quase dizer, forçando um pouco b) entre os processos de produção (a
a expressão, que o lugar estratégico onde se questão do acesso aos capitais midiáticos)
desenvolvem as manifestações, sejam elas com os capitais culturais, econômicos e po-
violentas e espontâneas ou pacíficas e or- líticos de agentes e instituições em disputa
ganizadas, não é a rua, simples espaço apa- pela visibilidade;
38 rente, mas a imprensa (ao senso largo). As c) a expansão das lógicas das mídias a
manifestações desfilam pela prensa e pela outros campos sociais.
televisão. Os jornalistas, presentes sempre Retrospectivamente, verificamos aqui o
ao longo dos desfiles ou instalados em suas fechamento de um cerco inesperado pela
salas de prensa especialmente dispostas sociologia crítica: o campo acadêmico, o
para eles, crêem dar conta das manifesta- campo político (incluindo sua vertente
ções sem sempre perceberem que eles par- transformadora, os movimentos sociais de
ticipam de sua realização ao senso quase protesto) e o campo das mídias articulados
cinematográfico da palavra” (Champagne, entre si em movimento circular de repro-
p.232). dução social, em torno do discurso desse
último (ou de suas lógicas e gramáticas).
Ingressam aqui as “táticas” de acesso a Há aqui um “campo de produção de even-
primeira página, o que requisita a apro- tos midiáticos”, que, ao contrário do que
vação do “júri jornalístico”, e suas lógicas pensaríamos com o conceito de espaço pú-
de noticiabilidade. Essa passagem pela blico, não é aberto, mas constituído confor-
mídia é condição de acesso ao campo po- me as lógicas de produção jornalística.
lítico, sendo distinto conforme os capitais A terceira fase tem em Sobre a Televi-
econômicos, políticos e culturais dos agen- são sua maior marca e é indissociável dos
tes individuais e institucionais. Champag- trabalhos mais experimentais da fase an-
ne argumenta que os movimentos sociais terior, apesar de muitos comentários sobre
de camadas dominadas utilizam lógicas essa obra a terem colocado na lata da vul-
também reconhecidas pela mídia (uso de garidade reflexiva. Há várias teses ali lan-

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çadas à espera de pesquisas experimen- ra fase. Aparecem aí as afirmações de que
tais, algumas contraditórias com o acervo o jornalismo age no sentido de compatibi-
teórico do sociólogo, mas indissociáveis das lidade com o mercado imediato e conver-
fases anteriores. gente com o valor da opinião pública na
Podemos sistematizá-las, primeiro, como política. Desconstitui posições de partidos,
formulações que reafirmam o pensado na sindicados, movimentos sociais e persona-
segunda fase. Assim, quando afirma que lidades políticas em nome da opinião geral
quando o campo é hegemonizado pelo “co- supostamente registrada nas pesquisas de
mercial”, e não, pelo “puro” (propugnado mercado, esvazia a política de seus confli-
pelos defensores dos valores éticos e proce- tos, tensões e possibilidades, subordinan-
dimentos profissionais), o jornalismo inver- do a dinâmica social a um jogo racional de
te a lógica de muitos campos da cultura (o planejamento em torno da vontade média.
científico, o artístico etc.) nos quais o peso A transposição dessa relação para a produ-
do comercial está subordinado, ainda, às ção de cultura tem o mesmo efeito negati-
regras de autonomia por esses produzidas. vo, na medida em que tende a reduzir a es-
A conseqüência nefasta é a pressão que o fera da cultura ao mundo homogêneo das
campo jornalístico exerce sobre os campos necessidades médias, sem movimentos,
acadêmico e artístico, no sentido de uma autores, escolas, conflitos e tensões que ge-
lógica de legitimação do discurso pela au- ram novas formas de expressão. Aqui tam-
diência (enquanto a arte e a ciência avan- bém há uma continuidade em relação a se-
çaram, muitas vezes, apesar da ausência gunda fase, porém abandona-se a tese da
de audiência imediata). Essa formulação distinção no mercado cultural, na medida 39
nasceu, como vimos, na segunda fase. em que a concorrência entre as mídias re-
O segundo conjunto de formulações ex- sulta em um universo discursivo homogê-
pressa interpretações próximas às aborda- neo, fortalecido pela auto-referencialidade
gens marxistas da mídia e do jornalismo. dos jornalistas. As tensões no campo decor-
É quando o sociólogo afirma que o lugar rentes da formação acadêmica dos profis-
da mídia vincula-se a posse dos meios de sionais em jornalismo não são suficientes
produção (no caso, simbólico) de informa- para levar os profissionais “inquietos, in-
ções e publicização, que asseguram um “...abandona-se a satisfeitos, revoltados” a um poder efetivo
poder de dominação, apesar da posição tese da distinção no de transformação do campo de produção
inferior dos jornalistas no campo da cultu- midiática.
mercado cultural,
ra. Essa tese é um retorno a uma lógica de O quarto elenco que identificamos se re-
interpretação marxista, que aparece ainda na medida em que a fere a um ingresso no campo das mídias e
quando afirma que a mídia é atravessada concorrência entre as do jornalismo. Ensaia-se uma história dos
por sua heteronomia frente aos capitais dispositivos midiáticos, que se articula
mídias resulta em um
econômico (principalmente) e político. Ao com as transformações do campo midiáti-
primeiro, pela via das verbas publicitárias. universo discursivo co e jornalísticos, quando localiza a vitória
Ao segundo, através dos subsídios estatais homogêneo, da televisão articulada com um “gênero”
(existentes na França). fortalecido pela auto- que, no jornalismo impresso, era conhecido
O terceiro conjunto de formulações é como sensacionalismo, que deixa de ser um
convergente com as abordagens da Teoria referencialidade dos “jornalismo de baixo valor cultural” para
Crítica, que tinha sido criticada na primei- jornalistas.” se transformar em paradigma do fazer jor-
nalístico. Aqui a tese da economia política “...o jornalismo é texto apresentado num Colóquio em Lille,
e suas vertentes na análise da indústria o autor acentua a necessidade de analisar
uma atividade de
cultural ganha um aliado: o modelo he- os discursos que os jornalistas têm sobre
gemônico se expresso no “fazer simples”, autonomia reduzida. si mesmos, visando assim a desvendar as
“fazer curto”, “vender bem”, termos utili- Isso decorre da representações ideológicas que possuem
zados pelos jornalistas quando se referem ausência de regras sobre as próprias práticas profissionais.
as suas próprias atividades. A questão, diz A crítica, diz ele, não visa aos indivíduos,
o sociólogo, não é pessoal, mas estrutural claras de produção, mas à compreensão das estruturas de um
e social, na medida em que é definida pela de proteção contra os campo que, na sua perspectiva, deveria
estrutura do campo jornalístico. A autono- desvios, falsificações ser um serviço público, mas que é domi-
mia de um jornalista particular não de- nado pela lógica de mercado, em que as
pende, nesse sentido, apenas de sua indi-
(...) A fragilidade pesquisas de opinião pública subvertem as
vidualidade, mas está vinculada à posição dessas regras possibilidades de exercício de uma deonto-
que o jornal ocupa no campo. permite que o campo logia profissional. A questão, nesse caso,
Finalmente, articulando os conjuntos passa a ser: o que pode fortalecer o campo
seja invadido pelo
anteriores, em Sobre a Televisão, a mídia jornalístico no sentido da autonomia, da
ocupa um lugar especial, senão central, na campo econômico e ética e da veracidade.
produção simbólica das sociedades contem- político...” O primeiro passo, reafirma Bourdieu, é
porâneas. Essa tese indica um reconheci- compreender que o jornalismo é uma ativi-
mento ad hoc dos “midiólogos” criticados dade de autonomia reduzida. Isso decorre
na década de 60. Nesse elenco, ingressa a da ausência de regras claras de produção,
40 própria questão do poder. O poder se exer- de proteção contra os desvios, falsificações
ce em várias dimensões do que chamamos etc. quanto ao processo e produtos da ati-
de sistema de produção, que aparecem na vidade. A fragilidade dessas regras permi-
obra do sociólogo acumu-lativamente: na te que o campo seja invadido pelo campo
linguagem, nos roteiros dos programas, na econômico e político, com seus interesses
própria grade de programação, no gêne- e regras específicas, desfazendo qualquer
ro opinativo, etc. A discussão aqui remete norma de produção midiática em consti-
necessariamente a um vasto programa de tuição. Sob essa ótica, a conquista da auto-
pesquisa que o campo acadêmico da comu- nomia vincula-se à criação de regras pro-
nicação procura dar conta. fissionais, o qual será mais bem compre-
Frente a essas tendências, o autor coloca, endido por jornalistas não comprometidos
para o jornalismo impresso e jornalistas, o com a lógica de mercado. A continuidade
dilema: seguir o proposto pelo modelo he- da heteronomia, pelo contrário, resulta na
gemônico na televisão ou empregar “uma continuidade da censura externa (da esfe-
estratégia de diferenciação”? O problema ra da política, da economia e da cultura),
é equacionado em termos ético. Bourdieu compensando, assim, a ausência de regras
(1996), falando para jornalistas e profes- internas ao próprio campo.
sores da Escola Superior de Jornalismo
de Lille, situa novas questões que quere- Retorno a Frankfurt?
mos destacar para delimitar não apenas A idéia de que a terceira fase correspon-
as análises, mas o que seria um projeto deria a um retorno a Frankfurt (escola cri-
possível para o campo jornalístico. Nesse ticada na primeira fase em defesa de uma

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sociologia experimental) aparece em Le- listas, ao campo econômico, e, por esta via,
mieux (2001), em Trinta (2002) e perma- a transformação dos campos da política e
nente em minhas críticas e investigações. da cultura, na medida em que dentro de
Minha crítica tem sido metodológica (o mé- cada uma dos campos antes autônomos se
todo experimental como base às formula- produzem ofertas compatíveis com as de-
ções teóricas, e não o inverso, o que signifi- mandas das mídias, produzindo em seus
ca aproveitar a herança da segunda fase) e interiores transformações em direção a
teórica (investigar a distinção em oposição heteronomia generalizada na vida social.
a tese da cultura homogênea, procurando Esse elenco está por pensando no campo
realizar essa perspectiva no âmbito do pro- da comunicação no Brasil, considerando-se
blema comunicacional). Essa crítica, entre- especialmente o problema da via prussia-
tanto, não significa subestimar a terceira na, modernização conservadora, reduzida
fase. Sobre a Televisão, mesmo que caren- autonomia das diferentes esferas da vida
te do porte denso de uma epistemologia social perante o campo econômico.
racionalista genética de Bourdieu e de sua Por isso, podemos questionar se se trata
metodologia experimental, desenvolve um de um retorno efetivo a Frankfurt? Par-
conjunto de formulações – que procuramos cialmente, sim, em direção a estação pri-
agrupar acima – que expressam um forte meira de Frankfurt (Marcuse e Adorno),
deslocamento da crítica sociológica desen- no que se refere às frustrações perante o
volvida pelo autor. Não pretendemos aqui projeto que relaciona saber, política e au-
discutir esse deslocamento nos termos da tonomia. A tese construída a partir de um
sociologia, mas acentuar questões que per- método especulativo e reflexivo é de que o 41
tencem ao nosso campo epistemológico. jornalismo é mediação central de uma es-
Em relação às fases anteriores, a tercei- pécie de contrarevolução, assim como foi a
ra fase mantém a problemática das rela- racionalidade tecnológica e instrumental
ções entre as condições de produção e con- em Marcuse.
dições de consumo com o campo da cultu- “Por isso, podemos Há aqui uma elaboração que contraria
ra, da política e economia com as mídias. questionar se se outro elemento da segunda fase. Questio-
Constituem-se num programa de pesquisa namos se a tese de uma revolução parcial,
normalizado e, de certa forma, naturaliza- trata de um retorno ou incompleta do campo jornalístico podem
do no campo epistemológico da comunica- efetivo a Frankfurt? ser transpostas, sem mediações, para as
ção. Parcialmente, lógicas, gramáticas e produções discursi-
A tese da revolução incompleta, parcial, vas da mídia nas apropriações que faz da
de autonomia relativa, são heranças mar-
sim, em direção a cultura e da política, e das relações que os
xistas em sua teoria dos campos. A insu- estação primeira campos políticos e acadêmicos estabelecem
ficiência da reflexão se expressa na inver- de Frankfurt, no com os produtos midiáticos. Essa transpo-
são, em que o problema crítico deixa de sição cognitiva condensa outras.
que se refere às
ser a adesão do campo político (incluindo Primeira, a de que o mercado discur-
a sua vertente de protestos sociais) e cul- frustrações perante o sivo, em última instância, é configurado
tural (em particular, o campo acadêmico projeto que relaciona pelas correlações de forças dos campos
e artístico) à lógica midiática, identificado saber, política e (Bourdieu, 1996). Neste sentido, Sobre a
na segunda fase, e passa a ser a subordi- Televisão desdobra a crítica a semiologia
nação da mídia, em particular dos jorna- autonomia.” realizada na Economia, em que o sociólogo
critica a identificação de forças imanentes “...essa formulação econômico, o político e o cultural – para
nas propriedades formais do discurso dis- constituir o capital midiático. Essa tese
coloca as dimensões
sociadas das condições de forças sociais. remeteria a identificar no campo midiático
Mas esta formulação ganha em Sobre a do dispositivo de num lugar tão singular como Estado e a
Televisão um adendo: em decorrência da produção midiático Igreja.
explicitada autonomia incompleta do jor- e jornalístico nas
nalismo, postula-se a subordinação, em A herança normalizada e nossa
última instância, das condições endógenas trevas, no limbo, perspectiva de apropriação
dos processos discursivos, sejam eles midi- na zona escura do Podemos, agora, encaminhar algumas
áticos e jornalísticos, ou não, às condições saber.” conclusões sobre a herança de Bourdieu ao
de produção exógenas, compreendendo-as campo da comunicação. Esta herança está
não como correlações de forças dentro dos distribuída em torno dos objetos revisados
campos autônomos, mas numa quebra acima:
dos processos de autonomização, pela im- a) as relações entre o campo das mídias,
posição dos capitais econômicos na esfera em particular o jornalismo, com outros
da linguagem e dos discursos. Já na pers- campos sociais;
pectiva interpretativa da Economia requi- b) a transformações dos campos sociais
sitar-se-ia uma autonomia relativa dos exógenos ao campo midiático em decorrên-
mercados discursivos, como mediação ne- cia de lógicas e linguagens típicas do cam-
cessária para, num segundo momento de po das mídias;
análise, se falar em correlações objetivas c) o lugar de mediação ocupado pelas mí-
42 de forças no interior do campo. dias na produção social de sentido relati-
Segunda, essa formulação coloca as di- vamente aos campos da política, da cultu-
mensões do dispositivo de produção midi- ra e da economia;
ático e jornalístico nas trevas, no limbo, d) o problema da distinção e das homolo-
na zona escura do saber. Aparece apenas gias entre diferenciações sociais e diferen-
como ornamento (quando, por exemplo, ciações de produção e consumo midiáticos;
fala do lugar que a televisão ocupa perante e) a relação de campo das mídias e cam-
o jornalismo impresso) integrado a tese da po econômico numa perspectiva marxista e
subordinação crescente e da homogeneiza- frankfurtiana.
ção da cultura. Paradoxo, já que a mídia Esses objetos aparecem em autores do
ingressa na questão do poder. Em torno campo acadêmico da comunicação (Adria-
desse eixo, pensamos, a sociologia de Bour- no Rodrigues, João Pissarras Esteves,
dieu identifica evidências de uma ruptura João Carlos Correia, Wilson Gomes, Faus-
do lugar dos dispositivos de comunicação: to Neto2, entre outros, incluindo o conjunto
a ultrapassagem do lugar de meios (a ser- de autores que trabalha com a crítica da
viço de outros campos) para se constitu- economia política da comunicação).
írem como mídia. O problema aqui seria, Essas questões expressam o lugar que a
então, inverso: identificar como as mídias mídia ocupa na constituição do poder sim-
convertem inclusive o campo econômico, bólico em sociedades complexas. Conside-
e, com suas lógicas, elaboram, num outro ramos que somente a partir desta locali-
lugar, as trocas entre os vários mercados, zação poderemos compreender sua relação
apropriando-se de capitais específicos – o estruturante (utilizando aqui o conceito de

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poder simbólico do próprio Bourdieu) com os problemas da autonomia em sociedades
os processos discursivos e de produção so- complexas (e midiatizadas). Nessa investi-
cial de sentido de outros campos sociais, gação pode-se pensar os sistemas de pro-
com estruturas construídas em períodos dução de obras – os jornais em dispositivos
históricos mais largos (a política, a aca- diversos (televisão, rádio, imprensa) – as-
demia e outras esferas específicas da cul- sociados aos habitus, e, portanto, um in-
2
Esses objetos podem ser vistos tura). Neste sentido, a questão central é consciente social que movimenta capitais
em diversas obras. Cito algumas explicar porque o jornalismo e a mídia são cognitivos variados, distintos, distribuídos
apenas para indicar a sua poderes, para além de algumas descrições conforme os próprios capitais econômicos,
presença no campo epistemológico de efeitos mais ou menos visíveis deste po- políticos, culturais e midiáticos de agentes
da comunicação: RODRIGUES, der sobre os campos sociais investigados (a e instituições de mídia. Essa perspectiva
Adriano. A emergência dos campos cultura, a política e o acadêmico), mesmo permite atualizar as contribuições da pri-
sociais. In: Revan, Raimundo
Santana (org.), Reflexões sobre o
quando em relação com as rotinas de pro- meira e segunda fase de Bourdieu, recolo-
mundo contemporâneo.Teresina: dução, a linguagem e os textos jornalísti- cando o problema da crítica em termos de
UFPi, 2000, p.189-198. ESTEVES, cos. programa de pesquisa3.
João Pissarra. A formação dos Os caminhos para enfrentar essa dis- Independente do caminho, é necessá-
campos sociais e a estrutura da cussão podem ser produzidos a partir de rio superar o modelo linear de comuni-
sociedade moderna. In: A ética da diversas perspectivas e pesquisas experi- cação (em que comunicar é transmitir, e
comunicação e os media moderna.
mentais no campo da comunicação. Nossa que está implícito no modelo de Bourdieu,
Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 1998, p.111-142;
pesquisa tem se concentrado em elaborar a como acentua Wolton, 2002), e adotar uma
RODRIGUES, Adriano, 1996. questão do poder no âmbito das dimensões perspectiva de produção social de sentido
O discurso mediático. Lisboa: especificamente midiáticas. Isso requisita, em interação de indivíduos, instituições e 43
Mimeo; CORREIA, João Carlos. primeiro, investigá-lo como sistema sim- campos sociais com as mídias, nos jogos es-
Comunicação e cidadania. Os bólico (entram aqui questões referidas na pecíficos da linguagem e dos discursos so-
media e a fragmentação do segunda fase – as linguagens e estilos ofe- ciais. O conceito de circulação, aqui, deve
espaço público nas sociedades
recidos pelos movimentos sociais como es- subsumir os de recepção e produção. Essa
pluralistas. Lisboa: Horizonte, 2004.
FAUSTO, Antônio. Comunicação tratégia de acesso ao campo das mídias, subsunção tem efeitos profundos na pes-
e mídia impressa. Estudos sobre em particular através da via da programa- quisa de comunicação. O sentido não está
a aids, 2001. São Paulo: L Hacker ção jornalística – e na terceira fase – as re- lá, nem aqui, mas entre dois, num espaço
Editores. ARAÚJO; BERGER, ferência aos gêneros, aos dispositivos, aos de produção social de sentidos imprevisí-
Christa. Campos em confronto: a estilos, aos textos jornalísticos). Um siste- veis.
terra e o texto, 1998. Porto Alegre: ma de produção é um objeto de investiga-
Editora da Universidade. GOMES,
Wilson. Opinião política hoje: uma
ção em torno do qual as dimensões texto,
investigação preliminar, Editora da linguagem, discurso, gêneros, tecnologias,
UFRGS. estilos são trazidos a uma reflexão siste-
mática oferecida pelos estudos sociológicos
3
Nesse sentido, sugerimos e semiológicos no carrefour comunicacio-
que, para compreendermos a nal.
produção midiática, é necessário
Nossa tese é de que somente a investi-
compreender qual o desenho do
campo em sua totalidade, buscando
gação experimental desse sistema de pro-
as diferenciações e integrando as dução permite entrar, visitar e realizar
diversas instituições e dispositivos uma crítica de profundidade – atualizan-
num determinado mercado. do, na esfera do singularmente midiático,
Vol. IV, no 1, junho, 2002a.
Jairo Ferreira ______. Dispositivos discursivos e o campo
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Estudos em Jornalismo e Mídia


Vol.II Nº 1 - 1º Semestre de 2005

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