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Violência doméstica: uma contribuição da psicanálise

ARTIGO ARTICLE
Violence in the family: a psychoanalytical contribution

Vera Lúcia C. Lamanno- Adamo 1

Abstract This article intends to understand Resumo Este trabalho busca compreender a
family violence based on concepts developed by violência doméstica fundamentada em concei-
psychoanalysis. Violence, in this context, is un- tos desenvolvidos pela psicanálise. Entende-se
derstood as a physical expression of love and violência como a expressão física, tanto do
hate, disconnected from interest in life and in amor como do ódio, quando desvinculados do
truth. When it happens, emotional experience interesse pela vida e pela verdade e, portanto, se
appears in a wild and terrifying state. Uncon- apresentando em estado selvagem e apavoran-
scious structures which accomodate a vicious te. Discutem-se as estruturas inconscientes nas
dynamic between violence and defence against quais pode repousar uma dinâmica viciosa en-
recognizing it are discussed. This paper also tre violência e defesa contra reconhecê-la e a
stresses the need for an adequate professional importância de formação adequada de profis-
trainning in order to help the reconstitution of sionais no sentido de que haja uma recupera-
mental functions which link emotional experi- ção das funções mentais que propiciam vincu-
ences to growth and development. lar experiências emocionais com desenvolvi-
Key words Psychoanalysis; Violence; Growth; mento e crescimento.
Development Palavras-chave Psicanálise; Violência; Cresci-
mento e Desenvolvimento

1 Membro associado da
Sociedade Brasileira de
Psicanálise de São Paulo;
professora responsável pelo
Curso de Extensão “Noções
Teóricas e Práticas sobre
Terapia Família e Casal”,
Universidade Estadual
de Campinas. Rua Duque
de Caxias, 642/101
13015-311, Campinas, SP.
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Adamo,V. L. C. L.

Introdução ças pequenas apresentando um psiquismo ain-


da incapacitado para lidar com as ansiedades
A psicanálise tem mostrado como a apropria- relativas à separação. No entanto, a permanên-
ção pelo sujeito de seu corpo, de sua identida- cia dessa distorção pode ocorrer em crianças
de sexual e de sua mente, constrói-se a partir severamente traumatizadas. Isso devido a uma
de uma intersubjetividade. Winnicott (1985) impossibilidade de reconhecer que a mãe que
e Bion (1962) enfatizaram o papel vital de me- a priva e a prejudica é também uma fonte de
diação que os pais desempenham para tornar bondade à disposição. A psicanálise tem rela-
produtivo na criança o desenvolvimento da cionado a incapacidade de reconhecimento
imagem corporal, do senso de identidade e do da existência e do valor do outro com pato-
pensamento simbólico. Um ambiente que não logias narcísicas, com a ferida narcísica, aos
se ajusta adequadamente à urgente sensação ressentimentos associados a ela e às defesas
de um recém-nato pertencer a uma dinâmica utilizadas para se evitar qualquer experiência
familiar, que não propicia discriminar fatos de separação.
de fantasias, contribui para o desenvolvimen- O segundo fato da vida, ou seja, o reconhe-
to de indivíduos que sofrem de constantes cimento da relação sexual dos pais como um
ameaças de desintegração do ego. Desenvol- ato de extrema criatividade, introduz proble-
ve-se então um sistema de defesas altamente mas associados ao drama do incesto, ao casal
organizado e vigorosamente mantido, onde em coito, ao Complexo de Édipo. A intrusão
predominam a repressão, a negação e a recusa, de um terceiro na relação do bebê com sua
com o objetivo de proteger o ego da ansieda- mãe coloca questões e problemas novos. O ciú-
de excessiva produzida pelo contato com uma me e a inveja são provocados. Porém, se tudo
experiência que não pode ser assimilada. Pa- correr bem – se houver um ambiente capaz de
ra proteger o ego da ansiedade excessiva, o in- ajudar a criança a processar e elaborar as ex-
divíduo distorce seu contato com a realidade, periências emocionais ligadas ao reconheci-
obstruindo o acesso à consciência e eliminan- mento desse fato da vida – a questão da criati-
do os conteúdos mentais afetivos e ideativos. vidade passa a ser simbolizada pela curiosida-
Está assim estruturado um campo fértil para de da criança acerca da origem dos bebês. A
a proliferação da violência. Entendo aqui vio- criança pode então reconhecer a criatividade
lência, como a expressão física tanto do amor do casal parental e, através de identificação
como do ódio, desvinculados do interesse pe- com eles, trilhar a própria vida criativa, in-
la vida e pela verdade (Bion, 1992a) e, por- cluindo as relações sexuais.
tanto, apresentando-se em estado selvagem e O terceiro fato da vida, ou seja, o reconhe-
apavorante. cimento da passagem do tempo e da certeza
Money-Kyrle (1971) propõe que todo pen- da morte, é uma característica da realidade
samento adulto, todos os atos posteriores de que afeta a experiência de todos os demais fa-
reconhecimento, são obstruídos por dificul- tos. Está associada ao reconhecimento de que
dades inerentes ao reconhecimento de alguns todas as coisas e pessoas têm um fim. O reco-
aspectos fundamentais da realidade. Dentre nhecimento da realidade da perda e a conse-
os fatos básicos da vida, considera três como qüente experiência do luto leva, posteriormen-
essenciais: o reconhecimento da fonte de bon- te, à necessidade de nos confrontarmos com
dade (inicialmente o seio e o leite) como sen- nossos limites e com nossa mortalidade. Ca-
do proveniente do mundo externo; o reconhe- so isso não seja enfrentado e elaborado, os va-
cimento da relação sexual dos pais como sen- lores humanos tornam-se distorcidos e per-
do um ato de extrema criatividade; e o reco- versos. Ser dependente é ser frágil. Se emocio-
nhecimento da passagem do tempo e da cer- nar é pieguice. Envelhecer é doença. Casamen-
teza da morte. to é prisão. Dentro desse contexto é que estão
Cada um desses fatos essenciais da vida, inseridas a pedofilia e o abuso de crianças, fru-
quando negados e distorcidos, estão associa- to de uma recusa do reconhecimento das di-
dos a distúrbios afetivos e de personalidade. ferenças sexuais e generacionais. É também a
Winnicott (1985) sugeriu que a criança peque- partir de uma recusa que os indivíduos se en-
na crê que é ela mesma quem cria o objeto que tregam, de forma acrítica, à tirania das rela-
a nutre e é necessário à sua sobrevivência; um ções sadomasoquistas. Na medida em que não
objeto nutriente que habita o seu interior. Is- se é capaz de manter, na mente, o reconheci-
so seria uma distorção, mas própria de crian- mento de ter sido ferido e danificado ou de se
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ter ferido um outro, a violência não pode ser vés da atividade de sonhar. São muitas as dis-
interrompida. Um argumento perverso pode torções que podem ocorrer numa tentativa de
ainda ser utilizado para manutenção da nega- processamento da experiência emocional.
ção da crueldade: “as mulheres gostam de ser Lembro-me de uma mãe que me procurou
machucadas”, “a criança pediu uma surra”. A muito assustada e ansiosa acerca do que ou-
violência, ao invés de ser reconhecida, passa a viu de seu filho de cinco anos, numa conver-
ser representada como um “benefício”, como sa com o irmão mais novo: “você nem sabe o
punições que são exercidas para o “bem”. que acontece aqui em casa, à noite. A mamãe
A realidade pode ser distorcida sob o efei- pinta a boca de vermelho, põe um vestido deco-
to do ciúme, inveja e sentimentos de exclusão tado e sai na rua dando bola para tudo quanto
experimentados em estado bruto. é homem”. A mãe vadia e prostituta, ou vítima
de um pai violento que a toma à força todas
as noites, são variações de um mesmo tema,
Notas sobre um caso formas de se aliviar de sentimentos difíceis de
serem assimilados, às custas de uma distorção
Logo no início da sessão, o paciente reclama da realidade.
de seu final de semana. Menciona ter ficado Money-Kyrle (1968) salienta que essas con-
muito incomodado com seu pai, que passou cepções distorcidas, esses delírios inconscien-
quase toda a tarde do sábado trancado no tes, não são apresentados somente pelos pa-
quarto com a namorada (companheira de vá- cientes clinicamente doentes. Escreveu ele: “on-
rios anos). “Foi muito chato” disse ele, “me sen- de, por exemplo, eu anteriormente interpreta-
ti muito mal, eu não sabia o que fazer”. ria um sonho do paciente como uma represen-
Numa associação livre de idéias, após esse tação das relações sexuais dos pais, agora com
relato, meu paciente trouxe um sonho ocorri- mais freqüência, o interpretaria como uma re-
do naquela noite: “Seu pai e sua mãe, cada um presentação distorcida desses eventos. De fato,
deles era chefe de gangs rivais de mafiosos. Es- parece que todas as representações imagináveis
tavam vestidos à caráter e caminhavam numa do ato sexual parental proliferam no inconscien-
ruela escura, um em direção ao outro, com uma te, exceto a correta”. Ou seja, a que incluiria o
arma na mão. O meu paciente estava entre eles. reconhecimento da relação sexual como um
Estratégica e astutamente ele se abaixou, e os ti- ato de extrema criatividade, eclosão de vida e
ros mataram tanto o seu pai como a sua mãe”. de fertilidade.
Em que se tornou o amor, para que um ho- O sonho de meu paciente mostra também
mem e uma mulher saiam dele com tamanha uma refinada evasão dos sentimentos de culpa,
ira, fúria e violência? Em que se tornou o amor arrependimento e remorso, por ter, em fanta-
de um casal (pai-namorada, pai-mãe), na men- sia, eliminado seus pais. Além de transformar
te de meu paciente, para que à noite, enquan- os pais num casal mafioso, meu paciente se li-
to dormia, fabricasse cenas de fúria e violência vrou deles, mas o seu ódio assassino, no so-
assassina? nho, é transformado em astúcia: “não fosse eu
A psicanálise tem mostrado como a crian- me abaixar, quem teria morrido seria eu”.
ça, inundada por intensos sentimentos de in- Aqui, fica claro como a violência se man-
veja, ciúme e exclusão, transforma (através de tém e se recria constantemente, na medida em
projeção) o casal em um coito prazeroso num que o indivíduo lança mão de artifícios enge-
casal assassino. A incapacidade de tolerar na nhosos para não reconhecê-la. Ao invés de ser
mente todo o amor e o ódio por esse casal que reconhecida, a violência, como já mencionei
desfruta de uma relação sexual, da qual a crian- anteriormente, passa a ser representada como
ça não participa, libera distorções aberrantes estratégia de sobrevivência, como um “benefí-
dos fatos da vida. cio”, um “bem” para a humanidade.
Sob o efeito de uma ansiedade excessiva, Em trabalho recente, o psicanalista inglês
produzida por uma experiência difícil de ser John Steiner (1994), discute como Édipo en-
assimilada, meu paciente transformou o casal frentou a realidade de ter matado seu pai e ca-
envolvido numa atividade prazerosa, num par sado com sua mãe, nas duas peças escritas por
de mafiosos assassinos. Uma forma de se ali- Sófocles: Édipo Rei e Édipo em Colona.
viar dos sentimentos de ciúme, inveja e exclu- Em Édipo Rei, ele sabia, mas fingia não sa-
são. Manifestações também de uma mente ten- ber sobre o crime que havia cometido. Quan-
tando processar a experiência emocional, atra- do num momento drástico fica sabendo da
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verdade, não suportando a culpa, se cega. Ato ma entrevista, a Amnésia (título de sua obra)
este, simbolicamente representando a destrui- pode ser a única saída. Numa guerra, a “am-
ção de sua capacidade de sentir e de perceber. nésia” é, às vezes, a única saída, o único lugar
Mais tarde, Édipo explica que também teria possível de abrigo, repouso, consolo.
atacado os ouvidos, se tivesse sido capaz de fa- Em texto recente Segal (1998) considera
zê-lo: “assim eu teria privado meu sofrido cor- que o maior prejuízo para indivíduos inseri-
po da audição a fim de nada mais ouvir, e na- dos em ambientes violentos é o obscurecimen-
da mais ver, pois é um alívio ter o espírito invi- to do que é fantasia e do que é realidade. Num
sível à causa de tão grandes males”. clima de constante violência (expressão de
Em Édipo em Colona, Sófocles mostra Édi- amor e ódio restrito a descargas motoras – gri-
po como um velho cego à beira da morte. Des- tos, tapas, palavras e gestos destrutivos de to-
sa vez vemos uma pessoa muito diferente, li- da ordem) o estatuto irreal e inconsciente das
dando com a realidade de forma mais drástica, fantasias, passa para o plano do “verdadeiro”.
como sugeriu Steiner, retirando-se da verda- Já não são mais fantasias inconscientes expres-
de para a onipotência. Ele não nega os fatos, sando-se e tentando ser processadas através
é tarde demais para fingir, mas ele nega qual- de sonhos, mas são fatos. Não se trata mais de
quer responsabilidade e culpa, alegando que temores herdados filogeneticamente, não se
esses fatos foram erros cometidos contra ele e trata mais de ficção ou sonho, mas de uma des-
não por ele: “não quero que me atribuam co- trutividade real. Quando isso ocorre, o indi-
mo crimes, nem esse casamento, nem o assassi- víduo terá que lançar mão de estratégias mais
nato de meu pai... responda apenas uma per- radicais para a sobrevivência. Eliminar o con-
gunta minha: se alguém aparecesse aqui neste teúdo da consciência não é suficiente para se
momento, e tentasse matar-te, quererias saber proteger da ansiedade excessiva. O próximo
se quem te ameaçava era seu pai, ou antes o cas- estágio é a destruição do aparato mental res-
tigarias? Pois esta foi exatamente a desventura ponsável pela transformação das impressões
com que me defrontei, levado pelos deuses”. sensoriais e das experiências emocionais em
Neste relato de Édipo, assim como no so- material adequado para imaginação, sonhos e
nho de meu paciente, a responsabilidade pela pensamentos (Bion, 1992b).
morte dos pais é substituída pela frieza arro- A “amnésia” referida pelo artista de Luan-
gante. Mas embora sua fala nos faça gelar por da, é uma das conseqüências do uso desse ar-
sua frieza, dá para reconhecermos também a tifício brutal, que destrói a função psíquica de
natureza horrorosa da culpa que carrega. Po- transformar a experiência bruta em elemen-
demos sentir compaixão por esse Édipo cego tos para imaginação, sonho e pensamento. Is-
e vagante, na medida em que nos conscienti- so, penso, explica a falta de vitalidade, de cu-
zamos de sua quase total impossibilidade de riosidade, a falta de interesse pela vida e pela
estar em contato com sentimentos tão insu- verdade, que apresentam as crianças que con-
portáveis. vivem com a violência doméstica. Ajuda-nos
Quando a dor gerada pela culpa, remorso a entender também o comportamento opos-
e arrependimento, beira o insuportável, pode- to de algumas dessas crianças como a hipera-
mos atacar nossa capacidade de sentir e per- tividade, rebeldia e agressividade extremadas;
ceber (tornamo-nos insensíveis, nos cegamos, tentativas ainda de um ego tentando não cair
tapamos nossos ouvidos); num movimento na “amnésia”, tentando se manter “vivo, lem-
ainda mais drástico, transformamos a verda- brado, desperto”.
de em onipotência, arrogância e hipocrisia.
Lembro-me aqui de uma obra de um ar-
tista de Luanda, apresentada na última Bienal Considerações
de Artes de São Paulo. Uma casa pequena, um
só cômodo, com as paredes salpicadas de fer- Trabalhos recentes dos psicanalistas Fonagy e
ros pontiagudos. A imagem de um espaço Target (1996a, b) elucidam como a criança gra-
preenchido por elementos pontiagudos suge- dativamente vai sendo capaz de distinguir e
rindo, ao se tentar penetrá-lo, riscos de perfu- integrar fantasia e realidade e a importância
ração mutilante, foi utilizada pelo artista para da família nesse processo. Os autores sugerem
expressar o que ocorre com um país em guer- que até por volta de três anos de idade a men-
ra. Frente à constantes ameaças de perda de te não adquiriu ainda uma capacidade de dis-
fronteiras e de identidade, disse o artista nu- criminação entre as realidades interna e exter-
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na. Sugerem ainda que crianças pequenas uti- tas como vinculadas e, ainda assim, serem acei-
lizam basicamente duas formas de realidade tas como distintas em aspectos importantes, não
psíquica: a equivalência psíquica e o “faz-de- tendo mais que serem igualadas ou cindidas
conta”. uma da outra” (1996b).
No modo de equivalência psíquica a expe- O modo reflexivo de funcionamento men-
riência interna é equivalente e reflete a reali- tal, na medida em que permite distinção e in-
dade externa. Por extensão o outro tem as mes- tegração entre espaço interno e espaço exter-
mas experiências que o próprio eu. Para ilus- no é um componente importante do proces-
trar esse modo de funcionamento mental os so de individuação. Amplia a comunicação,
autores comentam pesquisas recentes com pois torna possível a representação clara do
crianças pequenas. Quando se ofereceu às estado mental do outro. Ajuda o indivíduo a
crianças uma esponja moldada e pintada pa- atingir um nível mais elevado de intersubjeti-
ra parecer uma pedra, e ao serem questiona- vidade, e desse modo, experiências mais pro-
das sobre com o que o objeto se parecia e o fundas com os outros e uma vida sentida como
que realmente era, as respostas tendiam a ser as mais significativa. Além disso, na medida em
mesmas. que o modo reflexivo propicia o reconheci-
– “Com o que se parece este objeto?” pergun- mento de que uma representação é só uma re-
tava o pesquisador, e a maioria das crianças presentação, que uma idéia é só uma idéia, e
respondia: “com uma pedra”. “O que é isto?” “É que um sentimento é só um sentimento, apre-
uma pedra”. Pediram para que apertassem o senta-se como o alicerce para o pensamento
objeto e perguntavam: “O que você acha que simbólico.
é?” “É uma esponja”. “Com o que se parece?” E Como a vida em família pode facilitar ou
as crianças disseram: “Com uma esponja”. desfavorecer esse processo?
Crianças de três anos parecem ter dificul- A psicanálise vem enfatizando que o de-
dades em manter na mente, simultaneamen- senvolvimento de um psiquismo capaz de dis-
te, a aparência e a realidade. Além disso, co- tinção e integração de mundo interno e exter-
mo mostraram outras pesquisas, comportam- no constitui-se através de um processo inter-
se como se os seus pensamentos e os das ou- subjetivo.
tras pessoas espelhassem fielmente o mundo Esse processo ocorre através do mecanis-
externo. mo denominado por Klein (1946) de identi-
Mostrou-se uma conhecida caixa de doces ficação-projetiva, ou seja, o processo através
a crianças de três anos. Cada criança espera- do qual estados emocionais provenientes da
va que a caixa estivesse cheia de doces, mas foi fantasia inconsciente de uma pessoa passam
mostrado que estava cheia de lápis. Pergunta- para outra.
ram então a cada criança o que seu amigui- Embora Klein, autora deste conceito revo-
nho, que estava lá fora, achava que haveria na lucionário dentro da psicanálise, tenha ligado
caixa e elas responderam com convicção: “a este fenômeno à patologia (uma defesa contra
pessoa lá fora achará que a caixa contém lápis”. conteúdos mentais intoleráveis) Bion (1962) e
Gradativamente o modo de equivalência mais recentemente Caper (1996) ampliaram
psíquica vai cedendo lugar ao “faz-de-conta”, este conceito para a esfera da normalidade.
ou seja, uma firme separação entre a experiên- Bion fala de uma identificação projetiva
cia interna e a realidade externa, enquanto se realista. O bebê, incapaz ainda de metabolizar
brinca. Enquanto brincam as crianças são ca- sozinho conteúdos mentais intoleráveis, co-
pazes de discriminar interno e externo, sabem mo por exemplo, suas fantasias assassinas, pro-
que tudo o que estão sentindo, pensando e fa- jeta todo o seu ódio e desprezo decorrentes
zendo é só uma brincadeira. Quando param desta vivência, na mãe (ou em quem cuida de-
de brincar, a realidade externa volta a espelhar le). Na medida em que o objeto externo é ca-
o mundo interno. paz de acolher suas fantasias, decifrá-las, no-
Segundo os autores estes modos de percep- meá-las e devolvê-las à criança de forma me-
ção da realidade psíquica tornam-se cada vez nos virulenta, a criança vai podendo introje-
mais integradores, estabelecendo o que deno- tar este objeto externo e desenvolver essas fun-
minam de um modo reflexivo de experiência ções mentais em seu interior.
psíquica. No modo reflexivo os estados men- Caper amplia essas idéias propondo que
tais podem ser representados, pois “as reali- evocamos estados mentais na mente do outro
dades interna e externa podem então serem vis- para descobrirmos a mente do objeto externo
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e também a própria mente; uma forma de Fica claro, a partir dessas idéias, que a
aprender dispondo das fantasias inconscien- criança é extremamente vulnerável às repre-
tes de forma experimental; uma forma de tes- sentações de si mesma feitas pelos objetos ex-
tar o objeto externo para ver como ele é, co- ternos. Há como que uma total dependência
mo reage a determinadas verdades e sentimen- ao objeto externo para representar seu mun-
tos. Ao externalizarmos nosso mundo interno do interno e ajudá-la a processá-lo e elaborá-lo.
podemos também percebê-lo e reconhecê-lo. É por isso que Fonagy e Target (1996b) en-
A questão que se coloca, segundo Caper fatizam que a atitude dos pais é crucial nesse
(1996), é: “O que acontecerá se eu fizer isso pa- processo e que o estado mental da criança de-
ra ele? Se eu fizer com que ele sinta o que sinto, ve ser representado de maneira suficientemen-
o que ele fará? Ele irá explodir, isto é, o que es- te clara e acurada e de forma lúdica. Quando
tou projetando é explosivo? Ele achará isso agra- os pais são bem sucedidos nessa tarefa, abrem
dável, aborrecido, incompreensível, ou seja, o caminho para que a criança possa pensar as
que estou projetando é agradável, aborrecido, próprias experiências mentais, as próprias re-
incompreensível? A resposta do receptor infor- presentações mentais que são muito reais e
ma ao projetor a respeito de sua projeção, um ainda assim não são reais. Isto permite uma
aspecto de sua realidade interna. atitude lúdica e flexível a respeito da realidade
Todas as crianças têm, por exemplo, fan- em busca de modos confortáveis de conviver
tasias assassinas. Imaginemos, então, que no com ela.
movimento inconsciente de experimentá-las, Mas quando a dinâmica familiar torna-se
testá-las, informar-se a respeito delas, através uma réplica das fantasias inconscientes, o pla-
de identificação projetiva, a criança simule uma no dos significados fica impedido de se desen-
luta com o pai. Imaginemos que a criança di- volver e o nível do simbólico não pode ser al-
ga a ele: “Você é um monstro, você tem que ficar cançado. Sem os significados que podem al-
aí parado para que eu possa matá-lo”. Se o pai cançar sua representação em símbolos, a ex-
continuar a brincar e deixar-se morrer para periência emocional não pode ser pensada e
então ressuscitar em seguida de forma lúdica, evoluir. Assim, encontramos famílias que fun-
poderá estar ajudando a criança a metabolizar damentalmente “encenam” as diversas tramas
e a elaborar suas fantasias edípicas assassinas. familiares tão bem narradas pela mitologia.
Suponhamos, no entanto, que o pai inter- Pais que tal qual Cronos, “devoram” seus fi-
rompa a brincadeira numa atitude violenta de lhos ao nascer. Mães que, assim como Rheia,
reprovação, tristeza, raiva ou medo. Experiên- num pacto silencioso e perverso com seus ma-
cias repetidas deste tipo podem reforçar a idéia ridos, permitem que seus filhos sejam devora-
da criança de que sua fantasia pode se tornar dos, ou seja, impedidos de crescer e de se indi-
demasiadamente real. viduar. Filhos que, tal como Édipo, assassinam
Um casal que se agride constantemente e os pais e se “casam” com suas mães. Irmãos que,
que manifesta pouco apreço à vida sexual po- assim como Caim e Abel, entranham-se sem
de, por sua vez, alimentar e tornar demasia- saída numa rivalidade mortífera. Já não são
damente real a fantasia da criança de um ca- mais fantasias inconscientes filicidas, fratrici-
sal violento e arruinado. Fantasia esta, prove- das ou parricidas: é o “ato” tomando conta do
niente de uma impossibilidade da criança, ou cotidiano da vida familiar e sendo encenado
por ciúmes, ou por inveja, ou por intenso sen- até às últimas conseqüências, gerando distor-
timento de exclusão, de reconhecer a relação ções aberrantes dos fatos da vida.
sexual dos pais como um ato de extrema cria- Nessa perspectiva podemos pensar que a
tividade. violência doméstica aponta não só para uma
Quando a realidade externa se torna uma dinâmica viciosa de privação e traumas mas,
réplica da realidade interna, a identificação- essencialmente, para uma falta de experiên-
projetiva deixa de ser, como sugeriu Caper cias emocionais que possam ser significadas e
(1996), instrumento de experimentação e pas- alcançar representações em símbolos. A vio-
sa a ser utilizada como uma defesa, uma for- lência doméstica aponta para uma profunda
ma de se livrar de conteúdos mentais vividos incapacidade de seus membros para viverem
como intoleráveis, pois não se pode mais vi- as emoções e pensá-las de forma a propiciar
venciar as projeções como experimentações de uma integração permanente de novas expe-
conseqüências limitadas, mas como alterações riências que ampliam a possibilidade de co-
plenas e catastróficas da realidade externa. nhecimento.
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A formação de profissionais que trabalham uma réplica do próprio eu, onde o externo es-
com famílias nas áreas de saúde, educação ou pelha o interno, onde fantasia e realidade estão
social, tem me mostrado o quanto essas famí- embassadas e distorcidas.
lias podem ser ajudadas na recuperação das No entanto, a complexidade da tarefa exigi-
funções mentais suprimidas, de modo a inter- da do profissional pressupõe muito estudo teó-
romper o circuito vicioso de violência e de de- rico, supervisão e auto-conhecimento. Alvo
fesas contra reconhecê-la. das identificações-projetivas da família, o pro-
A possibilidade de estarem todos juntos, fissional terá que ser capaz de acolhê-las, de-
sendo ao mesmo tempo testemunhas e parti- cifrá-las, nomeá-las, propiciando assim que as
cipantes do relato de cada um, abre um espa- experiências emocionais provenientes das fan-
ço profícuo para o reconhecimento de um mo- tasias inconscientes possam ser pensadas e evo-
do de funcionamento grupal, onde o outro é luídas, ao invés de “encenadas” com violência.

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