Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
ARTIGO ARTICLE
Violence in the family: a psychoanalytical contribution
Abstract This article intends to understand Resumo Este trabalho busca compreender a
family violence based on concepts developed by violência doméstica fundamentada em concei-
psychoanalysis. Violence, in this context, is un- tos desenvolvidos pela psicanálise. Entende-se
derstood as a physical expression of love and violência como a expressão física, tanto do
hate, disconnected from interest in life and in amor como do ódio, quando desvinculados do
truth. When it happens, emotional experience interesse pela vida e pela verdade e, portanto, se
appears in a wild and terrifying state. Uncon- apresentando em estado selvagem e apavoran-
scious structures which accomodate a vicious te. Discutem-se as estruturas inconscientes nas
dynamic between violence and defence against quais pode repousar uma dinâmica viciosa en-
recognizing it are discussed. This paper also tre violência e defesa contra reconhecê-la e a
stresses the need for an adequate professional importância de formação adequada de profis-
trainning in order to help the reconstitution of sionais no sentido de que haja uma recupera-
mental functions which link emotional experi- ção das funções mentais que propiciam vincu-
ences to growth and development. lar experiências emocionais com desenvolvi-
Key words Psychoanalysis; Violence; Growth; mento e crescimento.
Development Palavras-chave Psicanálise; Violência; Cresci-
mento e Desenvolvimento
1 Membro associado da
Sociedade Brasileira de
Psicanálise de São Paulo;
professora responsável pelo
Curso de Extensão “Noções
Teóricas e Práticas sobre
Terapia Família e Casal”,
Universidade Estadual
de Campinas. Rua Duque
de Caxias, 642/101
13015-311, Campinas, SP.
154
Adamo,V. L. C. L.
verdade, não suportando a culpa, se cega. Ato ma entrevista, a Amnésia (título de sua obra)
este, simbolicamente representando a destrui- pode ser a única saída. Numa guerra, a “am-
ção de sua capacidade de sentir e de perceber. nésia” é, às vezes, a única saída, o único lugar
Mais tarde, Édipo explica que também teria possível de abrigo, repouso, consolo.
atacado os ouvidos, se tivesse sido capaz de fa- Em texto recente Segal (1998) considera
zê-lo: “assim eu teria privado meu sofrido cor- que o maior prejuízo para indivíduos inseri-
po da audição a fim de nada mais ouvir, e na- dos em ambientes violentos é o obscurecimen-
da mais ver, pois é um alívio ter o espírito invi- to do que é fantasia e do que é realidade. Num
sível à causa de tão grandes males”. clima de constante violência (expressão de
Em Édipo em Colona, Sófocles mostra Édi- amor e ódio restrito a descargas motoras – gri-
po como um velho cego à beira da morte. Des- tos, tapas, palavras e gestos destrutivos de to-
sa vez vemos uma pessoa muito diferente, li- da ordem) o estatuto irreal e inconsciente das
dando com a realidade de forma mais drástica, fantasias, passa para o plano do “verdadeiro”.
como sugeriu Steiner, retirando-se da verda- Já não são mais fantasias inconscientes expres-
de para a onipotência. Ele não nega os fatos, sando-se e tentando ser processadas através
é tarde demais para fingir, mas ele nega qual- de sonhos, mas são fatos. Não se trata mais de
quer responsabilidade e culpa, alegando que temores herdados filogeneticamente, não se
esses fatos foram erros cometidos contra ele e trata mais de ficção ou sonho, mas de uma des-
não por ele: “não quero que me atribuam co- trutividade real. Quando isso ocorre, o indi-
mo crimes, nem esse casamento, nem o assassi- víduo terá que lançar mão de estratégias mais
nato de meu pai... responda apenas uma per- radicais para a sobrevivência. Eliminar o con-
gunta minha: se alguém aparecesse aqui neste teúdo da consciência não é suficiente para se
momento, e tentasse matar-te, quererias saber proteger da ansiedade excessiva. O próximo
se quem te ameaçava era seu pai, ou antes o cas- estágio é a destruição do aparato mental res-
tigarias? Pois esta foi exatamente a desventura ponsável pela transformação das impressões
com que me defrontei, levado pelos deuses”. sensoriais e das experiências emocionais em
Neste relato de Édipo, assim como no so- material adequado para imaginação, sonhos e
nho de meu paciente, a responsabilidade pela pensamentos (Bion, 1992b).
morte dos pais é substituída pela frieza arro- A “amnésia” referida pelo artista de Luan-
gante. Mas embora sua fala nos faça gelar por da, é uma das conseqüências do uso desse ar-
sua frieza, dá para reconhecermos também a tifício brutal, que destrói a função psíquica de
natureza horrorosa da culpa que carrega. Po- transformar a experiência bruta em elemen-
demos sentir compaixão por esse Édipo cego tos para imaginação, sonho e pensamento. Is-
e vagante, na medida em que nos conscienti- so, penso, explica a falta de vitalidade, de cu-
zamos de sua quase total impossibilidade de riosidade, a falta de interesse pela vida e pela
estar em contato com sentimentos tão insu- verdade, que apresentam as crianças que con-
portáveis. vivem com a violência doméstica. Ajuda-nos
Quando a dor gerada pela culpa, remorso a entender também o comportamento opos-
e arrependimento, beira o insuportável, pode- to de algumas dessas crianças como a hipera-
mos atacar nossa capacidade de sentir e per- tividade, rebeldia e agressividade extremadas;
ceber (tornamo-nos insensíveis, nos cegamos, tentativas ainda de um ego tentando não cair
tapamos nossos ouvidos); num movimento na “amnésia”, tentando se manter “vivo, lem-
ainda mais drástico, transformamos a verda- brado, desperto”.
de em onipotência, arrogância e hipocrisia.
Lembro-me aqui de uma obra de um ar-
tista de Luanda, apresentada na última Bienal Considerações
de Artes de São Paulo. Uma casa pequena, um
só cômodo, com as paredes salpicadas de fer- Trabalhos recentes dos psicanalistas Fonagy e
ros pontiagudos. A imagem de um espaço Target (1996a, b) elucidam como a criança gra-
preenchido por elementos pontiagudos suge- dativamente vai sendo capaz de distinguir e
rindo, ao se tentar penetrá-lo, riscos de perfu- integrar fantasia e realidade e a importância
ração mutilante, foi utilizada pelo artista para da família nesse processo. Os autores sugerem
expressar o que ocorre com um país em guer- que até por volta de três anos de idade a men-
ra. Frente à constantes ameaças de perda de te não adquiriu ainda uma capacidade de dis-
fronteiras e de identidade, disse o artista nu- criminação entre as realidades interna e exter-
157
e também a própria mente; uma forma de Fica claro, a partir dessas idéias, que a
aprender dispondo das fantasias inconscien- criança é extremamente vulnerável às repre-
tes de forma experimental; uma forma de tes- sentações de si mesma feitas pelos objetos ex-
tar o objeto externo para ver como ele é, co- ternos. Há como que uma total dependência
mo reage a determinadas verdades e sentimen- ao objeto externo para representar seu mun-
tos. Ao externalizarmos nosso mundo interno do interno e ajudá-la a processá-lo e elaborá-lo.
podemos também percebê-lo e reconhecê-lo. É por isso que Fonagy e Target (1996b) en-
A questão que se coloca, segundo Caper fatizam que a atitude dos pais é crucial nesse
(1996), é: “O que acontecerá se eu fizer isso pa- processo e que o estado mental da criança de-
ra ele? Se eu fizer com que ele sinta o que sinto, ve ser representado de maneira suficientemen-
o que ele fará? Ele irá explodir, isto é, o que es- te clara e acurada e de forma lúdica. Quando
tou projetando é explosivo? Ele achará isso agra- os pais são bem sucedidos nessa tarefa, abrem
dável, aborrecido, incompreensível, ou seja, o caminho para que a criança possa pensar as
que estou projetando é agradável, aborrecido, próprias experiências mentais, as próprias re-
incompreensível? A resposta do receptor infor- presentações mentais que são muito reais e
ma ao projetor a respeito de sua projeção, um ainda assim não são reais. Isto permite uma
aspecto de sua realidade interna. atitude lúdica e flexível a respeito da realidade
Todas as crianças têm, por exemplo, fan- em busca de modos confortáveis de conviver
tasias assassinas. Imaginemos, então, que no com ela.
movimento inconsciente de experimentá-las, Mas quando a dinâmica familiar torna-se
testá-las, informar-se a respeito delas, através uma réplica das fantasias inconscientes, o pla-
de identificação projetiva, a criança simule uma no dos significados fica impedido de se desen-
luta com o pai. Imaginemos que a criança di- volver e o nível do simbólico não pode ser al-
ga a ele: “Você é um monstro, você tem que ficar cançado. Sem os significados que podem al-
aí parado para que eu possa matá-lo”. Se o pai cançar sua representação em símbolos, a ex-
continuar a brincar e deixar-se morrer para periência emocional não pode ser pensada e
então ressuscitar em seguida de forma lúdica, evoluir. Assim, encontramos famílias que fun-
poderá estar ajudando a criança a metabolizar damentalmente “encenam” as diversas tramas
e a elaborar suas fantasias edípicas assassinas. familiares tão bem narradas pela mitologia.
Suponhamos, no entanto, que o pai inter- Pais que tal qual Cronos, “devoram” seus fi-
rompa a brincadeira numa atitude violenta de lhos ao nascer. Mães que, assim como Rheia,
reprovação, tristeza, raiva ou medo. Experiên- num pacto silencioso e perverso com seus ma-
cias repetidas deste tipo podem reforçar a idéia ridos, permitem que seus filhos sejam devora-
da criança de que sua fantasia pode se tornar dos, ou seja, impedidos de crescer e de se indi-
demasiadamente real. viduar. Filhos que, tal como Édipo, assassinam
Um casal que se agride constantemente e os pais e se “casam” com suas mães. Irmãos que,
que manifesta pouco apreço à vida sexual po- assim como Caim e Abel, entranham-se sem
de, por sua vez, alimentar e tornar demasia- saída numa rivalidade mortífera. Já não são
damente real a fantasia da criança de um ca- mais fantasias inconscientes filicidas, fratrici-
sal violento e arruinado. Fantasia esta, prove- das ou parricidas: é o “ato” tomando conta do
niente de uma impossibilidade da criança, ou cotidiano da vida familiar e sendo encenado
por ciúmes, ou por inveja, ou por intenso sen- até às últimas conseqüências, gerando distor-
timento de exclusão, de reconhecer a relação ções aberrantes dos fatos da vida.
sexual dos pais como um ato de extrema cria- Nessa perspectiva podemos pensar que a
tividade. violência doméstica aponta não só para uma
Quando a realidade externa se torna uma dinâmica viciosa de privação e traumas mas,
réplica da realidade interna, a identificação- essencialmente, para uma falta de experiên-
projetiva deixa de ser, como sugeriu Caper cias emocionais que possam ser significadas e
(1996), instrumento de experimentação e pas- alcançar representações em símbolos. A vio-
sa a ser utilizada como uma defesa, uma for- lência doméstica aponta para uma profunda
ma de se livrar de conteúdos mentais vividos incapacidade de seus membros para viverem
como intoleráveis, pois não se pode mais vi- as emoções e pensá-las de forma a propiciar
venciar as projeções como experimentações de uma integração permanente de novas expe-
conseqüências limitadas, mas como alterações riências que ampliam a possibilidade de co-
plenas e catastróficas da realidade externa. nhecimento.
159
Referências
Bion WR 1962. Aprendendo com a Experiência. Rio de
Janeiro, Imago, 1991.
Bion WR 1992a. Emotional violence. In Cogitations.
Karnac Books, Londres.
Bion WR 1992b. Animism, destructive attacks and re-
ality. In Cogitations. Karnac Books, Londres.
Caper R 1996. O brincar, a experimentação e a criativi-
dade. Livro Anual de Psicanálise, XII, Escuta, São
Paulo.
Fonagy P & Target M 1996a. Brincando com a Realidade
I: Teoria da mente e o desenvolvimento normal da
realidade psíquica. Livro Anual de Psicanálise, XII,
11, Escuta, São Paulo.
Fonagy P & Target M 1996b. Brincando com a Realidade
II: O desenvolvimento da realidade psíquica a par-
tir de uma perspectiva teórica. Livro Anual de Psi-
canálise, XII, 65, Escuta, São Paulo.
Klein M 1946. Notas sobre alguns mecanismos es-
quizóides. In Os Progressos da Psicanálise. Rio de
Janeiro, Zahar, 1978.
Money-Kyrle R 1971. The aim of psycho-analysis. Int
Journal of Psycho-analysis 52: 103-106.
Segal H 1998. Psicanálise, Literatura e Guerra. Imago,
Rio de Janeiro.
Steiner J 1997. Dois tipos de organização patológica em
Édipo Rei. In Refúgios Psíquicos. Imago, Rio de
Janeiro.
Winnicott DW 1985. O Ambiente e os Processos de Ma-
turação. Artes Médicas, Porto Alegre 1990.