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Resumo ACOMPANHAMENTO
TERAPÊUTICO ESCOLAR
O objetivo do artigo é relatar uma
experiência de acompanhamento
E AUTISMO: CAMINHOS
terapêutico escolar com uma
criança autista, realizado duran-
te três anos e meio em uma escola
particular de Salvador. Os dados PARA A EMERGÊNCIA
foram registrados em um diário
de campo e analisados a partir DO SUJEITO
da abordagem psicanalítica.
Observaram-se avanços signifi-
cativos relacionados à emergência
do sujeito, como mudanças na
fala, no reconhecimento de si,
do corpo e no brincar simbólico. Verônica Gomes Nascimento
A prática mostra-se como um
recurso importante para a inclu- Alan Souza Pereira Silva
são e para o desenvolvimento de
crianças autistas.
Maria Virgínia Machado Dazzani
Descritores: acompanhamen-
to terapêutico; inclusão escolar;
autismo.
DOI: http//dx.doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v20i3p520-534.
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de vínculos com as outras crianças e com a professora; e busca-se
ajudar a criança a permanecer na sala o máximo de tempo possível,
convidando-a incessantemente para as atividades propostas, apro-
veitando e significando as suas iniciativas, envolvendo-a em um
contexto social e educacional. Assim, o acompanhante convoca a
criança para a rotina e para a regra, atuando também sobre o ato
educativo e produzindo um efeito terapêutico, pois ao submetê-la
às regras escolares, supõe-se a existência de um sujeito (Assali et al.,
1999), o qual pode vir a compreendê-las e sustentá-las.
Num primeiro momento, o acompanhante assume uma presença
ativa (Montellano et al., 2009), ou seja, ele cumpre as funções de:
1) interpretar e traduzir as diversas linguagens da criança, da escola,
da família; e 2) ser um espelho no qual a criança possa se reconhe-
cer. Dessa forma, o acompanhante opera na constituição do eu da
criança, no surgimento do sujeito da linguagem e do discurso social.
Outro aspecto importante é a posição de escuta ativa (Fráguas,
2004), na qual o acompanhante se coloca como destinatário de uma
mensagem – semelhante a um escrivão que atesta um documento
(González, 2002, citado por Fráguas, 2004) – reconhecendo que há
uma pessoa tentando se comunicar. Associando à clínica do autismo,
Fráguas pontua que o acompanhante, tendo como base suas próprias
fantasias e desejos, investe na hipótese de que as várias formas de
manifestação da criança, seja como um delírio, uma estereotipia ou
uma ecolalia, possuem um sentido.
Isso acontece por meio do manejo da relação transferencial entre
o acompanhante e a criança (Cenamo et al., 1991 citado por Fráguas
& Berlinck, 2001). É a partir da transferência e investimento de desejo
que ocorre uma “antecipação do sujeito”, uma aposta imaginária.
Segundo os autores, apostar nas possibilidades e “antecipar o sujei-
to” é dar sentido às produções da criança, e para isso, é necessário
supor a existência de um sujeito numa dimensão imaginária. Esse
processo caracteriza-se como uma antecipação e suposição do sujeito,
considerando a fragilidade subjetiva em que se encontram as crianças
com embaraços no processo constitutivo.
Fráguas (2004) analisa a atribuição de sentido às “produções
linguageiras” (p. 124) da criança, pontuando que é necessário consi-
derar que se trata de uma criança que também possui sentimentos,
vontades e desejos – mesmo que tais manifestações não se mostrem
de um modo muito claro e acessível aos outros. Assim, o acompa-
nhante pinça, nas falas e atitudes das crianças, sinais de seu desejo;
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é possível que a pessoa se torne capaz de expressar-se como sujeito
e agente no curso das suas interações sociais.
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preservar a integridade humana, garantir a participação voluntária e
assegurar a confidencialidade das informações utilizadas.
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perguntava, devolvia a frase para ele, receber carinho, até chegar ao pedido
esboçando o início de um diálogo. para sair da sala. A permanência em
Nesse sentido, a acompanhante se sala era muito difícil para ele naquele
posicionava como destinatário de uma momento, então ele sempre esca-
mensagem, compreendendo que as pava, saía correndo da sala. Havia a
mais variadas formas de manifesta- compreensão, na escola, de que era
ção da criança possuem um sentido complicado mantê-lo ali, sentado,
(Fráguas, 2004). realizando alguma atividade, mas
Assumindo uma função de pre- tínhamos que estabelecer bordas e
sença ativa na escola, ocupando o enlaçá-lo em regras e acordos sociais.
lugar de intérprete e tradutor das A acompanhante e a professora co-
diversas linguagens (da criança, da es- meçaram a combinar algumas saídas,
cola, da família), oferecendo-se como mas ele tinha que pedir à professora
“espelho” (Montellano et al., 2009) e para sair. Havia, nesse movimento, a
se posicionando como receptor das antecipação de um sujeito de desejo,
mensagens, a acompanhante perce- um sujeito falante, a aposta imaginária
bia que Tiago começava a utilizar do adulto nas possibilidades daquela
mais frases que pareciam expressar criança (Fráguas & Berlinck, 2001).
algo que ele desejava comunicar. A tentativa do ATE de Tiago foi
Ele utilizava, como empréstimo, as pinçar, nas suas falas e atitudes, sinais
falas da acompanhante e de outras de uma manifestação de algo do seu
pessoas, diante da impossibilidade desejo, para significar o processo e,
de construir frases próprias. Um posteriormente, reconhecer esse dese-
exemplo disso pôde ser observado jo como seu, como próprio (Fráguas,
quando ele era chamado para voltar à 2004). Diante disso, é fundamental
sala após o recreio; ele aceitava, mas retomar a importância da sustentação
começava a falar “eu não mereço, eu do “desejo” da criança pela circu-
não mereço!”, e quando a interação lação do espaço físico da escola e
com os colegas se tornava difícil, ele pelo estabelecimento de relações que
passava a utilizar “agora eu não posso, vão sendo construídas. Esse aspecto
Lary!” (um personagem de desenho mostra sua relevância, por representar
animado). uma antecipação do desejo, o qual é
Com algumas frases consideradas significado pelo acompanhante, que o
verdadeiras convocações, como “o sustenta para a própria criança e para
que você quer, Tiago?”, ele começou a escola, a despeito das demandas e
a utilizar “eu quero” e “quero não”. questionamentos dos demais atores
Em muitos momentos, falava em escolares. Tiago frequentava bastante
terceira pessoa: “ele quer” ou “quer”. a biblioteca, no recreio e nas saídas
Conseguia expressar vontade de ir da sala, o que se tornou o início para
ao banheiro, beber água, lanchar, a antecipação de um desejo e de sua
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a imagem corporal fala da constituição do sujeito, sendo singular e inconsciente;
o esquema é pré-consciente. Levin (2000) explica que o esquema é uma repre-
sentação do corpo, sendo a imagem constituinte do sujeito desejante, que vai
se constituindo no devir histórico da experiência subjetiva. O esquema corpo-
ral implica uma representação, já que a criança pode falar do corpo, das suas
partes, funções, relações espaciais e da dimensão temporal do corpo (Yañez,
1996/2008). Diante disso, Tiago não tinha como representar e/ou reconhecer
seu corpo antes da emergência do sujeito; antes de construir uma imagem cor-
poral possível. É necessário, portanto, constituir a imagem do corpo para haver
o esquema corporal.
Durante o ATE com Tiago, foi observado que era possível intervir com o
brincar espontâneo, aproveitando suas iniciativas e os espaços da escola. Então,
no banheiro, brincavam com o espelho: a acompanhante perguntava para ele
quem estava aparecendo ali. Inicialmente, ele respondia “é o menino”, até que
passou a falar “é Tiago” e a demonstrar satisfação com essa brincadeira e com
o seu reflexo. Na sala, na biblioteca, no parque e em outros espaços, a acom-
panhante brincava de pegar nas partes do corpo e do rosto, e faziam caretas.
Tiago ficava confuso com o que era do outro e o que era dele, e aos poucos
foram elaborando conjuntamente a diferenciação dos corpos, dos rostos e das
sensações. Tiago passou a reconhecer e brincar com o “soltar pum”; começou a
mostrar quando se machucava, falando: “machucou meu joelho”, “meu braço”.
As brincadeiras de reconhecimento do corpo e da imagem podem ser ca-
racterizadas como o brincar constitutivo, visto que apontam para o processo
de constituição do sujeito. Tiago, após um ano de acompanhamento, começou
a falar “quer morder o bracinho?” e colocava o braço na boca do adulto (fazia
isso com a acompanhante e com a professora em alguns momentos) para que
fingissem estar se deliciando com a mordida; também esperava a finalização da
brincadeira, que terminava com a fala “hum, que bracinho mais gostoso!”, a
qual era induzida por ele, mas tinham que acompanhá-lo. Provavelmente, Tiago
estava reatualizando, na transferência, algo que fazia com outras pessoas; mas
é importante observar como esse brincar parece retomar o terceiro tempo do
circuito pulsional, como analisa Laznik (2004). A autora, seguindo o trajeto
pulsional de Freud, situa o processo de alienação nesse terceiro tempo, e afirma
que a criança se faz objeto de um novo sujeito, o que revela um assujeitamento a
um outro, o qual sustentará o lugar de um grande Outro primordial, que fala no
seu lugar e fornece os significantes que serão utilizados por ela posteriormente.
Outro exemplo de brincar constitutivo refere-se aos momentos do es-
conder-se. Tiago iniciou a brincadeira de esconder o rosto na camisa com um
colega. Depois, passou a brincar de se esconder da acompanhante na mesa. Isso
mostra a brincadeira de presença e ausência, o “Fort-Da”. O jogo do “Fort-Da”
Considerações finais
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da constituição subjetiva. O ATE representa, sobretudo para as crian-
ças com autismo, uma possibilidade de estar no ambiente escolar,
de circular socialmente, de ser visto, de expor suas estranhezas, de
se relacionar, de ser escutado, de ser sujeito falante, de ser sujeito de
desejo. Considera-se, desse modo, relevantes os efeitos terapêuticos
da inclusão para crianças com questões subjetivas e o ATE como
uma possibilidade de atuação que se direciona por essa perspectiva.
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Recebido em dezembro/2014.
Aceito em agosto/2015.