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DO ANACRONISMO À INVENÇÃO DA HISTÓRIA

Jean Wier posto à prova pela psiquiatria

Eva Yampolsky

I. Os Arquivos Diabólicos da Psiquiatria

Três séculos após a publicação do De praestigiis daemonum, de Jean Wier, as bruxas e


os possuídos reaparecem em escritos psiquiátricos e neurológicos. Agora são histéricos, ou
hístero-epilépticos, que a escola Salpêtrière, com Charcot à frente, observa, tenta tratar e expõe à
comunidade médica e acadêmica. Há, de fato, um novo interesse pela demonomania do passado,
que os alienistas e neurologistas modificam inteiramente dentro do enquadramento médico. As
bruxas e os possuídos seriam, na verdade, histéricos ou loucos, e Wier estava certo ao dizer que é
melhor curá-los do que condená-los. Esse diagnóstico retrospectivo, reivindicado pelos próprios
médicos do final do século XIX, deixa reler e redescobrir uma história distante de crenças
religiosas e teorias médicas agora abandonadas e, segundo elas, errôneas. Essa é, em minha
opinião, uma reconstrução estratégica da história, em nome de uma nova concepção da histeria e
seu tratamento. No cerne de tal reconstituição, todos esses relatos médico-jurídico-religiosos -
sobre bruxas, possuídos, convulsivos, extáticos e visionários também - foram reunidos
indiscriminadamente e vistos a partir do prisma único da psiquiatria moderna. Citando-os
extensivamente, comparando-os com seus próprios pacientes e também reeditando-os, esses
relatos forneceram aos psiquiatras material de observações agora médicas, com dados e
evidências de seu legado e história. Além disso, reinscrever essas velhas observações no seio de
seu próprio quadro clínico permitiu-lhes não só observar o passado e reinterpretá-lo, mas
também, e acima de tudo, relacioná-lo com o presente e, em última instância, “inventar” as
filiações epistemológicas de sua própria disciplina.
Fazer de Jean Wier a figura fundadora da psiquiatria é, em minha opinião, um
verdadeiro discurso fundacional por meio do qual os psiquiatras do século XIX, e alguns
médicos - psiquiatras e psicólogos ainda hoje - reconstituem a história de sua própria disciplina.
Apesar de o trabalho de Wier estar muito distante do que mais tarde se tornaria a psiquiatria,
seria, no entanto, precipitado qualificar essa linhagem como puro “anacronismo”, como muitos
críticos afirmam hoje. A nova postura que Wier adota em relação aos doentes mentais marca
uma virada fundamental na medicina em sua relação com a justiça e a Igreja. É justamente essa
afirmação de Wier - que é muito real – sobre a legitimidade do saber médico e de sua autoridade
diante dos casos demoníacos é que será vista pelos psiquiatras desde o século XIX como o
momento fundador dessa disciplina. Portanto, o problema não é com a realidade psiquiátrica da
obra de Wier, mas com o uso que os alienistas fizeram dela para escrever a história de sua
própria disciplina. Enfim, esse trabalho de reescrever a história leva a que esses médicos
coloquem as mulheres, mais uma vez, sob o olhar vigilante da medicina, sob uma extensão do
olhar naturalizante das propriedades que as predisporiam à loucura, à histeria e às doenças.
Esse novo modelo de compreensão dos fenômenos religiosos, como é o caso aqui das
possessões demoníacas, tem como efeito um certo “nivelamento” da história, uma negação dos
fatores religiosos, filosóficos e também médicos que têm sido capazes de legitimar essas crenças,
um modelo pelo qual os médicos do século XIX reduziram todos esses fenômenos médico-
religiosos, desde a Idade Média, a uma entidade nosográfica. Como conclui Gabriel Legué em
sua tese médica sobre as possuídas de Loudun: “Satanás, o ser imaginário, desapareceu
completamente para dar lugar a uma realidade, a doença” [Documents pour servir à l’histoire
médicale des possédées de Loudun, thèse de doctorat, Faculté de médecine, Paris, 1874, p. 68].
No entanto, apesar desse efeito nivelador histórico, o interesse que os médicos do século XIX
demonstraram por esses fenômenos os levou a redescobrir os próprios textos antigos e a
apresentá-los a um público mais amplo.
É justamente essa a aposta da Biblioteca Diabólica, coleção fundada e dirigida pelo
alienista francês Désiré-Magloire Bourneville (1840-1909), que não durou mais de vinte anos e
publicou apenas nove livros. Médico do hospital Bicêtre, Bourneville foi discípulo de Charcot e
colaborador ativo na escola Salpêtrière. Entre as nove obras publicadas na Biblioteca Diabólica,
entre 1882 e 1902, Bourneville escolheu reeditar, pela primeira vez desde o século XVI, a obra
de Jean Wier, De praestigiis daemonum. Os alienistas fazem de Wier o iniciador humanista da
interpretação médica dos fenômenos demoníacos e estabelecem em torno dele um mito fundador,
semelhante ao construído em torno de Pinel.
Por sua “rigorosa exatidão”, o olhar do alienista e do neurologista, que perscruta os
histéricos do século XIX, pode ir além dos preconceitos religiosos e supersticiosos, que ainda
permanecem nas “relações” de Wier, e revelar a “completa semelhança” entre os endemoniados
do passado e os histéricos do século XIX. Nenhuma obra da coleção Bourneville demonstra
melhor esse trabalho de releitura e “medicina retrospectiva” do que a Autobiografia da Irmã
Joana dos Anjos, editada por Legué e Gilles de la Tourette, na qual a auto-observação dessa
mística possuída se transforma em objeto de observação psiquiátrica. Um texto antigo cerceado,
constrangido, uma palavra religiosa circunscrita e apreendida pela autoridade do saber
psiquiátrico, que lhe nega legitimidade e o reduz a um conjunto de sintomas e sinais patológicos
que a publicação expõe e oferece ao olhar, como mostravam as famosas fotografias dos corpos
contorcidos dos histéricos da Salpêtrière.
Entre as edições em francês da obra de Wier, Bourneville escolheu publicar a edição de
1579, em seis livros, seguida de dois diálogos de Thomas Erastus, publicados em Genebra por
Jacques Chouet. Trata-se de uma reformulação da tradução de Jacques Grévin de Simon Goulart.
A nova edição de 1885 de Bourneville é acompanhada por um prefácio de Bourneville e uma
nota biográfica sobre Axenfeld, um de seus mestres a quem ele homenageia. Por uma
preocupação, que à primeira vista pode parecer de interesse puramente estético, Bourneville
reproduz a grafia, as notas nas margens laterais e as iniciais ornamentais, tal como apareciam na
edição de 1579. Agora, uma análise próxima a estas duas edições - a de 1579 e a de 1885 - revela
pequenas pistas gráficas que enganam o leitor e traem a alegada autenticidade da edição
Bourneville e, sobretudo, do número documental e arquivístico dessa nova edição e,
consequentemente, de toda a coleção diabólica. A diferença entre o original e a edição do século
XIX é menor, insignificante, pode-se dizer, mas revela uma manipulação, um truque pelo qual
Bourneville tenta tornar o texto mais autêntico do que o original, mais verdadeiro do que o
verdadeiro, mas que, por estes as pistas, revela o jogo arquivístico que ele almeja. Nesse sentido,
as publicações da coleção diabólica de Bourneville representam uma simulação documental
operada pelo alienista-feiticeiro, em nome do saber psiquiátrico e do progresso médico. Essa
nova figura do feiticeiro-alienista trespassa a alma do louco com seu olhar encantador, liberta-o
das correntes, como teria feito o alienista Philippe Pinel, do demônio agora internalizado, e retira
do louco suas amarras ao demônio. Trabalho que sistematiza e democratiza em nome da higiene
moral e pública da sociedade.
II. Demonomania, um conceito psiquiátrico

A primeira definição psiquiátrica aprofundada de demonomania, e que, por muito tempo,


permaneceu uma referência, foi desenvolvida pelo famoso alienista francês, e aluno de Philippe
Pinel, Jean-Etienne-Dominique Esquirol, em 1814, para o Dicionário de Ciências Médicas de
Panckoucke. Segundo ele, trata-se de uma espécie de melancolia religiosa, ou monomania,
caracterizada pela convicção e pelo medo de ser caçado ou possuído por demônios.
Em seu “Estudo clínico sobre demonomania”, de 1843, Maurice Macario (1811-1898),
alienista do asilo de Maréville (Meurthe), destaca a prevalência da demonomania nas províncias
e acompanha seu estudo com trinta e três observações de pacientes em Maréville. O único
tratamento eficaz contra a demonomania, segundo ele, é o “método disruptivo”, que permite
“romper a cadeia viciosa de ideias dos endemoninhados, provocar choques morais enérgicos que
abalam todo o organismo, romper o espasmo pelo espasmo, opor paixões reais a paixões
imaginárias, tocar a única corda que ainda vibra em suas almas, a da dor e dessa luta”.
O renascimento religioso em meados do século XIX, principalmente na comunidade
médica, coincidiu com o ressurgimento da possessão demoníaca na década de 1840, aumento das
aparições marianas, como em Lourdes, experiências místicas, visionárias e extáticas, como o
caso de Alexandrine Lanois e o da estigmatizada belga Louise Lateau, ou o famoso caso das
possuídas de Morzine, nas décadas de 1850 e 1860. Na maioria desses casos, clérigos, exorcistas
e alienistas coexistem em torno de corpos doentes, muitas vezes mulheres, possuídas ou
convulsionadas, visionárias ou alucinadas, extáticas ou catalépticas. Entrando em cena por
curiosidade intelectual, ou por responsabilidade profissional e higienista para diagnosticar a
patologia responsável e para prevenir o contágio de excessos supersticiosos, os alienistas
publicam suas observações em revistas especializadas.
Considerada, ainda em meados do século XIX, como uma doença propriamente dita, há,
porém, um novo olhar psiquiátrico sobre a demonomania. Agora, essa patologia abrange não
apenas o medo e a crença de ser possuído pelo demônio, mas também outros fenômenos
sobrenaturais, como êxtase e visões. Essa posição é defendida em particular pelo alienista
Claude-François Michéa (1815-1882), em sua definição de demonomania de 1869. A distinção
entre esses diferentes fenômenos religiosos depende, então, não da realidade e da legitimidade
dessas crenças, mas de seus efeitos no funcionamento físico e psicológico do paciente. As visões
místicas são apenas alucinações, e a manifestação do demônio no corpo do possuído e em estado
de êxtase são apenas convulsões e surgem de patologias nervosas.
A etapa final da legitimação médica dos fenômenos sobrenaturais foi alcançada na
segunda metade do século XIX, quando os alienistas rejeitaram o próprio status da demonomania
como doença, reduzindo-a a sintoma ou característica comportamental ou fisiológica que
acompanha a histeria ou algum outro tipo de psicopatologia. Essa posição sobre a demonomania
é desenvolvida em particular por Antoine Ritti, assim como também por Morel e Krafft-Ebing.
Reduzida a um simples sintoma, a demonomania está relacionada a todo um conjunto de
“excessos” religiosos, coletivos e “epidêmicos”, muitas vezes caracterizados por distúrbios
neurológicos, em particular convulsões, catalepsia, histeria e distúrbios dos sentidos. Esse ponto
de inflexão resultará em um novo interesse por casos históricos de possessão e epidemias
religiosas como os possuídos de Loudun, os Convulsionários de Saint-Médard e os Tremedores
de Cévennes; em suma, todo um conjunto de epidemias convulsivas, agora estudadas sob o
prisma da histeria, de Pierre Briquet à escola de Salpêtrière. Essa histericização da história
religiosa decorre não da legitimidade de crenças passadas, mas da duplicação e preocupação que
operam no corpo, especialmente nas mulheres, antes pelo demônio e por doenças psíquicas e
nervosas, na época de Charcot.
A questão da observação é fundamental nesse processo de reinterpretação e apropriação
médica dos fenômenos sobrenaturais. Não se trata mais de discernir espíritos [de discernir se a
possessão é divina ou demoníaca], nem de distinguir “marcas” ou sinais demoníacos de sinais
naturais. As observações que alienistas e neurologistas apresentam de demonômanos agora são
parte de um modelo de análise estritamente médica de fisiologia patológica. As antigas
observações relatadas pelos médicos modernos e retomadas pelos médicos do século XIX
funcionam como tantas comparações, analogias, cujo único propósito é confirmar o que os
alienistas veem – e, segundo eles, veem melhor - com seus próprios olhos. Os documentos
oficiais, os registros judiciais e médicos da era moderna “são tantas observações clínicas” que
permitem aos médicos do século XIX estabelecer a ligação direta entre sua concepção de histeria
e os antigos casos de possessão demoníacas.
O retrato fisiognomônico da bruxa louca descrito por alienistas como Macario é
reproduzido visualmente por desenhos clínicos e pelas famosas fotografias da Salpêtrière, que
servem de referência ou modelo diagnóstico para a comunidade médica. Esquirol já acompanha
seu artigo sobre a demonomania das quatro placas, que fazem parte do método frenológico de
Gall e Spurzheim, pelo qual a psique e o caráter do indivíduo podem ser medidos nas feições do
rosto e no formato do crânio.
Essa abordagem iconográfica, claramente inscrita nas questões disciplinares, atingiu o seu
apogeu no final do século XIX, ainda na Salpêtrière, sob a influência de Charcot. Duas
importantes obras desse período podem ser mencionadas aqui: Iconographie photographique de
la Salpêtrière, em três volumes, publicada por Bourneville e Paul Regnard entre 1877 e 1880, e
Les Démoniaques dans l'art, publicada por Charcot e Paul Richet em 1887. Partindo de uma
abordagem que Charcot chama de medicina retrospectiva, as antigas representações de
endemoninhados, convulsivos religiosos e extáticos são interpretados, no texto que os
acompanha, como histéricos, enquanto as fotografias dos histéricos da Salpêtrière são
comparadas às diferentes imagens de endemoninhados e extáticos de eras anteriores, como a
crucificação e o êxtase.

III. De um Charcot a outro, para uma reescrita da história demonológica

A medicina “retrospectiva” defendida por Charcot e seus seguidores provém de uma


erudição que pode ser vista nos estudos médicos do século 19, que muitas vezes colocam suas
novas análises dentro de um quadro médico e histórico mais amplo. No entanto, as apostas vão
claramente além dessa erudição, com um objetivo disciplinar pelo qual os médicos reinterpretam
a história e incluem os casos antigos em seus modelos de compreensão dos fenômenos
patológicos. Assim, ao utilizar a história em benefício da medicina, os médicos do século XIX
instrumentalizaram casos antigos, apropriaram-se deles reinterpretando-os a partir de novos
modelos de compreensão e, assim, esvaziando-os de sua historicidade, com vistas a revelar sua
“verdadeira natureza”, doravante patológica e livre de crenças supersticiosas e equivocadas sobre
o demônio. Nesse sentido, os diferentes fenômenos religiosos - demoníacos, feiticeiros,
convulsivos, extáticos, visionários e místicos - unem-se em um conjunto inseparável. Também
muitas mulheres são postas nesses diferentes modelos de compreensão: as bruxas e as possuídas
na Renascença, as mulheres convulsionárias [convulsivas] do século XVIII, depois as histéricas,
pois são predominantemente mulheres nos estudos dos neurologistas sobre a histeria.
Nessa perspectiva comparativa, entre a história e o contexto médico contemporâneo, os
médicos são responsáveis por “destacar as características comuns que unem todas as epidemias
convulsivas”, como Charcot e Richet explicam em Les Démoniaques dans l'art, e mostrar a
antiguidade da histeria como eles a concebem. Trata-se de um “exorcismo historiográfico”, para
usar o termo de Michel de Certeau, pelo qual alienistas e neurologistas deslocam o demônio de
um campo do conhecimento para outro, internalizando-o no seio do psiquismo.
No entanto, seria redutor dizer que esse interesse em fenômenos religiosos antigos entre
os médicos do século XIX responde ao único desejo de demonstrar o progresso médico. Nesse
nivelamento histórico, pelo qual os médicos se apropriam de antigos fenômenos religiosos, há,
em certos autores, uma nova relação com a história, que eles não apenas relem e reinterpretam,
mas também a reinventam e a reescrevem.
Podemos retornar aqui à Biblioteca Diabólica e mais precisamente à primeira obra
publicada, em 1882, por Bourneville e Teinturier, intitulada Le Sabbat des sorciers. Essa obra
inaugural consiste em uma coleção de passagens retiradas principalmente do Discurso Execrável
dos Feiticeiros, de Henri Boguet (1602), intercaladas com citações de outros demonologistas da
Renascença, notadamente de Jean Bodin e Francesco Maria Guazzo. Le Sabbat des sorciers
destaca-se das outras edições publicadas nessa coleção por ser uma compilação de textos antigos
de vários autores, que Bourneville e Teinturier introduzem e interrelacionam com suas próprias
palavras, mantendo o estilo, a tipografia e a grafia antigas. Uma pretensão de autenticidade que,
na realidade, é completamente fictícia, uma construção do texto e da história, como é o caso da
imagem do demoníaco e principalmente do histérico no contexto psiquiátrico [G. Didi-
Huberman, Invention de l’hystérie. Charcot et l’Iconographie photographie de la Salpêtrière,
Paris, 1982]. Se a maior parte do texto é retirada da obra de Boguet, os dois autores do século
XIX tomam de empréstimo, em parte, a voz desse demonologista, que, dentro do texto de
Boguet, cita o próprio Boguet. O objetivo desse trabalho recomposto, portanto, não é
simplesmente recolher imagens e posturas de endemoninhados histéricos de um tempo distante.
Ao contrário da Autobiografia da Irmã Joana dos Anjos, apenas uma breve nota contém
conteúdo médico do século 19 com referência à histeria. Há uma relação tendenciosa com os
textos demonológicos, um vai-e-vem que resulta em uma reescrita da história demonológica, o
que Bourneville usa em benefício da medicina de seu tempo. Esse primeiro trabalho da
Biblioteca Diabólica estabelece, assim, um vínculo de hereditariedade, uma continuidade
histórica da histeria, mas também um vínculo de paternidade, uma relação epistemológica
anacrônica, até mesmo falaciosa, entre dois Charcots [homônimos]: um Charcot do
Renascimento que caça gatos malvados por meio de rituais religiosos, e um outro Charcot que
caça os desejos, ansiedades e outros afetos de mulheres histéricas por meio de gestos de hipnose
e sugestão. Henry Boguet, famoso magistrado e demonologista da Borgonha, retorna a ao caso
desse Charcot [da época do Renascimento] em várias ocasiões em seu Discurso Execrável dos
Feiticeiros (1602):

O mesmo aconteceu há cerca de quarenta anos, quando os bernenses governavam


a região de Gex na pessoa de um Charcot, um homem da mesma terra, e que era
da religião supostamente reformada: Ele foi assaltado à noite no bosque de Rat
por uma multidão de gatos, contra os quais ele se defendeu usando a espada que
ele carregava: Mas, como ele reconheceu que sua espada não o estava
beneficiando, ele fez o sinal da cruz, e então todos os gatos desapareceram.
[Henry Boguet, Discours exécrable des sorciers, Rouen, 1606, p. 354]

A feliz coincidência de nomes, a que Bourneville e Teinturier se referem em nota de


rodapé, torna-se, ela própria, objeto de invenção histórica. Na verdade, outros médicos usam essa
anedota, para torná-la o elo de uma verdadeira paternidade, entre os processos religiosos do
passado e os novos métodos terapêuticos em neurologia. Nessa construção histórica e textual, há
uma questão da filiação, da herança patológica da histeria, permanente na história, e da
paternidade científica do progresso médico. Uma relação também entre antigas tradições, cultura
erudita e científica e cultura popular, que se encontra nessa antiga figura do gato diabólico, que
acompanha as bruxas e que foi queimado com elas, para se tornar, no final do século XIX, um
corpo convulsionado e contorcido, exibido por neurologistas e no cabaré Le Chat Noir. [ver
NOTA abaixo]

NOTA: Sobre as ligações entre o famoso cabaré parisiense Le Chat Noir e a histeria, ver os
artigos de Rae Beth Gordon, "Le Caf conc’ et l'hystérie ", Romantisme, 64, 1989, p. 53-67; e
“From Charcot to Charlot: Inconscious Imitation and Spectatorship in French Cabaret and Early
Cinema”, Critical Inquiry, 27, 3, 2001, p. 515-549. Nestes dois estudos, Gordon fala das
dançarinas desse cabaré em termos de modelo para histéricas, imitando seus tiques, suas
caretas e seus movimentos convulsivos por uma dança em “ziguezague”, e que, assim,
redirecionam a histeria, se apropriando dela e fazendo dela um novo objeto de espetáculo.
Para uma história do Chat Noir, consulte Caroline Crépiat, “O sujeito lírico na poesia do Chat
Noir (1882-1897)”, tese de doutorado em literatura francesa, Blaise Pascal University,
Clermont-Ferrand, 2016.

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