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Serge Margel
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§2 - Para Wier, a assimilação da bruxa à figura do herege é uma construção
teológico-política que põe em evidência o funcionamento da Igreja, as forças e as
fraquezas do poder e, sobretudo, as crises internas da Inquisição. Essa assimilação
consiste principalmente em inscrever no campo jurídico e penal a velha ideia de
pacto com o demônio, desenvolvida de Santo Agostinho a Santo Tomás. No
entanto, encontramos esse pacto concluído entre o demônio e a bruxa, sobretudo,
no famoso Malleus maleficarum, de 1486, escrito pelo inquisidor Henry Institoris e
Jacques Sprenger, a pedido expresso do Papa Inocêncio VIII. Concebido como um
manual inquisitorial para uso pelos magistrados da Igreja, o Malleus afirma, de
fato, o valor jurídico do pacto. Acima de tudo, ele justifica a punição que se segue
à denúncia do poder da bruxa sobre os demônios, que a bruxa exerce ao levar os
demônios a cometerem maldades.
Através da leitura e de longas citações do Malleus, Wier escreve uma
crítica feroz aos alegados crimes de bruxaria e outros pactos malignos, dos quais as
bruxas são acusadas. Ao referir-se ao direito romano, e reivindicando a influência
do jurista Alciato, Wier quer demonstrar que o pacto com o diabo é uma fraude
jurídica, um ato inválido que não tem nenhuma razão para ser punido como crime.
Ele lembra e especifica que, de acordo com o direito romano, dois aspectos do
pacto diabólico são próprios a um contrato inválido: um diz respeito ao contrato
em que apenas uma das partes pode se beneficiar dele - no pacto diabólico apenas
o demônio é o beneficiário -, e o outro aspecto diz respeito a contratos em que uma
das duas partes não teria pleno conhecimento das estipulações do contrato - no
pacto diabólico, a bruxa ignora todas as intenções maliciosas dos demônios.
No entanto, o Malleus não é um texto simples, nem é fácil de ler, e Wier o
conhece bem. No Capítulo V, Parte II, Questão II, o Malleus apresenta um
argumento surpreendente, que Wier assumirá e apresentará à sua própria maneira.
Esse argumento visa a demonstrar que o demônio só pode agir sobre sua vítima -
aqui a bruxa - para possuí-la por um pacto ou por violência, se esta vítima for
predisposta à demência:
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§3 - O argumento do Malleus tem dois gumes. Por um lado, pretende
legitimar a doutrina demonológica da Igreja, para tornar legítimo o ritual exorcista,
ao mesmo tempo que erige o poder do demónio sobre uma predisposição
patológica das vítimas, o que em nada diminuiria a responsabilidade dela pelos
seus atos. Mas, por outro lado, esse argumento abre o campo para algum ceticismo
crítico sobre o poder dos demônios e os efeitos que eles produzem nas mentes das
vítimas. Nesse sentido, podemos dizer que a principal aposta do De praestigiis é
atribuir essas predisposições passivas à demência, à perturbação da imaginação e à
alienatio mentis, para combater de frente os grandes projetos da Inquisição.
Wier é um daqueles médicos, céticos, estudiosos e filólogos que
investigam julgamentos de bruxaria, consultam conventos de histéricas, recolhem
testemunhos, talvez até visitem prisões e que, acima de tudo, escrevem relatos
sobre pacientes afetados de várias doenças. Wier adquire um conhecimento dos
demônios que não é mais extraído apenas de fontes livrescas, mas que também
vem das próprias palavras daqueles que testemunham sobre isso, das revelações de
pessoas doentes e mesmo das confissões religiosas ou confissões judiciais dos
acusados.
No entanto, o Malleus apresenta dois argumentos concordantes, que Wier
irá desmontar e desconstruir. Ao contrário das heresias cátaras do século 12, a
“Heresia das Bruxas” inscreve o pacto diabólico em um ato sexual, estabelecendo
assim a diferença de gênero no cerne do processo judicial. Essa é a explicação da
famosa passagem de Isaías 28:15, sobre “a aliança com a morte” pelo ato sexual
com o diabo, os demônios que são chamados de íncubos ou súcubos. A questão é
delicada. Ela não só inscreve no corpo da mulher um vínculo irremissível de
impureza entre o sexo e a morte, segundo a velha ideia do pecado original, que faz
da mulher “a porta” pela qual o demônio entra no mundo, mas, além disso, essa
questão envolve toda uma economia sémen na procriação, com seus fracassos,
desvios e perversões.
Segundo os Malleus, os demônios não são capazes de gerar, como só Deus
pode ou permite, mas eles podem mover corpos, transportar substâncias, modificá-
los e até alterá-los a ponto de destruí-los. O Malleus é muito específico sobre isso.
Ele denuncia e descreve o duplo desvio de sémen operado por bruxas sob a
influência do demônio: de um lado, práticas não naturais, como venenos que
causam esterilidade, vários tipos de contracepção, o nó da agulha, a sodomia e a
castração; de outro, as práticas de simulação artificial, que manipulam a
transmissão de sementes, que as desviam, trocam e, às vezes, até constroem o
simulacro de um útero extracorpóreo, ou barriga de caldeirão.
§3 - Como ele escreve no Prefácio, Wier quer examinar os discursos
teológicos, políticos e jurídicos que incidem sobre a mulher, e observar essas
práticas, sejam elas médicas, exorcistas ou mágicas. O De praestigiis não é um
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livro sobre a mulher nem um tratado sobre as bruxas, mas um longo
desenvolvimento sobre o jugo dos saberes que invadem os corpos e feminiliza o
mal, através de um léxico errôneo e toda uma retórica abusiva, onde esses saberes
acabam por se mostrar imposturas, fraudes e enganos. Como uma maré violenta, o
diabo e seus demônios estão se esparramando pelo Ocidente europeu e cristão. Mas
o poder do demônio está, para Wier, antes de mais nada, nesses discursos e práticas
que sua coorte de demônios exerce sobre o corpo da mulher para transformá-la em
feiticeira.
Notemos a esse respeito e entre parênteses que, em um apêndice à quinta
edição do De praestigiis, em 1577, Wier publicou um catálogo de 69 demônios, o
Pseudomonarchia daemonum, seguido de um manual prático ou modus operandi
[Johan Weyer, Pseudomonarchia daemonum, in De paestigiis daemonum, Bâle,
chez Johannes Oporinus, 1577, p. 910-934]. Desses 69 demônios, todos chamados
por seus nomes próprios, surgem 139 propriedades ou funções específicas. Apenas
quatro demônios causam morte e dois causam doenças. O que caracteriza
predominantemente o poder dos demônios é o desejo e a busca pelo conhecimento,
a libido sciendi. Na verdade, o conhecimento do passado, do presente e do futuro,
mas também das coisas ocultas e do maravilhoso, representa 47% das funções e a
habilidade exímia 28%. Para Wier, os demônios personificam a hipérbole da busca
e do amor pelo conhecimento, seus pontos fortes e limitações.
Wier busca entender como a feminização do malefício surgiu, tendo sido
montada de peça em peça como uma catedral. Ele quer derrubar seus alicerces,
abalar os edifícios instituídos e autorizados por meio desse jogo intrincado de um
olhar médico sobre as mulheres e uma leitura implacável do texto bíblico. Seu
primeiro movimento crítico é jogar o Malleus contra o Malleus. Wier confronta
seus postulados sobre a perversão sexual das bruxas com a argumentação médica
sobre as predisposições passivas à loucura. As assim chamadas bruxas, que são
acusadas de crimes e comportamento diabólico ou desviante, não cometeram
nenhum mal a outras pessoas ou a si mesmas, mas são mulheres simples, comuns,
pobres, muitas vezes destituídas, vivendo na miséria, que frequentam ladrões que
se esfregam com vermes, e cuja mente está perturbada, inclinada à loucura e à
alienação e, portanto, à melancolia. Wier fala sobre fraqueza mental, higiene
corporal e condições sociais, mas não há nada de glorioso em suas propostas sobre
as mulheres. Embora até defenda as mulheres, Wier não as elogia nem desenvolve
uma crítica à misoginia tradicional.
O argumento médico do Malleus de alguma forma superdetermina as
posições de Wier sobre a magia e o poder demoníaco. As predisposições
patológicas das bruxas não apenas as aliviarão de qualquer culpa, mas também
deslocarão o peso de toda a culpabilidade para os próprios demônios,
inevitavelmente dando-lhes um poder suplementar. As bruxas são
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instrumentalizadas pelo diabo. No Malleus, a vontade das mulheres é forte, decorre
de um livre arbítrio poderoso, um verdadeiro poder de discernimento e de uma
razão deliberativa forte, daí a culpa e a condenação delas sem apelo. Em contraste,
no De praestigiis, a vontade das mulheres é fraca e suas mentes são
frequentemente alteradas ou alienadas. As mulheres são por natureza moles, disse
Hipócrates, passivas e afetivas e, nesse sentido, precisamente, predispostas à
demência ou à melancolia. É uma misoginia contra outra, pode-se dizer, que salva
a mulher das chamas da fogueira para melhor entregá-las às mãos do médico e ao
confinamento dos loucos. Wier atua em ambas as frentes. Por um lado, distingue a
mulher da bruxa para pôr seu corpo como objeto da observação médica. Por outro
lado, abole todas as formas contratuais entre a mulher e o demônio e responsabiliza
o demônio como o único responsável pelo crime. Em outras palavras, segundo
Wier, não são os feitiços que devem ser feminizados - e nesse sentido, o Malleus se
enganou, e com ele toda a tradição greco-romana e judaico-cristã -, mas sim a
disposição afetiva da mente, que permite ao demônio exercer mais facilmente
sobre as mulheres seu poder e seu poder de enganar.
§4º - Wier não pretende refutar a existência de alguma relação ou de algum
arranjo (foedus) que a feiticeira tenha com o demônio. Por outro lado, ele quer
mostrar que essa relação não faz parte de um contrato jurídico, ao qual a bruxa
teria consentido deliberadamente e que a torna responsável por seus atos. Há aqui
algo como um engodo do diabo que manipula a imaginação da bruxa e que o torna
o único culpado dos crimes. Para demonstrar essa hipótese, Wier mudará o
postulado jurídico de um pactum diaboli para a argumentação médica de um
balneum diaboli, um banho do demônio que ocorre no corpo da mulher e seus
humores melancólicos. Ele retoma o velho tópos hipocrático e aristotélico, que
perpassa a história, e segundo o qual a mulher é de uma espécie mais frágil, sofre
mais do que o homem com excesso de afetos e não tem meios para lutar contra
crenças vãs ou superstições. Ele divide seu argumento em dois pontos: um sobre o
corpo da mulher, no capítulo 23, livro II; e o outro sobre seu espírito, no capítulo
24 do mesmo livro. Wier cita médicos, filósofos, teólogos e juristas para
demonstrar a “moleza” do corpo feminino: “Mulier a mollice, id est fragilitate (a
mulher vem da moleza, quer dizer da fragilidade)”, afirmam em concerto os
doutores (como Hipócrates) ou os padres da Igreja, como Agostinho, ou Lactâncio,
que escreve: “A palavra mulher (mulier) vem de “moleza”, uma letra tendo sido
trocada e cortada, como se houvesse mollier”. Passando quase despercebida, essa
modificação lexical confirma a relação natural entre mulher e moleza, mollitia, de
mollis, macio, flácido, macio e mollia, úmido, úmido. Este termo também designa
aquilo que não tem resistência, covarde, fraco, e vem da raiz * moldwis, que se
encontra no grego hamaldúno, eu enfraqueci, eu amoleci. Essa fraqueza da carne
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torna a mente da mulher instável, sujeitando-a a distúrbios emocionais e
predispondo-a à melancolia.
A maciez da carne é uma disposição do corpo que impede a mente de
resistir às paixões e controlar suas afeições. A maciez enfraquece o rigor do
sistema perceptivo e, portanto, perturba o equilíbrio entre os sentidos, a
imaginação e a razão. Verdade seja dita, o problema é com a faculdade da
imaginação. Por um lado, a imaginação tem um poder de ação direta sobre o corpo,
na percepção da aparência, na ilusão ou na alucinação, e por outro, é ela que
primeiro é afetada pelo excesso descontrolado dos afetos. Desde o Cânon de
Avicena, a imaginação tem sido palco de transtornos mentais e da alienatio mentis,
como escrevem os doutores Arnauld de Villeneuve e Bernard de Gordon (médicos
famosos do século XIII da escola de Montpellier). Wier cita esses médicos para
pensar na causa da melancolia, principalmente nas mulheres. A questão toda é
saber de onde vem essa melancolia:
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conjunção com o cérebro? De modo que, se ela imaginar uma romã, a
criança logo terá as marcas dela. [Wier, Cinq livres de l’imposture, II, chap. 25,
op. cit., p. 264]
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O discurso dessa cura será parcialmente preservativo [prophulaktikón], o
que é uma forma de medicina muito desejável e que é melhor do que todos
os amuletos e todas as ilusões de encantamentos. A outra parte desse
mesmo discurso será metódica [methodikón]: por meio dela aqueles que
acreditamos estar enfeitiçados serão legitimamente e, como lhes é
pertinente, restaurados à sua primeira saúde. Essa cura não será de forma
alguma comum, mas extraída da fonte das letras santas: e não da mágica
nem da supersticição, como muitos desejam e vieram praticando. [ Wier,
Cinq livres de l’imposture, IV, chap. 1, op. cit., p. 465]