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JEAN WIER E OS DEMÔNIOS DO SABER

Serge Margel

§1 – Incluído rapidamente no Índice de Livros Proibidos pela Igreja


Católica, De praestigiis daemonum [Sobre as artimanhas dos demônios], de Jean
Wier, foi publicado em latim em 1563 e traduzido para o francês alguns anos mais
tarde com o título Cinco Livros da Impostura e do Engano pelos Demônios.
Republicada várias vezes durante a vida do autor, esta obra é um momento de
ruptura na história do pensamento europeu. Por um lado, o De praestigiis é um dos
primeiros textos que acusam abertamente as grandes fogueiras da caça às bruxas,
opondo-se assim às autoridades da Igreja e ao poder hegemônico da Inquisição,
que não cessava suas medidas repressivas. Por outro lado, ele é considerado o
primeiro tratado de psiquiatria, que visa medicalizar as bruxas. Seu objetivo é
mostrar que as bruxas não fizeram nenhum pacto com o demônio, que as manipula
por encantamento ou por alienatio demoniaca, mas que estão predispostas à
demência e perturbadas em seu comportamento por causas psíquicas internas, ou
por uma espécie de alienatio mentis, que terá que ser examinada, diagnosticada e
depois tratada. O De praestigiis daemonum é um grande livro sobre os poderes da
ilusão e suas categorias, sensível (delusio), imaginário (illusio) e demoníaco
(praestigium). Ele busca mostrar como o cristianismo foi pego em seu jogo e errou,
acreditando que condena a bruxa. Também, desde as primeiras linhas do livro, Jean
Wier formula seu desejo por uma outra história do cristianismo, uma história que
deve retornar às fontes da ilusão, conciliando uma reflexão sobre a demência ou a
loucura e a consideração da diferença entre os sexos. Ele então apresenta uma
hipótese forte, que vale como uma distinção fundamental. A bruxa deve ser
retirada do clã dos mágicos e envenenadores. Essa distinção é baseada em um certo
pensamento sobre o demônio, sua realidade, suas propriedades, seus poderes e,
especialmente, seu poder de iludir. Afirmar a existência do demônio ajuda a
entender no que consiste a ilusão, definir suas causas e descrever seus efeitos. Wier
retoma a antiga tradição greco-romana do demônio como uma força emocional.
Demônios são forças vivas, positivas ou negativas, benéficas ou maléficas, que
afetam o corpo por completo, que exercem uma influência sobre a mente, que
perturbam a imaginação e a submetem a várias turbulências e transgressões. Essas
forças afetivas geram sobretudo ilusões, que confundem e deslocam as fronteiras
entre o natural e o sobrenatural. De acordo com Wier, o engodo demoníaco opera
em uma dupla frente, de modo que a ilusão demoníaca se distingue da ilusão
sensível. Por um lado, o demônio transforma as imagens mentais, produzindo
representações de coisas que não existem. Mas, por outro lado, o demônio
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sempresconde e dissimula seus desejos, suas intenções, suas ações. Em suma, o
demônio é um prestigiador, um impostor, no sentido de que produz ilusões sui
generis, que poderíamos chamar de ilusões simuladas ou ilusões artificiais. O
demônio não apenas cria ilusões, mas ele se dissimula por meio delas,
secretamente se escondendo nelas, de modo a produzir na mente uma crença, uma
convicção ou um consentimento voluntário para as imagens mentais que a ocupam
e que a agitam, influenciando o pensamento e perturbando o comportamento.
O poder do demônio atua, portanto, de maneiras diferentes, mas sempre segundo as
predisposições afetivas de um ser vivo dotado de razão, de um sujeito moral que
sente e pensa, que deseja e que toma decisões. O De praestigiis daemonum é
concebido e composto desta forma, em cinco livros. O primeiro trata do poder do
diabo, da origem do mal e do pecado de Adão e Eva. O segundo distingue bruxas
de mágicos e envenenadores. O terceiro trata das possessões demoníacas das
bruxas. O quarto livro estuda maneiras de curar aquelas ou aqueles que foram
enfeitiçados. E o quinto é dedicado às punições a serem infligidas a mágicos e
envenenadores.
A questão médica, portanto, desempenha um papel decisivo neste trabalho
de Wier, ele próprio era médico, e foi traduzido para o francês também por um
médico. Assim, Wier permite não só reapresentar e reconsiderar a história
teológico-filosófica das possessões demoníacas no campo das patologias físicas e
mentais, mas também confrontar, com essa finalidade, os discursos eclesiásticos e
universitários dominantes, sejam católicos sejam reformados, com outras áreas de
conhecimento. Antes de mais nada, a própria medicina e os seus tratados
farmacológicos, com Hipócrates, Dioscórides, Galeno, pensadores árabes-
muçulmanos, a escola de Salerno e depois a escola de Montpellier, mas também a
imensa erudição e a radicalidade do pensamento, se mostram, em Wier, na
importância da filologia.
Em 1535, Wier foi para Paris e começou sua formação como médico, o
que continuou em Orleans a partir de 1537. Não sabemos de fonte confiável se ele
obteve seu doutorado em medicina, mas certamente a praticou desde seu retorno da
França para a região de Grave; e depois de 1545, na cidade de Arnheim, a serviço
do Imperador Carlos V. É, aliás, nesse contexto de uma prática médica, que ele foi
confrontado pela primeira vez com julgamentos de feitiçaria e com casos de fraude
por mágicos. Encontramos “de sua mão” um relatório médico, datado de 1548,
sobre um suposto feiticeiro e adivinho, Jacobus Jococi de Rosa de Courtrai. E, em
maio de 1565, ele mesmo chefiou uma comissão de inquérito médico-legal no
mosteiro Cellitian em Colônia, supostamente dedicada aos cuidados de
enfermagem, para estudar casos de insanidade em várias freiras. É, portanto, nesse
contexto médico que ele desenvolveu seu De praestigiis daemonum.

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§2 - Para Wier, a assimilação da bruxa à figura do herege é uma construção
teológico-política que põe em evidência o funcionamento da Igreja, as forças e as
fraquezas do poder e, sobretudo, as crises internas da Inquisição. Essa assimilação
consiste principalmente em inscrever no campo jurídico e penal a velha ideia de
pacto com o demônio, desenvolvida de Santo Agostinho a Santo Tomás. No
entanto, encontramos esse pacto concluído entre o demônio e a bruxa, sobretudo,
no famoso Malleus maleficarum, de 1486, escrito pelo inquisidor Henry Institoris e
Jacques Sprenger, a pedido expresso do Papa Inocêncio VIII. Concebido como um
manual inquisitorial para uso pelos magistrados da Igreja, o Malleus afirma, de
fato, o valor jurídico do pacto. Acima de tudo, ele justifica a punição que se segue
à denúncia do poder da bruxa sobre os demônios, que a bruxa exerce ao levar os
demônios a cometerem maldades.
Através da leitura e de longas citações do Malleus, Wier escreve uma
crítica feroz aos alegados crimes de bruxaria e outros pactos malignos, dos quais as
bruxas são acusadas. Ao referir-se ao direito romano, e reivindicando a influência
do jurista Alciato, Wier quer demonstrar que o pacto com o diabo é uma fraude
jurídica, um ato inválido que não tem nenhuma razão para ser punido como crime.
Ele lembra e especifica que, de acordo com o direito romano, dois aspectos do
pacto diabólico são próprios a um contrato inválido: um diz respeito ao contrato
em que apenas uma das partes pode se beneficiar dele - no pacto diabólico apenas
o demônio é o beneficiário -, e o outro aspecto diz respeito a contratos em que uma
das duas partes não teria pleno conhecimento das estipulações do contrato - no
pacto diabólico, a bruxa ignora todas as intenções maliciosas dos demônios.
No entanto, o Malleus não é um texto simples, nem é fácil de ler, e Wier o
conhece bem. No Capítulo V, Parte II, Questão II, o Malleus apresenta um
argumento surpreendente, que Wier assumirá e apresentará à sua própria maneira.
Esse argumento visa a demonstrar que o demônio só pode agir sobre sua vítima -
aqui a bruxa - para possuí-la por um pacto ou por violência, se esta vítima for
predisposta à demência:

Os demônios não podem transformar a matéria corporal como desejem,


mas apenas pela conjunção desejada dos princípios ativos e passivos. Mas,
da mesma forma, uma coisa sensível pode criar no corpo humano uma
disposição que o torna mais apto a receber a ação do demônio. Por
exemplo: segundo os médicos, a mania é a maior inclinação para a
demência e, portanto, também para a possessão demoníaca. Portanto, se em
tal caso alguém conseguisse eliminar a predisposição passiva, também
ocorreria a cura da aflição ativa pelo diabo. (Le marteau des sorcières, IIe, IIe, chap. V, p.
373)

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§3 - O argumento do Malleus tem dois gumes. Por um lado, pretende
legitimar a doutrina demonológica da Igreja, para tornar legítimo o ritual exorcista,
ao mesmo tempo que erige o poder do demónio sobre uma predisposição
patológica das vítimas, o que em nada diminuiria a responsabilidade dela pelos
seus atos. Mas, por outro lado, esse argumento abre o campo para algum ceticismo
crítico sobre o poder dos demônios e os efeitos que eles produzem nas mentes das
vítimas. Nesse sentido, podemos dizer que a principal aposta do De praestigiis é
atribuir essas predisposições passivas à demência, à perturbação da imaginação e à
alienatio mentis, para combater de frente os grandes projetos da Inquisição.
Wier é um daqueles médicos, céticos, estudiosos e filólogos que
investigam julgamentos de bruxaria, consultam conventos de histéricas, recolhem
testemunhos, talvez até visitem prisões e que, acima de tudo, escrevem relatos
sobre pacientes afetados de várias doenças. Wier adquire um conhecimento dos
demônios que não é mais extraído apenas de fontes livrescas, mas que também
vem das próprias palavras daqueles que testemunham sobre isso, das revelações de
pessoas doentes e mesmo das confissões religiosas ou confissões judiciais dos
acusados.
No entanto, o Malleus apresenta dois argumentos concordantes, que Wier
irá desmontar e desconstruir. Ao contrário das heresias cátaras do século 12, a
“Heresia das Bruxas” inscreve o pacto diabólico em um ato sexual, estabelecendo
assim a diferença de gênero no cerne do processo judicial. Essa é a explicação da
famosa passagem de Isaías 28:15, sobre “a aliança com a morte” pelo ato sexual
com o diabo, os demônios que são chamados de íncubos ou súcubos. A questão é
delicada. Ela não só inscreve no corpo da mulher um vínculo irremissível de
impureza entre o sexo e a morte, segundo a velha ideia do pecado original, que faz
da mulher “a porta” pela qual o demônio entra no mundo, mas, além disso, essa
questão envolve toda uma economia sémen na procriação, com seus fracassos,
desvios e perversões.
Segundo os Malleus, os demônios não são capazes de gerar, como só Deus
pode ou permite, mas eles podem mover corpos, transportar substâncias, modificá-
los e até alterá-los a ponto de destruí-los. O Malleus é muito específico sobre isso.
Ele denuncia e descreve o duplo desvio de sémen operado por bruxas sob a
influência do demônio: de um lado, práticas não naturais, como venenos que
causam esterilidade, vários tipos de contracepção, o nó da agulha, a sodomia e a
castração; de outro, as práticas de simulação artificial, que manipulam a
transmissão de sementes, que as desviam, trocam e, às vezes, até constroem o
simulacro de um útero extracorpóreo, ou barriga de caldeirão.
§3 - Como ele escreve no Prefácio, Wier quer examinar os discursos
teológicos, políticos e jurídicos que incidem sobre a mulher, e observar essas
práticas, sejam elas médicas, exorcistas ou mágicas. O De praestigiis não é um
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livro sobre a mulher nem um tratado sobre as bruxas, mas um longo
desenvolvimento sobre o jugo dos saberes que invadem os corpos e feminiliza o
mal, através de um léxico errôneo e toda uma retórica abusiva, onde esses saberes
acabam por se mostrar imposturas, fraudes e enganos. Como uma maré violenta, o
diabo e seus demônios estão se esparramando pelo Ocidente europeu e cristão. Mas
o poder do demônio está, para Wier, antes de mais nada, nesses discursos e práticas
que sua coorte de demônios exerce sobre o corpo da mulher para transformá-la em
feiticeira.
Notemos a esse respeito e entre parênteses que, em um apêndice à quinta
edição do De praestigiis, em 1577, Wier publicou um catálogo de 69 demônios, o
Pseudomonarchia daemonum, seguido de um manual prático ou modus operandi
[Johan Weyer, Pseudomonarchia daemonum, in De paestigiis daemonum, Bâle,
chez Johannes Oporinus, 1577, p. 910-934]. Desses 69 demônios, todos chamados
por seus nomes próprios, surgem 139 propriedades ou funções específicas. Apenas
quatro demônios causam morte e dois causam doenças. O que caracteriza
predominantemente o poder dos demônios é o desejo e a busca pelo conhecimento,
a libido sciendi. Na verdade, o conhecimento do passado, do presente e do futuro,
mas também das coisas ocultas e do maravilhoso, representa 47% das funções e a
habilidade exímia 28%. Para Wier, os demônios personificam a hipérbole da busca
e do amor pelo conhecimento, seus pontos fortes e limitações.
Wier busca entender como a feminização do malefício surgiu, tendo sido
montada de peça em peça como uma catedral. Ele quer derrubar seus alicerces,
abalar os edifícios instituídos e autorizados por meio desse jogo intrincado de um
olhar médico sobre as mulheres e uma leitura implacável do texto bíblico. Seu
primeiro movimento crítico é jogar o Malleus contra o Malleus. Wier confronta
seus postulados sobre a perversão sexual das bruxas com a argumentação médica
sobre as predisposições passivas à loucura. As assim chamadas bruxas, que são
acusadas de crimes e comportamento diabólico ou desviante, não cometeram
nenhum mal a outras pessoas ou a si mesmas, mas são mulheres simples, comuns,
pobres, muitas vezes destituídas, vivendo na miséria, que frequentam ladrões que
se esfregam com vermes, e cuja mente está perturbada, inclinada à loucura e à
alienação e, portanto, à melancolia. Wier fala sobre fraqueza mental, higiene
corporal e condições sociais, mas não há nada de glorioso em suas propostas sobre
as mulheres. Embora até defenda as mulheres, Wier não as elogia nem desenvolve
uma crítica à misoginia tradicional.
O argumento médico do Malleus de alguma forma superdetermina as
posições de Wier sobre a magia e o poder demoníaco. As predisposições
patológicas das bruxas não apenas as aliviarão de qualquer culpa, mas também
deslocarão o peso de toda a culpabilidade para os próprios demônios,
inevitavelmente dando-lhes um poder suplementar. As bruxas são
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instrumentalizadas pelo diabo. No Malleus, a vontade das mulheres é forte, decorre
de um livre arbítrio poderoso, um verdadeiro poder de discernimento e de uma
razão deliberativa forte, daí a culpa e a condenação delas sem apelo. Em contraste,
no De praestigiis, a vontade das mulheres é fraca e suas mentes são
frequentemente alteradas ou alienadas. As mulheres são por natureza moles, disse
Hipócrates, passivas e afetivas e, nesse sentido, precisamente, predispostas à
demência ou à melancolia. É uma misoginia contra outra, pode-se dizer, que salva
a mulher das chamas da fogueira para melhor entregá-las às mãos do médico e ao
confinamento dos loucos. Wier atua em ambas as frentes. Por um lado, distingue a
mulher da bruxa para pôr seu corpo como objeto da observação médica. Por outro
lado, abole todas as formas contratuais entre a mulher e o demônio e responsabiliza
o demônio como o único responsável pelo crime. Em outras palavras, segundo
Wier, não são os feitiços que devem ser feminizados - e nesse sentido, o Malleus se
enganou, e com ele toda a tradição greco-romana e judaico-cristã -, mas sim a
disposição afetiva da mente, que permite ao demônio exercer mais facilmente
sobre as mulheres seu poder e seu poder de enganar.
§4º - Wier não pretende refutar a existência de alguma relação ou de algum
arranjo (foedus) que a feiticeira tenha com o demônio. Por outro lado, ele quer
mostrar que essa relação não faz parte de um contrato jurídico, ao qual a bruxa
teria consentido deliberadamente e que a torna responsável por seus atos. Há aqui
algo como um engodo do diabo que manipula a imaginação da bruxa e que o torna
o único culpado dos crimes. Para demonstrar essa hipótese, Wier mudará o
postulado jurídico de um pactum diaboli para a argumentação médica de um
balneum diaboli, um banho do demônio que ocorre no corpo da mulher e seus
humores melancólicos. Ele retoma o velho tópos hipocrático e aristotélico, que
perpassa a história, e segundo o qual a mulher é de uma espécie mais frágil, sofre
mais do que o homem com excesso de afetos e não tem meios para lutar contra
crenças vãs ou superstições. Ele divide seu argumento em dois pontos: um sobre o
corpo da mulher, no capítulo 23, livro II; e o outro sobre seu espírito, no capítulo
24 do mesmo livro. Wier cita médicos, filósofos, teólogos e juristas para
demonstrar a “moleza” do corpo feminino: “Mulier a mollice, id est fragilitate (a
mulher vem da moleza, quer dizer da fragilidade)”, afirmam em concerto os
doutores (como Hipócrates) ou os padres da Igreja, como Agostinho, ou Lactâncio,
que escreve: “A palavra mulher (mulier) vem de “moleza”, uma letra tendo sido
trocada e cortada, como se houvesse mollier”. Passando quase despercebida, essa
modificação lexical confirma a relação natural entre mulher e moleza, mollitia, de
mollis, macio, flácido, macio e mollia, úmido, úmido. Este termo também designa
aquilo que não tem resistência, covarde, fraco, e vem da raiz * moldwis, que se
encontra no grego hamaldúno, eu enfraqueci, eu amoleci. Essa fraqueza da carne

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torna a mente da mulher instável, sujeitando-a a distúrbios emocionais e
predispondo-a à melancolia.
A maciez da carne é uma disposição do corpo que impede a mente de
resistir às paixões e controlar suas afeições. A maciez enfraquece o rigor do
sistema perceptivo e, portanto, perturba o equilíbrio entre os sentidos, a
imaginação e a razão. Verdade seja dita, o problema é com a faculdade da
imaginação. Por um lado, a imaginação tem um poder de ação direta sobre o corpo,
na percepção da aparência, na ilusão ou na alucinação, e por outro, é ela que
primeiro é afetada pelo excesso descontrolado dos afetos. Desde o Cânon de
Avicena, a imaginação tem sido palco de transtornos mentais e da alienatio mentis,
como escrevem os doutores Arnauld de Villeneuve e Bernard de Gordon (médicos
famosos do século XIII da escola de Montpellier). Wier cita esses médicos para
pensar na causa da melancolia, principalmente nas mulheres. A questão toda é
saber de onde vem essa melancolia:

Alguns médicos, escreve Avicena, acreditavam que a melancolia surge do


demônio, mas nós, uma vez que ensinamos medicina (physica), não
buscamos saber se ela surge do demônio ou não; dizemos, de que, se, de
fato, vem do demônio, então ela é feita de tal maneira que muda a
constituição geral para a da bile negra; e a causa próxima da melancolia é
então a bile negra, seja ou não a causa dessa mudança o demônio. [ Avicenne,
Canon, III, I, 4, c. 18]

A alienatio demoniaca e a alienatio mentis não são, portanto, opostas, mas


estão sob dois planos diferentes de causalidade. Wier assumirá a distinção
aviceniana, atribuindo a causa primária ao diabo e seus enganos, e a causa
secundária à imaginação corrompida. Essa imaginação não só se tornou o
instrumento das artimanhas do diabo, mas também seu poder e seus limites. O
demônio não pode produzir novas imagens mentais - só Deus pode -, mas ele tem
todo o poder para movê-las, transformá-las, falsificá-las.
O poder do demônio se exerce sobre a tendência da imaginação em ir além
da percepção sensível. O demônio é um manipulador de imagens mentais, um
produtor de ilusões, um engendrador de artifícios. Pode-se dizer que produz ilusões
artificiais, às vezes chamadas de simulacros. A impostura do diabo, portanto,
consiste em se apoderar de ilusões perceptivas, ou imagens mentais naturalmente
geradas pela imaginação e abusar delas em seu próprio proveito:

O que não impressiona a imaginação da mãe grávida na criança ainda no


ventre da mãe por ocasião de uma repentina trepidação [perfuração] dos
espíritos que são levados aos nervos, pelos quais o amarry [útero] está em

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conjunção com o cérebro? De modo que, se ela imaginar uma romã, a
criança logo terá as marcas dela. [Wier, Cinq livres de l’imposture, II, chap. 25,
op. cit., p. 264]

Wier não está apenas convencido da existência de demônios, mas ele


também acredita nas forças produtivas da imaginação e, em particular, na
imaginação depravada das mulheres melancólicas. Ele desenvolve um argumento
que, em última análise, inverte a ordem hierárquica das causalidades alienantes, de
que fala Avicena, entre o demônio e a bile negra. Essa bile melancólica predispõe à
demência, e o diabo a investe, explora ou exaspera em seu próprio proveito. Wier
quer mostrar que essas causas, embora distintas conceitualmente, não podem ser
separadas na realidade. Verdade seja dita, essas duas causas são intrinsecamente
concorrentes na imaginação. Segundo esse novo modelo de compreensão, o
demônio não opera fora da imaginação, como se viesse de fora para atuar sobre
uma perturbação interna da imaginação, ligada à bile negra ou outras turbulências.
Ao contrário, o próprio demônio organiza o concurso intrínseco de causas
heterogêneas próprias à imaginação. É ele quem estabelece o vínculo causal entre o
excesso de bile negra, ou a predisposição humoral, e a imagem mental depravada,
para que ela seja transformada ou revivida.
Agora, o que o diabo faz, teoricamente qualquer homem poderia fazer, e
muitas vezes já o faz sozinho, mas sem perceber. O homem pode facilmente, isto é,
naturalmente e sem esforço particular, produzir figuras (formas), ou imagens
mentais, e aí se estabelecer, descansar e, portanto, consentir com elas, com base
somente no poder de sua imaginação. Wier fala da experiência daqueles que se
sentem abatidos pela falta das coisas que buscam e cobiçam. Mas, ao contrário do
homem com ideias fixas, que, por si mesmo ou voluntariamente, se coloca nesse
estado de langor, o diabo pode fazer com que esse homem, apesar de si mesmo,
mergulhe em tal estado de langor por artifícios, fantasmas ou simulacros e, acima
de tudo, disse Wier, ainda mais facilmente do que ele próprio. O demônio,
portanto, nada mais faz do que tomar emprestado, sem o conhecimento da mente,
imagens mentais e afetos sensíveis já presentes e produzidos pela mente, que o
predisponham à melancolia, e que ele transforma por si mesmo.

***

Terminarei esta apresentação com uma observação sobre o quarto livro do


De praestigiis, dedicado à “medicalização” das bruxas. Desde as primeiras linhas,
Wier expõe o programa:

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O discurso dessa cura será parcialmente preservativo [prophulaktikón], o
que é uma forma de medicina muito desejável e que é melhor do que todos
os amuletos e todas as ilusões de encantamentos. A outra parte desse
mesmo discurso será metódica [methodikón]: por meio dela aqueles que
acreditamos estar enfeitiçados serão legitimamente e, como lhes é
pertinente, restaurados à sua primeira saúde. Essa cura não será de forma
alguma comum, mas extraída da fonte das letras santas: e não da mágica
nem da supersticição, como muitos desejam e vieram praticando. [ Wier,
Cinq livres de l’imposture, IV, chap. 1, op. cit., p. 465]

Wier fala em medicina preventiva, referindo-se a Dioscórides, então da


escola metodista, e seu representante Soranos, antigo e renomado ginecologista,
evocando assim um retorno à saúde através da higiene, alimentação e manutenção
do corpo. As bruxas devem ser curadas de suas predisposições emocionais
estabelecendo um programa de higiene preventiva, pode-se dizer higiene pública.
É necessário proporcionar proteção a sua imaginação depravada, e não mais se
entregar a velhos processos mágicos, amuletos, encantamentos e procedimentos
que, em última instância, apenas expulsam o diabo pelo diabo para dominar melhor
o corpo, deixando-o reinar sobre a mente.

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