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SEÇÃO DE BIOÉTICA

BIOÉTICA E PANDEMIA DE INFLUENZA

BIOETHICS AND INFLUENZA PANDEMIC

José Roberto Goldim

RESUMO

A presente pandemia de Influenza A (H1N1) tem gerado inúmeros questionamentos sobre aspectos técnicos, éticos, legais
e sociais envolvidos. Estas questões envolvem as medidas sanitárias a serem tomadas, como uso de medicamentos, recur-
sos ambulatoriais e hospitalares, suspensão de aulas, quarentenas e outras restrições. Outro ponto extremamente relevante
é o que se refere a atuação dos profissionais de saúde nesta situação de excepcionalidade. É fundamental refletir sobre
este tema com clareza e imparcialidade no sentido de tentar reduzir a ambiguidade das informações.
Unitermos: Bioética; alocação de recursos; pandemia

ABSTRACT

This influenza A (H1N1) pandemic generates many questions about technical, ethical, legal and social issues. These issues
involve health measures to be taken, such as the use of medications, outpatient and hospital resources, school closure,
quarantines and other restrictions. Another extremely important point is the healthcare workers' attitudes towards working
during pandemic influenza. It is critical to reflect on this subject with clarity and fairness trying to reduce the ambiguity of
information.
Keywords: Bioethics; resource allocation; pandemics
Rev HCPA 2009;29(2):161-166

Uma situação nova e ameaçadora, tanto referenciais teóricos: as virtudes, os princípios,


pelo aumento de demanda dos serviços de saú- os direitos e a alteridade (4).
de, pela lembrança de outras situações dramáti- A Ética das Virtudes, talvez a mais antiga
cas semelhantes, como a da Gripe Espanhola (5) e mais amplamente utilizada no passado, se
de 1918, e, principalmente, pela incerteza asso- baseava no reconhecimento de traços adequa-
ciada ao desconhecido, sempre gera ansiedade dos do caráter de uma pessoa (6). Dentre as
(1). É esperado que surjam explicações basea- virtudes que podem ser elencadas em uma situ-
das em tradições, desejos e interesses os mais ação de pandemia são destaques: a coragem, a
diversos. Uma reflexão bioética sobre esta situ- compaixão, a prudência, a justiça, a gratidão e o
ação de pandemia deve levar em conta os dife- amor (7).
rentes referencias teóricos e as múltiplas inter- Coragem, no sentido de fazer o que tem
faces entre os aspectos éticos, legais, morais, que ser feito; compaixão, como relação de ajuda
sociais, técnicos, políticos, econômicos, científi- a quem tem o seu sofrimento reconhecido pelo
cos, assistenciais e profissionais, em uma pers- outro; e prudência, como razão prática, são
pectiva baseada na complexidade (2). virtudes esperadas dos profissionais de saúde.
As decisões que devem ser tomadas neste A justiça, entendida como uma atitude não dis-
tipo de situação podem ser controversas, inclu- criminatória frente ao outro, é a virtude esperada
indo as questões de racionar ou racionalizar o dos governantes, dos gestores do sistema de
uso de medicamentos antivirais e de vacinas, do saúde, que tem que alocar recursos escassos e
acesso ao sistema de saúde e de seus recursos fazer escolhas estratégicas de enfrentamento de
físicos, do risco e desgaste imposto aos profis- uma situação tão delicada. Gratidão, como re-
sionais de saúde e suas responsabilidades, conhecimento genuíno do bem recebido, é a
além de medidas de restrição de liberdade, co- virtude que se espera da comunidade frente a
mo nas quarentenas (3). O papel da Ética e da todos os que se dedicaram na execução de
Bioética é justamente auxiliar neste tipo de situ- tarefas para atender às demandas desta situa-
ação. ção excepcional. A virtude do Amor entendida,
no significado grego de Ágape, como amor difu-
OS REFERENCIAIS TEÓRICOS so para com toda a humanidade. Esta é, possi-
velmente, a justificativa para a busca de ações
A Ética é a busca de justificativa para veri- que atinjam a toda sociedade de forma a pre-
ficar a adequação ou não das decisões toma- servar plenamente a sua dignidade (7).
das. É importante esclarecer que a Bioética O referencial dos Princípios é, possivel-
pode utilizar vários modelos para realizar esta mente, o mais utilizado na Bioética. Os princí-
reflexão, com destaque para quatro grandes pios, especialmente a partir da proposta de Be-

Laboratório de Pesquisa em Bioética e Ética na Ciência, Hospital de Clínicas de Porto Alegre,


Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Contato: José Roberto Goldim. E-mail: jrgoldim@gmail.com (Porto Alegre, RS, Brasil).
Goldim JR

auchamp e Childress, em seu livro Princípios de zação de múltiplas ações que habitualmente não
Ética Biomédica (8), passaram a ser cada vez seriam realizadas com a presteza necessária.
mais utilizados como deveres prima facie, que Por fim, a Alteridade é o referencial mais
como recomendações ou diretrizes a serem recente talvez o mais fundamental e fundante
seguidas, como eram entendidos no passado para a Bioética. A Alteridade se baseia no reco-
(9). nhecimento de que o olhar do Outro é que legi-
Deveres prima facie são obrigações que se tima a nossa própria pessoa, que nos ressignifi-
deve cumprir, a menos que entrem em conflito, ca enquanto existentes (14). A Alteridade nos
em uma situação particular, com um outro dever permite entender que esta efetiva interação nos
de igual ou maior porte (10). Desta forma, os torna pessoas co-responsáveis, estabelecendo
deveres prima facie podem, quando em conflito, uma co-presença ética, onde não há lugar para
ser ponderados ou priorizados. Na Bioética são a neutralidade (15). Este referencial ressignifica
utilizados basicamente três princípios: Benefi- o entendimento da relação profissional-paciente,
cência, Respeito às Pessoas e Justiça (11). pesquisador-participante da pesquisa, profissio-
Beauchamp e Childress desdobraram o princípio nais de saúde entre si, profissional-família, a
da Beneficência em Beneficência e Não Malefi- partir da noção de co-responsabilidade. Em uma
cência e reduziram o Respeito às Pessoas a situação de pandemia, de risco presente e com-
Autonomia (8). partilhado, a co-responsabilidade é que justifica
Em uma situação de pandemia a Benefi- ações de caráter preventivo, de impedimento de
cência, entendida como o dever prima facie de propagação da doença. Especialmente em uma
fazer o bem e evitar o mal, é primordial para os situação de pandemia, todos são co-
profissionais de saúde. A justiça, como dever de responsáveis, sejam profissionais de saúde,
distribuir adequadamente, de forma não- jornalistas, governantes, professores, ou seja,
discriminatória, os bens entre os membros da cidadãos. Neste tipo de situação não há possibi-
sociedade, assim como de reconhecer e prote- lidade de se manter neutro, todos estão engaja-
ger adicionalmente os grupos ou pessoas vulne- dos em um mesmo esforço solidário, não por
ráveis, é fundamental para os gestores no de- dever, mas por reconhecer que é este conjunto
sempenho de suas tarefas. O Respeito às Pes- de ações que nos torna humanos.
soas, englobando o dever de veracidade, de
reconhecimento da voluntariedade, da auto- AS INFORMAÇÕES SOBRE A PANDEMIA
determinação e da confidencialidade, é dever de
todos. A vivência de uma situação grave como a
O referencial dos Direitos Humanos esta- de uma pandemia é sempre geradora de medos
belece garantias individuais, coletivas e trans- e ansiedades. A melhor maneira de entender e
pessoais, sendo utilizado na Constituição brasi- enfrentar este tipo de situação é através do es-
leira de 1988 (12) e em vários documentos in- clarecimento, da divulgação de informações
ternacionais, como na Declaração Universal de claras, verídicas e acessíveis. A população não
Bioética e Direitos Humanos (13). busca informações literais, detalhadas e tecni-
Os direitos individuais incluem a vida, a pri- camente complexas, quer isto sim, aquelas in-
vacidade, a liberdade e a não-discriminação, formações essenciais ao entendimento da situa-
entre outros. Todos estes direitos devem ser ção vigente e futura (16).
preservados, contudo em situações excepcio- Muitas vezes a divulgação das informações
nais como de uma pandemia, podem ser suplan- da pandemia tem sido feita de forma ambígua. A
tados pelos direitos coletivos, como a saúde, a ambiguidade é dependente da quantidade, do
educação e a assistência social, que são garan- tipo e da unanimidade das informações (17). As
tias de todos. Para garantir a saúde de uma informações no início da pandemia foram pou-
população em risco, entendida como um bem cas, aumentaram até um limite de quase satura-
maior, algumas pessoas podem ser mantidas ção de detalhes. O tipo de informação era técni-
em regime de quarentena, que estabelece uma co e não havia unanimidade entre as diferentes
clara restrição à sua liberdade. A comunicação fontes citadas. Havendo ambiguidade pode ha-
compulsória das informações de pacientes aco- ver uma sub-estimativa ou super-estimativa do
metidos pela doença não deve ser entendida risco. Esta situação de falta de um claro padrão
como sendo uma quebra de privacidade, pois de risco foi compartilhada por toda a sociedade,
estes dados que são comunicados a uma auto- incluindo profissionais de saúde e gestores (18).
ridade sanitária para fins de controle epidemio- Outra questão importante a ser levantada é
lógico devem permanecer protegidos. Isto é que a noção de risco, de probabilidade objetiva,
fundamental para preservar a adequada relação é sempre referenciada a um grupo de indivíduos
médico-paciente, que se baseia nesta relação e não a uma pessoa especificamente. Para a
entre o dever de confidencialidade, por parte do pessoa a relação é sempre de incerteza (19). O
médico, e o direito de privacidade do paciente. risco gera medo frente ao dano possível, en-
Dos direitos transpessoais o destaque é para a quanto que a incerteza gera ansiedade pela
solidariedade, que é a justificativa para a reali- própria possibilidade do dano. Na situação de

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Bioética e pandemia de influenza

pandemia os gestores tomam decisões basea- tas mesmas categorias foram as que mais acha-
das em riscos, mas a população fica ansiosa ram injustificável abandonar o trabalho por este
pela incerteza associada às suas vidas diárias. motivo (21).
A base de uma reflexão eticamente ade- Os profissionais de saúde, que atuam na
quada sobre este tipo de situação que estamos linha de frente, assim como todos os demais
vivendo é o Princípio da Precaução. Este Princí- profissionais, devem ter a possibilidade de cui-
pio, proposto por Hans Jonas (19), estabelece dar de seus familiares em caso de necessidade
que a existência de risco de um dano sério ou imperiosa (23). Dentre estas possibilidades,
irreversível requer a implementação de medidas além dos cuidados de saúde, podem ser incluí-
que possam prevenir a ocorrência do mesmo. das a ausência de rede de apoio social para
atender aos filhos no caso de não ter atendi-
A ATUAÇÃO DOS PROFISSIONAIS mento de creches ou escolas, quando as ativi-
DE SAÚDE dades destas instituições estiverem suspensas
por motivo da pandemia. As instituições devem
A definição de papéis e deveres dos profis- avaliar as possibilidades de utilização de folgas,
sionais de saúde durante a Pandemia de Influ- licenças ou banco de horas nestas situações. As
enza inicia pela própria definição de profissional penalidades pelo não comparecimento ao traba-
de saúde. Habitualmente são lembrados os lho devem ser estabelecidas e comunicadas de
médicos e os enfermeiros, contudo, nos dias forma antecipada (24).
atuais, inúmeros outros profissionais de nível Não deve ser confundida vontade de traba-
superior, técnico e operacional podem ser en- lhar com obrigatoriedade. A obrigatoriedade em
quadrados como tal. Em suma, devem ser inclu- atender é uma justificativa mais facilmente en-
ídos nesta categorização todos os profissionais tendida pelas famílias dos profissionais que a
que atendem pacientes ou usuários do sistema vontade de atender (24). Muitas vezes a vonta-
de saúde (20). de de atender é barrada por critérios de qualifi-
Os deveres dos profissionais de saúde de- cação e de capacitação.
vem ser abertamente discutidos e entendidos É fundamental estabelecer estratégias de
como sendo deveres prima facie, ou seja, deve- treinamento para os profissionais de saúde que
res que podem ser priorizados de acordo com ainda não estejam capacitados para atenderem
as circunstâncias vigentes (10). Isto implica que a demanda decorrente da pandemia. Disponibi-
estes deveres sejam avaliados de acordo com lizar protocolos claros e transparentes de rastre-
os critérios da necessidade e da proporcionali- amento e tratamento, garantir que estas diretri-
dade. Assim, por exemplo, os deveres dos pro- zes e protocolos sejam adequadamente segui-
fissionais de saúde para com a sociedade de- dos, garantir meios de atualização e incorpora-
vem ser balanceados com os deveres para com ção de novas sugestões a estes protocolos e
as suas famílias, especialmente no caso de garantir que os profissionais que atendem paci-
trabalho em plantões continuados e no risco de entes possam influenciar na elaboração dos
transmissão da doença. mesmos são características que incrementarão
Um estudo entre 644 profissionais que atu- as possibilidades de sucesso do enfrentamento
am em um hospital universitário apontou que da pandemia (25). Neste conjunto de estratégias
28% dos participantes reconheceram como justi- é fundamental planejar ações educativas para
ficável abandonar o trabalho para se proteger ou outros profissionais que lidam com público, tais
proteger a sua família, e outros 20% não tinham como os que atuam nas áreas de educação,
opinião formada (21). Os restantes 52% dos transportes, segurança, comércio e serviços.
profissionais acharam esta possibilidade injusti- Outros fatores também podem afetar a
ficável, sendo que houve uma diferença entre os vontade de trabalhar durante uma pandemia,
percentuais dos médicos (65%) e enfermeiros tais como a priorização do atendimento aos
(54%) frente aos profissionais da área adminis- familiares, falta de confiança no próprio sistema
trativa (32%) (21). Em outro estudo, 79% dos de saúde, falta de informações adequadas sobre
médicos informaram que continuariam a traba- os riscos envolvidos e sobre as expectativas de
lhar e 83% consideraram inadequado faltar ao seus desempenhos durante a situação de exce-
trabalho durante uma pandemia (22). ção, sentimento de que os empregadores não
Estes dados podem ser comparados com entendem seriamente as necessidades dos
os de outro estudo, que reconhece a existência trabalhadores, além do medo de demandas
de riscos diferenciais importantes entre as dife- judiciais decorrentes dos atendimentos nestas
rentes categorias profissionais é bastante inte- situações (26). Todos estes fatores puderam ser
ressante. Os profissionais de saúde que estão observados nas nossas instituições brasileiras.
na linha de frente dos atendimentos tem riscos Algumas ações concretas podem ser to-
muito mais elevados que os habituais, desta madas no sentido de minorar estes fatores que
forma podem estar mais preocupados que os afetam a vontade de trabalhar. Neste conjunto
demais profissionais com a possibilidade de de ações podem ser incluídos os esclarecimen-
transmissão para seus familiares (23), mas es- tos claros, adequados e continuados sobre a

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própria evolução da pandemia e sobre as nor- Neste tipo de situação devem ser estabele-
mas de biossegurança ao lidar com situações de cidos claramente os critérios de alocação e prio-
risco (24). rização para o atendimento. É fundamental defi-
O risco de exposição dos profissionais não nir os critérios e padrões para o atendimento
pode ser ilimitado (27). A atuação destes profis- domiciliar e hospitalar de pacientes portadores
sionais deve obedecer às rotinas e padrões de do vírus da influenza, assim como a definição de
biossegurança, não só para o atendimento dire- rotinas para o atendimento de demandas que
to dos pacientes como as decorrentes da mani- podem chegar a exaustão dos recursos e das
pulação de materiais biológicos para fins assis- instituições (29).
tenciais, de pesquisa, de apoio e de descarte. O critério individual de alocação de recur-
Em todas estas situações o esclarecimento pré- sos deve ser cotejado com o coletivo. No critério
vio das normas e o seu cumprimento é essenci- individual o benefício para a saúde do paciente
al, especialmente quando envolvem alunos ou com o tratamento ou com a profilaxia para uma
outros profissionais ainda não plenamente ca- pessoa em risco são sempre os considerados.
pacitados (24). Desde o ponto de vista coletivo ou comunitário,
Em um levantamento de 512 projetos de o estabelecimento de medidas para evitar a
pesquisa avaliados no Comitê de Ética em Pes- transmissão para outras pessoas quando ocor-
quisa do HCPA, durante o ano de 2005, cerca rerem casos não tratados ou sem profilaxia é
de 60% dos projetos de pesquisa envolviam fundamental. Pode ser estabelecida uma estra-
manipulação de materiais biológicos. Com rela- tégia de redução dos danos resultantes destas
ção ao nível de biossegurança, 4% não pude- intervenções. Infelizmente, nem sempre há uma
ram ser classificados, 88% foram caracterizados convergência entre os critérios individuais e
no Nível 1 e outros 8% foram classificados em coletivos.
Nivel 2, como seriam os que envolvessem mate- Outro ponto importante é avaliar o valor po-
riais biológicos com possível contaminação por tencial na priorização da prevenção, da profila-
Influenza. O Nível de Biossegurança 2 exige o xia e do tratamento para profissionais de saúde,
cumprimento de medidas de segurança ade- para profissionais envolvidos no atendimento de
quadas, sob supervisão direta de um profissio- primeiros socorros, bombeiros, policiais, funcio-
nal experiente. Apenas 3% dos projetos infor- nários de empresas de fornecimento de água e
mavam os cuidados com a manipulação dos energia elétrica e de farmácias. Outros funcioná-
materiais ou sobre o uso de equipamentos de rios envolvidos em atividades de infraestrutura
proteção individual e 9% orientavam sobre os crítica, tais como transportes e telecomunica-
procedimentos de descarte (28). ções, e de infraestrutura sanitária, tais como lixo
Outra questão associada, que também de- e cemitérios, também devem ser incluídos (25).
ve ser considerada nesta perspectiva, são as Os critérios para priorizar o atendimento de
situações de saúde pré-existentes dos próprios pacientes que podem ser utilizados são o de
profissionais de saúde, que podem exigir medi- merecimento, de necessidade e de prognóstico.
das específicas em nível individual. Um exemplo Habitualmente, todos os pacientes que necessi-
disto seria a implementação de ações específi- tam alguma forma de atendimento no sistema
cas de prevenção para as profissionais gestan- de saúde são atendidos pela sua ordem de che-
tes, que ficariam afastadas temporariamente de gada, ou seja, em função do merecimento asso-
suas funções, como forma de proteção adicional ciado ao fato de ter chegado antes que os de-
frente a um potencial risco adicional. mais. Outra possibilidade, muito utilizada em
Outros fatores podem ser agregados, como serviços de emergência, é a de classificar os
a doença dos próprios profissionais e, em caso pacientes por risco e atender por ordem de gra-
de agravamento da situação, de dificuldades de vidade, ou seja, os que têm maior necessidade
locomoção devido a problemas com a infraestru- de saúde são atendidos em primeiro lugar.
tura de transportes (26). Quando ocorre uma situação de catástrofe, o
Todas estas situações podem resultar em critério de gravidade é substituído pelo de sal-
absenteísmo ao trabalho, demandando uma vabilidade, oriundo da triagem utilizada em situ-
sobrecarga adicional aos demais profissionais ações de guerra. Nesta situação, os pacientes
que continuam atendendo. com melhor prognóstico são atendidos primeiro
(30).
OS CRITÉRIOS DE USO E ALOCAÇÃO O Plano Suíço para atendimento em situa-
DE RECURSOS ções de uma Pandemia de Influenza, estabele-
cido em 2006, caracterizou abertamente estas
Os recursos físicos de saúde necessários três fases: Fase 1 – Todos que necessitam são
para atender às demandas decorrentes da situ- atendidos por ordem de chegada; Fase 2 – Tra-
ação de pandemia de influenza incluem, entre tamento dos pacientes mais graves; Fase 3 –
outros, as instalações sanitárias, equipamentos, Triagem de guerra e catástrofe – critério de sal-
materiais e medicamentos. vabilidade (24).

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Bioética e pandemia de influenza

Devem ser também consideradas as situa- dades educacionais podem ser levantadas, a
ções de vulnerabilidades específicas que podem principal delas é a do possível absenteísmo
estar associadas à priorização do atendimento decorrente da permanência dos filhos em casa
(31). As estratégias de atendimento devem levar por um período prolongado e não planejado.
em conta a possibilidade de confronto entre Esta falta ao trabalho de profissionais, depen-
situações envolvendo pacientes graves com dendo da sua área de atuação, poderia afetar o
outras condições e pacientes com influenza, funcionamento de serviços essenciais, compro-
ambos disputando os mesmos recursos (32). metendo ainda mais a estrutura social necessá-
Dentre os critérios a serem utilizados na ria nesta situação de excepcionalidade (36).
alocação de recursos é fundamental estabelecer O estabelecimento de medidas compulsó-
ações específicas que impeçam ou minimizem a rias de quarentena, de restrição de viagens, seja
infecção de pacientes com risco de complica- de passageiros individualmente ou para destinos
ções graves, assim como de grupos portadores específicos, também podem ser incluídas neste
de necessidades especiais (25). grupo de ações. Estas medidas restringem a
A não-discriminação com base no sexo, na liberdade individual, tendo como base de justifi-
cor da pele, na religião, na afiliação política, na cativa o bem coletivo (37,38). Algumas vezes é
origem e no status econômico e social é um possível recomendar que a quarentena ou a
direito individual e um dever coletivo. suspensão de viagens seja feita de forma volun-
Um ponto fundamental é que os critérios de tária, quando o indivíduo se sensibiliza com o
alocação dos recursos escassos sejam discuti- risco coletivo e assume a decisão pessoal de
dos entre os profissionais de saúde, gestores e proteger as demais pessoas (39).
com a sociedade como um todo. Os critérios
devem atender a pressupostos de adequação CONSIDERAÇÕES FINAIS
técnica e de transparência em suas justificativas
éticas (33). Em uma situação que evolui rapida- Não existem soluções prontas e imediatas
mente e com padrão não plenamente conheci- para estas questões, que devem ser abordadas
do, é importante que estes critérios tenham a através de reflexões sobre como enfrentá-las
possibilidade de serem revistos em curto perío- (40). O importante é manter a prontidão neces-
do de tempo para garantir a sua adequação. sária, a agilidade frente ao inesperado e a coe-
Outra questão que merece ser discutida rência no conjunto de decisões atuais. No futuro
em seus aspectos técnicos e éticos é da efetivi- próximo outra questão demandará novas e sig-
dade dos recursos utilizados. Neste conjunto de nificativas reflexões, quando for discutida a es-
atividades inclui-se o controle de eventos adver- tratégia para um futuro programa de vacinação
sos decorrentes do uso de medicamentos, o para a Influenza A.
monitoramento dos dados epidemiológicos e da As soluções devem ser refletidas com a
utilização dos próprios recursos físicos aloca- prontidão necessária, de forma imediata e conti-
dos. Estes dados permitirão a avaliação da ade- nuada, levando-se em conta as consequências
quação do uso e da alocação destes recursos. de cada uma das alternativas que estão sendo
planejadas; os referenciais teóricos e as experi-
AS MEDIDAS SOCIAIS RESTRITIVAS ências passadas; além das tradições, valores e
questões afetivas da população. Só uma abor-
As ações de enfrentamento da pandemia dagem que integre esta complexidade poderá
de influenza podem incluir uma série de medi- efetivamente auxiliar no processo de tomada de
das não farmacológicas. Uma medida muito decisão em uma situação tão delicada como a
discutida é a suspensão das atividades de uni- que estamos vivendo.
versidades, escolas, creches e outras institui-
ções educacionais (34). O objetivo da suspen- REFERÊNCIAS
são de atividades é reduzir a transmissão da
doença entre os alunos, professores e funcioná- 1. Gostin LO. Medical countermeasures for pan-
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