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Benveniste-Authier:

aproximações conceituais e
particularidades práticas
Cármen Agustini*
João de Deus Leite**

Resumo
Considerações iniciais
Neste artigo, ocupamo-nos da ta-
refa de apresentar, por meio de con- O alcance e a eficácia das reflexões de
traponto teórico-analítico, a especifi- Émile Benveniste, no âmbito dos estudos
cidade de formalização que o termo
enunciação assumiu nas teorizações linguísticos, ou de perspectivas conceituais
de Benveniste (1965, 1970) e de que desses estudos se serviram, pare-
Authier-Revuz (1990, 2004). Assim, cem ser tributários da assunção de uma
nosso exercício de leitura tomou por
característica comumente atribuída ao
base a seguinte hipótese: a despeito
de Authier-Revuz se filiar à perspec- empreendimento desse teórico, qual seja:
tiva conceitual de Benveniste, pare- a sua proposta teórico-analítica em torno
ce ser possível considerar que a sua da enunciação nos legou a constituição
incursão ali comportaria uma singu-
laridade exatamente pela aplicação de um programa. Isso exige considerar
que a dupla heterogeneidade ganhou que Benveniste, ao receber a herança
em sua prática teórico-analítica; mais saussuriana, imprimiu ali uma alterna-
precisamente, porque, em Benveniste, tiva de se pensar (e analisar) a língua
a proposta conceitual tangeu às ques-
tões de estruturação do Eu, enquan- em seu funcionamento, privilegiando a
to, em Authier, referiu-se às questões própria possibilidade que a instância
de fragmentação do Eu. Dessa forma, linguística oferece ao homem de se sub-
empreendemos uma análise sumária
de um discurso da presidenta Dilma
Rousseff, de modo a articular o ponto *
Professora Doutora no Instituto de Letras e Linguís-
de vista benvenistiano ao de Authier- tica (ILEEL), da Universidade Federal de Uberlândia
-Revuz, jogando com a estruturação (UFU). E-mail: agustini@ileel.ufu.br
do Eu e sua fragmentação.
**
Discente do Programa de Pós-Graduação em Estudos
Linguísticos (PPGEL), do curso de Doutorado, do Ins-
Palavras-chave: Enunciação. Dupla tituto de Letras em Linguística (Ileel), da Universidade
Federal de Uberlândia (UFU), Minas Gerais.
heterogeneidade. Estruturação do Eu.
Fragmentação do Eu.
Data de submissão: mar. 2012 – Data de aceite: maio 2012

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jetivar, a partir de projeções enunciativas dizer que sua teorização sobre a enun-
em uma posição locutor que se inscreve, ciação permanece aberta, com pontos
não por acaso, nessa mesma instância profícuos de entrada, a partir dos quais
linguística. Nesse sentido, Benveniste outros teóricos podem movimentar a teo-
recoloca em questão aquilo que passa ria benvenistiana e Authier-Revuz faz
como evidência, exercendo, com primazia, exatamente isso.
a arte de problematizar fatos linguísticos A natureza dialógica da linguagem
sob o impacto da enunciação. Esse estilo humana, nessa proposta, permitiu a
de pensar benvenistiano, calcado na pro- Benveniste ressaltar, de modo mais
blematização das evidências, possibilitou contundente, uma implicação valiosa
que se tornasse uma prática corrente, (e distintiva) para a espécie humana, a
em Linguística, referir-se a Benveniste saber: somos capazes, em tese, de nos
quando se define enunciação. endereçar, na e pela linguagem, a nossos
O delineamento da proposta de Ben- semelhantes, promovendo diálogos, ou,
veniste para se questionar sobre a nos termos de Benveniste, instaurando
enunciação se pautou, seguramente, em certo efeito pragmático de comunicação;
um conjunto de princípios conceituais, essa implicação, por sua vez, parece di-
que, a nosso ver, abre-se em dois pontos mensionar o viés de que aquela natureza
centrais e caros a suas teorizações: o dialógica traria em seu bojo um matiz de
primeiro concerne à perspectiva da natu- complexidade, como ressaltou diversas
reza dialógica da linguagem humana e o vezes Benveniste em seus trabalhos.
segundo é relativo ao fato de que figuras Um aspecto dessa complexidade reside
enunciativas não se equivaleriam jamais no fato de que se o efeito pragmático de
a posições ou entidades empíricas. Esse comunicação resulta de uma relação de
deslocamento tornou-se fundamental correferência entre locutor e (inter)locu-
para a construção de uma definição tor1, é possível que esse efeito pragmático
de enunciação, que, ocorrerá explicita- não se dê.
mente, em 1970, com a publicação de “O Em relação à perspectiva de figuras
aparelho formal da enunciação”. A con- enunciativas, a proposta de Benveniste,
versão da língua em discurso por um ato diante disso, procurou conceder maior
individual de apropriação da língua não relevo ao rompimento com o respaldo
responde empiricamente ao ato de falar; empírico para se teorizar sobre a lingua-
para que tal se dê é necessário colocar- gem e sobre a língua, por um lado, e, por
-se no lugar de Eu e, assim procedendo, outro, à possibilidade que determinadas
se propor como sujeito. No entanto, esse formas linguísticas possuem de compor-
colocar-se no lugar de Eu não é automá- tar traços de pessoa, de subjetividade
tico ou simples. Benveniste deixa, dessa e de objetividade, constituindo, desse
forma, um legado aberto, o que significa modo, certas condições enunciativas

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para que algo de subjetividade do locutor Muitos estudos subsequentes aos de
ganhe ali inscrição, na e pela linguagem. Benveniste sofreram influência dessa
Afinal, a própria definição de enuncia- maneira teórico-analítica de se deter
ção ponderada por Benveniste (19702), sobre a língua, mais notadamente da
conforme abordamos mais adiante de distinção que esse teórico produziu entre
modo explícito, parece se debater com o “emprego das formas” e “emprego da
entendimento de que se trataria de posi- língua”, em 1970, ao sustentar a leitura
ções ou entidades empíricas e de que elas de que a enunciação dispõe, estrutural-
oportunizariam o acesso direto entre os mente, de um aparelho formal.
participantes da enunciação, enquanto Como todo programa teórico-analítico,
figuras enunciativas. o de Benveniste susteve uma dinâmica
Ao se constituírem como núcleo da epistemológica de produção de traba-
proposta de Benveniste, os dois pontos lhos que seguiram certas tendências:
sobreditos oportunizaram ao autor fun- filiaram-se a seu aporte conceitual, com-
damentar (e evidenciar) alguns desdo- prometendo-se com a unidade teórica do
bramentos teórico-analíticos em torno do programa e, a partir disso, produziram
papel que a enunciação exerceria no pró- decorrências para certos princípios de
prio movimento de conversão da língua sua teoria; outros trabalhos tomaram um
em discurso pelo homem, o qual, frente a ou outro princípio, por influência, para
essa condição, poderia se constituir como a construção de um diálogo conceitual
sujeito na instância linguística, segundo com outras perspectivas teóricas, ins-
as ideias já mencionadas anteriormente. taurando a possibilidade de apelo a uma
Em vista disso, é possível elucidar exterioridade teórica; outros trabalhos,
que o programa benvenistiano, para por questão de especificidades e limites
nos referirmos assim à sua proposta e postulados pelo falseamento inerente a
para expressarmos nosso entendimento toda teoria, afastaram-se, radicalmente,
e modo de entrada em relação a ela, da vertente conceitual do programa, e
consolidou, no âmbito dos estudos da lin- que, com isso, só reiterou a existência e
guagem, uma linha de pensamento outra a pertinência da proposta de Benveniste,
para a abordagem da língua3. Inclusive, em termos epistemológicos.
com suas variadas incursões no campo Por essas e outras tendências, pa-
da Linguística, empreendendo múltiplas rece ser possível frisar a ideia de que
análises concretas4 de diferentes línguas, a proposta de Benveniste em torno
Benveniste nos apresentou uma manei- da dimensão enunciativa da língua se
ra teórico-analítica de se proceder em constituiu mesmo como um programa
função de questões de língua, dada a bastante produtivo para os estudos lin-
inter-relação que ele estabeleceu entre guísticos; por assim dizer, tratou-se de
forma-sentido. um programa que, entre continuidade

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e descontinuidade de foco temático por No caso dos trabalhos de Authier-Re-
parte daqueles que se afetaram pela vuz, parece que essa filiação se configu-
proposta benvenistiana, abriu vias para rou, epistemologicamente, de modo bem
o exame teórico-analítico da língua em específico, pois, ao mesmo tempo em que
uso, o qual se caracteriza, sob a visada ela é tributária das ideias de Benveniste,
de tal programa, pela perspectiva de suas reflexões apontaram para uma des-
apropriação e de atualização da língua continuidade de foco temático em relação
via discurso. a ele; a partir disso, delineou-se, nas
Na esteira desse programa, as re- incursões conceituais construídas por
flexões que tomaram corpo a partir dos essa linguista, um diálogo com outros
trabalhos de Jacqueline Authier-Revuz, enfoques teóricos, segundo a demanda de
para dizermos do posicionamento con- sua agenda teórico-analítica no âmbito
ceitual que aqui será privilegiado no dos estudos linguísticos.
contraponto com a proposta em tela, Em virtude do pressuposto de que
poderiam ser apontadas como evidên- entre esses linguistas haveria uma
cia do quão a proposta de Benveniste tendência de aproximação teórica e de
produziu resultados vantajosos para particularidade prática, ao mesmo tem-
o campo da enunciação. Da parte de po, pinçamos, para este artigo, a proble-
Authier-Revuz, o interesse reflexivo por mática sobre a enunciação, com vistas a
elementos linguísticos que expressam, estabelecer, brevemente, um contraponto
de certo modo, a inscrição do outro (em entre a abordagem de ambos acerca da
termos de aspectos exteriores à língua), temática da enunciação. Para tanto, pro-
na própria instância linguística, parece por-nos-emos o seguinte questionamento
ter sido um ponto de aplicação de seus motivador de nossas considerações: Em
trabalhos que levou radicalmente a sé- que se fundamenta a especificidade de
rio a vertente conceitual produzida por formalização do termo enunciação para
Benveniste. Benveniste e para Authier-Revuz?
A tendência das discussões que essa Apesar de Authier-Revuz evocar,
linguista empreendeu ali se pautou em expressamente, as ideias teóricas de
uma filiação ao pensamento de Benve- Benveniste em seus trabalhos, sobretudo
niste, conforme é expresso, por ela, no por fazer operar o alcance e a eficácia de
primeiro tomo de sua tese de doutorado, alguns fundamentos elaborados por esse
mais notadamente no capítulo em que teórico, aventamos, aqui, a hipótese de
ela versou sobre o arcabouço teórico que que o modo de abordagem da exteriorida-
sustenta o prisma conceitual de que a de da língua por ela – isto é, a maneira
língua, diante dos demais sistemas se- de mostrar (e de sustentar, conceitual-
mióticos, comportaria um destaque, exa- mente) elementos que dimensionariam
tamente, pela sua capacidade reflexiva. a exterioridade da língua – parece se

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constituir como um aspecto tributário Nesse programa, parece-nos que o
da particularidade do conceito de enun- interesse ali mais se voltou para um
ciação em suas teorizações. contínuo de preocupações que procurou
Isso significa dizer, uma vez mais, que abordar a exterioridade a partir do papel
a natureza do endereçamento teórico de fundamental que ela assume no próprio
Authier-Revuz em relação a Benveniste sistema linguístico – ou seja, Benveniste
consiste em uma filiação, nos termos cunhou uma linha de pensamento, muito
epistemológicos, portanto, ela não se oportuna e instigante para os estudos
afasta do núcleo conceitual e central do linguísticos, que apostou fortemente na
programa benvenistiano, e, simultane- vertente de que a língua debate-se com
amente, especifica-se como uma filiação sua exterioridade, resguardado o grau
que comporta uma singularidade, pois, de complexidade que isso encerraria, de
vinculada a esse programa, ela o faz modo que a assunção de certos elementos
frutificar a partir da alternativa de pro- da exterioridade só poderia se dar por
mover alguns entrelaçamentos teóricos meio da língua.
com outras perspectivas conceituais. Sendo assim, propomo-nos, aqui, ana-
Diante disso, como examinamos mais lisar, por meio de contraponto teórico-
adiante, a abordagem da exterioridade -analítico, a especificidade de estatuto
da língua por Authier-Revuz ganhou que o termo enunciação parece assumir
relevo por meio de duas tendências nas teorizações de Benveniste e de
que se inter-relacionam: a primeira se Authier-Revuz, dando relevo a nossa
refere à sua preocupação em focar ex- aposta de que a maneira de abordagem
pressamente certos fatos linguísticos, da exterioridade da língua por eles fi-
caracterizando-os do ponto de vista lin- guraria como um aspecto definitório de
guístico sem descuidar de sua formação dois modos distintos (nem, por isso, in-
de linguista; a segunda diz respeito à compatíveis) de se formalizar a questão
inquietação de Authier-Revuz em buscar da enunciação.
subsídios teóricos em outras perspecti- As nossas considerações sobre esses
vas conceituais não incompatíveis para dois modos de formalização tomaram por
fundamentar e evidenciar a descrição base, mais expressamente, os textos “A
dos fatos linguísticos constituídos por linguagem e experiência humana” (1965)
ela. Ousamos ressaltar, neste ponto, e “O aparelho formal da enunciação”
que esse foco temático produzido por (1970), de Benveniste, para a constitui-
Authier-Revuz, também denominado ção do primeiro polo teórico, e o segundo
por ela de dupla heterogeneidade, parece capítulo do primeiro tomo da tese de
ser crucial para a singularidade que seu Authier-Revuz, intitulado Balisages
trabalho conquistou no seio do programa dans le champ énonciatif (1995), bem
em questão. como o texto Heterogeneidade mostrada

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e heterogeneidade constitutiva: elemen- guístico para a questão (inter)subjetiva
tos para uma abordagem do outro no na linguagem, Benveniste ([1965]1989)
discurso (2004), para a constituição do nos apresentou uma problematização
segundo polo teórico. Para o delineamen- em torno da ideia de tempo físico e de
to do contraponto analítico, apresentado tempo crônico. Com estatutos específicos,
em seção específica, recorremos a um a leitura produzida por ele sobre esses
recorte do discurso da presidenta Dilma tempos permite destacar o seguinte: o
Rousseff, com o propósito de empreender investimento nas denominações para
ali uma análise sumária a partir das tentar aludir ao tempo mais acirraria
duas tendências teóricas em tela. as dimensões diferentes entre tempo
linguístico e tempo crônico que os apro-
Construindo o ximaria. Portanto, dada a dinâmica dos

contraponto teórico... seguintes elementos: acontecimento e


discurso, ter-se-á, segundo Benveniste
Ao problematizar a relação de entre- ([1965]1989), a própria possibilidade de
laçamento entre linguagem e experiên- especificação do tempo linguístico. Dessa
cia humana, Benveniste ([1965]1989) forma, ao pontuar que a condição mesma
se deteve na abordagem da seguinte da linguagem, de saída, já dimensionaria
perspectiva: até que ponto a linguagem o tempo linguístico presente, ele ressal-
pode recobrir a experiência humana? tou que os outros tempos – o passado e
Mais: qual a natureza dessa relação, de o futuro – dele decorreriam via a arti-
acordo com Benveniste ([1965]1989), ao culação entre: acontecimento e discurso.
vislumbrarmos ali a problemática da Para argumentar esse viés, Benve-
categoria tempo? niste ([1965]1989) percorreu sua linha
A tônica dessa abordagem se espe- de pensamento, que, no caso do texto
cificou, em Benveniste ([1965]1989), a em tela, filiou-se à óptica de que a expe-
partir da ênfase que ele atribuiu às ca- riência humana se apresenta, no tempo
tegorias de pessoa e de tempo, com vistas crônico, de modo totalmente singular, a
a analisar a natureza da experiência despeito de se tratar, em princípio, de
humana; essa é tomada, no bojo de sua um “mesmo” recorte temporal.
constituição, por ele, como uma experi- E ali é possível apreender um prin-
ência linguageira, em que “categorias de cípio de base fortemente benvenistiana
expressão” (BENVENISTE, [1965]1989, em operação, qual seja: a propriedade
p. 68), de base linguística, são converti- de a linguagem se desdobrar, via a (re)
das em discurso. atualização no instante de fala5, a ponto
Sendo assim, a fim de mostrar as de se produzir, com isso, um momento
possíveis decorrências conceituais de sua enunciativo cada vez novo. Isso exige ter
leitura acerca da categoria tempo lin- em vista, já neste ponto, a relação íntima

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que essa propriedade mantém com o pró- de Benveniste, a partir de enfoques
prio conceito de enunciação, o qual ainda múltiplos. É o caso, por exemplo, da dis-
será apresentado por nós, bem como com tinção que ele promoveu entre “emprego
a perspectiva de que o único tempo que das formas” e “emprego da língua”, ao
a enunciação sustém seria o presente. circunstanciar o conceito de enunciação.
Por sua vez, isso significa que, por um A ênfase que esse teórico imprimiu no
lado, o tempo é intangível, levando em enfoque de que esses empregos possuem
conta a mediação da linguagem na nossa estatutos específicos abriu espaço, no
relação com o mundo, e, por outro, que a âmbito dos estudos linguísticos, para a
enunciação é bastante fugaz, pois o único abordagem da conjugação de traços de
eixo de referência a ser considerado para subjetividade a formas linguísticas, dado
aludir ao tempo é o próprio momento da exatamente o papel que a enunciação
enunciação. desempenha no dimensionamento da
Não por acaso, Benveniste ([1965] relação singular que o locutor mantém
1989) destacou que a língua possui uma com a língua. E isso leva-nos a entender
organização interna que parece implicar que essa conjugação, fatalmente, parece
a própria impossibilidade de se tomar fundamentar a ideia de que é a forma
outro eixo referencial para se reportar à linguística que comportaria a efemerida-
questão do tempo, que, no caso de suas de do traço de subjetividade, na presente
teorizações, o meio de alusão conceitual instância de discurso, e, não, a posição
encontrado foi o eixo da instância de ou entidade empírica.
discurso; instância de manifestação e de Com isso, a tônica do programa
ancoragem da relação (inter)subjetiva da benvenistiano consistiria, portanto, na
linguagem, a partir da qual haveria ali abordagem da exterioridade a partir do
o ponto de aplicação, em termos linguís- papel fundamental que ela assumiria no
ticos, da “condição de inteligibilidade da próprio sistema linguístico, conforme as-
linguagem” (BENVENISTE, [1965]1989, sinalamos na primeira seção deste artigo.
p. 78). Inclusive, embasado na perspectiva des-
Com base no que vimos considerando sa conjugação, poderíamos dizer que Ben-
até aqui, parece-nos que a premissa de veniste ([1970]1989) postulou o conceito
que a linguagem permitiria ao homem de enunciação contemplando ali o viés de
se colocar de diferentes maneiras frente que a própria língua já possibilitaria, em
ao mundo, a cada gesto enunciativo, evi- seu funcionamento, o agenciamento de
denciou uma preocupação crucial para formas linguísticas pelo locutor. Conside-
o contínuo dos trabalhos de Benveniste. remos, a seguir, uma passagem do texto
Em outros termos, poderíamos destacar de Benveniste ([1970]1989, p. 82, grifos
que essa premissa ganhou contornos nossos), que sustém o delineamento dos
conceituais, na trajetória de elaboração referidos apontamentos:

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A enunciação é este colocar em funcionamen- tela mostrou alguns elementos definitó-
to a língua por um ato individual de utili- rios da enunciação, inaugurando, diante
zação. O discurso, dir-se-á, que é produzido
cada vez que se fala, esta manifestação da disso, o entendimento de que se trata de
enunciação, não é simplesmente a “fala”? um ato efêmero e singular que surge a
– É preciso ter cuidado com a condição es- partir do próprio gesto de apropriação
pecífica da enunciação: é o ato mesmo de da língua pelo locutor. É só no interior
produzir um enunciado, e não o texto do
enunciado, que é nosso objeto. Este ato é o do funcionamento da língua, em suas
fato do locutor que mobiliza a língua por sua faces discursivas, que a enunciação se
conta. A relação do locutor com a língua de- torna factível; negar essa condição seria
termina os caracteres linguísticos da enun-
apostar na perspectiva do enunciado,
ciação. Deve-se considerá-la como o fato do
locutor, que toma a língua por instrumento, descuidando de elementos, como, por
e nos caracteres linguísticos que marcam exemplo, o da “realização vocal da lín-
esta relação. gua” (BENVENISTE, [1970]1989, p. 82).
A proposição dessa definição de enun- A posição formal para o quadro da
ciação, por Benveniste ([1970]1989), enunciação demandou de Benveniste
marcou um momento crucial de sua ([1970]1989) a definição e articulação
trajetória teórica, pois, por meio dela, de aspectos sistemáticos pertinentes
ele examinou (e nos legou) a ideia de que ao próprio sistema linguístico, os quais
o uso da língua, em uma circunstância deveriam referendar a possibilidade de
enunciativa, se especifica a partir de conversão da língua em discurso pelo
um aparelho formal. Isso porque toda e locutor. Trata-se do caso, por exemplo,
qualquer apropriação, quando do instan- da definição de “indivíduos linguísticos”,
te de uso da língua pelo locutor, supõe quando Benveniste ([1970]1989) referiu-
um repertório de possibilidades (polo das -se a formas linguísticas que, mais no-
formas linguísticas); por sua vez, todo tadamente, são passíveis de serem (re)
e qualquer repertório de possibilidades atualizadas pelo locutor na instância de
reclama um agente para encabeçar a discurso, quais sejam: pronomes pesso-
composição de certas possibilidades de ais, pronomes demonstrativos e formas
combinação (polo do sentido), as quais temporais – para citarmos algumas.
são articuladas a partir do próprio fun- Em sendo assim, de acordo com esse
cionamento que ancora esse repertório. teórico, tal quadro se estruturaria a
De posse dessas implicações, parece partir de posições enunciativas (locutor
ser possível evidenciar que a natureza e interlocutor), constituídas no interior
dessa definição de enunciação im- do funcionamento da própria língua,
primiu certa radicalidade na relação por meio da instância de discurso. E,
forma-sentido, dada a proposta geral certamente, essa constituição seria nu-
de Benveniste ([1970]1989). Assim, ao trida pela necessidade de endereçamento
defender que a relação entre forma e mútuo entre essas posições, conforme o
sentido seria inextricável, o teórico em processo de reversibilidade que subjaz ao
diálogo dos participantes da enunciação.

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Vejamos, abaixo, outra passagem do dagem de fatos de língua que se cons-
texto de Benveniste ([1970]1989), que, tituem, enunciativamente, por meio da
neste ponto, mostra-se muito relevante assunção de campos de rupturas, de
para o exame do que vimos propondo deslizes, de desvios, na própria sequen-
até aqui: na proposta benvenistiana, a cialidade linguística. Com isso, Authier-
assunção de traços da exterioridade só -Revuz (1995), sob o horizonte fundante
se especificaria a partir de sua inscrição das heterogeneidades enunciativas, es-
no interior do próprio funcionamento da tabeleceu que a incidência de pontos de
língua. Eis, textualmente, a passagem: não um (campo de rupturas), os quais são
[...] na enunciação, a língua se acha empre- localizáveis no próprio fio do discurso e
gada para a expressão de uma certa relação não em outro lugar, efetiva-se ali exata-
com o mundo. A condição mesma dessa mo- mente pelos efeitos das próprias lacunas,
bilização e dessa apropriação da língua é,
para o locutor, a necessidade de referir pelo em termos de descentramento subjetivo,
discurso, e, para o outro, a possibilidade de que constituem aquele que enuncia e o
co-referir identicamente, no consenso prag- sentido que ele constrói.
mático que faz de cada locutor um co-locutor.
A referência é parte integrante da enuncia-
Cabe ressaltar que a referida linguis-
ção. Estas condições iniciais vão reger todo ta assumiu, no âmbito dos estudos lin-
o mecanismo da referência no processo de guísticos, a direcionalidade epistemológi-
enunciação, criando uma situação muito
ca de “neoestruturalista”, pois a tendên-
singular e da qual ainda não se tomou a
necessária consciência (BENVENISTE, cia teórico-analítica de seus trabalhos
[1970]1989, p. 84 - grifos nossos). reclamou tomar como ponto de partida
as questões de língua, vislumbrando ali
Até aqui, portanto, foi possível apre-
elementos que lhe são exteriores. Isso
sentar que a formalização do termo enun-
significa dizer que os princípios saussu-
ciação, para Benveniste ([1970]1989),
rianos encontraram ecos conceituais nas
perpassou a consideração de que a
incursões de Authier-Revuz (1995) e que
própria língua, em seu funcionamento,
a proposta de Benveniste encontrou ali
já dimensionaria modos singulares e
certa radicalidade, quando do momento
efêmeros de o homem compor sua expe-
de essa teórica enfocar a perspectiva
riência no mundo. E ali o tempo presente,
de que a língua possui a propriedade
único tempo legítimo da enunciação,
de ser reflexiva – ou seja, de ser sua
garantiria, estruturalmente, o momen-
metalíngua.
to da enunciação, bem como a própria
Levando em consideração os apon-
possibilidade de emergência de traço de
tamentos produzidos por Flores e Tei-
subjetividade, quando do momento de
xeira (2005), é possível destacar que o
conversão da língua em discurso pelo
termo heterogeneidade, nos trabalhos
locutor.
de Authier-Revuz (1995), diz respeito
Os trabalhos de Authier-Revuz (1995)
ao domínio em que o discurso é dupla-
se voltaram, fortemente, para a abor-

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mente marcado pelo não um, em função, sentido e que não cessa de se mostrar,
justamente, da heterogeneidade que o possibilitaria a emergência de heteroge-
afeta. Essa dupla inscrição de não um neidades nos processos discursivos. Eis,
permitiu que essa linguista adentrasse, textualmente, a explicação de Authier-
singularmente, o programa benvenis- -Revuz (2004, p. 69): “todo discurso se
tiano para “considerar a reflexividade mostra constitutivamente atravessado
opacificante da modalidade autonímica pelos ‘outros discursos’ e pelo ‘discurso
tanto no plano da língua, sob o ângulo da do Outro’. O outro não é um objeto (ex-
linearidade do dizer, quanto no plano do terior, do qual se fala), mas uma condi-
discurso, sob o ângulo do que ela diz ao ção (constitutiva, para que se fale) do
sujeito do dizer” (FLORES; TEIXEIRA, discurso de um sujeito falante que não
2005, p. 74). é fonte-primeira desse discurso”.
Essa marcação de pontos de não um, Os modos de organização das hetero-
no fio do discurso, relaciona-se com a geneidades enunciativas na manifesta-
irrupção de ressonâncias que advém do ção discursiva, segundo Authier-Revuz
lugar do outro, dada a visada dos traba- (1995), envolvem duas maneiras: a
lhos de Authier-Revuz (1995); a noção de heterogeneidade mostrada e a heteroge-
outro ali permeou a proposição teórica neidade constitutiva. A primeira pode
de Lacan, sendo o Outro figurado como ser descrita com o auxílio de elementos
“um espaço aberto de significantes que indicadores da presença dos outros so-
o sujeito encontra desde seu ingresso breditos, seja por formas marcadas, seja
no mundo” (ANDRÈS, 1996, p. 385). por formas recuperáveis, que se inscre-
Também Flores e Teixeira (2005, p. 76), vem diretamente na linearidade do dizer
em consonância com as postulações de – discurso direto, discurso indireto, as-
Lacan, destacaram que o propósito de pas, glosas, etc. – delimitando o “caráter
tal abordagem lacaniana seria: “mostrar explícito, acessível à análise lingüística”
que, além das representações do eu, (AUTHIER-REVUZ, 2004, p. 16). Para
especulares ou imaginárias, o sujeito é tal autora, as diversas formas marcadas
determinado por uma ordem simbólica da heterogeneidade mostrada conferem
– o significante, a lei, a linguagem, o ao fragmento marcado um estatuto outro
inconsciente – designada como ‘lugar do em relação ao resto do dizer, para quem
outro’ e perfeitamente distinta do que é a alteridade toma valores específicos.
do âmbito de uma relação com o parceiro A segunda refere-se a uma abordagem
imaginário o ‘outro’”. não linguística do “jogo com o outro”, pois
Sendo assim, a ruptura da lineari- o processo de alteridade está ali diluído
dade do dizer do sujeito em relação ao por uma espécie de “horizonte fora do
Outro e aos desvios dos outros, o que alcance do lingüístico” (AUTHIER-RE-
parece fomentar a imprevisibilidade de VUZ, 2004, p. 21), embora saibamos que

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essa diluição, atestada pelo dialogismo, por sua vez, justifica a premissa de que
é uma condição própria da natureza o sujeito não é o agente da linguagem
da linguagem. Por isso, Authier-Revuz e, sim, o efeito, segundo apontamentos
delineou que a heterogeneidade consti- arrolados anteriormente.
tutiva é do discurso e que as formas da Assim, em ambas vertentes, o que é
heterogeneidade mostrada se inscrevem considerado como intersecção é o ques-
no discurso. tionamento radical da “imagem de um
A consideração da heterogeneidade locutor, fonte consciente de um sentido
constitutiva do sujeito e de seu discurso que ele traduz nas palavras de uma lín-
foi embasada, nos estudos da autora, gua, e a própria noção de língua como
em duas vertentes teóricas exteriores instrumento de comunicação ou como
à Linguística, a saber: o dialogismo ato que se realiza no quadro de trocas
de Bakhtin e a teoria psicanalítica (a verbais” (TEIXEIRA, 2005, p. 145-146).
releitura de Freud feita por Lacan). Ao Ainda, para Authier-Revuz (2004), o
recorrermos aos apontamentos de Tei- sujeito não poderia ser tomado pelo que
xeira (2005, p. 145, grifos da autora), diz (representação ilusória que ele dá
percebemos que: “de Bakhtin, a autora de sua enunciação) e, sim, no que diz
toma basicamente as reflexões sobre o por meio da linearidade de uma cadeia,
princípio do dialogismo, focalizando, de marcada por rupturas (“falhas”); que
modo, especial, o lugar que o autor con- a heterogeneidade mostrada permite
fere ao outro no discurso; na psicanálise, avistar, não de modo nítido e direto, o
interessa-lhe a abordagem em torno de atravessamento dos “outros discursos” e
um sujeito produzido pela linguagem, do “discurso do Outro”; que a heteroge-
estruturalmente clivado pelo incons- neidade mostrada não pode ser abordada
ciente [...]”. como o reflexo, no discurso, da heteroge-
Cumpre destacar que o apelo a esses neidade constitutiva, embora elas sejam
exteriores se prende a bases teóricas articuláveis. Teixeira (2005, p. 152-153,
diferentes: na perspectiva dialógica, o grifos da autora), corroborando o quadro
outro não é “nem duplo de um frente a referencial das heterogeneidades pro-
frente, nem mesmo o ‘diferente’, mas um posto por Authier-Revuz, expôs que “as
formas da heterogeneidade mostrada
outro que atravessa constitutivamente o
representam uma negociação obrigatória
um” (AUTHIER, 2004, p. 25), isto é, “a
do sujeito com essa heterogeneidade que
noção de outro recobre os outros discur-
o constitui e que ele tem necessidade de
sos constitutivos do discurso” (FLORES;
desconhecer. Essa negociação assume a
TEIXEIRA, 2005, p. 75-76); na óptica
forma de uma denegação – no sentido
freudo-lacaniana, o outro é o “grande
Freudiano – na qual a emergência pon-
Outro” (ordem do nível dos significan-
tual do não-um é mostrada e ao mesmo
tes e do desejo pelos significantes), que,
tempo obturada”.

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Diante disso, é possível precisar que do Outro na compreensão psicanalítica,
a heterogeneidade mostrada permite pôr, pois “o lugar ‘do outro discurso’ não é ao
no campo da enunciação, a marca dos lado, mas no discurso. Isso posto como
fatos de língua, que as indicam como tal, lei constitutiva do tecido de todo discurso
pelo seu caráter heterogêneo; em conco- [...]” (AUTHIER-REVUZ, 2004, p. 37,
mitância, permite também preservar a grifos da autora).
ilusão necessária do um. Porém, com o Com base na natureza das incur-
estabelecimento da inevitável emergên- sões teórico-analíticas construídas por
cia do não um, notamos que há pontos Authier-Revuz (1995 e 2004), compre-
vulneráveis em que se instaura o efeito endemos que a formalização do termo
opacificante (não coincidências/hetero- enunciação se apresentou ali por meio
geneidades) da representação do dizer. do ponto de aplicação entre língua, fala
Cabe ressaltar que essa “falha” que e sujeito, dado o intuito de proposição
se inscreve no fio do dizer como não de um campo conceitual. Para isso, essa
um constitutivo do um não é específica linguísta, buscando referendar sua prá-
da heterogeneidade mostrada, sendo tica e seu objeto particulares, esboçou
também “da ordem do irrepresentável, uma linha de pensamento que, episte-
que se ‘mostra’ no plano enunciativo em mologicamente, pautou-se na intersec-
pontos de ‘alteração’ do dizer” (FLORES; ção, não na inclusão, de perspectivas
TEIXEIRA, 2005, p. 84). conceituais, que, de base, permitiram-
Em relação aos trabalhos de Authier- -na fundamentar o horizonte da dupla
-Revuz (1995, 2004), vimos consideran- heterogeneidade.
do, até aqui, que, quando o sujeito (se) Essa linha de pensamento, no âmbi-
enuncia, uma duplicidade de sentidos to dos estudos linguísticos, contribuiu
ali o afeta, acarretando, assim, proces- para o delineamento de uma tendência
sos de inscrição de marcas linguísticas discursiva que desdobrasse e articulasse
que metamorfoseia o dizer em equívoco os princípios de reflexividade e de opaci-
engendrando um sentido outro. Esse dade da linguagem, quando do momento
sentido, por sua vez, possui uma estru- de uso da língua, por exemplo, os quais
tura autonímica opacificante, isto é, “um são centrais e caros às perspectivas
sentido que não veio para ficar igual a conceituais que ela fez intervir em suas
ele mesmo” (TEIXEIRA, 2005, p. 201). teorizações. Na sua tese de doutorado,
As marcas de não um, expressas, Authier-Revuz (1995, 2004), de saída,
muitas vezes, por meio de comentários, procurou pensar e fundamentar as
de ressalvas, de explicações laterais e bases teóricas que fundam o campo da
de atenuações, podem indicar, de certo enunciação, evocando a aplicação entre
modo, possíveis manifestações do outro língua, fala e sujeito, como possibilidade
tanto na compreensão dialógica quanto de constituição de um discurso sobre a

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enunciação. Para que isso fique mais efêmero, restando a possibilidade de que
claro, tomemos as palavras da própria ali a reversibilidade aconteça (ou não).
autora a seguir: Para finalizarmos esta seção, consi-
Forme de l’énonciation – une modalité énon- deramos pertinente apresentar, a seguir,
ciative spécifique, réflexive et opacifiante, a nota explicativa do Dicionário de Lin-
ayant la particulatité de comporter un guística da Enunciação acerca da defi-
discours sur l’énonciation, sur la langue, le
sens, la nomination, l’interlocution, … – la nição de enunciação referente à visada
modalité autonymique, par laquelle le dire de Authier-Revuz (1995, 2004), a saber:
d’un élément X de la chaîne se double de son
A enunciação, concebida como um campo
auto-représentation, relève doublement, si
heterogêneo do conhecimento, põe em jogo
l’on peut dire, de ce champ, foncièrement
o sujeito e sua relação com a língua e com o
hétérogène, où se recontrent la langue et
sentido. É, então, considerada lugar de uma
la parole/le discours, le sujet… (AUTHIER-
inevitável heterogeneidade teórica, que leva
-REVUZ, 1995, p. 47, grifos da autora).6
a linguística, entendida em seu sentido res-
Diante da natureza dessa aplica- trito, a ter que recorrer a teorias exteriores a
seu campo para apoiar a descrição dos fatos
ção, entendemos que o movimento de enunciativos (FLORES et al., 2009, p. 99,
se apelar para exterioridades teóricas grifos dos autores).
marcou a própria natureza do campo da
enunciação que essa linguista propôs, Da estruturação do Eu à
sem descuidar, é claro, dos riscos e li- sua fragmentação:
mites que esse movimento resguardou,
epistemologicamente, em sua prática
a filiação de Authier-Revuz
teórico-analítica. a Benveniste
Com isso, Authier-Revuz (1995) apre-
sentou-nos o quão frutífera foi a proposta Nesta seção, analisamos um recorte
de Benveniste, quando este reivindicou e do discurso7 da atual presidenta da Re-
fundamentou o estatuto efêmero e singu- pública, Dilma Rousseff, proferido na
lar da relação do locutor com a língua no cerimônia de inauguração da Clínica da
processo de conversão desta em discurso; Família Joãosinho Trinta e celebração
trata-se de uma relação que comportaria da marca de dois milhões de cariocas
a magia e o segredo de se deflagrar tão- atendidos pelo Programa Saúde da
-somente nesse exercício de conversão Família. Esse proferimento foi feito na
individual. Por isso, de modo belíssimo Parada de Lucas, Rio de Janeiro, em 21
e impactante, Benveniste ([1970]1989) de março de 2012. Esse discurso, assim
abriu vias para pensarmos que seria como os demais proferidos pela atual
impossível um locutor converter a lín- presidenta da República, está disponível
gua em discurso por outro locutor no no link http://www2.planalto.gov.br/im-
momento de enunciação desse locutor; prensa/discursos/. Após cumprimentar
esse exercício é, acirradamente, único e seus “parceiros” e todos os presentes, a
presidenta Dilma Rousseff enuncia:

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(Excerto 1)… Dirigir para o Pezão, meu do Eu que dá lugar à assunção do status
companheiro de PAC – o Lula dizia que de sujeito. Garantir a correferência, em
eu era a mãe do PAC e o Pezão era o pai
do PAC –, cumprimentar o Pezão, que é Benveniste, significa tentar garantir que
uma pessoa empenhada em resolver os pro- o efeito pragmático de comunicação se dê
blemas da população do Rio de Janeiro, ca- de modo a estruturar um Eu coerente,
pital e estado. (Presidenta Dilma Rousseff,
Parada de Lucas, RJ, 21/03/2012).
homogêneo, estável, responsável por
Nesse excerto, Dilma, enquanto lo- aquilo que diz ao (se) enunciar, o que
cutora e ao colocar-se no lugar de Eu, significa produzir uma representação
antecipa que seus (inter)locutores, para do Eu.
correferirem com ela, poderiam neces- Nesse sentido, converter a língua
sitar de uma explicação sobre o porquê em discurso implica organizar aquilo
de o Sr. Pezão ser seu companheiro de que (se) diz ao (se) enunciar, de modo
PAC e essa explicação, formulada na a instaurar o efeito pragmático de
forma de uma inserção parentética,8 é comunicação, que se dá pelo simples
atribuída à autoridade do ex-presidente fato de que o homem fala por meio de
Luís Inácio Lula da Silva, que projetou uma língua-forma que compartilha com
a figura política de Dilma no espaço certa(s) comunidade(s) linguística(s).
nacional e cuja aprovação popular de Portanto, o conceito de discurso, nessa
seu governo apresentou índices altos. perspectiva teórica, pode ser compreen-
Em uma perspectiva benvenistiana, a dido como sendo relativo àquilo que está
questão da intersubjetividade, projeta- estabilizado, organizado socialmente em
da por meio de um endereçamento ao termos de sentido.
(inter)locutor, em lugar de alocutário, Já em uma perspectiva authier-revu-
leva a presidenta Dilma a apropriar-se ziana, esse Eu mostra-se heterogêneo,
da língua, convertendo-a em discurso, o fragmentado, justamente porque recorre
que produz enunciados compreensíveis, a outro locutor, atribuindo-lhe a respon-
remetendo ao mundo logicamente esta- sabilidade sobre a designação de Dilma
bilizado dos sentidos já-estabelecidos, a como “a mãe do PAC”. Há ali, portanto,
fim de garantir o processo de correferên- uma não coincidência interlocutiva. Não é
cia e, em decorrência, o efeito pragmático a presidenta Dilma quem se atribui o de-
de comunicação. signativo. Essa fragmentação do Eu abre
Sendo assim, a explicação parentética para diferentes possibilidades de leitura
torna-se uma prerrogativa de uma ne- para essa oração parentética que marca
cessidade discursiva de garantir, embora a presença do não um do(s) sentido(s) no
imaginariamente, o efeito pragmático de fio discursivo. Apresentamos, a seguir, ao
comunicação. Portanto, essa explicação menos, três possibilidades:
parentética é fruto da assunção de Dilma
ao lugar de Eu, ou seja, da estruturação

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1) a locutora Dilma não se sente a torna-se expor o olhar-leitor à opacidade
mãe do PAC e, por isso, atribui do dizer, à sua heterogeneidade radical.
ao locutor Lula esse dizer. Quais Esse exercício de análise à la Benve-
seriam as possíveis implicações niste e à la Authier-Revuz permite expli-
advindas dessa leitura? Questio- citar e discutir a relação de filiação que
nar sobre a paternidade do PAC, a teorização de Authier-Revuz entretém
por exemplo. Ou pôr em xeque a com a teorização de Benveniste, de modo
palavra de Lula, por outro; a colocar em evidência o movimento teó-
2) a locutora Dilma é modesta e, rico que Authier-Revuz coloca em prática
por isso, atribui ao locutor Lula sobre a teorização benvenistiana. Desse
esse dizer, como uma forma de se modo, parece que Authier-Revuz releva
distanciar de uma presunção de a teorização benvenistiana à instância
se autodesignar “a mãe do PAC”. de prevalência do imaginário.
Quais seriam as possíveis impli- Analisamos, na sequência, outros dois
cações advindas dessa leitura? excertos do mesmo discurso de Dilma
Asseverar o caráter e a seriedade Rousseff, a fim de analisá-los localmente,
de Dilma, por exemplo; empreender uma relação possível entre
3) a locutora Dilma, ao ativar certa esses excertos e o referido discurso sobre
rede de memória social sobre a a inauguração da Clínica da Família
disputa pela paternidade do PAC, Joãosinho Trinta em Parada de Lucas,
atribui ao locutor Lula a responsa- Rio de Janeiro.
bilidade pela designação “a mãe do Vejamos, a seguir, o excerto 2:
PAC”. Assim procedendo, isenta-se (Excerto 2) E aí é uma homenagem muito
de ter que responder sobre essa po- correta ao Joãosinho Trinta, que perce-
lêmica. Quais seriam as possíveis bia que o povo brasileiro, não é que
só queria luxo, ele merecia (Ø). O povo
implicações dessa leitura? Dilma brasileiro merece e continuará merecendo o
não se compromete com a polêmica que há de melhor, e é isso que está sendo
sobre a paternidade do PAC, por feito aqui. É um esforço para dar o que há de
melhor, em matéria de saúde, à população.
exemplo. (Presidenta Dilma Rousseff, Parada de Lu-
A partir das possíveis leituras su- cas, RJ, 21/03/2012)
pracitadas, é possível percebermos
No excerto 2, a locutora Dilma cita o
que o real da língua torna impossível
clássico bordão do carnavalesco Joãosi-
empreender uma interpretação abso-
nho Trinta, “O povo gosta de luxo. Quem
luta e totalizante. A fragmentação do
gosta de miséria é intelectual” 9, via
Eu, nesse prisma, abre o dizer à deriva
discurso indireto, e, ao fazê-lo, desloca-
do(s) sentido(s), de modo a colocar em
-o, tornando-o um outro enunciado. A
funcionamento o equívoco, o não um
mudança do verbo gostar para querer
do(s) sentido(s). Por isso, nosso intuito
imprime ao dizer de Joãosinho Trinta ou-

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tros sentidos que colocam em evidência símbolo matemático de vazio (Ø). Embo-
sentidos que afetam a locutora Dilma, ra pareça que essa anáfora reconstrói a
configurando-se como uma marca de palavra luxo como seu objeto, é possível
emergência de subjetividade. Um efeito também que essa anáfora reconstrua
que o verbo querer pode reclamar ali, querer luxo como seu objeto. Em termos
dada a posição social de Dilma como de sentido, essa possibilidade implica
presidente, seria o de uma reivindica- a continuidade do desejo do povo de
ção do povo, o que a presença do verbo querer luxo, por um lado, e, por outro, o
gostar não suscitaria. Assim, embora a merecimento do povo brasileiro pelo luxo
palavra luxo, ao ser destacada de sua em si. Assim, ter-se-ia “o povo brasileiro
enunciação específica, possa rememorar merecia luxo” ou “o povo brasileiro me-
os sentidos que ali suscitou, ela também, recia querer luxo”.
ao estabelecer outras relações com as Ainda em relação a esse excerto, vale
palavras da presente enunciação e com a pena destacar dois outros aspectos. O
a situação de sua produção, pode evocar primeiro é a relação de equivalência que
outros sentidos, como, por exemplo, o de se estabelece entre a palavra luxo e a ex-
que o povo quer o supérfluo, ou “os restos pressão o que há de melhor, produzindo
de luxo dos lixos deste imenso país”10. No entre elas um efeito sinonímico. Essa
entanto, parece que o luxo do qual fala a relação implica que o que há de melhor
presidenta se converte em algo de direito pode ser considerado luxo, supérfluo,
ao povo brasileiro, ao se relacionar ao excesso, lixo etc. O segundo aspecto, tam-
verbo merecer, e não a uma mera volição, bém relativo à referência, é a equivocida-
como o verbo querer expressa. Essa é de referencial do pronome demonstrativo
uma leitura possível que tem a ver com isso, uma vez que o seu caráter neutro
a relação forma-sentido inextricável e permite que ele refira a qualquer nomi-
com o caráter relacional do sentido, as- nal antecedente ou prospectivo. Sendo
sumidos e trabalhados por Benveniste. assim, é possível relacionar, anaforica-
Em relação ao enunciado “não é que mente, “isso” e “o povo brasileiro merece
só queria luxo, ele merece”, gostaría- e continuará merecendo o que há de
mos de destacar uma questão relativa melhor”, de tal forma que um referente
à referência, que Benveniste trabalha, inferível possível seria “é reconhecer que
em associação ao domínio semântico da o povo brasileiro merece e continuará
linguagem, como variável constitutiva merecendo o que há de melhor que está
da conversão da língua em discurso. No sendo feito aqui”. Outra possibilidade
jogo que a locutora empreende com os é relacioná-lo, cataforicamente, a “um
verbos querer e merecer, aparece, em esforço para dar o que há de melhor, em
relação ao segundo, uma anáfora zero, matéria de saúde, à população”, e, desse
sinalizada no excerto 2 com recurso ao modo, ter-se-ia: “é um esforço para dar o

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que há de melhor, em matéria de saúde, relacional entre forma-sentido, mais
à população que está sendo feito aqui”. notadamente as possibilidades que daí
Vale dizer ainda que as possibilidades podem se cristalizar, em termos de lín-
de análise, tomando por base a relação gua, para a questão da referência. Em
inextricável entre forma e sentido, não Benveniste (1969), a questão da referên-
se esgotam. Poderíamos, por exemplo, cia foi aludida como um fato enunciativo,
considerar ainda a mudança de “povo tendo em vista o papel que o locutor
brasileiro” para “população” e suas im- imprime na própria possibilidade de
plicações para a leitura-interpretação constituição desse fato. Dessa forma, a
do que Dilma diz ao (se) enunciar. No referência só se especificaria a partir da
entanto, de nossa perspectiva teórica, circunstância de discurso, quando levada
estamos explicitando, de modo contun- em conta a ocorrência sempre particular
dente e sério, a impossibilidade de qual- de uma forma linguística. Não por acaso
quer pretensão a produzir uma leitura- Benveniste (1969) relacionou a produção
-interpretação fechada. Reiteramos que, da referência, na presente instância de
para nós, a tarefa de um semanticista enunciação, ao papel que o Eu ali exerce.
consiste em expor as possibilidades de Em uma perspectiva authier-revu-
sentido, de modo fundamentado. Sendo ziana, insistindo aqui no princípio de
assim, ancorados em uma perspectiva que o Eu se apresenta ali heterogêneo,
benvenistiana, vimos mostrando, tam- fragmentado, é possível salientar que a
bém na análise desse excerto, o modo ocorrência indireta do dizer de Joãosinho
como as formas linguísticas foram Trinta produz um caso de não coinci-
agenciadas por Dilma, enquanto locuto- dência do discurso consigo mesmo. Isso
ra, quando da conversão da língua em porque, mantendo uma relação interdis-
discurso – no sentido mesmo ponderado cursiva com o dizer de Joãosinho Trinta,
por Benveniste (1970). Isso exige consi- a formulação da locutora Dilma deixa
derar que, ao se colocar no lugar de Eu, deflagrar um excesso-falta de sentido
na presente instância de enunciação, a referente à questão em tela: o povo bra-
locutora Dilma continua buscando uma sileiro merece luxo ou merece almejar,
pretensa correferência com seus (inter) de modo contínuo e eterno, o luxo?; por-
locutores; com isso, ela remete aos senti- tanto, embasados em tal possibilidade,
dos logicamente estabilizados em relação poderíamos ler que se trataria de um
a Joãosinho Trinta, com o propósito de desejo contínuo do povo brasileiro, cuja
tentar assegurar, de certa maneira, o concretude seria intangível. Ademais,
efeito pragmático de comunicação. o luxo, no dizer de Joãosinho Trinta,
Assumirmos uma perspectiva ben- apresenta-se relacionado a lixo, o que,
venistiana desta natureza exige dimen- da posição social ocupada por Dilma
sionar analiticamente o aspecto sempre na presente instância de discurso, pode

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produzir sentidos indesejáveis, não assu- (Excerto 3) E eu estou encerrando, porque
míveis, como, por exemplo, o sentido de está muito quente e, por isso, as pessoas vão
começar a passar mal. Só quero dizer para
que a Clínica da Família seria o luxo da vocês: eu tenho, então, muito orgulho de es-
população “[tirado dos lixos deste imenso tar aqui com cada um de vocês e cada uma.
país” e, portanto, seria “resto de luxo”, Por favor, a moça ali está desmaiando,
a senhora. Não dá para abrir aqui,
fantasia “para participar deste grandioso não, né? Bom, eu espero, então, que o
bal masque”, para utilizar expressões atendimento ao senhor – é um senhor
presentes no dizer de Joãosinho Trinta – seja o mais rápido possível. (Presiden-
ta Dilma Rousseff, Parada de Lucas, RJ,
quando da enunciação do clássico bordão
21/03/2012)
“O povo [brasileiro] gosta de luxo. Quem
gosta de miséria é intelectual”. No excerto 3, a locutora Dilma, já
Nesse sentido, a locutora Dilma des- anunciando o término de seu discurso,
taca a enunciação de Joãosinho Trinta desloca a sua atenção, antes endereçada
de sua situação de produção específica e ao público presente, ao voltar-se para (in-
imprime mudanças na sua formulação, ter)locutores específicos, tendo em vista o
a fim de que a enunciação de Joãosinho fato de um dos presentes ter desmaiado
Trinta “caiba” na sua enunciação; essas naquele momento do proferimento de
mudanças parecem apontar para uma seu discurso. Essa ruptura, marcada
necessidade discursiva de se fazer os linguisticamente no discurso da presi-
sentidos se tornarem outros, desemba- denta Dilma, não deixa de ter certa re-
raçando-se de seus efeitos pejorativos. lação, embora lateral, com o modo como
É uma tentativa, imaginária, de se a presidenta promove o desfecho de seu
saturar o não um dos sentidos, de modo discurso, podendo, inclusive, funcionar,
a produzir o um. No entanto, Authier- para alguns, como uma espécie de justifi-
-Revuz mostra que aquele que diz ao (se) cativa para interromper seu discurso. No
enunciar não detém controle sobre os entanto, asseveramos que essa é apenas
sentidos que seu dizer pode suscitar em uma leitura-interpretação possível.
seus (inter)locutores possíveis. Afinal, o Em relação ao comentário “Bom, eu
gesto de atribuir sentido(s) ao que se diz espero, então, que o atendimento ao se-
quando se enuncia é um gesto complexo, nhor – é um senhor – seja o mais rápido
que envolve os participantes do processo, possível” que essa ruptura comporta,
assim como as redes de memória social vale analisar dois aspectos que abrem
que os afetam, a relação estabelecida para diferentes interpretações e que,
entre as formas que participam do modo por isso, mostram uma possível relação
como se diz etc. entre a teorização benvenistiana e a te-
Consideremos, a seguir, o excerto 3: orização authier-revuziana. O primeiro
aspecto refere-se à presença do verbo
esperar nesse comentário, acarretando

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uma modalização que, na literatura lin- inaugurada por ela, de que ali estaria
guística, é denominada epistêmica, do sendo oferecido à população o que há de
enunciado: a locutora Dilma espera que o melhor em matéria de saúde, e o efeito
atendimento seja rápido, mas demonstra que a presença do verbo esperar pode
que não tem certeza de que tal se dará. produzir de que Dilma não tem certeza
Esse mesmo verbo também pode produ- de que ali será, realmente, oferecido o
zir sentido relativo a um sentimento de que há de melhor em matéria de saúde
Dilma: um desejo, como acontece, por à população.
exemplo, com enunciados do tipo “eu A partir dessas análises locais do
espero que você seja bem-sucedido”. Ou recorte do discurso da presidenta Dil-
ainda, a esperança de que a Clínica da ma Rousseff foi possível mostrar como
Família, realmente, funcione de modo a o sentido se abre à deriva, seja em
dar o que há de melhor em matéria de uma análise à la Benveniste, seja em
saúde à população. O segundo aspecto uma análise à la Authier-Revuz. Rela-
refere-se à retificação da locutora Dilma cionando, agora, essas análises locais
em relação a quem desmaiou. Trata-se de e o discurso da presidenta, é possível
um senhor e não de uma moça. Essa reti- apresentar, ao menos, duas interpreta-
ficação traz embutida nela um jogo com ções diferentes que algum (inter)locutor
sentidos que, historicamente, se ligaram pode realizar sobre o discurso de Dilma.
ao termo senhor, a saber: senhor como Uma interpretação positiva que mostra
forma de tratamento, senhor como indi- uma presidente preocupada com o povo
cação da idade do (inter)locutor e senhor brasileiro e esperançosa de que, com
como forma que se opõe à moça. Nesse a inauguração da Clínica da Família
sentido, essa retificação pode produzir Joãosinho Trinta, as famílias cariocas
outros sentidos, como uma enfatização da da região de Parada de Lucas possam ter
necessidade de um pronto atendimento, um atendimento médico público digno e
por um lado e, por outro, a solicitação de de boa qualidade. Outra interpretação,
que alguém, com autoridade para socorrê- de valor um tanto negativo, pode mostrar
-lo, atenda-o. uma presidenta que, embora preocupada
Em uma perspectiva authier-revuzia- com o atendimento médico público que o
na, a ruptura do fio discursivo promove povo brasileiro recebe, não acredita que
a emergência de uma não coincidência a inauguração de Clínicas da Família
entre a nomeação e a coisa nomeada, le- possa resolver os problemas que o aten-
vando a locutora a produzir a retificação. dimento médico público apresenta na
Assim como, de um modo abrangente e atualidade, como, por exemplo, a longa
em certo sentido, produz uma não coin- espera que a população enfrenta quando
cidência entre o dizer de Dilma sobre procura por atendimento médico público.
a Clínica da Família que está sendo

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Considerações finais locar em evidência pontos de abertura
da teoria da enunciação de Benveniste.
No decorrer deste artigo, mostramos Em seus trabalhos, a perspectiva da
que a formalização do conceito de enun- dupla heterogeneidade oportunizou a
ciação para Benveniste ([1970]1989) ela produzir relevo para a constituição
e para Authier-Revuz (1995, 2004) da enunciação como campo de aplicação
contemplou tendências particulares de entre língua, fala e sujeito. De nossa
teorização exatamente pela maneira parte, compreendemos que essa pers-
como ambos abordaram a perspectiva pectiva fundamentou a especificidade
da exterioridade da língua. Isso parece de formalização do termo enunciação em
ganhar uma tônica diferente, ao per- Authier-Revuz (1995, 2004). Enquanto,
cebermos que a natureza de endereça- em Benveniste ([1970]1989), por sua
mento de Authier-Revuz a Benveniste vez, a especificidade desse conceito se
([1970]1989) se tratou de uma filiação apresentou a partir do viés de que, no
teórica; e que, no caso dela, especifica-se próprio interior da língua, sua exteriori-
com a assunção de uma singularidade, dade ganharia operação, dimensionando,
estando inscrita na própria proposta de diante disso, a complexidade que esse
Benveniste. Nesse sentido, a filiação de interior, per se, já comportaria.
Authier-Revuz à teorização benvenistia- Cumpre ressaltar, por fim, que o
na mostra-se como um ponto de partida exercício de analisarmos aqui algu-
para movimentar a teoria da enunciação, mas conjunturas da proposta teórico-
de modo a transformá-la sem, em certo -analítica de Benveniste ([1970]1989) e
sentido, abandonar seus pilares. de Authier-Revuz (1995, 2004) buscou
Por outro lado, o delineamento dessa produzir algumas consequências para a
prática teórico-analítica singular foi formalização (aproximativa e específica,
considerado por nós como sendo tribu- ao mesmo tempo) da enunciação entre a
tário também do alcance e da eficácia abordagem de ambos. Sendo assim, e por
do programa benvenistiano, ao afetar se tratar de um caminho, julgamos que o
Authier-Revuz (1995, 2004), compor- percurso trilhado por nós na análise de
tando, assim, múltiplas e diferentes tais conjunturas guarda em seus mean-
tendências epistemológicas, como já dros riscos e direcionamentos, ao mesmo
apontamos anteriormente. Nosso exer- tempo. Uma questão parece ser certa,
cício de análise do recorte do discurso da portanto: há aqui implicado o nosso de-
presidenta Dilma Rousseff é uma forma sejo de ter, no mínimo, investido em uma
de mostrar o tributo de Authier-Revuz temática tão instigante e frutífera, além
a Benveniste e a singularidade de sua de colocar em pauta o caráter relacional
prática teórico-analítica de modo a co- e fugidio do(s) sentido(s) na estruturação
do Eu e em sua fragmentação.

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Benveniste-Authier: Conceptual 3
Um dos aspectos da herança saussuriana que Benve-
niste usufruiu, seguramente, foi o conceito de língua.
approaches and practical particularities Mais especificamente, poderíamos dizer que esse teórico
tomou o conceito de língua proposto por Saussure
(1916) como ponto de partida para vislumbrar ali, por
Abstract sua vez, a implicação de outras variáveis, como, por
exemplo, a do sentido. Cumpre especificar, neste pon-
This article aims at presenting, by to, que o princípio essencial da língua, para Saussure
theoretical–analytical counterpoint, (1916), prende-se ao fato de ela se estruturar como
the specificity that the term enuncia- um sistema de signos linguísticos, cuja descrição é
feita por meio das relações internas ao sistema. Ainda
tion has assumed in Benveniste (1965 para Saussure (1916), cada signo do sistema depende
and 1970) and Authier-Revuz (1990 dos outros signos linguísticos constantes da totalidade
and 2004). Having this in mind, we solidária. Nessa óptica, podemos notar que a língua
have read these two authors based possui mecanismos de funcionamento de base que, por
sua vez, possibilita o desenvolvimento dos processos de
on the following hypothesis: although cada código linguístico.
Authier-Revuz is theoretically con- 4
No contínuo de abordagem promovido por Benveniste,
nected to Benveniste’s concepts, it as análises concretas evidenciaram e fundamentaram a
seems to be possible to consider that conjugação entre forma-sentido, quando do momento de
analisar aspectos linguísticos de um sistema de língua
such a connection is singular. This
específico. Portanto, com isso, Benveniste radicalizou
is so because of the application that a relação entre domínio semiótico e domínio semânti-
the double heterogeneity has taken co, contemplando mais contundentemente o papel do
in her theoretical-analytical practi- agenciamento de formas linguísticas pelo locutor em
um uso específico.
ce. In addition to that, the concep-
5
Aqui o termo fala pode ser considerado como sendo os
tual perspective of Benveniste has
aspectos que, no ato de fala, unem-se à língua-forma,
to do with the structuring of the “I” ou seja, a substancialização da língua, em que língua
while Authier is concerned with the se substancializa por meio da fala na produção de
fragmentation of the same “I”. In or- sentido(s), no processo de conversão da língua em
discurso.
der to show it, we have undertaken
6
Forma de enunciação – uma modalidade enunciativa es-
a short analysis of a speech by the
pecífica, reflexiva e opacificante, tendo a particularidade
president Dilma Roussef in which de comportar um discurso sobre a enunciação, sobre
we relate Benveniste’s point of view a língua, o sentido, a nomeação, a interlocução, … - a
to Authier’s, taking into account the modalidade autonímica, por meio da qual o dizer de um
elemento X da cadeia se dobra em sua autorrepresenta-
structuring of the “I” and its frag- ção, releva, duplamente, se se pode dizer, deste campo,
mentation. forçosamente heterogêneo, em que se reencontram a
língua e a fala/o discurso, o sujeito... (Tradução Nossa).
Keywords: Enunciation. The double 7
Quando remetemos ao dizer da atual presidenta da
heterogeneity. The structuring of the República, Dilma Rousseff, utilizamos o termo discurso
em seu sentido de proferimento político.
same “I”. The fragmentation of the 8
Segundo Jubran (1996), as inserções parentéticas são
“I”. desvios do tópico discursivo com funções pragmático-
-textuais. No caso em análise, a inserção parentética
introduz uma explicação sobre a relação da atual
Notas presidenta Dilma Rousseff com o Sr. Pezão. O jogo
interacional, contido no segmento parentético, con-
textualiza a expressão meu companheiro de PAC na
1
Utilizamos o recurso parênteses no termo interlocutor(es)
situação de enunciação, modalizando-a de modo a
para marcar a reversibilidade possível, preconizada por
afetar o sentido de sua presença na enunciação. Esse
Benveniste ([1970] 1989).
jogo promove uma conexão entre o desvio parentético e
2
Referimo-nos ao artigo O aparelho formal da enuncia- o contexto do qual se desvia, de modo a mostrar que a
ção. Essa referência torna-se necessária porque o termo locutora Dilma antecipa uma necessidade discursiva de
enunciação, em Benveniste, apresenta diferentes usos explicação para tentar garantir que se estabeleça uma
e concepções no percurso de sua elaboração teórica. relação de correferência entre ela e os participantes da

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enunciação. Nesse sentido, essa inserção parentética Émile. Problemas de Linguística Geral II.
torna-se fundamental para o possível estabelecimento Campinas: Pontes, 1989.
da relação de correferência e, por conseguinte, do efeito
pragmático de comunicação. BRASIL. Discursos da Presidenta. Disponí-
9
O carnavalesco Joãosinho Trinta foi criticado, nos vel em: <http://www2.planalto.gov.br/presi-
anos 1970 e 80, por suas alegorias gigantes e por suas denta/discursos-da-presidenta>. Acesso em:
fantasias luxuosas. Em resposta a essas críticas, João-
sinho Trinta entrou para a história do carnaval e para
26 mar. 2012.
a história do Rio de Janeiro, ao dizer: “O povo gosta de
EXTRA GLOBO. Joãosinho Trinta: ‘O povo
luxo. Quem gosta de miséria é intelectual”. Isso porque,
na época, o carnavalesco reciclava materiais conside- gosta de luxo, quem gosta de miséria é
rados lixo para a produção de alegorias e fantasias, intelectual’. Disponível em: <http://extra.
com criatividade ímpar. Por exemplo, transformava globo.com/noticias/rio/joaosinho-trinta-
sobras de isopor em esculturas que pareciam feitas de -povo-gosta-de-luxo-quem-gosta-de-miseria-
marfim. Essas críticas também o levaram a dizer outros
enunciados polêmicos e impactantes para a sociedade
-intelecual-leia-outras-frases-3470006.
brasileira, como, por exemplo, o enunciado abaixo: html#ixzz1qWpnk7s5>. Acesso em: 29 mar.
“ Mendigos, desocupados, pivetes, meretrizes, loucos, 2012.
profetas, esfomeados e povo de rua: tirem dos lixos deste
imenso país restos de luxos... Façam suas fantasias e
FLORES, Valdir do Nascimento; TEIXEIRA,
venham participar deste grandioso bal masque”. Infor- Marlene. Introdução à Lingüística da Enun-
mações presentes em: <http://extra.globo.com/noticias/ ciação. São Paulo: Contexto, 2005.
rio/joaosinho-trinta-povo-gosta-de-luxo-quem-gosta-
-de-miseria-intelecual-leia-outras-frases-3470006. FLORES, Valdir do Nascimento et al. Di-
html#ixzz1qWpnk7s5>. cionário de Linguística da Enunciação. São
10
Recorte do dizer de Joãosinho Trinta. Cf. nota 9. Paulo: Contexto, 2009.
JUBRAN, Cléria C. A. S. Para uma descrição
Referências textual-interativa das funções da parente-
tização. In: KATO, Mary (Org.). Gramática
do Português Falado. Campinas: Ed. da
ANDRÈS, M. O outro. In: KAUFMANN, Unicamp; São Paulo: Fapesp, 1996. p. 339-
Pierre. Dicionário enciclopédico de psicanáli- 354. v. 5.
se: o legado de Freud e Lacan. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1996. p. 562. TEIXEIRA, Marlene. Análise de Discurso
e Psicanálise – Elementos para uma abor-
AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Ces mots qui dagem do sentido no discurso. 2. ed. Porto
vont pás de soi – Boucles réflexives et non- Alegre: EDIPUCRS, 2005.
-coïncidences du dire. Paris: Larousse, 1995.
AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Heteroge-
neidade mostrada e heterogeneidade cons-
titutiva: elementos para uma abordagem do
outro no discurso. In: AUTHIER-REVUZ,
Jacqueline. Entre a transparência e a opa-
cidade – um estudo enunciativo do sentido.
Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004.
BENVENISTE, Émile [1970]. O aparelho
formal da enunciação. In: BENVENISTE,
Émile. Problemas de Linguística Geral II.
Campinas: Pontes, 1989.
BENVENISTE, Émile [1965]. A linguagem
e a experiência humana. In: BENVENISTE,

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