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Curso Integral Logicas Do Reconhecimento
Curso Integral Logicas Do Reconhecimento
Curso Ministrado no
Departamento de Filosofia
Universidade de São Paulo
Primeiro semestre de 2017
2
WINNICOTT, Donald; Jeu et réalité: l’espace potential, Paris: Gallimard, 1987, p. 44
3
Idem
4
Idem, p. 50
que se traduz no sentimento de simplesmente nã o existir ou de ter uma
existência profundamente mutilada, como alguém preso entre a vida e a morte.
Ou seja, há em todos esses casos, de formas mú ltiplas, com intensidades
variá veis, a experiência de que a possibilidade de existência está inviabilizada. O
que nos coloca uma questã o da maior importâ ncia e que certamente nã o será de
fá cil resposta, uma questã o que cada uma dessas situaçõ es nos coloca, a saber: o
que fenô menos como estes podem nos dizer a respeito do que entendemos por
“existência”?
Claro, há sempre aqueles que darã o de ombros a questõ es como esta
dizendo que a determinaçã o das condiçõ es de existência é um problema trivial
que se reduz a verificaçã o de enunciados constatativos. Eles dirã o entã o que algo
existe na medida que pode ser verificado pela percepçã o em condiçõ es normais.
A percepçã o constataria o que está lá , pronto para ser desvelado. E poderíamos
ainda naturalizar tais “condiçõ es normais” afirmando que elas corresponderiam
a padrõ es normativos gerais dos ó rgã os humanos. Padrõ es estes que, por sua
vez, poderiam ser potencializados a partir de instrumentos e condiçõ es de
laborató rio.
Mas poderíamos também dizer que a determinaçã o das condiçõ es de
existência nã o é dependente de enunciados constatativos. Nó s nã o apenas
constatamos algo quando dizemos que algo existe. Nó s produzimos algo, ou seja,
tratam-se de enunciados performativos. Muitas vezes, dizer que algo existe é
inclui-lo em um horizonte de experiência do qual ele nã o fazia parte, modificar
nã o apenas o estatuto de algo, mas a pró pria estrutura de tal horizonte. Dizer que
algo existe é inseri-lo em outra rede de efeitos. Pois a existência nã o é apenas um
fato, ela é um valor. Isto implicaria, entre outras coisas, colocar em questã o uma
das mais fundamentais crenças do senso comum, a saber, a crença em uma
natureza meramente especular da percepçã o. Como se nossa percepçã o fosse
apenas um espelho do mundo, que pode ficar opaco à s vezes, mas que também
pode ser polido até um grau elevado de translucidez.
Contra tal crença na especularidade da percepçã o poderíamos insistir
como o mundo humano estabelece uma relaçã o profunda entre existência e algo
que devemos chamar aqui, algo que será o verdadeiro objeto de nosso curso e,
por isto, exigirá um movimento lento e detalhado de definiçã o, de
“reconhecimento”. Se a existência nã o é um fato, mas um valor é porque toda
existência deve ser, necessariamente, existência reconhecida.
Neste sentido, poderemos dizer que aquilo em comum nos casos que
trouxe a vocês é: todos eles explicitam um sofrimento de inexistência devido à
impossibilidade de realizaçã o de exigências de reconhecimento. Ao sair à s ruas
exigindo “respeito” é como se falá ssemos que até agora nã o existimos como
sujeitos políticos, nã o fomos reconhecidos no interior das dinâ micas sociais de
poder. Ao nã o admitir que certas vidas nã o possam ser objetos de luto, estamos a
dizer ser inaceitá vel que elas passem à invisibilidade, que lhes sejam negadas as
condiçõ es de reconhecimento. Ao dizer que para existir, ela precisava ser
reconhecida como informe, ser reconhecida para além da figura de uma boa
jogadora que joga o jogo dos outros, a paciente de Winnicott adoece por viver em
um mundo no qual as condiçõ es de reconhecimento de uma dimensã o
fundamental de seu desejo foi negada.
Que este sentimento de reconhecimento negado perpasse a histó ria de
nosso desejo, assim como nossa existência política e as possibilidades de
nomeaçã o no interior da linguagem, isto apenas demonstra como nã o estamos
diante de dimensõ es de experiência completamente autô nomas entre si e que
cabe à filosofia reconstruir o sistema de implicaçã o entre campos que nossa
época gostaria de nos fazer acreditar que sã o radicalmente distintos. O que já
pode servir como uma primeira razã o para analisarmos conceitos
aparentemente genéricos como “reconhecimento”. Pois talvez sua genericidade
tenha de fato uma funçã o.
Um retorno a Hegel
7
HONNETH, Axel; “Redistribution as recognition: a response to Nancy Fraser” in: HONNETH, Axel
and FRASER, Nancy; Redistribution or recognition, Nova York: Verso, 2003, p. 131
8
Idem, p. 132
emancipaçã o. Algo que deve ser politicamente confirmado, e nã o politicamente
desconstruído.
Neste ponto faz sentido retornar a Hegel. De fato, é isto que gostaria de
propor a vocês na primeira parte de nosso curso, a saber, um retorno a Hegel.
Gostaria de mostrar como toda sua teoria do reconhecimento é construída como
uma crítica exatamente ao cará ter regulador da individualidade moderna e seus
conceitos de pessoa, identidade e personalidade. Talvez vocês já devam ter
tomado conhecimento da tese de que a filosofia hegeliana seria a elaboraçã o
filosó fica de três acontecimentos maiores para a formaçã o da individualidade
moderna e seu princípio de subjetividade, a saber, a reforma protestante e sua
noçã o de interioridade, a revoluçã o francesa e seu sujeito universal de direitos, a
ascensã o do livre-mercado e seus indivíduos que sã o proprietá rios de si, que
definem sua liberdade sobretudo como auto-pertencimento (self-ownership).
Sem desconsiderar a relaçã o da filosofia hegeliana à elaboraçã o
especulativa de tais acontecimentos histó ricos, gostaria de mostrar como há
outra leitura possível. Digamos que Hegel elabora filosoficamente a reforma
protestante, mas a partir de sua noçã o de conflito e resistência. Da mesma forma,
a revoluçã o francesa, mas sua noçã o de “revoluçã o” que abala o enraizamento
das prá ticas e modos de julgamentos em costumes, tradiçõ es e transmissõ es. Por
fim, Hegel leva em conta a ascensã o do livre-mercado, mas a partir de sua
dinâ mica paradoxal de produçã o de riqueza e aumento da espoliaçã o, ou seja, de
sua regulaçã o social imperfeita. Isto cria uma dupla tarefa de, ao mesmo tempo,
saber dar visibilidade a uma subjetividade capaz de colocar em questã o tudo o
que aparecia arraigado em há bitos e tradiçõ es, abrindo espaço a uma potência de
negaçã o até entã o nunca vista, e produzir institucionalidades que nã o repitam a
estrutura paradoxal do livre-mercado.
Tal situaçã o produzirá a emergência de um conceito de sujeito
absolutamente singular que será recuperado em momentos maiores do
pensamento dos séculos XIX e XX. Neste sentido, gostaria de aproximar tais
questõ es que veremos em Hegel do horizonte de constituiçã o da crítica de Marx
à alienaçã o. Ou seja, trata-se de afirmar que há uma teoria do reconhecimento na
base da crítica marxista das sociedades capitalistas e de seus mecanismos de
alienaçã o no trabalho. Teoria que só pode ser legível na linha direta das relaçõ es
entre Hegel e Marx. A crítica social de Marx nã o é apenas uma crítica da
espoliaçã o econô mica, sua critica da propriedade nã o é apenas uma crítica
econô mica. Ela é a reflexã o sobre um regime de sofrimento social, a saber, a
alienaçã o, resultante de bloqueios em processos de reconhecimento. Por isto, ela
nã o é apenas uma crítica econô mica, mas também uma crítica política e mesmo
moral.
Proposiçã o que ilustra como as individualidades seriam animadas por algo como
uma força de impulso dirigido ao excesso. Nã o pode haver bens comuns porque
há um desejo excessivo no seio dos indivíduos, desejo resultante da “natureza
ter dado a cada um direito a tudo” 13 sem que ninguém esteja assentado em
alguma forma de lugar natural. Como lembrará Leo Strauss, a respeito de
Hobbes: “o homem espontaneamente deseja infinitamente” 14. Tal excesso
aparece, necessariamente para Hobbes, nã o apenas através do egoísmo ilimitado,
mas também através da cobiça em relaçã o ao que faz o outro gozar, da ambiçã o
por ocupar lugares que desalojem aquele que é visto preferencialmente como
concorrente. Pois o excesso, como é traço comum de todos os homens, só pode
acabar como desejo pelo mesmo. “Muitos, ao mesmo tempo, têm o apetite pelas
mesmas coisas”15. A guerra será inevitá vel se lembrarmos que o direito natural
(jus naturalis) é o direito de tudo fazer para preservar minha pró pria natureza,
ou seja, minha vida. Da mesma forma, a lei natural (lex naturalis) prescreve a
proibiçã o de fazer e aceitar aquilo que è destrutivo à minha vida. Assim, Hobbes
descreve como o aparecimento histó rico de uma sociedade de indivíduos
liberados de toda forma de lugar natural ou de regulaçã o coletiva
predeterminada só pode ser compreendido como o advento de uma “sociedade
da insegurança total”16.
Notemos pois como o conflito entre indivíduos se dá como consequência
necessá ria da expressã o da natureza de seus desejos. É na verdade uma reflexã o
sobre o desejo como disposiçã o humana fundamental que inaugura uma das
bases da filosofia política moderna. O que demonstra como o desejo é, para os
modernos, uma categoria política por excelência. Segundo Hobbes, os desejos sã o
miméticos. Deseja-se o mesmo que o outro, vejo como o outro deseja para saber
como desejar, ou seja, há desde o início uma certa forma de dependência entre os
seres humanos, mas esta racionalidade mimética nã o se traduz em empatia ou
tendência à cooperaçã o. Ela se traduz em rivalidade e violência direta. É a
12
HOBBES, Thomas; Do cidadão, op. cit., p. 7
13
Idem, p. 30
14
STRAUSS, Leo; The political philosophy of Thomas Hobbes, University of Chicago Press, 1963, p.
10
15
HOBBES, Do cidadão, p. 30
16
CASTEL, Robert; L’insécurité sociale: qu’est-ce qu’être protégé?, Paris: Seuil, 2003, p. 13
expressã o do desejo que coloca os indivíduos na rota de uma luta de vida ou
morte. No entanto, esta luta nã o pode ser regulada pelos pró prios contendores.
Dela, nã o emerge nada a nã o ser um impasse, já que todos os indivíduos sã o
portadores de força relativamente igual. A força maior de um nã o irá muito mais
além do que a força de dois ou três unidos. A luta só pode ser superada entã o
através da introduçã o de um terceiro elemento, que neutraliza a rivalidade da
relaçã o dual, a saber, através da instauraçã o do direito e do Estado.
No entanto, há de se entender melhor qual é a natureza deste direito. É ele
expressã o da liberdade dos indivíduos e sua capacidade de criar instituiçõ es? Ou
é o Estado a expressã o de uma coerçã o consentida, de uma restriçã o legítima
como condiçã o para a nã o desagregaçã o do laço social? Qual a natureza do pacto
que produz o advento do Estado?
A fim de responder tal questã o percebamos que é contra a destrutividade
amedrontadora desse excesso que coloca os indivíduos em perpétuo movimento,
fazendo-os desejar o objeto de desejo do outro, levando-os facilmente à morte
violenta, que se faz necessá rio o Estado. Ou seja, como nenhuma forma de pacto
imanente entre indivíduos é possível, como a pró pria figura do indivíduo
portador de interesses já é a consolidaçã o da inevitabilidade do conflito, já que
luto pelos meus interesses a despeito dos interesses do outro, nã o haverá outra
saída para a regulaçã o social que o aparecimento de uma força externa chamada
de “governo” capaz de estabelecer um pacto feito da auto-restriçã o mú tua e da
limitaçã o de si.
Notemos, no entanto, um ponto importante. Este estado de natureza é
composto de indivíduos que parecem naturalizar princípios de conduta baseados
na concorrência, no sentimento de posse e na propriedade. Daí porque Hobbes
dirá que os três principais motivos de conflito sã o: a concorrência, a
desconfiança e a gló ria. Ou seja, e esta é uma tese avançada pela primeira vez por
Macpherson no clá ssico A teoria do individualismo possessivo, tudo se passa como
se Hobbes tivesse naturalizado a emergência do indivíduo moderno liberal em
situaçã o de ator animado pela exigência de reconhecimento de seus interesses,
colocando-o no fundamento de uma antropologia normativa do humano. Mesmo
sem ser exatamente um teó rico liberal, já que Hobbes submete o direito da
propriedade individual à s condiçõ es de sobrevivência do Estado, vemos
claramente como sua teoria política é, na verdade, resultado da naturalizaçã o
antropoló gica dos pressupostos imanentes à individualidade liberal.
É verdade que Hobbes também afirma: “As paixõ es que fazem os homens
tenderem para a paz sã o o medo da morte, o desejo daquelas coisas que sã o
necessá rias para uma vida confortá vel e a esperança de consegui-las por meio do
trabalho”20. Ou seja, parece nã o haver apenas um afeto, mas três: medo, desejo e
esperança. Da mesma forma, ele lembra que, sendo a força da palavra demasiado
fraca para levar os homens a respeitarem seus pactos, haveria duas maneiras de
reforçá -la: o medo ou ainda o orgulho e a gló ria por nã o precisar faltar com a
palavra. Tais consideraçõ es parecem abrir espaço à circulaçã o de outros afetos
sociais, como a esperança e um tipo específico de amor-pró prio ligado ao
reconhecimento de si como sujeito moral. Renato Janine Ribeiro, por exemplo,
insistirá que “pode-se reduzir a pares a multiplicidade das paixõ es: medo e
esperança, aversã o e desejo ou, em termos físicos, repulsã o e atraçã o. Mas nã o é
possível escutar a filosofia hobbesiana pela nota só do medo, que nã o existe sem
o contraponto da esperança”21.
17
SCHMITT, Carl; Le Léviathan dans la doctrine de l’État de Thomas Hobbes: sens et échec d’un
symbole politique, Paris: Seuil, 2002, p. 95.
18
BODEI, Remo; Geometria delle passioni: Paura, speranza, felicità – filosofia e uso politico, Milão:
Feltrinelli, 2003, p. 86.
19
ESPOSITO, Roberto; Communitas, op.cit., p. 6
20
HOBBES, Thomas; Leviatã, p. 111
No entanto, a antropologia hobbesiana faz com que tais afetos circulem
apenas em regime de excepcionalidade, o que fica claro em afirmaçõ es como: “de
todas as paixõ es, a que menos faz os homens tender a violar as leis é o medo.
Mais: excetuando algumas naturezas generosas, é a ú nica coisa que leva os
homens a respeitá -las”22. Faltaria à maioria dos homens a capacidade de se
afastar da força incendiá ria das paixõ es e atingir esta situaçã o de esfriamento na
qual o vínculo político nã o precisaria fazer apelo nem ao temor nem sequer ao
amor (que, enquanto modelo para a relaçã o com o Estado, acaba por construir a
imagem da soberania à imagem paterna, modelando a política na família 23). Ou
seja, o esfriamento das paixõ es aparece como funçã o da autoridade soberana e
condiçã o para a perpetuaçã o do campo político, mesmo que tal esfriamento se
pague com a moeda da circulaçã o perpétua de outras paixõ es que parecem nos
sujeitar à contínua dependência.
Por isto, mais do que expressã o de uma compreensã o antropoló gica
precisa, que daria a Hobbes a virtude do realismo político resultante da
observaçã o desencantada da natureza humana, seu pensamento possui como
horizonte uma ló gica do poder pensada a partir de uma limitaçã o política, no
caso, a impossibilidade de pensar a política para além dos dispositivos que
transformam o amparo produzido pela segurança e pela estabilidade em afeto
mobilizador do vínculo social. Política na qual “o protego ergo obligo é o cogito
ergo sum do Estado”24. Difícil nã o chegar em uma situaçã o na qual esperamos
finalmente por “um quadro jurídico no interior do qual nã o exista realmente
mais conflitos – apenas regras a colocar em vigor” 25. O que fica claro em
afirmaçõ es como:
A função do amparo
Mas nos atentemos para outro aspecto do nosso problema. Ele diz
respeito ao modelo geral de gestã o social quando as exigências de
reconhecimento sã o bloqueadas. Pois o Estado nã o será apenas a instâ ncia que
opera a repressã o. Ele será o gestor da lembrança contínua de que há algo a se
reprimir. Ele nã o será apenas o bombeiro da vida social, mas também o pró prio
piromaníaco. Pois o fato fundamental no interior desta relaçã o de nã o-relaçõ es é
a necessidade que a legitimaçã o da soberania pela capacidade de amparo e
segurança tem da perpetuaçã o contínua da imagem da violência desagregadora à
espreita, da morte violenta iminente caso o espaço social deixe de ser controlado
por uma vontade soberana de amplos poderes. O segredo da legitimidade do
Estado é a perpetuaçã o da iminência da guerra de todos contra todos. O
fundamento fantasmá tico deste Estado será a figura do conflito social reduzida à
condiçã o de guerra de todos contra todos. Daí uma conclusã o importante de
Agamben: “A fundaçã o nã o é um evento que se cumpra uma vez por todas in illo
tempore, mas é continuamente operante no estado civil na forma da decisã o
soberana”28. Este mecanismo de fundaçã o que necessita ser continuamente
reiterado diz muito a respeito da continuidade do medo como força de reiteraçã o
da relaçã o do Estado ao seu fundamento.
Sendo o Estado nada mais que “a guerra civil constantemente impedida
através de uma força insuperá vel”29, ele precisa provocar continuamente o
sentimento de desamparo, da iminência do estado de guerra, transformando-o
imediatamente em medo da vulnerabilidade extrema, para assim legitimar-se
como força de amparo fundada na perpetuaçã o de nossa dependência. Na
verdade, devemos ser mais precisos e lembrar que a autoridade soberana tem
sua legitimidade assegurada nã o apenas por instaurar uma relaçã o baseada no
medo para com o pró prio soberano, mas principalmente por fornecer a imagem
do distanciamento possível em relaçã o a uma fantasia social de desagregaçã o
imanente no laço social e de risco constante da morte violenta. Uma fantasia
social que Hobbes chama de “guerra de todos contra todos”. É através da
perpetuaçã o da iminência de sua presença que a autoridade soberana encontra
seu fundamento. É alimentando tal fantasia social que se justifica a necessidade
do “poder pacificador” da representaçã o política, ou seja, do abrir mã o de meu
direito natural em prol da constituiçã o de um representante cujas açõ es
soberanas serã o a forma verdadeira de minha vontade. Só assim o medo poderá
“conformar as vontades de todos”30 os indivíduos, como se fosse o verdadeiro
escultor da vida social.
É importante ainda salientar que essa fantasia pede uma dupla
fundamentaçã o. Por um lado, ela apela à condiçã o presente dos homens. Nã o
sendo uma hipó tese histó rica, o estado de natureza é uma inferência feita a
partir da aná lise das paixõ es atuais. Isto leva comentadores como Macpherson a
afirmar que, longe de ser uma descriçã o do ser humano primitivo, ou do ser
humano aparte de toda característica social adquirida, o estado de natureza
seria: “a abstraçã o ló gica esboçada do comportamento dos homens na sociedade
civilizada” 31.
Hobbes pede que lembremos como “todos os países, embora estejam em
paz com seus vizinhos, ainda assim guardam suas fronteiras com homens
armados, suas cidades com muros e portas, e mantém uma constante vigilâ ncia”.
Lembra ainda como os “particulares nã o viajam sem levar sua espada a seu lado,
para se defenderem, nem dormem sem fecharem – nã o só as portas, para
proteçã o de seus concidadã os – mas até seus cofres e baú s, por temor aos
28
AGAMBEN, Giorgio; Homo sacer, Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001, p. 115.
29
SCHMITT, Carl; Le Léviathan dans la doctrine de l’État de Thomas Hobbes: sens et échec d’un
symbole politique, op. cit., p. 86
30
HOBBES, Thomas; Leviatã, op. cit., p. 147
31
MACPHERSON, C.B.; The political theory of possessive individualism: Hobbes to Locke, Oxford
University Press, 1962, p. 26.
domésticos”32. Mas notemos um ponto central. A espada que carrego, as trancas
na minha porta e em meus baú s, os muros da cidade na qual habito sã o índices
nã o apenas do desejo excessivo que vem do outro. Eles sã o índices indiretos do
excesso do meu pró prio desejo. Como se Hobbes afirmasse: “olhe para suas
trancas e você verá nã o apenas seu medo em relaçã o ao outro, mas o excesso de
seu pró prio desejo que lhe desampara por querer lhe levar a situaçõ es nas quais
imperam a violência e o descontrole da força”. A retó rica apela aqui a uma
universalidade implicativa.
De toda forma, como nã o se trata de permitir que configuraçõ es atuais
sejam, de maneira indevida, elevadas à condiçã o de invariante ontoló gica, faz-se
absolutamente necessá rio também a produçã o contínua dessas construçõ es
antropoló gicas do exterior caó tico e do passado sem lei. Ou seja, mesmo nã o
sendo uma hipó tese histó rica, nã o há como deixar de recorrer à antropologia
para pensar o estado de natureza. Assim, aparecem construçõ es como esta que
leva Hobbes a acreditar que:
sabemos disso também tanto pela experiência das naçõ es selvagens que
existem hoje, como pelas histó rias de nossos ancestrais, os antigos
habitantes da Alemanha e de outros países hoje civilizados, onde
encontramos um povo reduzido e de vida breve, sem ornamentos e
comodidades, coisas essas usualmente inventadas e proporcionadas pela
paz e pela sociedade34.
32
HOBBES, Thomas; Do cidadão, p. 14.
33
Idem, p. 110.
34
HOBBES, Thomas; Os elementos da lei natural e política, São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 70
sã o incompreensíveis quando nã o se sabe quem deve ser, in concreto,
atingido, combatido, negado e refutado com tal palavra 35.
35
SCHMITT, Carl; O conceito de político – Teoria do partisan, Belo Horizonte: Del Rey, 2008, p. 32
Lógicas do reconhecimento
Aula 3
Na aula passada, vimos a emergência de uma teoria dos laços sociais fundada na
irredutibilidade da noçã o de conflito, mas que nã o dava espaço ao aparecimento
de uma dinâ mica de desdobramentos de tais conflitos no interior de processos
de reconhecimento. Tratava-se da teoria política de Thomas Hobbes. Insisti com
vocês que Hobbes partia da defesa de uma violência imanente à relaçã o entre
indivíduos no estado de natureza. Violência esta responsá vel pelo horizonte de
uma guerra de todos contra todos que nos levaria tendencialmente à
despossessã o generalizada, à morte violenta e a relaçõ es sempre concorrenciais.
Vimos como Hobbes mobilizava uma verdadeira psicologia do desejo e dos afetos
como fundamento de suas reflexõ es políticas. Diante desta violência imanente, o
estado e o poder soberano apareciam como garantes de uma relaçã o de termos
(os indivíduos) sem-relaçã o entre si. Sua legitimidade estaria fundada em um
pacto social de proteçã o e de amparo que, ao mesmo tempo, era uma forma de
gestã o e incitaçã o do medo como afeto político central. No interior deste pacto, a
natureza humana deveria ser reprimida, sua agressividade e violência
ontoló gicas deveriam ser excluída do horizonte de reconhecimento social. Assim,
consolidava-se uma clivagem entre minha persona como cidadã e cidadã o do
estado e minha psicologia, sempre prestes a fazer reemergir as condiçõ es
pró prias ao estado de natureza.
Como havia dito na aula passada, Hobbes nos era importante por fornecer
o quadro de problemas que uma teoria do reconhecimento deverá lidar. Pois ela
deverá , inicialmente, quebrar o vínculo entre antropologia da violência e
legitimaçã o do Estado. Isto implica operar duas saídas possível. A primeira seria
fornecer uma outra imagem antropoló gica, uma outra psicologia, insistindo, por
exemplo, na imanência de relaçõ es de empatia a fundar campos intersubjetivos
cuja primeira expressã o é nã o-conflitual. Retira-se assim o conflito da posiçã o de
fundamento da existência social, deslocando-o para o que pode ser regulado
devido à presença de um horizonte normativo de experiências de empatia. Esta
empatia pode estar presente na vida social, sendo necessá ria apenas reconstruir
as bases normativas de nossa sociedade a partir do que está presente em vá rios
campos da vida social, como fará Axel Honneth. Ou ela pode estar soterrada
pelos processos de modernizaçã o social, sendo necessá rio, de alguma forma,
recuperar a força de coesã o do que foi reprimido em sua origem. Esta é, por
exemplo, a estratégia de Rousseau e de sua outra imagem do estado de natureza
baseado na compaixã o e na expressã o.
Haverá , no entanto, ainda outro caminho. Ele consistirá em conservar a
compreensã o da centralidade do conflito como dado instaurador dos laços
sociais, mas procurando constituir um conceito mais amplo de conflito cuja
expressã o nã o se reduza à despossessã o dos bens e à morte violenta. Para tanto
será necessá rio, por exemplo, recusar o ponto de partida individualista que
vemos em Hobbes, insistindo na anterioridade das relaçõ es a desapeito de seus
termos e, ao mesmo tempo, retomando a teoria do desejo que serve de base a
Hobbes a fim de inseri-la no interior de uma noçã o mais ampla de “negatividade”
cuja satisfaçã o e reconhecimento poderá se dar de formas variadas, como tentará
fazer Hegel. Ou seja, a estratégia aqui consiste também em modificar a base
antropoló gica da política, mas sem recusar a centralidade ontoló gica da noçã o de
conflito. Dentro desta dinâ mica, poderemos ainda reinserir o conflito no interior
de uma ló gica na qual a célula elementar nã o sã o as auto-afirmaçõ es individuais,
mas a experiência de pertencimento a uma classe, como faz Marx ao redescrever
a noçã o da sociedade como guerra civil diferida a partir da concepçã o reguladora
de luta de classes, e nã o mais a partir da noçã o de guerra de todos contra todos.
Ao final de nossa ú ltima aula eu dissera que vamos analisar cada uma
dessas alternativas. Neste sentido, gostaria de utilizar a aula de hoje para falar da
ausência de uma ló gica do reconhecimento em Jean-Jacques Rousseau. Mesmo
sendo o teó rico que primeiro descreverá a natureza do sofrimento social que
mobiliza sujeitos em direçã o ao reconhecimento, a saber, a alienaçã o, a teoria
política de Rousseau nã o será uma teoria configurada a partir de problemas
ligados à s lutas por reconhecimento. Mesmo intervendo a imagem antropoló gica
fornecida por Hobbes no estado de natureza, insistindo na importâ ncia da
compaixã o e da empatia, seu contratualismo, assim como a centralidade de sua
noçã o de “vontade geral”, exigirã o um certo esquecimento da natureza humana
que encontrará expressã o apenas, de forma compensató ria, no campo das artes
(em especial na mú sica), e nã o no campo da política. Por isto, nã o haverá
dinâ micas de reconhecimento no campo social. Gostaria de expor de maneira
sistemá tica alguns pontos centrais da teoria de Rousseau importantes para nosso
debate.
História da queda
37
Idem, p. 140
Mas, sendo assim, poderíamos nos perguntar como se dá a saída do
estado de natureza, o que significa a instauraçã o da vida social. Rousseau se
serve de dois fenô menos para descrever a emergência da vida social e da
corrupçã o desta relaçã o imanente à natureza. O primeiro é aquilo que ele chama
de “faculdade de aperfeiçoamento”. Só os humanos teriam esta faculdade que nos
empurra a um aperfeiçoamento constante, enquanto os animais se
desenvolveriam apenas até os limites de seus pró prios instintos. No entanto, se
na aurora do iluminismo a perfectibilidade era vista como a fonte da criaçã o e
felicidade humana, em Rousseau ela é a causa de todos seus males:
38
Idem, p. 142
39
STAROBINSKI, Jean: Rousseau: a transparência e o obstáculo, p. 36
40
Idem, p. 23
provisõ es para dois, e igualdade desapareceu, a propriedade foi
introduzida, o trabalho adveio necessá rio e as vastas florestas se
transformaram em campos rudes que deveriam ser arados com o suor
dos homens e nos quais vimos rapidamente a miséria e a escravidã o
germinar e crescer como musgos41.
41
ROUSSEAU, Idem, p. 171
42
Idem, p.173
43
Idem, p. 169
reconhecimento que o humano realizaria sua essência, mas através do retorno à
voz da natureza, o que só é possível ainda na dimensã o da experiência estética e,
em especial, da expressã o musical.
Isto é resultado direto do ponto de partida de Rousseau. Da mesma
maneira que Hobbes, Rousseau aceita que a celular elementar da vida social sã o
os indivíduos, no seu caso, indivíduos em relaçã o de imanência à natureza. Ou
seja, temos primeiros indivíduos isolados e, em um segundo momento, o artifício
da criaçã o de relaçõ es. Neste sentido, a liberdade natural implica certo modo de
relaçã o a si que podemos descrever como “relaçõ es de auto-pertencimento”,
relaçõ es nas quais afirmamos o fato de se pertencer apenas a si mesmo, o que a
vida social nã o pode realizar. No má ximo, a vida social pode construir uma forma
compensató ria de autonomia baseada na emergência de uma vontade geral. É
desta forma compensató ria que fala O contrato social.
Um corpo político
44
ROUSSEAU, Jean-Jacques; Le contrat social, p. 364
45
Idem,
46
Isto talvez nos explique porque, na justificação do contrato social: “a linguagem de Rousseau com
freqüência é tão abertamente utilitarista quanto a de Hobbes. Isto é o que você perde, mas avalie, em
compensação, o que você ganha” (LEBRUN, Gerard; “Contrato social ou negócio de otário?” In: A
filosofia e sua história, São Paulo: Cosac e Naify, 2006, p. 226). Por isto, se aceitamos entrar no
contrato social: “é por ter lido, no segundo livro, que as “pessoas privadas” que compõem a “pessoa
pública” permanecem “naturalmente independentes dela”, que elas continuam portanto a desfrutar um
direito natural enquanto homens e que “o Soberano não pode infligir aos súditos nenhuma que seja
inútil à comunidade” (idem, p. 230).
vida e seu ser; de substituir uma existência física e independente que
todos nó s recebemos da natureza por uma existência parcial e moral47.
Como lembrará bem Bento Prado Jú nior, é necessá rio uma relaçã o à
exterioridade para que a vida social possa ser instituída em sua proximidade à
natureza: “apenas o estrangeiro que nã o partilha dos preconceitos e dos
interesses dessa humanidade local, pode aproximar-se da condiçã o
extraordiná ria que é a do legislador48.
Mas o que acontece como esta natureza humana deixada para trá s? Ela
ainda terá alguma força de implicar o campo de experiência humana? Pois
podemos nos perguntar se esta transformaçã o produzida pelo legislador, se esta
mudança da pró pria natureza humana nã o seria sem produzir uma certa
nostalgia social. A vida política nã o parece nã o pode dar conta desta nostalgia. No
má ximo, ela transmutar a experiência de auto-pertencimento pró pria ao estado
de natureza em desejo de igualdade (forma ú nica de impedir a servidã o) e de
autonomia. Por isto, em algum nível, ela ainda fala aos humanos como indivíduos
marcados pela experiência do individualidade possessivo
No entanto, há um ponto no qual a vida política se deixa aproximar da voz
da natureza, no qual esta nostalgia se transmuta em proximidade a uma
linguagem de pura presença. Este ponto se dá através da mú sica e do uso da
mú sica como paradigma para a reinstauraçã o da ordem social.
Música e reconhecimento
47
Idem, p. 381
48
PRADO JR., Bento; A retórica de Rousseau, p. 103
49
DAHLHAUS, L´idée de la musique absolue, p. 49
Quando pensamos que, de todos os povos da terra, todos o que têm uma
mú sica e um canto, os europeus sã o os ú nicos que têm uma harmonia,
acordes, achando esta mistura agradá vel ; quando pensamento que o
modo durou tantos séculos sem que, em todas as naçõ es que cultivaram
as belas-artes, nenhuma tenha conhecido esta harmonia, que nenhum
animal ou pá ssaro, nenhum ser na natureza produziu outro acorde que o
uníssono ou outra mú sical que a melodia ; que as línguas orientais, tã o
sonoras, tã o musicais, exercidas com tanta arte, nunca guiaram estes
povos voluptosos e apaixonados em direçã o à nossa harmonia ; que sem
ela suas mú sicas tiveram efeitos tã o prodigiosos ; que com ela a nossa
tenha efeitos tã o fracos ; que, enfím, estava reservado aos povos do norte,
cujos ó rgã os duros e grosseiros sã o mais tocados pelos ruídos e explosõ es
de vozes do que pela doçura dos acentos e melodias das inflexõ es,
fazerem esta grande descoberta e definí-la como princípio a todas regras
da arte ; quando, digo eu, levamos tudo isto em consideraçõ es, é muito
difícil nã o desconfiar que toda nossa harmonia é uma invençã o gó tica e
bá rbara a respeito da qual nunca seríamos avisados se fô ssemos mais
sensíveis as verdadeiras belezas da arte e à mú sica realmente natural 50.
50
ROUSSEAU, Dictionnaire de musique
51
ROUSSEAU, Jean-Jacques; Dictionnaire de musique, Paris: Actes Sud, 2007, p. 208
52
Idem, p. 207
recuperaçã o de dimensõ es sociais de autenticidade. Rousseau é consciente de
que a alienaçã o social é indissociá vel da degradaçã o da linguagem no espaço
político. Lembremos de como termina seu Ensaio sobre a origem das línguas:
“toda língua com a qual nã o nos fazemos escutar pelo povo em assembleia é uma
língua servil; é impossível que o povo seja livre e fale uma língua destas”53. Uma
língua que o povo em assembleia nã o escuta é aquela desprovida de eloquência,
afastada da persuasã o por separar o povo, por ser apenas uma fala em nome
pró prio, reduzida a sua condiçã o instrumental de descriçã o de interesses. “A
primeira má xima da política moderna”, dirá Rousseau, é: “os sujeitos devem
permanecer separados” e é a língua degradada à sua dimensã o instrumental e
comunicacional que os separa. A língua do povo em assembleia, ao contrá rio, é
aquela mais pró xima do canto e da mú sica. De certa forma, para Rousseau, não
há assembleia sem música.
No entanto, a força política da mú sica exige a recusa de sua autonomia, a
recusa do desenvolvimento imanente de seus materiais. Para preencher sua
força política pró pria, a mú sica deve se submeter a uma moral, ela nã o deve criar
um ethos a partir do desenvolvimento imanente de seus materiais. Por isto,
trata-se de exigir a fundamentaçã o dos modos de expressã o em um solo natural e
originá rio pensado como horizonte normativo estrito. Este solo natural nã o é um
campo de singularidades em produçã o, mas um campo de visibilidade da voz da
natureza. Pois: “a força da linguagem nã o reside no poder de fornecer imagens
das coisas, mas no poder de pô r a alma em movimento, de colocá -la numa
disposiçã o que torne visível a ordem da natureza. A linguagem imita a natureza
quando colabora com a ordem, quando restitui, no interior da humanidade, a
ordem que seu nascimento tinha contribuído para apagar”54.
53
Idem, Essai sur l’origine des langues,
54
PRADO JR., Bento; A retórica de Rousseau, p. 161
Lógicas do reconhecimento
Aula 4
55
PINKARD, Terry; The sociality of reason, p. 9
Hegel partilha com pó s-kantianos, como Fichte e Schelling, o diagnó stico
de que viveríamos em um momento histó rico de cisã o resultante da elevaçã o do
princípio de subjetividade a condiçã o de fundamento da razã o moderna, assim
como de seus modos de racionalizaçã o social. Este princípio de subjetividade,
com sua condiçã o de fundamento, exige que tudo aquilo que aspira validade seja
submetido à força da reflexã o. Ele faz com que ser e reflexã o seja pois o mesmo.
No entanto, isto parece inicialmente submeter o ser à dimensã o estrita daquilo
que é ser-para-o-sujeito, e nã o ser em-si. Daí diagnó sticos como este que
encontramos no prefá cio da Fenomenologia:
Todas as revoluçõ es, nas ciências nã o menos que na histó ria mundial,
provêm (kommen) somente de que o Espírito agora, para entender e
perceber a si, para tomar posse de si, modificou (geändert hat) suas
categorias, apreendendo-se (sich erfassend) mais verdadeira e
profundamente, mais intimamente e com mais coesã o (einiger)”58.
58
HEGEL, Enciclopédia, par. 246
59
KANT, Crítica da razão pura, B VIII/B XI
Estas afirmaçõ es de Kant no segundo prefá cio à Crítica da razão pura sintetizam
admiravelmente tudo contra o qual Hegel luta em sua filosofia. Nã o é por outra
razã o que a primeira frase da Ciência da Lógica é exatamente uma lamentaçã o:
60
HEGEL, Idem, p. 13. Lembrando, é claro, que a afirmação de Kant não é totalmente correta, já que:
‘a doutrina que ele vê como descoberta completa e perfeita de Aristóteles foi, de fato, uma confusa
versão peculiar da mistura tradicional entre elementos aristotélicos e estóicos” (KNEALE e KNEALE,
The development of logic, Oxford University Press)
Isto explica porque o jovem Hegel tentará uma saída ao princípio de
subjetividade constituinte em Kant fazendo apelo à recuperaçã o de laços sociais
pretensamente marcados pelo reconhecimento mú tuo e pela garantia de uma
açã o social orientada para a emancipaçã o, como seria o caso da polis grega e das
primeiras comunidades cristã s baseadas no amor. Este modelo, no entanto, será
paulatinamente abandonado por Hegel quando compreender que as sociedades
modernas de livre-mercado levaram a individualidade a um desenvolvimento tal,
assim como levaram processos de trabalho a um ponto tal de degradaçã o, que
nã o seria mais possível apelar a modelos baseados em vínculos comunitá rios
substanciais.
Em seu lugar, o jovem Hegel construirá uma descriçã o fenomenoló gica de
etapas sociais de reconhecimento. Elas começam pelas exigências de satisfaçã o
do desejo. Neste sentido, nos encontramos mais uma vez no ponto de partida de
Thomas Hobbes e de seu estado de natureza. No entanto, simplesmente nã o há
estado de natureza em Hegel. Comparemos, por exemplo, o movimento textual
do Leviatã e o movimento textual da Fenomenologia do Espírito. No primeiro
caso, temos um movimento sempre ascendente. Começa-se da descriçã o da
estrutura do desejo individual, expõ e-se seus conflitos, evidencia-se seus
impasses e chega-se ao estado social. Em Hegel, temos uma espécie de dinâ mica
de aprofundamento, no qual a consciência desvela a natureza mediada daquilo
que ela julgava imediato, desvela a natureza socialmente constituída daquilo que
lhe aparecia como natural. Por isto, perde o sentido em falar em algo como um
“estado de natureza”. Saí de cena as discussõ es sobre a natureza humana, mesmo
que a filosofia de Hegel procure compreender uma espécie de emergência do
social a partir da natureza, ou seja, a partir do movimento da vida, o que explica
porque a vida aparece como primeira figura do desejo no capítulo IV da
Fenomenologia do Espirito.
Mas tentemos dar o sentido do movimento geral desta dinâ mica hegeliana
de aprofundamento. No caso de Hegel, e isto já está presente nos escritos de
juventude, o processo do desejo nos leva a uma dinâ mica de conflitos que fará
emergir o trabalho em sua forma de trabalho alienado, trabalho feito no interior
de uma relaçã o de submissã o e de medo da morte. Daí porque a primeira figura
da consciência que trabalho é o servo. No entanto, pelas vias do trabalho as
relaçõ es de dependência levarã o a uma modificaçã o da consciência individual. Ao
trabalhar para um Outro, a consciência descobrirá habitada por uma perspectiva
que nã o é apenas sua, mas também de Outro. Daí o sentido de afirmaçõ es
surpreendentes como:
61
HEGEL, G.W.F.; Enciclopédia, par. 435
Esta heteronomia ganhará mú ltiplas figuras, mas será o início de uma
estrutura descentrada fundamental para o advento da noçã o de Espírito. A
consciência verá esta heteronomia, por exemplo, em chave teoló gica, como o
culto a um Deus cuja vontade ela nã o compreende e cuja língua ela nã o entende.
Figura esta tematizada através do que Hegel chama de “consciência infeliz”. Ou
seja, Hegel mostra como as dinâ micas do trabalho estã o no fundamento das
forma de relaçã o ao Outro que comporã o as relaçõ es sociais em seu sentido mais
amplo.
Neste sentido, há de se lembrar como em seus escritos de juventude,
Hegel submete até mesmo o amor como estrutura de reconhecimento à s
dinâ micas do trabalho. Por exemplo, no curso sobre a Filosofia do Espírito, ele
dirá que o amor é uma forma de: “supressã o em si-mesmo dos dois [opostos];
cada um é igual ao outro justamente nisto que lhe é oposto; ou o outro, este que o
outro é para si, é ele mesmo. Exatamente porque cada um se sabe no outro, cada
um renunciou a si mesmo”62. No entanto, esta intuiçã o de si no outro aparece
depois que o trabalho foi apresentado como um ato de se fazer outro, de tomar a
forma de um objeto. Isto a ponto de Hegel afirmar que o amor se realiza na
família, principalmente através da concepçã o da criança “produto do trabalho”
do amor.
No entanto, se Hegel oferece uma versã o de uma filosofia da praxis
através desta centralidade do trabalho, seu conceito de trabalho nã o é
simplesmente fenomenoló gico. Os escritos de juventude mostram como ele lida
com uma compreensã o historicamente precisa da emergência da sociedade do
trabalho. Por exemplo, no Sistema da eticidade, Hegel insiste que a circulaçã o dos
objetos trabalhados pressupõ e o valor como abstraçã o capaz de viabilizar a
troca. Tais processos de abstraçã o impedem toda forma efetiva de
reconhecimento. Ele compreende que o advento do trabalho cooperativo
inaugura um processo de “trabalho mecâ nico” no qual nã o é mais o gozo singular
que conta, mas a produçã o do excedente. Ou seja, em todas as situaçõ es nos
deparamos com formas de alienaçã o vinculadas a configuraçõ es precisas dos
processos materiais de produçã o.
No entanto, é pró prio de Hegel um movimento singular no qual a
alienaçã o é superada pelo pró prio processo que ela coloca em marcha. Há um
movimento dialético que tem como objeto a pró pria alienaçã o. O que nã o poderia
ser diferente, já que para Hegel toda forma de exteriorizaçã o (Entausserung) é
uma forma de alienaçã o (Entfremdung). Nã o há exteriorizaçã o que nã o sejam, em
seu primeiro momento, modalidade de alienaçã o. Ou seja, de certa forma, tudo se
passa como se a alienaçã o fosse necessá ria para que os processos de
reconhecimento pudessem ocorrer, tudo se passa como se elas fossem
paradoxalmente nã o apenas uma perda de si, mas uma formaçã o de si. Pois a
experiência da alienaçã o será também a experiência da inefetividade e da
irrealidade das relaçõ es imediatas e imanentes. Ela será a condiçã o para a
emergência de uma consciência do cará ter constitutivo das estruturas
relacionais, mesmo que tal consciência seja produzida à condiçã o da consciência
ter que continuamente perder a si mesma, até chegar o momento em que ela
perceba que perdeu o que, de certa forma, ela nunca teve.
62
HEGEL, G.W.F.; Filosofia do Espírito, p. 36
Lógicas dos reconhecimento
Aula 5
Encontramos aqui um resumo que visa mostrar o que realmente estava em jogo na
seção precedente. Enquanto consciência, a medida da verdade era fornecida pela
adequação entre representações mentais e objetos. No entanto, o objeto da experiência
sempre ultrapassava (ou melhor, sempre invertia) as representações naturais do
pensar. Em cada um destes momentos, a consciência parecia perder a objetividade da
sua certeza, ou seja, a crença de que seu saber era capaz de descrever estados de
coisas independentes e dotados de autonomia metafísica.
No entanto, Hegel afirma que surgiu agora aquilo que, na Introdução, ele havia
chamado de meta: ‘onde o saber não necessita ir além de si mesmo, onde o conceito
corresponde ao objeto e o objeto ao conceito” 66, ou seja, surgiu uma certeza igual à
verdade. Este surgir eclode quando o saber compreende que seu objeto é a própria
consciência e que lá onde ele acreditava estar lidando com objetos autônomos, ele
estava lidando com a própria estrutura do saber enquanto o que determina a
configuração do que pode aparecer no interior do campo da experiência. “É para a
consciência que o Em-si do objeto e seu ser-para-um-Outro são o mesmo” 67. Daí
porque não se trata mais de tematizar a consciência como consciência de objeto, mas
como consciência de consciência, consciência das estruturas do pensar da consciência,
ou ainda, consciência de si (Selbstbewustssein).
Hegel afirma então que, enquanto consciência de si:
64
BRANDOM, Some pragmatist themes in Hegel´s idealism, pag. 210
65
HEGEL, Fenomenologia, par. 166
66
HEGEL, Fenomenologia, par. 80
67
HEGEL, Fenomenologia, par. 166
68
HEGEL, idem
Afirmações desta natureza podem se prestar a vários mal-entendidos. Pode
parecer que Hegel afirma, em uma bela demonstração de idealismo absoluto, que o Eu
não é apenas o que fornece a forma do que aparece (como em Kant ao insistir que o
objeto qualquer das categorias do entendimento era o correlato do Eu penso ou da
unidade da consciência), mas também o conteúdo, a matéria do que aparece. Só assim
Hegel poderia afirmar que o Eu é, ao mesmo tempo, o conteúdo da relação (entre
saber e objeto) e a própria relação (a forma através da qual o saber dispõe o que
aparece).
No entanto, lembremos como Hegel retomará colocações desta natureza no
parágrafo 167, ao lembrar que a consciência-de-si não e apenas a “tautologia sem
movimento do ‘Eu sou Eu’” pois “enquanto para ela a diferença não tem a figura do
ser, ela não é consciência-de-si”. A partir daí, Hegel pode então fornecer sua definição
de consciência-de-si:
69
HEGEL, Fenomenologia, par. 167
70
HEGEL, Fenomenologia, par. 36
afirmar que: “Toda constituição transcendental é uma instituição social”71, no sentido
de que tudo o que tem status normativo é uma realização social.
Esta dupla articulação só será possível se mostrarmos que a estrutura do Eu já
é, desde o início, uma estrutura social e que a idéia do Eu como individualidade
simplesmente constraposta à universalidade da estrutura social é rapidamente posta
em cheque a partir do momento em que compreendemos, de maneira correta, o que
está em jogo na gênese do processo de individualização de Eus socializados. Hegel,
de fato, quer levar às últimas conseqüências esta idéia de que o Eu já é desde o início
uma estrutura social mostrando as conseqüências desta proposição para a
compreensão do sujeito do conhecimento, do sujeito da experiência moral, o sujeito
do vínculo político e o sujeito da fruição estética. O Eu nunca é uma pura
individualidade, mas: “os indivíduos são eles mesmos de natureza espiritual e contém
neles estes dois momentos: o extremo da singularidade que conhece e quer para si e o
extremo da universalidade que conhece e quer o que é substancial”72.
No entanto, nada disto nos foi apresentado até agora no interior do texto da
Fenomenologia do Espírito. Novamente, os primeiros passos desta operação
complexa será apresentado de maneira abrupta. No parágrafo 167, ao lembrar que a
noção de “fenômeno”, enquanto “diferença que não tem em si nenhum ser” (já que é
apenas o aparecer para-um-Outro) não era figura da unidade da consciência-de-si
consigo mesma mas, ao contrário, era a própria clivagem (já que a essencialidade está
sempre em um Outro inacessível ao saber: a coisa-em-si), Hegel afirma: “Essa
unidade [da consciência-de-si] deve vir-a-ser essencial a ela, o que significa: a
consciência-de-si é desejo em geral (Begierde überhaupt)”73.
O que significa esta introdução do que Hegel chama aqui de “desejo em
geral”, ou seja, não desejo deste ou daquele objeto, mas desejo tomado em seu sentido
geral, como modo de relação entre sujeito e objeto? A partir do contexto, podemos
compreender que a unidade da consciência-de-si com o que havia se alojado no
“interior das Coisas” como essência para além dos fenômenos, unidade entre o saber e
a determinação essencial dos objetos só será possível a partir do momento em que
compreendermos as relações entre sujeito e objeto não apenas como relações de
conhecimento, mas primeiramente como relações de desejo e satisfação. Percebemos
agora o tamanho da inflexão em jogo na passagem da consciência à consciência-de-si.
A princípio, uma afirmação desta natureza pareceria algo totalmente
temerário. Estaria Hegel colocando em marcha alguma forma de psicologismo
selvagem que submete as expectativas cognitivas a interesses prático-finalistas? Ou
estaria ele insistindo, e aí na melhor tradição que encontramos também em Nietzsche
e Freud, que a razão configura seus procedimentos (ou seja, ela define o que é
racional e legítimo) através dos interesses postos na realização de fins práticos,
interesses que nos leva a recuperar a dignidade filosófica da categoria de “desejo”?
De fato, esta segunda alternativa parece ser o caso. Neste sentido, podemos
seguir um comentador que viu isto claramente, Robert Pippin: “Hegel parece estar
dizendo que o problema da objetividade, do que estamos dispostos a contar como uma
reivindicação objetiva é o problema de satisfação do desejo, que a ‘verdade’ é
totalmente relativizada por fins pragmáticos (...) Tudo se passa como se Hegel
estivesse reivindicando, como muitos fizeram nos séculos XIX e XX, que o que conta
71
BRANDOM, idem
72
Ver a este respeito SOUCHE-DAGUES, Négation et individualitá dans la pensée polítique
hégélienne
73
HEGEL, Fenomenologia, par. 167
como explicações bem-sucedidas dependem de quais problemas práticos queremos
resolver (...) que o conhecimento é uma função de interesses humanos”74.
No entanto, parece que Hegel estaria assim entrando com os dois pés em
alguma forma de relativismo que submete expectativas universalizantes de verdade a
contingência de contextos marcados por interesses e desejos particulares. A não ser
que Hegel seja capaz de mostrar que os interesses práticos não são guiados pelo
particularismo de apetites e inclinações mas que, ao se engajar na dimensão prática
tendo em vista a satisfação de seus desejos, os sujeitos realizam necessariamente as
aspirações universalizantes da razão. Mas como defender tal posição partindo da
centralidade do desejo na constituição da consciência-de-si?
Claro está que precisaríamos aqui adentrar na especificação do conceito
hegeliano de desejo. Devemos mostrar como o desejo naturalmente abole sua
perspectiva particularista para se reconciliar com a universalidade de uma espécie de
interesse geral. No entanto, Hegel não faz exatamente isto nos parágrafos seguintes.
Só teremos uma descrição mais adequada do processo do desejo entre os parágrafos
174 e 177. Neste trecho, teremos mais indicações a respeito deste modo de relação
entre sujeito e seu-Outro (no caso, o objeto) que Hegel já havia tematizado no
capítulo precedente ao falar da infinitude. A sua maneira, o desejo em Hegel será a
posição desta infinitude tematizada no final do capítulo sobre o entendimento. Mas
Hegel será agora obrigado a, de uma certa forma, distinguir duas modalidades de
desejo (o desejo vinculado à consumação do Outro e o desejo que forma – ou seja, o
trabalho), da mesma forma com que ele terá de distinguir duas modalidade de
infinitude: uma verdadeira e outra ruim.
O ciclo da vida
74
PIPPIN, The satisfaction of self-consciousness, p. 148
percepção, mas é também ser refletido sobre si; o objeto do desejo imediato é
um ser vivo75.
75
HEGEL, Fenomenologia, par. 168
76
HEGEL, Diferença dos sistemas filosóficos de Fichte e Schelling, p. 38
77
HYPPOLITE, Gênese e estrutura, p. 162
Neste sentido, não é por outra razão que Hegel apresenta a vida logo na
entrada da seção dedicada à consciência-de-si. Enquanto consciência que reconhece
as dicotomias nas quais uma razão compreendida a partir da confrontação entre
sujeito e objeto se enredara, a consciência-de-si procura um background normativo
intersubjetivamente partilhado a partir do qual todos os modos de interação entre
sujeito e objeto se extraem. A vida aparece inicialmente como este background. O que
Habermas vira muito bem ao afirmar: “Contra a encarnação autoritária da razão
centrada no sujeito, Hegel apresenta o poder unificador de uma intersubjetividade que
se manifesta sob o título de amor e vida”78.
No entanto, a vida é ainda uma figura incompleta porque seu movimento não
é para-si, ou seja, não é reflexivamente posto e apreendido. Mas não se trata, por
outro lado, de simplesmente negar, através de uma negação simples, o que a reflexão
sobre a vida traz. De fato, há uma certa continuidade entre a vida e a consciência-de-si
claramente posta por Hegel nos seguintes termos: “A consciência-de-si é a unidade
para a qual é a infinita unidade das diferenças, mas a vida é apenas essa unidade
mesma, de tal forma que não é ao mesmo tempo para si mesma”79.
Mas antes de avançarmos, devemos nos perguntar: como Hegel compreende a
vida e seu movimento, seu ciclo? De maneira esquemática, podemos dizer que a vida
é fundamentalmente compreendida a partir da tensão entre a universalidade da
unidade da vida e a particularidade do indivíduo ou da multiplicidade diferenciadora
das formas viventes. Por isto, ela pode aparecer como figura da infinitude, já que cada
um é encarnação da contradição entre unidade e indivíduo [lembrar dos estudos
posteriores de biologia, em especial os de Weismann, sobre soma – substância mortal-
e plasma – substância imortal]. Isto nos explica porque Hegel havia dito, ao
apresentar o conceito de infinitude no capítulo sobre o entendimento: “Essa infinitude
simples – ou o conceito absoluto – deve-se chamar a essência simples da vida, a lama
do mundo, o sangue universal”80. No nosso trecho, Hegel descreve o ciclo da vida do
parágrafo 169:
Todo o desenvolvimento do parágrafo 170 até o parágrafo 172 é uma longa descrição
sobre este processo de afirmação das diferenças contra o fundo de unidade da vida e
de dissolução, ou o perecimento, das mesmas diferenças através da afirmação do
fluxo contínuo da vida enquanto fluxo de multiplicidade de figuras que não subsistem.
Como bem lembra Hyppolite: “Pode-se partir da vida como todo (natura naturans) e
chegar aos indivíduos separados (natura naturata) e pode-se igualmente partir do
78
HABERMAS, O discurso filosófico da modernidade, p. 39
79
HEGEL, Fenomenologia, par. 168
80
HEGEL, Fenomenologia, par. 162
81
HEGEL, Fenomenologia, par. 169
indivíduo separado e reencontrar nela esta totalidade da vida” 82. Daí porque Hegel
poderá afirmar, ao final, que a vida: “é o todo que se desenvolve, que dissolve seu
desenvolvimento e que se conserva simples nesse movimento”83.
Mas, como vimos, a vida só é esta infinitude para a consciência-de-si, ela não
para-si. Neste sentido, a infinitude presente na vida deve se manifestar à consciência-
de-si. Como a vida é o próprio meio do qual a consciência-de-si faz parte, ela deve
descobrir inicialmente em si mesma tal infinitude. E a primeira manifestação de tal
infinitude se dará através do desejo. Uma manifestação ainda imperfeita pois solidária
do aparecimento de um infinito ruim. Mas como pode uma infinitude ser ruim?
Hegel e o desejo
O sujeito intui no objeto sua própria falta (Mangel), sua própria unilateralidade
– ele vê no objeto algo que pertence à sua própria essência e que, no entanto,
lhe falta. A consciência-de-si pode suprimir esta contradição por não ser um
ser, mas uma atividade absoluta84.
A colocação não poderia ser mais clara. O que move o desejo é a falta que
aparece intuída no objeto. Um objeto que, por isto, pode se pôr como aquilo que
determina a essencialidade do sujeito. Ter a sua essência em um Outro (o objeto) é
uma contradição que a consciência pode suprimir por não ser exatamente um ser, mas
uma atividade, isto no sentido de ser uma reflexão que, por ser posicional, toma a si
mesma por objeto.
Mas, dizer isto é ainda dizer muito pouco. Pois se o desejo é falta e o objeto
aparece como a determinação essencial desta falta, então deveríamos dizer que, na
consumação do objeto, a consciência encontra sua satisfação. No entanto, não é isto o
que ocorre:
82
in HEGEL, Phénoménologie de l´Esprit, p. 148, nota 9
83
HEGEL, Fenomenologia, par. 171
84
HEGEL, Enciclopédia, par. 427 - adendo
85
HEGEL, Fenomenologia, par. 175
A contradição encontra-se aqui na seguinte operação: o desejo não é apenas
uma função intencional ligada à satisfação da necessidade animal, como se a falta
fosse vinculada à positividade de um objeto natural. Ele é operação de auto-posição
da consciência: através do desejo a consciência procura se intuir no objeto, tomar a si
mesma como objeto e este é o verdadeiro motor da satisfação. Através do desejo, na
verdade, a consciência procura a si mesma. Daí porque Hegel pode afirmar que,
inicialmente, o desejo aparece em seu caráter egoísta. Já na Filosofia do espírito, de
1805, Hegel oferece a estrutura lógica deste movimento que serve de motor para a
figura do desejo: "O desejante quer, ou seja, ele quer se pôr (es will sich setzen), se
fazer objeto (Gegenstande machen)"86. Isto implica inicialmente em tentar destruir o
Outro (o objeto) enquanto essência autônoma. No entanto, satisfazer-se com um
Outro aferrado à positividade de uma condição de mero objeto (no sentido
representacional) significa não realizar a auto-posição da consciência enquanto
consciência. A consciência só poderá se pôr se ela desejar um objeto que duplica a
própria estrutura da consciência. Ela só poderá se satisfazer ao desejar uma outra
consciência, ao intuir a si mesmo em uma outra consciência. “A consciência-de-si só
alcança satisfação em uma outra consciência-de-si”. Daí porque:
89
HEGEL, Enciclopedia, Add, par.426
Lógicas do reconhecimento
Aula 6
O processo de reconhecimento passará entã o por uma certa pragmá tica pois é o
agir que realiza a posiçã o da consciência. Hegel apenas lembra aqui que o
problema da reconhecimento deve ser necessariamente um problema de como
prá ticas sociais sã o constituídas. Podemos falar aqui em prá ticas sociais porque
Hegel nos lembra, com propriedade, que todo agir tem um sentido redobrado:
ele é, ao mesmo tempo agir do sujeito e agir do Outro. Todo agir pressupõ e um
campo partilhado de significaçã o no qual o agir se inscreve. Pois todo agir
pressupõ e destinatá rios, é agir feito para um Outro e inscrito em um campo que
nã o é só meu, mas é também campo de um Outro. A significaçã o do ato nã o é
assim resultado da intencionalidade dos agentes, mas determinaçã o que só se
define na exterioridade da intençã o.
92
HEGEL, Fenomenologia, par. 179
93
HEGEL, Fenomenologia, par. 182
Por conseguinte, o agir tem duplo sentido (doppelsinnig), nã o só enquanto
é agir quer sobre si mesmo, quer sobre o Outro, mas também enquanto
indivisamente é o agir tanto de um quanto do Outro94.
97
HEGEL, Fenomenologia, par. 186
98
HEGEL, Fenomenologia do espírito I, p. 159 - Die Darstellung seiner aber als der reinen
Abstraction ...
99
HEGEL, Fenomenologia, par. 187
Filosofia do Espírito, de 1805, ele nã o deixará de encontrar metá foras para falar
deste sujeito que aparece como o que é desprovido de substancialidade e de
determinaçã o fixa:
O homem é esta noite, este nada vazio que contém tudo na simplicidade
desta noite, uma riqueza de representaçõ es, de imagens infinitamente
mú ltiplas, nenhuma das quais lhe vem precisamente ao espírito, ou que
nã o existem como efetivamente presentes (...) É esta noite que
descobrimos quando olhamos um homem nos olhos, uma noite que se
torna terrível, é a noite do mundo que se avança diante de nó s100.
100
HEGEL, Filosofia do espírito, p. 13
101
HEGEL, Fenomenologia I, par. 32
modos de sociabilidade, mas de compreender como a consciência pode ter
a experiência da sua estrutura]102.
Esta distinçã o é fundamental. Hegel afirma que ser reconhecido como pessoa nã o
é o mesmo que ser reconhecido como uma consciência-de-si independente. Ou
seja, o horizonte normativo dos processos de reconhecimento em Hegel nã o se
reduzem ao reconhecimento da minha individualidade como pró pria de uma
“pessoa em geral” que tem certos direitos positivos e obrigaçõ es sociais
intersubjetivamente asseguradas. O que nã o poderia ser diferente se
lembrarmos que, ao menos no interior da tradiçã o dialética, “pessoa” é uma
categoria derivada historicamente do direito romano de propriedade (dominus),
uma categoria que, por ainda guardar os traços de sua origem, era vista por
Hegel como “expressã o de desprezo”103 devido à sua natureza meramente
abstrata e formal advinda da absolutizaçã o das relaçõ es de propriedade. Tal
articulaçã o entre “pessoa” e “propriedade” servirá de fundamento para uma
larga tradiçã o de reflexã o que chegará até as discussõ es recentes sobre a “self-
ownership” como atributo fundamental da pessoa 104.
Na verdade, Hegel procura mostrar como a verdadeira autonomia da
consciência-de-si só pode ser posta em um terreno para além (ou mesmo para
aquém) da forma da pessoa jurídica portadora de diretos positivos e
determinaçõ es individualizadoras. Por isto, tudo nos leva a crer que Hegel insiste
que se trata de mostrar como a constituiçã o dos sujeitos é solidá ria da
confrontaçã o com algo que só se põ e em experiências de negatividade e des-
enraizamento que se assemelham à confrontaçã o com o que fragiliza nossos
contextos particulares e nossas visõ es determinadas de mundo, ou seja, que se
assemelha à morte. A astú cia de Hegel consistirá em mostrar como o demorar-se
diante desta negatividade é condiçã o para a constituiçã o de um pensamento do
que pode ter validade universal para os sujeitos.
Sendo assim, as tensõ es internas à teoria hegeliana do reconhecimento
também nã o podem ser pensadas a partir de dualidades como esta proposta por
Habermas ao afirmar:
O senhor absoluto
106
HEGEL, G.W.F., Enciclopédia, pag. 161
Através da luta de vida e morte, a consciência procura suprimir o que lhe
aparece como essencialidade alheia. Hegel joga com um duplo movimento de
supressã o que é necessariamente convergente. Por um lado, a consciência
procura suprimir seu vínculo essencial à vida como Dasein natural, ela procura
afirmar-se através da distâ ncia em relaçã o a tudo o que está preso ao ciclo
irreflexivo da vida. Por outro lado, a consciência-de-si procura suprimir seu
vínculo essencial à outra consciência-de-si a fim de afirmar-se em sua pura
imediatez idêntica a si mesma. A convergência destes dois movimentos fica
explícita se lembrarmos que a vida fornece a determinaçã o empírica da
consciência-de-si, ela fornece o em-si cuja objetividade implica necessariamente
na presença do Outro. Assim, negar a vida para se pô r como pura abstraçã o é,
necessariamente, um movimento que envolve o negar da essencialidade do
Outro.
No entanto, o contrá rio também é verdadeiro. Como vimos no pará grafo
186, a imersã o integral da consciência no elemento da vida implicava na
impossibilidade do reconhecimento do Outro como consciência-de-si
independente. “Surgindo assim imediatamente, os indivíduos sã o um para outro
à maneira de objetos comuns, figuras independentes, consciências imersas no ser
da vida”107. Isto apenas nos lembra como a confrontaçã o com a negatividade da
morte tem um cará ter formador para a consciência-de-si; fato que ficará ainda
mais evidente no desdobrar da dialética do Senhor e do Escravo.
Podemos mesmo dizer que o reconhecimento nã o implica exatamente no
afastar-se da morte, até porque a vida do espírito é: “a vida que suporta a morte e
nela se conserva”108. O que ele implica é, na verdade, a compreensã o de que o que
está em jogo na experiência fenomenoló gica da confrontaçã o com a morte nã o é
uma “negaçã o abstrata”: termo central que indica uma compreensã o nã o-
especulativa de relaçõ es de oposiçã o. A negaçã o abstrata da vida produz uma
situaçã o na qual os opostos (vida e morte): “nã o se dã o nem se recebem de volta,
um ao outro reciprocamente, através da consciência, mas deixam um ao outro
indiferentemente livres, como coisas (Dinge)”109. Ou seja, a significaçã o dos
termos opostos nã o passa uma na outra. Esta operaçã o nã o é aquilo que Hegel
chama aqui de “negaçã o da consciência (Negation des Bewustssein)”, ou seja, esta
negaçã o determinada que “supera de tal modo que guarda e mantém o superado
e, com isto, sobrevive a seu vir-a-ser superado” 110. A consciência deve pois negar
a vida de maneira determinada, o que implica em compreender a vida como
espaço no qual o negativo pode ser convertido em ser. A vida deve ser
inicialmente negada para ser recuperada nã o mais como pó lo positividade de
doaçã o imanente de sentido, como fundamento originá rio, mas como locus de
manifestaçã o da negatividade do sujeito, como “vida do espírito”.
Dominação e servidão
Mas esta realizaçã o ainda está longe. De fato: “nessa experiência, vem a ser para
a consciência que a vida lhe é tã o essencial quanto a pura consciência-de-si” 111.
107
HEGEL, Fenomenologia, par. 186
108
HEGEL, Fenomenologia, par. 32
109
HEGEL, Fenomenologia, par. 188
110
HEGEL, Fenomenologia, par. 188
111
HEGEL, Fenomenologia,par. 189
Isto implica em uma clivagem: a conscîência reconhece a essencialidade tanto da
vida quanto da pura abstraçã o em relaçã o ao Dasein natural. Por isto, Hegel fala
da dissoluçã o da unidade do Eu como Eu simples que aparecia enquanto objeto
absoluto da consciência. Eu simples representado pela tautologia do “Eu=Eu”
[lembra da estrutura proposicional da igualdade/ a determinaçã o particular é
idêntica à representaçã o universal]. Esse Eu simples se dissolve em dois
momentos: uma pura consciência-de-si, independente e para quem o ser para-si
é a essência e uma consciência para-um-outro, consciência aferrada à coisidade
(Dingheit) e para quem o essencial é a vida ou o ser-para-um-outro. Esses dois
momentos “sã o como duas figuras opostas da consicência (...) Uma é o Senhor,
outra é o Escravo”112.
Mas, antes de continuarmos, notemos a ambigü idade deste “como se”.
Hegel joga, em vá rios momentos do texto, com uma dupla acepçã o do
antagonismo figurado na dialética do Senhor e do Escravo. Por um lado, ele
parece ser a exteriorizaçã o de uma clivagem interna à consciência na sua divisã o
entre o reconhecimento da essencialidade tanto da vida quanto da posiçã o de
pura abstraçã o. Por outro lado, ele aparece como o resultado de uma
confrontaçã o entre duas consciências-de-si independentes em um movimento
fundador dos processos de interaçã o social. Esta duplicidade indica, na verdade,
que estamos diante de um modo de interação social que é, ao mesmo tempo,
processo de formação da consciência-de-si. Como dissera anteriormente,
estruturaçã o de modos de socializaçã o e processos de constituiçã o do Eu
convergem necessariamente em Hegel, já que este nã o reconhece nenhuma
unidade originá ria da consciência-de-si.
Por outro lado, vale a pena contextualizar leituras que procuram encontrar,
neste momento da Fenomenologia do Espírito, as bases normativas de uma teoria da
gênese do social. Não como deixar de notar diferenças profundas de inflexão entre
esta versão do problema do reconhecimento apresentada na Fenomenologia e aquela
apresentada tanto na Filosofia do Espírito, de 1805, e na Enciclopédia em sua versão
de 1830. Por exemplo, na Filosofia do Espírito, de 1805, o problema do
reconhecimento é apresentado de maneira explícita em termos legais e políticos, já
que a luta por reconhecimento se organiza a partir de conceitos como: crime, lei, bens
e constituição. Nada disto desempenha papel central na apresentação própria à
Fenomenologia do Espírito. Podemos mesmo falar que: “Nesta versão do problema do
reconhecimento, Hegel está primariamente interessado no problema da
universalidade, a maneira através da qual a atividade determinada introduzida na
seção precedente, ainda que mediada através formas de interação social, pode ser bem
sucedida em sua determinação apenas se o que Hegel chama de “vontade particular”
se transforme em “vontade universal e essencial”113. É claro que isto não exclui
problemas políticos e legais, mas eles só podem ser compreendidos de maneira
correta (e reconfigurados em sua extensão) se apresentarmos primeiro os problemas
centrais que determinarão as bases mais amplas dos processos de reconhecimento:
eles tocam a questão do desejo, da relação à vida e à morte e do trabalho.
Os pró ximos seis pará grafos sã o extremamente condensados e tentam dar
conta dos desdobramentos da dissoluçã o da unidade inicial do Eu simples. Eles
sã o organizados em duas perspectivas distintas. Entre os pará grafos 190 e 193,
Hegel expõ e os impasses do reconhecimento do ponto de vista do Senhor. Dos
112
HEGEL, Fenomenologia, par. 189
113
PIPPIN, He satisfaction of self-consciousness, p. 155
pará grafos 194 a 196, Hegel expõ e como o conceito de reconhecimento poderá
ser realizado através do Escravo.
O Senhor é logo apresentado como uma consciência que vive algo como
um impasse existencial ligado ao cará ter parcial do seu reconhecimento.
Enquanto consciência que ainda procura realizar a noçã o de auto-identidade
como pura abstraçã o de si, consciência que procura sustentar uma relaçã o
imediata de si a si, o Senhor é certo de si através da afirmaçã o da
inessencialidade de toda alteridade. No entanto, esta certeza é dependente da
negaçã o reiterada da inessencialidade do Outro. Uma negaçã o que nã o é a
destruiçã o pura e simples do Outro, mas a sua dominaçã o enquanto desprezo
pela sua essencialidade independente. Como sabemos, a necessidade desta
dominaçã o contradiz a aspiraçã o do Senhor em ser reconhecido como pura
identidade de si a si, já que ele é reconhecido como Senhor apenas por uma
consciência inessencial. Este conceito de reconhecimento nã o pode aspirar
validade universal. Vejamos como Hegel nos apresenta tal impasse.
Hegel primeiro lembra que o Senhor precisa afirmar sua independência
e sua dominaçã o no interior de dois processos: na confrontaçã o com outra
consciência-de-si e na confrontaçã o com o objeto (que, no interior da seçã o
“consciência-de-si” aparece necessariamente como tendo sua verdade enquanto
objeto do desejo). Tais processos de dominaçã o sã o organizados como
silogismos. O primeiro é enunciado da seguinte forma:
115
HEGEL, Fenomenologia, par. 190
116
HEGEL, Filosofia do Espírito, de 1805
117
HEGEL, Fenomenologia, par. 192
118
HEGEL, Fenomenologia, par. 191
é aquele cuja independência e liberdade está baseado na ilusã o do pertencimento
de si mesmo. Mas este pertencimento de si só pode se realizar em uma situaçã o
na qual eu nã o me vejo como consciência que trabalha, como consciência imersa
nas sendas do trabalho social. Eu devo ser uma consciência que goza um gozo
que é a afirmaçã o de meu poder sobre mim mesmo e sobre os objetos de meu
desejo. No entanto, esse poder sobre os objetos do meu desejo equivale a
compreender tais objetos como minha propriedade, um pouco como o escravo
nã o é nada mais do que minha propriedade.
Mas ninguém melhor que Hegel em sua dialética do senhor e do escravo
demonstrou como havia uma reversibilidade contínua na relaçã o aparentemente
dissimétrica entre propriedade e proprietá rio. Pois Hegel lembrará que o uso da
propriedade implica, necessariamente, transformaçã o do pró prio proprietá rio,
dependência do pró prio proprietá rio (senhor) em relaçã o à propriedade
(escravo), em relaçã o ao modo de existência da propriedade. Como o gozo do
sujeito proprietá rio depende da propriedade e de seu modo de existência, é
impossível que esse modo de existência nã o passe necessariamente no sujeito.
Hegel pode lembrar desta reversibilidade porque, ao menos em sua
Fenomenologia do Espírito, as relaçõ es de propriedade nã o aparecem apenas
como relaçõ es de uso, mas como relaçõ es de desejo. Eu nã o apenas uso
propriedades, eu desejo o que se reduz à condiçã o de propriedade e esta é a base
do processo de alienaçã o inerente a toda noçã o de propriedade de si. Meu desejo
se submete à forma da propriedade, meu ser se determina no interior de um
campo de propriedades. Eu me determino a partir daquilo que se conforma à
condiçã o de propriedade. Desta forma, desejar como um senhor de escravo é
definir o escravo como o modo de existência do meu desejo, é vincular minha
expressã o ao que se dispõ e integralmente, ao que se define de forma
unidimensional, ao que nã o pode escapar de minha possessã o, mas que apenas
confirma meu domínio, minha narrativa sobre mim mesmo. Por isto, tal posiçã o
só pode ser um impasse existencial.
Lógicas do reconhecimento
Aula 7
É neste ponto que Hegel deixa o Senhor em seu impasse e passa à análise do
movimento dialético a partir da perspectiva do Escravo. “Sem dúvida, este aparece de
início fora de si, e não como a verdade da consciência-de-si”. Mas ele “entrará em si
como consciência retornando sobre si mesma e se converterá em verdadeira
independência”119. Ou seja, pelas vias da servidão, a consciência irá realizar a
reconciliação com a objetividade necessária para a realização do conceito de
consciência-de-si em sua estrutura de reconhecimento.
Hegel começa lembrando que a essencialidade do escravo parece estar
depositada no Senhor. É ele quem domina o seu fazer e consome o objeto de seu
fazer. Quer dizer, seu fazer lhe é estranho, assim como o objeto com o qual ela
confronta lhe é estranho. Há no entanto um conteúdo positivo neste estranhamento.
Pois isto implica que o escravo se elevou para além de sua singularidade, já que:
“Enquanto o escravo trabalha para o senhor, ou seja, não no interesse exclusivo da sua
própria singularidade, seu desejo recebe esta amplitude consistindo em não ser apenas
o desejo de um este, mas de conter em si o desejo de um outro” 120. No entanto, ter seu
desejo vinculado ao desejo de um outro ainda não nos fornece a universalidade do
reconhecimento almejado pela consciência. o conflito produzido pelo desejo, conflito
119
HEGEL, Fenomenologia, par. 193
120
HEGEL, Enciclopédia, par. 433 - adendo
que aparece enquanto motor da DSE, não pode ser a mera colisão entre sistemas
particulares de interesses de duas consciências distintas, como quer comentadores
como Terry Pinkard e Jurgen Habermas 121. Conflito através do qual Eu procuro
dominar o outro através da submissão do seu sistema de valoração e interesse à
perspectiva própria ao meu sistema, onde Eu procuro submeter o desejo do outro ao
meu desejo. Faz-se necessário que este outro não seja apenas um outro desejo
particular, mas que ele tenha algo da universalidade incondicional do que é essencial.
Hegel então se serve de um certo deslizamento que consiste em dizer que, no
interior desta experiência particular, já há algo da ordem de uma necessidade
universal que toca o modo de manifestação do que é essencial. Isto lhe permite operar
um certo giro de perspectiva que consiste em dizer: lá onde a consciência encontra-se
totalmente alienada, é lá que ela pode encontrar-se a si mesma, já que: “o espírito só
alcança sua verdade à medida que se encontra a si mesmo no dilaceramento
absoluto”122. Esta idéia de que a consciência deve se perder para poder se encontrar
está intimamente vinculada à maneira com que Hegel compreende a noção central de
“essência”. O parágrafo 194 é muito ilustrativo neste sentido. Hegel começa
lembrando que, para a consciência escrava, a essência está fora dela mesma, está neste
Senhor que encarna o puro para-si e que despreza o agir da consciência escrava que
aparece, para ela mesma, como algo de puramente estranho e oposto. Ela traz assim a
oposição dentro de si e não se reconhece mais em seu agir, que lhe aparece como agir-
para-um-Outro. Contudo, Hegel afirma que esta é condição necessária para que ela
experimente a essência e tenha nela mesma “essa verdade da pura negatividade e do
ser-para-si”. Logo em seguida, complementa:
Essa consciência sentiu a angústia, não por isto ou aquilo, não por este ou
aquele instante, mas sim através de sua essência toda, pois sentiu o medo da
morte, do senhor absoluto. Aí se dissolveu interiormente, em si mesma tremeu
em sua totalidade e tudo o que havia de fixo, nela vacilou. Entretanto, esse
movimento universal puro, o fluidificar-se absoluto de todo subsistir é a
essência simples da consciência-de-si, a negatividade absoluta, o puro ser-
para-si que assim é nessa consciência123.
121
Ver PINKARD, Hegel´s phenomenology: The sociality of reason, op. cit. e HABERMAS,
Caminhos da destranscendentalização In: Verdade e Justificação, op. cit.
122
HEGEL, Fenomenologia, par. 32
123
HEGEL, Fenomenologia, par. 194
sentimento do nulidade do egoísmo, o hábito da obediência (Gehorsams) é um
momento necessário da formação de todo homem. Sem ter a experiência deste
cultivo (Zucht) que quebra a vontade própria (Eigenwillen), ninguém advém
livre, racional e apto a comandar. E para advir livre, para adquirir a aptidão de
se auto-governar, todos os povos tiveram que passar pelo cultivo severo da
submissão a um senhor124.
124
HEGEL, Enciclopédia das ciências filosóficas, op. cit., § 435
125
Esta intuição hegeliana recebeu uma confirmação material através da psicanálise lacaniana e sua
descrição da gênese do Eu através a internalização da imagem de um outro que tem a função de tipo
ideal de conduta e de orientação do desejo. A este respeito, remeto ao capítulo “Desejo sem imagens”
In: SAFATLE, Lacan, São Paulo, Publifolha, 2007.
126
LEBRUN, L’envers de la dialectique, op. cit., p. 100
127
idem, p. 211
128
DELEUZE, Nietzsche et la philosophie, op. cit., p. 224
contrariamente ao ser que procurava sua fundamentação em determinações fixas, a
essência se põe como determinação reflexiva e relacional. Em outras palavras, a
essência é a unificação deste movimento reflexivo de pôr seu ser em um outro, cindir-
se e retornar a si desta posição. Daí porque Hegel pode afirmar que, quando o ser
encontra-se determinado como essência, ele aparece como: “um ser que em si está
negado todo determinado e todo finito” 129, ou ainda, como “ser que pela negatividade
de si mesmo se mediatiza consigo” 130. Neste sentido, Hegel insiste que a
internalização da negação de si própria à configuração da essência deve se manifestar
inicialmente como negatividade absoluta diante da permanência de toda
determinidade.
É neste sentido que a angú stia deve ser compreendida como a
manifestaçã o fenomenoló gica inicial desta essência que só pode se pô r através
do “fluidificar absoluto de todo subsistir”, ou seja, do negar a essencialidade de
toda determinidade aferrada em identidades opositivas. Manifestaçã o inicial, daí
porque Hegel fala de “essência simples”, mas manifestaçã o absolutamente
necessá ria. A angú stia pode aqui ter esta funçã o porque nã o se trata de um
tremor por isto ou aquilo, por este ou aquele instante, mas se trata aqui de uma
fragilizaçã o completa de seus vínculos ao mundo e à imagem de si mesmo. É esta
fragilizaçã o que traduz de maneira mais perfeita o que está em jogo neste “medo
diante da morte, do senhor absoluto”. O termo “angú stia” tem aqui um uso feliz
porque ele indica exatamente esta posiçã o existencial na qual o sujeito parece
perder todo vínculo do desejo em relaçã o a um objeto, como se estivéssemos
diante de um desejo nã o mais desprovido de forma. No entanto, se a consciência
for capaz de compreender a angú stia que ela sentiu ao ver a fragilizaçã o de seu
mundo e de sua linguagem como primeira manifestaçã o do Espírito, deste
espírito que só se manifesta destruindo toda determinidade fixa, entã o a
consciência poderá compreender que este “caminho do desespero” é, no fundo,
internalizaçã o do negativo como determinaçã o essencial do ser. Daí porque: “o
temor do senhor é o início [mas apenas o início] da sabedoria” 131. Neste sentido,
podemos mesmo dizer que, para Hegel, só é possível se desesperar na
modernidade, já que ele é a experiência fenomenoló gica central de uma
modernidade disposta a problematizar tudo o que se põ e na posiçã o de
fundamento para os critérios de orientaçã o do julgar e do agir.
Ir ao fundamento
129
HEGEL, Ciência da lógica – doutrina da essência
130
HEGEL, Enciclopédia, par. 112
131
HEGEL, Fenomenologia, par. 195
a superaçã o (Aufheben) de seu ser determinado (Bestimmtseins) que é seu
determinar”132. O que pode ser entendido da seguinte maneira: a indeterminaçã o
do fundamento vem do fato dele servir de substrato comum entre determinaçõ es
opostas, daí porque Hegel poderá afirmar que o fundamento implica a identidade
entre a identidade e a diferença (die Einheit der Identität und des Unterschiedes).
Mas sendo o Eu o princípio sintético que fornece o fundamento da experiência,
assim como o princípio de ligaçã o e unidade que determina o modo de
articulaçã o entre o fundamento e aquilo que ele funda, entã o pensar a verdadeira
essência do fundamento como o que tem seu ser em um outro (sein Sein in einen
Anderen hat) exige a confrontaçã o com um estado de diferenças nã o submetidas
à forma do Eu133.
Demoremos um pouco mais neste ponto. Sabemos que fundar é
determinar o existente através da sua relaçã o a um padrã o que me permite
orientar no pensamento. Por exemplo, ao mobilizar estruturas categoriais como
a causalidade, a modalidade para assegurar a inteligibilidade dos fenô menos,
determino a forma do existente. A partir deste recurso à forma como
fundamento posso garantir o critério do verdadeiro e do falso, do correto e do
incorreto, do adequado e do inadequado. Mas a aplicaçã o de todas estas
estruturas aos fenô menos depende de uma decisã o prévia e tá cita sobre
princípios ló gicos gerais de ligaçã o e unidade capazes de constituir objetos da
experiência e fundar proposiçõ es de identidade e diferença. Estes princípios de
ligaçã o (Verbindung) e unidade sã o derivados do Eu como unidade sintética de
apercepçõ es, que aparece assim como o verdadeiro fundamento das
determinaçõ es. No entanto, a problematizaçã o de tais princípios é o verdadeiro
objeto da dialética. Por exemplo, quando Hegel constró i um witz ao dizer que,
para a consciência, “o ser tem a significaçã o do seu” (das Sein die Bedeutung das
Seinen hat)134, ele tem em vista o fato de que ser objeto para a consciência
significa estruturar-se a partir de um princípio interno de ligaçã o e unidade que
é modo da consciência apropriar-se do mundo, constituir o mundo a partir de
sua imagem, o que permite a Hegel ignorar a relevâ ncia das distinçõ es kantianas
entre receptividade e espontaneidade.
A dialética precisa pois aceder a um fundamento nã o mais dependente da
forma auto-idêntica do Eu, o que é possível através da superaçã o dos modos
naturalizados de determinaçã o, através a fragilizaçã o das imagens de mundo que
orientam e constituem nosso campo estruturado de experiências. Tal fragilizaçã o
é descrita fenomenologicamente por Hegel através da angú stia e da confrontaçã o
com a morte.
Vemos assim como a confrontaçã o com a morte permite à consciência-de-
si compreender o Espírito como aquilo que se expressa na multiplicidade de suas
determinaçõ es fragilizando-as todas, levando-as a confrontar-se com uma
potencia do pré-pessoal e do indeterminado que nos permite, inclusive,
recompreender o que vem a ser a diferença. A diferença em Hegel é esta potência
interna da in-diferença que corró i toda determinaçã o. Ela será esta expressã o do
132
HEGEL, Wissenschaft der Logik II, Frankfurt: Suhrkamp, 1986, p. 81
133
Longuenesse compreendeu isto bem ao afirmar que, para Hegel : “O fundamento é o herdeiro da
unidade de apercepção da Crítica da razáo pura” (LONGUENESSE, Hege let la critique de la
métaphysique, Paris: Vrin, 1981, p. 111).
134
HEGEL, Fenomenologia do Espírito, op. cit., p. 159
ser que nos leva a afirmar, com Scott Fitzgerald, que: “toda vida é um processo de
demoliçã o”. Demoliçã o que ocorre quando desvelamos esta “franja de
indeterminaçã o da qual goza todo indivíduo”135. Nã o se trata exatamente de um
ganho de determinaçã o e positividade, mas da assunçã o de um risco vinculado à
confrontaçã o com aquilo que se coloca enquanto puramente indeterminado.
Nestas condiçõ es, submeter-se a um Senhor absoluto que dissolve tudo aquilo
que parecia fixo e determinado nada tem a ver com uma a dinâ mica psicoló gica
da resignaçã o, do ressentimento ou da necessidade da repressã o.
O trabalho
No entanto, ainda não tocamos em um ponto essencial que irá estabilizar esta
dialética. Pois a angústia sentida pela consciência escrava não fica apenas em uma:
Hegel fará então uma gradação extremamente significativa que diz respeito ao
agir da consciência nas suas potencialidades expressivas. Hegel fala do serviço
(Dienen), do trabalho (Arbeiten) e do formar (Formieren). Esta tríade marca uma
realização progressiva das possibilidades de auto-posição da consciência no objeto do
seu agir. O serviço é apenas a dissolução em si (Auflösung an sich) no sentido da
completa alienação de si no interior do agir, que aparece como puro agir-para-um-
outro e como-um-outro. O trabalho implica em uma auto-posição reflexiva de si. No
entanto, Hegel não opera com uma noção expressivista de trabalho que veria sua
realização mais perfeita em uma certa compreensão do fazer estético como
manifestação das capacidades expressivas dos sujeitos. A consciência que trabalha
não expressa a positividade de seus afetos em um objeto que circulará no tecido
social. O trabalho não é a simples tradução da interioridade na exterioridade. De uma
certa forma, a categoria hegeliana de trabalho é inicialmente uma defesa contra a
angústia diante da negatividade da morte ou, ainda, uma superação dialética da
angústia, já que ele é auto-posição de uma subjetividade que sentiu o desaparecer de
todo vínculo imediato ao Dasein natural, que sentiu o tremor da dissolução de si.
Lembremos desta afirmação central de Hegel:
135
DELEUZE, Différence et répétition, 5 ed., Paris: PUF, 2000, p. 331
136
HEGEL, Fenomenologia do Espírito, op. cit., p. 132
mesma (...) no formar da coisa, torna-se objeto para o escravo sua própria
negatividade137.
141
HEGEL, Lições sobre a história da filosofia – O estoicismo
142
Diógenes LAÉRCIO, Vida e lenda de filósofos ilustres- Zenão
143
HEGEL, Lições sobre a história da filosofia – O estoicismo
Seu princípio é que a consciência é essência pensante e que uma coisa só
tem essencialidade, ou só é verdadeira e boa para ela à medida que a
consciência ai se comporta como essência pensante144.
144
HEGEL, Fenomenologia, par. 198
145
HEGEL, Lições sobre a história da filosofia – O estoicismo
146
HEGEL, Fenomenologia, par. 199
147
HEGEL, Lições sobre a história da filosofia – O estoicismo
148
HEGEL, Fenomenologia, par. 200
149
LEBRUN, La patience du concept, p. 408
Lógicas do reconhecimento
Aula 8
Tal definiçã o nos permite dizer que os conceitos decisivos na filosofia hegeliana
do direito sã o “liberdade” e “vontade livre”, já que definem o campo da
racionalidade do direito. Trata-se, entã o, de demonstrar que a perspectiva
hegeliana nos traz elaboraçõ es importantes a respeito da relaçã o necessá ria
entre reconhecimento da vontade livre e constituiçã o moderna das instituiçõ es.
Como devem ser pensadas as instituiçõ es para que elas sejam capazes de dar
conta de demandas de reconhecimento depositadas no conceito de “liberdade”?
É possível pensar a liberdade fora de alguma garantia de reconhecimento
institucional?
Antes de entrarmos diretamente nestas discussõ es, notemos a
peculiaridade da compreensã o do sentido da noçã o de “direito” para Hegel. Por
“direito”, Hegel entende algo a mais do que o ordenamento estatal de regulaçã o
da vida social. “Direito” sã o: “Todos aqueles pressupostos sociais que se
mostraram necessá rios para a realizaçã o da ‘vontade livre’ de cada sujeito
individual”151. Tais pressupostos sociais englobam o ordenamento jurídico
atualmente existente com sua dinâ mica conflitual interna, as instituiçõ es
políticas que compõ e o Estado moderno, as relaçõ es intersubjetivas de amor que
se dã o no interior da família, a disposiçã o subjetiva formada a partir da
internalizaçã o de preceitos morais, a dinâ mica do livre-mercado, entre outros.
Eles ainda devem estar, de uma certa forma, assegurados (ou em processo de
garantia) no interior dos quadros atuais do Estado moderno.
150
HEGEL, G.W.F. ; Grundlinien der Philosophie des Rechts, Frankfurt : Suhrkamp, 1986, par. 4. As
traduções aqui apresentadas vem, em grande parte, do trabalho de tradução de Marcos Müller.
151
HONNETH, Axel; Sofrimento de indeterminacao, São Paulo : Esfera Pública, 2006, p. 64
De fato, aí está boa parte da complexidade da aposta hegeliana: este
Estado nã o pode ser apenas um ideal, um dever ser. Se a funçã o da filosofia do
direito é: “apresentar e conceitualizar o Estado como em si racional” 152 é porque
ela deve ser capaz de apresentar, a partir de sua necessidade racional, o Estado
que está em vias de se realizar como resultado do projeto moderno. Ou seja, nã o
se trata nem do Estado atualmente realizado, nem de um Estado ideal, simples
ideia sem relaçã o alguma com a efetividade atual. Trata-se de um Estado que
pode potencialmente se realizar, isto no sentido de algo que explora os conflitos
sociais atuais para se realizar.
Esta é uma maneira de lembrar que, afinal, um ordenamento jurídico
estatal está longe de ser algo monolítico e organicamente coeso. Antes, ele é o
resultado heteró clito da sedimentaçã o de lutas sociais entre vá rias disposiçõ es
contrá rias e mesmo contraditó rias no interior da sociedade. O ordenamento
jurídico traz as marcas destas lutas e conflitos. Neste sentido, cabe à filosofia do
direito apresentar quais lutas e conflitos definiram a tendência de racionalidade
do ordenamento jurídico. Talvez seja por isto que Hegel precise terminar seu
prefá cio à Filosofia do direito com a bela metá fora da filosofia como a coruja de
Minerva que levanta vô o apenas com a irrupçã o do crepú sculo. Pois a filosofia
procura mostrar como os conflitos sociais que dã o forma ao direito, que
imprimem tendências no interior do direito, sã o mobilizaçõ es do Espírito na sua
procura em realizar o conceito de liberdade no interior da vida social. Uma
realizaçã o que nunca é linear, que nunca deixa de levar em conta dimensõ es
tá ticas e estratégicas do pensamento, assim como a configuraçã o de situaçõ es
locais. Mas uma realizaçã o que, ao menos segundo Hegel, já teria sido capaz de
deixar marcas irreversíveis em nosso ordenamento jurídico, principalmente
depois do Có digo napoleô nico e do impacto da Revoluçã o Francesa.
Desta forma, por insistir que a vontade livre só pode ser pensada como
efetivaçã o de pressupostos que devem estar em processo de institucionalizaçã o
na vida social, Hegel precisa fazer a crítica de dois modelos hegemô nicos de
liberdade: um baseado na hipó stase das exigências de autenticidade e outro
baseado na hipó stase das exigências de autonomia. A hipó stase destes dois
modelos nos leva à perpetuaçã o da contradiçã o entre liberdade e instituiçã o,
contradiçã o inaceitá vel para Hegel. Pois a autenticidade, quando hipostasiada, só
poderia produzir uma noçã o de liberdade negativa que, quando utilizada como
guia para a açã o política, nos leva diretamente ao terror. Já a autonomia, quando
hipostasiada, produz uma noçã o de livre-arbítrio que, ao servir de guia para a
açã o política, acaba por levar a uma profunda atomização social produzida pela
elevaçã o da categoria de “indivíduo” a elemento central da vida social. Vejamos
cada uma destas distorçõ es do conceito de liberdade, que nã o deixam de tecer
relaçõ es entre si. Ao fim, poderemos compreender melhor qual é a especificidade
do conceito hegeliano.
152
HEGEL, ibidem, p. 26
ser um elemento do direito positivo lhe é contingente e nã o concerne à
sua natureza153.
Tal frase é decisiva. Hegel está a lembrar, entre outras coisas, que a liberdade nã o
pode ser confundida com a presumida autenticidade da espontaneidade imediata
dos sentimentos. Uma autenticidade que veria, nas leis, apenas a coerçã o e a
violência institucionalizada sob a forma do direito positivo, já que as leis nunca
seriam condizentes com aquilo que Hegel chamou, na Fenomenologia do Espírito,
de “as leis do coraçã o”. Leis estas para as quais o curso do mundo é
necessariamente pervertido. Contra tal hipó stase da autenticidade, para a qual
todo direito é apenas uma forma velada de violência, Hegel quer defender
afirmaçõ es como: “A liberdade é apenas isto, conhecer e querer tais objetos
substanciais universais como o direito e a Lei e produzir uma realidade
(Wirklichkeit) que lhes é conforme : o Estado”154.
Uma afirmaçã o desta natureza é facilmente objeto das piores confusõ es.
“Livre é a vontade que deseja a Lei”: nã o é difícil ouvir, nesta frase orwelliana, a
confissã o de uma filosofia que parece nã o compreender o sentido de
experiências, tã o comuns em nossas sociedades, de dissociaçã o entre direito e
justiça. Pois o que dizer quando estamos diante de leis injustas? E,
principalmente, por que falar isto em um momento no qual o estado prussiano
estava animado pelo ímpeto do Congresso de Viena (1814-1815) e pela
Restauraçã o anti-liberal que visava aplacar de vez a influência dos ideais da
Revoluçã o Francesa? No entanto, devemos salientar um ponto fundamental:
“Nã o existe revoluçã o na histó ria da humanidade que nã o tenha sido apoiada e
celebrada por esse filó sofo que também tem fama de ser um incurá vel homem da
ordem”155, seja a revoluçã o americana, seja a revoluçã o haitiana de Toussaint
L’ouverture, as revoltas da plebe contra os patrícios, a rebeliã o dos escravos sob
o comando de Spartacus, a revolta camponesa na época da reforma ou ainda a
revoluçã o francesa.
Mas Hegel saberá ter palavras duras contra o jacobinismo e o terror
revolucioná rio. Hegel sabe que o terror é o resultado desastroso da primeira
manifestaçã o de um conceito de liberdade que tem no seu bojo o momento da
liberdade negativa enunciada em nome da autenticidade entusiasmada do
sentimento. Ele é a “liberdade absoluta” transformada em fúria da destruição,
pois liberdade que nã o reconhece nenhuma possibilidade de sua
institucionalizaçã o, que vê todo direito como perda da espontaneidade livre do
entusiasmo revolucioná rio e que, por isto, se volta contra tudo que procura
determiná -la, contra todo governo. Como Hegel dirá na Fenomenologia do
Espírito, para esta liberdade absoluta: “O que se chama governo é apenas a facçã o
vitoriosa, e no fato mesmo de ser facçã o, reside a necessidade de sua queda, ou
inversamente, o fato de ser governo o torna facçã o e culpado”156. Afinal, o terror
jacobino nada tem a ver com a simples violência totalitá ria do Estado contra
setores descontentes da sociedade civil. Na verdade, ele foi o movimento
autofá gico de destruiçã o da sociedade e de auto-destruiçã o do Estado, isto até o
153
Idem, par. 3
154
HEGEL, Vorlesungen über die Philosophie der Geschichte, Frankfurt : Suhrkamp, 1986, p. 82
155
LOSURDO, Domenico, Hegel, Marx e a tradição liberal, São Paulo : Unesp, 1997, p. 155
156
HEGEL, Fenomenologia do Espírito, vol II, Petrópolis: Vozes, 1991, p. 97.
momento em que os pró prios líderes jacobinos terminaram na guilhotina. O
jacobinismo é a figura reflexiva do terror que se volta contra si mesmo.
No entanto, e isto se esquece muitas vezes, Hegel nã o deixa de salientar
que tal momento negativo da liberdade é um momento necessá rio da histó ria do
Espírito. Para compreender isto, devemos definir melhor o que Hegel entende
por “liberdade negativa”. No pará grafo 5 da sua Filosofia do direito, Hegel faz a
seguinte afirmaçã o:
No entanto, e este ponto deve ser salientado, Hegel lembra que é exclusivo do
querer humano esta capacidade de abstrair-se de tudo, de transcender toda
determinaçã o posta. Por isto, ele deve insistir que :
O formalismo do livre-arbítrio
158
FLEISCHMANN, Eugène; La philosophie politique de Hegel, Paris : Gallimard, 1992, p. 118
Hegel insiste, em vá rios momentos, que a desarticulaçã o da capacidade de
agir presente em tal concepçã o de autonomia tem um nome: “formalismo”. Neste
contexto, formalismo significa que a fundamentaçã o da açã o moral através da
pura forma do dever nã o é capaz de fornecer um procedimento seguro de
decisã o a respeito do conteú do moral de minhas açõ es. “Fundamentaçã o através
da pura forma do dever” significa definir a natureza moral de minha açã o
basicamente através de sua conformidade a certos procedimentos formais
enunciados em um imperativo categó rico (procedimentos de universalizaçã o
sem contradiçã o, de incondicionalidade e de categoricidade). Hegel nã o acredita
que a fundamentaçã o transcendental de um princípio moral possa garantir a
clarificaçã o de seus modos de aplicaçã o. Ao contrá rio, ele insiste a todo momento
que uma definiçã o meramente formal do dever cai, necessariamente, em uma
tautologia, em uma “identidade sem conteú do”.
Podemos compreender este ponto da seguinte maneira: na verdade, o
dever, embora sendo aparentemente formal, tem um “conteú do”, que é, no fundo,
o nome hegeliano para “particularizaçã o de contextos de açã o”. Maneira de
lembrar que a determinaçã o do sentido da açã o moral nã o é fruto exclusivo de
consideraçõ es procedurais. Ela exige uma articulaçã o complexa referente à
atualizaçã o de contextos particulares de açã o. Pois o dever aparece no interior de
situaçõ es particulares de açã o, situaçõ es nas quais tenho um conteú do definido
(“devo ou nã o roubar esta mercadoria se tenho fome e nã o tenho dinheiro”,
“devo ou nã o largar minha mulher por um outro amor”). Isto demonstra como o
dever é atividade tendo em vista sua realizaçã o na exterioridade. Ele se curva ao
cá lculo de uma pragmática contextualizada e intersubjetivamente estruturada. Só
a partir daí a atividade pode ser capaz de por para si mesma um fim. Isto explica
a definiçã o dada por Hegel de moralidade:
Hegel sabe que sua época também conhece tal “crise de legitimidade”. Sua
descrença em relaçã o ao fortalecimento do indivíduo como elemento de
contraposiçã o a tal tendência vem, entre outras coisas, da consciência das suas
conseqü ências catastró ficas no plano só cio-econô mico. Pois a atomizaçã o social
nã o implica apenas transferência do pó lo de decisã o sobre a orientaçã o da
conduta para os ombros dos indivíduos. Ela implica também um modo atomizado
de compreensão da dinâmica da vida social, compreensã o da vida social como
justaposiçã o de vontades individuais. Fato que nã o deve nos surpreender já que
modelos de reflexã o sobre a estrutura do sujeito moral servem, normalmente,
como modelos gerais para a compreensã o dos modos de açã o social a partir de
valores e normas. Agimos moralmente da mesma forma que agimos socialmente,
ou seja, utilizando a mesma estrutura de julgamento e orientaçã o.
Sendo assim, podemos dizer que os modelos da autonomia individual e do
livre-arbítrio acabam por produzir uma imagem da sociedade como conjunto de
normas, instituiçõ es e regras capazes de garantir a plena realizaçã o dos sistemas
particulares de interesses que se orientam a partir de sua pró pria visã o sobre a
realizaçã o do bem e das riquezas. Hegel é um dos primeiros a compreender que,
quando transplantado para a esfera das relaçõ es econô micas tal processo
produz, necessariamente, pauperizaçã o e alienaçã o social. Neste ponto,
podemos sentir a importâ ncia da leitura hegeliana dos economistas britâ nicos.
Tal leitura fora fundamental para a compreensã o hegeliana da complexidade
funcional das sociedades modernas.
Esta passagem em direçã o à economia política é justificada. Como Hegel
opera com um conceito de liberdade para o qual a definiçã o das condiçõ es sociais
de sua efetivaçã o é um problema interno à pró pria definiçã o do conceito, ele
deve poder descrever as situaçõ es nas quais o funcionamento da vida social nã o
fornece mais os pressupostos para a realizaçã o as aspiraçõ es, entre outras, da
autonomia individual. Um pressuposto fundamental está relacionado ao
funcionamento da esfera econô mica, base da constituiçã o daquilo que Hegel
entende por sociedade civil. Podemos dizer isto porque, para Hegel, problemas
de redistribuiçã o e de alienaçã o na esfera econô mica do trabalho sã o um setor
decisivo de problemas mais gerais de reconhecimento social.
Neste sentido, por exemplo, processos de pauperizaçã o nã o serã o vistos
por Hegel apenas como problemas de “justiça social”, mas sim como problemas
de condiçõ es de efetivaçã o da liberdade. Pois nã o é possível ser livre sendo
miserá vel. Livres escolhas sã o radicalmente limitadas na pobreza e, por
conseqü ência, na subserviência social. Posso ter a ilusã o de que, mesmo com
restriçõ es, continuo a pensar livremente, a deliberar a partir de meu livre-
arbítrio individual. Um pouco como o estó ico Epiteto, que dizia ser livre mesmo
sendo escravo. No entanto, uma liberdade que se reduziu à condiçã o de puro
pensamento é simplesmente inefetiva, isto no sentido dela determinar em muito
pouco as motivaçõ es para o nosso agir.
Já o jovem Hegel afirmava que, ao procurar a realizaçã o do bem e das
riquezas através da referência a seu pró prio sistema particular de interesses, a
sociedade conhece um processo de multiplicaçã o de necessidades e afirmaçã o
161
HEGEL, ibidem, par. 138
dos interesses. Da mesma forma que as necessidades se desdobram, os meios
para satisfazê-las se multiplicam e se complexificam, criando assim tanto a
riqueza, o refinamento, quanto o desenvolvimento e, principalmente, o
aprofundando a dependência entre os homens. O que leva Hegel a afirmar:
“Enquanto existência real, as necessidades e os meios advém ser para outro
através dos quais as necessidades e o trabalho de cada um é reciprocamente
condicionado”162. Pois meu trabalho advém um meio para a satisfaçã o dos outros,
assim como minha satisfaçã o depende do trabalho dos outros. É a isto que Hegel
chama de “sistema de necessidades”.
No entanto, Hegel insiste que este sistema de necessidades construído
através da mú ltipla dependência dos trabalhos tem como conseqü ência
inelutá vel a divisã o do trabalho. Desde sua juventude, Hegel percebe que o
desenvolvimento das sociedades modernas de livre mercado exige uma
especializaçã o cada vez maior dos trabalhos, fruto da complexificaçã o dos
objetos produzidos e da ampliaçã o da produçã o em larga escala. Hegel sabe que
tal processo leva necessariamente à simplificaçã o e à abstração mecânica na
esfera do trabalho que, por fim, produz a substituiçã o do homem pela má quina,
como vemos no pará grafo 198 dos Princípios da filosofia do direito. Neste sentido,
ele é talvez o primeiro a compreender que a mecanizaçã o e a automatizaçã o sã o
conseqü ências inelutá veis das sociedades modernas. Conseqü ências que
produzem um sofrimento social de alienaçã o devido à dependência dos sujeitos a
um modo de exteriorizaçã o que os mortificam. Ou seja, ao procurar a realizaçã o
do bem e das riquezas através da referência a seu pró prio sistema particular de
interesses, ocorre uma modificaçã o fundamental na estrutura do trabalho como
espaço de reconhecimento.
No entanto, Hegel reconhece outro problema social grave devido ao modo
de organizaçã o do trabalho nas sociedades liberais. Ele está indicado no seguinte
trecho dos Princípios da filosofia do direito:
162
Idem, Grundlinien ..., op. cit., par. 192
163
HEGEL, ibidem, par. 243
desvalorizaçã o cada vez maior do trabalho submetido à divisã o do trabalho. É
neste contexto que aparece a ralé (Pöbel):
A resposta que Hegel dará contra estes dois riscos de desagregaçã o da vida social
impulsionados pela hipó stase de modelos de liberdade baseados na autonomia e
a autenticidade passará pelo fortalecimento do Estado. Para que este
fortalecimento seja possível sem que ele implique mera violência, algo destes
dois modelos deve ser conservado.
Por um lado, o Estado deverá dar um objeto à liberdade negativa, dar uma
forma institucional à negaçã o impedindo que os indivíduos se petrifiquem em
determinaçõ es sociais estanques (como “membro de um estamento”,
“representante de um interesse de classe”). Isto será apresentado através das
consideraçõ es hegelianas sobre a guerra. Através da guerra, o Estado completará
um intrincado processo de formaçã o das individualidades através da
internalizaçã o do cará ter formador da experiência da negatividade da morte.
Este é um tema recorrente em Hegel e podemos encontrá -lo, por exemplo, na
Fenomenologia do Espírito, à ocasiã o da compreensã o do confrontar-se com a
morte como ir em direçã o ao fundamento da existência165. Se voltarmos à outro
momento da Fenomenologia, este dedicado à seçã o “Espírito”, encontraremos
colocaçõ es como:
164
Idem, par. 244
165
Discuti este ponto em SAFATLE, Vladimir; O amor é mais frio que a morte : negatividade,
infinitude e indeterminação na teoria hegeliana do desejo, op. cit.
governo deve, de tempos em tempos, sacudi-los em seu íntimo pelas
guerras e com isso lhes ferir e perturbar a ordem rotineira e o direito à
independência. Quanto aos indivíduos, que afundados nessa rotina e
direito se desprendem do todo aspiram ao ser para-si inviolá vel e à
segurança da pessoa, o governo, no trabalho que lhes impõ e, deve dar-
lhes a sentir seu senhor: a morte. Por essa dissoluçã o da forma da
subsistência, o espírito impede o soçobrar do Dasein ético no natural,
preserva o Si de sua consciência e o eleva à liberdade e à força. A essência
negativa se mostra como a potência peculiar da comunidade e como a
força de sua autoconservaçã o166.
166
HEGEL, ibidem, p. 455
167
SOUCHE-DAGUES, Liberté et négativité dans la pensée politique de Hegel, Paris : Vrin, 1997, p.
26.
eticidade. Ela deve fornecer a estrutura institucional para que as aspiraçõ es
individuais de autonomia sejam efetivadas. Tal estrutura engloba, inclusive, a
obrigaçã o estatal de lutar contra a fratura social inerente ao funcionamento da
sociedade civil no interior da dinâ mica capitalista de desenvolvimento. A vida
ética nã o é indiferente à questã o social, à obrigaçã o de institucionalizaçã o de
políticas de combate à pauperizaçã o (consequência que podemos derivar da
Filosofia do direito, mesmo que ela nã o esteja descrita na obra). No entanto,
devemos analisar melhor o tipo de consolidaçã o de costumes e modos de
julgamento que a noçã o de “eticidade” aplicada à vida moderna pode ser capaz
de garantir.
Notemos apenas que o Estado moderno tem uma dupla funçã o
aparentemente contraditó ria. Ele deve acolher a experiência de indeterminaçã o
que habita as individualidades e ele deve fornecer as determinaçõ es necessá rias
para a efetivaçã o da autonomia através da constituiçã o de um conjunto de leis
positivas universalizá veis. Ele fornece um conjunto de regras sociais, assim como
fornece o modo de expressã o daquilo que, nos sujeitos, é refratá rio à
determinaçã o no interior de regras sociais. Ele, ao mesmo tempo, cria instituições
e gere a indeterminação. Para ser mais claro, para Hegel, o Estado é uma
instituiçã o capaz de gerir a indeterminaçã o, de superá -la sem simplesmente
negá -la. O Estado deve realizar o que a sociedade civil nã o é capaz de realizar
(como políticas de redistribuiçã o que permitam dar realidade à s demandas
só cias de reconhecimento) e, principalmente, deve retirar os sujeitos de sua
completa imersã o na mera condiçã o de indivíduos providos de sistemas
particulares de interesses. De uma certa forma, o Estado des-individualiza os
sujeitos. No entanto, esta des-individualizacao é condiçã o para a liberdade, pois é
possibilidade de abertura do sujeito para algo mais do que a forma isolada e
atomizada do indivíduo. Pois Hegel sabe que podemos sofrer por nã o sermos um
indivíduo, ou seja, por nã o termos conseguido nos realizado como
individualidade capaz de se fazer reconhecer no interior da vida social. No
entanto, podemos sofrer também por ser apenas um indivíduo, um sofrimento
que ganha a forma do isolamento, do esvaziamento e incapacidade de se orientar
no interior da açã o social.
Lógicas do reconhecimento
Aula 9
168
Tópico muito bem desenvolvido por Moishe Postone ao afirmar: “O trabalho social não é somente o
objeto da exploração e dominação, mas é, ele próprio, o terreno da dominação. A forma não pessoal,
abstrata, ‘objetiva’ de dominação carcterística do capitalismo está aparentemente relacionada à
dominação dos indivíduos por seu trabalho social” (POSTONE, Moishe; Tempo, trabalho e dominação
social, São Paulo: Boitempo, 2014, p. 150)
169
MARX, Karl; Manuscritos. …, p. 94
com a valorizaçã o do mundo das coisas, aumenta em proporçã o a
desvalorizaçã o do mundo dos homens. O trabalho nã o produz somente
mercadorias; ele produz a si mesmo e ao trabalhador como uma
mercadoria, e isto na medida em que produz, de fato, mercadorias em
geral170.
Espoliação e monopólio
De fato, que o salá rio seja expressã o da espoliaçã o econô mica, eis algo que
Marx defende ao lembrar como o processo de valorizaçã o do Capital pressupõ e
salá rios habituais compatíveis com uma mera existência animal, como cavalos
que recebem apenas o suficiente para poder trabalhar. A produçã o da riqueza
econô mica nã o se traduz em aumento paulatino e constante dos salá rios. Marx
compreende este aparente paradoxo a partir da dinâ mica monopolista inerente
ao desenvolvimento do capitalismo:
170
Idem, p. 80
171
MARX, Karl; Manuscritos…, pp. 26-27
172
Idem, p. 28
aumentam também as necessidades, demandas e exigências, o que significa que a
pobreza absoluta pode diminuir enquanto a relativa aumentar:
Isto explica porque, quanto mais o trabalhador produz, menos tem para
consumir. A pobreza relativa implica diminuiçã o gradativa do que consigo
consumir em relaçã o à s exigências renovadas do meu sistema de interesse. Desta
forma, fica claro como Marx compreende a figura do trabalho assalariado como a
perpetuaçã o de uma forma de espoliaçã o e sofrimento. Neste sentido, poderia
parecer que uma saída consistiria na adoçã o de políticas de aumento substancial
dos salá rios, como queria Proudhom com sua tentativa de organizar as lutas
sociais a partir da pauta do aumento ou mesmo da igualdade dos salá rios. Para
Marx, o problema central nã o é apenas os baixos salá rios, mas a reduçã o do
trabalho à forma da mercadoria que se vende, de qualidade que se abstrai. Ou
seja, sua crítica nã o é apenas à espoliaçã o econô mica, mas é uma crítica do
trabalho assalariado enquanto tal, ou seja, uma crítica à ideia de trabalho em
vigor nas sociedades modernas. Isto fica claro quando Marx disser, em uma
afirmaçã o de grande importâ ncia: “o trabalho – nã o apenas nas condiçõ es atuais,
mas também na medida em que, em geral, sua finalidade é a mera ampliaçã o da
riqueza – é pernicioso, funesto”174.
Esta colocaçã o é importante por nos lembrar que a dominaçã o no
trabalho nã o está ligada apenas à impossibilidade dos produtores imediatos
disporem de sua pró pria produçã o e dos produtos por eles gerados. Nã o se trata
apenas de uma questã o de apropriaçã o e dominaçã o consciente, através da
“cooperaçã o histó rico-universal dos indivíduos”; apropriaçã o destes “poderes
que, nascidos da açã o de alguns homens sobre os outros, até agora se impunham
sobre eles, e os dominavam na condiçã o de potências absolutamente
estranhas”175. Pois, se nã o nos perguntarmos sobre a extensã o real de tal
domínio, correremos o risco de deixar dois problemas intocados, a saber, o fato
da produçã o do valor (a “mera ampliaçã o da riqueza”), como forma de riqueza e
de determinaçã o de objetos, permanecer no centro das estruturas de dominaçã o
abstrata176 e, principalmente, o fato da relaçã o sujeito/objeto continuar a ser
pensada sob a forma do pró prio (como expressã o da consciência, seja ela falsa ou
histó rico-universal) e da propriedade (seja ela individual ou comunal, injusta ou
justamente distribuída).
O problema relativo à reflexã o do trabalho acaba por definir-se como um
problema de “redistribuiçã o de propriedade”, redistribuiçã o do que se dispõ e
diante de mim como aquilo que tem, na sua identidade para comigo, sua
173
MARX, Karl; Manuscritos …, p. 31
174
MARX, Karl; Manuscritos …, p. 30
175
MARX, Karl; A ideologia alemã, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. p. 61
176
Cf. POSTONE, idem, p. 151
verdadeira essência. Neste sentido, é difícil nã o aceitar que “o sujeito histó rico
seria nesse caso uma versã o coletiva do sujeito burguês, constituindo-se e
constituindo o mundo por meio do ‘trabalho’” 177. Por isto, ao menos dentro de tal
perspectiva, nã o faria sentido falar do trabalho como categoria de contraposiçã o
ao capitalismo, já que ele estaria organicamente vinculado à s estruturas
disciplinares de formaçã o da natureza utilitá ria das relaçõ es pró prias à
individualidade liberal e seus direitos de propriedade, expressando apenas
amplos processos de reificaçã o.
Gattungsleben
Esta caracterizaçã o do homem como “ser sem espécie definida”, “ser sem medida
adequada”, de onde se segue sua possibilidade de produzir segundo a medida de
qualquer espécie, abre a possibilidade para uma indiferença genérica em relaçã o
à determinaçã o pró pria a toda espécie nas suas relaçõ es de transformaçã o do
meio-ambiente, o que lhe leva a encontrar a medida inerente ao pró prio
objeto179. Liberado da condiçã o de ser apenas objeto para-um-outro, o objeto
pode ser expressã o daquilo que, no sujeito, nã o se reduz à condiçã o de ser para-
um-outro. Daí porque encontrar a medida inerente ao objeto é, ao mesmo tempo,
superar a alienaçã o do sujeito. E o que, no sujeito, nã o se reduz a tal condiçã o de
ser para-um-outro, é o que nele nã o se configura sob a forma de espécie alguma,
nã o tem imagem de espécie alguma pois é sua “vida do gênero” (Gattungsleben)
que se objetifica no objeto trabalhado. O termo vem de Feuerbach que, ao
procurar estabelecer distinçõ es entre humanidade e animalidade, dirá que:
177
Idem, p. 99
178
MARX, Karl; Manuscritos econômico-filosóficos, op. cit., p. 85 [trad. modificada]
179
Não será a última vez que Marx usará a potência de indeterminação do sujeito para construir um
espaço de reconhecimento não-alienado. De certa forma, tal “ser sem espécie definida” adianta, do
ponto de vista ontológico, a “classe dos desprovidos de classe” na qual Marx encontrará o proletariado,
como veremos de maneira mais articulada na terceira parte deste livro.
De fato é o animal objeto para si mesmo como indivíduo – por isto ele tem
sentimento de si – mas nã o como gênero – por isto, falta-lhe a consciência,
cujo nome deriva de saber. Onde existe consciência existe também a
faculdade para a ciência. A ciência é a consciência dos gêneros. Na vida,
lidamos com indivíduos, na ciência com gêneros. Mas somente um ser
para o qual seu pró prio gênero, sua quididade, torna-se objeto , pode ter
por objeto outras coisas ou seres de acordo com a natureza essencial
deles 180
182
Desenvolvi melhor esta ideia, a propósito da leitura adorniana de Hegel, em SAFATLE, Vladimir:
“Os deslocamentos da dialética” In: ADORNO, Theodor; Três estudos sobre Hegel, São Paulo: Unesp,
2013
183
ESPOSITO, Roberto; Communitas, op. cit., p. XIV
do futuro pró ximo”184 capaz de fornecer aquilo que Marx chama de uma
superaçã o positiva da propriedade privada.
Sobre o primeiro, Marx o descreve como uma generalizaçã o de todas as
relaçõ es sociais sob a forma das relaçõ es de propriedade: “o domínio da
propriedade material é tã o grande frente a ele que ele quer aniquilar tudo que
nã o é capaz de ser possuído por todos como propriedade privada” 185. Na verdade,
a relaçã o por propriedade permanece sendo a relaçã o da comunidade com o
mundo das coisas, mesmo que no lugar da propriedade privada tenhamos agora
a propriedade comunal. Uma propriedade comunal que pressupõ e um certo
retorno à simplicidade que é, para Marx, apenas expressã o da negaçã o abstrata
do mundo inteiro da cultura.
Marx chega a afirmar que a comunidade das mulheres, no qual a mulher
advém uma propriedade comunitá ria e comum, seria o segredo deste
comunismo rude:
184
MARX, Karl; Manuscritos…, p. 114
185
Idem, p. 103
186
MARX, Karl; Manuscrito …, p. 104
187
Idem, p, 107
Ao falar desta apropriaçã o que nã o é possessã o, que nã o é submissã o aos
princípios utilitá rios, Marx afirma:
188
MARX, Karl; idem, p. 108
Lógicas do reconhecimento
Aula 10
Crise e revolução
O fracasso da revolução
No entanto, com a Revolução de 1848, Marx se depara com algo que ele não
esperava no Manifesto Comunista, a saber, o fracasso da revolução que parecia tão
iminente, com a consequente adesão de uma parte do socialismo francês ao
bonapartismo, com a passividade operária diante do golpe de Estado de Luís
Bonaparte. Esta experiência histórica é tão importante que, a partir de 1852, Marx só
voltará a publicar um livro em 1859, a saber, Para a crítica da economia política. É a
partir do fracasso da revolução que Marx se volta de maneira mais sistemática à
crítica da economia política. Como se fosse questão de procurar, na estrutura da
racionalidade da vida social moderna e de seus modos de reprodução material da vida,
as causas fundamentais para o bloqueio da assunção do proletariado a condição de
sujeito revolucionário.
Marx irá então se colocar a questão: como se perde uma revolução? Qual a
operação que não leva a uma revolução, mas a uma “parodia” de transformação, a
uma “mascarada”, a um falso movimento. Esta discussão é fundamental por nos
mostrar como, no interior da teoria política de Marx, haverá a distinção entre uma
verdadeira revolução e uma transformação meramente aparente. Isto a ponto de
podermos dizer que o capitalismo será então um espaço de produção contínua de
transformações aparentes que visam evitar uma transformação real.
Inicialmente, Marx fala em diversas ocasiões que a revolução de fevereiro de
1848, que derrubou a monarquia de Luís Filipe, ocorreu “cedo demais”. Ou seja, não
havia um processo proletário amadurecido. A revolução foi impulsionada pela crise
econômica com sua “devastação do comércio e da indústria” 192 que tornou a tirania da
aristocracia financeira ainda mais insuportável. Ela ainda se serviu da divisão da
burguesia entre a aristocracia financeira, ligada à monarquia que vigora na França
entre 1830 e 1848, e a burguesia industrial, que sofrerá diretamente com a crise e
191
BALIBAR, Etienne; La philosophie de Marx, p. 79
192
MARX, Karl; As lutas de classe na França, p. 42
encontra-se distante do centro de decisões do poder. Por isto, entre fevereiro e junho
de 1848, mês das revoltas populares e das barricadas em Paris, o movimento ocorreu
de forma retroativa. Tudo se passa como se as condições necessárias para a revolução
proletária fossem se desenvolver depois da queda da monarquia. Este processo
retroativo não é, no entanto, a fonte do fracasso da revolução. A respeito das causas
do fracasso, lembremos das palavras de Marx:
Genealogia do proletariado
193
MARX, Karl; O 18 do brumário, p. 35
194
RANCIÈRE, Jacques; “Politics, identification and subjectivation” in: RAJCHMAN, John; The
identity in question, Nova York: Routledge, 1995, p. 67
195
STALLYBRASS, Peter; “Marx and heterogeneity: thinking the lumpemproletariat” In:
Representations, vol 0, n. 31, p. 84
entre os saint-simonistas que a dicotomia entre proletários e burgueses será descrita
pela primeira vez, ainda que em um horizonte de reconciliação possível de interesses.
Neste sentido, mais do que cunhar o uso social do termo, o feito de Marx
encontra-se em vincular o conceito de proletariado a uma teoria da revolução ou,
antes, a uma teoria das lutas de classe que é a expressão da “história da guerra civil
mais ou menos oculta na sociedade existente” 196. Daí porque Marx falará, a respeito
dos saint-simonistas e de outros socialistas “crítico-utópicos”: “Os fundadores desses
sistemas compreendem bem o antagonismo de classes, assim como a ação dos
elementos dissolventes na própria sociedade dominante. Mas não percebem no
proletariado nenhuma iniciativa histórica, nenhum movimento político que lhes seja
peculiar”197.
A sua maneira, Marx partilha com Hobbes a compreensão da vida social como
uma guerra civil imanente. No entanto, como não se trata de pensar as condições para
a formação da sociedade como associação de indivíduos, mas parar de pensar a vida
social a partir da elevação do indivíduo como célula elementar, esta guerra não será a
expressão da dinâmica concorrencial entre indivíduos desprovidos de relações
naturais entre si. Ela será uma guerra de classes no interior da qual uma das classes
aparece como o conjunto daqueles que nada mais dispõem. Por isto, uma guerra que
só pode levar não a vitória de uma classe sobre outra, mas à destruição do princípio
que constitui as classes, a saber, o trabalho e a propriedade como atributo fundamental
dos indivíduos. O que explica porque Marx deverá ser claro:
Isto demonstra como, segundo Marx, a revolução só pode ser feita pela classe dos
despossuídos de predicado e profundamente despossuídos de identidade. Classe
formada por “indivíduos histórico-universais, empiricamente universais, em vez de
indivíduos locais”203. Para que apareçam indivíduos histórico-universais, faz-se
necessário uma certa experiência de negatividade que, desde Hegel, é condição para a
fundamentação da verdadeira universalidade. Tal experiência, o proletariado a sofre
através da despossessão completa de si descrita por Marx em termos como:
202
Idem, A ideologia alemã, p. 58
203
MARX, Karl; A ideologia alemã, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, p. 58
204
MARK, Karl; Manifest der Kommunistischen Partei in
http://www.marxists.org/deutsch/archiv/marx-engels/1848/manifest/1-bourprol.htm
bohème”205 e que Marx define como “lumpemproletariado” 206. Vale a pena discutir
melhor este ponto porque não foram poucos aqueles que tentaram, desde Bakunin,
transformar o conceito de lumpemproletariado no verdadeiro conceito com força
revolucionária207.
Tal como acontece com o conceito de proletariado, o conceito de
lumpemproletariado não descreve imediatamente um agente econômico, mas um tipo
de sujeito político, ou antes, uma espécie de anti-sujeito político. Lembremos da
estranha extensão que o termo toma no 18 do brumário:
Difícil não ler esta série descrita por Marx com seus literatos e amoladores de tesoura
sem se lembrar da Enciclopédia fantástica de Borges. Pois o que totaliza esta série não
é a suposta analogia entre seus elementos a partir do desenraizamento social. A este
respeito, lembremos como em Luta de classe na França, Marx chega a descrever a
própria aristocracia financeira como “o renascimento do lumpemproletariado nos
cumes da sociedade burguesa”. Há um lumpemproletariado no baixo nível do estrato
social e no alto nível, sendo os do alto nível perfeitamente enraizados à escroqueria
funcional do capitalismo financeiro.
O que os une é, na verdade, uma certa concepção de improdutividade, uma
diferenciação entre trabalho produtivo e trabalho improdutivo, mas diferenciação
concebida do ponto de vista da produtividade dialética da história. Pois o
lumpemproletariado é uma massa desestruturada cuja negatividade não se coloca
como contradição em relação às condições do estado atual da vida. Neste sentido, ele
é a representação social da categoria de negatividade improdutiva. Por isto, trata-se de
uma massa heterogênea que pode ganhar homogeneidade desde que encontre um
termo unificador que lhe dará estabilidade no interior da situação política existente.
Tal termo, no 18 do brumário, não é outro que Napoleão III, “o chefe do
lumpemproletariado”. Aquele que dá homogeneidade a tal heterogeneidade social, a
história mesma repetida como farsa e que deve se confessar enquanto farsa para poder
se manter.
No entanto, há de se insistir como o modelo de estabilização produzido por
Napoleão III é uma espécie de estabilização na anomia. Através de Napoleão III, a
heterogeneidade do lumpemproletariado permanece radicalmente passiva, permanece
como ação anti-política, pois acomoda-se à gestão do desenraizamento social, seus
crimes romantizados não se transformam em ação de transformação alguma. Na
verdade, essa desestruturação e indefinição anômica do lumpemproletariado é própria
205
MARX, Karl; O 18 brumário de Luis Bonaparte, São Paulo: Boitempo, 2011, p. 91
206
Ver, por exemplo, THOBURN, Nicholas; “Difference in Marx: the lumpenproletariat and the
proletarian unamable”; Economy and Society Volume 31 Number 3 August 2002: 434–460
207
Como vemos, por exemplo, em STALLYBRASS, Peter; “Marx and heterogeneity: thinking the
lumpemproletariat” In: Representations, vol 0, n. 31, p. 84 e LACLAU, Ernesto; La razón populista,
op. cit.
208
MARX, Karl; O 18 do brumário, op. cit., p. 91
de quem ainda conserva a esperança de retorno da ordem, ou que não é capaz de
conceber nada fora de uma ordem que ele mesmo sabe estar completamente
comprometida. O que faz suas ações políticas serem apenas “paródias” de
transformações, “comédias”, ou ainda, “mascaradas”: todos termos usados por Marx
no 18 de brumário para falar de revoluções que são, na verdade, tentativas de
estabilização no caos. O lumpemproletariado representa uma negatividade que não
pode ser integrada no processo dialético porque ele representa o congelamento da
negatividade em uma espécie de cinismo social.
Já o caso do proletariado é marcado pela ausência de qualquer expectativa de
retorno. O proletariado é uma heterogeneidade social que simplesmente não pode ser
integrada sem que sua condição passiva se transforme em atividade revolucionária.
Por isto, ao ser desprovido de propriedade, de nacionalidade, de laços com modos de
vida tradicionais e de confiança em normatividades sociais estabelecidas, ele pode
transformar seu desamparo em força política de transformação radical das formas de
vida. Para tanto devemos compreender que a afirmação da condição proletária não se
confunde com alguma forma de demanda de reconhecimento de formas de vida
desrespeitadas, claramente organizadas em suas particularidades. Ao contrário, a
afirmação de tal condição proletária gera a classe destes sujeitos sem predicados
descritos da seguinte forma em A ideologia alemã:
Apropriar-se
214
BALIBAR, Etienne; Citoyen sujet et autres essais d’anthropologie philosophique, Paris: PUF, 2011,
p. 260.
215
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich: Manifesto Comunista, op. cit., p. 50
216
HEGEL, GWF; Fenomenologia do Espírito – vol. II, Rio de Janeiro: Petrópolis, 1992, p. 33
homem como mônada isolada recolhida dentro de si mesma (…) A aplicação
prática do direito humano à liberdade equivale ao direito humano à
propriedade privada”217.
A coisa toda seria muito simples se houvesse apenas a infelicidade da luta que
opõe ricos e pobres. A solução do problema foi encontrada muito cedo. Basta
suprimir a causa da dissensão, ou seja, a desigualdade de riquezas, dando a
cada um uma parte igual de terra. O mal é mais profundo. Da mesma forma
que o povo não é realmente o povo, mas os pobres, os pobres por sua vez não
são realmente os pobres. Eles são apenas o reino da ausência de qualidade, a
efetividade da disjunção primeira que porta o nome vazio de ‘liberdade’, a
propriedade imprópria, o título do litígio. Ele são eles mesmos a união
distorcida do próprio que não é realmente próprio e do comum que não é
realmente comum218.
Lógicas do reconhecimento
Aula 11
224
KOJÈVE, Alexandre; Introduction à la lecture de Hegel, pag. 11
225
KOJÈVE, Alexandre; op. cit. pag.166.
226
idém, pag. 12
227
KOJÈVE, Alexandre; pag. 14
efetiva-se uma dissimetria na relaçã o entre as duas consciências. Uma reconhece,
outra é reconhecida228.
Aquela que é reconhecida sem reconhecer será chamada de Senhor: o ser
que é somente para-si. Sua relaçã o com o outro é de pura negatividade. Para ele,
o outro nã o tem essência alguma. O Senhor representa o momento da reflexã o-
em-si, o momento do Gozo da identidade imediata consigo mesmo. Aquela
consciência que reconhece sem ser reconhecida é o Escravo: o ser em-si, ou seja,
o lado da objetividade que encontra sua determinidade no outro. O Escravo está
retido na coisidade, na vida, no ser-para-um-outro. Logo, sua essência lhe
aparece como estando em um mais-além de si mesmo. Ele nã o tem
essencialidade nenhuma e, por isto, representa o momento da reflexã o-no-Outro.
O fim desta dialética nó s conhecemos. Por um lado, o Senhor vive em um
impasse existencial pois só é reconhecido por uma consciência desprovida de
essencialidade. Seu reconhecimento é uma ilusã o e sua liberdade é fundada em
um impasse229. Mas por outro lado, ao temer a morte submetendo-se ao Senhor, o
Escravo provou a angú stia do Nada. “Ele se viu como nada, ele compreendeu que
toda a sua existência era apenas uma morte ‘superada’, ‘suprimida’
(aufgehoben)”230. Só ele chegou à verdade do Ser ao compreender que o desejo
de ser pura negatividade, pura abstraçã o de si, só se realiza na morte. Ele
desvelou a essência do ser como ser-para-a-morte. Pois: “‘o ser verdadeiro do
Homem é, em ú ltima aná lise, sua morte enquanto fenô meno consciente”231.
No caso de Kojève o problema é como satisfazer este Desejo que só se
realiza na morte sem apelar para o suicídio (que nã o seria uma forma de
satisfaçã o). Como o infinito da absoluta liberdade que nega toda determinidade
pode reconciliar-se com o finito e, enfim, aparecer? Em termos kojèveanos: como
o homem pode tornar-se Deus e, assim, ser Sá bio alcançando o Saber Absoluto? A
resposta deve ser procurada do lado do Escravo. Através das vias do Trabalho, o
Escravo alcança a verdadeira liberdade. É verdade que só o Trabalho nã o liberta
mas, transformando o Mundo, negando a coisa dada: “o Escravo se transforma e
cria assim as condiçõ es objetivas novas que lhe permitirã o retomar a Luta
libertadora pelo reconhecimento que ele, em um primeiro momento, recusou por
medo da morte”232. Trabalhando, o Escravo dá forma objetiva à pura
negatividade que se manifestou nele através do medo da morte. Por isto, em
Hegel o trabalho é desejo refreado, desejo que forma.
Se concordarmos com Kojève a respeito da similitude estrutural entre
Trabalho e Discurso podemos chegar à conclusã o final. A astú cia da Razã o abre
as portas para que a consciência seja consciência-de-si capaz de unificar saber de
si e saber do mundo através de um Discurso que é a pró pria revelaçã o-do-ser-
pela-palavra de forma completa e adequada. Uma revelaçã o que é a apresentaçã o
228
Descombes têm uma boa ilustração do impasse lógico originado pela introdução do problema da
alteridade na filosofia francesa contemporânea: “Nova versão da narrativa do encontro de Sexta-Feira
por Robinson Crusoé, a fenomenologia do outro não cessa de apresentar as múltiplas faces da
contradição: o outro é para mim um fenômeno, mas eu sou também um fenômeno para ele.
Manifestamente, um de nós está sobrando no papel de sujeito e deverá se contentar em ser, para si-
mesmo, o que ele é para o outro” DESCOMBES, Vincent; Le même et l’autre, pag. 33.
229
Não é por outra razão que a dialética do reconhecimento deve terminar em uma sociedade sem
Senhores e Escravos. O que significa dizer: em uma sociedade situada no fim da História.
230
KOJÈVE,Alexandre; Introduction à la lecture de Hegel, pag. 175
231
idém, pag. 566.
232
idém; pag. 32
do homem como ser-para-a-morte233. Em Kojève a idéia de ser-para-a-morte está
profundamente ligada à noçã o do homem enquanto vir-a-ser. Para o ser-
natural, idêntico a si mesmo e está tico, toda mudança radical é sempre imposta
de fora e significa sua aniquilaçã o. O ser humano, ao contrá rio, pode transcender
a si mesmo e vir a ser um ser-Outro sem, com isto, deixar de ser o que é, ou seja,
ser humano. Por isto, Kojève pode afirmar que, enquanto para o animal, a causa
de sua morte é externa, para o homem ela lhe é interna. Ele mesmo é a causa de
sua morte por ser vir-a-ser e aniquilaçã o de sua natureza dada. Conclusã o: o
homem é a doença mortal do animal.
No momento em que o homem se conscientiza de sua finitude absoluta,
abandonando a ideia de um mais-além e tomando a palavra de um Discurso que
é morte encarnada, que é “vida que suporta a morte e nela se conserva”, ele pode
satisfazer-se. Ele pode enfim alcançar a condiçã o de Sá bio portador do Saber
Absoluto, Sá bio consciente de si por ser capaz de “encarar o negativo e demorar-
se junto dele”234. A luta entre Senhor e Escravo cessa e a Histó ria, entã o, encontra
seu fim: “Assim, Saber Absoluto ou Sabedoria e aceitaçã o consciente da morte,
compreendida como nadificaçã o completa e definitiva, sã o a mesma coisa”235.
O fim da Histó ria e das lutas de dominaçã o e servidã o marcaria o advento
do Estado Universal homogêneo do qual o Sá bio seria cidadã o. Como o Discurso
pode enunciar a ú ltima palavra e revelar o Ser nã o há mais necessidade da açã o
negadora do homem. O Sá bio pode, entã o, dedicar-se ao cultivo do snobismo
através da arte, do jogo, do amor etc. Aqui, para além dos enganos da satisfaçã o
animal do desejo ilustrada na destruiçã o infinita ruim do consumo, a verdadeira
negatividade encontra satisfaçã o nas representaçõ es formalizadas e
teatralizadas do sujeito. Ela deleita-se na artificialidade leve das açõ es gratuitas e
sem finalidade. Se a Histó ria nã o fala mais, entã o o Sá bio fabrica, ele mesmo, a
negatividade gratuita.
Anos depois de ministrar seus seminá rios, já como membro do alto
escalã o do corpo diplomá tico francês, Kojève encontrará a melhor configuraçã o
desta subjetividade pó s-histó rica no modo de vida japonês. A estilizaçã o
presente na vida cotidiana japonesa através das figuras da cerimô nia do chá , do
ikebana, dos bonsaïs, das gueixas era, aos olhos de Kojève, a pró pria
democratizaçã o do snobismo. “O Japã o é um país com oitenta milhõ es de snobs”.
Daí, a conclusã o inevitá vel: “se o humano se funda sobre a negatividade, o fim do
discurso da histó ria oferece duas vias, japonisar o Ocidente ou americanisar o
Japão, quer dizer, fazer amor de uma forma natural ou à maneira de macacos”236.
243
Vale a pena notar que se trata de um problema estruturalmente muito semelhante àquele que anima a
luta de vida ou morte na Dialética do Senhor e do Escravo tal como Hegel a descreve. Tanto é assim
que o encontramos a afirmar que: “Porém a apresentação de si como pura abstração da consciência-de-
si consiste em mostrar-se como pura negação de sua maneira de ser objetiva, ou em mostrar que não
está vinculado a nenhum ser-aí determinado, nem à singularidade universal do ser-aí em geral, nem à
vida”(Cf. HEGEL, G.W.F.; Fenomenologia do espírito, pag. 128). O problema aqui consiste em saber
como a pura negatividade pode encarnar-se na determinidade, ou seja, como a consciência pode ter a
experiência do estar-aí do puro Eu. Problema similar àquele apresentado por Lacan através da noção de
palavra plena..
Lógicas do reconhecimento
Aula 12
244
LACAN, E., p. 216
245
LACAN, E, p. 289
246
LACAN, S VI, sessão do 13/05/59
247
LACAN, E. p. 279
A realizaçã o intersubjetiva do desejo, ou seja, a reflexividade pró pria ao
reconhecimento do desejo do sujeito pelo Outro apresentava-se como a essência
da cura analítica. Tratava-se da possibilidade de assunçã o do desejo do sujeito na
primeira pessoa do singular no interior de um campo lingü ístico
intersubjetivamente partilhado. De onde se seguia a afirmaçã o: “O sujeito
começa a aná lise falando de si sem falar a você, ou falando a você sem falar de si.
Quando ele for capaz de falar de si a você, a aná lise estará terminada”248.
Percebemos aqui que, para Lacan nos anos cinquenta, dialética, diá logo,
intersubjetividade e reconhecimento eram termos convergentes. Na verdade, a
dialética nomearia a estrutura ló gica do diá logo intersubjetivo que opera na
aná lise. Um diá logo particular já que seria capaz de produzir o reconhecimento
do desejo. A ló gica dialética ficava assim reduzida a formalizaçã o de relaçõ es
intersubjetivas pró prias a uma modalidade muito específica de diá logo chamada
à s vezes por Lacan de : “maiêutica analítica”249.
Esta maneira de articular dialética e intersubjetividade levou Lacan a
aproximar dialética hegeliana e dialética platô nica a fim de falar da “dialética da
consciência de si, tal como ela se realiza de Só crates até Hegel”, isto contra a
opiniã o do pró prio Hegel250. É claro que tal operaçã o levanta vá rias questõ es,
sendo que a maior delas é: estaríamos diante de um retorno da dialética a sua
matriz dialó gica ? De fato, Lacan nã o parece temer tal retorno já que afirma :
Um exemplo privilegiado da maneira com que Lacan pensa os usos clínicos da dialé tica do reconhecimento é dado neste
momento pela sua leitura do caso Dora, de Freud.
O motor da interpretaçã o é dado por inversõ es da palavra do paciente. O analista procura mostrar o que o
paciente desconhece, ou seja, o que ele pressupõ e sem poder pô r. Neste sentido, a interlocuçã o analítica pode permitir ao
sujeito receber sua pró pria mensagem de uma maneira invertida. O que nã o é outra coisa que a utilizaçã o clínica da
fó rmula : "na linguagem, nossa mensagem nos vem do Outro sob uma forma invertida" 257.
Esse processo aparece no caso Dora sob a forma de uma sucessã o de três inversões dialéticas mas cuja ú ltima
nã o teria sido elaborada por Freud devido à ausê ncia de uma interpretaçã o capaz de levar Dora a reconhecer o valor do
que lhe aparecia como objeto de seu desejo. Vejamos de perto em que consistiam tais inversõ es e até onde elas podem
nos levar.
Dora era uma histé rica levada a Freud devido a uma intençã o de suicídio seguida de um desmaio. Ela
apresentava também sintomas de depressã o e alguns sintomas de "conversã o" motivados pelo desgosto do gozo sexual.
Um desgosto resultante do que Freud chamava de inversão do afeto (Affektverkehrung).
Sua aná lise se coloca inicialmente sob o signo da reivindicaçã o dirigida ao pai. Ela reclama que o amor de seu
pai lhe fora roubado pela ligaçã o deste com uma amante, a Sra. K. Como em uma espé cie de troca, ele a ofereceu à s
assiduidades do marido da amante, o Sr. K. A primeira inversão consistirá em mostrar como o sujeito desconhece (no
sentido de denegar) que esta configuraçã o do estado do mundo dos objetos de seu desejo é suportada e pressuposta por
seu pró prio desejo. O sujeito coloca como limite uma diferença exterior que, na verdade, é : "a manifestaçã o mesma de seu
ser atual"258. Dora deve pois se reconhecer naquilo que ela nega como absolutamente estrangeiro e fora de seu desejo.
Neste sentido, o primeiro papel da interpretaçã o analítica consistiria em permitir ao sujeito internalizar de maneira
reflexiva uma diferença interna que lhe apareceu inicialmente como um limite externo. E aqui Lacan pensa sobretudo em
afirmaçõ es freudianas como : "Ela tinha razã o : seu pai nã o queria levar em conta o comportamento do Sr. K em relaçã o à
sua filha, isto a fim de nã o ser incomodado na sua relaçã o com a Sra. K. Mas ela havia feito exatamente a mesma coisa. Ela
havia sido cú mplice desta relaçã o e tinha descartado todos os índices que testemunhavam sua verdadeira natureza"259.
Tal relaçã o de cumplicidade a respeito de um estado de coisas cujo motor primeiro é o desejo do pai revela
como o desejo de Dora estaria vinculado, de maneira constitutiva, ao desejo do Outro paterno. É em torno deste desejo
que gira todo o drama. A primeira inversã o leva pois ao desvelamento de uma relaçã o edípica constituída pela
identificaçã o paterna.
Tal desvelamento permitirá a dissoluçã o de uma parte significativa dos sintomas ditos de conversã o. Sintomas
ligados à oralidade (acesso de tosse, dipné ia, asma nervosa, afonia) que revelam a inscriçã o, no corpo sexuado, de um
modo de identificaçã o e de demanda em relaçã o ao pai. Lacan lembrará da importâ ncia do papel do pai na histó ria da
formaçã o do corpo eró geno de sua filha. Importâ ncia legível na maneira com que a erogenidade do corpo de Dora é
deslocada em direçã o à oralidade - o que nã o deixa de indicar a representaçã o oral da relaçã o sexual (felaçã o) prevalente
255
HYPPOLITE, Figures de la pensée philosophique, Paris: PUF, 1971, p.215
256
Ver a este respeito o clássico artigo Auto-reflexão ou interpretação sem sujeito: Habermas
intérprete de Freud in PRADO JR., Alguns ensaios, São Paulo: Paz e Terra, 2000, assim como meu
comentário em SAFATLE, Auto-reflexão e repetição : Bento Prado Jr. e a crítica ao recurso
frankfurtiano à psicanálise in Agora: Estudos em teoria psicanalítica, 2004
257
LACAN, E., p. 7
258
LACAN, E, p. 172
259
FREUD, GW vol. V, p. 210
devido à impotê ncia do pai, assim como os prazeres de chupeteadora na sua primeira infâ ncia que estabelecem o gozo em
uma á rea de cumplicidade com o pai.
A segunda inversão é uma espé cie de desdobramento deste reconhecimento da identificaçã o ao pai em direçã o
à identificaçã o à s escolhas de objeto do pai. Freud se pergunta de onde vem o cará ter prevalente (überwertiger) da
repetiçã o dos pensamentos de Dora a respeito da relaçã o entre seu pai e a Sra. K. Sua aná lise demonstra que o ciú me em
relaçã o à Sra. K é um pensamento reativo (Reaktionsgedanke) que esconde um pensamento inconsciente oposto
(Gegensatz). A aná lise deve pois permitir novamente uma inversã o no oposto: “Tornar consciente o recalcado oposto é o
caminho para retirar, de um pensamento prevalente, sua amplificaçã o”260. Trata-se de um trabalho que permite à aná lise
mostrar como o ciú me era apenas um modo de manifestaçã o da identificaçã o ao lugar do sujeito-rival. Lugar ocupado por
estas duas mulheres amadas pelo seu pai, uma antes e outra agora; ou seja, a mã e e, principalmente, Sra. K. O ó dio pode
pois se inverter no seu oposto: o amor. Um movimento pulsional que Freud chamará mais tarde de inversão no oposto
(Verkehrung ins Gegenteil). Inversã o que Lacan sublinha ao falar desta inclinaçã o homossexual fundada sobre a: "ligaçã o
fascinada de Dora pela Sra. K"261. Pois: "toda a situaçã o se instaura como se Dora tivesse posto para si a questã o - O que
meu pai ama na Sra. K?"262.
Mas, antes de continuar a análise lacaniana, coloquemos uma questã o de mé todo. Até aqui, nada nos impede de
pensar a interpretaçã o analítica como auto-reflexão da consciência que permite ao sujeito inverter seus
desconhecimentos em rememoraçã o capaz de historicizar os nó s traumá ticos. Até aqui, as intervençõ es do analista
procuraram abrir ao sujeito as vias para que ele possa pô r aquilo que desconhece. Nã o estamos muito distantes de uma
teoria do fim de análise como historicização dos conteúdos recalcados e dos núcleos traumáticos que se desdobra a partir do
horizonte convergente dos processos de simbolizaçã o. O que nos explicaria afirmaçõ es como: "A reconstituiçã o completa
da histó ria do sujeito é o elemento essencial, constitutivo, estrutural, do progresso analítico"263.
O que vimos até agora com Dora foi a assunçã o pelo sujeito de sua histó ria
através de procedimentos de construçã o e de interpretaçã o analítica de forte
tendência hermenêutica. O inconsciente aparece como algo que, graças ao
progresso da simbolizaçã o na aná lise, teria sido: enfim, algo que será realizado
no simbólico. O que permitirá a integraçã o exaustiva das determinaçõ es
opacas que davam corpo aos conteú dos recalcados.
No entanto, notemos como a interpretaçã o de Lacan terminará . Tomemos, por
exemplo, o segundo sonho trazido por Dora e no qual o dado principal é a
morte do pai. Uma morte anunciada através de uma carta da mã e na qual se lê:
"Agora ele está morto e, se você quiser (?), pode vir". Freud associa tal carta à
carta deixada por Dora na qual ela ameaçava suicidar-se a fim de amedrontar
o pai levando-o a deixar a Sra. K. Isto permite a Freud compreender a morte
do pai como manifestaçã o de um desejo de vingança de Dora devido a um
amor edípico traído. Por outro lado, com a morte do pai, as interdiçõ es sobre o
saber da sexualidade seriam levantadas, o que o sonho figura através da
leitura que Dora faz de um dicioná rio. Para Freud, isto significa reconhecer o
desejo inconsciente de substituir o amor ao pai pelo investimento libidinal no
Sr. K. Mas Freud nã o desenvolve o fato de que Dora associa o "se você quiser"
aos termos de uma carta da Sra. K que a convidava à casa do lago. Tal
associaçã o poderia revelar o valor da identificaçã o homossexual de Dora à Sra.
K permitindo, com isto, a consolidaçã o de uma outra via de interpretaçã o.
É neste sentido que Lacan criticará o final de aná lise proposto por Freud. Nó s
vimos como Freud e Lacan reconheciam a importâ ncia da identificaçã o de
Dora à Sra. K. Freud chega a falar de um "amor inconsciente no sentido mais
profundo" e a reconhecer o amor de Dora à Sra. K como elemento central da
histó ria do desejo da paciente. Mas este dado continuará marginal no conjunto
da economia da interpretaçã o freudiana. Ao contrá rio, Freud prefere ver aí
uma identificaçã o ao lugar do sujeito-rival enquanto lugar da escolha paterna
260
FREUD, GW vol. V, p. 214 « Das Bewutmachen des vardrängten Gegensatzes ist dann der Weg,
um dem überstarken Gedanken seine Verstärkung ze entziehen »
261
LACAN, E., p. 220
262
LACAN, S IV, p. 141
263
LACAN, S I, p. 18 (citação modificada)
de objeto. O que lhe permite compreender o comportamento de Dora como o
comportamento de uma mulher ciumenta em relaçã o ao amor do pai. A
questã o central para Freud será pois: "por que o amor edípico foi reavivado
neste momento da histó ria do desejo do sujeito?". Sua resposta é
programá tica: trata-se de um sintoma que visa exprimir aquilo que está
presente no inconsciente: o amor pelo Sr. K. Resultado incontorná vel se
seguirmos os postulados de uma hermenêutica edípica.
Lacan, por sua vez, prefere levar o final de aná lise em direçã o ao
desvelamento daquilo que ele chama de "valor real" do objeto que a Sra. K
representa para Dora: "ou seja, nã o um indivíduo, mas um mistério, o mistério
de sua pró pria feminilidade; nó s queremos dizer, de sua feminilidade
corporal"264.A fascinaçã o de Dora pela Sra. K encontraria sua raiz na questã o
maior para uma histérica: "O que é uma mulher?". Questã o que toca a
estrutura de sua posiçã o subjetiva através da sexuaçã o de seu corpo. Mas nã o
se trata aqui de ver na imagem da Sra. K uma resposta capaz de saturar a
questã o sobre o mistério do feminino. Se este fosse o caso, a aná lise
terminaria na assunçã o da identificaçã o narcísica com uma imagem na
posiçã o de eu ideal.
Na verdade, a terceira inversão traz uma inversã o interna no valor da
imagem do feminino representada pela Sra. K. Ao invés da simples imagem da
fascinaçã o narcísica, ela deve ser desvelada como imagem de um mistério, no
sentido de algo fundamentalmente desprovido de determinaçã o objetiva e de
representaçã o consciente adequada.
Neste sentido, Lacan tenta desdobrar as conseqü ências clínicas do fato de
que: "nã o há simbolizaçã o do sexo da mulher enquanto tal" 265. Tal ausência de
determinaçã o significante do sexo feminino permite a Lacan afirmar que: "o sexo
feminino tem um cará ter de ausência, de vazio, de buraco que faz com que ele
seja menos desejá vel que o sexo masculino no que ele tem de provocante" 266.
Afirmaçã o aparentemente "falocêntrica", mas apenas aparente.
De qualquer forma, para Dora, da imagem da Sra. K poderia advir
exatamente esta imagem "de ausência, de vazio, de buraco" que aparece como
abertura em direçã o ao reconhecimento da inadequaçã o fundamental do sujeito
à s representaçõ es imaginá rias do sexual. Neste sentido, podemos dizer que a
identificaçã o de Dora à Sra. K poderia ser equivalente a uma dissoluçã o do eu
enquanto totalidade de um corpo sem falhas, já que seria reconhecimento de si
naquilo que é desprovido de determinaçã o objetiva.
Notemos que a terceira inversã o é estruturalmente distinta das outras
duas. Enquanto que as duas primeiras eram passagens no oposto, este é o
desvelamento de uma contradição interna à pró pria determinaçã o da imagem da
Sra. K. Uma contradiçã o entre sua posição de imagem fantasmá tica que sustenta
o pensamento identificador do eu de Dora e seu valor de negaçã o de toda
determinidade. Ela indica a tentativa de inscriçã o do valor do sexual como
negaçã o irredutível.
Tal maneira de compreender o valor da imagem da Sra. K inscreve-se em
um movimento geral que concerne a reformulaçã o lacaniana do pensamento do
264
LACAN, E., p. 220
265
LACAN, S III, p. 198.
266
LACAN, S III, p. 199.
sexual. Se a psicaná lise vê a realidade sexual como lugar de verdade, como locus
originá rio do sentido da linguagem dos sintomas, entã o a melhor estratégia para
impedir que dela advenha uma hermenêutica sexual é transformar o sentido do
sexual em pura opacidade. O sexual será assim presença do negativo e do não-
idêntico no sujeito. O advento do sexual será sempre ligado ao trauma vindo da:
"inadequaçã o radical do pensamento à realidade do sexo"267. Inadequaçã o que
indica como: "o sexual se mostra por negatividades de estrutura" 268. Tal sexual
traumá tico está vinculado ao real da pulsã o que foi forcluído, de onde vem sua
resistência aos procedimentos simbó licos de nomeaçã o.
Vemos assim se desenhar um polo de tensão que deixa a metapsicologia
lacaniana necessariamente instável e móvel. Trata-se de uma tensã o entre
imperativos de reconhecimento mú tuo e a irreflexividade de um conceito de
sujeito pensado a partir da negatividade do desejo em seu vínculo ao sexual.
Como reconhecer um desejo que é presença do sexual como pura opacidade
vinda de uma negatividade sem inversõ es? Como produzir o reconhecimento do
real do sexo, que é definido exatamente como aquilo que permanece fora dos
processos de simbolizaçã o? Em suma, nesta tensã o entre o sexual e os
imperativos de reconhecimento aloja-se uma tensão entre subjetividade e
intersubjetividade que será marca constitutiva do pensamento lacaniano. O motor
do progresso da praxis lacaniana estará pois na tentativa de encontrar o ponto
que impede tal tensã o de anular um dos polos, o que, em um caso, poderia
produzir a reduçã o do sujeito à dimensã o de um gozo mudo pró ximo da psicose
(irreflexividade do sujeito sem imperativos de reconhecimento) e, no outro, a
alienaçã o absoluta do particular no genérico da estrutura (imperativos de
passagem ao Simbó lico sem irreflexividade do sujeito). Um motor como o
verdadeiro solo dialético da psicaná lise lacaniana só pode ser encontrado em
suas consideraçõ es sobre a pulsã o e o gozo. Assim, o conceito lacaniano de
intersubjetividade era desde sempre marcado por esta tensão entre a negatividade
do que se aloja na subjetividade e a dialética do reconhecimento.
“Os antigos colocavam o acento sobre a tendência, enquanto que nós, nós o
colocamos sobre o objeto (...) nós reduzimos o valor da manifestação da
tendência, e nós exigimos o suporte do objeto pelos traços prevalentes do
objeto”269.
267
LACAN, S XIV, sessão do 18/01/67
268
LACAN, AE, p. 380
269
LACAN, S VII, p. 117
Tal proposição lacaniana, feita com uma ponta de nostalgia a respeito da vida
amorosa dos antigos, é, na verdade, a exposição de todo um programa analítico de
cura. Enunciada em 1960, ela trazia atrás de si uma longa reflexão a respeito do
destino do desejo no final de análise. Colocar o acento sobre a tendência desprovida
de objeto aparece aqui como uma solução possível para romper um certo ciclo
alienante do desejo preso às amarras do Imaginário; ruptura fundamental como
indicação da proximidade do final de análise.
A este respeito, vale a pena relembrar alguns princípios básicos que serviram
de guia para as primeiras reflexões lacanianas. Até o final dos anos cinqüenta, há um
conceito central na metapsicologia lacaniana: o desejo puro.
A respeito do desejo puro, notemos que, na teoria lacaniana, a característica
principal do desejo é ser desprovido de todo procedimento natural de objetificação.
Ele é fundamentalmente sem objeto, desejo de "nada de nomeável" 270. Aqui,
escutamos o leitor atento de Kojève. O mesmo Kojève que tentava costurar o ser-
para-a-morte heideggeriano à Begierde hegeliana a fim de afirmar que a verdade do
desejo era ser “revelação de um vazio”271, ou seja, pura negatividade que transcendia
toda aderência natural e imaginária. Um estranho desejo incapaz de se satisfazer com
objetos empíricos e arrancado de toda possibilidade imediata de realização fenomenal.
Mas por que esta pura tendência que insiste para além de toda relação de objeto
transformou-se em algo absolutamente incontornável para Lacan? Nós podemos
fornecer aqui uma explicação geral.
Lacan desenvolveu uma teoria da constituição dos objetos a partir sobretudo
de considerações sobre o narcisismo. Neste momento do pensamento lacaniano, tanto
os objetos quanto os outros indivíduos empíricos são sempre projeções narcísicas do
eu. Lacan chega a falar do caráter egomórfico dos objetos do mundo empírico. De
onde se segue um narcisismo fundamental guiando todas as relações de objeto, assim
como a necessidade de atravessar este regime narcísico de relação através de uma
crítica ao primado do objeto na determinação do desejo. Lacan é claro a respeito deste
narcisismo fundamental. Ele dirá, por exemplo, que: “A relação objetal deve sempre
submeter-se à estrutura narcísica e aí se inscrever”272. E ele dará um caráter
epistemológico a sua crítica do primado do objeto ao afirmar que : “todo progresso
científico [e todo progresso analítico] consiste em dissolver o objeto enquanto tal"273.
Este motivo da crítica ao primado do objeto aparecerá em Lacan
principalmente através da crítica às relações reduzidas a dimensão do Imaginário, já
que o Imaginário lacaniano designa, na sua maior parte, a esfera das relações que
compõem a lógica do narcisismo com suas projeções e introjeções 274. Aqui, faz-se
necessário salientar um ponto importante: o objeto empírico aparece necessariamente
como objeto submetido à engenharia do Imaginário e à lógica do fantasma. A
possibilidade de fixação libidinal a um objeto empírico não-narcísico ainda não é
posta. Assim, a fim de livrar o sujeito da fascinação por objetos que são, no fundo,
produções narcísicas, restava à psicanálise “purificar o desejo” de todo e qualquer
conteúdo empírico. Subjetivar o desejo no seu ponto brutal de esvaziamento. Haveria
uma outra possibilidade através da tentativa de determinar as modalidades possíveis
de uma experiência de objeto que não estivesse inscrita a priori em uma lógica
270
LACAN, S II, p. 261
271
KOJÈVE, Introduction à la lecture de Hegel, p. 12
272
LACAN, S I, p. 197
273
LACAN, S II, p. 130
274
"Nós consideramos o narcisismo como a relação imaginária central para a relação interhumana "
(LACAN, S III, p. 107)
narcísica. De fato, tal hipótese ganhará relevância na segunda metade da trajetória
intelectual lacaniana, o que pode nos explicar as estratégias posteriores de pensar o
final de análise através da identificação do sujeito com o objeto desprovido de
estrutura de apreensão, ou seja, com o objeto como resto opaco, como dejeto. O que
nos permitirá repensar a questão do destino da categoria de objeto na clínica analítica.
Mas, por enquanto, insistamos na via da purificação do desejo. Lacan percebeu
claramente que a psicanálise nascera em uma situação histórica na qual o sujeito era
compreendido como entidade não-substancial, desnaturada e marcada pelo selo de
uma "liberdade negativa" que lhe permitia nunca ser totalmente idêntica a suas
representações e identificações. A operação de 'purificação do desejo' escondia assim
uma estratégia maior. No fundo, tudo se passava como se Lacan projetasse a função
transcendental própria ao conceito moderno de sujeito em uma teoria do desejo (o que
nos explica como foi possível à psicanálise desenvolver uma teoria não-psicológica
do desejo). A aproximação lacaniana entre, por exemplo, o sujeito do inconsciente e a
estruitura do cogito cartesiano era uma das conseqüências de tal estratégia. O que
Badiou sublinhou bem ao lembrar que: "o que ainda vincula Lacan (mas este ainda é
a perpetuação moderna do sentido) à época cartesiana da ciência é pensar que seja
necessário sustentar o sujeito no puro vazio da substração se quiseremos salvar a
verdade [do regime fantasmático de apresentação de objetos]"275.
Isto permitiu a Lacan concluir que, para além das realizaçõ es fenomenais,
haveria uma "permanência transcendental do desejo"276. O que nos envia à
definiçã o canô nica do sujeito como falta-a-ser, já que:
O desejo é uma relação do ser à falta. Esta falta é falta de ser propriamente
dita. Não se trata de falta disto ou daquilo, mas falta de ser através da qual
o ser existe277.
Neste caso, esta estranha falta que nã o é disto ou daquilo é o pró prio regime de
experiência subjetiva da estrutura transcendental do desejo. Transcendental
porque a falta-a-ser é uma condiçã o a priori de constituiçã o do mundo dos
objetos do desejo humano. Podemos falar aqui de a priori porque a falta nã o
seria derivada de nenhuma perda empírica. Para Lacan, nã o há nada parecido a
uma origem empírica do desejo. O que explica por que Lacan parece tentar fazer
uma verdadeira ' deduçã o transcendental' do desejo puro. Contrariamente a
Freud, ele nã o identifica a causa da falta à perda do objeto materno produzida
pela interdiçã o vinda da Lei do incesto. É verdade que Lacan afirmará : "o objeto
da psicaná lise nã o é o homem, mas o que lhe falta - nã o uma falta absoluta, mas
falta de um objeto "278. No entanto, devemos sublinhar que tal objeto que lhe
falta nã o é exatamente um objeto empírico.
279
LACAN, S XI, p. 172
fato (ele nã o é um ego transcendental), nem de direito (sua funçã o ló gica nã o
consiste na faculdade de síntese pró pria a uma unidade sintética de percepçõ es).
Parece-me que, ao articular seu conceito de sujeito através de figuras da
subjetividade moderna tã o distantes umas das outras quanto podem ser o cogito
cartesiano, o sujeito da vontade livre kantiana e a consciência desejante de Hegel,
Lacan procura um certo caráter de transcendência ligado, na modernidade, à
articulação do conceito de função transcendental do sujeito.
Nã o se trata aqui de compreender a transcendência simplesmente como
esta ilusã o pró pria ao uso da razã o e sempre presente quando ela procura aplicar
um princípio efetivo para-além dos limites da experiência possível - noçã o de
transcendência que só pode ser antinô mica ao questionamento transcendental,
como bem demonstrou Kant. Lacan é marcado por um pensamento da
transcendência no qual se cruzam as reflexõ es vindas da fenomenologia alemã (a
transcendência do Dasein) e do hegelianismo (a negatividade da Begierde). Neste
sentido, basta lembrarmos de Kojève falando da negatividade do desejo como: "o
ato de transcender o dado que lhe é dado e que é em si mesmo"280. "O ato de
transcender" deve ser compreendido aqui como negaçã o que põ e a nã o-
adequaçã o entre o ser do sujeito e os objetos da dimensã o do empírico, como
apresentaçã o de uma nã o-saturaçã o do ser do sujeito no interior do campo
fenomenal. Tal transcendência nã o põ e princípio efetivo algum para além da
experiência possível. O que nos explica porque devemos compreendê-la como
transcendência negativa. Podemos assim dizer que o sujeito para Lacan é uma
transcendência sem transcendentalidade, ao menos sem o cará ter constitutivo da
objetividade pró prio ao sujeito transcendental. A hipó tese aqui consiste em dizer
que, com Lacan, a subjetividade está inicialmente ligada aos modos de
manifestaçã o desta transcendência negativa e a intersubjetividade é o espaço
possível de auto-apresentaçã o da subjetividade.
280
KOJÈVE, Introduction à la lecture de Hegel, op.cit, p. 13
Lógicas do reconhecimento
Aula 14
281
Ver, por exemplo, FROMM, Erich; Arbeiter und Angestellte am Vorabend des Dritten Reiches: eine
sozialpsychologische Untersuchung, Stuttgart: Deutsche Verlags- Anstalt, 1980
282
HABERMAS, Jurgen: A nova intransparência: a crise do Estado de bem estar social e o
esgotamento das energias utópicas, Novos estudos Cebrap, n. 18, setembro de 1987, p. 105
filosó fico”283. Aceito que o pretenso papel privilegiado do proletariado nã o
passava de um “dogma”, o investimento no discurso da luta de classes como eixo
central de organizaçã o e constituiçã o das identidades no interior dos embates
políticos perde necessariamente sua força para abrir espaço a outros candidatos.
Mas para a consolidaçã o da centralidade atual do conceito de
reconhecimento, foi necessá rio que tal perda na crença revolucioná ria do
proletariado fosse acompanhada de um fenô meno suplementar vinculado à
mutaçã o do sistema de expectativas ligado a um dos eixos centrais do
desenvolvimento das lutas políticas, a saber, o universo do trabalho. Tal mutaçã o
pode ser compreendida se seguirmos Luc Boltanski e Eve Chiapello a fim de
afirmar que, desde as revoltas de maio de 68, um novo “ethos” do capitalismo
começou a ser formado.
A crítica social que se desenvolve a partir de maio de 1968 visava,
principalmente, o trabalho e sua incapacidade em dar conta de exigências de
autenticidade. Visto como o espaço da rigidez do tempo controlado, dos horá rios
impostos, da alienaçã o taylorista e da estereotipia de empresas fortemente
hierarquizadas, o trabalho fora fortemente desvalorizado pelos jovens de 68.
Vá rios estudos do início dos anos setenta demonstram consciência dos riscos de
uma profunda desmotivaçã o dos jovens em relaçã o aos valores presentes no
mundo do trabalho, preferindo atividades flexíveis, mesmo que menos
renumeradas.
O resultado de tal crítica teria sido a reconfiguraçã o do nú cleo ideoló gico
da sociedade capitalista e a consequente modificaçã o do ethos do trabalho.
Valores como: segurança, estabilidade, respeito à hierarquia funcional e à
especializaçã o, valores estes que faziam do mundo do trabalho um setor
fundamental de imposiçã o de identidades fixas e rígidas, deram lugar a outro
conjunto de valores vindos diretamente do universo de crítica do trabalho.
Capacidade de enfrentar riscos, flexibilizaçã o, maleabilidade, desterritorializaçã o
resultante de processos infinitos de re-engenharia compõ em atualmente um
novo nú cleo ideoló gico. Com esta modificaçã o, o universo do trabalho nas
sociedades capitalistas estaria mais apto a aceitar demandas de reconhecimento
da individualidade e a modificar a matriz da experiência de alienaçã o, retirando
tal matriz da temá tica da espoliaçã o econô mica a fim de deslocá -la em direçã o à
temá tica da imposiçã o de uma vida inautêntica, ou seja, vida desprovida do
espaço de desenvolvimento de exigências individuais de auto-realizaçã o. Com
este deslocamento da espoliaçã o à inautenticidade no interior da crítica do
trabalho, abria-se mais uma porta para secundarizar o conceito de luta de classes
e elevar o problema do reconhecimento a dispositivo político central.
Por fim, devemos lembrar como esta mutaçã o acaba por se encontrar com
outra série de modificaçõ es ligadas, por sua vez, à compreensã o, ocorrida a partir
dos anos setenta, das lutas de grupos historicamente vulnerá veis e espoliados de
direitos (como negros, gays, mulheres) enquanto lutas de afirmaçã o cultural das
diferenças. Isto significa afirmar que elas nã o foram apenas compreendidas como
setores de uma luta mais ampla de ampliaçã o de direitos universais a grupos até
entã o excluídos, mas como processos de afirmaçã o das diferenças diante de um
quadro universalista pretensamente comprometido com a perpetuaçã o de
normas e formas de vida pró prias a grupos culturalmente hegemô nicos. Muito
283
HONNETH, Axel; “Redistribution as recognition”, In: FRASER e HONNETH; Redistribution or
recognition, Verso: New York, 2003, p. 116
colaborou para isto o desenvolvimento das temá ticas ligadas ao
multiculturalismo.
Desde 1957, o termo aparecera a fim de descrever a realidade multi-
linguística da Federaçã o Suíça. No entanto, foi no Canadá que o multiculturalismo
chegou a ser implementado, pela primeira vez, como política de Estado. Marcado
tanto pelo conflito entre as comunidades angló fonas e francó fonas quanto por
uma elevada taxa de imigraçã o, o Canadá adotou, em 1971, sob o governo social-
democrata de Pierre Elliot Trudeau, o Announcement of Implementation of Policy
of Multiculturalism within Bilingual Framework. Através dele, o país se auto-
definia como uma sociedade multicultural que reconhecia, inclusive, a
necessidade de políticas específicas financiadas pelo Estado visando a
preservaçã o de tal multiplicidade. Em 1988, estas políticas foram reforçadas
através da implementaçã o do Canadian Multiculturalism Act. Vá rios outros
países, majoritariamente anglo-saxõ es (além dos Países Baixos), seguiram o
quadro canadense de constituiçã o de políticas multiculturais de Estado. Nã o é de
se estranhar ter sido um filó sofo canadense, Charles Taylor, um dos primeiros a
recuperar o conceito de reconhecimento exatamente no interior de um debate
sobre o multiculturalismo.
Esta tendência multicultural foi uma peça hegemô nica na orientaçã o
política de esquerda a partir dos anos oitenta devido, principalmente, ao seu
potencial de defesa de minorias étnico-culturais e à possibilidade de ser acoplada
a prá ticas de institucionalizaçã o da diversidade de orientaçõ es sexuais. Ao
mesmo tempo, o desenvolvimento de uma reflexã o filosó fica sensível à natureza
disciplinar de estruturas de poder que visavam impor normatividades no campo
da sexualidade, do desejo, da normalidade psíquica, da estrutura da família, da
constituiçã o dos papeis sociais, forneceu o quadro conceitual para desdobrar o
impacto de tais lutas. Mesmo que autores como Michel Foucault, Gilles Deleuze e
Jacques Derrida nã o tenham sido responsá veis pela recuperaçã o da teoria do
reconhecimento - o que nã o poderia ser diferente devido ao anti-hegelianismo
explícito dos dois primeiros e mitigado no caso do terceiro - é inegá vel que sua
forma de crítica à compreensã o marxista tradicional dos embates políticos, assim
como sua defesa ética do primado da diferença em muito colaboraram para a
consolidaçã o de um quadro filosó fico mais propício à recuperaçã o da
centralidade do problema do reconhecimento da alteridade como problema
político central. Desta forma, estavam dadas as condiçõ es gerais para que a
compreensã o filosó fica das lutas políticas passasse necessariamente de uma
abordagem centrada no conflito de classe a uma abordagem centrada em
mú ltiplas formas de reconhecimento no campo da cultura, da vida sexual, das
etnias e no desenvolvimento das potencialidades individuais da pessoa. Uma
multiplicidade de campos que teriam sido levados ao centro da cena política
depois da aceitaçã o tá cita da impossibilidade de uma política revolucioná ria
baseada na instrumentalizaçã o da luta de classes.
Sendo assim, ao menos no interior desta leitura, teríamos de admitir que o
conceito de reconhecimento estaria limitado geograficamente à descriçã o de
lutas sociais em países do chamado primeiro mundo, que já teriam realizado a
integraçã o do proletariado à classe média, assim como já teriam aceito a
necessidade do descentramento de suas matrizes culturais através da abertura à
afirmaçã o tolerante de formas de vida em contínua variaçã o. Nã o por outra
razã o, volto a insistir, um dos primeiros usos da segunda recuperaçã o do
conceito de reconhecimento esteve exatamente vinculado à reflexã o sobre a
dinâ mica social das sociedades multiculturais, como podemos ver no texto
supracitado de Charles Taylor.
Mas esta leitura nã o condiz com a realidade histó rica do re-aparecimento
do conceito no interior da filosofia social. Como sabemos, em 1992 ele foi
retomado. Ou seja, exatamente no momento em que se inicia a lenta
desintegraçã o das conquistas econô micas dos ditos Estados do Bem estar social,
com o desmantelamento dos direitos trabalhistas, a privatizaçã o (gradual ou
total) da previdência e o sucateamento da educaçã o, da saú de e de outros
serviços pú blicos. Uma desintegraçã o que ocorreu no momento em que vá rios
teó ricos afirmavam entrarmos em uma era “pó s-ideoló gica”, ou seja, marcada
pelo fim da crença em transformaçõ es sociais revolucioná rias com a consequente
aceitaçã o do horizonte normativo das democracias liberais como está gio final
das lutas sociais.
Isto talvez explique porque críticos - principalmente de matriz marxista,
mas nã o apenas eles - desta importâ ncia dada ao conceito de reconhecimento
insistiram estarmos aqui diante de uma espécie de conceito meramente
compensatório. Pois tudo se passaria como se, dada a impossibilidade de
implementar políticas efetivas de transformaçã o dos modos de produçã o e luta
radical contra a desigualdade, nos restasse apenas discutir políticas
compensató rias de reconhecimento. Da mesma forma, dado o fato do Capital
aparecer, de maneira agora inquestioná vel, como ú nica instâ ncia capaz de
ocupar o espaço da universalidade no interior do liberalismo das sociedades
multiculturais, nos restaria simplesmente reinventar demandas de
reconhecimento de identidades comunitá rias, em suas mú ltiplas formas,
tentando dar à comunidade um sentido que nã o se reduzisse a um mero espaço
de restriçã o. Por fim, dada a impossibilidade de transformaçõ es sociais de larga
escala, nos restaria discutir a natureza moral de nossas demandas sociais.
284
HONNETH, Axel; “Redistribution as recognition”, op. cit., p. 114
reconhecimento para suas tradiçõ es e formas de vida no interior de um
horizonte capitalista de valor”285.
A estratégia de Honneth baseava-se em uma assimilaçã o do problema da
redistribuiçã o de riquezas a um quadro mais amplo de discussõ es referentes ao
reconhecimento. Para tanto, foi necessá rio compreender o sentimento social de
injustiça econô mica como expressã o possível das “fontes motivacionais do
descontentamento social e da resistência”286. Abria-se assim a possibilidade, ao
menos para Honneth, de criar um quadro motivacional unitá rio centrado na ideia
de que “sujeitos esperam da sociedade, acima de tudo, reconhecimento de suas
demandas de identidade”287. O que nã o poderia ser diferente para alguém que
afirma que “sujeitos percebem procedimentos institucionais como injustiça
social quando veem aspectos de sua personalidade, que acreditam ter direito ao
reconhecimento, serem desrespeitados” 288. Isto já estava presente em seu
primeiro livro sobre o assunto, Luta por reconhecimento:
Relações materiais
Ou seja, segundo tal perspectiva, levamos para esferas mais amplas da vida social
e para relaçõ es afetivas em idade madura a crença na exteriorizaçã o tranquila de
necessidades e sentimentos, uma crença que seria resultado da experiência
intersubjetiva de amor e de afirmaçã o de si presente inicialmente na relaçã o
entre mã e e bebê. Tal relaçã o poderia ser chamada de “intersubjetiva” por ela
ser, ao menos segundo Honneth, simétrica. Como se o bebê dependesse da mã e
da mesma forma que a mã e dependeria do bebê, isto no interior de uma relaçã o
de “identificaçã o emocional” onde a criança aprende a adotar a perspectiva de
uma segunda pessoa. Tal mú tua dependência poderia resolver-se através da
consolidaçã o de uma posiçã o de cooperaçã o e de segurança emocional que
permitiria, à criança, desenvolver sua “consciência individual de si”. Posiçã o na
qual o amor aparecia como uma “simbiose refratada pelo reconhecimento” e pelo
respeito à autonomia.
Neste sentido, o reconhecimento jurídico como sujeito do direito
forneceria a universalidade de relaçõ es que o amor desconhece. Tal
reconhecimento se constitui através de um alargamento histó rico progressivo no
qual o sistema jurídico deve ser a expressã o de interesses universalizá veis de
todos os membros da sociedade. O que exige a compreensã o recíprocas dos
membros da sociedade como livres e iguais. No entanto, o reconhecimento
jurídico diz respeito a qualidades universais que me fazem como pessoa em
geral. Faz-se ainda necessá rio um nível de reconhecimento que assegure a
posiçã o social de qualidades características que me diferenciam dos demais, sem
que isto implique necessariamente em quebra do princípio formal de igualdade.
Este terceiro nível nos abre ao problema da estima social e se funda na existência
de uma comunidade de valores culturalmente definidos pela coletividade.
Como podemos perceber, o diagnó stico nã o poderia ser mais pró ximo do quadro
fornecido por Durkheim. Exigências de autorrealizaçã o individual se
297
Como fica claro em: DURKHEIM, 2004.
transformaram em “ideologias da desinstitucionalizaçã o”, ou seja, em processo
de enfraquecimento da capacidade de coesã o e organizaçã o das normas sociais.
Com isto, produz-se uma desregulaçã o das normas sociais paga com patologias
ligadas ao sentimento depressivo de esvaziamento e à incapacidade de açã o.
Assim como teó ricos sociais como Luc Boltanski e Eve Chiapello (1999),
Honneth compreende claramente como tal anomia virou uma “força produtiva”
da economia capitalista em era de flexibilizaçã o e desregulaçã o contínuas. Ele
compreende também, tal como vimos no capítulo anterior, como essa gestã o
social da anomia é paga com o desenvolvimento exponencial de patologias
ligadas à desregulaçã o da capacidade de constituir identidades, como a
depressã o e seu “cansaço de ser si mesmo”, 298 a insegurança narcísica e os
transtornos de personalidade borderline. Mas, como gostaria de insistir, sua
resposta nã o parece escapar da procura em reconstruir as bases normativas para
institucionalidades capazes de garantir o desenvolvimento bem sucedido de
indivíduos. Ela ignora que o problema nã o se encontra nos processos de
desinstitucionalizaçã o, mas no impacto de outra forma de regulaçã o social ligada
à expropriaçã o psíquica do estranhamento.
298
Ver, a este respeito, o influente livro de Ehrenberg, 2000.