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A Velha Religião: O discurso histórico


de legitimação na Wicca
Celso Luiz Terzetti Filho

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Celso Luiz Terzet t i Filho

Um bruxo e seu t empo: As obras de Gerald Gardner como expressões cont racult urais
Celso Luiz Terzet t i Filho

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INST IT UT O DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PR…
Dida Avallach
A Velha Religião: O discurso histórico de legitimação na Wicca

Celso Luiz Terzetti Filho1

Resumo: O presente artigo busca abordar a questão da legitimação na Wicca pelo viés do
Discurso Histórico. Para isto utiliza-se aqui a tipologia dos três discursos elaborada por Renato
Ortiz em seu trabalho sobre a integração social da Umbanda. O foco deste trabalho em relação ao
Discurso Histórico decorre da ênfase dada pelos adeptos aos elementos históricos formativos da
Wicca, principalmente em relação aos estudos dos folcloristas do século XIX e início do século
XX. Sendo assim, propusemos dois aspectos de legitimação histórica que se faz presente na
Wicca. Num primeiro momento, fase formativa, o discurso histórico legitima a Wicca como uma
religião nacional da Grã Bretanha; num segundo momento, no contexto de contra cultura
americana, se insere numa perspectiva feminista de crítica à dominação patriarcal.

Palavras-chave: Discurso Histórico – Legitimação – Neo paganismo – Wicca

The Old Religion: The historical discourse of Wicca legitimation

Abstract: This article seeks to address the issue legitimacy in Wicca, the bias of the history
discourse. For this purpose it is used here the typology of three discourses elaborated by Renato
Ortiz in his work on the social integration of Umbanda. The focus of this work in relation to the
discourse history stems from the emphasis given by the adherents to historical formative
elements of Wicca, particularly in relation to studies of the folklorists of the nineteenth and early
twentieth century. Therefore, we proposed two aspects of historical legitimacy that is present in
Wicca. At first, formative phase, the historical discourse legitimizes Wicca as a national religion
in Britain, subsequently, in the context of American counterculture, is part of a critical feminist
perspective of patriarchal domination.

Keywords: Historical Discourse – Leigitimation – Neo paganism – Wicca

1
Doutorando do Programa de Pós Graduação em Ciências da Religião da PUC/SP. Contato: clterzetti@gmail.com.

67
O discurso histórico de Legitimação

Ao tratar sobre a questão da legitimação e integração social da Umbanda, Renato Ortiz em seu
livro “A Morte Branca do Feiticeiro Negro: Umbanda e Sociedade Brasileira” (1978) classificou
em três tipos os elementos que podem ser destacados como aspectos de legitimação da Umbanda,
discurso histórico, científico e cultivado. Partindo da concepção de dominação racional em
Weber e articulando-o com a concepção de legitimação para Peter Berger e Thomas Luckmann, o
autor traça como tais elementos são importantes discursos que fomentam o universo simbólico da
religião e legitimam sua integração.

Acreditamos que as três tipologias estabelecidas por Ortiz nos fornece um parâmetro referencial
que nos ajuda a entender o discurso legitimador da Wicca2. Mas neste artigo pretendemos nos
ater apenas ao discurso histórico. A escolha deste aspecto em particular está relacionada à ênfase
do elemento histórico nesta religião. Desde os livros de Gardner, o fundador da Wicca, até as
obras mais recentes, a questão da antiguidade da Wicca é colocada como um importante fator de
legitimação.

Entender como este discurso legitimador funciona na Wicca não é tão fácil, pois tal discurso só
faz sentido se entendermos os diferentes contextos em que a história da Wicca é utilizada como
discurso legitimador. Neste sentido, acreditamos que a legitimação através do discurso histórico
está ligada a dois momentos do desenvolvimento desta forma de religiosidade.

Num primeiro momento, quando Gardner e seu grupo estão num processo de construção da
Wicca, é possível identificar, através de suas obras e principais influências, a questão da

2
Hoje em dia existe uma grande variedade de vertentes e correntes que carregam este nome. Há diferenças entre o
que é chamado tradição entre essas vertentes. O que todas têm em comum é que afirmam praticar uma forma de
bruxaria. E, mesmo divergindo, muitas vezes, em relação aos panteões a serem cultuados ou às formas de praticar os
rituais, todas possuem traços em comum como, por exemplo, rituais baseados nos ciclos sazonais, ênfase no
feminino, admiração da natureza, culto a um Deus de chifres e a uma Deusa. Neste sentido, talvez como uma forma
de generalizar, sem necessidade de, a todo momento, especificar, mas enfatizar os aspectos comum entre todas as
vertentes que se dizem wiccanas, os pesquisadores que trabalham com os tema definem simplesmente como moderna
bruxaria neo pagã. Termo, esse, que define muito bem as muitas e diversas vertentes da bruxaria. Ele é
frequentemente empregado em trabalhos relacionados a um campo de estudo específico do tema, O Pagan Studies.
68
antiguidade da religião como aspecto de uma afirmação nacional frente às religiões estabelecidas
na Inglaterra. Num segundo momento, quando a Wicca chega aos Estados Unidos num contexto
de contra cultura onde ela ganha seus contornos mais expressivos, como religião da natureza e
ênfase do feminino, tem-se uma abordagem histórica de legitimação que considera a antiguidade
da religião em oposição às religiões patriarcais, principalmente o cristianismo.

Sendo assim, consideramos que dentro do discurso histórico de legitimação da Wicca, temos dois
aspectos. O primeiro relacionado ao discurso nacionalista, presente em sua fase de formação; o
segundo, um discurso feminista, baseado na concepção de um processo histórico em que
sociedades matriarcais foram destruídas pelo patriarcalismo judaico cristão.

A Wicca: Um Novo Movimento Religioso

Na década de 50 Gerald Brosseau Gardner3 (1884-1964) dizia ter encontrado no sul da Inglaterra
um culto sobrevivente de bruxas que chamavam a si mesmas de Wicas4. Gardner afirmava ter

3
Para esboçar uma biografia de Gerald Gardner cinco obras devem ser levadas em conta, primeiramente o livro de
Jack Bracelin Gerald Garnder, Witch (1960), atribuído ao amigo de Gardner Idries Shah, este é um relato quase que
em primeira pessoa. Depois, são os quatro livros de Philip Heselton, Wiccan Roots, Gerald Gardner and the modern
witchcraft revival (2000), Gerald Gardner and the Witchcraft Revival: The Significance of His Life and Works to the
Story of Modern Witchcraft (2001) e Gerald Gardner and the Cauldron of Inspiration: An Investigation into the
Sources of Gardnerian Witchcraft (2003) e a biografia Witchfather: A life of Gerald Gardner, vol. I e II (2012).
Todas as biografias subseqüentes são apenas repetições destes trabalhos.
4
Segundo o historiador Ronald Hutton, “A forma ortográfica de Gardner, wica, aparece somente no Chamber’s
Dictionary of Scots-English, em que significa wise. Esse dicionário pode muito bem ter sido a inspiração de Gardner
para sua escolha. A adaptação tardia resulta de uma mais antiga e precisa conotação do anglo saxão wicca, que
significa bruxo (forma masculina); a versão feminina é wicce. O duplo c nessas palavras era pronunciado como “ch”
para produzir um som bem fechado para a palavra moderna witch, mas, por costume e conveniência, os wiccanos
preferem pronunciar o som do k” (HUTTON 1999: 241). O termo Wica com um “c” é utilizado, hoje, pelos adeptos
que reivindicam uma tradição mais pura. Um exemplo de uma dessas denominações é a bruxaria gardneriana.
Melissa Seims fez um levantamento, que está disponível em seu site, http://www.thewica.co.uk/wica_or_wicca.htm
(Acesso em 20.11.2011), sobre as ocorrências que aparecem nas obras de Gardner referentes às duas grafias, e o
termo wicca não aparece em nenhuma delas. Joanne Pearson acredita que o acréscimo de um “c” adicional pode ter
sido resultado de um erro de grafia, já que “Gardner afirmava ser disléxico” (PEARSON 2007: 114). Para uma
explicação terminológica mais completa sobre as origens dos dois termos, ver BROOKS, Alexander; RUSSEL, e
Jeffrey B., “História da bruxaria”. São Paulo: Aleph, 2008. Independentemente das explicações, a forma mais
utilizada é Wicca.
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recebido instruções destas bruxas para que não trouxesse a público suas práticas e segredos, mas
aos poucos estas bruxas permitiram a publicação de suas crenças e Gardner as escreveu
primeiramente em forma de romance e depois em um tom mais analítico. Esta é uma história na
qual se desenvolveu e ainda se desenvolve muitas controvérsias e faz parte de uma forma de
religiosidade moderna que ganha adeptos principalmente em alguns países da Europa, América
do Norte e Austrália com muitos praticantes no Brasil. Não cabe aqui, nem é o objetivo deste
artigo discutir o que é fato e o que não é nessa reivindicação de uma descoberta de Gardner. Hoje
há um consenso entre os historiadores que se debruçam sobre esta questão de que Gardner de fato
criou a Wicca. Independentemente do teor de verdade em sua reivindicação de ter encontrado um
culto sobrevivente, o que interessa é que ele foi o homem que originou grande parte das práticas
presentes no paganismo moderno.

A Wicca, segundo o próprio Gardner, é uma religião. Para se referir a ela, utiliza-se, também, os
termos “Velha Religião” e “A Arte”. O primeiro seria uma espécie de reivindicação a um passado
distante e “mais puro”; o segundo está relacionado à maçonaria, assim como outros ramos
ocultistas baseados na magia cerimonial. Essa “Velha Religião”, como Gardner a descreveu,
possui alguns ritos. É uma religião iniciática, seus adeptos veneram um deus e uma deusa cujos
nomes são secretos. Há um sacerdote e uma sacerdotisa que representam, consecutivamente, o
deus e a deusa, mas as cerimônias são dirigidas pela sacerdotisa, sendo que o sacerdote tem papel
coadjuvante, mas não menos importante. As cerimônias são realizadas com os adeptos nus, há
uma importante categorização das ferramentas ritualísticas, o transe e o êxtase fazem parte de
seus rituais, assim como a autoflagelação. Suas cerimônias mais importantes são chamadas de
Sabás e são oito, Samhaim, Yule, Candelemas ou Imbolc, Ostara, Beltane, Litha, Lammas,
Mabon. Essas cerimônias acontecem de acordo com as datas sazonais do ciclo agrário.

Diferentemente da bruxaria imaginada nos tratados demonológicos da Europa Moderna, mas


intimamente ligada aos sofrimentos daqueles que pereceram nas fogueiras desta mesma Europa, a
moderna bruxaria é o que se pode chamar de uma releitura da imagem das velhas bruxas que
povoam o imaginário ocidental. A bruxaria moderna é idealizada e concebida numa época de
70
transformações, em que o caleidoscópio religioso amplia-se na mesma medida em que o mundo
que o cerca. Mundo, este, onde as grandes narrativas não mais têm o poder de direcionar e
controlar todos os aspectos da vida do homem. Seus fundamentos parecem beirar o contraditório,
já que “critica a sociedade moderna, mas é fruto dela” (OSÓRIO 2005, p.128).

A Wicca reivindica uma ancestralidade, um elo com o passado. As bruxas e bruxos modernos
buscam relacionar suas crenças e práticas a antigos povos. Frequentemente, discursos e imagens
que remetem a períodos de perseguição a feiticeiras, como na época da Inquisição, são evocados
como elemento legitimador de suas lutas atuais em nome de causas modernas.

A ideia de ancestralidade também se relaciona ao que se denomina de retorno a uma


espiritualidade que foi perdida. Para Robert Pucett, “o surgimento da Wicca representa
amplamente uma reação ao moderno desencantamento do mundo” (PUCETT 2009, p.121).
Sabina Magliocco argumenta que a Wicca “é uma forma de resistência criativa contra a
dominante ontologia do Iluminismo, que marginalizou a imaginação e o êxtase”. (MAGLIOCCO
2004, p.120).

A Wicca se insere dentro do que se convencionou chamar na Sociologia da Religião como NMR
(Novo Movimento Religioso). Esta classificação está relacionada aqui muito mais a uma questão
funcional, pois até hoje o conceito de NMR é discutível e não há delimitações específicas, assim
como o próprio conceito que o precede, a religião. Portanto acreditamos que uma definição
generalizante é satisfatória neste momento. Neste caso, consideramos NMR, os movimentos de
cunho religioso ou espiritualistas surgidos até o final do século XIX ou começo do século XX
que permaneceram à margem das grandes religiões (GUERRIERO 2006, p.46).

A Wicca é uma das formas de religiosidade mais conhecidas e mais populares entre as religiões
neo pagãs. De forma geral, “o moderno paganismo deriva de vários elementos ocultistas,
poéticos, folclóricos e de conhecimentos populares” (CLIFTON 1992, p.21). O desenvolvimento
do neo paganismo tem início ainda no século XIX, neste período, segundo o historiador Ronald

71
Hutton (2006, p.5-20) pode-se delimitar três principais influências históricas que confluíram para
seu surgimento. O primeiro está ligado ao revival do ocultismo; o segundo, relacionado às
influências artísticas e literárias do romantismo; o terceiro, ao desenvolvimento da antropologia e
arqueologia. Este último terá um papel de fundamental importância na questão da legitimação
histórica.

A Literatura Wiccana

A Wicca, assim como outras formas de religiosidades neo pagãs frequentemente se apresenta
como um caminho sem dogmas. Esta é uma afirmação que na maioria das vezes está relacionada
à uma crítica as religiões estabelecidas. Os adeptos da Wicca costumam ser contrários a formas
de institucionalizações religiosas bem como as hierarquias que compõem a maioria das igrejas,
principalmente as de natureza cristã. Este distanciamento em relação às religiões
institucionalizadas reflete o próprio ethos da Wicca, que se define como uma religião mais focada
no aspecto subjetivo do adepto, ou seja, em suas experiências. Para várias tradições neo pagãs,
incluindo a Wicca, a ideia de descentralização é muito presente. O neo paganismo não possui
doutrinas oficiais, nem autoridade central, apesar de haver em alguns países, federações e até
mesmo igrejas. Esta ampla configuração organizacional torna-se um desafio ao pesquisador.

A Wicca não possui um livro ou texto sagrado. E este aspecto revela-se um diferencial enfatizado
por seus adeptos. Segundo Starhawk,

(...) a Bruxaria é uma religião, talvez a mais antiga religião existente no


Ocidente. Suas origens são anteriores ao Cristianismo, Judaísmo e ao
Islamismo; até mesmo ao Budismo e ao Hinduísmo, e é muito diferente de
todas as supostas grandes religiões. A antiga Religião, como a denominamos,
está em essência mais próxima às tradições nativas americanas ou xamanismo
do Ártico, ela não se baseia em dogmas ou em um conjunto de crenças, nem
tampouco em escrituras ou num livro sagrado revelado por um grande homem.
A Bruxaria retira os seus ensinamentos da natureza e inspira-se nos

72
movimentos do sol, da lua e das estrelas, no voo dos pássaros, no lento
crescimento das árvores e nos ciclos das estações (STARHAWK 2007, p.33).

Mesmo não possuindo um livro sagrado, a Wicca, assim como o neo paganismo em geral, é fruto
de uma cultura que pode-se chamar de literária. Os rituais, símbolos, assim como as práticas que
presentes nestas novas formas de espiritualidades são resultados de um contexto literário em que
a arqueologia, a mitologia e o estudo de práticas indígenas servem como inspiração na
reelaboração e recriação de práticas e crenças antigas no contexto de uma vida moderna dentro de
sociedades industrializadas. Para Graham Harvey (NIGHTMARE 2007, p.33), “a formação e o
desenvolvimento das identidades pagãs se caracteriza quase sempre por recursos literários
significativos”.

Apesar de não haver um livro sagrado, pode-se mapear na literatura neo pagão, uma seleção de
textos considerados os mais comuns e mais famosos dentro do movimento. Este “corpus
documental” com os textos mais significativos do neo paganismo foi organizado em forma de
coletânea5 por dois pesquisadores das novas espiritualidades neo pagãs. Os livros de Gerald
Gardner, principal autor da Wicca e seu criador, podem ser considerados como obra fundante,
mas não o texto principal, ou um “evangelho”6 a ser seguido.

Em seus livros, Gardner descreve as práticas e crenças das bruxas de forma esparsa. Apesar de
utilizar alguns capítulos chave, como, por exemplo, “Crenças das Bruxas” e as “As Práticas das
Bruxas”, nem toda informação sobre cada tema está limitada ao capítulo nominalmente

5
O livro The paganismo reader reúne uma série de textos que vão desde o velho testamento até os autores mais
recentes. Chas S. Clifton e Graham Harvey, classificaram os textos e capítulos de livros em três conjuntos: Os textos
clássicos; composto por textos antigos gregos, romanos, egípcios, entre outros; Os textos do proto renascimento, aí
se incluem os textos que irão de fato contribuir para o surgimento do moderno paganismo. A Wicca tem como base a
maioria dos autores que compõem este conjunto de textos, inclusive os dois mais significativos em relação ao
discurso histórico, Charles G. Leland e Margaret A. Murray.
Termo utilizado pela mais famosa sacerdotisa iniciada de Gardner, Doreen Valiente em seu livro “Rebirth of the
6

Witchcraft” como uma crítica as imposições de Gardner em relação a exposição midiática da Wicca.
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correspondente. A impressão é de que Gardner até tenta seguir um padrão, mas os temas e
elementos se repetem em lugares diferentes das obras.

É importante colocar que o autor se apresenta ao leitor como antropólogo, um pesquisador


“insider” atraído por seu objeto de estudo e nele iniciado. Gardner sempre toma o cuidado de
informar ao leitor que as bruxas lhe disseram isto ou aquilo, mas, em algumas partes, é difícil
distinguir quais seriam os conteúdos emanados dele e quais seriam os emanados das bruxas que
descreve. Ao longo de sua vida, publicou cinco livros, Keris and other malay weapons (1936), A
goddess Arrives (1939), Com o Auxílio da Alta Magia (1949), A Bruxaria Hoje (1954) e O
significado da Bruxaria (1959)7 O primeiro e o segundo não estão diretamente relacionados à
bruxaria, mas, pode-se dizer que, em certo sentido, trazem elementos que estarão presentes na
Wicca, já que o primeiro é fruto da fascinação de Gardner por facas e adagas, que, mais tarde, se
tornariam instrumentos ritualísticos importantes para as cerimônias da religião. O segundo,
apesar de sua temática espiritualista, não traz nenhuma abordagem em relação à Wicca, além do
tema da reencarnação. É só nas três obras posteriores que Gardner, de fato, acrescenta e elabora
os elementos presentes na moderna bruxaria neopagã, como, por exemplo, a noção de um culto
das bruxas. Assim como A Bruxaria Hoje, seu livro O significado da Bruxaria também é uma
obra não ficcional em que Gardner acrescentará mais informações sobre seu tema de maior
interesse.

Podemos delimitar três grandes objetivos em sua obra. Primeiro, a reivindicação de trazer a
público uma religião em vias de extinção, que era praticada pelas bruxas; segundo, a
caracterização e (ou) legitimação da Wicca como religião que não adora o Diabo e antecede a
chegada do cristianismo na Grã Bretanha; terceiro, a descrição das práticas dessas bruxas e suas
crenças. Esses três aspectos serão desenvolvidos a partir de uma dinâmica de pesquisa de campo
(vale lembrar que Gardner tenta passar a ideia de que está, de fato, em contato com bruxas reais
de um antigo culto). Relacionados às grandes temáticas estão assuntos que se encaixam dentro de
7
Os livros em inglês não possuem tradução para o português.
74
uma leitura de permanência folclórica. Tal metodologia está diretamente ligada ao seu
envolvimento com a Folklore Society, que, segundo Juliette Wood (WOOD 2007, p.71),
enxergava sobrevivências em costumes tradicionais e usos da memória popular para justificar
ligações entre o passado e práticas correntes do presente.

Um exemplo disso seria a questão do Diabo. Ele escreve que o sumo sacerdote de um coven,
muitas vezes, é descrito como um ser parte humano, parte animal, com o corpo coberto de pelos e
com chifres (GARDNER 2004, p.18). Aqui, temos uma descrição que levaria, no entender de
Gardner, a uma leitura errônea por parte dos inquisidores e caçadores de bruxas. Sendo assim, há
uma tentativa de legitimar a Wicca como religião antiga que não adorava o Diabo, mas, sim, o
Deus cornudo presente na cultura camponesa pagã. É nesse sentido que Gardner descreve as
permanências folclóricas que justificam a prática das bruxas. Em relação ao exemplo citado, ele
descreve que

Fica evidente, por meio de antigas descrições e imagens (as mais antigas são
as pinturas rupestres encontradas em Ariège na famosa Caverna de Trois
Frères, feitas por homens da Idade da Pedra), que o sumo sacerdote, que era
representante de deus, às vezes usava um disfarce ritual que consistia em um
ornamento na cabeça com chifres de veado ou touro, uma túnica de pele de
animais; e, às vezes, também, uma máscara que escondia suas feições
(GARDNER 2004, p.18).

Os livros de Gardner seguem, metodologicamente, esse padrão. Até mesmo seu romance
ficcional possui a mesma dinâmica, mas, diferentemente dos outros dois, há menos assuntos a
serem relacionados. Os livros de Wicca que vieram depois de Gardner vão desde simples
manuais de feitiços, até práticas rituais individuais ou de grupos, instruções cerimoniais, entre
outros. Todos eles variam em relação a formas de ritualização ou até mesmo panteões, mas não
deixam de considerar uma base comum, relativos aos símbolos, instrumentos, princípios, moral e
cerimonias, muitos destes definidos nas obras de Gardner. A prática do diário mágico, ou como é
conhecido no vocabulário wiccano como “livro das sombras” é uma forma de registro das

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práticas de um grupo ou de um indivíduo que está ligado ao aspecto subjetivo da Wicca. Neste
diário, mantido em segredo e revelado apenas aos membros do coven (grupo de bruxas), os
adeptos registram sonhos, rituais, técnicas meditativas, ou seja, tudo que para o grupo funcionou
para sua conexão com o “sagrado”. Este diário mágico também pode ser individual.

Depois que a Wicca encontrou espaço no contexto de contra cultura americana, a Wicca, passa de
uma religião iniciática e restrita para uma forma de religiosidade aberta. Esta mudança de
configuração também se relaciona de certo modo a espiritualidade Nova Era que ganhava espaço
na década de 50 e 60 principalmente em São Francisco na Califórnia. Nos Estados Unidos a
Wicca encontra solo fértil no contexto feminista e acaba sendo absorvida pelo movimento. Entre
as autoras mais lidas dentro deste universo wiccano de viés feminista estão, Starhawk e Z.
Budapeste. Ambas são importantes vozes do movimento neo pagão wiccano.

O Discurso Histórico

No moderno paganismo, os mitos funcionam como ferramentas de inspiração e legitimação,


também, em alguns casos, podem servir a fins políticos (DAVIS 2007, p.89). Os wiccanos
frequentemente recorrem a explicações de origens históricas para apresentar a Wicca como uma
“Velha Religião”. De acordo com a literatura wiccana, a Wicca, assim como o paganismo em
geral, é uma forma de religiosidade pré-cristã sobrevivente que chegou aos nossos dias, estando
em alguns períodos às margens do cristianismo, como no caso da época da Idade Média.

Quando se trata de delimitar as fontes mais influentes que contribuíram para essa leitura histórica
das origens do movimento, dois nomes se sobressaem: o folclorista Charles G. Leland (1824-
1903) e a egiptóloga Margaret A. Murray (1863-1963). Estes dois autores representam a parte
mais evidente deste discurso histórico, já que a concepção de uma “Velha Religião” dentro do
contexto das religiosidades neo pagãs é resultado de uma de suas influências mais significativas,
o Romantismo.
76
A aliança entre paganismo e Romantismo foi fruto de um vislumbre dos autores românticos
ingleses. O modo como o paganismo era pensado entre eles está na base da concepção do que é o
moderno paganismo. Essa visão de paganismo concorreu com outras visões da época. Ronald
Hutton (HUTTON 1999, p.05-21) nos mostra que havia quatro diferentes interpretações, no
século XIX, do paganismo.

A primeira considerava que os pagãos eram pessoas que idolatravam e ofereciam sacrifícios a
ídolos. Essas pessoas eram vistas como idólatras e representavam o aspecto humano da selvageria
e da ignorância. Toda essa concepção tem como pano de fundo uma base cristã, difundida pelo
Antigo Testamento e compartilhada por vários pais da Igreja. A segunda interpretação, percebe o
paganismo como uma religião que tem sido associada à magnificência artística, literária e
filosófica, ficando atrás do Cristianismo somente em seu aspecto ético e moral.

Ambas as linguagens caracterizadas são tradicionais e conservadoras, contudo, elas se


desenvolveram significativamente durante o século XIX. Elas eram empregadas para defender a
religião estabelecida e a sociedade existente. O mesmo século, porém, viu emergir duas outras
tendências que se mostraram um desafio às normas culturais e religiosas da época.

A primeira delas, considerada a terceira das interpretações, estava relacionada à noção de que
havia existido um único grande sistema espiritual no mundo, baseado na revelação divina, da
qual as principais religiões praticadas por todas as civilizações, durante todas as eras históricas,
continham traços. Essa concepção, automaticamente, negou ao Cristianismo qualquer relação
exclusiva com a divindade ou qualquer proeminência moral, reduzindo-o a uma condição de
igualdade com o paganismo egípcio, grego e as principais tradições espirituais do Oriente.

A quarta forma foi mais polêmica e confrontadora. Assim como na segunda interpretação, fez
elogios às culturas grega e romana, mas demoliu todas as restrições colocadas sobre suas
religiões, caracterizando-as como alegres, liberais e como tradições valorizadoras da vida,
conectadas tanto com o mundo natural quanto com o espírito criativo do homem.

77
Para Hutton, a linguagem característica do paganismo moderno tem sua origem no Romantismo
germânico, resultado de uma fusão de três fatores presentes na Alemanha do final do século
XVIII: admiração pelos gregos antigos, nostalgia por um passado desaparecido e o desejo por
uma unidade orgânica entre pessoas, cultura e natureza.

O tema da “Velha Religião” como uma idealização de uma fé menos racional e mais poética, já
era colocada por Friedrich Schlegel (1772-1829) famoso poeta romântico alemão. Esta visão de
uma religião anterior ao cristianismo, mais livre, mais alegre etc. é a que hoje alimenta o
conteúdo narrativo sobre as origens históricas da Wicca. Isso se evidencia pela literatura.
Praticamente todos os livros sobre Wicca, seguem um padrão de explicação que começa
descrevendo uma forma de religião antiga em que as pessoas viviam em harmonia com a
natureza.

Entre as três principais influências para o desenvolvimento do neo paganismo descritas por
Ronald Hutton, uma delas se refere à antropologia, arqueologia e estudos folclóricos. Charles G.
Leland um folclorista norte americano é parte desta influência, em seu livro Aradia (o evangelho
das bruxas) descreve que a bruxaria nada mais é do que a “Velha Religião”; o autor, inclusive, é
o primeiro a usar o termo em relação à bruxaria, da qual Diana é a Deusa, sendo sua filha Aradia
(ou Herodius), o Messias feminino (LELAND 2000, p.25). Mas a referência mais significativa
em relação à questão de uma “Velha Religião” se dá com a egiptóloga Margaret A. Murray.

A importância do trabalho de Murray não está dentro da academia, mas sim fora dela. Murray
teve suas teses rapidamente desacreditadas pela maioria dos pesquisadores da época, mas foi a
pedra fundamental do neo-paganismo. “O livro que levou a fundação do movimento da Arte foi
O culto das bruxas na Europa Ocidental publicado pela Oxford Press em 1921” (KELLY, 2007,
p.62). Neste trabalho Murray descreve a bruxaria como uma antiga religião que remonta a Europa
do período neolítico. Essa religião teria sobrevivido às margens do cristianismo durante toda a
Idade Média. Segundo Murray,

78
As evidências mostram que abaixo da religião cristã, havia um culto
praticado por muitas classes da comunidade, principalmente pelos mais
ignorantes ou aqueles das partes menos populosas do país, que pode ser
considerado uma antiga religião da Europa Ocidental na época pré-cristã
(MURRAY, 2003, p.17).

Numa síntese geral de sua obra podemos colocar os pontos que Murray trabalha. A continuidade
de uma antiga religião, o Deus dessa religião, as cerimônias de admissão, as assembléias, os ritos,
os rituais de fertilidade e invocação da chuva, a organização, os familiares e as transformações.
Depois de O culto das Bruxas na Europa Ocidental Murray publicou mais dois trabalhos sobre a
bruxaria como uma antiga religião, O Deus das Feiticeiras (1933) e The Divine King in England
(1954), antes destes dois últimos, Murray foi responsável pelo verbete bruxaria da Enciclopédia
Britânica em 1929. Sua descrição na enciclopédia era um resumo do seu primeiro livro. Vale
colocar que Murray não só estudou a bruxaria mas tem trabalhos sobre outros assuntos como por
exemplo, na área de Egiptologia.

Murray era discípula de Sir James George Frazer. Este, entendia a religião como uma estágio do
progresso humano que seria uma ante-sala da ciência. O modelo de antigo culto descrito por
Murray era o mesmo descrito por seu mestre em O ramo de ouro (1890). Segundo Juliette Wood
este era “o problema fundamental da obra de Murray” (WOOD, 2007, p.72). Todos os elementos
abordados por Murray remetem a questão do sacrifício divino.

Para Murray, o diabo nas assembléias das bruxas, uma proeminente figura
relatada nos processos e na literatura demonológica, era um homem
(sacerdote) mascarado. O mascarado sacerdote do culto das bruxas de
Murray substituiu um antigo sacerdote rei que era sacrificado
periodicamente, esse sacerdote era entendido como a personificação humana
de um deus de chifres da vegetação que morre e renasce (WOOD, 2007,
p.72, tradução nossa).

O sabá das bruxas na visão de Murray era uma espécie de assembléia dessa antiga religião, vale
colocar que não há uma diferenciação na obra de Murray sobre culto e religião, “no decorrer de
sua obra ela sempre refere a seu objeto como a religião, a velha religião ou o culto (KELLY,

79
2007, p.65). A estrutura do sabá foi descrita por Murray tendo três momentos, bem sintetizados
por Aidan Kelly (2007, p.68). Consistiam em: A adoração da deidade encarnada. Neste primeiro
momento havia a renovação dos votos, o beijo e a prostração. Num segundo momento haviam os
negócios, estes eram compostos por relatório de instruções em magia, admissão e ingresso na
sociedade e casamento entre membros. E por fim haviam os serviços religiosos, que consistiam
em uma cerimônia que variava com as estações, os ritos de fertilidade, os banquetes e as danças
que iam até o amanhecer.

Toda a essência dessa religião baseava-se na morte e renascimento do deus de chifres. Para
Murray, a bruxaria não era um culto satânico, mas uma religião baseada nos ciclos naturais. Para
Murray, a bruxaria é essa antiga religião pré-cristã que “consistia na crença em um deus
encarnado num ser humano ou animal, e que fora interpretada de muitas maneiras por numerosas
religiões e povos primitivos até os dias de hoje” (MURRAY, 2008, p.92).

O historiado Eliot Rose fez várias críticas à tese de Margaret Murray sobre a existência de um
culto das bruxas8. Em seu livro, A razor for a goat (1962), também faz menção a Gardner,
criticando-o e defendendo a ideia de que a Wicca é uma recriação das ideias de Murray. Margot
Adler descreve que “Rose considerava o reavivamento da bruxaria como sendo uma obra
ficcional de um grupo de homens e mulheres inglesas que estavam preocupados em ver a
Inglaterra indo para os cães” (ADLER, 2006, p.62). Essa afirmação de Rose carrega um sentido
pejorativo, já que seus ataques à Gardner e Murray são feitos em tom irônico, mas tem certa
coerência no que se refere à ideia de uma invenção de uma religião nativa, totalmente nacional.
Esse nacionalismo pode ser analisado no caso da Wicca levando-se em consideração a noção de
“invenção das tradições” que já foi explorada por James W. Baker (1996), Tanya M. Luhrmann
(1989).

8
Uma síntese interessante das criticas de Elliot Rose às teorias de Margaret Alice Murray pode ser lida no livro
História do medo no Ocidente (Companhia das Letras, 2009) de Jean Delumeau. Ver, especificamente, o capítulo 12,
Um enigma histórico: a grande repressão da feitiçaria - Feitiçaria e cultos de fertilidade.
80
Quando observamos a Wicca como uma “moderna sincretização de uma série de antigos e novos
elementos” (BAKER 1996, p.178), podemos entendê-la como uma invenção de tradição. Nesse
sentido, compreendemos esse sincretismo a partir de Hobsbawm, quando este faz menção ao
funcionamento das tradições. Ele descreve que

às vezes, as novas tradições podiam ser prontamente enxertadas nas velhas;


outras vezes, podiam ser inventadas com empréstimos fornecidos pelos
depósitos bem supridos do ritual, simbolismo e princípios morais oficiais –
religião e pompa principesca, folclore e maçonaria (que, por sua vez, é uma
tradição inventada mais antiga, de grande poder simbólico. (HOBSBAWM,
2008, p.14).

Em relação à história da Wicca, a antropóloga Tanya M. Luhmann, em um estudo intitulado


Persuasions of the witch’s craft (1989) nos mostra que a questão da invenção das tradições nos
remete a um tópico intrigante: “por que a história deve conceder legitimidade e autoridade numa
era de racionalidade?” (LUHRMANN 1989, p.44). Ou seja, porque é tão necessária a afirmação
histórica, mesmo que esta história leve em conta elementos desprovidos de fundamento?
Segundo Luhmann, “há uma ambiguidade por parte dos adeptos em relação à história da Wicca”
(LUHRMANN 1989, p.45). Para a autora, “há uma visão comum desse passado histórico da
Wicca, diferindo apenas na questão de que esse passado é mito ou lenda. Para outros, dizer se
esse passado é falso ou verdadeiro não é importante” (LUHRMANN 1989, p.44).

O Discurso Histórico nacional

Como mencionamos anteriormente, Gardner se refere à Wicca como “Velha Religião”. Essa
forma de se referir à moderna bruxaria neo pagã é, até hoje, reflexo dessa reivindicação de uma
ancestralidade histórica. Tal reivindicação só pode ser compreendida se observarmos o uso do
termo “Velha Religião” pelas Igrejas na Inglaterra. Segundo Joanne Pearson (PEARSON 2007,
p.11), termos como “Velha Religião”, “Antiga Religião”, “Nova Religião” são carregados de
sentido de valor. Seu uso data da época dos Tudors (1485-1603). Entre os períodos da Reforma
81
na Europa e o século XIX, foram utilizados tanto pela Igreja da Inglaterra quanto pelas tradições
católicas. Na Europa continental, as várias formas de Protestantismo que surgiram no curso do
século XVI foram vistas como novas experiências dentro do Cristianismo.

Essas formas foram caracterizadas aversivas à autoridade papal, vista como autoridade de uma
Igreja baseada em magia, superstição e monasticismo. Os reformadores protestantes olhavam
para o futuro e consideravam as hostes do catolicismo romano como um Cristianismo da Idade
das Trevas. Contudo, a nova Igreja da Inglaterra tinha profundo interesse em demonstrar que o
Cristianismo inglês não dependia da missão católica de Agostinho de Canterbury (enviada pelo
papa Gregório às ilhas inglesas em 597) para reivindicar seu apostolado, e procurou retraçar uma
velha origem apostólica de influências célticas (PEARSON 2007, p.11).

Há, pelo menos, três “velhas religiões”, assim denominadas, na Inglaterra. Duas vêm da igreja
cristã e das formulações do período da Reforma, tanto protestantes quanto católicas. Durante e
depois do estabelecimento de uma “nova religião” protestante, o catolicismo romano foi chamado
de “velha religião”, termo utilizado pelos fiéis que buscavam conforto face às depreciações dos
reformadores. Nesse caso, o termo foi empregado no sentido de valorizar a religião. É claro que
os católicos romanos não poderiam ser considerados como partidários da única “velha religião”
da Inglaterra, mas, com o reavivamento do catolicismo inglês do Movimento de Oxford no século
XIX, e o desenvolvimento do Anglo-Catolicismo, emergiu uma reivindicação mais positiva do
termo “velha religião”, também concomitantemente como uma crítica ao protestantismo como
“nova religião”. A “nova religião”, na forma da Igreja da Inglaterra, procurou provê-la de uma
linha de continuidade que remontasse à era apostólica, na tentativa de dar credibilidade à sua
reivindicação de ser uma “velha religião”.

A terceira religião que reivindica o termo “Velha” para sua legitimação é a Wicca (PEARSON
2007, p.11). Para Gardner, fazer a Wicca ser reconhecida como a religião mais antiga era uma
meta. Em O Significado da Bruxaria, ele observa:

82
Como a Arte da Bruxaria pode contribuir para o futuro? Em primeiro lugar,
pode desmascarar o mito de que o Cristianismo Ortodoxo é a antiga fé
dessas ilhas, e que não havia civilização na Bretanha até a chegada dos
romanos. O verdadeiro Cristianismo, a fé que o próprio Jesus pregou, pode
ter chegado até aqui, mas foi rapidamente subjugada. Os vários tipos de
denominação eclesiástica que tomaram o poder e a riqueza do país estão
decaindo lentamente (GARDNER 2004, p.267).

É interessante notar a reivindicação de Gardner em relação à antiguidade da Wicca e sua crítica à


Igreja, pois, na década de 1950, parecia haver um renascimento da religião. Essa década, que
ficou conhecida como a década do Anglicanismo, também foi o período em que Gardner revelou
a Wicca ao público com suas obras. Segundo Grace Davie (DAVIE 1994, p.31), naquela década
o papel social da igreja era mais de confirmação do que de confrontação. A coroação de Elizabeth
II, em junho de 1953, aproximou a Igreja da Inglaterra da monarquia, e isto se deu no momento
em que a coroação era, pela primeira vez, televisionada. Davie (DAVIE 1994, p.31) observa que
esse evento captou, em grande estilo, o que poderia ser chamado de um establishment espiritual
da década de 1950.

O Discurso Histórico feminista

A ideia de uma sociedade matriarcal foi, primeiramente, exposta pelo professor e jurista suíço
Johan Jakob Bachofen (1815-1887). Sua tese sobre um matriarcado primitivo foi descrita em sua
obra Mutterrecht (1861), e consistia basicamente na ideia de que as antigas sociedades primitivas
eram regidas por mulheres. A concepção foi rapidamente rebatida ainda no começo do século
XX, mas fez eco nos grupos, tanto religiosos como sociais, que se articulavam incorporando esta
visão, uma clara herança contracultural que foi, sem dúvida, amplificada pela Wicca de Gardner,
já que a questão do aspecto feminino é enfatizada pelos wiccanos, que buscam nas teses de
Bachofen ou em teses semelhantes a legitimidade de suas práticas.

83
Na década de 1970, o chamado “Movimento de Espiritualidade da Deusa”, surgido nos Estados
Unidos, sustentava uma Teologia que incluía vários grupos de diferentes tendências da Nova Era,
entre eles druidas, bruxas, neo pagãos e espiritualistas, além de pessoas ligadas a movimentos
feministas; todos esses grupos e pessoas utilizavam-se de imagens femininas para representar
suas divindades.

Neste período os Estados Unidos viviam a tensão da violência racial e da luta pelos direitos civis,
assim como das críticas à guerra do Vietnã. Uma época em que muitos jovens pareciam seguir na
contramão da cultura estabelecida e de tudo que provinha dela. Os modelos políticos eram
criticados. A religião também não escapou à crítica. Na época, houve grande influência do
pensamento oriental sobre os jovens, pois ele pregava uma realidade individual mais ampla. O
cenário foi propício para a difusão e crescimento da Wicca.

Esta época caracterizada como período contracultural especialmente intenso, o movimento


feminista encontrou a Wicca. Foi então que uma nova forma de bruxaria, derivada desta, se
formou, e que envolvia tanto rituais de bases xamânicas quanto a exaltação de deusas.
Referências a obras históricas e a pesquisas arqueológicas que descrevessem e demonstrassem
um período de dominação matriarcal e de primazia da mulher no passado eram frequentemente
evocadas nas obras das mais famosas bruxas americanas.

O feminismo e sua figura essencial, a “Grande Mãe”, não foram apenas influência da Wicca.
Ainda assim, as feministas dos anos sessenta e setenta que pregavam uma nova espiritualidade
baseada nessa forma de culto ao feminino eram bruxas que se diziam wiccanas. É o caso, por
exemplo, das norte americanas Z. Budapest e Starhawk. Z. Budapest criou uma forma de
feitiçaria baseada na Wicca, com sabá, estabelecimento do círculo ritual e do culto à Deusa, mas
somente a Ela. O Deus, aí, está excluído. Sua feitiçaria parte do princípio de que a espiritualidade
está a serviço da libertação - a luta pela liberdade interior da mulher. Para essa vertente da
moderna bruxaria neo pagã, a Deusa teria sido revelada ao seu povo antes do gênese do deus
judaico cristão.
84
Por volta de 1978 surge uma concepção feminista mais radical em relação aos estudos sobre o
julgamento das bruxas. De acordo com essa concepção, a grande revolução patriarcal havia sido a
destruição do matriarcalismo primitivo e a aniquilação da Deusa. A bruxaria tinha, contudo,
conseguido preservar seus conhecimentos. Depois houve a segunda onda de agressão contra as
mulheres, que foram os julgamentos de bruxas da Idade Moderna. Em vista desta concepção será
sempre lembrado dentro da bruxaria feminina que nove milhões de pessoas morreram na época
das fogueiras. Estas cifras que tem origem calculadas por um historiador alemão do século XVIII
não condizem com a realidade, mas tem sido repetidas exaustivamente em artigos, livros e filmes
de grande circulação. A maioria das autoras feministas ainda continuam a olhar para a
perseguição das bruxas como uma prova clara da opressão patriarcal (ADLER 2006, p.235).

O mito do matriarcalismo serve como uma história sagrada do movimento espiritual feminista.
Ele fornece um mito que alude a uma Tealogia (expressão que se refere a uma Teologia
feminista), ética, política. O uso deste mito fornece uma revalorização da noção de um
matriarcalismo pré-histórico (DAVI 2007, p.100).

Em 1975, a segunda das autoras a que nos referimos, Starhawk, começou a estudar com Victor
Anderson (1917-2001), poeta norte americano que, junto com o músico e Gwydion Penddrwen,
fundou a chamada “Tradição das Fadas” - o nome é uma clara referência à obra de Murray. O
principal livro de Starhawk, e o mais influente dentro da espiritualidade feminista, é A Dança
cósmica das feiticeiras (1979). Seguindo a linha de Gardner em relação a um antigo culto de
bruxas que remetia à Idade da Pedra, ela reafirmou as origens do culto à Deusa na Europa
Neolítica. Nesse período, segundo a autora, os “povos da Deusa” sofreram ataques de tribos
guerreiras patriarcais indoeuropeias. Sua leitura histórica trazia novamente à tona, agora em outro
contexto, as teorias de Margaret Murray apresentadas por Gerald Gardner. Na obra de Starhawk é
nítido o tom político. A crítica que permeia seus livros é baseada no contraste entre uma

85
sociedade mais harmoniosa, que vive pacificamente, respeitando a natureza, e uma sociedade
baseada no domínio das pessoas sobre seus semelhantes e na destruição do meio ambiente.

A oposição ao Cristianismo ainda é um elemento constante na Wicca e em outras denominações


do neopaganismo. Muitos neopagãos procuram dissociar-se do que percebem como uma herança
cultural alienante, que tem explorado o meio ambiente, as mulheres e os povos indígenas. Isso
inclui tanto o racionalismo científico quanto a cultura judaico cristã. Eles se vêem como vítimas
das mesmas forças que levaram os povos indígenas a serem marginalizados na modernidade
ocidental.

Desde Gardner, os neopagãos constroem sua identidade em contraste com a da cultura


dominante. Essa postura está alicerçada em sua principal narrativa de legitimação, ou seja, a
concepção de uma religião marginalizada e oprimida. Como Aidan Kelly pontua em sua
explicação acerca da maturação religiosa, essa narrativa é entendida pelos neopagãos como uma
intepretação metafórica, mais do que fatos históricos coerentes que dão conta de apresentar uma
unica versão. Os mitos do neopaganismo são entendidos não como dados históricos, mas como
recurso poético que expressa valores políticos e morais (DAVY 2007, p.101).

É interressante notar como a oposição ao Cristianismo é, em certos aspectos, contraditória. Se,


por um lado, os neopagãos evocam narrativas que legitimam certa postura de religião minoritária,
por outro reconhecem a validade de todos os caminhos religiosos. Esse reconhecimento do outro
baseia-se na concepção teosófica de que “todas religiões são uma só”; portanto, para os wiccanos,
todos os caminhos que levam ao divino.

As narrativas os retratam como sobreviventes das perseguições inquisitoriais das bruxas


medievais europeias, ou da dominação das sociedades guerreiras patriarcais sobre as sociedades
matriarcais pacíficas, Na literatura neopagã, são sempre evocadas histórias a respeito de como as
tradições pagãs européias foram eliminadas pela força da expansão do Cristianismo e dizimadas
por ação das missões. Essa revisão histórica torna-se um elemento de identificação dos

86
neopagãos com os povos oprimidos e marginalizados, além de inspirar a valorização das culturas
indigenas e tradicionais de cada país.

Mavesper Cy Ceridwen, uma das mais importantes vozes do neopaganismo no Brasil, em seu
livro Wicca Brasil: Guia de rituais das Deusas Brasileiras (2003), escreve:

Nós, adeptos do paganismo no Brasil, temos por missão, nos próximos anos,
conhecer a questão indigenista e nos engajarmos nos diversos movimentos
em prol da manutenção de sua cultura e sobrevivência condigna, dentro da
sociedade brasileira (CERIDWEN 2003, 45).

Essa atitude em relação a culturas indígenas resulta de uma interpretação que considera os povos
“primitivos” e indígenas como detentores de uma sabedoria natural e de uma relação harmoniosa
com a Terra, que foram perdidas com o apogeu da cultura ocidental dominante.

Conclusão

Neste artigo procuramos abordar a questão do discurso histórico da Wicca no que tange a questão
da legitimação, tendo como referências as três tipologias mencionadas no trabalho de Renato
Ortiz em seu estudo sobre a Umbanda. O Discurso histórico foi enfatizado aqui devido à ênfase
que a Wicca e o neo paganismo de forma geral dá aos aspectos históricos que definem seu ethos.

Ao longo de nossa análise propusemos duas tipologias adicionais referentes ao discurso histórico
que podem ser identificados na Wicca, a primeira referente a um nacionalismo presente
principalmente nas obras de Gerald Gardner, que compreendem em certo sentido o que podemos
chamar de fase formativa; a segunda referente a questão do feminismo que dentro do contexto do
neo paganismo evoca as teorias que descrevem sociedades matriarcais, ou utilizam a figura da
bruxa queimada nas fogueiras como legitimação de lutas e contestações modernas.

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