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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS

Rafael Mófreita Saldanha

O fim do futuro | O tempo das metamorfoses – o que pode a filosofia?

Rio de Janeiro
2018
RAFAEL MÓFREITA SALDANHA

O fim do futuro | O tempo das metamorfoses – o que pode a filosofia?

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Filosofia da Universidade
Federal do Rio de Janeiro como requisito
parcial à obtenção do grau de Doutor em
Filosofia.

Orientadora: Tatiana Roque

Rio de Janeiro
2018
CIP - Catalogação na Publicação

Saldanha, Rafael Mófreita


S162f O fim do futuro | O tempo das metamorfoses – o
que pode a filosofia? / Rafael Mófreita Saldanha. --
Rio de Janeiro, 2018.
390 f.

Orientadora: Tatiana Roque.


Tese (doutorado) - Universidade Federal do Rio
de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências
Sociais, Programa de Pós-Graduação em Filosofia,
2018.

1. Afeto. 2. Conceito. 3. Tempo. 4. Espinosa. 5.


Deleuze. I. Roque, Tatiana, orient. II. Título.

Elaborado pelo Sistema de Geração Automática da UFRJ com os


dados fornecidos pelo(a) autor(a).
SALDANHA, Rafael Mófreita.

O fim do futuro | O tempo das metamorfoses – o que pode a filosofia?

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do


Rio de Janeiro como requisito parcial à obtenção do grau de Doutor em Filosofia.

Aprovada em:

____________________________________________________________
Professora Doutora Tatiana Roque – Orientadora
PPGF-UFRJ

_____________________________________________________________
Professora Doutora Carla Rodrigues
PPGF-UFRJ

_____________________________________________________________
Professor Doutor Ulysses Pinheiro
PPGLM-UFRJ

_____________________________________________________________
Professor Doutor Rodrigo Guimarães Nunes
PUC-Rio

_____________________________________________________________
Professora Doutora Mariana de Toledo Barbosa
UFF

Rio de Janeiro
2018
RESUMO

A presente tese procura entender de que maneira a prática filosófica é capaz afetar as
nossas vidas. Partiu-se de uma análise da conjuntura atual para compreender em que medida a
filosofia pode-se fazer necessária. Identificamos a situação atual como um cancelamento do
futuro produzido pela própria aceleração temporal que se constituiu na inauguração da
modernidade. Procuramos, então, identificar as causas dessa ausência do futuro ao analisar
como o desenvolvimento imanente do capital e a irrupção da crise climática nos conduzem a
essa situação. Retiramos dessas análises que essa aceleração que produz uma estagnação pode
ser compreendida como uma patologia pelo fato de que ela limita as nossas capacidades de
transformação. Em seguida, na segunda parte, exploramos os conceitos de afeto e desejo. O
que veremos a partir das análises de Bento de Espinosa, Gilles Deleuze e Félix Guattari sobre
o conceito de afeto é que os corpos são equilíbrios dinâmicos e os afetos são a expressão das
transformações das suas capacidades. O desejo, por sua vez, é um movimento contínuo que
efetivamente delimita os corpos enquanto unidades temporárias. Além disso, o que Deleuze e
Guattari deixam mais claro é que como a realidade é de certa forma um processo de
transformação contínua, os indivíduos são sempre compostos por movimentos de
interiorização e exteriorização. É nesse ponto que vemos a importância do conceito de
experimentação, pois é por meio desse movimento de tatear e avaliar o real que um corpo
procura perseverar a partir da sua própria abertura para uma transformação de si. A filosofia
pode então ser compreendida como uma das instanciações dessa experimentação ao operar
seleções e recortes da realidade que nos permitem nos orientar na realidade. Na última parte
será então analisado a partir de Deleuze e Guattari o funcionamento da filosofia.
Identificaremos nesse tipo de atividade dois movimentos que ocorrem de maneira simultânea:
um movimento destrutivo, que procura operar uma crítica às nossas categorias que se
mostram insuficientes diante de alguma situação que excede às suas capacidades, e um
movimento criativo, que reorganiza as nossas operações de seleção e recorte a partir da
criação de novos conceitos e nos permitem experimentar a realidade de outra forma. Por fim,
iremos medir essa efetividade da prática filosófica ao explorar o conceito chinês de eficácia a
partir do trabalho de François Jullien. Se nos detemos nesse conceito é porque ele permite
pensar a ação a partir dos movimentos inerentes das próprias coisas (sua propensão). Uma
ação eficaz não é aquela que consegue realizar algum objetivo, mas que consegue se apoiar
nas próprias tendências das coisas para conduzi-las segundo o interesse do agente. Nesse
sentido não há nenhuma causa final — ou seja, nenhuma ideia de futuro — que orienta as
ações na tradição chinesa. Veremos então que se a prática filosófica pode ser compreendida
nesses termos é porque ela pode ser entendida como uma tentativa de capturar a propensão
das coisas de tal forma que elas são direcionadas aos interesses de quem realiza essa
operação.
ABSTRACT

This thesis aims to understand in which way philosophical practice is able to affect our
lives. In order to understand the need for philosophy, we start off by offering an analysis of
our current situation. We have identified ther current moment as one of a cancelation of the
future that was produced by the temporal acceleration that arose from the onset of modernity.
We then explored how this lack of future is caused by the immanent development of capital
and the irruption of the climate crisis. From these analysis we find out that this acceleration
that produces stagnation may be understood as a pathology due to its limiting our capacities to
transform. In the second part of the thesis we will explore the concepts of affect and desire.
What we discover when we go through Bento de Espinosa, Gilles Deleuze and Félix
Guattari's analysis of the concept of affect is that bodies are dynamic balances and the affects
are the expression of the transformation of their capacities to act. Desire, on the other hand, is
the continuous movement that effectively establishes the boundaries of bodies as temporary
units. On top of that, what Deleuze and Guattari make explicit is that, since reality is actually
a process of continuous transformation, every individual is always composed of movements
of creating an interiority and an exteriority. It is at this moment that we get to understand the
importance of the concept of experimentation, because it is through that movement of feeling
and evaluating that a body can try to preserve itself through its own openness to self-
transformation. Philosophy may thus be understood as one of the instantiations of this
experimentality by means of the creation of concepts that determines through selection and
organization of how we experience reality. That being done, in the final parte of the thesis the
functioning of philosophy will be analyzed according to Deleuze and Guattari's concept of
metaphilosophy. We will identify two simultaneous, but distinct, movements in the practice
of philosophy: a destructive movement that looks to critique our current categories of
experiencing reality when they cant handle any given event, and a creative movement, that
reorganizes our operations of selection and organization through the creation of new concepts
that allow us to experience reality in another way. Lastly, we will measure the effectivity of
the philosophical practice by our exploration of the chinese concept of efficacy as examined
by François Jullien. It is through this concept that we might be able to conceive the
philosophical actitity as a practice that through an intervention in the very conditions of
existence, may allow us to (re)conceive reality in a manner more fitting for the agent.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 1

I. A PATOLOGIA DA DESTEMPORALIZAÇÃO 13
I.1. DOMINAÇÃO NOS TEMPOS DA ACELERAÇÃO 14
I.1.1. A SENSAÇÃO DE ZENÃO 15
I.1.2. O PRESENTE COMO ACELERAÇÃO 31
I.2. O TEMPO NO CAPITALISMO 56
I.3. A CRISE ECOLÓGICA E A DESTRUIÇÃO DO FUTURO 74

INTERLÚDIO - TEMPO EM SUSPENSO 93

II. A LÓGICA DOS AFETOS 106


II.1. SIGLAS REFERENTES À OBRA DE ESPINOSA 107
II.2. A PROBLEMÁTICA DOS AFETOS 108
II.3. DIGRESSÃO METODOLÓGICA 114
II.4. A METAFÍSICA DE BENTO DE ESPINOSA 117
II.5. SOBRE CORPOS, IDEIAS E A MANEIRA QUE SE COMPÕEM 128
II.5.1. A NATUREZA DOS CORPOS 130
II.5.2. A NATUREZA DAS IDEIAS 136
II.5.3. A RELAÇÃO ENTRE IDEIAS E CORPOS 144
II.5.3.1. As afecções e os gêneros do conhecimento 147
II.5.3.2. A memória como elo 159
II.6. DESCRIÇÃO DOS AFETOS 164
II.6.1. O CASO PARTICULAR DO AFETO DO DESEJO 174
II.6.1.1. O desejo como falta e seus problemas 176
II.6.1.2. Uma compreensão do desejo como vetor 186
II.6.2. MÁQUINAS, DEVIRES, RITORNELOS E CORPOS SEM ÓRGÃOS 203
II.6.3. O AFETO COMO GRAU-ZERO 248

III. O QUE PODE A FILOSOFIA? 250


III.1. A PRÁTICA FILOSÓFICA 256
III.1.1. ASPECTOS DESTRUTIVOS DA FILOSOFIA: O PROBLEMA 262
III.1.2. ASPECTOS CONSTRUTIVO DA FILOSOFIA: A CRIAÇÃO CONCEITUAL 271
III.1.2.1. O conceito 274
III.1.2.2. O plano de imanência 281
III.1.2.3. O personagem conceitual 291
III.1.3. O CONCEITO COMO DIAGRAMA 295
III.2. A PROPENSÃO DAS COISAS E A EFICÁCIA FILOSÓFICA 313
III.2.1. O CONCEITO DE PROPENSÃO E EFICÁCIA NA CHINA DE FRANÇOIS JULLIEN 316
III.2.2. A FILOSOFIA COMO CAPTURA DE PROPENSÃO 334
III.2.3. A TEMPORALIDADE CHINESA 342
III.2.4. AFETO, CONCEITO E TEMPO 350

CONCLUSÃO - O CONCEITO FILOSÓFICO COMO PSICOTRÓPICO E O TEMPO DAS


METAMORFOSES 354

BIBLIOGRAFIA 368
É meu propósito falar das metamorfoses dos seres /
em novos corpos. Vós, deuses, que as operastes, /
sede propícios aos meus intentos e acompanhai o meu
poema, /
que vem das origens do mundo até os meus dias.
Ovídio, Metamorfoses

Assim, o lado de fora é sempre a abertura de um futuro, com


o qual nada acaba, pois nada nunca começou — tudo apenas
se metamorfoseia.
Gilles Deleuze, Foucault

I think we have a vital need to be more explicit about why the


pedagogy of concepts matters and enables philosophers to
resist the present. We need to present ourselves as indebted
to something we call concepts, because it is only through
encountering the efficaciousness of concepts, through
experimenting with the witch flight they produce, that we may
become philosophers
Isabelle Stengers, Deleuze and Guattari's last enigmatic
message

Quando filosofas, tens de descer ao caos primordial e


sentires-te aí como em casa.
Ludwig Wittengenstein, Cultura e valor

Trata-se sempre de vencer o caos por um plano secante que


o atravessa.
Gilles Deleuze e Félix Guattari, O que é a filosofia?
1

INTRODUÇÃO

Que ninguém hesite em se dedicar à filosofia enquanto


jovem, nem se canse de fazê-lo depois de velho, porque
ninguém jamais é demasiado jovem ou demasiado velho para
alcançar a saúde do espírito. Quem afirma que a hora de
dedicar-se à filosofia ainda não chegou, ou que ela já
passou, é como se dissesse que ainda não chegou ou que já
passou a hora de ser feliz.
Epicuro, Carta a Meneceu

O tempo é uma criança brincando, jogando: reinado da


criança.
Heráclito, fragmento n. LII

Será possível dizer que a filosofia muda nossas vidas? Se faço essa pergunta é porque
suspeito constantemente que alguma coisa acontece em cada operação filosófica. Seja na
leitura de um texto filosófico ou na própria atividade criativa, sempre me interessou, para
além das questões do próprio texto, entender o que acontecia na prática filosófica – o que se
passa conosco no momento em que lemos um texto de filosofia. Não só o que ele muda em
nós, mas como. Queria entender, em suma, a eficácia da prática filosófica. Sempre tive
certeza que todos os textos de filosofia que tinha lido tinham feito alguma coisa comigo. O
que me incomodava é que nunca sabia ao certo dizer em que medida isso acontecia.
Até que um dia, no final de 2012, completamente por acaso (como sempre, nesse tipo de
história), alguém me contou sobre a leitura que fazia de Pierre Hadot. Sempre fui atraído pelo
gênero da metafilosofia (ou, como acaba sendo na maior parte das vezes, das ‘apologias da
filosofia’), de modo que o livro se intitular “O que é a filosofia antiga?” já seria o suficiente
para me atrair. Mas o fato de que Pierre Hadot estava interessado em entender a prática
filosófica como algo que produz efeitos em nós mesmos me forçou a começar a ler o livro
imediatamente. Acabei devorando-o em pouco tempo e, ainda que estivesse no meio da minha
dissertação, decidi que minha tese de doutorado seria, de alguma maneira, sobre “o que é a
filosofia?”. Animado pela leitura, comecei a rascunhar uma pequena bibliografia com livros
2

de metafilosofia e textos de autores clássicos que refletiam sobre sua prática. Meu objetivo
era ir lendo aos poucos esses textos para não chegar cru demais na hora de escrever um
projeto de doutorado. Como não é raro, após um tempo essa ideia foi deixada de lado em prol
de outras demandas mais imediatas — no caso, minha dissertação de mestrado.
Apesar disso, essa ideia não desapareceu completamente. Ao final da dissertação, que
discutia os conceitos de perspectivismo em Nietzsche e no pensamento ameríndio, acabei
retomando indiretamente o problema da metafilosofia na hora de escrever meu projeto de
doutorado. Dando seguimento às investigações do mestrado, queria tentar entender se o
campo da mitologia poderia ser compreendido como uma espécie de prática filosófica. Ainda
que esse projeto não tenha sido levado adiante, a ideia inicial era saber se era possível
expandir o conceito tradicional de filosofia para além de uma origem única na Grécia e pensar
nas reflexões míticas dos povos ameríndios como instâncias da prática filosófica. O que me
movia, naquele momento, era a suspeita de que a filosofia não poderia ser restrita à tradição
grega. A intenção era fugir do excepcionalismo ocidental e, por meio dessa passagem pelo
pensamento ameríndio, mostrar que a filosofia é algo que qualquer um já faz.
Inevitavelmente esse projeto foi abandonado no primeiro ano de doutorado e a própria
ideia de estudar metafilosofia foi — mais uma vez — deixada de lado. Essa mudança se deve
em grande parte aos cursos da pós-graduação, a que assisti em 2014/1 e 2014/2, ministrado
pela Carla Rodrigues sobre Derrida e Nietzsche. Não foi uma coisa completamente pensada,
mas ao longo das discussões que realizávamos no curso — e que foram fundamentais para o
começo do presente trabalho — sempre ficava incomodado com certa figuração do conceito
de desejo como falta. O ambiente do curso era excelente e, por conta disso, sempre me senti à
vontade (provavelmente incomodando os colegas no processo) de apresentar críticas à
maneira como via o conceito de desejo sendo construído no texto de Derrida que
estudávamos. Foi por conta dessas discussões que durante esse primeiro ano do doutorado
comecei a cogitar um segundo projeto de doutorado: a ideia, vaga naquele momento, seria
realizar uma crítica à noção de desejo como falta e opô-la a uma visão positiva do conceito de
desejo. Não me parece um acaso que esse novo projeto começava a me atrair, pois, além
disso, havia retomado minhas leituras de Espinosa e começava a me aventurar na leitura de O
Anti-Édipo. Ainda que fossem apenas alguns passos iniciais, desenhava-se uma perspectiva
um pouco mais concreta sobre como lidar com a questão do desejo. Na época, conversei com
colegas e, sem grandes surpresas, alguns deles não acharam isso uma boa ideia. Falavam, com
razão, que existiam dezenas de trabalhos — a partir de uma matriz deleuziana — que discutia
esse problema. Ao mesmo tempo, estudava-se muito pouco sobre a potência do pensamento
3

ameríndio.1 Fiquei bem dividido durante pouco mais de um ano sobre essa questão até que, no
final de 2014, acabei abandonando definitivamente a ideia de discutir a relação entre
mitologia e filosofia.
Entre as coisas que me ajudaram a me decidir pelo abandono do meu projeto original foi
um curso que ofereci na graduação, com Pedro Gomlevsky, como parte do estágio de
docência do doutorado. A ideia do curso era bem simples: ler textos de metafilosofia escritos
por alguns filósofos do século XX e tentar entender diferentes formas de autodescrição da
prática filosófica. É importante dizer que não estava pensando em minha tese quando montei
esse curso. Meu objetivo era mais simples. Gostaria apenas de apresentar um tipo de
discussão — sobre metafilosofia — que raramente vejo abordada diretamente no nosso meio.
De forma que sem que eu procurasse isso, da própria preparação e desenvolvimento do curso
apareceu a possibilidade de articular a questão da prática filosófica com o desejo. Não
passava de uma hipótese, na época, mas comecei a me perguntar se era possível pensar na
prática filosófica como uma atividade orientada não por alguma pretensão de verdade, mas
que tirasse seus critérios do desejo.
Com isso em mente, passei o final de 2014 e o início de 2015 tentando criar um novo
projeto de doutorado que articulasse esses dois temas. Pude discutir o assunto do projeto com
algumas pessoas (penso especialmente em Pedro Gomlevsky, Ádamo Veiga, Paulo Henrique
Cople e Rodrigo Nunes) que, com suas sugestões, me ajudaram a dar uma consistência ao que
eram ideias mais ou menos soltas. O eixo central foi estabelecido (e não se transformou desde
então): as reflexões de Espinosa sobre afetos e desejos e as ideias de Deleuze e Guattari sobre
filosofia em seu O que é a filosofia?. Embora tinha um conjunto de textos e alguns problemas
para investigar, não posso afirmar que havia ainda um projeto completamente estruturado.
Faltava uma concretude à questão que apenas o embate com os textos poderia prover. Com
um projeto razoavelmente estruturado, comecei a estudar os textos que compunham a minha
bibliografia inicial. Como inicialmente pretendia escrever sobre a prática filosófica, acabei
lendo, sobretudo, textos da antiguidade helênica (Epicuro, Cícero, Sêneca, Epíteto, Marco
Aurélio — seguindo as pistas de Hadot), já que nesses textos se via mais claramente a
preocupação com os efeitos dessa prática. Comecei a esboçar um capítulo inicial que enviei

1
Felizmente outras pessoas mais capazes tem levado adiante esse tema. Ainda que a coisa ande devagar,
podemos destacar sobretudo os trabalhos excepcionais de Marco Antonio Valentim. Cf. Valentim, Marco
Antonio. “A teoria e a queda do céu”. ClimaCom - Cultura Científica, v. 4, p. 20-35, 2015; Idem,
“Extramundanidade e sobrenatureza”. Natureza Humana (Online), v. 15, n. 2, p. 48-93, 2013 e Idem,
“’Talvez eu não seja um homem’: antropomorfia e monstruosidade no pensamento ameríndio”. Campos
(UFPR), v. 15, p. 9-26, 2014.
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ao Ulysses Pinheiro na esperança de ter algum retorno sobre como estava indo a tese.
Encontrei com ele no final de 2015 (se não me engano) e saí dessa conversa com os ânimos
arrasados. Essa conversa foi provavelmente um dos momentos mais importantes do meu
doutorado, pois pude ver como aquilo que eu estava escrevendo era infantil demais,
prepotente demais e, pior, oco. Ainda que, inicialmente, tenha ficado momentaneamente
frustrado (normal), as críticas que Ulysses fez ao meu trabalho, e suas sugestões sobre em que
me focar, me fizeram ver o quanto de rigor ainda faltava no que tinha escrito. Resolvi, em
seguida, focar na parte dos afetos (ainda que essa parte fosse, e ainda é, o miolo da tese). Com
esse objetivo, grande parte de 2016 foi gasta em leituras de Espinosa e seus comentadores.
Abri mão de qualquer expectativa grandiosa e tentei, ao menos, escrever algo razoável sobre
Espinosa e a questão dos afetos.
Um pouco mais tarde, na metade desse mesmo ano, comecei a ser orientado pela Tatiana
Roque, que havia acabado de entrar na pós-graduação do IFCS. Apresentei meu projeto e ela
sugeriu prontamente a leitura da obra de Félix Guattari, sobretudo as discussões em torno da
semiótica. Ainda que muito pouco do trabalho de Guattari, em sua carreira solo, tenha entrado
na minha tese, foi a partir da leitura dos seus textos que consegui visualizar — por meio do
conceito de diagrama — uma maneira mais concreta de pensar os efeitos práticos da atividade
filosófica. Como, porém, precisava qualificar e estava ainda tentando terminar a parte sobre
Espinosa e os afetos, acabei deixando a questão da metafilosofia para o ano seguinte.
Apresentei na qualificação uma longa reconstrução do sistema espinosano, junto com um
projeto sobre o que ainda pretendia fazer na tese. O foco da conversa acabou sendo o projeto
que apresentei. Recebi inúmeras sugestões, algumas que pude adotar, enquanto outras
acabaram sendo descartadas, pois as próprias discussões na qualificação acabaram me
levando a outro caminho. De todas as coisas que foram faladas, uma acabou grudando na
minha cabeça. Os três insistiram bastante sobre a importância de que as partes da tese se
apresentassem como necessárias. Ainda que o projeto tivesse um certo roteiro, ainda faltava
algo que desse uma liga maior ao trabalho. Com isso em mente, comecei a me perguntar
como poderia dar mais coerência à tese. Sendo leitor de Espinosa, inquiri sobre as causas que
me moviam a trabalhar sobre esse tema. Precisava, em outros termos — mais deleuzianos —
entender qual era o problema que motivava a tese, que trazia a metafilosofia e a questão do
afeto como questões que eu não podia evitar.
O acaso é certamente o mestre silencioso dos nossos percursos, pois foi nesse momento,
no início de 2017, que acabei esbarrando em três livros que me deram as respostas que
procurava: Realismo capitalista de Mark Fisher, Crítica e crise de Reinhart Koselleck e O
5

novo tempo do mundo de Paulo Arantes. Os três livros lidavam, de maneiras bem diferentes,
com um certo processo de aceleração do tempo na modernidade que culminava,
paradoxalmente, em uma estagnação — uma sensação de incapacidade de agência que parece
nos dominar atualmente. Fiquei absolutamente convencido, após essas leituras, que o
problema que me movia era o cancelamento do futuro discutido por Fisher. A ideia, que
começava a surgir a partir dessas leituras, é a de que o futuro enquanto modo temporal, que
articula e orienta nossas vidas, encontra-se comprometido de um modo tal que se torna causa
dessa experiência de estagnação. Não me parece acaso que esses três textos tenham ressoado
bastante comigo no início de 2017, um momento em que qualquer futuro no Brasil estava
sendo sistematicamente destruído após o golpe de Michel Temer. Com esses textos em mente,
comecei a escrever uma espécie de introdução, que procurava apontar o problema que movia
a minha tese. A tentativa de lidar com as várias facetas desse cancelamento — e as causas que
o provocaram — fizeram que essa introdução ao problema da tese acabasse se tornando um
amplo diagnóstico. Antes parte da tese do que algo que viria à guisa de prólogo. Nesse ponto,
a tese sofreu uma reorganização geral. Uma série de partes foram descartadas e outras
acrescentadas, deixando-a com a sua forma atual. Começaria com um diagnóstico do nosso
tempo, discutiria os conceitos de afeto e por fim falaria sobre a filosofia como uma prática
que poderia nos auxiliar nessa situação em que nos encontramos. O percurso da tese estava
completo. Restava apenas escrever a última parte — tão adiada —, sobre a prática filosófica e
seus efeitos e torcer para que a coisa tivesse alguma consistência.

A tese, portanto, tem um problema bem específico. Ela parte de um incômodo com a falta
de agência que experimentamos no início do século XX. Procurei, nessa primeira parte,
descrever a maneira como nossa capacidade de ação é bloqueada por uma certa conjuntura.
Em seguida, ela procura discutir as noções de afeto e desejo em Espinosa, Deleuze e Guattari
para delimitar em que medida um corpo pode agir. Tenta-se compreender como corpos podem
agir em geral, com o intuito de saber se eles podem superar o impasse atual. Por fim, há uma
aposta na prática filosófica como técnica capaz de fornecer caminhos para reabilitarmos nossa
capacidade de agir — ainda que com expectativas drasticamente reduzidas.

*
6

A primeira parte da tese tenta elaborar um diagnóstico da nossa situação presente.


Inicialmente, isso é feito a partir dos trabalhos de Mark Fisher, Franco ‘Bifo’ Berardi e
Jonathan Crary. Esses três autores, cada um a sua maneira, apontam precisamente para o
problema da estagnação experimentada atualmente no ocidente globalizado — descrito por
Mark Fisher como realismo capitalista, isto é, a imposição de um modo de vida ao qual não
há alternativa. Nessas condições, o que se encontra comprometido não é nenhuma mudança
per si, mas a capacidade de aspirar a alguma transformação da realidade, de se orientar em
direção a um futuro. É como se ele tivesse se reduzido a uma mera repetição do presente. Esse
diagnóstico se confirma na análise que realizamos a partir das obras de Reinhart Koselleck e
de Paulo Arantes sobre a temporalidade moderna. O que esses autores nos ajudam a ver é qual
a estrutura temporal que encontramos na modernidade e que explicaria nossa situação atual.
Essa estrutura será identificada como um movimento em direção a um horizonte de
expectativas (futuro) a partir de um solo de experiências. Se, a partir dessas análises, é
possível dizer a modernidade inaugura uma nova temporalidade voltada para o futuro, o que
vemos, porém, é que a situação de cancelamento do futuro que vivemos é ela própria fruto de
um desenvolvimento imanente dessa maneira de se orientar em direção ao futuro.
Por isso, o passo seguinte foi tentar entender quais foram os elementos internos que
conduziram essa dinâmica ao ponto em que estamos. Nesse processo, foram identificadas
duas grandes causas: o modo de vida capitalista e a crise climática. Com relação ao
capitalismo podemos dizer, a partir da obra de Michel Foucault, que o tempo dos indivíduos é
progressivamente mais dominado pelas demandas do capital. Se nas origens do capitalismo o
trabalhador necessitava vender sua força de trabalho para sobreviver, o que observamos num
momento mais recente – nesse período neoliberal – é que não há mais divisão entre um tempo
de trabalho e um tempo de não-trabalho. O indivíduo se torna ele próprio uma espécie de
capital humano e cada instante do nosso tempo se torna algo que pode contribuir com a nossa
futura renda, de modo que é impossível planejar e dirigir as nossas ações sem pensar nos
riscos que corremos que podem ameaçar a nossa sobrevivência.
Por outro lado, a maneira como a crise climática afeta nosso futuro é mais clara e direta —
e talvez por isso a ignoremos? Aquilo que a crise climática ameaça é a própria possibilidade
material de um futuro. Não queremos dizer que nada mais vai acontecer e que o amanhã não
chegará. A questão é que o solo de experiências a partir de onde nos projetamos para o futuro
encontra-se comprometido. A partir da leitura de autores como Dipesh Chakrabarty, Isabelle
Stengers, Déborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro, percebemos que a expectativa de
estabilidade que vivenciamos é posta em cheque na medida em que a própria Terra começa a
7

se tornar terrivelmente instável. Passamos milênios acreditando na sua estabilidade e , quando


percebemos que essa condição era contingente, parece ser tarde demais. Considerando que ela
é o substrato mais basal que condiciona nossas vidas, sem essa estabilidade torna-se difícil
construir uma vida voltada para o futuro, já que não podemos ter mais certeza de que ela não
se transformará radicalmente. É por essa razão que qualquer posição utópica precisa se dar
conta do quanto ela depende ou não dessa estabilidade para sua concretização.
Diante dessa situação, cabe levantar a hipótese dessa nossa experiência do tempo atual —
uma orientação para o futuro apesar de uma ausência do futuro — não poder ser descrita
como uma espécie de patologia. Se, como Canguilhem, entendemos a doença como uma
incapacidade de se transformar, ou a restrição a um modo de vida específico, acredito que é
possível dizer que vivemos uma espécie de patologia da destemporalização (repetindo: não
que o tempo tenha deixado de existir, mas nossa experiência dele está, como veremos, em
crise). É por isso que devemos nos perguntar se há algo a fazer diante desses problemas. Ou,
reformulando a questão a partir da situação: Se nossa agência se encontra comprometida, será
possível articulá-la de outra forma? Será possível pensar nossa ação sem o futuro? É com isso
em mente que iremos investigar a questão dos afetos.
Na segunda parte desse trabalho, o principal objetivo é tentar entender de que maneira a
esfera dos afetos nos permite reabilitar a ideia de ação. Se no presente sentimos que não
conseguimos ir além da nossa conjuntura atual, a aposta é que um olhar sobre os afetos e o
papel deles na constituição dos nossos corpos pode nos ajudar a vislumbrar um tipo de
transformação que não dependa da ideia de futuro. Para isso, focaremos sobretudo no
pensamento de Espinosa, Deleuze e Guattari.
Inicialmente, iremos abordar o pensamento de Espinosa, pois encontramos em sua obra a
abertura para uma outra maneira de conceber os afetos. Tradicionalmente — da antiguidade
até o início da modernidade — nossa experiência afetiva (ou das paixões) foi geralmente
compreendida sob um ângulo moral, os afetos sendo concebidos como vícios ou virtudes. O
que veremos a partir da modernidade, mas sobretudo em Espinosa, é uma nova forma de
refletir sobre eles que procura esvaziar esse campo de qualquer conteúdo moral. Essa nova
maneira de conceber esse conceito é o que nos interessa no pensamento de Espinosa. Mas
para entender bem o que ele entende pelo conceito será necessário realizar uma reconstrução
de parte do seu sistema metafísico apresentado na Ética para que consigamos dimensionar em
que sentido os afetos ocupam um papel central em sua obra. Entre os diversos elementos que
o compõem, podemos destacar nesse sistema a maneira como Espinosa concebe os corpos.
Longe de serem encarados como unidades discretas, para ele um corpo é definido
8

fundamentalmente a partir das suas relações. Como, algo que veremos em sua ‘Pequena
Física’, as partes dos corpos estão sempre em movimento, sempre sendo trocadas — como as
células do nosso corpo, por exemplo — isso significa que o corpo é constituído antes como
uma espécie de organização e uma manutenção, não de partes específicas (não há nenhum
atomismo na obra espinosana que seja o critério de distinção dos corpos), mas de certas
relações de proporção que se mantém apesar das mudanças. Um indivíduo pode ser descrito
dessa forma como um equilíbrio dinâmico. Com isso em mente, será possível entender porque
para Espinosa a questão do afeto é encarada de um ponto de vista extramoral. Ela aponta
antes para a dinâmica de transformação dos corpos do que propriamente para aquilo que
costumeiramente se chama de sentimento e que geralmente associamos a um juízo moral.
Nesse ponto poderemos discutir com detalhes os conceitos que nos interessam mais na
obra de Espinosa: as ideias de afetos e desejo. Se o afeto diz respeito à variação na capacidade
de agir de um corpo, o desejo — que para Espinosa é um dos afetos primários — é o
movimento de um corpo que constitui a sua individualidade. O desejo na lógica espinosana
não se refere a nenhuma falta — uma posição que remonta no mínimo até Platão —, mas é
um vetor. Ele é o movimento de perseverança de um corpo, seu conatus, em seu contato com
outros corpos que ameaçam a sua continuidade. Como veremos mais adiante, um corpo não é
definido por um conjunto de propriedades, mas é uma espécie de movimento contínuo, uma
certa amplidão de transformações possíveis. O desejo será, então, o movimento específico que
constitui a essência de um indivíduo. Nesse ponto, porém, esbarramos com um impasse. Por
mais que o pensamento de Espinosa aponte sem cessar para a capacidade de transformação no
corpo, seu sistema é dominado por um estranho imobilismo. Não pretendemos abordar esse
ponto em detalhes, algo que exigiria outra investigação, mas é difícil encontrar em Espinosa
uma abertura para se pensar o movimento contínuo que compõe os indivíduos. É por isso que,
para dar continuidade a essa investigação sobre o campo dos afetos, o foco será deslocado
para a obra de Deleuze e Guattari.
O que nos interessa no pensamento desses dois autores, principalmente em Mil Platôs, é o
esforço de pensar a questão dos afetos (e do desejo) junto ao tema da transformação. Ao
discutir os conceitos de devir e ritornelo eles tentam dar conta do movimento contínuo
envolvido nas constantes transformações dos corpos. O que veremos, inclusive, é que se
radicalizarmos o movimento espinosano, as próprias demarcações entre os corpos não
poderão ser senão contingentes, visto que todos os corpos estão a todo momento se afetando e
se transformando. O efeito disso é que o movimento de um corpo de perseverar em seu ser
(seu conatus) precisa sempre ter uma abertura para fora de si. A dinâmica de um corpo nunca
9

é, dessa forma, completamente fechada. E, se esse movimento para fora pode, de fato,
ameaçá-lo — ele pode ser destruído ou mesmo absorvido pelo seu fora —, é só na sua
abertura que ele pode evitar se estagnar. Simplesmente perseverar em si, manter-se na mesma
configuração eternamente, é recusar aceitar que fora do nosso corpo tudo muda
constantemente. Podemos adiantar algo que veremos mais adiante, ao abordar o pensamento
de Canguilhem: a saúde de um corpo não está na sua capacidade de ter regras ou de ter uma
organização estável, mas em ter uma disponibilidade para se transformar e poder se tornar
outro na medida em que seu ambiente exigir. É por isso que veremos, ao investigar o conceito
de corpo sem órgãos, que a experimentação — entendida como tatear e avaliar — é um dos
movimentos fundamentais de qualquer indivíduo, pois ela é o que permite que ele não fique
restrito a um só modo de vida. Com essa compreensão sobre a dinâmica dos afetos dos
corpos, a maneira como eles se transformam continuamente e a importância da
experimentação para a sua sobrevivência, poderemos finalmente entender que papel a
filosofia pode ter para nos ajudar a resistir à situação de estagnação que nos domina.
Poderemos entrar na última parte do trabalho, onde abordaremos a própria prática
filosófica, procurando descrever seu funcionamento e compreender em que medida ela pode
ser eficaz. Como acredito que a filosofia pode ser compreendida como uma técnica de
experimentação, procuraremos inicialmente entender o funcionamento dessa própria técnica.
A filosofia, como veremos, pode ser descrita como uma forma de experimentação da
realidade por meio de uma operação de seleção e recorte da própria realidade. Mas isso não é
tudo, pois a prática filosófica não é uma mera operação perceptiva. O conceito, seu núcleo
central, será a expressão dessa operação. É, pois, por meio do conceito que ela se torna
visível, manipulável e transmissível em sua enunciação. Para conseguir dar conta desse
procedimento, iremos nos apoiar nos trabalhos metafilosóficos de Deleuze e Guattari para dar
conta dos dois principais movimentos envolvidos na prática filosófica: um movimento
destrutivo e um movimento criativo. O primeiro movimento procede de algum acontecimento
que ocorre e que excede as capacidades que temos de lidar com ele. Essa insuficiência que
experimentamos é o primeiro passo para operar uma destruição de formas defasadas de
seleção e recorte do real que não dão conta dessa alteridade que se impõe diante de nós.
Quando falamos de destruição, porém, não queremos dizer aqui um simples apagamento, mas
um processo de crítica dos quadros categoriais a partir de onde um corpo se orienta na
realidade. É por isso que esse movimento não é descolado da sua contraparte positiva. Na
própria operação crítica já há um movimento de criação de um novo quadro de conceitos que
se torna capaz de acomodar esse evento anteriormente inapreensível. Uma análise do conceito
10

deleuzo-guattariano do diagrama deixará essas questões mais claras. Mas se dissemos que
essa atividade é de ordem experimental é porque nós mesmos nos encontramos transformados
após essa reorganização. É por isso que é possível dizer que a filosofia é uma tecnologia de
transformação — o que nos abre um caminho para pensar a sua relação com a questão do
tempo que nos interessa.
São os efeitos de transformação que serão examinados no último capítulo dessa parte.
Também tentaremos elaborar de modo mais direto de que modo a prática filosófica pode,
nesse sentido, ajudar a lidar com o cancelamento do futuro que produz a estagnação que
vivemos. Para dar conta dessas questões nos detivemos no pensamento chinês tal como o
sinólogo/filósofo François Jullien o descreve, sobretudo a partir da sua noção de eficácia.
Encontramos na tradição chinesa uma forma de lidar com a realidade que não passa pela
divisão entre uma disposição estática e um movimento dinâmico, mas sim pela propensão das
coisas. Dar conta da propensão, como veremos, é capturar o movimento espontâneo
envolvido em certo corpo sem que ele seja distinguido de tal — trata-se de uma tendência que
está envolvida na coisa. Ela é o próprio movimento inerente a um corpo. Dessa forma, no
pensamento chinês as discussões sobre o espaço da agência se limitarão a pensar as ações
sobre as propensões. Como todas as coisas têm um desenvolvimento espontâneo, a sabedoria
estaria em entender que há momentos em que o movimento das coisas está mais ou menos
flexível. Não adianta tanto agir sobre algo que está em estágio avançado de desenvolvimento,
pois o tipo de força necessária para intervir seria alto demais. É por isso que encontraremos na
literatura estratégica chinesa uma imensa preocupação em agir antes da batalha. Ao mesmo
tempo, como se vê repetido constantemente no pensamento chinês, a verdadeira força está em
manter uma disponibilidade maior e não se abrir mão das suas possibilidades como um
general que não se desvia dos seus objetivos. A sabedoria está em se manter aberto sem se
comprometer com qualquer posição, pois qualquer objetivo prévio só restringe as capacidades
que se tem — e como nem sempre esse objetivo é algo realizável não raro este acaba servindo
mais como obstáculo do que qualquer outra coisa. Podemos então dizer que essa ação prezada
é uma espécie de ação sem finalidades. Nesse contexto, a ação só é verdadeiramente efetiva
— isto é, conduz à resultados desejados — quando intervimos num ponto em que a propensão
das coisas ainda é maleável, em que nos orientamos a partir do que se apresenta para nós, ao
caminho mais fácil. Se, porém, as descrições de Jullien sobre o pensamento chinês nos
interessam, é porque acredito ser possível identificar a prática filosófica com a captura de
propensão. A criação conceitual seria, ela própria, uma tentativa de operar um recorte e
seleção que dá conta do movimento inerente às coisas. Ao mesmo tempo, porém, ela se
11

mostra mais efetiva quando procura agir sobre as próprias condições — estas que seriam o
equivalente filosófico ao momento “antes da batalha”. As condições que a filosofia procura
descrever seriam, portanto, os índices do movimento espontâneo do real. É nessa capacidade
de transformar as condições ao descrevê-las (criá-las) que é possível ver a efetividade da
prática filosófica. Por fim, poderemos ver como essa lógica das propensões que percorre o
pensamento chinês implica um tipo de relação com o tempo que não se apoia na noção de
futuro e nos apresenta uma alternativa — no mínimo ela nos ajuda ao revelar a contingência
da temporalidade moderna ocidental. No pensamento chinês o tempo não se articula a partir
de uma relação tríplice entre passado-presente-futuro. O que se vê é um desenvolvimento sem
qualquer finalidade. O correr do tempo é apenas o desenvolvimento espontâneo das
tendências que procuram perseverar até o ponto em que alcançam uma espécie de
esgotamento, sendo então substituídas por outras tendências que existiam anteriormente, mas
ainda eram frágeis e pouco desenvolvidas. Trata-se de uma lógica que não procura delimitar
de antemão o que se deve fazer, mas age a partir do que se apresenta como possível. A
filosofia, enquanto movimento de experimentação de um corpo que quer perseverar, parece
permitir performar justamente esta práxis: uma ação sem fim. Um caminho para além da
temporalidade moderna se abre, ainda que isso não implique que ele será percorrido.

Como parece ter ficado evidente, esse trabalho não consegue deixar de se inscrever no
gênero das apologias da atividade filosófica. A verdade é que sempre foi difícil para mim
esconder o apreço que tenho por ela — talvez pelo tanto que ela própria me transformou ao
longo dos anos? Não é, pois, à toa que sempre me incomodou, e entristeceu, sua
burocratização. Como já falei, não acredito que a prática filosófica esteja morrendo ou
qualquer coisa parecida, mas não podemos negar que a profissionalização dessa atividade
gera novos problemas que ameaçam emperrar seu desenvolvimento.2 O fato bem visível é
que, nos tempos atuais, a filosofia parece desgarrada das nossas vidas práticas, substituída por
esse razoavelmente novo gênero literário da ‘autoajuda’ — que por sua vez parece uma
versão cristalizada e definhada da filosofia. Os departamentos de filosofia, por outro lado,
tendem a ser dominados por discussões infindáveis sobre o sentido técnico de certos
conceitos, fazendo com que algumas pessoas descrevam esse momento como uma segunda
12

era escolástica. A sensação é que em poucos pontos a discussão sobre filosofia ainda diz
respeito à realidade que vivemos.3 Mas, repito mais uma vez, isso não é um fim, são apenas
os problemas com que precisamos lidar. É por isso que procurei levar a sério, aqui, a hipótese
de que a filosofia pode mudar nossas vidas e entender o que isso significa.

2
Digo novos problemas não por estarmos “pior”, mas pela crença de que cada época acaba produzindo inimigos
próprios que devem ser resistidos. Se a coisa parece pior hoje talvez seja porque ainda temos que encarar os
perigos do nosso tempo.
3
A exceção aqui parecem ser as pesquisas relacionadas à filosofia política, já que a sua interface com a
realidade material é inevitável.
13

I. A PATOLOGIA DA DESTEMPORALIZAÇÃO

L'avenir est comme le reste : il n'est plus ce qu'il était.


J'entends par là que nous ne savons plus penser à lui avec
quelque confiance dans nos inductions. Nous avons perdu
nos moyens traditionnels d'y penser et de prévoir : c'est le
pathétique de notre état.
Paul Valéry, Notre destin et les lettres
14

I.1. DOMINAÇÃO NOS TEMPOS DA ACELERAÇÃO

E assim ela voltou ao tema do “antes”, mas de um modo


diferente do que costumava fazer na escola fundamental.
Disse que não sabíamos de nada, nem quando éramos
pequenas nem agora, e que por isso não estávamos em
condição de compreender nada, que cada coisa do bairro,
cada pedra ou pedaço de pau, qualquer coisa já existia antes
de nós, mas tínhamos crescido sem nos dar conta disso, sem
sequer pensar no assunto. E não só a gente. O pai dela fazia
de conta que, antes, não tinha acontecido nada. A mãe dela,
minha mãe, meu pai, até Rino faziam o mesmo. No entanto,
antes, a charcutaria de Stefano era a marcenaria de Peluso,
o pai de Pasquale. No entanto o dinheiro de dom Achille
tinha sido acumulado antes. Assim como o dinheiro dos
Solara. Ela havia feito o teste com o pai e com a mãe. Ambos
não sabiam de nada, não queriam falar nada. Nada de
fascismo, nada de rei. Nada de abusos, perseguições,
exploração. Odiavam dom Achille e tinham medo dos Solara.
Mas passavam por cima disso e iam fazer suas compras tanto
com o filho de dom Achille quanto com os Solara, inclusive
nos mandando até lá. E votavam nos fascistas, nos
monarquistas, como os Solara queriam que fizessem. E
pensavam que o que tinha ocorrido antes era passado e, por
apego à tranquilidade, davam o assunto por encerrado; e no
entanto estavam dentro, dentro das coisas de antes, e nos
mantinham ali dentro também, e assim, sem o saber,
continuávamos o que eles eram.
Elena Ferrante, A amiga genial
15

I.1.1. A sensação de Zenão

Zenão nega o movimento quando diz: “Um corpo que se


move não se move nem no lugar em que está, nem no lugar
em que não está.”
Diôgenes Laêrtios, Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres

Não é do passado, mas unicamente do futuro, que a


revolução social do século XIX pode colher a sua poesia.
(…) A revolução do século XIX precisa deixar que os mortos
enterrem os seus mortos.
Karl Marx, O 18 de brumário de Luís Bonaparte

Zenão parece ter vencido. Não que o movimento físico não exista, ou seja uma ilusão.
Sobre esse ponto não temos dúvida de que o debate foi vencido tão logo Diógenes, o cão, saiu
andando da discussão.4 Mas há um outro sentido para se dizer que Zenão venceu.
Consideremos o terceiro dos paradoxos de Zenão, o da flecha: segundo o filósofo, se
imaginamos uma flecha que está voando, em qualquer instante — i.e. qualquer recorte do seu
movimento — que imaginamos essa flecha, ela sempre ocupará um mesmo espaço específico.
O que se quer dizer com isso é que a flecha a cada instante não pode ocupar qualquer outro
espaço fora o que ela está ocupando em dado momento: em cada instante a flecha está,
evidentemente, imóvel. O mesmo seria válido para cada um dos outros instantes que
compõem o tempo que a flecha viaja; em nenhum desses instantes a flecha efetivamente se
move. Caso consideremos esse movimento da flecha como composto por infinitos instantes,
pode-se então tombar no aspecto paradoxal do experimento mental de Zenão: em nenhum
instante do seu voo a flecha efetivamente se move, já que a cada instante ela está sempre
parada. Como já disse, não nos interessa aqui prendermo-nos no aspecto físico do paradoxo,

4
Não custa lembrar a maneira como Henri Bergson, no quarto capítulo de Matéria e memória, lida com os
paradoxos de Zenão. Recomendamos também a leitura do pequeno texto de Pedro Gomlevsky sobre a questão
do movimento e do repouso a partir de Zenão: Gomlevsky, Pedro. Da prioridade ontológica do movimento sobre
o repouso. 2017. Disponível em <https://medium.com/materialismos/da-prioridade-ontol%C3%B3gica-do-
movimento-sobre-o-repouso-f6c220b13a4f>. Acesso em: 29 maio 2017.
16

mas em um certo ethos que parecemos estar habitando hoje em dia.5 Quando digo que Zenão
venceu o que quero dizer é que vivemos num momento em que simplesmente não
conseguimos imaginar uma transformação da nossa realidade social, política, econômica e
ecológica. Somos como a flecha capturada pelo instante, incapazes de acreditar que passado o
instante estaremos em outro ponto, que teremos nos movido.

Essa sensação de Zenão, a nossa condição, talvez não encontre melhor expressão que no
pequeno livro de Mark Fisher, Realismo capitalista.6 Para Fisher, vivemos em um momento
em que impera um “sentimento disseminado de que o capitalismo não é apenas o único
sistema político-econômico viável, mas também que é impossível sequer imaginar uma
alternativa coerente a ele.”7 Vamos deixar em suspenso, por ora, o foco que Mark Fisher dá
para a relação entre essa impotência da imaginação e o sistema capitalista global, pois por ora
desejo me focar no fato de que, se as questões político-econômicas são determinantes para
essa sensação de esgotamento, elas não dão conta de tudo o que está em jogo. Essa sensação
também será descrita, retomando uma expressão de Franco Berardi, como um lento
cancelamento do futuro. O que o autor quer dizer com isso se esclarece quando ele se põe a
comentar uma série de ficção científica do final dos anos 70, Sapphire and Steel. Segundo
Fisher, o nosso momento presente, o momento do cancelamento, se mostra na maneira como

a cultura do século XXI é marcada pelo mesmo tipo de anacronismo e inércia que atingiram Sapphire
e Steel em sua última aventura. Mas essa paralisia foi enterrada, sepultada atrás de um delírio
superficial da “novidade”, de movimento perpétuo. A “mistura do tempo”, a superposição de eras
anteriores, deixou de ser digna de menção, ela é tão predominante que nem mais sequer é notada.8

O que me interessa nesse diagnóstico é algo que encontraremos também em outros


autores: a ideia de que passamos (ou estamos passando) por uma transformação do regime de
temporalidade que condiciona as nossas experiências e práticas. Convergindo com esse

5
Os paradoxos de Zenão sobre movimento vão ter infinitas resoluções ao longo da história da filosofia, cabe
aqui apenas indicar que para mim [não só pra você, né] não se deve ler esse paradoxo como uma afronta ao
movimento, mas sim à maneira como concebemos vulgarmente o tempo e o movimento. De Zenão nos
chegaram apenas fragmentos via outros filósofos dos seus paradoxos, mas ainda assim, nos parece que o
movimento operado é um que propriamente demonstra a incapacidade de certas concepções de tempo e
movimento de lidar com o fenômeno efetivamente.
6
Fisher, Mark. Capitalist realism: is there no alternative?. Winchester: O Books, 2009. livro virtual
7
Idem, ibidem, (tradução de Maikel da Silveira)
8
Idem, The ghosts of my life. Winchester: O Books, 2014. livro virtual. (tradução minha)
17

diagnóstico, Paulo Arantes dirá em seu ensaio O novo tempo do mundo que vivemos em um
tempo que não consegue se projetar para além de si próprio, “foi-se o horizonte do não
experimentado.”.9 Ou seja, o que tomamos disso é que não se trata de dizer que nada mais
acontecerá — a mais vulgar das leituras do fim da história —, mas que o regime temporal10
que nos condiciona não dá bases para que nossas ações se orientem a partir de possíveis
transformações da experiência atual:

o próprio campo de ação vai se encolhendo, e isso porque “já dispomos no presente de uma parte do
futuro”. Digamos, não custa insistir, que cada vez mais a conjuntura tende a se perenizar. A inovação
clássica do futuro, em nome da qual se legitimou a iniciativa política nos tempos modernos, não só
perdeu sua força como deve ser rebatida sobre o presente.11

Retomaremos o ensaio de Paulo Arantes em um momento oportuno. Voltando para Fisher,


vivemos um tempo em que a “impressão do desenvolvimento linear cedeu espaço para uma
estranha simultaneidade.”12 O fato é que com certos desenvolvimentos tecnológicos tornou-se
possível quase que apagar a distância entre passado e presente. O que se perde ao se apagar
essa distância é justamente o “horizonte do não experimentado”, mencionado por Paulo
Arantes.
Segundo o diagnóstico de Fisher, essa estagnação do novo regime temporal pode ser
observada a partir das mudanças que ocorrem na cultura pop na passagem do século XX para
o XXI13. Antes seria possível distinguir cada época pela música que a dominava
(independente de quantos “sons” fossem). Haveria uma historicidade imanente que permitiria
que o desenvolvimento de novas formas/gêneros acabasse sempre localizando aquilo que
havia sido feito antes em um passado — demarcando nesse movimento de localização
temporal uma distância ou uma passagem. Essa novidade, inovação, que é aludida pelo autor
não é, porém, nenhuma espécie de novo ex nihilo. É claro que há raízes históricas que
conduzem a essa novidade, mas o aparecimento do novo tem a ver com a operação de uma
demarcação entre um presente e um passado. A coisa fica mais clara se recorremos a um dos
experimentos mentais que Mark Fisher repete inúmeras vezes:

9
Arantes, Paulo. O novo tempo do mundo. São Paulo: Boitempo editorial, 2014. p. 96.
10
Chamamos aqui de regime temporal a maneira como uma certa concepção de tempo organiza e determina o
horizonte de experiências e práticas de um certo momento histórico/espaço geográfico.
11
Idem, ibidem.
12
Fisher, Mark, op. cit., (tradução minha) Essa estranha simultaneidade não deixa de se materializar no imenso
domínio que a internet tem sobre as nossas vidas, ainda mais se pensarmos no fato de que nela encontraremos
coisas produzidas nos mais diversos momentos disponíveis simultaneamente.
18

Imagine qualquer disco lançado nos últimos anos sendo enviado de volta pro passado, digamos, 1995,
e tocado na rádio. É difícil imaginar que eles produziriam qualquer arrepio nos ouvintes. Por outro
lado, o que chocaria os ouvintes seria a própria reconhecibilidade do som: teria mesmo a música
mudado tão pouco nos últimos 17 anos? Contraste isso com a rápida transição entre estilos entre os
anos 60 e 90: toque um disco de jungle de 1993 para alguém em 1989 e a coisa soaria como algo tão
novo que isso obrigaria a pessoa a repensar o que música era ou poderia ser.14

Esse “lento cancelamento do futuro” não é, como a própria expressão já indica, algo
brusco, ele se dá de maneira crescente. Parafraseando Arantes, esse cancelamento é o próprio
movimento de perenização do presente. É possível também relacionar esse cancelamento
prolongado ao desenvolvimento e popularização de tecnologias de armazenamento — é como
se tudo o que houve no passado pudesse ser trazido diante de nós sem nenhum custo
[aparente]. Mas isso não é tudo. Caso contrário não haveria explicação para esse achatamento
não ter ocorrido anteriormente. Sem sair do campo da música, tomemos o exemplo do grupo
de música pop eletrônica Kraftwerk. Este grupo é um exemplo de uma prática musical que se
apropria dos desenvolvimentos técnicos “para permitir que novas formas emerjam”.15 Algo
bem diferente do que encontramos atualmente, isto é, o uso dessas tecnologias para reafirmar
o antigo, mas agora como familiar. Hoje “o modo nostálgico subordinou a tecnologia para a
tarefa de renovar o antigo.”16 Se o (já antigo) projeto cultural modernista (em sentido amplo)
poderia ser descrito como um movimento de experimentação formal, de exploração dos
limites das formas,17

o realismo capitalista não mais encena esse tipo de confronto com o modernismo. Ao contrário, a
derrota do modernismo é algo reconhecido: ele é agora algo que até pode ressurgir, periodicamente,
mas apenas como um estilo estético cristalizado, nunca como um ideal de vida.18

Isso não quer dizer que nada de novo tenha surgido nos últimos anos ou que possa vir a
surgir no horizonte. Acredito que o que está em jogo nessa sensação do fim da história
elaborada por Fisher é justamente o fim da história enquanto sensação. É claro que coisas
novas surgiram, mas a sensação predominante seria de uma ordem da estagnação. Estagnação

13
A importância para o autor está no fato de que “era por meio das mudanças na música popular que muitos
daqueles que cresceram nos anos 60, 70 e 80 aprenderam a medir a passagem do tempo cultural.” (Idem, ibidem,
tradução minha)
14
Idem, ibidem, (tradução minha)
15
Idem, ibidem, (tradução minha)
16
Idem, ibidem, (tradução minha)
17
“[o] modernismo possuía um potencial revolucionário em virtude de suas inovações formais”. (Idem, ibidem,
tradução minha)
19

que por sua vez dificultaria a percepção de obras artísticas que conseguem fugir desse
marasmo nostálgico que Fisher julga encontrar na cultura popular.
Esse cancelamento do futuro, como podemos ver, não aparece sozinho. Ele vem
acompanhado de um crescimento da nostalgia como artefato cultural.19 Essa nostalgia parece
indicar, inclusive, o mesmo achatamento do horizonte de expectativas que vimos Arantes
mencionar. É a repetição do mesmo que acontece quando somos incapazes de ir para além da
experiência presente — ou o futuro como um giro em falso. A nostalgia não é, portanto,
simplesmente uma “moda”, um “novo estilo”. Se a nostalgia tem um papel nesse
cancelamento do futuro é por orientar as suas criações a partir de um olhar para o passado e
uma substituição da “experimentação” (que procuraria ir em direção ao “não experimentado”)
por uma “recombinação”. A revolução volta a tirar a sua poesia do passado — mas a que
custo? Fisher especulará sobre as razões desse giro; ele se perguntará se isso não é uma busca
por um pouco de facilidade e familiaridade diante tanto de uma aceleração promovida pelo
avanço das tecnologias de comunicação como das destruições que um capitalismo neoliberal
provocou ao dissolver antigas relações de trabalho razoavelmente estáveis (mais estáveis que
agora). Não nos interessa ainda encaminhar para esse ponto, como dissemos. Ainda é preciso
explorar um pouco mais essa ausência de futuro. Mas o que é importante extrair dessas
análises de Fisher é justamente a maneira como o senso de estagnação e esgotamento permeia
que todas as esferas sociais aparece para nós por meio da proliferação da nostalgia e da
recombinação.
Mas não se trata de uma simples sensação. Ou melhor, a própria sensação dessa “estranha
simultaneidade” parece ser o surgimento de um novo regime temporal. Podemos inclusive
dizer que “realismo capitalista” é o nome que ele dá a esse novo tempo do mundo; uma
temporalidade cuja força

18
Idem. Capitalist realism: is there no alternative?, 2009. (tradução de Maikel da Silveira)
19
Por exemplo, o apelo que as franquias vem ganhando, como “Velozes e furiosos”, que está em seu oitavo
filme, ou mesmo o retorno da saga “Guerra nas estrelas” e seu sucesso comercial estrondoso. Outro ponto a ser
considerado é a maneira como a internet possibilitou que tivéssemos acesso fácil (lícita ou ilicitamente) a um
(quase) infinito fundo de catálogo (ou seja, tudo aquilo que não é um lançamento). Toda a história do cinema, da
literatura, musical, dos jogos de videogame estão acessíveis de uma forma nunca antes experimentadas. Há
certamente algo a se desenvolver sobre a relação entre o acesso fácil ao fundo de catálogo e o crescimento da
nostalgia. Temos ainda um fenômeno ainda mais recente que são as séries de televisão que são produzidas que
sob medida para esses tempos nostálgicos, como Stranger things, que se constrói quase que exclusivamente com
base em referências a uma certa atmosfera presente em filmes dos anos 80. Se dizemos que são feitas sob
medidas isso não é metáfora. Embora isso nunca seja dito explicitamente, é sabido que a quantidade de
metadados que empresas como Netflix (a empresa que lançou o Stranger things) possuem dos hábitos dos seus
clientes permite que elas escolham produzir programas que se adequem aos gostos dos clientes.
20

deriva em parte da maneira pela qual ele subsome e consome toda a história anterior: trata-se de um
efeito do “sistema de equivalências” capaz de transformar todos os objetos da cultura — sejam eles a
iconografia religiosa, a pornografia ou o Das Kapital — em valor monetário.20

Desde o Marx e seus herdeiros conseguimos enxergar o processo de equivalência operado


pelo capital em que tudo o que é produzido é tomado primariamente em termos de valor de
troca, que “tudo tenha o seu preço”. O que Fisher fala é um pouco diferente, pois a
equivalência que ele descreve ocorreu em um momento mais recente. A diferença entre essas
equivalências está justamente na “simultaneidade” — é a maneira como todo o passado vai se
tornando cada vez mais simultâneo ao presente a um ponto de indistinção, como na reação
que Fisher tem ao escutar uma certa música de Amy Winehouse:

Eu escutei pela primeira vez a versão de Amy Winehouse de “Valerie” enquanto andava por um
shopping center, talvez o local mais apropriado para consumi-la. Até então eu acreditava que
“Valerie” tinha sido gravada pelo indies fleumáticos [plodders] The Zutons. Mas, por um instante, o
som antiquado de soul dos anos 60 e os vocais (que numa escuta sem atenção eu não reconheci
inicialmente como de Winehouse) me fizeram revisar temporariamente essa crença: certamente a faixa
de The Zutons da música era um cover dessa faixa aparentemente mais “antiga”, que eu não tinha
escutado até agora? Naturalmente não demorou muito tempo para perceber que o “som de soul dos
anos 60” era na verdade uma simulação; isso era de fato um cover da faixa de The Zutons, feita num
estilo retro acelerado, que era justamente a especialidade do produtor da faixa, Mark Ronson.21

Essa nova temporalidade não se restringe ao âmbito cultural. É possível seguir seus rastros
em diversos recortes. É por isso que Fisher descreverá o realismo capitalista, o novo tempo do
mundo, como uma atmosfera:

O realismo capitalista, tal como eu entendo, não pode ser confinado às artes ou ao modo de
funcionamento quase-propagandístico da publicidade. Ele funciona mais como uma atmosfera
penetrante, condicionando não apenas a produção da cultura, mas a regulação do trabalho e da
educação, agindo como uma espécie de barreira que constrange pensamento e ação.22

Ele é um regime temporal na medida em que há um condicionamento da maneira como


experimentamos e nos orientamos com relação ao tempo. No caso presente, trata-se de uma
relação que se pauta por uma espécie de anacronismo, promovido pela simultaneidade entre
passado e presente, mas também um esgotamento que não nos permite olhar para frente. Ao
nos instalarmos nessa “estranha simultaneidade” o que acabou sendo destruído é a própria

20
Idem, ibidem, (tradução de Maikel da Silveira)
21
Idem, The ghosts of my life, 2014. (tradução minha)
22
Idem, Capitalist realism: is there no alternative?, 2009. (tradução minha)
21

experiência da passagem do tempo. Sem essa passagem, e com olhos para os infinitos
arquivos do passado que agora dispomos, não temos mais nenhum critério para diferenciar o
tempo, não podemos mais demarcar o passado do presente e, por consequência, do futuro.
Estamos capturados pelo ponto de vista do instante de Zenão, daí a incapacidade de imaginar.
Podemos desdobrar essa impotência da imaginação para além das artes. No âmbito
político, muita tinta já foi gasta sobre como o fim da URSS fechou um ciclo de sonhos e
promessas de transformação social para a esquerda. O próprio Paulo Arantes descreverá em
detalhes em uma certa conferência23 a maneira como o que vivemos hoje é o surgimento de
uma era da emergência onde, dadas as condições crescentes da nossa impotência (diante da
força policial dos estados, de bombas atômicas, da crise ecológica), importa para uma
esquerda cada vez mais numerosa poder salvar qualquer um que consigamos salvar – desde
que alguém seja salvo. É possível se perguntar se grande parte das nossas demandas políticas
recentes24 não se encaixariam nessa categoria. Se as causas são evidentemente justas, é
importante destacar que grande parte das pautas que elas exprimem são sempre
“emergenciais” (no termo de Arantes) ou simplesmente negativas. Elas não procuram impor
qualquer projeto positivo, mas simplesmente fazer o governo recuar em medidas ou cortes, ou
mesmo retirar o presidente do poder. A maneira como tem sido conduzido esse novo ciclo de
protestos nos induz a pensar que talvez não haja mais espaço para imaginar uma
transformação política positiva — a tentativa de realização de uma política em que a
população é agente parcial dessas transformações. A derrocada atual do PT traz uma pergunta
complementar: será que a sua trajetória desde que assumiu o governo em 2003, se afastando
dos movimentos de base e entretendo relações cada vez mais promíscuas com as oligarquias
(agropecuárias, industriais ou comerciais), não encena o movimento de cancelamento lento do
futuro para a população?.25 Hoje em dia parece inimaginável que se comece um novo
movimento social que tenha em mente “o horizonte do não experimentado” — uma utopia —
e que alcance as dimensões que o PT conquistou.26 Não estou aqui dizendo que isso tudo é
realmente impossível, mas é a própria dificuldade de imaginar, de achar irreal demais, que já
assinala a nossa submissão ao realismo capitalista. Fisher parece bem certeiro sobre esse
ponto quando diz que

23
O vídeo dessa conferência pode ser encontrado aqui: https://youtu.be/WzFmslF0ROk
24
Falo de um ciclo que começa a partir do golpe do ex-vice-presidente-decorativo e continua ainda hoje com
graus variados de mobilização.
25
Claro, o PT teve inúmeras conquistas, mas é sempre bom lembrar que parte dessas conquistas se deram em
convergência com interesses das oligarquias dominantes do país, que nunca saíram do poder.
26
Não se trata de repetir a fórmula do PT, mas conseguir construir uma máquina política com a capacidade de
gerar efeitos que mobilizem os afetos do socius — como foi junho de 2013, por um breve momento.
22

o assim chamado movimento anticapitalista já parecia ter cedido terreno demais ao realismo
capitalista. Tendo se mostrado incapaz de apresentar ao capitalismo uma alternativa de modelo
político-econômico coerente, cresceu a suspeita de que talvez o objetivo não fosse mais superar o
capitalismo, mas apenas mitigar seus excessos; e, considerando que formalmente as atividades desses
movimentos privilegiavam o protesto, em detrimento da organização política, havia a sensação de que
o movimento anticapitalista consistia numa série de demandas histéricas, sem esperança da sua
realização.27

Sem imaginação, ao ponto de reprimirmos a imaginação que tínhamos ontem. Esse


esgotamento de horizonte é a uma espécie dominação social que é exercida no regime
temporal atual. É isso que quero dizer quando falo que o realismo capitalista de Fisher é um
regime temporal. Não se trata de “relações específicas”, de “pautas próprias”, mas de um
certo domínio sobre a própria temporalidade. De modo que

os limites do capitalismo não são fixados de saída, mas definidos (e redefinidos) pragmaticamente e
improvisadamente. Isso faz do capitalismo algo muito parecido com A Coisa no filme homônimo de
John Carpenter: uma entidade monstruosa e infinitamente plástica, capaz de metabolizar e absorver
qualquer coisa que entre em contato com ele. 28

Por conta disso não faz a menor diferença apenas decifrar os enigmas envolvidos na
dominação nesse regime temporal. A dominação não se exerce por uma crença ou por um
convencimento (embora não poucos certamente se veem como convencidos da eficiência
“racional” dos ciclos do Capital) que bastaria encontrar para poder desfazê-la (fazendo com
que as dominações sumissem magicamente). Não somos Édipo diante da Esfinge29. Como
escreve Fisher,

o papel da ideologia capitalista não é fazer defesa explícita de nada, como a propaganda faz, mas
esconder o fato de que as operações do capital não dependem de nenhum tipo de subjetividade ou
crença. Era impossível conceber o fascismo ou o Stalinismo sem propaganda — mas o capitalismo
pode funcionar perfeitamente bem sem ela, em muitos sentidos, funciona até melhor quando não tem
ninguém tentando defende-lo abertamente. 30

A dominação acontece, portanto, no nível das submissões impostas e dos hábitos


forçados, é algo que se dá num nível material — e que produz como efeito essa sensação de
Zenão, esgotamento, cancelamento de futuro. As relações de trabalho a que somos

27
Idem, ibidem, (tradução de Maikel da Silveira)
28
Idem, ibidem, (tradução de Maikel da Silveira)
29
E sabemos como isso terminou…
23

submetidos, o fantasma de uma crise climática sem proporções e inclusive a maneira como
somos capturados por certos desenvolvimentos tecnológicos que criam ou modificam nossos
hábitos. É nesse jogo que a nossa relação com um porvir é capturada.

Se encontramos em Fisher uma boa descrição dessa atmosfera em que vivemos


atualmente ao investigar os efeitos desse novo tempo na nossa incapacidade de imaginar,
podemos encontrar na obra de Franco ‘Bifo’ Berardi uma análise das condições materiais
dessa mutação. Ambos partem da mesma experiência de desgaste e esgotamento: “A ausência
de movimento é visível hoje em dia, ao fim da década zero zero: a ausência de uma cultura
ativa, a ausência de uma esfera pública, o vazio da imaginação coletiva, paralisia do processo
de subjetivação. O caminho para a consciência coletiva parece obstruído.”31 Mas ao contrário
do autor de Realismo capitalista, encontramos em Bifo a tentativa de acompanhar os efeitos
dessa transformação no nível do corpo. É por isso que o autor dirá que

quando digo “futuro”, não estou me referindo a uma direção do tempo. Estou pensando, antes, na
percepção psicológica, que emergiu na situação cultural da modernidade progressiva, as expectativas
culturais que foram fabricadas durante o longo período da civilização moderna, chegando ao seu auge
nos anos após a Segunda Guerra Mundial.32

Essa experiência específica da expectativa (ou sua ausência) não pode ser tomada como
algo desligado da composição dos nossos corpos. O que Bifo nos aponta é que o corpo
também é condicionado pelo regime temporal que predomina e tem as suas capacidades
delimitadas e alteradas pela maneira como se organizam os ritmos temporais. É ele que se
cansa, é ele que se agita, é ele que aumenta a sua velocidade até um ponto que quebra e não
consegue mais se mover — e os ritmos do corpo são sempre determinados junto aos ritmos do
seu contexto, tendo sempre que prestar contas a exigências sociais (mas também ecológicas).
Para tomar emprestado um conceito de Reinhart Koselleck, o nosso tempo (o tempo do
corpo), está sempre em um jogo com outros estratos de tempo (das instituições burocráticas,
das nações, da biosfera, do cosmos etc.) que não deixam de ter seus próprios ritmos. E é
justamente nesse local que a investigação de Bifo nos permite descortinar mais esse
cancelamento do futuro em que vivemos. Ao localizar a sua investigação em uma certa

30
Idem, ibidem, (tradução de Maikel da Silveira)
31
Berardi, Franco. After the future. Oakland: AK Press, 2011. livro virtual. (tradução minha)
24

materialidade (o corpo), torna-se mais fácil procurar o que determina de tal ou tal maneira o
corpo a ter essa ou aquela capacidade — quais são as coisas que afetam o corpo a poder agir
ou não agir, a agir assim ou assado.

§ Um parênteses é necessário aqui, visto que não podemos mais adiar essa
explicação. Se falamos que o regime temporal é condição, não estamos
dizendo que ele se confunde absolutamente com os movimentos materiais. A
temporalidade (que não tomamos como fixa, eterna) que se investiga aqui
são os limites imanentes dos fluxos materiais em uma determinada instância
e não os próprios fluxos. O que ocorre, antes, é que o fio material nos ajuda
apontar para temporalidade visto que todo ente material sempre opera já sob
certas condições.

É com isso em mente que podemos entender o que Bifo diz quando fala que o “futuro”
tem uma relação com a cultura: “o futuro não é uma dimensão natural da mente. Ela [a mente]
é uma modalidade de projeção e imaginação, um elemento da expectativa e da atenção e as
suas modalidades e características mudam de acordo com a transformação das culturas.”33 No
nosso caso atual, a destruição do regime temporal que tem um futuro (o regime da
modernidade) tem a ver com um movimento de colonização do tempo.

Ao longo do século vinte, a velocidade da máquina realizou a colonização do espaço global; isso foi
seguido pela colonização do domínio do tempo, da mente e da percepção, que acabou por fazer com
que o futuro entrasse em colapso. O colapso do futuro está enraizado na aceleração dos ritmos
psíquico e cognitivo.34

Essa colonização do tempo se dá por meio do aumento e da aceleração dos fluxos de


informações a que somos submetidos. Não estamos muito longe aqui da maneira como Mark
Fisher identifica a ausência de futuro a partir de uma disponibilidade incalculável do passado.
Mas não é apenas o “futuro” que é colonizado. Essa colonização aponta para uma “transição,
uma mutação do organismo consciente [que] está acontecendo: para fazer com que o
organismo se torne compatível com um ambiente conectivo, o nosso sistema cognitivo precisa
ser reformatado.”35 O processo descrito não é um em que somos agentes da nossa própria
transformação. É como se nós fossemos obrigados a nos transformar para poder dar conta do
novo “ambiente conectivo” que nos cerca. “O cybertempo, a habilidade social de processar

32
Idem, ibidem, (tradução minha)
33
Idem, ibidem, (tradução minha)
34
Idem, ibidem, (tradução minha)
35
Idem, ibidem, (grifo meu, tradução minha)
25

informação no tempo, é orgânico, cultural e emocional, logo, é tudo menos ilimitado.


Submetida à aceleração infinita dos estímulos informacionais [infostimuli] a mente reage ou
com pânico ou dessensibilização.”36 O homem, nesse sentido, está correndo atrás do
desenvolvimento acelerado das tecnologias de informação e nesse processo tendo que
transformar a sua própria maneira de lidar com ela. Falaremos um pouco mais sobre esses
processo a frente, mas antes vamos acompanhar Bifo na maneira como ele descreve essa
transformação.
Segundo ele, o que está ocorrendo é uma “transição da esfera da conjunção para uma da
conexão”37. A esfera da conjunção teria a ver com a capacidade de devir-outro [becoming-
other], de termos as nossas vidas transformadas a partir do contato com outros corpos, de
poder ter, como já falamos, uma demarcação da passagem do tempo. “Em contraste, na
conexão cada elemento permanece distinto e opera apenas funcionalmente. Singularidades
mudam quando elas se juntam [conjoin]; elas se tornam outra coisa, diferente do que eram
antes da sua conjunção.”38 O que se corre o risco de perder nessa transformação é uma
“faculdade da sensibilidade”: “é a faculdade que torna possível o conhecimento empático, é a
habilidade de compreender o que palavras não podem dizer, o poder de interpretar um
continuum não-discreto de elementos, signos não-verbais e os fluxos de empatia.”39
Isso pois nesse novo tempo “essa faculdade se revela inútil e até prejudicial num sistema
conectivo integrado. A sensibilidade desacelera processos de interpretação e os torna
aleatórios e ambíguos, reduzindo assim a eficiência competitiva do agente semiótico”40. O
novo tipo de subjetividade que começa a se formar, e que vai deixando de lado a sua
capacidade de conjunção, é uma de ordem mais “maquínica”. Como diz o autor,

antes de fusão de segmento, a conexão implica o simples efeito de uma funcionalidade maquínica.
Para conectar, segmentos precisam ser linguisticamente compatíveis. Na verdade a própria rede da
internet se espalha e expande ao progressivamente reduzir mais e mais elementos para um formato,
um padrão e um código que faz com que compatibilize segmentos diferentes.41

O que resulta desse novo tipo de corpo e subjetividade seria “uma geração de seres
humanos que não desenvolvem a faculdade da sensibilidade, a habilidade de compreender
empaticamente o outro e decodificar signos que não estão codificados em um sistema

36
Idem, ibidem, (tradução minha)
37
Idem, ibidem, (grifo meu, tradução minha)
38
Idem, ibidem, (grifo meu)
39
Idem, ibidem, (tradução minha)
40
Idem, ibidem, (tradução minha)
41
Idem, ibidem, (tradução minha)
26

binário.”42 Essa falta de sensibilidade, de capacidade de devir-outro, deixa mais claro os reais
efeitos desse novo tempo do mundo. O achatamento, a equivalência dos códigos, vai cada vez
mais dificultando a possibilidade de operar transformações reais. Não surpreende que os
sonhos que imperam no Vale do Silício tendam a se resumir no sonho de uma vida eterna
digital. A imaginação foi a tal ponto destruída que a grande utopia de uma das classes mais
poderosas do mundo é viver no reino da equivalência total onde nenhuma transformação
efetiva é possível. É o sonho de viver na nuvem, em um tempo em que “a conjuntura tende a
se perenizar”.

Mas como dissemos, não basta simplesmente descobrir o enigma da Esfinge. Pois a
explosão da internet nos últimos quinze anos e a facilidade crescente de acesso aos
smartphones significa que ainda que não tenhamos os “benefícios” da vida eterna tão sonhada
pelos ogros do Vale, estamos colhendo desde já os efeitos negativos que a habitação
prolongada de um mundo sem passado ou futuro provoca. Como diz Mark Fisher em uma
sacada brilhante, a partir do momento em que nos cercamos por smartphones, nós paramos de
ir para a internet e começamos a estar na internet. As análises de Jonathan Crary sobre essa
relação entre os desenvolvimentos tecnológicos43 e o presentismo em que nos inserimos são
bem fecundas nesse sentido, e nos permitem enxergar a maneira como o desenvolvimento
técnico que passamos nas últimas décadas compõem esse cenário de dessensibilização da
passagem do temo. Inclusive podemos, a partir de Crary, dar um outro nome para esse novo
tempo do mundo que estamos tateando: 24/744 — é a “a inscrição geral da vida humana na
duração sem descanso, definida por um princípio de funcionamento contínuo. É um tempo
que não passa mais, para além das horas do relógio.”45 O diagnóstico de Crary sobre o novo
tempo do mundo é que

o que é novo é o amplo abandono da pretensão de que o tempo possa estar acoplado a quaisquer
tarefas de longo prazo, inclusive a fantasias de “progresso” ou desenvolvimento. Um mundo 24/7

42
Idem, ibidem, (tradução minha)
43
A questão da tecnologia exigiria um capítulo a parte nessa discussão. Como não é possível realizar isso aqui,
deixamos apenas a referência para um capítulo posterior que tratará discutirá brevemente sobre o conceito de
máquina a partir do pensamento de Félix Guattari e que ajuda a ampliar o escopo para além da ideia tradicional
de tecnologia como objeto criado artificialmente pelo homem. Cf. II.6.2.
44
Impossível traduzir essa expressão. Ela deve ser lida “twenty-four-seven” para indicar o tempo em que certos
comércios ficariam abertos, isto é, 24h por dia, 7 dias por semana — ou seja, sempre.
45
Crary, Jonathan. 24/7: capitalismo tardio e os fins do sono. São Paulo: Cosac Naify, 2014. p. 18
27

iluminado e sem sombras é a miragem capitalista final da pós-história, de um exorcismo da alteridade,


que é o motor de toda mudança histórica.”46

As tecnologias mais recentes funcionam justamente por sua presença constante. Se a


expressão 24/7 vem das redes comerciais que estão abertas a todo momento, elas casam
perfeitamente com o tipo de disponibilidade que smartphones nos obrigam a ter. A todo
momento conectados na internet, acabamos dissolvendo até última das fronteiras do tempo e
permitindo uma equivalência geral entre todos os momentos. Quando até o momento do sono
— que seria o tempo absolutamente improdutivo por excelência — se torna tão disponível
quanto qualquer outro, vemos essa equivalência se concretizar (“sempre é hora de responder
alguns emails”). E embora os celulares sejam a tecnologia mais representativa dessa
disponibilidade do novo tempo, todos podem rapidamente se lembrar das ocasiões (cada vez
menos raras) em que precisamos ligar para um call center para resolver algum problema
agora — um agora que é qualquer hora. Nem mais nos surpreendemos quando acontece da
nossa internet cair às 4h da manhã e podermos imediatamente ligar para a operadora para
saber qual o problema. A surpresa é justamente quando não encontramos essa disponibilidade
absoluta. Essa característica se torna ainda mais visível depois que a internet conseguiu
permear as nossas vidas, pois as redes estão sempre em constante movimento. Seja pelos
inúmeros fuso horários diferentes que se dissolvem em uma simultaneidade do acesso ou na
modificação das rotinas que a organização do trabalho no capitalismo tardio provoca — não
importa. O que conseguimos enxergar com mais clareza é que essa “estranha simultaneidade”
não se restringe à internet. O que surge é “um mundo 24/7 é desencantado, sem sombras nem
obscuridade ou temporalidades alternativas. É um mundo idêntico a si mesmo, um mundo
com o mais superficial dos passados, e por isso sem espectros.”47 Esse movimento de
expansão da luz acaba, por sua vez, tendo um efeito ainda mais terrível, que é o de lentamente
conceder um grau de realidade maior àquilo que nós podemos acessar imediatamente. Isso
pois

a homogeneidade do presente é um efeito da luminosidade fraudulenta que pretende se estender a tudo


e se antecipar a todo mistério ou ao desconhecido. Um mundo 24/7 produz uma equivalência aparente
entre o que está imediatamente disponível, acessível ou utilizável e o que realmente existe. 48

46
Idem, ibidem, p. 19
47
Idem, ibidem, P. 29
48
Idem, ibidem.
28

Aquilo que não consegue entrar nesse regime da disponibilidade tem a sua realidade
comprometida na nossa experiência. Há um condicionamento dos nossos hábitos sendo
realizado por essas tecnologias. Se antes, nos anos 2000, havia todo um apelo em buscar
ativamente filmes, músicas, agora, com os serviços de streaming conquistando cada vez mais
mercados, aos poucos começamos a ter preguiça de ir para além das fronteiras desses
serviços. Vamos nos conformando a assistir essa série e não aquela (que realmente
gostaríamos de ver), deixamos pra escutar aquele disco “em outro momento”, simplesmente
por não serem oferecidos em tal ou tal serviço. Tudo aquilo que se posiciona fora da zona de
disponibilidade se torna menos real por ser menos acessível.
Mas isso não é tudo. O nosso próprio corpo é colonizado por esses novos hábitos. Nós não
conseguimos mais viver sem esses apetrechos apesar de poucos anos antes serem coisas que
nem sequer imaginávamos serem possíveis. Um excelente exemplo disso é o caso do celular
que temos ao lado das nossas camas. Se no meio da noite acabamos acordando, em muitas
pessoas o primeiro impulso não é tentar continuar dormindo, mas “dar uma olhadinha” para
ver se algo aconteceu na internet enquanto estávamos fora. Esse pequeno gesto, porém, acaba
muitas vezes atrapalhando o nosso sono e fazendo com que cada vez mais nos acostumemos a
um sono intermitente, gerando uma espécie de insônia que é produzida por essas tecnologias.
As consequências disso, portanto, para um “horizonte do não experimentado” não
poderiam ser menos catastróficas. Assim como Fisher e Bifo, Crary também irá encontrar
esse cancelamento lento do futuro na relação que estabelecemos com o arquivo, pois, para
ele, “estamos imersos em imagens e informações a respeito do passado e suas catástrofes
recentes — mas também somos cada vez menos capazes de lidar com esses vestígios, de
forma que nos permitiria superá-los em nome de um futuro compartilhado.”49 Como Bifo
elaborou, simplesmente não temos capacidade de processar essa quantidade de informações
absurdas: “as imagens se tornaram um dos muitos elementos esvaziados e descartáveis que,
por serem arquiváveis, não são jamais jogados fora, contribuindo para um presente cada vez
mais congelado e sem futuro.” 50 Essa disponibilidade acaba contra-efetuando o futuro ao nos
privar da capacidade de elaborar a passagem entre passado e presente. Ela faz desmoronar a
possibilidade de uma transformação real e com isso o futuro se transforma em uma
“simulação contínua do novo, enquanto as relações de poder e de controle existentes
permanecem, na prática, as mesmas.”51 O presente se constitui como uma promessa de
liberdade pela disponibilidade que seria paulatinamente realizada pelo desenvolvimento

49
Idem, ibidem, p. 44
50
Idem, ibidem.
29

tecnológico. O que temos, porém, é de um lado a extensão do presente devido “a perpetuação


do mesmo exercício banal de consumo ininterrupto, isolamento social e impotência política,
em vez de representar um ponto de virada historicamente relevante”52 e, por outro, o
cancelamento do futuro sendo produzido pelo “ritmo acelerado dessas mudanças aparentes” já
que ele “elimina o sentimento de padrões temporais compartilhados que poderiam
fundamentar a antecipação, ainda que nebulosa, de um futuro diferente da realidade
contemporânea.”53 A imaginação do futuro é convertida na “luta pelo ganho ou pela
sobrevivência individual no mais superficial dos presentes.”54
O novo regime do tempo é um sistema de obstrução do futuro — “o encarceramento e o
controle implacáveis do tempo e da experiência”55 — em nome de uma abertura de um
presente aparentemente livre. Um presente que promete escolhas agora, uma ampliação do
presente por meio da disponibilidade que ele oferece, quando o que ocorre é, na verdade, a
contínua submissão56. “Na realidade, há uma uniformidade imposta e inescapável no nosso
trabalho compulsório de autoadministração. A ilusão de escolha e autonomia é uma das bases
desse sistema global de autorregulação.”57

O ponto de vista do instante, como podemos ver pelas análises precedentes, produz
impotência, nos impede de operar transformações ao nos privar dos horizontes. Não é à toa
que o tipo de sujeito que se produz a partir desse regime temporal tenda para uma certa apatia.
É o que tiramos da descrição que Fisher faz de alguns dos seus alunos:

51
Idem, ibidem, p. 49
52
Idem, ibidem.
53
Idem, ibidem, p. 50
54
Idem, ibidem.
55
Idem, ibidem, p. 49
56
Como diz Crary: “esse fenômeno contemporâneo de aceleração não é simplesmente uma sucessão linear de
inovações, na qual cada item obsoleto é substituído por um novo. Cada substituição é sempre acompanhada por
um aumento exponencial do número de escolhas e opções disponíveis. É um processo contínuo de distensão e
expansão, que ocorre simultaneamente em diferentes níveis e em diferentes lugares, um processo no qual há uma
multiplicação das áreas de tempo e experiência que são anexadas a novas tarefas e demandas envolvendo
máquinas. A lógica do deslocamento (ou obsolescência) é conjugada a uma ampliação e diversificação dos
processos e fluxos aos quais o indivíduo se vincula efetivamente. Toda aparente novidade tecnológica é também
uma dilatação qualitativa de acomodação e dependência a rotinas 24/7 ; também é parte de um aumento na
quantidade de aspectos sob os quais um indivíduo é transformado em uma aplicação de novos sistemas e
esquemas de controle.” (Idem, ibidem, p. 52)
57
Idem, ibidem, p. 55
30

Muitos dos alunos adolescentes que cruzaram meu caminho pareciam estar em uma condição que eu
chamaria de hedonia depressiva. A depressão é geralmente caracterizada por um estado de anedonia,
mas a condição a que me refiro é constituída não tanto por uma incapacidade de obter prazer, mas por
uma incapacidade de busca qualquer que não seja prazer. Há uma sensação de que “algo está
faltando”58.

A quantidade de informação que temos disponibilizada é tão grande que nos sentimos
forçados a percorrer o disponível de uma forma absolutamente mecânica (“maquínica”, nos
termos de Bifo). Esses novos hábitos, porém, antes de serem libertadores — ao nos
disponibilizar um acesso [quase] ilimitado —, acabam apenas delimitando o nosso espaço de
ação a uma estranha simultaneidade. Tudo aquilo que não se apresenta imediatamente, que
contém alguma espécie de dificuldade é “deixado para depois”, ou mesmo deixado de lado59.
Ao “futuro” só resta aparecer como mera repetição (extensão) do presente, enquanto o
“horizonte do não experimentado”, o porvir, como horizonte, é eliminado. A pergunta que
surge, portanto, é sobre como se orientar a partir dessa apatia. Será o caminho uma tentativa
de reativar a potência do futuro e a sua capacidade de nos impulsionar ao longo do tempo? Ou
será que haja uma espécie de intensificação dessa apatia que pode nos libertar — ao auto-
destruí-la — dessa articulação do tempo que nos sufoca? Para poder responder a essa questão,
precisamos entender o movimento que nos levou a ela.

58
Fisher, Mark, op. cit. (tradução minha)
59
Outro relato de Fisher sobre seus alunos nos parece interessante: “Peça para os alunos lerem mais do que
algumas frases e muitos — e esses alunos são do tipo que tiram notas máximas — vão responder dizendo que
não conseguem. A reclamação mais frequente que os professores escutam é que é entediante. Não é tanto o
conteúdo do material escrito que é está em questão aqui; é o próprio ato de leitura que é considerado “chato”. O
que estamos nos deparando aqui não é a clássica sonolência adolescente, mas a incompatibilidade entre a
“juventude” [“New Flesh”] “agitada demais para se concentrar” pós-letrada e a lógica confinante e aprisionante
dos sistemas disciplinares que apodrecem. Estar entediado simplesmente significa estar removido da matriz
comunicativa sensação-estímulo de mensagens de texto, YouTube e fast food; ter sido negado, por um momento,
o fluxo constante da doce gratificação sob demanda. Alguns estudantes querem Nietzsche da mesma forma que
querem um hamburguer; eles não conseguem entender — e a lógica do sistema de consumo incentiva esse tipo
de equívoco — que a indigestibilidade, a dificuldade é Nietzsche.” (Idem, ibidem, tradução minha)
31

I.1.2. O presente como aceleração

Work it harder, make it better


Do it faster, makes us stronger
More than ever, hour after hour
Work is never over
Work it harder, make it better
Do it faster, makes us stronger
More than ever, hour after hour
Work is never over
Daft Punk, Harder, better, faster, stronger

Talvez seja hora de recuarmos uns passos antes de avançar. A situação que descrevemos é
que estamos em um novo tempo do mundo que decorreria do cancelamento do futuro — ou
esse cancelamento é o novo tempo do mundo. Tudo indica, também, que o que esse
cancelamento provoca é uma incapacidade de agir. Não que fiquemos parados — certamente
não ficamos. O que ocorre é o exato oposto: nos movemos em um ritmo cada vez mais
acelerado, somos obrigados a processar cada vez mais informação em cada vez menos tempo.
Mas é como se não tivéssemos mais a capacidade de sair para fora do nosso regime de
experiência atual. No future.
Se falo que talvez seja hora de operar um recuo é preciso acrescentar que trata-se de um
recuo duplo. Por um lado estou dizendo que talvez esteja na hora de analisar e investigar
alguns dos conceitos que temos mencionado de passagem sem desenvolvê-los demais. É
inevitável que todo começo se dê, em alguma medida, in media res, e o trabalho aqui
realizado não escapa disso. Por essa razão, a fim de poder pintar uma paisagem inicial, fomos
obrigados a passar rapidamente demais por alguns conceitos que na verdade são
fundamentais, pois são justamente esses conceitos que estão nos permitindo compreender e
pintar a paisagem em questão. O outro aspecto do recuo é propriamente histórico. Para se ter
uma imagem mais precisa do novo tempo do mundo é preciso, ao menos, esboçar o tempo do
mundo anterior (que, em sua inauguração, também foi ele próprio um “novo tempo do
32

mundo60”). Vamos, primeiramente, construir o esqueleto desse movimento para, nos


próximos capítulos, elaborar os elementos específicos que produzem esse cancelamento.

Ainda que não falamos isso explicitamente, é preciso dizer que sempre que mencionamos
ideias como “novo tempo do mundo”, “regimes temporais”, de “horizonte do não
experimentado”, era a obra do historiador alemão Reinhart Koselleck que nos orientava. Foi
ele quem desenvolveu uma das análises mais finas da alteração dos regimes temporais que
ocasionou a modernidade europeia61. É, então, com o intuito de conseguir categorizar esse
momento específico em que vivemos que escolhemos nos deter na obra desse autor.
Comecemos então pelas categorias chaves da análise de Koselleck: espaço de experiência e
horizonte de expectativa.
A importância dessas categorias para o autor está no fato de que “experiência e
expectativa são duas categorias adequadas para nos ocuparmos com o tempo histórico, pois
elas entrelaçam passado e futuro.”62 Elas permitem coordenar e constituir a história como
passagem do tempo. Isso não quer dizer que essa passagem é neutra, pelo contrário, “o tempo
histórico não apenas é uma palavra sem conteúdo, mas também uma grandeza que se
modifica com a história, e cuja modificação pode ser deduzida da coordenação variável entre
experiência e história.”63 Dito isso, cabe compreender o que cada um desses conceitos quer
dizer para podermos ter uma imagem mais clara sobre o problema que nos ocupa.
Com relação ao espaço de experiência, o conceito não está muito distante do que ele
aparenta. Ele é a própria reserva de acontecimentos que mobilizamos na hora de agir. Dessa
forma não se trata de um mero passado, mas do passado presente atualmente: “A experiência
é o passado atual, aquele no qual acontecimentos foram incorporados e podem ser
lembrados.”64 Mas justamente por ser um acúmulo, esses “espaços” acabam condensando

60
A partir de agora, para fins de facilidade, nomearemos o novo tempo do mundo anterior como “novo tempo do
mundo I” e o novo tempo do mundo atual como “novo tempo do mundo II”
61
É claro que não se pode estender ingenuamente esse regime temporal europeu para todo o mundo, mas, e
falaremos disso mais adiante, a grande novidade que a modernidade europeia traz é que ela busca colonizar não
apenas todos os cantos do globo e as relações de produção, mas, nesse mesmo movimento, colonizar o tempo. É
por isso que se pode chamar esse tempo de um tempo “do mundo”, pois ele tende a produzir uma sincronicidade
global. Se isso não significa uma submissão absoluta, ainda assim é difícil dizer que o “regime temporal
europeu” não deixa de parcialmente conduzir nossas práticas.
62
Koselleck, Reinhart. O futuro do passado. Rio de Janeiro: Contraponto Editora, 2006. p. 308
63
Idem, ibidem, p. 309
64
Idem, ibidem.
33

uma série de acontecimentos provenientes de momentos diferentes. Nas palavras de


Koselleck, a experiência

se aglomera para formar um todo em que muitos estratos de tempos anteriores estão simultaneamente
presentes, sem que haja referência a um antes e um depois. Não existe uma experiência
cronologicamente mensurável (…) porque a cada momento ela é composta de tudo o que se pode
recordar da própria vida ou da vida de outros.65

Como, porém, o tempo não para de passar, à medida que coisas acontecem, essa
aglomeração tende a se transformar e vai se reorganizando66. Fatos recentes podem obrigar a
uma retificação da memória, sem que ela seja de todo negada.
Se a experiência é a forma que o passado adquire no presente, a expectativa, por outro
lado, é a forma que o futuro assume na atualidade. Ela é a nossa orientação para aquilo que
ainda não se concretizou. Ela é uma experiência possível daquilo que não pode ser
experimentado, por mais estranho que isso pareça. Como dirá o autor, ela “também pode ser
objeto de experiência. Mas nem as situações, nem os encadeamentos de ações visadas pela
expectativa podem também ser desde já objeto da experiência.”67 E é por conta disso que se
por um lado falamos de espaço de experiência, falaremos de horizonte de expectativa. Isso
porque

horizonte quer dizer aquela linha por trás da qual se abre no futuro um novo espaço de experiência,
mas um espaço que ainda não pode ser contemplado. A possibilidade de se descobrir o futuro, apesar
de os prognósticos serem possíveis, se depara com um limite absoluto, pois ela não pode ser
experimentada.68

Essa diferença é sintoma da diferente topologia de cada um desses conceitos, já que “a


presença do passado é diferente da presença do futuro”69. E isso é o primeiro ponto para evitar
qualquer suposta simetria entre o passado e o futuro. Para Koselleck as estruturas são
radicalmente diferentes, já que “uma experiência, uma vez feita, está completa na medida em
que suas causas são passadas, ao passo que a experiência futura, antecipada como expectativa,

65
Idem, ibidem, p. 311
66
“Também as experiências já adquiridas podem modificar-se com o tempo. (…) As experiências se superpõem,
se impregnam umas das outras. E mais: novas esperanças ou decepções retroagem, novas expectativas abrem
brechas e repercutem nelas. Eis a estrutura temporal da experiência, que não pode ser reunida sem uma
expectativa retroativa.” (Idem, ibidem, pp. 312-313)
67
Idem, ibidem, p. 312
68
Idem, ibidem, p. 310
69
Idem, ibidem, p. 311
34

se decompõe em uma infinidade de movimentos temporais.”70 Também não se pode


simplesmente deduzir o futuro a partir do passado, mas é o tipo de relação que eles
estabelecem que acaba, como já dissemos, dando a forma específica do tempo em
determinada época. Esses conceitos de Koselleck nos permitem visualizar a maneira como a
ideia de tempo se articula e se altera na história do ocidente. Além disso é importante lembrar
que as categorias tem uma relação que é mais da ordem de uma retroação dialógica do que
uma simples causalidade linear. É claro que o horizonte de expectativas é parcialmente
condicionado e delimitado pelo espaço de experiência. Como condição, o espaço de
experiência provoca um certo recorte na ordem do possível, delimitando um horizonte
indefinido, mas não infinito. Segundo Koselleck, “o que antecede é o diagnóstico no qual
estão contidos os dados da experiência. Visto dessa maneira, o que estende o horizonte de
expectativa é o espaço de experiência aberto para o futuro. As experiências liberam os
prognósticos e os orientam.”71 Mas é justamente pelo fato de que a expectativa se caracteriza
por ser a presença de um horizonte do não experimentado que ele não tem como ser
completamente delimitado pela experiência. Em alguma medida ele tem que ir justamente
para além desse espaço72. E a maneira como esse horizonte de expectativa é manejado, a
partir do prognóstico, pode inclusive reorganizar o próprio espaço de experiência ao
privilegiar certas regiões da experiência em detrimento de outras. A plasticidade dessa relação
é, portanto, sua principal característica. “Não se pode conceber uma relação estática entre
espaço de experiência e horizonte de expectativa. Eles constituem uma diferença temporal no
hoje, na medida em que entrelaçam passado e futuro de maneira desigual.”73

A alteração dos regimes temporais, para Koselleck, é justamente o jogo entre essas duas
categorias. Encontraremos, portanto, na sua obra a maneira como esses conceitos foram se
transformando e, consequentemente, alterando a experiência histórica para que ela assumisse
a forma que tem hoje74 — que não é, como vimos, simplesmente um desenrolar a partir do
passado, mas também uma orientação em direção ao não experimentado. Seguindo os fios

70
Idem, ibidem, p. 310
71
Idem, ibidem, p. 313
72
“Um prognóstico abre expectativas que não decorrem apenas da experiência. Fazer um prognóstico já
significa modificar a situação de onde ele surge. Noutras palavras: o espaço de experiência anterior nunca chega
a determinar o horizonte de expectativa.” (Idem, ibidem.)
73
Idem, ibidem, pp. 313-314 (grifo meu)
35

percorridos por Koselleck conseguiremos entender a maneira como chegamos à estagnação


temporal em que vivemos atualmente (o novo tempo do mundo II) visto que, como veremos,
ele é produzido a partir do próprio desenvolvimento imanente do novo tempo do mundo I. É
por essa razão que pretendemos entender a gênese desse tempo anterior ao nosso. Conforme
encontramos em Koselleck, essa transformação que levou ao novo tempo do mundo I decorre ,
por sua vez, do desenvolvimento de uma nova estrutura temporal que quebra com os ritmos e
hábitos do tempo anterior. O autor data o nascimento desse novo ritmo na Revolução
Francesa, ainda que o novo tempo do mundo I seja o fruto de um longo período de gestação a
partir do momento em que os estados absolutos começam a se formar e as grandes
navegações chegam à América75. Qual é a alteração que ocorre? Se o tempo europeu pré-
moderno (desde os romanos, ao menos) era, segundo o historiador, de ordem escatológica, a
partir da Revolução Francesa o que vai se tornando a experiência temporal predominante é o
tempo como um progresso linear. Koselleck dirá então que “na era moderna a diferença entre
experiência e expectativa aumenta progressivamente, ou melhor, só se pode conceber a
modernidade como um tempo novo a partir do momento em que as expectativas passam a
distanciar-se cada vez mais das experiências feitas até então.”76
Mas essa transformação, como dissemos, não é imediata, ela é gestada e é composta por
duas quebras. A primeira quebra se dá em um momento (amplo) da instauração dos estados
absolutistas a partir da paz de Westfália e da chegada dos europeus em terras americanas. No
momento anterior a essa primeira quebra — o velho tempo da Europa —, ao menos desde o
momento em que a religião cristã dominava a Europa, o tempo era regido por uma expectativa
do apocalipse. Teremos nesse caso um tempo em que a própria instituição cristã se constrói e
estabiliza sob essa ameaça escatológica:

na qualidade de elemento constitutivo da Igreja e configurado como o possível fim do mundo, o futuro
foi integrado ao tempo; ele não se localiza no fim dos tempos, em um sentido linear; em vez disso, o
fim dos tempos só pode ser vivenciado porque sempre fora colocado em estado de suspensão pela
própria Igreja, o que permitiu que a história da Igreja se perpetuasse como a própria história da
salvação.77

74
Ainda que o próprio Koselleck estacione no novo tempo do mundo I isso não nos impedirá de levar adiante a
sua reflexão para compreender o novo tempo do mundo II.
75
Para esse perído de gestação, o ideal é ler o primeiro capítulo do clássico Crítica e crise, de Koselleck.
(Koselleck, Reinhart. Crítica e crise. Rio de Janeiro: Contraponto, 1999. pp. 19-47)
76
Idem, O futuro do passado, 2006. p. 314
77
Idem, ibidem, p. 26
36

Nesse momento, escatológico, as expectativas para além da experiência ficavam em um


espaço para além desse mundo: “As expectativas que se projetavam para além de toda
experiência vivida não se referiam a este mundo. Estavam voltadas para o assim chamado
além, apocalipticamente concentradas no fim do mundo como um todo.”78 As profecias de
transformação radical na medida em que fracassavam garantiam a repetibilidade terrena. O
que esse fracasso mostrava era tanto uma perenidade do espaço da experiência como uma
indestrutibilidade do horizonte de expectativa. O primeiro persistia pois nenhuma das
promessas de transformar a estrutura do presente se confirmava, reiterando o caráter
repetitivo do tempo presente e organizando a vida terrena a partir dessa possibilidade de se
construir ações apoiadas na confiabilidade do passado. Quanto ao futuro, como ele era
constitutivamente fora de toda experiência vivida, nada que acontecesse no mundo teria
qualquer efeito, “tratava-se, pois, de expectativas que não podiam ser desfeitas por nenhuma
experiência contrária, porque se estendiam para além deste mundo.”79 Conseguimos ver que
aqui o espaço de experiência é que acaba tendo prevalência sobre o horizonte de
expectativa80. Isso não quer dizer que “nada mudava”, mas que o ritmo das mudanças era tão
lento que pode-se dizer que ele sempre tinha tempo para ser recebido e acomodado:

As expectativas que eram ou que podiam ser alimentadas, no mundo metade camponês metade
artesanal aqui descrito, eram inteiramente sustentadas pelas experiências dos antepassados, que
passavam a ser também as dos descendentes. Quando alguma coisa mudava, tão lenta e vagarosamente
era a mudança que a ruptura entre a experiência adquirida até então e uma expectativa ainda por ser
descoberta não chegava a romper o mundo da vida que se transmitia.81

A primeira ruptura que se dá a partir dos eventos mencionados é justamente com esse
caráter escatológico. A partir do fortalecimento da “forma” Estado vemos as profecias do fim
dos tempos serem trocadas pelo desenvolvimento da arte dos prognósticos.82 Também é
possível identificar nesse período de transição que com a separação (nos reportamos de novo
ao indispensável Crítica e crise) entre as esferas política e religiosa (ou moral) o novo estado

78
Idem, ibidem, pp. 315-316
79
Idem, ibidem, p. 316
80
Não à toa o velho adágio historia magistra vitae. Esse “mandamento” começa a entrar em crise justamente
com as transformações da modernidade, como Koselleck analisa em seu ensaio “Historia Magistra Vitae - Sobre
a dissolução do topos na história moderna em movimento.” Cf. Idem, ibidem, pp. 41-60
81
Idem, ibidem, p. 315
82
Esse movimento é descrito por vários autores. Nas próprias análises de Koselleck em Crítica e crise, no
ensaio de Paulo Arantes “O novo tempo do mundo”, que é declaradamente koselleckiano. Mas também seria
possível encontrar esse desenvolvimento da “arte dos prognósticos” nos desenvolvimento de técnicas de
governança explorada por Foucault em seus cursos no final dos anos 70.
37

soberano, em sua tentativa de perpetuar seu corpo acaba por desenvolver uma técnica de
prospectar o futuro para antecipar problemas e lidar com eles. Nas palavras de Koselleck,

O prognóstico produz o tempo que o engendra e em direção ao qual ele se projeta, ao passo que a
profecia apocalíptica destrói o tempo, de cujo fim ela se alimenta. Os eventos, vistos da perspectiva da
profecia, são apenas símbolos daquilo que já é conhecido. Se os vaticínios do profeta não forem
cumpridos, isso não significa que ele tenha se enganado. Por seu caráter variável, as profecias podem
ser prolongadas a qualquer momento. Mais ainda: a cada previsão falhada, aumenta a certeza de sua
realização vindoura. Um prognóstico falho, por outro lado, não pode ser repetido nem mesmo como
erro, pois permanece preso aos seus pressupostos iniciais.
O prognóstico racional contenta-se com a previsão das possibilidades no âmbito dos acontecimentos
temporais e mundanos, mas por isso mesmo produz um excesso de configurações estilizadas das
formas de controle temporal e político. No prognóstico, o tempo se reflete de maneira sempre
surpreendente; a constante similitude das previsões escatológicas é diluída pela qualidade sempre
inédita de um tempo que escapa de si mesmo, capturado de modo prognóstico. Dessa forma, do ponto
de vista da estrutura temporal, o prognóstico pode ser entendido como um fator de integração do
Estado, que ultrapassa assim, o mundo que lhe foi legado, com um futuro concebido de maneira
ilimitada.83

Não se trata mais de ter uma articulação de uma temporalidade a partir de um fim-dos-
tempos certo mas indeterminável como horizonte. Há uma transformação que começa a
ocorrer: é a própria técnica de prever-e-se-organizar que acaba por dar ordem às coisas. É
com isso em mente que Koselleck dirá que “o objetivo de uma perfeição possível, que antes
só podia ser alcançado no além, foi posto a serviço de um melhoramento da existência
terrena, que permitiu que a doutrina dos últimos fins fosse ultrapassada, assumindo-se o risco
de um futuro aberto.”84 Não vamos nos prolongar nesse ponto, mas as descrições de
Koselleck não deixarão de evocar ressonâncias com o conceito de hiperstição [hyperstition],
desenvolvido por Nick Land85, sobretudo na maneira como o prognóstico (mas também a
filosofia da história, resultado da segunda ruptura que produz a modernidade) gera efeitos na
maneira como o futuro vem a se precipitar — não interessando tanto se o prognóstico prevê o
futuro (de maneira descritiva), mas se ele faz acontecer. O horizonte deixa de ser paciente e se
torna agente na organização da temporalidade moderna.
A segunda ruptura, gestada entre a paz-de-Westfália/chegada-nas-Américas e a revolução
francesa é o momento em que o par de conceitos mencionados acima, espaço de experiência e
horizonte de expectativa, tem a sua relação alterada de maneira decisiva. Na primeira ruptura

83
Idem, ibidem, pp. 32-33
84
Idem, ibidem, p. 316
85
Carstens, Delphi. Hyperstition: an introduction. Delphi Carstens interviews Nick Land. 2009. Disponível em:
<http://merliquify.com/blog/articles/hyperstition-an-introduction/#.WThIbxPyvBI>. Acesso em: 7 de jun. 2017.
38

rompe-se com o aspecto escatológico da história: fica-se sem o fim dos tempos, mas a relação
com o futuro é uma em que a orientação para ação ainda subordina o horizonte de expectativa
ao espaço da experiência. O jogo que se joga é de caráter cíclico (algo fundamental na arte de
fazer prognósticos) e só com o germinar de uma nova técnica de lida com o futuro, a filosofia
da história, e a maneira como ela, em parte, precipita a revolução francesa86, é que podemos
dizer que o novo tempo do mundo I de fato chegou. Isso ocorre em dois níveis. Primeiramente
há o fato de que nesse momento os fluxos do capital passam a percorrer todo o globo,
integrando-o pela primeira vez na história — embora isso será abordado um pouco mais
adiante.
Mas há uma outra transformação que se relaciona ao par de conceitos que estamos
trabalhando. É apenas nesse instante que o futuro vai aparecendo como algo que não é mais
prognosticável, previsível; ele se apresenta como algo de ordem desconhecida, não
experimentável. O horizonte de expectativa vai se distanciando do espaço de experiência e a
prática da política se insere justamente nessa tentativa de agir sem muitos amparos.

A novidade era a seguinte: as expectativas para o futuro se desvincularam de tudo quanto as antigas
experiências haviam sido capazes de oferecer. E as experiências novas, acrescentadas desde a
colonização ultramarina e o desenvolvimento da ciência e da técnica já não eram suficientes para
servir de base a novas expectativas para o futuro. A partir de então o espaço de experiência deixou de
estar limitado pelo horizonte de expectativa. Os limites de um e de outro se separaram.”87

É preciso então reavaliar o funcionamento da experiência e da expectativa nesse novo


quadro. Segundo Koselleck a mudança fundamental é que à medida em que concebemos a
história como um progresso contínuo, “o horizonte de expectativa passa a incluir um
coeficiente de mudança e se desenvolve com o tempo.”88 O horizonte não é mais
absolutamente atrelado (indexado) à experiência que se tem e ele próprio acaba funcionando
como uma força que impulsiona o próprio presente para além daquilo que já foi
experimentado89 — “O conceito utilizado historicamente ou teoricamente, de qualquer modo
um conceito saturado de experiência, é convertido em um conceito de expectativa.”90. A

86
Cf. Koselleck, Reinhart. Crítica e crise, 1999. pp. 111-161
87
Idem, O futuro do passado, 2006. p. 318
88
Idem, ibidem, p. 317
89
Koselleck no final do ensaio “Espaço de experiência e horizonte de expectativa” dá um exemplo ao comparar
o uso de certos conceitos em momentos diferentes da história. Num primeiro momento os conceitos
funcionariam de maneira descritiva, extraídos da experiência, enquanto a partir da modernidade eles começam a
funcionar como uma tendência para o movimento.
90
Idem, ibidem, p. 325. Koselleck no final do ensaio “Espaço de experiência e horizonte de expectativa” dá um
exemplo ao comparar o uso de certos conceitos em momentos diferentes da história. Num primeiro momento os
conceitos funcionariam de maneira descritiva, extraídos da experiência, enquanto a partir da modernidade eles
39

transformação no conceito de experiência, por sua vez, ocorre na medida em que diversas
experiências que apontam para momentos e tendências diferentes de desenvolvimento91
começam a compartilhar o mesmo tempo. Nas palavras de Koselleck, “todas essas
experiências remetiam à contemporaneidade do não contemporâneo, ou inversamente, ao não
contemporâneo no contemporâneo.”92 Nesse movimento, que é a composição de uma história
global, pode-se falar cada vez menos de experiências que não estão conectadas entre si. A
história começa a ser “vista e experimentada como única [singular], não apenas nos diversos
casos individuais, mas única em seu todo, como totalidade aberta para um futuro portador de
progresso.”93 E “se a história inteira é única, também o futuro deve ser único, portanto
diferente do passado.”94
Essa dupla transformação que ocorre nos conceitos faz com que eles tenham a sua
articulação alterada. Na modernidade o horizonte de expectativa, ao ter um coeficiente de
mudança interno, passa a não ser mais determinado pelo espaço de experiência. Isso se torna
tão senso comum a ponto de pensadores contemporâneos a essa transformação “afirmar[em]
que nenhuma experiência anterior pode servir de objeção contra a natureza diferente do futuro
torna-se quase uma lei.”95 O choque a partir da Revolução Francesa foi tão grande e tão
rápido que em poucos anos se destruiu a relação anterior entre expectativa e experiência, onde

começam a funcionar como uma tendência para o movimento. A coisa ficará mais visível com o exemplo: “Por
volta de 1800, as três formas aristotélicas de governo — monarquia, aristocracia, democracia —, que em suas
formas puras, mistas ou decadentes ainda eram suficientes para organizar experiências políticas, se modificam
do ponto de vista da filosofia da história. Os três tipos de organização são submetidos a uma alternativa forçada
— ‘despotismo ou república’ —, na qual os conceitos alternativos contêm um indicador temporal. Distanciando-
se do despotismo do passado, o caminho histórico levaria à república do futuro. O antigo conceito político de res
publica [coisa pública], que até então podia envolver todas as formas de governo, adquire um caráter restrito de
exclusividade, porém relacionado com o futuro. Esta mudança, aqui descrita de forma abreviada, desde muito
tempo já havia sido encaminhada teoricamente. O resultado se torna palpável na época da Revolução Francesa.
O conceito utilizado historicamente ou teoricamente, de qualquer modo um conceito saturado de experiência, é
convertido em um conceito de expectativa. Esta mudança de perspectiva também pode ser mostrada
exemplarmente em Kant. Para ele a ‘república’ era uma finalidade que podia ser deduzida da razão prática, e à
qual o homem desde sempre aspirou. Para o caminho que haveria de levar a isto, Kant empregou a nova
expressão ‘republicanismo’. O republicanismo indicava o princípio do movimento histórico, e impulsioná-lo era
um mandamento da ação política. Qualquer que seja a constituição hoje em vigor, o que importa, a longo prazo,
é substituir a dominação do homem sobre o homem pela dominação das leis, isto é, tornar realidade a
república.”(Idem, ibidem, pp. 324-325)
91
Pode-se farejar um certo teleologismo aqui, na medida em que todos “correm para alcançar o mesmo alvo”,
mas acredito que é possível conceber isso de uma maneira menos colonialista. Trata-se do momento em que
várias temporalidades diferentes são obrigadas a conviver na medida em que são unidas pelos fluxos do capital
que percorrem o globo. Esse fluxo, por sua vez, como veremos no próximo capítulo, é de tal força de imposição
que mesmo quem se encontra contra ele precisa se posicionar a partir dele.
92
Idem, ibidem, p. 317
93
Idem, ibidem, p. 319
94
Idem, ibidem, p. 319
95
Idem, ibidem, p. 318
40

a primeira era delimitada pela segunda96. Isso não quer dizer que o espaço de experiência se
torna nulo, mas podemos dizer que se antes a expectativa estava contida na experiência, agora
esta apenas condiciona aquela.
Mas se era possível afirmar que a relação anterior era relativamente estável, o que
encontramos na nova temporalidade moderna é uma instabilidade que dá início a um
movimento de aceleração que acabará por produzir justamente a dessensibilização da
passagem temporal que experimentamos. É por isso que Koselleck dirá que “quanto menor o
conteúdo de experiência, tanto maior a expectativa que se extrai dele. Quanto menor a
experiência tanto maior a expectativa — eis uma fórmula para a estrutura temporal da
modernidade, conceitualizada pelo “progresso”97
O progresso é, portanto, um tempo de aceleração, mas uma aceleração que, como
veremos, acabará por desaguar em um outro tipo de movimento estático/repetitivo, que é
justamente aquele que descrevemos no início desse capítulo. O cancelamento do futuro não
seria fruto de um freio, mas uma consequência da própria aceleração — uma segunda fase
dela —, não à toa um cansaço acompanha esse cancelamento.

Há, porém, um aspecto fundamental desse processo que é deixado de lado por Koselleck
que talvez o impeça de antecipar a transformação do próprio regime temporal que ele buscou
descrever detalhadamente. Trata-se do papel do lento movimento de hegemonização das
relações capitalistas na constituição desse novo tempo do mundo I. Uma das razões para se
destacar esse elemento é que o novo tempo do mundo II — que substitui o novo tempo do
mundo I descrito por Koselleck — germina a partir do confronto entre a dinâmica interna do
Capital — isto é, seu movimento de valorização98 — e a política absolutista. Só podemos
compreender a segunda fase da aceleração, portanto, a partir do momento em que
conseguimos relacioná-la com a intensificação dos processos de produção e acumulação, já

96
“O que o progresso havia tornado possível no domínio dos conceitos — de, em poucas palavras, o velho e o
novo entrarem em choque, nas ciências e nas artes, de país a país, de classe para classe —, tudo isso, a partir da
Revolução Francesa, se converteu em experiência quotidiana.” (Idem, ibidem, p. 320)
97
Idem, ibidem, p. 326 Ver também: “Por último, existe um indicador infalível de que esta diferença só se
conserva quando se modifica continuamente: é a aceleração. Tanto o progresso sociopolítico quanto o progresso
técnico-científico modificam os ritmos e os prazos do mundo-da-vida graças à aceleração. Ao contrário do
tempo da natureza, o progresso adquire uma qualidade genuinamente histórica.” (Idem, ibidem, p. 321)
98
Como diz Marx, “A circulação do dinheiro como capital é, ao contrário, um fim em si mesmo, pois a
valorização do valor existe apenas no interior desse movimento sempre renovado. O movimento do capital é, por
isso, desmedido.” (Marx, Karl. O capital: crítica da economia política: livro I: o processo de produção do
capital. São Paulo: Boitempo Editorial, 2013. p. 228)
41

que “o novo tempo do mundo [II], em busca do qual nos pusemos em campo, bem pode ser a
fonte primária de novas hierarquizações, por sua vez espinha dorsal de um novo regime de
acumulação de riqueza e poder.”99 Não nos interessa entrar em detalhes exaustivos sobre a
constituição da era capitalista. O que importa deixar claro é que em determinado momento
emerge uma dinâmica autônoma da acumulação como um fim em si mesmo100,
“dispensando”, como diz Wallerstein”, “a muleta de algum conjunto de valores e regras
básicos que fosse aceito ativamente pela classe esclarecida e, ao menos passivamente, pelo
povo comum.”101
Dessa sede insaciável por acumulação escoa a necessidade de se expandir para além das
fronteiras europeias. Esse novo tempo que começa a se firmar na primeira quebra identificada
por Koselleck é também “expressão de uma aceleração igualmente inédita, imposta pela
expansão mundial do sistema europeu de acumulação impelida pela pressão competitiva de
jurisdições políticas rivais.”102 A descoberta de novas rotas comerciais a partir das cruzadas, a
intensificação e o fortalecimento das grandes cidades comerciais do mediterrâneo, acabam
provocando as grandes expedições ultramarinas que culminaram no encontro com a América.
Esse movimento, que parece ser o simples crescimento das vias de circulação de riquezas pelo
mundo acaba sendo o ponto de partida para a constituição do primeiro tempo do mundo —
isto é, o primeiro momento em que uma sincronicidade global se torna possível — “é o
[tempo] da economia-mundo europeia em expansão na forma de ciclos sistêmicos de
acumulação”103. É com isso em mente que Arantes desloca — contra o provincianismo

99
Arantes, Paulo, op. cit., p. 29
100
“o capitalismo histórico é um sistema evidentemente absurdo, pois afinal se acumula capital a fim de se
acumular mais capital. Cf. O capitalismo histórico (São Paulo, Brasiliense, 1985), p. 34; edição americana de
1983. E se assim é – se “os capitalistas são como camundongos numa roda, correndo sempre mais depressa a fim
de correrem ainda mais depressa” (idem) –, torna-se ainda mais surpreendente a entronização da ideia de
“progresso” como ideologia autojustificadora da economia-mundo capitalista. Salvo engano, a menção não é
ociosa: ainda segundo o mesmo Wallerstein, a noção de Progresso está ancorada numa premissa básica sobre a
temporalidade, mais exatamente sobre a Modernidade como uma “temporalidade nova” (ibidem, p. 63-4). A
ética protestante justamente tem a ver com essa ausência de limites inerentes à lógica da acumulação ilimitada.”
(Idem, ibidem, p. 38)
101
Idem, ibidem, p. 49
102
Idem, ibidem, p. 49
103
Idem, ibidem, p. 49. Como diz Wallerstein, citado por Arantes, “A Revolução Francesa foi, em si mesma, o
ponto final de um longo processo que não se deu apenas na França, mas em toda a economia-mundo capitalista
como um sistema histórico. Isso porque, em 1789, uma parte considerável do globo já se encontrava há três
séculos inserida nesse sistema histórico. E ao longo desses três séculos a maioria de suas instituições básicas
tinha sido estabelecida e consolidada: a divisão axial do trabalho, com significativa transferência de mais-[valor]
das zonas periféricas para as zonas do núcleo orgânico; a retribuição preferencial àqueles que operavam no
interesse da infindável acumulação de capital; o sistema interestados composto por Estados supostamente
soberanos, mas que na verdade se achavam submetidos ao arcabouço de regras desse sistema; e a crescente
polarização desse sistema-mundo, que não era meramente econômica, mas também social, e estava prestes a se
tornar demográfica.” (Wallerstein, 1995 apud Arantes, 2014. pp. 49-50)
42

koselleckiano — o processo de instauração do novo tempo do mundo I para o encontro entre


Europa e América. Segundo o autor, considerando

a centralidade da expansão colonial para a consolidação da economia-mundo capitalista, será plausível


afirmar que, sem o combustível daquela acumulação atlântica de experiências realizadas em uma
Fronteira histórica inédita, não se constituiria no continente europeu um novo ou, por outra,
propriamente dito horizonte de expectativa, sem a abertura do qual – se os esquemas de Koselleck
estão corretos – não se poderia falar de um Neuzeit.”104

O movimento de acumulação nonsense de capital não ganha apenas um fôlego com a


colonização. É a própria expansão das fronteiras como local de progressiva acumulação de
capital que permite que um capitalismo histórico se consolide. A partir da leitura de
Immanuel Wallerstein sobre o capitalismo histórico, pode-se destacar dois elementos que
indiquem a necessidade dessa expansão. Primeiramente, não se reduz a globalização à
capacidade de capturar novos mercados; o que ocorre é mais uma globalização da divisão de
trabalho.105 Se o movimento do Capital é sobretudo uma extração de mais-valor, então faz
todo o sentido que a sua expansão geográfica seja uma que consiga exportar para as suas
fronteiras a dominação pelo trabalho. O segundo aspecto que induz a essa necessidade é a
maneira como “novas incorporações ao sistema capitalista tenderam a ocorrer em fases de
estagnação da economia-mundo”, de maneira que “torna-se claro que a expansão geográfica
do sistema serviu para contrabalancear a queda nos lucros (provocada pelo aumento da
proletarização), através da incorporação de novas forças de trabalho destinadas a ser
semiproletarizadas.”106 Na medida em que as fronteiras vão se expandindo, começa a se
germinar um tempo global, que vai tomando forma como “uma economia-mundo capitalista,
em expansão permanente desde o nascedouro, [que] só se legitima perante uma combinação
paradoxal entre o sempre igual da acumulação como fim em si mesmo e um horizonte

104
Idem, ibidem, p. 44
105
“A busca de mercados não se sustenta como explicação. Uma explicação muito mais plausível é a busca de
força de trabalho de baixo custo. As novas áreas incorporadas à economia-mundo estabeleciam níveis de
remuneração real que se situavam na parte mais baixa da hierarquia salarial do sistema. Elas quase não tinham
unidades domiciliares completamente proletárias e não foram estimuladas a desenvolvê-las. Ao contrário: as
políticas dos Estados coloniais (e dos Estados semicoloniais reestruturados, naquelas áreas incorporadas, mas
não formalmente colonizadas) pareciam desenhadas para promover o surgimento da unidade semiproletária, a
qual como vimos, viabiliza o patamar salarial mais baixo possível. As políticas estatais típicas envolviam a
combinação de mecanismos fiscais, capazes de forçar todas as unidades domiciliares a se engajar em algum
trabalho assalariado, e restrições de movimento ou separação forçada dos membros das unidades, o que reduzia
consideravelmente a possibilidade de proletarização plena.” (Wallerstein, Immanuel. Capitalismo histórico e
civilização capitalista. Rio de Janeiro: Contraponto Editora, 2001. pp. 36-37)
106
Idem, ibidem, p. 37
43

igualmente ilimitado de expectativas.”107 Mas não se pode ainda falar propriamente do novo
tempo do mundo I, já que a sincronicidade — a coordenação entre os processos de produção
em escala global — ainda não se deu completamente. A dinâmica interna desse movimento de
acumulação acaba levando ao desenvolvimento do capitalismo industrial — este que, agora
sim, exerce uma pressão forte o suficiente para produzir a sincronicidade característica do
novo tempo do mundo I108:

o temps du monde, por assim dizer, desaguou enfim na periferia colonial da economia-mundo
capitalista. Acoplado àquela maré alta da passagem para o Novo Mundo redescoberto pelo colapso do
Antigo Regime, algo como um espaço do mundo, análogo à visão braudeliana de que partimos – o
“tempo excepcional”, que reordena os ritmos costumeiros ao irromper como uma avalanche em
câmara lenta –, de sorte que, na mesma proporção, “todos os lugares ficaram vulneráveis à influência
direta do mundo mais amplo, graças ao comércio, à competição intraterritorial, à ação militar, ao
influxo de novas mercadorias, ao ouro e à prata etc.”.109

Forma-se um tempo cuja “experiência da história como um processo dotado de um


dinamismo cuja marca mais saliente vinha a ser justamente a consciência de uma
temporalidade de tipo novo, direcional e ascendente.”110 É a dinâmica já exposta por
Koselleck em que o horizonte de expectativa vai se distanciando cada vez mais do espaço da
experiência, a ponto criar um futuro que não é mais delimitado pela experiência — o que
nasce aqui é o futuro aberto que Koselleck descreveu. Não é de se estranhar que haja uma
ressonância entre esse futuro aberto e o clássico diagnóstico de Marx e Engels no Manifesto
Comunista sobre como as relações de produção capitalista acabam dissolvendo uma série de
relações sociais que pareciam fixas e imutáveis (o espaço da experiência).111 Também em
Marx (e Engels) é possível encarar a modernidade como a abertura de um horizonte112.

107
Arantes, Paulo, op. cit., p. 48
108
“Pressionada pela erosão convergente do colonialismo mercantilista e do absolutismo, a camada dominante
na colônia deve então ter experimentado enfim o que vem a ser aquele mencionado ‘tempo vivido nas dimensões
do mundo’. Dimensões do Modern World-System de que há pouco falávamos, que, ao se desenvolver e se
encaminhar para a constituição do capitalismo industrial, vai multiplicando as pressões sobre metrópole e
colônia, até então à margem desses influxos emanados do recentramento do eixo gravitacional do mecanismo de
fundo de todo o sistema. É esse o tempo excepcional de crise que passou a governar as cabeças dirigentes do
senhoriato colonial – ainda o tempo do mundo identificado por Braudel. Além do mais, tempo vivido na forma
de uma tensão inédita induzida pela percepção de uma conjuntura não só em rápida e instável mutação, mas
assombrada pela lembrança recente de acontecimentos que Wallerstein incluiria na escala dos eventos world-
historical, como a Revolução Francesa, à qual se somara o espectro mais apavorante da rebelião negra de São
Domingos (1791), o conjunto negativamente projetado no futuro nebuloso da América, tanto a hispânica, a
primeira a se desintegrar, quanto a portuguesa.” (Idem, ibidem, pp. 31-32)
109
Idem, ibidem, p. 35
110
Idem, ibidem
111
“A burguesia não pode existir sem revolucionar incessantemente os instrumentos de produção, por
conseguinte, as relações de produção e, com isso, todas as relações sociais. A conservação inalterada do antigo
modo de produção era, pelo contrário, a primeira condição de existência de todas as classes industriais
44

Mas, e o momento que vivemos? Estamos inseridos em um regime temporal que constitui
“uma sociedade do risco que acarretaria precisamente uma tremenda reversão de todos os
horizontes modernos de expectativa.”113 É um novo regime temporal que faz nascer da
aceleração trazida pelo distanciamento entre espaço de experiência e horizonte de expectativa
uma estranha imobilidade que é o cancelamento do futuro. Nas palavras de Arantes, inaugura-
se “uma nova era que se poderia denominar das expectativas decrescentes, algo “vivido” em
qualquer que seja o registro, alto ou baixo, e vivido em regime de urgência. ”114
O ponto de inflexão desse novo tempo começa com a experiência traumática da Primeira
Guerra Mundial. Para realizar sua análise, o autor se apoia em uma diferenciação entre duas
formas de se relacionar com o futuro desenvolvidas por Eugène Minkowski a partir desse
evento. Essa diferenciação acaba sendo útil pois essas duas formas exprimem justamente o
tipo de orientação que corresponde a cada um dos novos tempos do mundo (I e II), facilitando
a compreensão da transição do predomínio de uma forma para a outra. São elas a “atividade”
e a “expectativa”. No primeiro modo o indivíduo se dirige em direção ao futuro, tentando
lidar com as situações que lhe surgem nesse processo para que se consiga ter ao menos algum
controle. Na expectativa, por outro lado, o sujeito espera que o futuro venha até ele, se
contraindo e recolhendo para se defender de um ambiente teoricamente hostil. Segundo o
autor dessa tese todos os indivíduos acabariam tendo uma mistura desses dois tipos de
orientação.
Voltando ao evento traumático da guerra da Primeira Guerra Mundial, porém, percebe-se
que na fase da guerra de trincheiras os combatentes tendem a perder a capacidade de agência,
entrando numa “pura e agoniada expectation.”115 A agonia foi tão grande que essa guerra só
conseguiu sair desse estado de imobilidade ao desenvolver uma tecnologia de guerra que
passaria a assombrar o nosso horizonte. E será por conta desse novo fantasma técnico que a

anteriores. Essa subversão contínua da produção, esse abalo constante de todo o sistema social, essa agitação
permanente e essa falta de segurança distinguem a época burguesa de todas as precedentes. Dissolvem-se todas
as relações sociais antigas e cristalizadas, com seu cortejo de concepções e de ideias secularmente veneradas; as
relações que as substituem tornam-se antiquadas antes de se consolidarem. Tudo o que era sólido e estável se
desmancha no ar, tudo o que era sagrado é profanado e os homens são obrigados a finalmente encarar sem
ilusões a sua posição social e as suas relações com outros homens.” (Marx, Karl; Engels, Friedrich. Manifesto
Comunista. São Paulo: Boitempo Editorial, 2010. p. 43)
112
Cujas tendências concretizadas de maneira infernal analisaremos no próximo capítulo.
113
Arantes, Paulo, op. cit.,. p. 55
114
Idem, ibidem, p. 67
115
Idem, ibidem, p. 87
45

sensação de perda da capacidade de agir não se restringiu à Primeira Guerra Mundial. “Tudo
se passou como se as expectativas de aniquilação — agora tecnologicamente exponenciadas
— acumuladas durante a guerra, em vez de desanuviarem o horizonte, tivessem de algum
modo contaminado o regime ativo das antecipações graças às quais o futuro é vivido.”116 Não
à toa o período entreguerras foi um de uma espera inquietante sobre a inevitável catástrofe
que se anunciava no horizonte. Nas palavras do autor, “a guerra como horizon d’attente
intransponível se instalou de vez”117. A Segunda Guerra Mundial não demorou pra vir e com
ela trouxe horrores piores ainda. Se no entreguerras, porém, o medo da catástrofe ainda podia
ser encarado como um mero prenúncio mais ou menos indefinido, a industrialização do
genocídio judaico e a invenção da bomba atômica (e o seu uso no Japão) tornaram real o
perigo de auto-aniquilação de toda a humanidade.
O que vem depois desse horror, porém, a princípio não faz muito sentido. Após 1945
seguiu-se um período de trinta anos estranhíssimos. Ao mesmo tempo em que se vivia sob a
ameaça constante da catástrofe (da bomba, da Guerra Fria), esse perigo conviveu com uma
aparente sensação de bem-estar privado:

No limite, há dois “horizontes” inteiramente conflitantes, em princípio incompatíveis: de um lado, a


convicção (infundada? Ilusão retrospectiva?) de que tout va bien, nunca fomos tão felizes etc.,
contraposta à não menos implausível (na recapitulação de Hobsbawm, é claro) suposição de que a
instabilidade do planeta era de tal ordem que uma guerra nuclear mundial podia explodir a qualquer
momento: “Não aconteceu, mas por cerca de quarenta anos pareceu uma possibilidade diária”.118

Essa expectativa positiva era fundamental para o prosseguimento da vida. Esse duplo
horizonte — uma camada de ilusão que prometia um futuro próspero de distribuição de
riquezas — sustentaria uma mobilização total da população, mobilização que, de maneira
invisível, já seria o próprio decrescimento das expectativas que caracterizaria o novo tempo
do mundo II tomando forma — trata-se em suma da gestação da sensação de cancelamento do
futuro que nos ocupa. Arantes se apoia, nesse momento, na análise que Herbert Marcuse faz
da sociedade americana no pós-guerra. Diz ele que,

trata-se de uma sociedade de mobilização total, na qual se combinam produtivamente o bem-estar


social com a prontidão militar de uma sociedade de guerra, cujo estado de alerta permanente está
acoplado à presença do Inimigo, tanto mais ameaçador quanto suas manifestações não se restringem
aos períodos de crise aberta, mas se confundem com a normalidade acelerada dos tempos de paz. Em
116
Idem, ibidem, p.88
117
Idem, ibidem, p. 88
118
Idem, ibidem, pp. 84-85
46

suma, a produção pacífica de armas de destruição em massa também demonstrava diariamente que a
manutenção de um perigo mortal torna a vida numa sociedade altamente industrializada cada vez mais
próspera e confortável. Pois é a intensificação dessa mobilização de dois gumes que se refrata na
superposição daqueles dois “horizontes” antagônicos.”119

Parece estranho dizer que há essa duplicação: um momento de expectativas positivas (o


welfare state) em meio a essa expectativa do fim. Talvez seja possível, porém, conceber esse
momento como uma sobreposição entre as duas temporalidades, na medida em que uma
germina enquanto a outra padece. Um momento em que, por força do hábito, teimou-se
acreditar que nada mudou, que todo o período entre 1914 e 1945 foi apenas um bump in the
road120. É a incapacidade de lidar com o trauma que impede de ver que aquela promessa de
um futuro, na prática, já tinha sido destruída. Não é à toa que se pode conceber a Guerra Fria
como “um tremendo reservatório de sentidos”121. Ela era uma engrenagem que ainda
sustentava um horizonte de expectativa ao manter viva as utopias de direita (os EUA,
sobretudo, caminhando para uma plena distribuição de riqueza a partir do desenvolvimento de
um “capitalismo consciente”) e de esquerda (a promessa na URSS de uma sociedade em que
os trabalhadores finalmente chegariam ao poder). Todo o arsenal militar mobilizado (e que
materialmente impunha uma barreira sobre o horizonte de expectativa122) era “imediatamente
alçado às altas paragens de uma mega-história se desenrolando por entre as barras de toda
aquela armadura geopolítica.”123
O que se escondia embaixo dessa camada ilusória era a realidade de que o espaço da
experiência tinha sido completamente dissolvido e desmoralizado com os traumas
relacionados à Primeira Guerra Mundial.124 Com isso em mente, pode-se olhar com outros
olhos os tempos da Guerra Fria. Como diz Arantes, “surpreende menos que a saída de
emergência do welfare State tenha sido utilizada, enquanto serviu, num regime de parede-

119
Idem, ibidem, p. 85
120
Sintoma dessa dificuldade, pensamos a partir da leitura de Moishe Postone, é a maneira como o fenômeno
dos campos de concentração demorou algumas décadas até ser associado ao antisemitismo. Cf. Postone, Moishe.
“The Holocaust and the Trajectory of the Twentieth Century” in: Postone, Moishe (org.) Santner, Eric (org.).
Catastrophe and meaning. Chicago: University of Chicago Press, 2003.
121
Arantes, Paulo, op. cit., p. 90
122
Cf. o trabalho de Günther sobre a transformação na nossa condição após a invenção da bomba atômica.
Anders, Günther. Teses para a era atômica. Sopro, vol. 87. abr. 2013. Disponível em:
<http://www.culturaebarbarie.org/sopro/outros/anders.html#.WTwHLxPyvBI>. Acesso em 10 jun. 2017
123
Arantes, Paulo, op. cit., p. 90
124
“A tese famosa de Benjamin acerca do empobrecimento da experiência não diz outra coisa. Não foi só a
Erwartung que a guerra de trincheiras elevou a níveis esmagadores, foi também a cotação da experiência que
baixou ao seu grau zero. Nunca uma geração tornou-se tão rápida e intensamente moderna como aquela que
testemunhou tamanha desmoralização da experiência, comunicável e, portanto, carregada de sentido direcional”
(Idem, ibidem, p. 88)
47

meia com um verdadeiro warfare State.”125 Quando, porém, as crises econômicas e políticas
começam a irromper a partir dos anos 70126, a camada de ilusão (e a reserva de sentido que a
garantia) rapidamente se desfaz e o novo tempo do mundo II sobe à superfície. É por isso que
o autor dirá que “esgotadas essas reservas de sentido depois de uma Queda cuja confirmação
esvaziou a Tragédia anunciada (…), uma Grande Espera por certo sai de cena, mas com ela
todo um horizonte de expectativa paradoxalmente se encolhe até desaparecer.”127 Por conta
das ameaças que se intensificam e trouxeram à superfície um novo tempo do mundo que
operava subterraneamente, o regime de um futuro aberto, que procurava ativamente o não
experimentado foi substituído por uma política de gestão de riscos. Os perigos cresceram a tal
ponto (ao temor da bomba atômica se juntam os movimentos de contestação institucional —
feministas, negros, anti-colonialistas, grevistas —, as novas forças emergindo no campo
geopolítico — China, os grupos extremistas islâmicos, mas também a ameaça trazida pelas
mudanças climáticas128) que o próprio presente passa a correr riscos129. Em nome de uma
autopreservação o primeiro a ser cancelado acaba sendo o futuro. O que isso quer dizer é que
na medida em que se torna cada vez mais difícil caminhar em direção a um determinado
futuro — concretizá-lo — o horizonte de expectativas se torna um horizonte de riscos. Não
mais se procura pensar como chegar em tal expectativa, mas se preocupa com os inúmeros
fatores que põe em risco essa expectativa. Se antes a ação era positiva (construir um futuro),
agora se torna negativa (evitar que o futuro desapareça). O problema é que a partir do
momento que o tempo é encarado a partir de uma ideia de risco, isso implica que a nossa
atividade se torna gerenciamento de risco no presente. Os riscos passam a reduzir as
possibilidades do futuro, fazendo com que ele volte a se aproximar do solo da experiência. O
futuro enquanto horizonte do não experimentado, que organizava a articulação temporal da
modernidade (o novo tempo do mundo I), passa a ser subordinado a um gerenciamento do
presente que — devido ao risco — passa a conceber o futuro como um presente repetido.
Com o objetivo de garantir um mínimo de futuro, este se converte em um presente

125
Idem, ibidem, p. 89
126
Alguns autores, como Bifo, localizarão esse momento em 1977 (Cf. Bifo, op. cit.,), outros em 1968, como
Wallerstein. Não interessa dar uma data precisa para esse momento.
127
Arantes, Paulo, op. cit., p. 91
128
O Clube de Roma, não é demais lembrar, lança seu famoso relatório “Os limites do crescimento” em 1972.
129
As análises que Paulo Arantes elabora em “Alarme de incêndio no gueto francês” (Idem, ibidem, pp. 199-
278) deixam bem claro como desde o final da Segunda Guerra Mundial as grandes potências ocidentais estão
preocupadas em montar um aparato constitucional que permita os governos agirem sem ser travada pelas
inúmeras barreiras que um regime democrático tende a construir. É a instalação de um dispositivo ditatorial no
seio das democracias modernas sob alegação de que se trata apenas de uma prevenção.
48

replicado130. É dessa forma que acredito que podemos dar conta da gênese do regime
temporal descrito por Fisher como realismo capitalista e que nos impede de imaginar outras
formas de viver.

Mas esse tempo do risco, é preciso deixar claro, já estava em germe desde as primeiras
navegações que inauguraram a aventura capitalista. É por esse fato que insistimos na
centralidade (deixada de lado por Koselleck) das dinâmicas do Capital na constituição desse
novo tempo do mundo II. Como nos lembra Arantes,

a tecnologia absolutista do prognóstico político – na retaguarda de cada poder soberano alinhava-se


um potencial administrativamente calculável de soldados e habitantes, capacidades produtivas e
recursos financeiros – é rigorosamente contemporânea das primeiras percepções do “risco”, envolvido
na aventura exploratória das Grandes Navegações, quando inclusive o termo foi inventado a partir do
vocabulário náutico ibérico, estendendo-se a seguir a todo tipo de especulação financeira acerca de
perdas e ganhos no comércio de longa distância, custos militares incluídos.131

Ainda que a modernidade (novo tempo do mundo I) seja a libertação do horizonte de


expectativas do espaço da experiência, num contexto em que se busca intensificar a
acumulação de capital, essa relação com o futuro já está contaminada pois há sempre a
possibilidade que o capital acumulado se destrua nessa empreitada132. Enquanto os riscos
forem baixos comparados aos ganhos o movimento de acumulação pode continuar realizando
suas apostas. Na medida em que essa relação começa a se inverter (os riscos aumentando, os

130
Como diz Paulo Arantes: “É que, na interpretação desconcertante de Zaki Laïdi, a Guerra Fria foi o último
horizonte de expectativa dos tempos modernos – assim mesmo, formulada na mais estrita fidelidade literal aos
conceitos de Koselleck. Que, no entanto, desdobra na seguinte direção, se é que esse novo tempo do mundo,
“esse espaço que chamamos de temps mondial”, inteiramente dominado pela lógica planetária da
instantaneidade, tem alguma. Pois então: nesse tempo global, acionado pelo fim do horizon d’attente da Guerra
Fria, não se procura mais percorrer a distância que separa a experiência da expectativa, outra maneira de
anunciar a substituição da política pela gestão dos ‘destroços do presente’. Ou melhor, ainda nas palavras de
nosso autor, a política só parece ter chegado a um fim porque no seu âmago se instalou a ‘urgência como
categoria central’… da política. O que também estamos chamando de conjuntura perene. Como não há mais
distância entre o que se faz e aquilo a que se aspira – para voltar ao ângulo de nosso autor –, todos ‘os atores em
cena se projetam no futuro, não para defender um projeto, mas para prevenir sua exclusão de um jogo sans
visage’.”
(Idem, ibidem, p. 91)
131
Idem, ibidem, p. 69
132
Essa é, inclusive, a própria natureza do movimento do Capital. O risco está sempre embutido em qualquer
empresa capitalista pelo simples fato de que é preciso gastar dinheiro pra fazer dinheiro. Ou, nas palavras do
próprio Marx: ““Na compra da mercadoria, ele lança dinheiro na circulação, para dela retirá-lo novamente por
meio da venda da mesma mercadoria. Ele liberta o dinheiro apenas com a ardilosa intenção de recapturá-lo.”
(Marx, Karl, op. cit., p. 225)
49

ganhos potenciais diminuindo) o custo para as apostas vai crescer, daí Paulo Arantes dizer
que o futuro passa a ser visto como “‘um território a ser conquistado e colonizado’. Riscado
do mapa, em suma, sob o pretexto de ser existencialmente assumido como um risco.”133
O novo regime temporal que começa a se impor é uma colonização do tempo em nome da
segurança do presente. O movimento de aceleração do horizonte de expectativa, que nos
direcionava para a possibilidade de um não experimentado134, acaba nos conduzindo para uma
sociedade “em que o risco se tornou intolerável e por isso mesmo precisa ser passado adiante,
isto é, socialmente transferido”135. Mas, e isso é importante lembrar, o risco que se quer evitar
não é qualquer risco. O que se procura preservar é o movimento de acumulação de capital. É
por isso que Arantes poderá dizer que “o Capital está agora consumindo o futuro”136.
O que significa isso? Bem, significa, seguindo certas análises do autor em outros artigos
do mesmo livro que estamos trabalhando, que, em nome do risco, a ideia de uma sociedade
democrática vai lentamente sendo apagada ao se impor mecanismos de controle da população
cada vez mais severos e abrangentes137. Também significa que a dinâmica de acumulação de
Capital vai se intensificando a tal ponto que não se pode nem mais controlá-la. Um retrato da
evolução e das transformações dos tipos de intervenção na economia nas últimas décadas nos
mostram facilmente como os períodos entre as crises tem (após um breve hiato entre a
Segunda Guerra Mundial e os anos 70) diminuído e as intervenções tem se mostrado cada vez
mais ineficazes. Como diz Wolfgang Streeck, em sua análise sobre a crise atual do
capitalismo, “soluções se tornam problemas que exigem novas soluções que, porém, após
mais ou menos outra década, se tornam elas mesmas problemas, exigindo outra solução que
logo mostrou ter tão vida curta e ser tão autodestrutiva como suas predecessoras.”138 Essa

133
Arantes, Paulo, op. cit., p. 71
134
“o que há de historicamente específico na dinâmica temporal do capitalismo, a saber: não obstante se tratar
de uma temporalidade direcional, este movimento ascensional não conduz a um futuro qualitativamente
diferente, quer dizer, embora reais e exponencialmente aceleradas, as transformações orientadas para o futuro, na
condição de armadura abstrata de todo o processo, na verdade reforçam a necessidade do presente; como se trata
de uma compulsão estrutural, a de empurrar o presente para a frente, essa forma de dominação através da
dinâmica temporal que vem a ser o capitalismo tende paradoxalmente a se tornar cada vez mais ‘presentista’.”
(Idem, ibidem, p. 72)
135
Idem, ibidem.
136
Idem, ibidem, p. 73
137
Para um desenvolvimento desses mecanismos apontamos para duas partes de uma resenha que fiz do livro
em questão: Saldanha, Rafael. O tempo colado nos eixos — sobre uma hesitante filosofia da história de Paulo
Arantes (parte 2). 2017. Disponível em: <https://medium.com/materialismos/o-tempo-colado-nos-eixos-sobre-
uma-hesitante-filosofia-da-hist%C3%B3ria-de-paulo-arantes-parte-2-e5e1ba924106>. Acesso em: 12 jun. 2017
e Idem, O tempo colado nos eixos — sobre uma hesitante filosofia da história de Paulo Arantes (parte 3). 2017.
Disponível em: <https://medium.com/materialismos/o-tempo-colado-nos-eixos-sobre-uma-hesitante-filosofia-
da-hist%C3%B3ria-de-paulo-arantes-parte-3-f5d574b88c5c>. Acesso em: 12 jun. 2017.
138
Streeck, Wolfgang. How will capitalism end? Londres: Verso Books, 2016. O livro recente de Edmund
Berger, Uncertain Futures (Berger, Edmund. Uncertain futures, Winchester: O Books, 2017. livro virtual)
também apresenta uma série de análises que apontam para a progressiva postura defensiva do Capital na medida
50

dificuldade que se apresenta para o movimento de acumulação de Capital faz com que a
convivência (analisada por Streeck) entre democracia e capitalismo se torne cada vez mais
incompatível.
Se entendermos a democracia como uma das encarnações do horizonte de expectativas
que se inaugura com a revolução francesa, fica mais fácil entender a relação entre capital e
horizonte de expectativas. A dificuldade progressiva de se acumular capital (um efeito já
previsto por Marx139) — ou seja, a dinâmica interna do Capital — faz com que a relação com
qualquer horizonte de expectativas — nas inúmeras utopias de uma sociedade pós-escassez e
de igualdade social — apareça, retrospectivamente, como um casamento com prazo de
validade.
Esse casamento funcionou durante muito tempo, no novo tempo do mundo I, por conta do
medo das classes que realizavam essa acumulação. É isso que Arantes põe em destaque
quando, retomando Wallerstein, comenta as lições que foram extraídas da Revolução
Francesa pela burguesia ascendente. A primeira delas é que nessa revolução, houve um risco
de desestruturação dos mecanismos de hegemonia social. Uma coisa é a disputa
(interminável) entre diversos grupos que buscam controlar o poder e os instrumentos de
dominação social. Outra é a ameaça que as classes mais desfavorecidas oferecem ao realizar
“revoltas verdadeiramente antissistêmicas do mundo moderno, portadoras de uma ameaça real
às polarizações estruturais do sistema-mundo capitalista.”140 O perigo que há nessa
desestruturação leva à segunda lição aprendida: diante do medo de que “uma avalanche
democrática desierarquizante comprometesse de vez a mola secreta da acumulação
interminável”141 criou-se uma “tecnologia de gestão dos riscos de descarrilamento do sistema
por excesso de expectativas, mediante uma astuciosa normalização da mudança social.”142 O
“coeficiente de mudança” presente no horizonte de expectativa, como se vê, não é uma
transformação no regime temporal tão inocente — tratou-se, durante muito tempo, de uma
forma de apaziguamento dos ânimos. Segundo Arantes, a manutenção de um horizonte de
expectativas pela realização de reformas planejadas acaba funcionando como uma promessa
que estabilizaria os ânimos presentes nas classes que são exploradas pela dinâmica social de
exploração capitalista. A mudança, sempre calibrada e nunca excessiva, é normalizada como

em que a queda tendencial da taxa de lucro vai sufocando cada vez mais a possibilidade de acumulação. A
resposta para essa queda tendencial é o sacrifício do welfare state (que era, concordando com Paulo Arantes, um
warfare state) — que, por sua vez, não deixa de ser o cancelamento de um horizonte de expectativa.
139
Cf. Idem, ibidem.
140
Arantes, Paulo, op. cit., p. 92
141
Idem, ibidem.
142
Idem, ibidem.
51

uma tecnologia que oferece uma mobilidade sem que as estruturas de poder sejam
efetivamente transformadas143. Trata-se do adágio enunciado pelo príncipe de Falconeri em O
Leopardo: “tudo deve mudar para que tudo fique como está”.
O que começa a ruir na entrada do novo tempo do mundo II, como já falamos, é essa
tecnologia de gestão que foi o horizonte de expectativas. No mesmo instante em que vemos
voltar a ameaça fantasmática da destruição do sistema, as expectativas encolhem e a
perspectiva de uma utopia democrática some do horizonte (junto com o horizonte)144. As
revoluções deveriam acelerar o tempo, abreviar aquilo que inevitavelmente aconteceria. O
que ocorre, com o seu fracasso repetido, porém, somado à incapacidade de projetar uma
situação distinta do presente, é que a única transformação possível a se desenhar no horizonte
é a própria extinção — seja por um lento definhamento no capitalismo, seja por uma
acelerada aproximação do cataclisma ecológico145). Não se trata de dizer que não haverá algo
depois desses “fins do mundo”. O que se está dizendo é que como o futuro aparece para nós
como uma mera repetição, qualquer mudança real nos parece tão impossível que para que
estejamos lá nós não poderemos mais ser os mesmos.
Em suma, os riscos não param de crescer e, com isso, o futuro vai sendo cancelado por
meio de seu povoamento pelo presente. O que isso implica para a sociedade é o momento em
que vivemos agora: um mundo incapaz de conceber uma realidade diferente da sua atual e
que é condenado a uma gestão de riscos146.

143
“estava assim orientado o eixo do novo tempo, o longo século XIX estendendo-se como uma não menos
longa promessa iluminista de reformas racionalmente planejadas e medo social disciplinado e apaziguador:
decantado o consenso, basicamente liberal, ou melhor, hegemonicamente liberal, acerca da normalidade da
mudança, devidamente calibrada para não anular nos condenados da terra “a esperança e a expectativa de
mudanças mais fundamentais no futuro”. Consolidou-se, em suma, o novo horizonte temporal do mundo, cujo
ponto de fuga vem a ser uma expectability, muito diversa dos prognósticos característicos do cálculo absolutista
de poder, de evolução contínua dos mecanismos políticos de condução do sistema. (Idem, ibidem, p. 93)
144
Como diz Paulo Arantes: “seria então o caso de dizer que a geocultura de legitimação do capitalismo
histórico tornou visível, na escala crescente do planeta e ao longo de duzentos anos, a economia-mundo
capitalista como um imenso campo de expectativas, antagônicas porém unificadas por um mesmo futuro, como
se disse, ‘a tal ponto desconhecido que conhecê-lo e dominá-lo tornou-se uma contínua tarefa da política’. Pois
foi esse campo que começou a ser minado conforme se acirrava a luta de classes a partir dos anos 70 para os 80
do século passado, desmanchando primeiro o consenso liberal-keynesiano que comandara a trégua do imediato
pós-guerra para afinal revelar, paradoxalmente, aliás, com o fim da Guerra Fria, que o horizonte do mundo
encolhera vertiginosamente e uma era triunfante de expectativas decrescentes principiara com uma Queda
espetacular, a seu modo também uma queda – pois apesar de todos os pesares a linha do horizonte era bem alta –
no tempo intemporal da urgência perpétua: este o Novo Tempo do Mundo.” (Idem, ibidem, pp. 93-94)
145
Abordaremos esses pontos nos próximos capítulos.
52

Há um outro fio que resta solto. Se a partir da Revolução Francesa, como parece implicar
Koselleck, o tempo começa a se acelerar rumo a um progresso racionalmente especulado, mas
não garantido, talvez seja possível pensar também essa ausência de futuro atual como fruto da
contínua aceleração que ocorre por conta dos meios técnicos. Analisamos, a partir de Bifo e,
sobretudo, Crary, a maneira como as tecnologias atuais domam a nossa capacidade de
experimentar o futuro, mas faltou dar conta do papel do desenvolvimento técnico nessa
aceleração do tempo. Como afirma Koselleck, as inovações técnicas produzidas a partir do
final do século XVIII permitem que se experimente progressos que antes nem eram sequer
imaginados. O que se retira disso é que os próprios saltos tecnológicos apontam para uma
reserva de um “não experimentado” que pode ser eventualmente descoberto. Nas palavras do
autor, “ciência e técnica estabilizaram o progresso como sendo a diferença temporal
progressiva entre a experiência e a expectativa.”147
A automação, movimento intrínseco à dinâmica do capital, é efetivamente uma forma de
produzir tempo. Mas é um tempo estranho, como mostram os primeiros questionamentos
sobre a natureza desse tempo na época em que ele começou a ser fabricado, pois esse
movimento, que começa a se intensificar a partir do século XVIII, acaba “imprimindo uma
velocidade crescente em todas as áreas da vida.”148 Um contemporâneo dos momentos iniciais
dessa aceleração, ao comentar as ferrovias, dirá que “elas suspendem as separações espaciais
por meio da aproximação no tempo. […] Pois apenas o tempo necessário para atravessá-lo faz
do espaço uma distância; se o acelerarmos, o próprio espaço se reduz no que diz respeito à sua
influência sobre a vida e o trânsito.”149 Esse ganho de tempo não deixou de funcionar como
motor auxiliar para a fuga do horizonte de expectativa, já que seria se apoiando no
desenvolvimento técnico que não poucas utopias seriam construídas. Mas é preciso estar
atento ao jogo duplo presente nesse desenvolvimento. Se por um lado a aceleração aponta
para um horizonte utópico que vai cada vez mais fugindo do espaço de experiência atual, é
preciso se lembrar que o tempo específico que ele fabrica é um que resulta do encurtamento
das distâncias. O tempo que é fabricado, porém, não é qualquer tempo genérico, mas trata-se
da própria gestão do tempo que pode ser alterada a partir desses incrementos técnicos. De
modo que nessa liberação do tempo não veremos — como foi prometido — mais tempo livre,
e sim mais tempo para se extrair mais-valor do trabalhador. O predomínio do capitalismo e do

146
“Como se tornou negativa a expectativa de uma sociedade basicamente constituída por classes passivas (…)
sociedades de risco totalmente orientadas para o futuro passam a exigir um presente securitário máximo.” (Idem,
ibidem, pp. 74-75. grifo meu)
147
Koselleck, Reinhart, op. cit., p. 321
148
Idem, Estratos do tempo. Rio de Janeiro: Contraponto Editora, 2014. p. 146.
149
Brockhaus der Gegenwart, 1838 apud Koselleck, 20I4, p. 149
53

trabalho assalariado faz com que o tempo liberado seja de antemão arregimentado, como
veremos a seguir quando discutirmos a dominação temporal que o capital realiza sobre os
homens a partir do trabalho.
A tendência da tecnologia é, enquanto empurra o horizonte, ao mesmo tempo produzir e
intensificar a sincronicidade. Isso, como Koselleck mostra, fica muito evidente no
desenvolvimento da tecnologia de comunicação. Com ela,

“ações e atos, bem como seu processamento, convergem cada vez mais. Graças à aceleração, o ato e a
reflexão se aproximaram um do outro: o ser humano já não tem como não refugiar-se no futuro e
planejá-lo, pois os dados da experiência própria e alheia se tornam cada vez mais disponíveis.”150

A colonização do futuro, o primeiro passo no seu cancelamento, é algo que se torna


possível na medida em que dispomos meios cada vez mais precisos de gerar a sincronicidade
na comunicação — tudo vai se tornando cada vez mais presente de maneira imediata, como
vimos nas análises de Bifo. Mas isso não é tudo, pois essa colonização segue, também, do
desenvolvimento de tecnologias de previsão de eventos futuros —tecnologias que auxiliarão o
Capital no movimento de afastamento dos riscos que descrevemos acima. Essas tecnologias
de previsão não funcionam de uma forma muito diferente dos antigos prognósticos. Elas
funcionam na medida em que o seu modelo consegue “prever” o passado.151. A coisa ganha
outra dimensão, porém, na medida em que a capacidade de processamento das máquinas que
realizam essas previsões, acaba sendo imensamente maior que a capacidade dos cérebros dos
primeiros artesãos dessa prática. Esses mecanismos acabam, de certa forma, adiantando a
nossa experiência do futuro para dentro do presente. Não precisamos ir muito longe para
enxergar os efeitos desse movimento. Hoje em dia os mercados financeiros — a área do risco
par excellence — colonizam o futuro a partir de programas de computador que conseguem
realizar previsões que nem sequer poderíamos sonhar. E no instante em que essas previsões
são feitas elas se “presentificam”, isto é, saem do futuro e entram no presente, são
operacionalizadas e tratadas como atuais e afetam a realidade presente. É por isso que há um
papel privilegiado do desenvolvimento técnico no cancelamento do futuro que
experimentamos, elas conseguem dar uma forma presente a um tipo de experiência que a
princípio seria mais afastada do solo da experiência. Se pensarmos na diferença entre as
viagens de transatlânticas no século XVI e no XXI essa transformação se torna mais tangível.

150
Idem, ibidem, p. 185 (grifo meu)
151
Cf. Chun, Wendy. On Hypo-Real Models or Global Climate Change: A Challenge for the Humanities.
Critical Inquiry, Chicago, Vol. 41, No. 3, pp. 675-703, primavera, 2015.
54

Se antes havia nessa viagem uma enorme reserva de experiências a se experimentar —


tornando essas viagens verdadeiras aventuras onde a vida do viajante não é garantida de
antemão — realizar uma viagem de avião (ou mesmo de navio) é absolutamente seguro, de
modo que o ponto de chegada da viagem é absolutamente previsível a partir do momento em
que se compra a passagem. Todo o desenvolvimento técnico (que claro, nesse caso é
extremamente positivo) procura afastar qualquer surpresa ou risco nessa viagem de modo que
é quase como se no ato da entrada no avião você fosse já imediatamente transportado para a
chegada. Como nada significante e inesperado irá acontecer nesse meio termo, é como se
você já estivesse no final da viagem, pois nada de novo pode lhe acontecer (claro, há
acidentes, mas justamente, a gestão de risco minimiza isso a níveis absolutamente
microscópicos). É claro que você precisa ficar as dez ou doze horas preso em um avião, mas a
segurança (quase) absoluta desse trajeto faz com que esse tempo não seja mais que um tempo
morto ou vazio — você precisa viver ele (e as vezes de maneira incômoda e desagradável)
para passar por ele, mas ao mesmo tempo, não faz a menor diferença. Isso ajuda a entender,
em uma outra dimensão, a maneira como a colonização do futuro opera. Cada vez menos há
espaço para uma ação orientada para o futuro pois este está cada vez mais presente e menos
indefinido152.

Agora temos uma ideia melhor do tempo em que vivemos. Esse novo tempo do mundo II
pode ser definido como um processo de destemporalização do horizonte de expectativa. Se a
ideia de progresso ou um horizonte de expectativas não é condição sine qua non para uma
vida — para uma vida saudável —, pode-se dizer que estamos sendo forçados a aprender a
viver de outra maneira. O que essa aceleração do tempo produziu não foi o fim de toda e
qualquer experiência temporal, mas a destruição da capacidade moderna de se orientar para
além do presente a partir do espaço de experiências — que por sua vez já foi bem degradado
e não comporta mais a mesma confiabilidade que já teve. Acredito, portanto, que, em certo
sentido, essa situação pode ser chamada de patológica porque perdemos o regime temporal
com o qual estávamos habituados e ainda não aprendemos a construir uma nova relação com
o tempo que nos permita lidar melhor com esse presente instável. — E talvez porque as

152
Isso não significa que “não há futuro”, como já dissemos, e repetimos, mas que as nossas ações passam a ser
cada vez menos orientados pela possibilidade de mudança. Como diz Koselleck, “mesmo que a aceleração tenha
se transformado em experiência constante e tenha atingido uma estabilidade relativa, de modo algum podemos
deduzir dela o que realmente ocorrerá de forma acelerada no futuro.” (Koselleck, Reinhart. op. cit., pp. 186-187)
55

condições não param de se transformar e, consequentemente, exigir novas adaptações. A


destemporalização talvez seja uma das doenças mais graves do nosso tempo, mas não é hora
ainda de condenar o paciente.
Começamos o nosso trabalho descrevendo a sensação de ausência de futuro que nos
domina e agora nos perguntamos sobre a possibilidade de descrever esse novo regime
temporal como uma doença. Chegamos nesse ponto ao elaborarmos o movimento de gênese
do regime temporal que atualmente nos domina e como ele se desenvolveu a partir de uma
intensificação (aceleração) do regime temporal anterior. O que pretendemos fazer agora é
elaborar as forças específicas que destruíram a experiência temporal moderna, para então
cogitarmos uma saída. Se certamente o caminho histórico que traçamos nos dá muitas pistas
sobre a situação que nos encontramos, ainda não falamos sobre a maneira específica dessa
dissolução da temporalidade pautada numa ideia de futuro. Com isso em mente, os próximos
dois capítulos serão dedicados a explicar os principais mecanismos que provocaram essa
situação. Falo aqui do modo de produção capitalista que nos submete ao tempo do capital e da
catástrofe climática — já em curso — que põe um limite material na nossa capacidade de se
orientar para o futuro ao retirar a estabilidade das condições materiais que permitiram o
florescimento da humanidade.
56

I.2. O TEMPO NO CAPITALISMO

Capone tinha razão, Nadia e Armando, também. Era uma


iniciativa frágil, uma forçação. Lila trabalhou no corte da
carne com afinco, tinha vontade de machucar e se machucar.
Meter a faca na mão, fazê-la escapar, agora, da carne morta
para a carne dela, viva. Urrar, arremessar-se contra os
outros, fazer com que todos pagassem por sua incapacidade
de achar um equilíbrio. Ah, Lina Cerullo, você é incorrigível.
Por que preparou aquela lista? Não quer ser explorada?
Quer melhorar sua condição e a desse pessoal? Está
convencida de que você, eles, começarão a partir daqui,
disto que vocês são agora, e depois se unirão à marcha
vitoriosa do proletariado de todo o mundo? Que nada.
Marcha para se tornar o quê? Ainda e sempre operários?
Operários que labutam o dia inteiro, mas no poder?
Cretinices. Cortina de fumaça para dourar a pílula do
cansaço. Você bem sabe que é uma condição terrível, não
deve ser melhorada, mas eliminada, você sabe desde
pequenininha. Melhorar, melhora-se?
Elena Ferrante, História de quem foge e de quem fica

O que se vê aparecer, por essas duas formas, é a introdução


do tempo no sistema do poder capitalista e no sistema penal.
(…) Essa repressão do tempo e pelo tempo é a espécie de
continuidade entre o relógio de ponto, o cronômetro da linha
de montagem e o calendário da prisão.
Michel Foucault, A sociedade punitiva

Não é nenhuma novidade pensar a relação entre capitalismo e tempo. Já no próprio Marx
é possível encontrar essa relação pelo fato de que a exploração que se exerce sobre o
proletário decorre diretamente do controle de seu tempo. Se o trabalho realizado no
57

capitalismo aparece como uma questão para Marx, portanto, isso não acontece simplesmente
pelo fato de que o trabalhador recebe menos do que deveria. O que está acontecendo “no
terreno oculto da produção, em cuja entrada se lê: No admittance except on business”153 é
mais complexo. Qualquer um pode facilmente perceber que todos os seres, humanos ou não,
precisam exercer uma série de atividades para sobreviver. O diferencial que se instaura com o
desenvolvimento do capitalismo é que o tipo de atividade que se realiza para sobreviver passa
a ser limitada. Há uma curiosa torção em que deixamos de produzir aquilo que nos permite
sobreviver e passamos a realizar certas atividades que nos dão meios para só então adquirir o
que precisamos para sobreviver.154 É por isso que quando falamos de trabalho no capitalismo,
não estamos falando de uma atividade genérica qualquer. Ela precisa sempre ser
compreendida como associada a um determinado modo de produção que culmina na produção
industrial, mas que, como veremos, não deixa de se metamorfosear e ressignificar o próprio
diagnóstico inicial de Marx. Nesse sentido, não é que esse modo de produção seja
problemático em si, inclusive, como o próprio Marx não cansa de afirmar, esse novo modo de
produção não deixa de trazer benefícios para a sociedade.155 Dito isso, o que queremos
destacar é a maneira como no capitalismo o trabalho se torna uma atividade exercida
compulsoriamente que, pelo seu caráter altamente específico e alienante, apenas nos dá meios
para sobreviver de forma indireta. Isso aparece de maneira clara já na icônica especulação da
utopia comunista que Marx e Engels opõem ao trabalho coagido que encontraríamos no
capitalismo:

Logo que o trabalho começa a ser distribuído, cada um passa a ter um campo de atividade exclusivo e
determinado, que lhe é imposto e ao qual não pode escapar; o indivíduo é caçador, pescador, pastor ou
crítico, e assim deve permanecer se não quiser perder seu meio de vida — ao passo que, na sociedade
comunista, onde cada um não tem um campo de atividade exclusivo, mas pode aperfeiçoar-se em todo
153
Marx, Karl. O capital: crítica da economia política: livro I: o processo de produção do capital. São Paulo:
Boitempo Editorial, 2013. p. 250
154
O comércio evidentemente não foi inventado no capitalismo. O que estamos dizendo aqui é que é no
capitalismo que a atividade de reprodução da sua própria vida passa a ser feito prioritariamente de maneira
indireta. Discutiremos isso mais adiante, mas é preciso já deixar avisado que essa transformação no modo de
produção não é casual. Se a atividade produtiva se transforma é porque o modo de produção capitalista não deixa
de apresentar vantagens para a sociedade como um todo.
155
“A burguesia não pode existir sem revolucionar incessantemente os instrumentos de produção, por
conseguinte, as relações de produção e, com isso, todas as relações sociais. A conservação inalterada do antigo
modo de produção era, pelo contrário, a primeira condição de existência de todas as classes industriais
anteriores. Essa subversão contínua da produção, esse abalo constante de todo o sistema social, essa agitação
permanente e essa falta de segurança distinguem a época burguesa de todas as precedentes. Dissolvem-se todas
as relações sociais antigas e cristalizadas, com seu cortejo de concepções e de ideias secularmente veneradas; as
relações que as substituem tornam-se antiquadas antes de se consolidarem. Tudo o que era sólido e estável se
desmancha no ar, tudo o que era sagrado é profanado e os homens são obrigados a finalmente encarar sem
ilusões a sua posição social e as suas relações com outros homens.” (Marx, Karl; Engels, Friedrich. Manifesto
Comunista. São Paulo: Boitempo Editorial, 2010. p. 43)
58

os ramos que lhe agradam, a sociedade regula a produção geral e me confere, assim, a possibilidade de
hoje fazer isto, amanhã aquilo, de caçar pela manhã, pescar à tarde, à noite dedicar-me à criação de
gado, criticar após o jantar, exatamente de acordo com a minha vontade, sem que eu jamais me torne
caçador, pescador, pastor, ou crítico. Esse fixar-se da atividade social, essa consolidação de nosso
próprio produto num poder objetivo situado acima de nós, que foge ao nosso controle, que contraria
nossas expectativas e aniquila nossas conjeturas, é um dos principais momentos do desenvolvimento
histórico até aqui realizado.156

A pergunta que nos aparece a partir da leitura desse trecho não é difícil de imaginar. O
que faz um trabalhador se submeter a uma situação em que sua capacidade de agir é
necessariamente reduzida? Podemos apontar dois elementos que levam a essa situação. O
primeiro, que é de ordem mais histórica e no qual nos deteremos menos, consiste no processo
de acumulação primitiva descrito por Marx em O capital. Lá ele irá descrever a maneira como
o cercamento dos campos no fim do feudalismo resulta na expropriação de inúmeros
camponeses, produzindo assim uma massa de indivíduos que não tem mais os meios que se
utilizavam para sobreviver.157 O outro elemento tem a ver com as mudanças na estruturação
da atividade produtiva. É nesse ponto que podemos entender a relação essencial entre esse
modo de produção e a estruturação de um certo modo de conceber o tempo; e é por essa razão
que nos deteremos mais na sua explicação.
O grande pacto diabólico que se estabeleceu nas origens do capitalismo foi justamente a
instauração de um tipo de trabalho que passa a ser medido a partir do seu tempo de
atividade.158 O indivíduo trabalha um certo número de horas e, em vez de ser dono dos bens
produzidos no seu trabalho, passa a receber pelas horas trabalhadas independente do trabalho
realizado. O movimento que vemos aí é um esvaziamento de toda a particularidade da
atividade produtiva realizada e a sua objetivação na forma de uma determinada quantia de um
tempo que é concebido enquanto composto por unidades abstratas, divisíveis e
homogêneas.159 É a partir do estabelecimento dessa possibilidade de objetivação por meio da
quantidade de tempo gasto na atividade — que Marx chamará de trabalho abstrato — que se

156
Marx, Karl; Engels, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007. pp. 37-38 (grifo
meu)
157
“No que resulta a acumulação primitiva do capital, isto é, sua gênese histórica? Na medida em que não é
transformação direta de escravos e servos em trabalhadores assalariados, ou seja, mera mudança de forma, ela
não significa mais do que a expropriação dos produtores diretos, isto é, a dissolução da propriedade privada
fundada no próprio trabalho.” (Marx, Karl, O capital: crítica da economia política: livro I: o processo de
produção do capital, 2013, p. 830)
158
Evidentemente esse processo não é abrupto. Pode-se encontrar uma história dessa constituição da
temporalidade especificamente capitalista na obra de Moishe Postone. Cf. Postone, Moishe. Tempo, trabalho e
dominação social. São Paulo: Boitempo Editorial, 2014. pp. 217-260
159
Inclusive, como aponta Postone, a própria ideia de um tempo abstrato é constituída historicamente e só passa
a predominar como modo de medida do tempo estruturante a partir do desenvolvimento do capitalismo. Cf.
idem, ibidem.
59

torna possível estabelecer uma equivalência entre qualquer tipo de trabalho. Essa dinâmica
explica o drama denunciado por Marx no trecho mencionado acima. A sobrevivência deixa de
ser por meio da produção da sua própria vida e passa a acontecer de modo indireto, pela
realização de atividade que lhe dá um salário a partir do tempo trabalhado que, por sua vez,
permite ao trabalhador adquirir os bens necessários para a reprodução da sua vida.
Nesse momento, fica claro em que medida o modo de produção capitalista se encontra
ligado ao problema do tempo. Na medida em que a venda da força de trabalho passa a ser o
modo predominante de sobrevivência, os trabalhadores dependem da submissão a uma
estrutura temporal ditada por forças alheias que se organizam a partir de um tempo concebido
de maneira abstrata. Mas esse tipo de tempo não fica restrito ao ambiente da fábrica, pois ele
só faz sentido enquanto se impõe como conceito geral de tempo, permitindo assim que se
estabeleça uma divisão entre um tempo de trabalho e um tempo de não trabalho — este que,
como veremos, serve como tempo para reprodução da força de trabalho, ou seja, as
atividades que permitem ao trabalhador continuar vendendo sua força de trabalho. O
indivíduo, no momento em que a relação de trabalho assalariado se estabelece, começa a se
constituir como um ser que é alienado da própria temporalidade em que ele está inserido,
passando a se organizar a partir desse tempo abstrato que interessa ao modo de produção
capitalista. Ainda que, como veremos, essa situação se mostre completamente transformada
nos dias atuais, é importante ver como essa divisão inicial entre um tempo da produção e um
da reprodução é fundamental para dar sentido ao que vemos no cenário atual. Se
experimentamos um esgotamento do futuro hoje em dia, é porque nas origens do capitalismo
a nossa experiência temporal foi completamente esquadrinhada e mapeada para que uma parte
dela pudesse ser reservada a uma atividade produtiva que não nos pertence.
Mas isso não é tudo, pois para que essa relação possa se estabelecer é preciso primeiro
que ela beneficie uma das partes — caso contrário, como diz Marx, que interesse o
proprietário teria em contratar um trabalhador se o dinheiro gasto com a produção fosse
idêntico ao valor dos bens produzidos?160 — E, ao mesmo tempo, que o trabalhador se
submeta espontaneamente a ela — ou seja, é preciso que ele seja pago pelo que produz. É
justamente como solução para essas demandas que Pierre Macherey dirá que o capitalismo se
desenvolve ao conciliar liberdade — do trabalhador, que espontaneamente vende sua força de
trabalho para o proprietário — e necessidade161 — pelo fato de que o trabalhador “é levado a

160
Cf. Marx, Karl. op. cit., pp. 223-251
161
Macherey, Pierre. The productive subject, 2015. Disponível em:
<https://www.viewpointmag.com/2015/10/31/the-productive-subject/>. Acesso em 2 mar 2018.
60

fazê-lo”162 Não é uma simples troça dizer que o segredo do capitalismo se encontra dentro
da fábrica, pois é só nela que vemos uma série de operações que permite que essas duas
demandas sejam atendidas. A chave dessa conciliação se encontra, portanto, em uma divisão
que é operada no próprio trabalhador no momento em que ele começa a vender a sua força de
trabalho. Como dissemos, o trabalhador é pago pela venda da sua força de trabalho e não pela
sua atividade trabalhada. Essa distinção é fundamental pois é ela que permite entender como
o trabalhador pode se submeter livremente ao contrato com o proprietário dos meios de
produção e também entrar numa relação em que seu trabalho é explorado. Ao vender a sua
força de trabalho o que se vende não é uma atividade produtiva determinada, mas o uso dessa
força como o comprador dessa força bem entender. Como diz Macherey, o trabalhador vende
a sua força de trabalho por um determinado valor e é pago pela quantidade de tempo
dispendido, pelo tempo de uso dessa força de trabalho. O pulo do gato está no fato de que o
uso dessa força de trabalho no tempo do trabalho acontece segundo as vontades do comprador
da força de trabalho.163 Se o trabalhador recebe pelo uso individual da sua força de trabalho, o
proprietário consegue extrair mais do que paga ao trabalhador ao se apropriar da sua força de
trabalho e usá-la de um modo mais eficiente e produtivo.
É aqui que podemos destacar a ênfase que Foucault faz de certos aspectos abordados n’O
capital. A maneira mais transparente, e portanto menos efetiva, em gerar um desequilíbrio na
relação com o trabalhador, seria simplesmente pagar o valor de face do trabalhador a partir do
tempo que ele gasta para produzir um determinado bem. Se, porém, essa relação pode ser
interessante para o capitalista — dono dos meios de produção e comprador da força de
trabalho dos trabalhadores — é porque há outras formas de organizar o trabalho para que ele
renda mais no mesmo tempo. É com isso em mente que podemos entender uma série de
inovações que são introduzidas no ambiente da fábrica. Cooperação, transferência de
conhecimento, serialização e especialização das etapas da produção são técnicas que

162
Roque, Tatiana. “Subjetividades no ponto cego da esquerda: crise do trabalho e do bem-estar”. Revista
Fevereiro. n. 10, jan. 2018a. Disponível em: <http://www.revistafevereiro.com/pag.php?r=10&t=05>. Acesso
em: mar 2018.
163
“Uma vez que o trabalhador aliena o seu uso da sua força de trabalho em troca de um salário, é como se ele
fosse dividido em dois e se torna um sujeito dividido e sobredeterminado. Por um lado, ele permanece a mesma
pessoa que ele é, ligado à sua existência corporal, permanecendo seu proprietário inviolável até a sua morte. Ele
frequentemente a carrega como um fardo, pois precisa alimentá-la, abrigá-la, cuidar dela, reproduzi-la (tendo
filhos), tudo isso na maior parte das vezes por sua própria conta e responsabilidade, mesmo quando ele não tem
recursos materiais para fazer isso. Por outro lado, ele é transformado em um ser cuja força não mais depende
simplesmente das condições de sua existência pois seu uso e ativação se tornaram dependentes de regras que a
transcendem, tornando ele em um sujeito produtivo. Ele é portador e dono de uma força de trabalho dividida em
um Arbeitskraft que pertence a ele e é uma preocupação exclusivamente sua e uma Arbeitsvermögen que pode
ser remodelada à vontade; sua substância, Kraft, tornada maleável, flexível, para que possa ser mais facilmente
anexada ao tipo de tarefa atribuída ao trabalhador, em um determinado nível de produtividade.” (Macherey,
Pierre, op. cit., tradução minha)
61

permitem aumentar a produtividade do emprego da força de trabalho. O que se começa a


desenvolver nesse momento é uma disciplinarização dos corpos ao dispô-los de maneiras
mais interessantes para a própria produção. Ao vender apenas a sua força de trabalho e não a
sua atividade produtiva, o trabalhador se dispõe espontaneamente a ser moldado de acordo
com certos interesses.164 Ao mesmo tempo, o uso que se faz dessas forças é da ordem de uma
imposição que pode ser compreendida a partir da teorização de Foucault sobre poder
disciplinar. Não se tratam de ordens ou proibições que impedem que se aja de tal ou tal
maneira. O que Foucault tem em mente é um poder que se exerce como uma ação sobre uma
ação.165 As técnicas utilizadas nos ambientes de trabalho, efeitos de uma longa história das
tecnologias de disciplinarização dos corpos que ocorreu em inúmeras áreas, funcionam ao
delimitar um horizonte de ações possíveis, modos de agir possíveis. O exemplo clássico,
elaborado em Vigiar e punir, é a disposição dos alunos em fileiras em frente ao professor.166
Esse tipo de disposição não age diretamente sobre os alunos, mas sobre as suas ações
possíveis. O mesmo tipo de poder incide na organização da produção capitalista provocando
assim a formação desse sujeito que Macherey chama de sujeito produtivo.
A questão, e é aqui que as fronteiras entre produção e reprodução [da força de trabalho]
começam a ficar borradas, é que esse poder disciplinar se complexifica ainda mais na medida
em que ele para de incidir apenas sobre o trabalhador individual. O desenvolvimento do
capitalismo nascente começa a tornar elemento essencial da sociedade a produção de
trabalhadores que possam ocupar os postos nas fábricas. A demanda por uma extração cada
vez mais eficiente do trabalho faz com que a esfera da reprodução social comece a se tornar
um alvo de intervenção ainda não explorado — ou ao menos não explorado com esses
interesses produtivos em mente. É inegável, como encontramos em Vigiar e punir, que as

164
“Quando as pequenas oficinas dão lugar a fábricas com muitos operários, é preciso instituir uma divisão do
trabalho e forjar técnicas que permitam coordenar os gestos e constituir uma disciplina. Foucault mostra, ainda,
que a descoberta da população é um investimento sobre esse corpo moldável, nicho tecnológico de
procedimentos políticos.” (Roque, Tatiana, op. cit.)
165
“Será que isto quer dizer que é necessário buscar o caráter próprio às relações de poder do lado de uma
violência que seria sua forma primitiva, o segredo permanente e o último recurso — aquilo que aparece em
última instância como sua verdade, quando coagido a tirar a máscara e a se mostrar tal qual é? De fato, aquilo
que define uma relação de poder é um modo de ação que não age direta e imediatamente sobre os outros, mas
que age sobre sua própria ação. Uma ação sobre a ação, sobre ações eventuais, ou atuais, futuras ou presentes.
Uma relação de violência age sobre um corpo, sobre as coisas; ela força, ela submete, ela quebra, ela destrói; ela
fecha todas as possibilidades; não tem, portanto, junto de si, outro polo senão aquele da passividade; e, se
encontra uma resistência, a única escolha é tentar reduzi-la. Uma relação de poder, ao contrário, se articula sobre
dois elementos que lhe são indispensáveis por ser exatamente uma relação de poder: que “o outro” (aquele sobre
o qual ela se exerce) seja inteiramente reconhecido e mantido até o fim como o sujeito de ação; e que se abra,
diante da relação de poder, todo um campo de respostas, reações, efeitos, invenções possíveis.” (Foucault,
Michel. “O sujeito e o poder” in: Dreyfus, Hubert; Rabinow, Paul. Michel Foucault, uma trajetória filosófica.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. p. 243)
166
Cf. Idem, Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 2013. p. 142
62

técnicas disciplinares atravessam diversas esferas da vida dos indivíduos (educação, religião,
prisões, etc.), se afetando e influenciando sem qualquer telos que conduza desde o início o seu
desenvolvimento. Isso não impede, porém, que, na medida em que essas tecnologias passam a
produzir corpos dóceis, moldáveis, elas sejam apropriadas com a finalidade de extrair mais
valor do trabalho realizado nas fábricas. Se, como falamos, inicialmente isso ocorre pela
introdução de diversas técnicas no interior da fábrica, o fato de que essas técnicas operam por
todos os campos da sociedade abre um horizonte em que se pode moldar a própria reprodução
social a partir dos interesses do capital.
Na medida em que o modo de produção capitalista se torna predominante e a economia se
torna um ponto de ação privilegiado dos governos. Nas palavras de Foucault, governar passa a
ser uma atividade em que se procura “aplicar a economia, uma economia no nível de todo o
Estado, isto é, [exercer] em relação aos habitantes, às riquezas, a conduta de todos e de cada
um uma forma de vigilância, de controle não menos atenta do que a do pai de família sobre a
casa e seus bens”167 É nesse ponto que entra em cena aquilo que Foucault chamará de
biopolítica, ou seja, uma série de tecnologias que permitem ao governo exercer o seu poder ao
delimitar a própria formação dos sujeitos com os interesses econômicos em mente. Mas como
fazer isso? Bem, nesse momento veremos uma disciplinarização não mais de esferas distintas
e desorganizadas, mas da sociedade inteira a partir do desenvolvimento de tecnologias que
permitem o controle dos corpos em uma escala populacional. Ainda que Foucault distinga o
poder disciplinar do controle biopolítico, é possível observar como um está entrelaçado no
outro. Se o poder disciplinar tem a ver com o controle de indivíduos, o poder biopolítico diz
respeito ao controle populacional. Dessa forma, o que o poder biopolítico procura é constituir
indivíduos (subjetividades) submissos aos interesses do governo por meio de um controle
populacional ou da apropriação de técnicas disciplinares e sua reprodução em escalas
massivas. Quanto ao controle populacional, não é à toa que veremos, a partir do
fortalecimento dos estados modernos, um desenvolvimento das ciências estatísticas e atuariais
que permitem lidar com populações inteiras.168 Quanto ao poder disciplinar, o que se vê é a

167
Idem, Segurança, território e população. São Paulo: Martins Fontes, 2008. pp. 126-127
168
“Inventou-se nesse momento o que eu chamarei, por oposição à anátomo-política que eu mencionei a pouco,
a bio-política. É nesse momento que vemos aparecer coisas, problemas como o do habitat, o das condições de
vida numa cidade, o da higiene pública, o da modificação da relação entre natalidade e mortalidade. Foi nesse
momento que apareceu o problema de como podemos levar as pessoas a fazer mais filhos, ou em todo caso como
poderemos regular o fluxo da população, como poderemos controlar igualmente a taxa de crescimento de uma
população, as migrações, etc. E a partir daí toda uma série de técnicas de observação entre as quais a estatística,
evidentemente, mas também todos os grandes organismos administrativos, econômicos e políticos, tudo isso é
encarregado dessa regulação da população. Portanto, creio eu, duas grandes revoluções na tecnologia do poder:
descoberta da disciplina e descoberta da regulação, aperfeiçoamento de uma anátomo-política e aperfeiçoamento
de uma bio-política.” (Foucault, Michel. “As malhas do poder (final)”. Barbárie, n. 5, 1982. pp. 37-38.
63

maneira como certas técnicas de controle e habituação de corpos individuais vão migrando de
uma área para outra, como, por exemplo, no caso das tecnologias de disposição militar que
começam a reconstruir o modo de se comportar em sala de aula. Se é possível dizer que essas
técnicas disciplinares se misturam ao poder biopolítico é porque a maneira como ela se
espalha em diversos meios acaba produzindo corpos dóceis e produtivos em todas as áreas de
uma população. Como já dissemos, porém, isso não quer dizer que elas foram criadas com a
finalidade de atender aos interesses de um governo. Elas surgiram de maneira autônoma, sem
qualquer objetivo superior que orientava seu desenvolvimento. O que acontece é que na
medida em que o tipo de corpo que ela produz interessa ao estado, o que se vê é que elas
passam a ser absorvidas e a fazer parte dos mecanismos de controle do estado.
Isso não é um elemento casual do desenvolvimento capitalista, como podemos ver a partir
do comentário de Roque:

O funcionamento do capitalismo passa pela produção de capitalistas e trabalhadores, logo, pela


produção dos modos de vida e das subjetividades necessárias à valorização do capital. Todos esses
processos remetem ao terreno da reprodução social, que inclui a reprodução dos meios de produção,
da força de trabalho e das relações sociais de produção – um terreno fundamental para a valorização
capitalista e distinto do âmbito da produção de mercadorias.169

O interesse em se intervir na reprodução social decorre do fato de que apesar desse


esforço ocorrer fora do tempo de trabalho, ainda assim ele é uma área a ser explorada que
pode aumentar ainda mais a eficiência da produção — sem pagar mais ao trabalhador já que,
como falamos, ele não é pago pela atividade produzida, mas pelo valor da sua força de
trabalho. Para deixar claro esse tipo de intervenção, podemos pensar nas instituições de
sistemas de saúde e educação pública. Esses benefícios oferecidos à população não podem ser
considerados como meros gestos de boa vontade, pois eles não são de modo algum neutros. A
maneira como eles se organizam e se estruturam produzem corpos determinados. Ninguém é
explicitamente obrigado a se comportar de certa maneira, mas a maneira como a população
passa a ser filtrada por essas macrotecnlogias públicas faz com que apenas um certo tipo de
corpo — eficiente — passe a ser produzido. Dessa forma, por meio das tecnologias
biopolíticas, passa-se a produzir o sujeito produtivo no espaço que, em tese, ainda pertencia
ao indivíduo.

Disponível em: <https://bibdig.biblioteca.unesp.br/bitstream/handle/10/26785/barbarie-1982-


0005.pdf?sequence=4&isAllowed=y>. Acesso em: 5 mar 2018.)
169
Roque, Tatiana, op. cit.
64

*
É esse borramento e atravessamento da fronteira entre produção e reprodução que permite
entender a nossa situação presente e o desenvolvimento daquilo que, a partir de Foucault, é
denominado neoliberalismo. O mundo do trabalho se encontra metamorfoseado pois a
dominação a que somos submetidos se estende para toda a nossa vida na medida em que a
esfera da reprodução social se torna alvo de intervenção para extração de uma maior
produtividade. A nossa hipótese de que vivemos um cancelamento do futuro se sustenta em
parte por conta da maneira como o tempo do trabalho passa a dominar não só todo o nosso
tempo presente, mas, pelas próprias transformações que ele sofre, o nosso futuro.
Antes de começarmos, é preciso esclarecer o que entendemos por neoliberalismo. Como o
termo tem se prestado a inúmeros usos ao longo das últimas décadas, é importante deixar
claro que não estamos aqui procurando descrever as políticas econômicas elaboradas por
governos dos países centrais nos anos 1980 (sobretudo EUA com Reagan e Reino Unido com
Margaret Thatcher) e que acabaram tendo seus respingos ao longo da América latina a partir
dos anos 1990.170 Também não nos interessa uma visão, comum na esquerda, que trata o
neoliberalismo como a grande vitória de corporações e transnacionais malignas que buscam
retirar todo direito social conquistado em nome de uma margem de lucro maior. Embora isso
não esteja absolutamente incorreto, nossa posição aqui é de que o movimento do capital e a
dominação que ele realiza é abstrata e impessoal. Dentro da nossa análise não faz sentido
moralizar a discussão como vemos parte da esquerda fazer. Por outro lado, também não faz
sentido reduzir a questão a uma série de medidas econômicas, já que o que está em jogo é
justamente a maneira como o econômico, político e social se misturam sem que possam ser
separados completamente. Nesse sentido, o que pretendemos descrever aqui é, como disse
Maikel da Silveira ao sintetizar o diagnóstico foucaultiano, “o neoliberalismo (…) como uma
técnica de governo privilegiada, que consiste em organizar, administrar, gerir instituições e
instituir práticas capazes de produzir subjetividades concebidas em termos de capital
humano.”171 Isso significa que quando falamos de neoliberalismo estamos falando de uma
certa racionalidade que passa a reger e mediar as relações sociais — principalmente a partir
do final dos anos 1970 no quadro de transformações que descrevemos no capítulo anterior. O
que procurarei fazer aqui é descrever essa racionalidade e como a nossa experiência do tempo
se encontra transformada por esse novo momento do capitalismo.

170
Ainda que o Chile, claro, seja uma excessão pelo seu caráter de laboratório desse tipo de medida durante o
governo ditatorial de Pinochet.
171
Silveira, Maikel da. O grito populista: populismo e afeto no capitalismo tardio. 2017. 157f. Dissertação
(Mestrado em Filosofia) — PUC-Rio, Rio de Janeiro, 2017. p. 66
65

Essa ideia do neoliberalismo enquanto tecnologia de produção e administração de


subjetividades tem origem no pensamento de Foucault em seus cursos no Collège de France
no final dos anos 1970. Se nos cursos dos anos anteriores ele havia se demorado sobre as
tecnologias de governo elaboradas ao longo da modernidade, veremos em Nascimento da
biopolítica uma rara tentativa de descrever a situação presente que ainda estava germinando e
cujos efeito podemos observar com mais precisão apenas agora. Não pretendemos nos
estender sobre esses detalhes, sobre como ocorreu de fato essa transição e sobre as análises
minuciosas que o autor elabora sobre a transformação do liberalismo em neoliberalismo, visto
que isso nos desviaria do nosso objetivo. Para tanto pretendemos apenas apontar o
deslocamento de objeto que a teoria neoliberal opera com relação aos liberais clássicos, pois é
a partir desse deslocamento que poderemos entender em que medida os efeitos desse
deslocamento produzem essa condição de presentismo que estamos tentando descrever.
Como vemos em Foucault, a tradição liberal inaugurada por Adam Smith tinha como
objetivo garantir a existência de um espaço de troca livre das interferências do estado: o
mercado. O mercado era concebido por esses pensadores como tendo uma racionalidade
própria, visto que seria um “resultado natural da propensão humana à barganha, à troca e aos
negócios.”172 Indo contra as práticas intervencionistas dos estados autoritários do início da
modernidade, os economistas liberais acreditavam que a própria dinâmica do mercado poderia
nos proporcionar as soluções para os problemas econômicos, de modo que o seu objetivo era
garantir um espaço para que esse mercado pudesse regular a si próprio. Se o mercado tem
uma autorregulação original, o que cabe ao economista seria entender justamente seu
funcionamento, compreensão que deixaria claro que qualquer intervenção só tem como efeito
desequilibrá-lo, tornando outras intervenções ainda mais necessárias para restaurar o
equilíbrio original e dando início a um ciclo sem fim de correções. Importante frisar então que
para os liberais o mercado tem uma existência natural, bastando não interferir nele para que
ele possa se desenvolver plenamente. A partir disso fica claro por que Foucault dirá então que
a análise econômica elaborada a partir de Adam Smith tem como objeto “o estudo dos
mecanismos de produção, dos mecanismos de troca e dos fatos de consumo no interior de

172
Idem, ibidem, p. 67
66

uma estrutura social dada, com as interferências desses três mecanismos.”173 O único objeto
possível para a economia é o funcionamento natural do próprio mercado.
O que vemos entre os neoliberais, apesar do neo, é uma espécie de inversão do liberalismo
clássico. Se, para os liberais clássicos, o mercado é um dado, algo natural em que deve-se
evitar interferir, para os neoliberais o mercado livre precisa ser produzido. Ou seja, ele existe
não enquanto origem, mas enquanto finalidade. A intervenção que se opera deve buscar
produzi-lo, de modo que a sua existência é como uma espécie de ideia reguladora. Como diz
Silveira,

se o liberalismo clássico baseava sua concepção do mercado na ideia de troca e defendia o princípio
do laissez-faire, os ordoliberais e neoliberais fizeram da concorrência um valor supremo e viam na
concepção clássica de laissez-faire um resquício de naturalismo, contra o qual se rebelavam: a
concorrência não é, para eles, algo natural, que decorre do jogo de apetites, instintos e
comportamentos humanos, mas resulta de um princípio formal. Para Foucault, esse formalismo se
manifesta num estilo de governo altamente intervencionista, que embora rejeite a interferência direta
no mercado exige interferência constante nos elementos formais da economia. Em outras palavras, o
neoliberalismo age nas regras do jogo: na moldura institucional. Biopoliticamente, age sobre a
legislação (criando e modificando leis), sobre o território (promovendo deslocamentos geográficos de
populações, infraestruturas, redirecionando fluxos de capital), e sobre a formação das pessoas
(capacitando capital humano, introduzindo novas tecnologias, regulando taxas de juro e fixando metas
de inflação etc.).174

O tipo de ação que se procura produzir na economia não é mais uma delimitação de um
campo “livre de intervenção”, mas uma espécie de ação indireta que resultaria na criação
desse campo de concorrência a posteriori. É nesse momento que se vê a maneira como o
econômico não pode se desprender do político e do social, já que para a criação desse campo
de concorrência é preciso, de alguma forma, produzir os próprios sujeitos (além, é claro, das
outras intervenções mencionadas) que irão compor esse campo de concorrência. Não se
busca, como no welfare state, a elaboração de intervenções diretamente econômicas, como
uma política de pleno emprego. Procura-se, pelo contrário, produzir condições para que
trabalhadores possam surgir e disputar o espaço de mercado — produz-se a concorrência. Em
resumo, podemos dizer que o que se tem na virada neoliberal é o surgimento de uma razão
econômica que procura intervir de maneira intensa nas práticas não-econômicas para que uma
zona de pura concorrência possa se formar.

173
Foucault, Michel. Nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008. p. 306
174
Silveira, Maikel da, op. cit., pp. 68-69
67

Podemos agora compreender como a teoria neoliberal desloca o objeto da ciência


econômica desenvolvida pelos liberais clássicos. Se esta procura analisar as relações de
produção, troca e consumo, aquela está mais interessada em entender a maneira como se
alocam recursos raros (finitos) entre opções alternativas:

tem-se recursos raros, tem-se, para a utilização eventual desses recursos raros, não um fim ou fins que
são cumulativos, mas fins entre os quais é preciso optar, e a análise econômica deve ter por ponto de
partida e por quadro geral de referencia o estudo da maneira como os indivíduos fazem a alocação
desses recursos raros para fins que são fins alternativos.175

O que está em jogo nessa análise é justamente a ideia de concorrência, que será central
nas práticas neoliberais. Como diz Foucault, “o que a analise deve tentar esclarecer é qual
cálculo, que aliás pode ser despropositado, pode ser cego, que pode ser insuficiente, mas qual
cálculo fez que, dados certos recursos raros, um indivíduo ou indivíduos tenham decidido
atribuí-los a este fim e não àquele.”176 A economia se torna então uma ciência que busca
analisar a racionalidade do indivíduo. Muda-se o ponto de vista para entender os processos de
decisão do indivíduo e não mais os processos do mercado.
Desse ponto de vista, é preciso dizer, a própria ideia de trabalho, como produtor de valor,
fica um pouco deslocada, já que nesse contexto o que passa a importar é o gerenciamento
estratégico de recursos finitos. O trabalho compreendido sob essa ótica, nas palavras de
Foucault, faz com que “o trabalhador seja na análise econômica não um objeto, o objeto de
uma oferta e de uma procura na forma de força de trabalho, mas um sujeito econômico
ativo.”177 Essa mudança de ponto de vista faz com que o salário seja encarado não como o
preço da venda da força de trabalho, mas uma renda de um capital, no caso do capital
humano, que seria algo que rende e produz rendimentos futuros. No quadro do neoliberalismo
elaborado por Foucault,178 ao se posicionar do ponto de vista do trabalho como atividade
estratégica, o trabalhador se transforma em um capital que pode e deve render. Vemos aqui o
surgimento de uma das ideias capitais desse curso de Foucault e fundamental para a nossa
investigação presente, a ideia do empresário de si. Como isso ocorre?
Bem, como dissemos, do ponto de vista do trabalho, o trabalho é encarado como uma
estratégia ativa para melhor alocação de recursos, de modo que, distanciando-se de Marx,
torna-se vital compreender o caráter diferencial entre as diversas atividades. Esse

175
Foucault, Michel, op. cit., p. 306
176
Idem, ibidem, p. 307
177
Idem, idibem, p. 308
68

distanciamento, porém, não precisa ser compreendido como um sinal de que a teoria de Marx
sobre o trabalho se mostrou como falsa. Trata-se de um ponto de vista diferente que
complementa e enriquece a análise de Marx sobre o tipo de dominação que é operado no
capitalismo. Isso pode ser reforçado se nos lembrarmos que essa alteração de ponto de vista
pode ser entendida como um próprio efeito das intervenções biopolíticas que procuram
transferir os riscos do processo produtivo para o próprio trabalhador a fim de poder reduzir os
próprios custos envolvidos na produção do trabalhador e conseguir estimular um aumento de
produtividade às custas do trabalhador. Nesse sentido aquilo que distingue qualitativamente
os diferentes capitais [humanos] é aquilo que afeta o seu rendimento futuro, ou seja, as
habilidades e competências daquele indivíduo especifico. Ora, se o rendimento do capital
depende das habilidades e competências de um determinado sujeito, abre-se todo um campo
de auto-melhoramento que pode fazer com que esse capital consiga render mais. Esse
movimento de concepção do indivíduo como capital humano é que consolida a imagem dos
trabalhadores como “empresas de si”.179 A fórmula do programa neoliberal para a sociedade
pode então ser revelada: “uma economia feita de unidades-empresas, uma sociedade feita de
unidades-empresas: é isso que é, ao mesmo tempo, o principio de decifração ligado ao
liberalismo e sua programação para a racionalização tanto de uma sociedade como de uma
economia.”180 Toda a sociedade passa a ser contaminada pelo modo empresarial, algo que já
era observado pro Foucault em 1979 quando descrevia os efeitos do neoliberalismo
americano. O que se observa lá é que “a generalização da forma econômica do mercado no
neoliberalismo americano, além das próprias trocas monetárias, funciona como princípio de
inteligibilidade, princípio de decifração das relações sociais e dos comportamentos
individuais.”181
Se, porém, essa racionalidade pôde ganhar o espaço que ganhou, a ponto de passar a
conduzir as ações dos governos, de modificar e reduzir os ganhos sociais que ocorreram após
a Segunda Guerra Mundial, isso não deixa de ser um efeito das crises econômicas que
ocorreram a partir dos anos 1970. A estagnação do welfare state e o aumento da dívida
pública deram espaço para que uma nova razão econômica se impusesse no vácuo da crise do

178
Que compreende principalmente o neoliberalismo americano influenciado pela escola de Viena (von Mises,
Hayek e Friedman).
179
“Nao é uma concepção da força de trabalho, é uma concepção do capital-competência, que recebe, em função
de variáveis diversas, certa renda que é um salário, uma renda-salário, de
sorte que é o próprio trabalhador que aparece como uma especie de empresa para si mesma.” (Idem, ibidem, p.
310)
180
Idem, ibidem.
181
Idem, ibidem, p. 334
69

keynesianismo. Como descreve Silveira,182 o crescimento da dívida pública gerada pelos


gastos para manter os benefícios do estado de bem estar social somado a uma crescente
pressão para que os governos adotassem mecanismos de responsabilidade fiscal em nome dos
credores (que algum dia poderiam cobrar os empréstimos realizados pelos governos),
tornaram cada vez mais difícil que os governos impulsionassem um crescimento por meio de
investimentos públicos. A solução para essa situação, que pode ser observada a partir dos
anos 1990, sobretudo se olhamos o governo de Bill Clinton nos EUA, se dá por meio da
transferência dos riscos de investimento para os indivíduos a partir da disponibilização de
linhas de crédito. Como observa Silveira, “trata-se de transferir para o âmbito privado aquilo
que, no arranjo anterior, era responsabilidade do welfare state: a busca emprego, da
assistência social, do acesso à saúde, à educação, à moradia.”183 Vemos nesse movimento do
governo americano se desenvolver plenamente a posição do indivíduo como empresário de si,
pois agora ele não apenas se comporta como um capital humano, como ele próprio precisa se
apoiar em linhas de crédito para fazer seu capital render e, eventualmente, conseguir arcar
com essa dívida inicial. A dívida, como se vê, aparece como um componente essencial dessa
nova dinâmica do empresário-de-si.184

A partir dessas análises de Foucault sobre a implementação de uma racionalidade


neoliberal, podemos compreender por que ela passa a significar o cancelamento do futuro que
diagnosticamos anteriormente. Como vimos, nas origens do capitalismo, a extração de
produtividade se realizava por meio da elaboração de disciplinas que moldavam os corpos no
interior das fábricas. No próprio desenvolvimento do capitalismo, porém, o que é possível
observar é que aquele período de não trabalho, reservado à reprodução social, é ele próprio
também fruto de uma constituição que pode ser alvo de disciplinas. Se podemos dizer que as
fronteiras entre produção e reprodução começam a se borrar, ainda é possível dizer que as
disciplinas impostas no campo da reprodução ainda são mais ou menos impostas sem grandes
escolhas por parte do trabalhador. O gesto espontâneo de concessão (em troca de um salário)
da sua força de trabalho ainda fica restrito a um determinado período.

182
Cf. Silveira, Maikel da, op. cit., pp. 78-81
183
Idem, ibidem, p. 80
184
Não desenvolveremos esse tema aqui, mas sobre a dinâmica da dívida e a maneira como ela passa a ser um
dos elementos que constituem a produção de subjetividade contemporânea cf. Lazzarato, Maurizio. The making
of the indebted man: an essay on the neoliberal condition. Los Angeles: Semiotext(e), 2011.
70

A grande mudança no período neoliberal é que ao se tornar capital humano, toda a vida
do indivíduo passa a ser configurada a partir de um ponto de vista estratégico, pois cada
decisão sua se torna um investimento. Se antes o gesto espontâneo de concessão da força de
trabalho se limitava a uma parcela do seu tempo, aquele sujeito que se estrutura enquanto
capital humano torna indistinguível a atividade produtiva e a atividade reprodutiva, pois o seu
salário, nesse novo contexto, não é mais que uma renda que provêm “de todo o conjunto de
fatores físicos e psicológicos que tornam uma pessoa capaz de ganhar este ou aquele
salário”.185 Ao se tornar empresário de si o indivíduo passa a conceder todo o seu tempo e o
próprio indivíduo passa a querer ser esse capital humano.186 O neoliberalismo surge, como
vimos, num momento de crise do bem estar social, num momento em que os recursos a se
alocarem se tornam perigosamente finitos — um momento que, como sabemos, não teve fim,
pois a crise e as demandas de austeridade que ela impõe jamais sumiram. Saber constituir um
capital [humano] mais produtivo passa a se tornar uma questão de sobrevivência visto que as
possibilidades de renda — para não falar de emprego — se tornam cada vez mais raras para
grande parte da sociedade. Isso nos leva justamente para aquela sociedade de risco
investigada por Arantes e que discutimos no capítulo anterior. As oportunidades são tão
pequenas que temos cada vez mais aversão ao risco para conseguir ao menos garantir um
mínimo de estabilidade. É preciso sacrificar o horizonte de expectativas não experimentado a
partir das demandas do presente. Isso não deixa de ganhar carne na situação do graduando ou
do pós-graduando que aspira entrar no mercado acadêmico. Com cada vez menos vagas, é
preciso traçar com cuidado seus planos, pensar nos artigos que se vai publicar, procurar
estágios para ganhar experiência docente, escolher que textos ler ou não ler, que
comentadores, quais congressos participar para poder conhecer as pessoas certas que poderão
ou não oferecer certas oportunidades. Mas não se trata, evidentemente, apenas disso. Pois a
paranoia que surge com a tendência cada vez menor de vagas faz com que a sua preocupação
ocupe cada vez mais todo momento da sua vida. A culpa passa a surgir em cada momento de
descanso e leituras que não podem ser imediatamente aproveitadas em seu projeto — ou que
contribuam diretamente com a sua formação — começam a ser postas de lado para depois. Se
acredito que esse exemplo é relevante é porque a carreira de pesquisa sempre esteve associada
a uma certa promessa do desejo, do movimento de se impelir e se aventurar por campos
desconhecidos. O que acontece hoje em dia, dada a situação, é justamente o inverso.
Passamos a fazer cálculos sobre em quais autores vale a pena investir ou não. Será melhor

185
Foucault, Michel. op. cit., p. 308
71

gastar meu tempo lendo Deleuze, que é alguém que me mobiliza, ou será que faz mais sentido
conhecer mais profundamente Kant — não pelo seu papel na história da filosofia ou por
qualquer interesse nos seus problemas (isso seria um luxo), mas pela polivalência que esse
autor tem nos concursos. Os próprios percursos passam a ser desenhados a partir de rendas
futuras, esvaziando a carreira que antes prometia uma espécie de liberdade de toda a sua
aventura. O futuro é cancelado não por deixar de chegar, mas por já se dispor de modo
completamente planejado; previsível como um monotrilho que precisamos apenas seguir com
a esperança de que quando chegarmos lá tudo vai melhorar. E isso tudo sabendo que essa
promessa não se cumpre — não se cumpre pelo exagero das expectativas que surge para
contrabalancear as autoimposições e também pelo próprio fato de que esses anos de
investimentos não deixam de moldar esse capital humano de certa forma, fazendo com que
qualquer libertação futura (se fosse possível) exigisse um esforço de não menor força. Nesse
sentido, o acadêmico em formação parece ser um caso exemplar do trabalhador transformado
em capital humano.
Entendemos, então, como o futuro passa a ser cancelado. Tudo é meticulosamente
planejado de antemão, como nos exemplos que Foucault discute ao falar dos investimentos
educacionais.187 Os filhos se tornam futuras fontes de rendas que devem ser preparadas por
meio dos estímulos corretos, dos melhores colégios, aulas de piano, balé, futebol, o cuidado
para que uma boa carreira seja escolhida pelo filho, um bom cursinho para entrar na faculdade
pública de excelência. Vê-se que a colonização do tempo vai muito além do aqui e agora e
torna as nossas ações cada vez mais homogêneas por uma aversão ao risco que provoca a
concepção de nós mesmos — e de nossas extensões, como filhos — enquanto capital a ser
investido.

Agora que temos uma visão mais clara da situação presente, podemos entender o que essa
situação traz de novo para a dinâmica temporal produzida pelo capitalismo. A consequência
relativa à experiência temporal desse novo tipo de sujeito e sociedade que passam a ser
produzidos188 é que o risco, de certa forma, é transferido para os indivíduos. Se antes os riscos

186
Não surpreende os livros de auto-ajuda empresarial que inundam o mercado editorial e os cursos de coaching
que são oferecidos diariamente em spams nos nossos emails.
187
Cf. Idem, ibidem, pp. 315-316
188
A forma como essa produção se opera precisaria ser objeto de uma outra pesquisa, mas pode-se olhar, e o
próprio Foucault aponta para esse ponto, como a cultura e os valores empresariais começam a penetrar os locais
clássicos de formação dos sujeitos a partir da modernidade: a família, os colégios, os templos religiosos. Isso
72

de qualquer empresa econômica se encontravam nas mãos dos donos do capital, a virada
neoliberal da economia pode ser caracterizada como a transferência desse risco para os
próprios indivíduos — concretizando assim a relação credor-devedor no presente
neoliberalismo que será explorada por Lazzarato.189 Essa relação de poder que se estabelece
entre os credores e os devedores acaba levando o empresário-de-si a se conformar a um certo
modelo de vida que delimita de antemão as suas possibilidades. A dívida e a necessidade de
empreender não só acabam determinando a sua vida presente, mas impõem contornos firmes
(pois a dívida é não só econômica mas moral, emitindo sempre um “tu (não) deves”) sobre o
que ele pode ou não fazer.
Se conseguimos aceitar o diagnóstico de Foucault de que a moral protestante determinava
a disciplinarização da postura do trabalhador no início da revolução industrial, é preciso ficar
atento à transformação que instaura um ideal (moral) de empresário de si no momento em
que a forma-empresa se torna paradigmática nas sociedades contemporâneas. A dominação
temporal que era presente de maneira ampla ao longo do capitalismo a partir da imposição do
trabalho assalariado e disciplinado é transformada na medida em que o trabalhador se
converte em capital humano. Se, queremos crer, continua uma dominação temporal, o que
esse novo giro na porca do capitalismo opera é uma intensificação da dominação ao transferir
o local em que recai risco das operações capitalistas. Se no período pré-neoliberal ainda
encontramos uma espécie de segurança que possibilita a criação de planos ou de projetos (e
mesmo de um éden pós-trabalho em vida, uma exausta aposentadoria no contexto do welfare
state) garantida pela separação — ainda que borrada pelas intervenções biopolíticas — entre
um período de produção e outro de reprodução social, a nossa experiência do tempo – ou seja,
o próprio tempo – se dissolve absolutamente no mar das constantes demandas e exigências
que alguém precarizado precisa encarar diariamente. Perdemos a relativa segurança que o
trabalho assalariado nos dava, mas não da forma que queríamos. O que ocorreu foi que o
nosso tempo acaba sendo, cada vez mais, colonizado por completo. Não mais somos
simplesmente dominados de 9h-18h: agora somos obrigados a responder emails urgentes na
manhã de um sábado. Mas isso não é tudo, pois no momento em que nos tornamos
empresários de si, a capacidade dessa empresa que somos recai inteiramente sobre nós, nos
forçando a constantemente investir nela sem ter garantia de qualquer retorno — que no caso
seria justamente uma renda que nos permite sobreviver. O risco impõe necessariamente a

sem mencionar o mercado de auto-ajuda que dominam as listas de best-seller e cujas máximas e clichês
preenchem cada vez mais as redes sociais. Foucault remete brevemente a essas questões em seu curso. cf.
Foucault, Michel, op. cit., pp. 312-317
189
Cf. Lazzarato, Maurizio, op. cit.
73

dissolução do horizonte futuro e qualquer expectativa de aventura em nome de uma


preservação do presente e de um capital que precisa ser constituído agora. No momento em
que esse risco é transferido para nós (uma operação par excellence do capitalismo como a
proliferação dos MEIs e a paulatina aceitação resignada de que o mercado informal indicam),
somos roubados imediatamente da noção de futuro pela simples necessidade de garantir
retornos imediatos que consigam garantir a nossa reprodução físico-biológica — isso quando
é possível efetivamente garantir condições mínimas — e o pagamento das prestações do
cartão. Endividamento, trabalhos-temporários, freelas, são todas operações que passam todo o
risco para o trabalhador e que nesse movimento acabam limitando as suas capacidades de
experimentar uma alternativa a esse mundo — isso sem contar os efeitos psicológicos que
passam a constituir um sujeito cada vez mais ansioso e preocupado. Um horizonte de
expectativas com um não experimentado seria um luxo para esse tipo de ser humano.
74

I.3. A CRISE ECOLÓGICA E A DESTRUIÇÃO DO FUTURO

Trauma is a body. Ultimately - at its pole of maximum


disequilibrium — it's an iron thing. At MVU they call it
Cthelll: the interior third of terrestrial mass, semifluid
metallic ocean, megamolecule, and pressure-cooker beyond
imagination. It's hotter than the surface off the sun down
there, three thousand clicks below the crust, and all that
thermic energy is sheer impersonal nonsubjective memory of
the outside, running the plate-tectonic machinery of the
planet via the conductive and convective dynamics of silicate
magma flux, bathing the whole system in electomagnetic
fields as it tidally pulses to the orbit of the moon. Cthelll is
the terrestrial inner nightmare, nocturnal ocean, Xanadu: the
anorganic metal-body trauma-howl of the earth, cross-
hatched by intensities, traversed by thermic waves and
currents, deranged particles, ionic strippings and gluttings,
gravitational deep-sensitivities transduced into nonlocal
electromesh, and feeding vulcanism ... that's why plutonic
science slides continuously into schizophrenic delirium.
D. C. Barker, Barker speaks

O tempo do capital não é, porém, a única forma que nos vemos impedidos de ter uma
experiência do futuro. Se as forças do capital se mostram como fortes o suficiente para
capturar a possibilidade do futuro, a catástrofe climática que estamos vivendo apresenta um
tipo de aceleração que provoca efeitos de uma dimensão totalmente outra sem que essas duas
acelerações estejam desconectadas. No capitalismo a capacidade de agência política é
severamente limitada ao ser sobredeterminada pelas relações de produção capitalistas — a
dominação social pelo tempo —, criando uma situação em que perdemos controle do nosso
futuro. Continuamos seguindo em frente, mas rumo a um futuro que não parece ser o nosso. A
crise climática é uma criatura de uma natureza completamente diferente já que ela nos traz
com bastante clareza a possibilidade de nossa extinção. Se os ciclos do Capital nos fazem
75

enxergar um mundo em que somos cada vez mais escravizados e empobrecidos, as catástrofes
naturais nos apresentam uma realidade que pode nos excluir completamente.
É preciso deixar claro, antes de começar, que a última coisa que queremos aqui é
transformar o tema da catástrofe climática num espaço de autocomiseração. Se a situação é de
fato extremamente problemática — não à toa estamos botando ela como uma das forças que
altera a nossa relação com o futuro —, isso não significa que nada mais faz sentido e que só
resta esperar a morte chegar. A pergunta que surge neste momento, em que ainda estamos
vivos, é sobre como viver diante da instabilidade radical que se anuncia, pois ao mesmo
tempo em que conduzimos nossa vida como se houvesse um futuro de direito, este cada vez
menos parece existir de fato. Dito isso, o nosso interesse, neste primeiro momento, é entender
como esse acontecimento ecológico afeta a nossa experiência do futuro.

Antes de falarmos da crise precisamos falar da estabilidade que a precedeu para podermos
dimensionar o que ela significa — ainda que essa estabilidade se mostre, como veremos,
enganadora. Em “Estratos do tempo”, Koselleck ensaia descrever a maneira como a nossa
experiência do tempo é fruto do jogo entre diversos estratos de tempo que funcionam em
diferentes escalas a partir do tipo de repetição que ele envolve. Identifica-se assim estratos
relativos às repetições diárias de nossas vidas, estratos que se constituem a partir de repetições
institucionais que são mais amplo que nossos cotidianos, estratos relacionados ao tempo dos
governos que ocupam o poder ou mesmo, de modo ainda amais amplo das formas de poder
que vão muito além do tempo das vidas humanas. O que interessa aqui, porém, é um estrato
de outra ordem. Vemos nesse texto o autor mencionar, sem elaborar demais, um estrato que
condicionaria e acolheria (porque os transcenderia em escala) os acontecimentos não só das
nossas vidas singulares, mas os que envolvem estruturas coletivas e políticas (que podem ter
uma duração maior que a de uma vida humana). Trata-se do estrato propriamente geológico.
A razão disso seria o seu caráter estável e de longuíssima duração:

A contínua reprodução biológica é somente um caso simples e ilustrativo que age além das unidades
geracionais. Trata-se aqui daquele ciclo recorrente de concepção, nascimento e morte, que acolhe
todas as histórias de amor e de ódio, todos os conflitos geracionais. Esse ciclo se repete em
determinados ritmos, os quais nunca se alteraram substancialmente do ponto de vista biológico, desde
que a humanidade existe, no decurso de mais ou menos 2 milhões de anos.190

190
Koselleck, Reinhart. Estratos do tempo, 2014, pp. 24-25
76

Segundo Koselleck é a presença de uma natureza enquanto repetição estável que


permitiria uma orientação no tempo e que nos possibilitaria entender os acontecimentos da
nossa vida de um ponto de vista histórico. Não estamos muito longe da maneira como Dipesh
Chakrabarty, focando na natureza, descreve a maneira como o historiador tradicional depende
da pressuposição de uma estabilidade da natureza como fundo para figurar as ações livres dos
humanos. Segundo ele, é um lugar comum na historiografia a ideia de que “o ambiente
humano se modificava, mas o fazia de forma tão lenta que relacionar a história humana com
seu entorno assumia uma característica quase atemporal, o que excluía essa relação do
domínio da historiografia.”191 Vê-se, então, que uma separação entre a história natural e a
história humana seria fundamental para a maneira como o homem moderno ocidental
experimentava o tempo, já que seria contra essa natureza estática que a história do homem
livre (e por isso móvel)192 se desenrolaria.
O problema é que, como a crise climática vem nos mostrando, não podemos nos fiar na
estabilidade da natureza. Não se pode, porém, culpar demasiadamente os historiadores do
passado, como reconhece Chakrabarty, pois

em termos climatológicos atuais, poderíamos dizer que Stalin, Braudel e outros que partilhavam dessa
suposição não tinham acesso a uma ideia que hoje se encontra difundida na literatura sobre
aquecimento global, ou seja, a noção de que o clima, e consequentemente todo o meio ambiente, pode
às vezes atingir um ponto máximo a partir do qual sua condição de pano de fundo lento e
aparentemente atemporal se transforma com uma velocidade tamanha que só pode ser desastrosa aos
seres humanos.193

A ideia de um pano de fundo que começa a se mover abala a experiência moderna do


tempo pois implica dizer que a natureza não tem apenas um papel passivo na nossa história.
Só isso já nos obrigaria a repensar a relação entre a história natural (uma história que se
transformaria de maneira lenta demais para ser percebida e experimentada pelos homens) e a
história humana. Mas isso não é tudo, já que, como a bibliografia exaustiva sobre o assunto
indica, os principais responsáveis pela transformação das condições climáticas são os próprios
191
Chakrabarty, Dipesh. “O clima da história: quatro teses”. Sopro, vol. 91, p. 8. jun. 2013. Disponível em:
<http://culturaebarbarie.org/sopro/n91s.pdf>. Acesso em: 14 set. 2017.
192
“Como combinar a diversidade histórica e cultural humana com a liberdade humana constitui uma das
questões centrais subjacentes às histórias humanas escritas no período de 1750 até os anos da atual globalização.
A diversidade, como Gadamer salientou com referência a Leopold von Ranke, era uma figura de liberdade na
imaginação do historiador sobre o processo histórico. (…) poderíamos dizer que a liberdade foi o tema mais
importante das narrativas escritas da história humana nestes duzentos e cinquenta anos.” (Idem, ibidem, pp. 10-
11)
193
Idem, ibidem, p. 8
77

humanos. É com isso em mente que Chakrabarty dirá que “a mansão das liberdades modernas
repousa sobre uma base de uso de combustíveis fósseis em permanente expansão. A maior
parte de nossas liberdades até hoje consumiu grandes quantidades de energia.”194 A história
humana nunca foi desconectada da história natural195. A ameaça que sentimos hoje em dia nos
permite perceber que o que encarávamos como estabilidade condicionante era antes um frágil
equilíbrio.

É a partir da teoria de gaia elaborada por James Lovelock em parceria com Lynn
Margulis, que foi possível enxergar pela primeira vez (ao menos pelos olhos da nossa ciência
moderna) a terra como esse frágil equilíbrio dinâmico. Como diz Alyne Costa,

Gaia é o nome dado à complexa rede de relações vigentes entre os organismos, os oceanos, a
atmosfera e as rochas de superfície, os quais compõem uma espécie de sistema que regula as
condições físicas e químicas para favorecer, ao máximo, a manutenção das formas de vida existentes
(…). O planeta, neste sentido, se comportaria como um sistema autorregulador, cujo funcionamento
dependeria da interação entre agentes orgânicos e inorgânicos. Essa visão se opõe à noção
epistemológica tradicional de que a terra seria um espaço inerte onde a vida se desenrola: em vez
disso, ela age como um ser dinâmico capaz de responder fisiologicamente aos estímulos, e cuja
estabilidade climática depende das relações estabelecidas entre as partes que a compõem.196

Essa visão de Lovelock é vertiginosa, pois a partir dela começamos a ver que não é tanto
que os seres vivos se adaptam à terra, mas que as condições que permitem a vida são
constituídas num jogo sem fim entre os próprios seres orgânicos e inorgânicos. Não espanta a
hipótese de Lovelock ser recebida com ceticismo. Sem considerar os entraves envolvidos no
processo de produção de verdades científicas, podemos dizer que tem a ver também com a
produção de uma quarta ferida narcísica no ser humano197. Aceitar que a terra é um work-in-
progress nos retira uma segurança, pois ela passa a ser concebida como um sistema aberto (…

194
Idem, ibidem, p. 11
195
Não precisávamos esperar os avisos de Davi Kopenawa sobre a iminente queda do céu para entender que a
nossa liberdade se apoiava sobre o mundo material. No final do século XVIII Schelling já nos avisava que o
sujeito transcendental só podia ser produzido no interior de uma história natural. Não à toa a sua definição da
filosofia como “história natural da nossa mente” (Schelling, Friedriech Wilhem Joseph. Ideas for a philosophy of
nature. Cambridge: Cambridge University Press, 1988. p. 30. tradução minha)
196
Costa, Alyne. Guerra e paz no Antropoceno: uma análise da crise ecológica segundo a obra de Bruno
Latour. Rio de Janeiro: Editora Autografia, 2017. p. 90
197
Lembrando aqui das três feridas narcísicas que Freud descreve em sua obra: 1. A descoberta do caráter
heliocêntrico do sistema solar (por Copérnico). 2. A teoria da evolução de Darwin e a maneira como ela acaba
78

à catástrofe?). Se digo que isso pode ser considerado uma “quarta ferida narcísica” é porque a
terra nem foi feita para nós e nem está terminada198. E por se tratar de um jogo entre os
diversos seres que estão na terra, qualquer alteração drástica nesses componentes (como, por
exemplo, o desmatamento em massa de florestas ou a acidificação dos oceanos) não ocorre
sem uma série de reverberações. Segundo Costa, “apesar de ser capaz de se ajustar a
mudanças climáticas em busca de estabilidade, em caso de alterações muito severas Gaia
pode mudar o ambiente, encontrando estabilidade em outras condições.”199 Como se trata de
um sistema complexo, porém, essas alterações podem ser bastante perigosas, pois “sua
‘busca’ por estabilidade transcende qualquer cuidado privilegiado em relação à nossa espécie
— somos um dos componentes de seu sistema de autorregulação e, por isso mesmo, nada
impede que o novo estado de equilíbrio encontrado seja desfavorável aos humanos.”200 A
qualquer momento ela pode, em seu movimento de ajuste, se tornar completamente inóspita
aos humanos. Déborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro parecem encaminhar a sua
leitura de Lovelock nessa direção ao falar sobre como ele

assumiu um ponto de vista exterior à Terra e, olhando de volta para esta, enxergou algo que não
deveria estar ali (aqui), um apax cosmológico: a estabilização da atmosfera terrestre com
concentrações imensamente improváveis de certos gases fundamentais à vida. E é justamente porque a
vida está aqui, embora não “devesse” estar, que as mudanças climáticas são um acontecimento-para-
nós.201

A terra, esse fundo inerte que acreditávamos poder servir de apoio para todas as nossas
empreitadas (como um cenário fixo de um desenho animado), nunca deixou de ser um sistema
autorregulado em movimento constante que poderia não estar ali. Não custa lembrar também
a descrição de Isabelle Stengers sobre esse equilíbrio:

Aquilo de que dependemos e que foi com frequência definido como “dado”, o enquadramento
globalmente estável de nossas histórias e de nossos cálculos, é produto de uma história de coevolução,
cujos primeiros artesãos e verdadeiros autores permanentes foram as inúmeras populações de micro-
organismos. E Gaia, “planeta vivo”, deve ser reconhecida como um “ser”, e não assimilada a uma
soma de processos, no mesmo sentido em que reconhecemos que um rato, por exemplo, é um ser: ela é
dotada não apenas de uma história, mas também de um regime de atividades próprio, oriundo das

com a ideia de que o homem seria um ser superior. 3. A própria teoria freudiana do inconsciente que mostra
como o homem não é acionista principal nem da sua própria subjetividade.
198
E muito menos “se termina”. Agradeço ao Pedro Gomlevsky por ajudar a afiar essa ideia.
199
Idem, ibidem.
200
Idem, ibidem, p. 91
201
Danowski, Déborah; Viveiros de Castro, Eduardo. Há mundo por vir? Florianópolis: Cultura e Barbárie,
2014. p. 57
79

múltiplas e emaranhadas maneiras pelas quais os processos que a constituem são articulados uns aos
outros, a variação de um tendo múltiplas repercussões que afetam os outros. Interrogar Gaia é, então,
interrogar algo coeso, e as questões dirigidas a um processo particular podem pôr em jogo uma
resposta, às vezes inesperada, do conjunto.202

Esse fundo longe de ser estático, por ser um complexo emaranhado de processos, contém
em si o risco de se transformar a tal ponto que nós, humanos (ou mesmo viventes) não
conseguiríamos mais sobreviver nele.203
Se durante um tempo foi possível considerar a Terra como um fundo imutável isso se deu
não só pelo fato de que esse sistema se manteve relativamente estável, mas pela ausência de
meios adequados para perceber as complexas relações que o compõem. As suas
transformações ocorriam sempre em um nível em que não eram visíveis, de modo que não nos
permitiam ter qualquer experiência delas. Não por serem pequenas demais, mas, pelo
contrário, por serem transformações em escalas que excedem a nossa capacidade de
percepção, isto é, transformações em escalas globais que atravessam longas durações
temporais204. Essa incapacidade de ver a nossa condição material, isto é, o nosso planeta,
como algo dinâmico é o que estranhamente acabou abrindo a possibilidade para que essas
condições viessem à luz, ainda que não mais como condições sempiternas, mas como objeto
de um estranho luto. Se por um lado a tentativa de suprir (ou suprimir) a nossa finitude pelo
desenvolvimento técnico e econômico foi o que nos deu acesso às nossas condições materiais,
o que descobrimos quando tivemos esse acesso é que o custo para tal descoberta era o
precário equilíbrio que condiciona a nossa vida.

202
Stengers, Isabelle. No tempo das catástrofes. São Paulo: Cosac Naify, 2015. p. 38
203
Uma boa descrição dessa ferida pode ser encontrada aqui (mas no texto como um todo, também): “A crise se
instala quando se perde de vista o caráter relativo, reversível e recursivo da distinção entre ambiente e sociedade.
Paul Valéry constatava sombrio, pouco depois da Primeira Guerra Mundial, que “nós, civilizações [européias],
sabemos agora que somos mortais”. Neste começo crepuscular do presente século, passamos a saber que, além
de mortais, “nós, civilizações”, somos mortíferas, e mortíferas não apenas para nós, mas para um número
incalculável de espécies vivas. Nós, humanos modernos, filhos das civilizações mortais de Valéry, parece que
ainda não desesquecemos que vivemos da vida, que pertencemos ao mundo e não o contrário. Já soubemos
disso; algumas civilizações ainda sabem disso; muitas outras, várias das quais matamos, sabiam disso. Mas hoje,
começa a ficar urgentemente claro até para “nós mesmos” que é do supremo e urgente interesse da espécie
humana abandonar uma perspectiva antropocêntrica.” (Viveiros de Castro, Eduardo. “Desenvolvimento
econômico e reenvolvimento cosmopolítico:
da necessidade extensiva à suficiência intensiva”. Sopro, vol. 51, maio 2011. Disponível em:
<http://www.culturaebarbarie.org/sopro/outros/suficiencia.html#texto1>. Acesso em: 14 set. 2017.
204
Cf. sobre isso o conceito de hiper-objeto em Morton, Timothy. Hyperobjects: philosophy and ecology after
the end of the world. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2013.
80

A partir da modernidade — entendida como uma série de práticas de extração de recursos,


produção de bens, desenvolvimento urbano etc.205 — a humanidade passou a se acomodar
com folga nessas condições naturais e construiu por cima dessa natureza “inerte” o seu
futuro206. A expectativa de que nada poderia transformar as condições necessárias da
existência servia como ponto de apoio para tentar realizar os desenvolvimentos técnicos que,
em tese, tornariam realidade os sonhos das inúmeras utopias que ocuparam a cabeça dos
homens europeus a partir da revolução científica. A natureza inerte aparentava, nesse
momento pré-crise, ser condição sine qua non do futuro do homem moderno. Ela era, para
retomar um par de conceitos koselleckiano, o sólido espaço de experiência a partir de onde
poderíamos nos projetar em direção a um horizonte de expectativa.
Não deixa de ser irônico, portanto, que essa crença numa ilusória rigidez do fundo foi o
que permitiu, séculos depois o surgimento de uma capacidade técnica e científica que
revelasse que o que acreditávamos ser um simples cenário era, na verdade, tão móvel como
nós. O equilíbrio, que deu espaço tanto para o surgimento da humanidade como à
possibilidade dela continuar existindo, não aguentou o peso desse desenvolvimento e agora se
encontra ameaçado. Foi preciso destruir o frágil equilíbrio que nos permitia viver para
descobrir que vivemos (vivíamos?) nessa fragilidade.
É também preocupante, to say the least, perceber que aquilo que condiciona a nossa vida
e que serve de apoio para a nossa relação com o futuro materialmente pode mudar a qualquer
hora (e está mudando). Nosso horizonte de expectativa (uma certa experiência do futuro)
subitamente entra em colapso e torna-se difícil se orientar e agir. Estamos sentindo na pele as
consequências da crença (tão longa) na perenidade das nossas condições materiais de
existência.

A transformação desse equilíbrio, que no momento da sua descoberta é revelado como


algo que está em vias de se dissolver, é a catástrofe climática que nos assombra. Dessa forma
é fundamental procurar dimensionar corretamente o que isso implica para nós. Como diz
Chakrabarty, o momento em questão é um em que os seres humanos passam ter capacidade de

205
Pensamos aqui, fundamentalmente, no modo de organização social que começa a se constituir na Europa
mediterrânea dos séculos XIV e XV e que acabará se tornando no capitalismo global e que tende a arrasar de
diversas maneiras a natureza.
206
Talvez seja possível ver nesse movimento o desenvolvimento material do desencantamento do mundo que se
consolidaria a partir de Descartes e seu mecanicismo.
81

afetar em escalas nunca antes alcançadas os sistemas complexos de interações que constituem
as nossas condições de existência:

Chamar seres humanos de agentes geológicos é ampliar nossa imaginação acerca do humano. Os seres
humanos são agentes biológicos, coletivamente e também como indivíduos. Sempre o foram. Nunca
houve um ponto na história humana em que os seres humanos não fossem agentes biológicos. Mas
apenas histórica e coletivamente podemos nos tornar agentes geológicos, isto é, assim que alcançamos
números e inventamos tecnologias que sejam de uma escala suficientemente grande para causar
impacto no próprio planeta. Caracterizar-nos como agentes geológicos é atribuir-nos uma força de
escala igual àquela liberada nas vezes em que houve extinção em massa das espécies. Parece que
estamos passando por essa fase.207

A resposta a esse tipo de transformação que somos agora capazes de provocar é, porém,
catastrófica, já que ser capaz de afetar esse equilíbrio não significa ser capaz de controlá-
lo208. Se não conseguimos controlar as alterações que provocamos nesse equilíbrio, tampouco
os efeitos disso são talhados à nossa medida. Quem está correndo risco nesse tipo de situação
não é Gaia. Como diz Stengers,

a própria Gaia não está ameaçada, diferentemente das inúmeras espécies vivas que serão varridas pela
anunciada mudança de seu meio, com uma rapidez sem precedente. Os inúmeros micro-organismos
continuarão, com efeito, a participar de seu regime de existência, o de um “planeta vivo”209

É por isso que “a resposta de Gaia seria possivelmente desmesurada em relação ao que
nós fizemos, um pouco como um dar de ombros provocado pelo leve toque de um
mosquito.”210 Ela é tanto “cega aos danos que provoca”211 como “não nos pede nada (…) é
indiferente à pergunta ‘quem é responsável’.”212 É por isso que chamar esse evento
catastrófico de “a intrusão de Gaia” (este é o vocabulário de Stengers) não é dizer que “antes
não havia Gaia”, mas que ela não se fazia sentir ou experimentar. Diz também que lidar com
essa situação — a fragilidade das nossas condições — é agora uma preocupação de primeira
ordem. Mas, como Stengers faz questão de dizer, a coisa se complica, porque Gaia é também
o nome de um mistério que se impõe em nossas vidas. Devido a nossa dificuldade em
dimensionar esse tipo de evento (apesar de sabermos que ele de fato está acontecendo), é

207
Chakrabarty, Dipesh, op. cit., pp. 9-10
208
As inúmeras revisões nas previsões sobre o clima já indicam que mal dominamos as ferramentas de
diagnóstico. As ciências que lidam com essa área estão lidando com fenômenos de enorme complexidade, de
modo que para além da certeza de que estamos fodidos é difícil dizer algo preciso sobre o futuro.
209
Stengers, Isabelle, op. cit., p. 40
210
Idem, ibidem, p. 39
211
Idem, ibidem, p. 37
82

como se ela fosse uma espécie de “transcendência” — não algo superior, mas simplesmente
algo que nos transcende pelo fato de que não conseguimos compreender integralmente esse
fenômeno213. Nas palavras da autora:

A intrusão do tipo de transcendência que nomeio Gaia instaura, no seio de nossas vidas, um
desconhecido maior, e que veio para ficar. E, aliás, talvez seja isto o mais difícil de conceber: não
existe um futuro previsível em que ela nos restituirá a liberdade de ignorá-la; não se trata de “um
momento ruim que vai passar”, seguido de uma forma qualquer de happy end no sentido pobre de
problema resolvido”. Não seremos mais autorizados a esquecê-la. Teremos que responder
incessantemente pelo que fazemos diante de um ser implacável, surdo às nossas justificativas. Um ser
que não tem porta-voz, ou, antes, cujos porta-vozes estão expostos a um devir monstruoso.214

Algo que fica seriamente comprometido — e é essa a nossa questão principal aqui — é o
regime temporal moderno que precisava desse solo (literalmente e figurativamente) para se
mover em direção a um futuro. Mas antes de desenvolvermos mais a maneira como essa
temporalidade é posta em cheque pela catástrofe climática, precisamos entender um pouco
mais sobre esse “devir monstruoso” que está acontecendo. Um devir que nos conduziu para
essa situação (ou acontecimento?) de uma nova era geológica que, por sua vez, tem sido
chamada, não sem muita discussão ou divergência, de Antropoceno215.

Antropoceno o nome que Paul Crutzen e Eugene Stoermer propuseram216 para designar
uma nova época geológica distinta do Holoceno. Sem entrar em detalhes na discussão sobre
quando exatamente se deu a passagem do Holoceno para o Antropoceno, parece ser consenso
que ela está relacionada ao desenvolvimento industrial que ocorre a partir do século XIX. Os

212
Idem, ibidem, p. 40
213
“A discussão sobre a crise das mudanças climáticas pode, assim, produzir afeto e saber sobre o spassados e
futuros coletivos humanos que operam nos limites da compreensão histórica. Experimentamos efeitos
específicos da crise, mas não o fenômeno como um todo.” (Chakrabarty, Dipesh, op. cit., p. 21)
214
Stengers, Isabelle, op. cit., p. 41
215
Não nos interessa nem um pouco entrar nessa enorme querela ou disputa em torno do “nome” antropoceno.
Se, certamente, algumas discussões estão interessadas em de fato “renomear” para retraçar os contornos do
conceito, nos permitindo ampliar a nossa compreensão desse evento, isso não aconteceu sem que uma cottage
industry surgisse no entorno dessa disputa, onde uma série de acadêmicos procuram “provar” que o seu “termo”
é o mais adequado. Não temos, portanto, interesse em entrar nessa discussão, embora concordemos totalmente
com a ideia de Stengers de que pode haver um interesse nessas renomeações pois, como ela mesmo diz, “nomear
não é dizer a verdade, e sim atribuir àquilo uqe se nomeia o poder de nos fazer sentir e pensar no que o nome
suscita.” (Idem, ibidem, p. 37)
216
Cf. Crutzen, Paul; Stoermer, Eugene. “The ‘Anthropocene’”. IGBP Newsletter. Vol. 41, maio 2000.
Disponível em:
83

dois geólogos eles próprios sugerem, em seu texto inicial que, devido à concentração de gases
de efeito estufa como CO2 e CH4, essa época pode ser considerada um ponto de partida217.

§ É útil aqui lembrar a maneira como Moishe Postone descreve a dinâmica


capitalista pois ela esclarece o porquê do desenvolvimento industrial ter um
papel chave na entrada dessa nova era que é o Antropoceno. Como
discutimos no capítulo anterior, a produção de riqueza no capitalismo se dá
por meio da produção de valor (ou mais-valor). Se, com Marx, vemos que o
acúmulo de valor está associado ao dispêndio de tempo de trabalho abstrato,
só haveriam duas formas de aumentar a produção do valor: 1) aumentando as
horas de trabalho (mais-valor absoluto) ou 2) aumentando a produtividade
em diminuindo o tempo de produção médio de uma mercadoria (mais-valor
relativo). Já que a partir do desenvolvimento das lutas trabalhistas torna-se
mais difícil extrair o mais-valor absoluto, o aumento de produtividade
acabou sendo o espaço encontrado para se conseguir extrair e produzir mais-
valor. O que resulta disso é que, para aumentar a produção de valor,
aumenta-se a produção de riqueza material, já que ela vai se tornando mais e
mais eficiente. Mas, devido ao treadmill effect presente na dinâmica do
Capital218 , “o volume cada vez maior de riqueza material produzido no
capitalismo não representa níveis proporcionalmente altos de riqueza social
na forma de valor.”219
Instaura-se uma tendência de aumentar desenfreadamente a produção de
riqueza material para conseguir produzir mais-valor. Como diz Postone,
“uma das consequências implícitas dessa dinâmica particular — que gera
mais crescimento na riqueza material do que no mais-valor — é a aceleração
da degradação ambiental.”220 Existiria então uma relação intrínseca entre a
destruição da natureza tal como começamos a ver na era moderna e o
momento em que as formações sociais começam a ser determinadas pela
forma-mercadoria. Dessa forma,

Na análise de Marx, a crescente destruição da natureza no capitalismo


não se dá simplesmente em função de a natureza ter se tornado um
objeto para a humanidade; mas é, sobretudo, um resultado do tipo de
objeto em que a natureza se tornou. As matérias-primas e os produtos,
de acordo com Marx, são portadores de valor no capitalismo, além de
serem elementos constitutivos da riqueza material. O capital produz
riqueza material como meio de criar valor. Assim, ele consome
natureza material não só como substância da riqueza material, mas

<http://www.igbp.net/download/18.316f18321323470177580001401/1376383088452/NL41.pdf>. Acesso em:


14 set. 2017
217
Recentemente, porém, como apontam Danowski e Viveiros de Castro, “Crutzen disse estar mais inclinado a
sugerir os testes nucleares como marcando o início do diagnóstico (o ‘golden spike’) do Antropoceno.”
(Danowski, Déborah; Viveiros de Castro, Eduardo, op. cit., p. 16
218
Cf. capítulo anterior.
219
Postone, Moishe, op. cit., p. 360
220
Idem, ibidem.
84

também como meio de alimentar sua própria expansão – isto é, como


um meio de efetuar a extração e a absorção do maior volume possível
de tempo excedente de trabalho da população trabalhadora.
Quantidades cada vez maiores de matérias-primas devem ser
consumidas mesmo que o resultado não seja um aumento proporcional
na forma social da riqueza excedente (mais-valor). A relação entre
homem e natureza mediada pelo trabalho torna-se um processo de
consumo de mão única, em vez de uma interação cíclica. Configura-se
como uma transformação acelerada de matérias-primas
qualitativamente particulares em “material”, em portadores
qualitativamente homogêneos de tempo objetivado.221

A natureza é objetificada e se torna matéria-prima para ser incorporada ao


processo de produção material. Mas, como falamos, já que não há uma
relação de proporcionalidade entre produção de riqueza material e valor, é
preciso sempre aumentar a produção de riquezas materiais para se obter mais
valor. O que se segue disso é que há também uma tendência em aumentar
cada vez mais a destruição da natureza para atender às demandas do Capital
— o ritmo e a temporalidade própria dos recursos naturais é submetido ao
ritmo e à temporalidade capitalista. Nesse sentido, pode-se dizer, portanto,
que o tipo de temporalidade específica que o capitalismo produz acaba por
nos conduzir ao desequilíbrio temporal que caracterizará o Antropoceno.

Se, porém, essa “nova época” é associada geralmente ao aumento de temperatura (algo
que já seria devastador o suficiente), a catástrofe climática é apenas a face mais visível (ou no
caso, notável) da desregulação de uma série de processos biofísicos que têm sido essenciais
para a nossa sobrevivência (não falo aqui apenas dos humanos)222. Conforme descrevem
Danowski e Viveiros de Castro,

Em setembro de 2009, a revista Nature publicou um número especial em que diversos cientistas,
coordenados por Johan Rockström, do Stockholm Resilience Centre, identificaram nove processos
biofísicos do Sistema Terra e buscaram estabelecer limites para esses processos, os quais, se
ultrapassados, acarretariam alterações ambientais insuportáveis para diversas espécies, a nossa entre
elas: mudanças climáticas, acidificação dos oceanos, depleção do ozônio estratosférico, uso de água
doce, perda de biodiversidade, interferência nos ciclos globais de nitrogênio e fósforo, mudança no
uso do solo, poluição química, taxa de aerossóis atmosféricos. Os autores advertiam, à guisa de
conclusão, que “não podemos nos dar ao luxo de concentrar nossos esforços em nenhum desses
[processos] isoladamente. Se apenas um limite for ultrapassado, os outros também correm sério
risco.”223

221
Idem, ibidem, p. 361
222
É bom deixar claro, estamos nos utilizando o nome “catástrofe climática” (entre outras variações parecidas)
como shorthand para a desregulação de todos esses processos. Nesse sentido acabamos compreendendo o clima
de climático mais como o ethos do que (apenas) o objeto das ciências meteorológicas.
223
Danowski, Déborah; Viveiros de Castro, Eduardo, op. cit., p. 20
85

Como falamos, Lovelock nos mostrou que o nosso planeta é fruto de uma série de
processos físicos, químicos, biológicos etc. que interagem e compõem um emaranhado
complexo. Dessa forma esses processos não existiram de maneira isolada. Eles se constituem
e se organizam conjuntamente. É essa conjunção que deu lugar ao equilíbrio específico que
acolheu a humanidade durante milhares de anos — inclusive, é importante lembrar, o grosso
da evolução sociotécnica do homem se deu justamente nesse período de equilíbrio que
estamos desfazendo e que é identificado com a época do Holoceno. A situação é grave e
imprevisível. Como dizem os autores de Há mundo por vir?, “estamos, em suma, prestes a
entrar — ou já entramos, e esta incerteza ela mesma ilustra a experiência de um caos
temporal — em um regime do sistema terra inteiramente diferente de tudo que
conhecemos.”224 É simplesmente impossível e improvável fazer prognósticos aguçados (e
portanto ter uma relação com o futuro), já que “não se trata apenas, portanto, da magnitude
das mudanças em relação a algum valor de referência (…), mas de sua aceleração crescente
— a intensificação da variação e a consequente perda de qualquer valor de referência.”225
Quando falamos acima que a crise climática implicava uma aceleração, era o desequilíbrio
desses processos que tínhamos em mente. Esse desequilíbrio vem provocando variações cada
vez maiores em tempos cada vez menores, a um ponto em que, como dizem Danowski e
Viveiros de Castro, pode-se dizer que

vivemos o tempo dos pontos catastróficos e da reversão das curvas. Recordes cada vez mais
frequentes de temperaturas altas são seguidos por recordes (cada vez menos frequentes?) de
temperaturas baixas. (…) Como falar em desvio da norma se a norma está mudando a cada ano,
restando a anormalidade ela mesma como única norma possível? Mais quente e mais frio, mais seco e
mais úmido, mais rápido e menos rápido, mais sensível e menos sensível, maior e menor refletividade,
mais claro ou mais escuro. A instabilidade afeta o tempo, as quantidades, as qualidades, as próprias
medidas e escalas em geral, e corrói também o espaço. Local e global se sobrepõem e se
confundem.226

224
Idem, ibidem, p. 23 (grifo meu)
225
Idem, ibidem, p. 24
226
Idem, ibidem, pp. 24-25 (grifo meu). Continuam os autores: “a elevação global do nível do mar não se reflete
uniformemente em sua elevação local; as mudanças climáticas são um fenômeno global, mas os eventos
extremos incidem a cada vez em um ponto diferente do planeta, tornando sua previsão e a prevenção de suas
consequências cada vez mais difíceis. Tudo o que fazemos localmente tem consequências sobre o clima global,
mas por outro lado nossas pequenas ações individuais de mitigação parecem não surtir qualquer efeito
observável. Estamos presos, enfim, em um devir-louco generalizado das qualidades extensivas e intensivas que
expressam o sistema biogeofísico da Terra. Não é de admirar que alguns climatologistas já se refiram ao atual
sistema climático como “a fera do clima” (‘the climate beast’). (Idem, ibidem, p. 25)
86

Não à toa os autores descreveram o Antropoceno como o “fim de uma epocalidade”, um


momento em que “o tempo está fora do eixo e andando cada vez mais rápido. (…) É o próprio
tempo, como dimensão de manifestação da mudança (…), que parece estar, não apenas se
acelerando, mas mudando qualitativamente ‘o tempo todo’.”227. Antes a destruição de uma
estabilidade que o começo de uma nova época estável — ou a nova época enquanto
instabilidade, já que passamos pela “experiência de uma decomposição do tempo (o fim) e do
espaço (do mundo)”228. É por isso acredito que uma das mudanças absolutas que esse novo
tempo nos impõe é a ausência de um futuro: “Nosso presente é o antropoceno; este é o nosso
tempo. Mas este tempo presente vai se revelando um presente sem porvir, um presente
passivo, portador de um karma geofísico que está inteiramente fora de nosso alcance
anular.”229 Esse acidente não só nos obriga a encarar a mortalidade da nossa espécie de uma
maneira inédita, como também não nos permite pressupor uma estabilidade em torno do qual
poderíamos construir uma saída. Ao mesmo tempo que estamos acostumados a nos orientar
para o futuro, um horizonte de expectativas, nós não vemos nenhuma maneira de alcançá-lo.

§ Falamos de acidente agora há pouco e acho que cabe se deter um pouco


nessa ideia para esclarecer em que medida o Antropoceno é um ponto de
virada irreversível. É em um pequeno livro de Catherine Malabou que
iremos encontrar um terreno fértil para se pensar a ideia de acidente junto às
transformações climáticas que estão 230 ocorrendo: Ontologia do acidente:
ensaio sobre a plasticidade destrutiva231. O livro, como o subtítulo sugere, é
uma investigação sobre a noção de plasticidade destrutiva. Em livros
anteriores, a autora já havia começado a trabalhar o conceito de plasticidade
para conseguir dar conta da do conceito de forma para além do esquema
hilemórfico que tradicionalmente domina a história da filosofia. Como diz
Moysés Pinto Neto em sua introdução ao livro em questão, “trata-se de um
deslocamento imanente da forma (…) enquanto capacidade de transformação
que não opõe dentro (repetição, familiar) e fora (alteridade, estrangeiro),
mas, desde dentro, é estranho a si mesmo. A plasticidade é a aventura da
forma.”232
Mas, como a autora reconhece no início do livro suas investigações sobre a
relação entre forma e plasticidade não esgotaram totalmente o caráter
plástico da forma. Geralmente, como diz Malabou, “o uso que se faz do
termo ‘plasticidade’ é sempre positivo. Designa um equilíbrio entre a
227
Idem, ibidem.
228
Idem, ibidem, p. 19
229
Idem, ibidem, p. 16
230
Agradecemos ao Moysés Pinto Neto pela indicação de um artigo seu que foi fundamental para fazer essa
ligação entre a obra de Malabou e a questão do Antropoceno.
231
Malabou, Catherine. Ontologia do acidente: ensaio sobre a plasticidade destrutiva. Florianópolis: Cultura e
Barbárie, 2014.
232
Idem, ibidem, p. 5
87

recepção e a atribuição de forma.”233 Haveria um aspecto destrutivo,


explosivo da plasticidade que nem sempre gostaríamos de lembrar, já que “a
destruição [também] tem seus cinzéis de escultor”234. Não se trata, porém, de
uma simples negatividade do plástico que estaria na configuração das
formas, como o avesso necessário para a construção235. “Algo
completamente diferente é a possibilidade da explosão, do aniquilamento
desse equilíbrio, da destruição dessa capacidade dessa forma, dessa força, da
identidade em geral.”236 A plasticidade destrutiva, é uma modificação que
impõe um caráter irreversível nas metamorfoses de um corpo e que não
permite um retorno à forma anterior ao destruir as capacidades de
transformação do corpo destruído — o corpo destruído dá lugar a um novo
corpo sem que ele seja o mesmo. Não à toa um dos exemplos principais que
Malabou trabalha nesse livro é o poeta amnésico que Espinosa comenta em
sua Ética. É um homem que, sem morrer, sofre de uma amnésia a ponto de
perder qualquer conexão com a sua identidade anterior, ao ponto em que não
é possível dizer que é o mesmo homem237 . A noção de acidente, portanto, dá
mais um giro no rabo da porca ao apontar para o caráter arbitrário e exterior
dessa metamorfose: “A plasticidade explosiva desde o choque do acidente
não dá lugar a um outro redimido, mas, a partir de um puro acaso a que se
está sujeito, a alguém totalmente alheio à identidade anterior, um indivíduo
totalmente estrangeiro a si próprio.”238 Devido a um acontecimento que lhe é
exterior, a forma que passa pelo acidente torna-se um outro para si mesmo
pelo fato de que a continuidade de transformações de um corpo é rompida.
Mas justamente devido ao rompimento não resta nenhuma memória do
passado nesse “novo corpo”. Trata-se de uma situação inquietante, pois,
como descreve bem Malabou, o que se tem é “um sofrimento feito de uma
ausência de sofrimento, a emergência de uma forma de ser nova, estranha à
antiga.”239 Sem promessa de reconciliação, redenção ou ressignificação pois
não há como conectar a vida antiga à nova. Como resume bem Pinto Neto
em seu ensaio que relaciona o pensamento de Malabou à crise ecológica, é a
temporalidade de um corpo que é destruída nesse acidente:

A plasticidade destrutiva recusa tudo. Dela, não podemos nos


reapropriar: não se come o trauma, nem se o vomita. Trata-se de um

233
Idem, ibidem, p. 12
234
Idem, ibidem, p. 13. “Ninguém pensa espontaneamente numa arte plástica da destruição. No entanto, esta
também configura. Uma cara quebrada é ainda um rosto, um coto é uma forma, uma psique traumatizada
permanece uma psique.” (Idem, ibidem.)
235
“A escultura de si, como escreve o biólogo Jean Claude Ameisen, supõe uma aniquilação celular, a apoptose,
fenômeno que designa o suicídio programado de células. Assim, para que dedos se formem, é necessário que se
forme também uma separação entre os dedos. E a apoptose produz o vazio intersticial que permite aos dedos
destacarem-se uns dos outros.” (Idem, ibidem.)
236
Idem, ibidem, p. 14
237
Comentaremos esse caso mais adiante na segunda parte da tese.
238
Pinto Neto, Moysés. “Plasticidade Destrutiva, Filosofia Messiânica e Ecologia:
notas sobre o fim do mundo”. Sopro, vol. 81. dez. 2012. Disponível em:
<http://culturaebarbarie.org/sopro/outros/plasticidade.html#.WZSTedPytAZ>. Acesso em: 14 set. 2017.
239
Malabou, Catherine, op. cit., p. 22
88

fora que nem se introjeta nem se rejeita, ele invade e destrói todo
sistema do dentro. Esse possível negativo, no entanto, não se confunde
com o messianismo da destruição; ele não abre futuro possível, não
diz respeito ao “poderia ser de outro modo”.240

Não é difícil ver que esse conceito descreve bem a nossa situação presente.
A Terra (ou Gaia) enquanto um corpo é (ou era) justamente a interação
complexa entre as inúmeras partes que a compõem. Não se trata de um ente
fixo avesso à transformações, mas de um ente que é (ou era) um equilíbrio
dinâmico. O sentido em que o Antropoceno é um acidente é portanto esse
que estamos falando aqui. É um evento exterior à dinâmica-Terra (ainda que
tenha ocorrido de dentro, como um câncer) que destrói o corpo-Terra a um
ponto de não-retorno para as condições que vivíamos antes. A Terra
continua, mas aquele equilíbrio específico que servia de condição para a
nossa existência material foi abalado e rompido (ainda que os efeitos desse
choque não cheguem todos ao mesmo tempo) e passamos a habitar outro
planeta (ainda que não seja simples precisar esse point of no return).
E o que acaba sendo destruído junto com o frágil equilíbrio são todas as
nossas práticas e experiências que dependiam da estabilidade que havia
anteriormente. Concordamos totalmente com Pinto Neto quando ele diz que
“depois da destruição da vida na Terra — ou seja, da aniquilação dos
recursos energéticos que tornaram a vida possível — não há promessa de
reconciliação.”241 É o futuro dos homens modernos que não podemos
recuperar, pois a temporalidade dessa nova Terra é outra — uma em que a
instabilidade (que nós provocamos) dos processos geofísicos ameaça nos
extinguir —, exigindo que nós construamos uma nova relação com o futuro
que não apele para, usando termos do autor mencionado agora, qualquer
filosofia messiânica242.

Hora de abrir mão das utopias do progresso moderno? Acredito que sim, o que não
significa abrir mão do desejo de sobreviver ou mesmo de ter uma vida feliz. Se penso isso é
porque não é possível desfazer os estragos já realizados243. Não é mais possível se apoiar na
promessa de um progresso infinito (e nunca foi possível, apenas acreditamos durante um
tempo que foi) porque a ideia de um futuro que nos aguardaria had we but world enough and

240
Pinto Neto, Moysés, op. cit.,
241
Idem, ibidem.
242
“As filosofias messiânicas do tempo que resta ou da redenção não dão mais conta dessa situação, uma vez
que a finitude extermina o tempo humano enquanto tal. Trata-se do "ponto sem retorno" que não devemos
alcançar, sob pena de que o próprio sentido do nós - qualquer sentido possível, o próprio sentido enquanto tal -
desapareça. A extinção é apenas extinção, não há nenhum significado suplementar para tanto, pois a própria
materialidade da qual depende o significado evapora junto ao material destruído. Ou seja, há aqui um limite a
todo discurso afirmativo, toda tentativa construtiva, criativa ou mesmo salvífica de lidar com essa plasticidade
destrutiva da Terra enquanto tal - lugar diante do qual só resta o negativo, a recusa como alternativa, lugar de
resiliência.” (Idem, ibidem.)
243
Os sonhos da geoengenharia me parecem, inclusive, uma maluquice sem tamanho, já que elas tentariam
reverter os danos que provocamos sem que possamos ter certeza que as tecnologias aplicadas no problema agirão
exatamente conforme os nossos objetivos e não produziram danos colaterais piores ainda.
89

time não se apresenta mais no horizonte. Inclusive esse pode ser visto como um dos principais
efeitos da aceleração desses processos geobiofísicos: a dissolução do horizonte de expectativa
no momento em que o espaço de experiência se revelou móvel244.

Somos obrigados a repensar completamente o que significa se orientar no mundo — mas


não precisamos começar isso do zero. A análise que Danowski e Viveiros de Castro fazem245
sobre como povos ameríndios246 concebem o fim do mundo pode nos ajudar a especular sobre
essa nova vida que inevitavelmente teremos que criar — ainda mais se considerarmos a
experiência que os indígenas têm do fim do mundo (também causado pelos modernos)247.
Segundo os autores, encontraremos como central na práxis de inúmeros povos ameríndios
a “produção regrada de transformações capazes de reproduzir o presente etnográfico (rituais
de ciclo de vida, gestão metafísica da morte, xamanismo como diplomacia cósmica) e assim
de impedir a proliferação regressiva e caótica de transformações.”248 O que me parece
interessante nesse tipo de prática é que há uma pressuposição do movimento como o solo da
realidade249. Se a práxis moderna se constrói sobre a ideia de um fundo estático,
encontraremos entre os ameríndios um fundo, ou estado pré-cosmológico, para retomar uma
expressão dos autores, composto por intensas e incessantes transformações qualitativas que
não se resolvem: “metamorfoses erráticas, plasticidade anatômica, corporalidade
‘desorganizada’”250. A primeira distinção que aparece é que, se por um lado os modernos
parecem conceber a sua ideia de fundo em um sentido espacial — vide conceitos como
“espaço de experiência”, “horizonte de expectativa” —, vemos entre os ameríndios uma

244
Retomando mais uma vez Danowski e Viveiros de Castro: “A bela estratificação sociocosmológica da
modernidade começa a implodir diante de nossos olhos. Imaginava-se que o edifício podia se apoiar apenas
sobre seu andar térreo, a economia, mais eis que nos esquecemos das fundações. E o pânico sobrevém, quando
se descobre que a determinação em última instância era apenas a penúltima.” (Danowski, Déborah; Viveiros de
Castro, op. cit., p. 27)
245
Ou, caso não nos movamos nessa direção, que será criada à despeito dos nossos desejos a partir de algum um
acidente (no sentido que Malabou desenvolve).
246
Estamos longe de querer dar conta da pluralidade de posições entre os diversos povos indígenas ou mesmo de
supor uma homogeneidade. Se nos permitirmos falar com esses termos generalizantes, é por apoiarmo-nos em
trabalhos que nos mostram que é possível identificar e construir uma semelhança entre diversos grupos
ameríndios. Para tanto cf. Viveiros de Castro, Eduardo. Metafísicas canibais. São Paulo: Cosac Naify, 2015.
247
Mas é bom lembrar, o fim do mundo que eles passaram é qualitativamente diferente do “fim do mundo”
implicado na crise climática. Não se trata, então, de “imitar” os índios, mas entender o que está em jogo na
dinâmica fim do mundo. Na catástrofe climática, o buraco é mais embaixo.
248
Danowski, Déborah; Viveiros de Castro, op. cit., p. 92
249
Inclusive, falar em solo já passa uma imagem enganosa, pela fixidez que se encontra nessa imagem.
250
Idem, ibidem, p. 91
90

temporalização do fundo (i.e., do mundo), ele é um momento251. Não à toa a dinâmica que é
recontada nos mitos ameríndios tende a envolver as passagens entre os tempos míticos e os
tempos atuais, entre um momento em que as transformações se davam de maneira incessante
e desordenada e o momento em que elas se estabilizaram. Como dizem Danowski e Viveiros
de Castro,

o mundo tal como nós o conhecemos, ou melhor, o mundo tal como os índios o conheciam, o mundo
atual que vai (ou ia) existindo no intervalo entre o tempo das origens e o fim dos tempos — o tempo
intercalar que poderíamos chamar de “presente etnográfico” ou presente do ethnos, em contraposição
ao “presente histórico” do Estado-nação —, esse mundo é concebido em algumas cosmologias
ameríndias como a época que se iniciou quando os seres pré--cosmológicos interromperam seu
incessante devir-outro (…) em favor de uma maior univocidade ontológica. Encerrando o “tempo das
transformações” — a expressão é usual nas culturas amazônicas — os instáveis antropomorfos das
origens adotaram as formas e hábitos corporais atuais daqueles animais, plantas, rios, montanhas etc.
que eles viriam a ser, como aliás estava prefigurado nos nomes que eles já portavam nesse passado
absoluto.252

Esse tempo pode ser descrito como um tempo acelerado se compreendemos a aceleração
como uma intensificação da variação qualitativa, uma complexificação crescente das misturas
e interações dos corpos.253 Não à toa o que se encontra nos mitos que falam do pré-
cosmológico são homens que se tornam animais, animais que não são distinguíveis de
maneira clara dos homens, uma série de relações que poderiam ser consideradas
interespecíficas, mas que no contexto mítico, um contexto em que as diferenças entre os
corpos ainda não estão externalizada em diferenças discretas, são apenas relações
intraespecíficas254.
Mas isso não é tudo. A práxis indígena nos mostra que, para eles, esse tempo pré-
cosmológico não termina nunca de se atualizar. Há uma constante ameaça de que ele possa
“irromper através dos rasgões que se abrem no tecido do mundo cotidiano (sonho, doença,
incidentes de caça), fazendo os humanos serem violentamente reabsorvidos pelo substrato
pré-cosmológico onde todas as diferenças continuam a se comunicar caoticamente entre

251
A palavra “momento” aqui não deve ser confundida com “instante”. Um momento pode ter nele uma duração
que certamente excede o ponto do instante.
252
Idem, ibidem, pp. 90-91
253
Em um outro contexto, o aceleracionismo de Nick Land, encontramos uma aproximação quando se diz sobre
seu pensamento que “velocidade é importante para a dinâmica cyberpositiva, mas apenas na medida em que ela
efetua mudanças qualitativas (ou melhor, é compreendida como uma quantidade intensiva).” (Ireland, Amy. The
poememenon: form as occult technology. 2017. Disponível em:
<https://www.urbanomic.com/document/poememenon/>. Acesso em 14 set. 2017
91

si.”255 Isso parece indicar que não é que em algum momento o tempo se estabilizou — como
se de uma maneira abrupta ele tivesse se tornado mais lento e menos caótico. Essa
estabilidade foi construída contra a aceleração do mundo.
Essa construção é justamente aquilo que os autores chamam do “esforço de reproduzir o
presente etnográfico”. Mas o que significa esse conceito? Bem, o presente etnográfico faz
referência à ideia de “sociedades frias” (ou lentas) de Claude Lévi-Strauss, que era uma
tentativa de descrever a relação de certos povos não modernos com a temporalidade. É uma
posição diante da passagem do tempo que busca “anular de maneira quase automática o efeito
que os fatores históricos poderiam ocasionar sobre seu equilíbrio e sua continuidade”256. O
presente que elas buscam preservar é, portanto, uma construção, um abrigo temporal dos
perigos inerentes à transformação caótica. É por isso que Danowski e Viveiros de Castro
fazem questão de reforçar que “o presente etnográfico não é de modo algum um ‘tempo
imóvel’”257. Como vimos acima, essas sociedades partem já de uma mobilidade total como
solo (ao contrário da modernidade258): “as sociedades lentas conhecem velocidades infinitas,
acelerações extra-históricas, em uma palavra, devires”259.
O esforço por reproduzir o presente etnográfico pode ser melhor compreendido agora.
Partindo da ideia do mundo como pura aceleração, esse movimento construtivo que se utiliza
de “máquinas folk lentas mas muito eficazes, que funcionam de maneira inteiramente
‘local’”260 (máquinas como “rituais de ciclo de vida, gestão metafísica da morte, xamanismo
como diplomacia cósmica”261) parece querer produzir bolsões de neguentropia, blocos de
estabilidade que ao menos posterguem o caos que não para de assombrar. O que temos aqui é
uma espécie de retro-aceleracionismo262, ou earthcelerationism263 — se entendermos essa

254
“Tudo era humano, mas tudo não era um. A humanidade era uma multidão polinômica; ela se apresentou
desde o início sob a forma da multiplicidade interna, cuja externalização morfológica, isto é, a especiação, é
precisamente a matéria da narrativa cosmogônica.” (Danowski, Déborah; Viveiros de Castro, op. cit., p. 92)
255
Idem, ibidem, p. 93
256
Lévi-Strauss, Claude. O pensamento selvagem. São Paulo: Papirus Editora, 2012. p. 273. A caracterização da
temporalidade moderna vem logo em seguida, quando ele diz que elas acabam “interiorizando resolutamente o
devir histórico para dele fazer o motor de seu desenvolvimento.” (Idem, ibidem.)
257
Danowski, Déborah; Viveiros de Castro, op. cit., p. 93
258
E não deixa de ser irônico isso, considerando que um dos momentos inaugurais da modernidade foi
justamente a descoberta do heliocentrismo e — consequentemente — do fato de que a Terra estava se movendo
em velocidades altíssimas)
259
Idem, ibidem.
260
Idem, ibidem, p. 151
261
Idem, ibidem.
262
Cf. During, Elie. “Ce que nous apprend le rétro-futurisme” in: Bourriad, Nicolas (org.). L’Ange de l’histoire.
Paris: Beaux-arts de Paris éditions, 2013
263
Esse conceito será desenvolvido em outra ocasião, mas a referência óbvia ao gênero de ficção científica
steam-punk que acaba futurizando o passado a partir das potências do futuro vitoriano. No caso, pensamos no
earthcelerationism como uma derivação de um subgênero da ficção científica por vir (?), o earthpunk.
92

aceleração, ao contrário da leitura presente em Há mundo por vir?, como uma posição de
diagnóstico264.
Conforme diz Lévi-Strauss, “o objetivo das sociedades ‘frias’ é fazer de maneira tal que a
ordem de sucessão temporal influa tão pouco quanto possível sobre o conteúdo de cada
uma.”265 O eixo que orienta a prática não é, portanto, a promessa de uma utopia, mas o
próprio presente, a alegria e não o progresso: “trata-se de afirmar o presente etnográfico,
conservá-lo ou recuperá-lo, não de ‘crescer’, ‘progredir’ ou ‘evoluir’. Como professam os
povos andinos em seu hoje célebre lema cosmopolítico, ‘vivir bien, no mejor.’”266

A partir de tudo o que falamos nesse capítulo, temos uma imagem melhor do que significa
a destemporalização pela aceleração no que diz respeito às questões climáticas. Ela não
significa o fim do tempo, mas implica na necessidade de se aceitar o fim de um certo regime
temporal que tinha nele uma certa ideia de futuro como eixo orientador. A aceleração, nesse
contexto material, é, portanto, a instabilidade e a imprevisibilidade dos processos complexos
que constituem as condições da nossa vivência. Essa ausência de regularidade acaba
destruindo a possibilidade de direcionar as nossas vidas para um futuro, pois o espaço de
experiências que o fundamentaria deixou de existir quando nós modernos o destruímos. Mas
essa ausência de perspectivas futuras não significa que não há nada mais. O problema
permanece apenas se, diante dessa crise, permanecemos presos na estrutura temporal
moderna. É preciso construir outra relação com o porvir. L'avenir est comme le reste : il n'est
plus ce qu'il était.

264
Há uma discussão enorme sobre o estatuto epistêmico do conceito de aceleracionismo, uns encarando o
conceito como ferramenta propositiva (“devemos acelerar”) e outros considerando como uma ferramenta de
diagnóstico (“a realidade é/está acelerando”). Não vamos entrar nessa discussão no momento, apenas achamos
importante apontar que há uma ambiguidade em suas formulações iniciais sobre esse caráter epistêmico(embora
não necessariamente com esse nome desde o início) na obra de Nick Land. (Cf. Land, Nick. Fanged noumena.
Falmouth: Urbanomic, 2017) Dessa forma, Danowski e Viveiros de Castro não estão errados em descrevê-lo
como propositivo, ainda mais considerando que os autores que eles discutem em seu livro, sobretudo Nick
Srnicek e Alex William, vão abraçar o conceito sobre esses aspectos. Nós não discordamos da crítica dos autores
sob esses aceleracionistas, e é justamente por isso que nos interessamos por uma leitura mais recente desse
conceito (que vem sendo chamada de aceleracionismo incondicional) e que procura entender a aceleração como
um diagnóstico. Sobre essa leitura recomendamos a leitura de dois textos: Berger, Edmund. Aceleracionismo
incondicional e a questão da práxis: algumas questões preliminares. 2017. Disponível em:
<https://medium.com/materialismos/aceleracionismo-incondicional-e-a-quest%C3%A3o-da-pr%C3%A1xis-
algumas-reflex%C3%B5es-preliminares-edmund-berger-14cad989f5bb>. Acesso em 19 set. 2017 e Garton,
Vincent. Unconditional accelerationism as antipraxis. 2017. Disponível em:
<https://vincentgarton.com/2017/06/12/unconditional-accelerationism-as-antipraxis/>. Acesso em: 20 set. 2017
265
Lévi-Strauss, Claude, op. cit., p. 273
266
Danowski, Déborah; Viveiros de Castro, op. cit., p. 103
93

INTERLÚDIO - TEMPO EM SUSPENSO

Bem diferente é o esgotamento: combina-se o conjunto das


variáveis de uma situação, com a condição de renunciar a
qualquer ordem de preferência e a qualquer objetivo, a
qualquer significação. Não é mais para sair nem para ficar,
e não se utilizam mais dias e noites. Não mais se realiza,
mesmo que se conclua algo. Sapatos: fica-se; chinelos: sai-
se.
Gilles Deleuze, O esgotado

Borne didn’t know it was all deadly, poisonous, truly


disgusting. Maybe it wasn’t, to him. Maybe he could have
swum in that river and come out unscathed. Maybe, too, I
realized right then in that moment that I’d begun to love him.
Because he didn’t see the world like I saw the world. He
didn’t see the traps. Because he made me rethink even simple
words like disgusting or beautiful.
That was the moment I knew I’d decided to trade my safety
for something else. That was the moment.
Jeff VanderMeer, Borne

O que isso quer dizer para nós, dizer que o porvir foi eliminado? Não significa, como já
dissemos, que “nada mais vai acontecer” e nem que “não vamos ser surpreendidos”. O fim da
história — ainda — não chegou. Isso quer dizer que a maneira como nos portamos, enquanto
corpos e indivíduos, mas também grupos e sociedades, tem uma relação cada vez menor com
um futuro. É cada vez mais difícil organizarmos nossas ações a partir de um horizonte de
expectativas, um futuro, que estaria para além das nossas condições presentes. Não seria isso
uma espécie de doença? Somos em alguma medida capazes de nos autodiagnosticar?
Parece-nos não apenas improvável, mas impossível continuar a estruturar nossas vidas a
partir de uma estrutura temporal que não podemos sequer sonhar em concretizar. Se, em
algum momento da modernidade essa ação organizada em torno de um horizonte do não
94

experimentado permitiu que nos desenvolvêssemos e prosperássemos,267 isso não faz mais
sentido hoje, pois não só esse horizonte foi reduzido a uma mera repetição das nossas
condições presentes — a repetição enquanto gerenciamento de risco — como ele também se
encontra materialmente ameaçado. A própria orientação para o futuro é que nos conduziu,
paradoxalmente, para essa situação em que não temos mais nenhuma promessa na nossa
frente para nos guiar. Diante desse esgotamento, só resta tentar entender que tipo de saúde é
possível e desejável para nossas vidas, que tipo de estabilidade podemos almejar a partir do
momento em que as nossas tentativas passadas de estabilidade nos levaram ao esgotamento
presente. Ou seja, trata-se de tentar entender o que restará se abrirmos mão dessa orientação
voltada para um futuro.
Acredito que uma alternativa para esse tipo de orientação poderá aparecer se começarmos
a olhar para a própria constituição do nosso corpo e é por isso que pretendo investigar o
conceito de afeto. Se entendemos os afetos, em um sentido bem amplo, como sinais da nossa
experiência, do que acontece conosco, acredito que será mais fácil entender quais opções nos
restam e de que maneira podemos ainda aspirar por alguma estabilidade. Desenvolver esse
conceito nos ajudará a ver com mais clareza essa experiência de ausência de futuro que nos
incomoda, mas também permitirá que algumas pistas para pensar além dele apareçam no
caminho. A operação realizada aqui aproxima-se, portanto, menos de uma descrição e mais
de um como se, visto que a máquina filosófica só nos interessa na medida em que os efeitos
que ela produz são férteis para nós. Para começar, porém, talvez seja interessante estabelecer
um certo conceito de saúde para que o termo não fique flutuando por aí de maneira vaga.
Dessa forma, o conceito poderá servir de referência para qualquer fruto dessa pesquisa.
*

Encontramos em O normal e o patológico, de Georges Canguilhem, alguns apontamentos


que podem ajudar a esclarecer essa sensação que estamos tentando entender, já que a ideia do
livro é traçar a relação entre saúde, doença e corpo vivente. Para começar a refletir sobre isso,
o autor foge da tradição médica e considera os efeitos que a dor provoca no doente. O que
interessa a Canguilhem é que, na experiência do doente, a dor não é uma mera reclamação ou
um olhar sobre si que pode ser certeiro ou não. Ela é precisamente o sinal de “uma forma
diferente da vida”,268 um tipo de experiência que a medicina tenderia a rechaçar como algo

267
Evidentemente “quem” se desenvolve e prospera e “que” desenvolvimento e prosperidade são esses são
outros quinhentos, ainda mais se lermos isso à luz das crises que foram provocadas justamente por um mundo
estruturado a partir dessa dinâmica temporal.
268
Canguilhem, Georges. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014. p.52
95

secundário por não conseguir enxergar que “o estado patológico não é um simples
prolongamento, quantitativamente variado, do estado fisiológico, mas é totalmente
diferente.”269 A experiência do doente certamente não apontaria para qual seria a causa de
uma doença ou onde podemos localizar o problema, mas ela nos permite compreender que há
uma diferença qualitativa entre saúde e doença.
É a partir desse giro no ponto de vista que a maneira como Canguilhem concebe os
conceitos de normal e patologia, saúde e doença se rearticula. Se levamos a sério o ponto de
vista do doente, ou seja, de que a sua vida se transforma na doença, não é mais possível
aceitar a posição clássica sobre o normal e o patológico “segundo a qual os fenômenos
patológicos são idênticos aos fenômenos normais correspondentes, salvo pelas variações
quantitativas.”270 A dor é o ponto em que se localiza a transformação na vida de um corpo e
que nos faz pensar sobre a relação entre normal e patológico para além de uma variação
quantitativa. O giro que mencionamos, portanto, é um giro que faz ver que falar em termos de
doença e de saúde só faz sentido se nos referirmos a uma experiência de alteração na vida de
um corpo.271 Se a relação entre saúde e doença é qualitativa (“uma forma diferente de vida”),
precisamos reinterpretar, a partir desse novo ponto de vista, o que esses conceitos querem
dizer e qual é a diferença entre eles.
O autor argumenta, então, que a saúde (ou a normalidade), não tem a ver com uma
configuração fisiológica específica mais ou menos comum que um corpo precisaria alcançar.
A saúde sempre se relaciona com um interesse do corpo, já que “o vivente humano prolonga,
de modo mais ou menos lúcido, um efeito espontâneo, próprio da vida, para lutar contra
aquilo que constitui um obstáculo à sua manutenção e a seu desenvolvimento tomados como
normas.”272 O que o leva a concluir “que a vida não é indiferente às condições nas quais ela é
possível, que a vida é polaridade e, por isso mesmo, posição inconsciente de valor, em
resumo, que a vida é, de fato, uma atividade normativa.”273 A normatividade da vida é o juízo
e a apreciação de uma situação com relação a um corpo, é a constituição de uma norma a
partir do juízo — normatizar é reagir a uma situação em um meio. E é justamente nesse

269
Idem, ibidem, (grifo meu)
270
Idem, ibidem, p. 8
271
“Em última análise, são os doentes que geralmente julgam — de pontos de vista muito variados — se não são
mais normais ou se voltaram a sê-lo. Para um homem que imagina seu futuro quase sempre a partir de sua
experiência passada, voltar a ser normal significa retornar uma atividade interrompida, ou pelo menos uma
atividade considerada equivalente, segundo os gostos individuais ou os valores sociais do meio. Mesmo que essa
atividade seja uma atividade reduzida, mesmo que os comportamentos possíveis sejam menos variados, menos
flexíveis do que eram antes, o indivíduo não dá tanta importância assim a esses detalhes. O essencial, para ele, é
sair de um abismo de impotência ou de sofrimento em que quase ficou definitivamente; o essencial é ter
escapado de boa.” (Idem, ibidem, pp. 74-75)
272
Idem, ibidem, p. 80
96

ponto, na tentativa de compreender a relação da normatividade com a vida, que Canguilhem


localiza a questão da saúde e da doença. Essa relação entre o normativo e a vida seria
decorrente da existência de uma possibilidade de variação na vida biológica.274 É por essa
razão que não se pode fixar de antemão quais são os estados ideais (saudáveis, normais) e
quais são os estados ruins (patológicos, doentes) de um corpo.
A própria vida, por ser movimento de autoperpetuação, indica uma instauração de valor
em seu próprio seio. Se ela é essa perseverança, então é possível dizer que em cada ato seu há
a determinação do que deve ser protegido e preservado a partir da maneira como o corpo se
organiza. A normalidade (no sentido de normatividade), a saúde, está relacionada a essa
normatização e não a um simples fato fisiológico. Isso implica, como Canguilhem percebe
rapidamente, que há uma relação desses conceitos com o tempo. Saúde e doença tem um
caráter temporal, pois “o próprio da doença é vir interromper o curso de algo, é ser
verdadeiramente crítica. Mesmo quando a doença torna-se crônica, depois de ter sido crítica,
há sempre um ‘passado’ do qual o paciente ou aqueles que o cercam guardam certa
nostalgia.”275 O sentido temporal tem a ver então com o fato de que essa capacidade
normativa do corpo é sempre um posicionamento imanente, com relação à própria história
desse corpo. É por isso que se pode dizer que o estado saudável, para Canguilhem, é aquele
em que a capacidade normativa de um corpo está funcionando e quando, diante das demandas
que lhe são apresentadas, o corpo é capaz de se alterar e mudar de curso para se adaptar.
Se dizemos que um corpo é saudável, portanto, não estamos falando de um simples
“silêncio dos órgãos”. É por isso que, como diz Canguilhem, a saúde de um corpo só pode ser
confirmada no momento em que o corpo se vê diante de algum obstáculo. É de acordo com a
sua capacidade de reagir a esse obstáculo que se pode dizer se o corpo é saudável ou não. Daí
o autor dizer que

a limitação forçada de um ser humano a uma condição única e invariável é considerada


pejorativamente, em referência ao ideal humano normal que é a adaptação possível e voluntária a
todas as condições imagináveis. É o abuso possível da saúde que constitui a razão do valor que se dá à
saúde, assim como — segundo Valéry — é o abuso do poder que está por trás do amor ao poder. O
homem normal é o homem normativo, o ser capaz de instituir novas normas, mesmo orgânicas. Uma
norma única de vida é sentida privativamente e não positivamente.276
273
Idem, ibidem.
274
Diferente dos seres meramente físicos, onde, em tese, só haveria um estado natural das coisas, os seres
biológicos são, para Canguilhem, um tipo de ser que comporta a transformação. Não nos interessa entrar nessa
questão por hora, mas é possível inferir que os processos de normatividade presentes da vida se encontram, com
as devidas transformações, em seres “não-biológicos”.
275
Idem, ibidem, p. 91 (grifo meu)
276
Idem, ibidem, p. 92
97

É por isso que quando Canguilhem menciona a anomalia ele faz questão de diferenciar a
anomalia como desvio estatístico e como problema normativo. Ao desenvolver esse conceito
o autor mais uma vez insiste sobre o caráter subjetivo da doença. Se a anomalia é uma
irregularidade ela não é algo relacionado ao campo da patologia — nesse caso ela seria
simplesmente uma variação que pode ser insignificante. Ela só se torna um problema
normativo na medida em que a sua anormalidade afeta as atividades do corpo. É um desvio
que é incompatível com a própria capacidade do corpo tentar se perpetuar. Dessa forma ele
dirá que “a importância é uma noção objetiva para o naturalista, mas é, no fundo, uma noção
subjetiva, no sentido de que inclui uma referência à vida do ser vivo, considerado como apto a
qualificar essa mesma vida segundo o que a favorece ou a prejudica.”277
Mas como é que uma anomalia se transforma em patologia? Trata-se de uma ausência de
norma? Não, segundo Canguilhem, “o estado patológico ou anormal não é consequência da
ausência de qualquer norma. A doença é ainda uma norma de vida, mas uma norma inferior,
no sentido que não tolera nenhum desvio das condições em que é válida, por ser incapaz de se
transformar em outra norma.”278 A anomalia que leva para a doença é, curiosamente, fruto da
sua própria tendência original para a saúde, isto é, sua capacidade normativa. A diferença é
que, diferentemente do corpo saudável, no corpo doente a sua capacidade normatizadora se
encontra comprometida e a norma estabelecida é justamente uma que não consegue, por sua
vez, se abrir às novas normas que podem se mostrar necessárias.
Mas isso não é tudo, pois os desvios não existem suspensos no ar, não são puramente
positivos, são relacionais. As alterações dos corpos podem ser não apenas patológicas, mas
também boas ou neutras na medida em que conseguem se adaptar (ou se adaptar melhor) a
determinadas condições do meio. O meio, por sua vez, é variável e nesse sentido ele também
só é definível com relação aos seus habitantes: “O meio é normal pelo fato de o ser vivo nele
desenvolver melhor sua vida, e nele manter melhor sua própria norma. É em relação à espécie
de ser vivo que o utiliza em seu proveito que um meio pode ser normal.”279 O desvio só é

277
Idem, ibidem, p. 87
278
Idem, ibidem, p. 127
279
Idem, ibidem, p. 94 E também: “O ser vivo e o meio, considerados separadamente, não são normais, porém é
sua relação que os torna normais um para o outro. O meio é normal para uma determinada forma viva na medida
em que lhe permite uma tal fecundidade e, correlativamente, uma tal variedade de formas que, na hipótese de
ocorrerem modificações do meio, a vida possa encontrar em uma dessas formas a solução para o problema de
adaptação que, brutalmente, se vê forçada a resolver. Um ser vivo é normal em um determinado meio na medida
em que ele é a solução morfológica e funcional encontrada pela vida para responder a todas as exigências do
meio. Em relação a qualquer outra forma da qual se afasta, esse ser vivo é normal, mesmo se for relativamente
raro, pelo fato de ser normativo em relação a essa forma, isto é, desvalorizando-a antes de eliminá-la.” (Idem,
ibidem, pp. 95-96)
98

patológico na medida em que a norma produzida é incompatível com o meio no qual o corpo
se encontra, “o patológico não é a ausência de norma biológica, é uma norma diferente, mas
comparativamente repelida pela vida.”280 Pode-se concluir a partir disso que não é a
anormalidade que é patológica, mas que toda patologia é anormal. Mas anormal não no
sentido estatístico (já que a situação de patologia é, pelo contrário, extremamente comum),
mas no sentido normativo; ou seja, no sentido de algo que vai contra uma norma, a saber, a
perpetuação. Se o movimento da vida é um movimento de normatização, então o patológico é
justamente a incapacidade de constituir novas normas.281

Vê-se que os conceitos de saúde e de doença construído por Canguilhem têm como
elemento central a ideia de uma historicidade do corpo mas isso não seria nada se ela não
viesse acompanhada da ideia de um meio que sofre transformações.282 A doença só pode
aparecer como doença a partir de uma comparação com um outro momento da vida, com uma
capacidade que havia antes e que não há mais. É “uma forma diferente da vida” que só pode
ser apreendida na experiência — daí o espaço que o autor concede ao relato da dor. A saúde,
por sua vez, só se pode verificar de maneira retroativa: a partir da sua perda (“eu era saudável
no passado”), mas também, e sobretudo, a partir da sua capacidade de reagir. Isto é, o corpo
saudável só aparece como saudável na medida em que ele é posto à prova, na medida em que
seus limites são de fato testados. E eles serão testados na medida em que o ambiente sofre
transformações.
O que se extrai disso é que a saúde e a doença simplesmente não podem ser
compreendidas a partir de um aqui e agora, de uma perseverança no presente. A saúde
sempre se dá no tempo e é por isso que Canguilhem a comparará a um seguro.283 O corpo

280
Idem, ibidem, p. 96
281
“Se reconhecemos que a doença não deixa de ser uma espécie de norma biológica, conseqüentemente o
estado patológico não pode ser chamado de anormal no sentido absoluto, mas anormal apenas na relação com
uma situação determinada. Reciprocamente, ser sadio e ser normal não são fatos totalmente equivalentes, já que
o patológico é uma espécie de normal. Ser sadio significa não apenas ser normal em uma situação determinada,
mas ser, também, normativo, nessa situação e em outras situações eventuais. O que caracteriza a saúde é a
possibilidade de ultrapassar a norma que define o normal momentâneo, a possibilidade de tolerar infrações à
norma habitual e de instituir normas novas em situações novas.” (Idem, ibidem, p. 138)
282
Sejam essas transformações causadas por um desenvolvimento do próprio meio, ou por algum dos
“participantes” desse meio.
283
“A saúde é um conjunto de seguranças e seguros (o que os alemães chamam de Sicherungen), seguranças no
presente e seguros para prevenir o futuro. (…) A saúde é um guia regulador das possibilidades de reação. A vida
está, habitualmente, aquém de suas possibilidades, porém, se necessário, mostra-se superior à sua capacidade
presumida. (…) Estar com boa saúde é poder cair doente e se recuperar; é um luxo biológico.” (Idem, ibidem, p.
140)
99

capaz de constituir normas — o corpo potente — é aquele corpo que tem como se orientar no
tempo.284 Nesse mesmo sentido, a doença não pode então ser compreendida como uma
ausência de relação com o tempo. Trata-se, antes, de uma incapacidade de se desligar de uma
certa forma de temporalização à medida em que esta começa a se mostrar insuficiente.
Essa situação do cancelamento do futuro em que estamos não parece ser justamente esse
tipo de problema? A temporalidade predominante, que descrevemos acima, resulta de uma
articulação do tempo a partir de um horizonte de expectativas (um futuro) com um solo de
experiências. Agir nesse contexto significa se orientar para um horizonte futuro apoiando-se
em um conjunto de experiências sólidas e confiáveis — um passado que funciona como uma
espécie de fundo inerte. O problema é que, apesar de continuarmos agindo a partir da mesma
estrutura — orientando nossas ações em direção a um futuro desejado — não é mais possível
contar com um futuro, pois ele próprio se encontra cancelado. As experiências em que nos
apoiamos não são mais tão confiáveis e a própria ideia de um futuro foi dissolvendo a partir
dos riscos que o ameaçavam. Mas apesar desse esquema temporal ter se esgotado, o
cancelamento do futuro produz uma sensação de imobilidade e impossibilidade de
transformá-lo. O fato de que não conseguimos estabelecer uma outra articulação do tempo —
i.e., criar novas normas — indica que a nossa própria saúde está comprometida e que esse
presentismo pode ser considerado uma espécie de patologia.

Um efeito imediato dessa situação pode ser uma certa ansiedade sem objeto que nos
acometeria. Talvez seja possível descrever essa sensação da mesma maneira que Peter Pál
Pelbart, em seu livro Avesso do niilismo, fala de um certo niilismo contemporâneo. Nele
encontramos “um mundo reduzido que continua a ser reduzido, achatado, depauperado. [Um
mundo em que] a abundância seca. (…) [E] um dos indícios da redução é a abolição do
maravilhoso, das formas que lhe dão expressão, da admiração, da surpresa”.285 O
cancelamento do futuro seria a causa da nossa incapacidade de agir pois achataria a nossa
realidade. Não haveria nem capacidade, nem possibilidade de reagir, pois após a dominação
do espaço, como Bifo escreveu, o próprio tempo teria sido colonizado — e com isso
perderíamos a própria ideia de um fora, de algo que nos permitiria uma fuga das repetições. O
niilismo de que falo aqui não é, portanto, uma simples falta de fundamento nas ações, como

284
Pode-se dizer que Canguilhem temporaliza o conatus de Espinosa.
285
Pelbart, Peter Pál. Avesso do niilismo. São Paulo: N-1 Edições, 2013. p. 140
100

geralmente é concebido o fenômeno. A questão é que devido à dominação a que somos


submetidos e que limita a nossa capacidade de nos transformarmos para além do agora, só nos
resta a repetição mecânica que não exigiria nenhum horizonte. Concordamos, portanto, com
Pelbart quando ele descreve o momento atual como um em que

estamos todos reduzidos ao sobrevivencialismo biológico, à mercê da gestão biopolítica, cultuando


formas de vida de baixa intensidade, submetidos à morna hipnose, mesmo quando a anestesia
sensorial é travestida de hiperexcitação. É a existência de ciberzumbis, pastando mansamente entre
serviços e mercadorias. Como dizia Gilles Châtelet, Viver e pensar como porcos. Poderíamos chamar
de vida besta tal rebaixamento global da existência, essa depreciação da vida, sua redução à vida nua,
à sobrevida, estágio último do niilismo contemporâneo.286

Mas que não nos enganemos, nessa vida besta não falta movimento, ela é uma
imobilização por meio de um povoamento total das nossas ações:

O imperativo é que tudo funcione, mas justamente o “tudo funcionando” é que denota a morte.
Pensemos isso em uma escala maior: pode-se imaginar partidos proliferando, mas espelhando o
Estado a que se opõem, de modo que temos o exército, os cartéis, trustes, caixas de seguridade social,
sindicatos, tudo funcionando azeitadamente, recrutando com facilidade juízes, generais, professores.
Como diz Jünger, a virtude do funcionário é funcionar. Assim o niilismo pode coexistir com vastos
mundos de ordem, e ele até tem necessidade deles para desdobrar todos os recursos de sua
atividade.287

É como se não conseguíssemos reagir por estarmos ocupados demais. Maníacos.

Mas será que é verdadeiramente possível dizer que there is no alternative? A situação de
destemporalização não significa o fim do tempo, apenas o esgotamento de uma certa relação
com o tempo que se pautou na ideia do futuro. A destemporalização, na realidade “faz com
que as versões épicas da história humana pareçam caducas”.288 A falta de futuro pode ser
então a chance para que uma experiência menos “épica” possa aparecer, o que exige que
aceitemos, ao menos por enquanto, uma certa suspensão.289 Isso implica recusar as posições

286
Idem, ibidem, p. 29
287
Idem, ibidem, p. 139
288
Stengers, Isabelle, op. cit., p. 40. Mais adiante, a autor fala que
289
“Se a intrusão de Gaia significa a necessidade de aprender a “ter cuidado”, a aceitar as “verdades
inconvenientes”, precisamos desesperadamente de artifícios, pois precisamos desesperadamente resistir ao
‘tristemente previsível’. A barbárie é hoje o tristemente previsível. Mas a prova continua sendo abandonar, sem
nostalgia nem desencanto, o estilo épico, a grande narrativa de emancipação em que o Homem aprende a pensar
101

dogmáticas que insistem em “posições necessárias”, mas sem que isso signifique uma queda
no desespero. Como diz Stengers, “trata-se, talvez, de salvação, mas no sentido em que essa
referência não garante nada, não autoriza nada, não se associa a nenhum ‘e portanto…’”.290
Ela é propriamente algo da ordem da experimentação.291 Mas, como o apelo ao conceito de
pharmákon por parte da autora deixa evidente, esse tipo de prática não comporta nenhum
ponto claro de apoio, de modo que “serão vulneráveis as dinâmicas da criação de saberes,
lutas e experiências”292
Acreditamos encontrar em um pequeno livro de Steven Shaviro sobre o
“aceleracionismo”, No speed limit, uma figuração possível das experimentações propostas por
Stengers. Nesse livro vemos o autor refletir sobre o aceleracionismo de uma forma bastante
heterodoxa. Em nome do seu potencial “estético”, ele evita concebê-lo como um projeto de
ação política (ou ao menos, não imediatamente). O interesse de Shaviro parece ser mais se
apropriar do aceleracionismo como um laboratório de experimentação de possíveis por meio
da especulação e da fabulação do que qualquer outra coisa.293
O caráter “aceleracionista” teria, no caso, a ver com a aceitação de uma hipótese que
Deleuze e Guattari levantam em O anti-Édipo e que ocupou quase todos os autores que
procuraram discutir a ideia de aceleracionismo. Trata-se da possibilidade de que a única saída
para fora do capitalismo seja por dentro dele.294 Essa impossibilidade de sair “para fora” já
estaria presente em Marx em seu conceito de subsunção real,295 mas Deleuze e Guattari
desenvolvem e extrapolam essas ideias ao conceber o Capital como uma máquina que opera
constantes retraçamentos expandidos para além dos seus limites por meio de um movimento

por si mesmo, já sem precisar de próteses artificiais. Essa grande narrativa nos envenenou não porque prometera
a perspectiva ilusória da emancipação humana, mas porque definiu essa emancipação de forma aviltante,
marcada pelo desprezo pelos povos e civilizações que nossas categorias julgavam bem antes de estarmos
determinados a lhes levar, quisessem eles ou não, nossas luzes. Não reconhecemos em seus ritos, em suas
crenças, em seus fetiches, as próteses artificiais da qual soubemos nos libertar?” (Idem, ibidem, p. 140)
290
Idem, ibidem, p. 147
291
“Ressaltei incessantemente que essa experimentação é política, pois não se trata de fazer com que as coisas
“melhorem”, e sim de experimentar em um meio que sabemos estar saturado de armadilhas, de alternativas
infernais, de impossibilidades elaboradas tanto pelo Estado como pelo capitalismo.” (Idem, ibidem, p. 14)
292
Idem, ibidem, p. 98
293
“Ficção científica não fala sobre o futuro verdadeiro, mas sobre a futuridade [futurity] que assombra o
presente. Ela agarra e torna visível aquilo que Deleuze chama da dimensão virtual da existência, ou aquilo que
Marx chama de processos tendenciais.” (Shaviro, Steven. No speed limite. Minneapolis: University of Minnesota
Press, 2015. livro virtual. tradução minha)
294
“Mas haverá alguma via revolucionária? — retirar-se do mercado mundial, como Samir Amin aconselha aos
países do terceiro Mundo, numa curiosa renovação da “solução econômica” fascista? Ou ir no sentido contrário,
isto é, ir ainda mais longe no movimento do mercado, da descodificação e da desterritorialização? pois talvez os
fluxos ainda não estejam suficientemente desterritorializados e suficientemente descodificados, do ponto de vista
de uma teoria e de uma prática dos fluxos com alto teor esquizofrênico. não retirar-se do processo, mas ir mais
longe, “acelerar o processo”, como dizia Nietzsche: na verdade, a esse respeito, nós ainda não vimos nada.”
(Deleuze, Gilles; Guattari, Félix. O anti-Édipo. São Paulo: Editora 34, 2010. p. 318)
295
Vimos algo parecido em um capítulo anterior.
102

que não para de englobar aquilo que lhe é exterior. O que esse laboratório aceleracionista
permitira seria um espaço para se ensaiar o que seria uma “saída por dentro” sem correr os
riscos que uma “política da aceleração” poderia gerar:296 ou seja, levar especulativamente ao
limite as contradições que estão em jogo no Capital (as tendências imanentes) mas que por
diversas razões não se realizam. O autor definirá, então, o aceleracionismo como

um movimento especulativo que procura extrapolar toda ordem capitalista neoliberal globalizada. Isso
significa que ele é necessariamente um movimento estético além de ser político. A esperança que
move o aceleracionismo é que, ao expressar completamente as potencialidades do capitalismo,
seremos capazes de exauri-lo e consequentemente abrir um acesso para algo além dele.297

Mas o que nos interessou nesse livrinho não foi, propriamente, a ideia do aceleracionismo
como laboratório de fabulações que buscaria especular de maneira segura sobre o que
significa “levar até o fim as contradições do capitalismo”.298 O que se mostra como mais
potente é que há aqui o mesmo tipo de esforço que julgamos encontrar em Stengers. Falo da
tentativa de desnaturalizar — sem ser Poliana — o discurso de que “there is no alternative”
— discurso esse que parece nos prender em um “presente eterno”, como se estivéssemos no
carrinho de uma montanha russa e não pudéssemos mais sair. Não ser Poliana, no caso, é estar
bem atento para o grau de complexidade e gravidade da situação — e acho que isso se aplica
sobretudo à catástrofe climática. Estar atento ao grau de complexidade significa, então,
aprender a medir a possibilidade de agir, a testar os limites da capacidade de agência.
Não é à toa que o conto de ficção científica de Paul di Filippo (Phylogenesis), que Shaviro
discute no final do livro, tem algo de “terrível” — mas que, ao mesmo tempo, é a parte mais
potente dessa obra. O conto em questão narra o que acontece com a humanidade após uma
invasão de extraterrestres gigantes que rapidamente devastam a Terra. O interessante é que ao
chegarem na Terra esses seres nem parecem perceber a existência dos seres humanos. Eles
simplesmente começam a consumir o planeta como se ele fosse apenas biomassa. Diante da
destruição do mundo e da impossibilidade de permanecer ali — seu ambiente já não garante a
sobrevivência —, os seres humanos resolvem tentar uma última cartada: se utilizando de todo
o seu desenvolvimento científico que acumularam, eles resolvem tentar readaptar/recriar os
seres humanos para que eles consigam sobreviver nos seres extraterrestres. O conto, que é
razoavelmente curto, passa a maior parte do tempo descrevendo a maneira como esses

296
“É por isso que o aceleracionismo precisa em primeiro lugar ser um programa estético, antes que ele possa
ser um programa político. A ficção especulativa pode explorar o abismo da ambivalência aceleracionista, sem
pretender resolvê-la prematuramente.” (Shaviro, Steven, op. cit., tradução minha)
297
Idem, ibidem, (tradução minha)
103

neohumanos vivem enquanto parasitas nos seres invasores. O autor descreve a maneira como
eles invadem um desses seres, como eles se adaptam inicialmente ao novo ambiente e lidam
com os perigos internos e também como eles, uma vez instalados, se reproduzem nesses
locais. Narra-se, podemos dizer, um devir-parasita da humanidade. Mas isso não é tudo, pois
esses seres não estão apenas sobrevivendo e procurando se reproduzir. Há nesses neohumanos
uma pluralidade de afetos. Podemos destacar aqui a alegria que não raro toma conta desses
neohumanos, algo que vemos quando Di Filippo descreve suas explorações e brincadeiras,
seus amores (que vão além do mero interesse reprodutivo) e, sobretudo, na relação lúdica que
eles têm com os domínios da música e da matemática (para além de qualquer funcionalidade
sociotécnica).
Foi impossível ler esse conto e não lembrar do final do livro de Stengers que discutimos
acima. Lá ela diz que “cada êxito, por mais precário que seja, tem sua importância.
Certamente nenhum será suficiente para apaziguar Gaia, mas todos contribuem para
responder às provas que vêm de um modo que não seja bárbaro.”299 Acho que é possível ler
esse trecho de duas formas. Na primeira, “evitar a barbárie” significaria evitar o colapso,
evitar que a crise climática exploda. O problema é que a cada dia que se passa (e já se
passaram dez anos desde que este livro foi publicado e as coisas só parecem piorar) parece
mais e mais improvável que se consiga reverter o estrago ecológico. Não parece haver saída
desse problema — não de forma mágica. É por isso que acho que há um segundo sentido —
mais duro — para a expressão: a barbárie a se evitar me parece que tem a ver com o tipo de
vida que se terá (e que se tem) durante o lento colapso (e após o colapso) civilizacional. Ou
seja, aceitar o nosso limitado grau de agência sem com isso abdicar de criar práticas que nos
permitam prosperar afetivamente — “vivir bien, no mejor”. É isso que parece ser possível
extrair do pequeno conto de Di Filippo e da leitura que Shaviro faz dele:

A vida emocional dos neohumanos também era efetivamente simplificada de uma maneira pós-
fordista. Sentindo uma esmagadora sensação de perda e cientes de como todo seu potencial foi
restringido, essas pessoas não tem qualquer esperança de que as coisas vão melhorar. Mas elas
concluem que “temos que aproveitar ao máximo a vida que temos.” Tanto materialmente como
afetivamente, eles desenvolvem um ethos da abundância, generosidade e auto-cultivo, mesmo diante
do terror e da desapropriação [dispossession]. É isso, enfim, que precisamos aprender acelerar.300

298
Ainda mais que, como vimos, o capitalismo não é o único problema e muito menos é o mais grave.
299
Stengers, Isabelle, op. cit., pp. 148-149
300
Shaviro, Steven, op. cit., (tradução minha)
104

Resistir ao discurso do “tristemente necessário” exige que criemos uma nova relação com
o porvir — o que implica criar novas formas de vida.301 Mas essa criação não precisa ser
traumática como o acidente (nos termos de Malabou) que é o Antropoceno. Se o Antropoceno
é um acidente traumático, algo que não nos deve nenhuma reconciliação, é porque o acidente
já aconteceu. Em certo sentido, nós perdemos uma parte de nós mesmos nesse acidente na
medida em que não podemos mais nos projetar no futuro. Mas se estamos aqui ainda, nessa
“suspensão”, é porque aquilo que perdemos não era algo central o suficiente para romper de
maneira absoluta a continuidade que temos com a nossa experiência do passado. Inclusive, o
que falou-se sobre o pensamento ameríndio já é suficiente para deixar claro que essa relação
moderna com o tempo não é constitutiva do nosso ser, visto que ela pode variar. O conto de
Di Filippo também nos aponta nessa direção, pois algo de interessante que se pode extrair de
lá é que talvez seja possível, diante de situações terríveis, se transformar radicalmente sem se
destruir — basta entender (e é esse o pulo do gato) não só o que nos constitui
especificamente, mas o que é se constituir para ver se conseguimos, mais uma vez, criar
novas normas para a nossa vida.
Voltando ao problema específico que nos concerne, a destemporalização tem justamente a
ver com uma incapacidade atual de sair do presente. Se a marcha das utopias era
problemática em inúmeros sentidos — inclusive ela foi culpada de sua própria queda, como
vimos —, é inegável que essa “tecnologia temporal”302 permitiu ao homem moderno avançar
em direção ao futuro. O problema não é tanto o fim do futuro, esse regime temporal
moderno,303 mas essa sensação de imobilidade, que no entanto se apresenta falsamente como
móvel, em que nos encontramos no momento. Ora, o que é “avançar no futuro” senão se
transformar? Parece ser esse o problema que nos incomoda: a aparente impossibilidade de se
transformar. O futuro, justamente aquilo que deveria facilitar a nossa transformação — ou
deixar disponível a capacidade de se transformar —, acabou nos conduzindo a uma
imobilidade.

301
E formas de vida que não precisem passar por afetos voltados eminentemente para o futuro, como a
esperança, que os neohumanos de Di Filippo deixaram de lado.
302
Sobre a ideia de “tecnologia temporal”, esboçamos algo semelhante (mas com uma imagem de tempo
completamente diferente) ao refletir sobre a ideia de “máquina de tempo” cf. Saldanha, Rafael. Guerra, saúde e
criação: Por uma filosofia perspectivista entre Nietzsche e os ameríndios. 2014. Dissertação (Mestrado em
Filosofia). Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
2014. pp. 87-92
105

O conceito de afeto nos parece, portanto, bastante propício para conseguir nos levar
adiante pois ele permite iluminar duas questões que nos interessam. Primeiramente, a maneira
como esse conceito tem sido concebido ao longo da história da filosofia o consolida como o
espaço que em que se procurou especular sobre as diversas configurações dos corpos e a
maneira como elas se articulam com as ações que os corpos realizam ou sofrem — é possível
perguntar “o que é um corpo”? A segunda questão que nos interessa tem a ver com o
problema da temporalidade que nós discutimos, pois falar de afetos é também falar sobre a
maneira como um corpo varia. Se a questão da experiência do tempo tem a ver com a noção
de transformação, discutir esse conceito nos permitirá perguntar: “o que acontece com um
corpo?”. Mas isso não é tudo, pois entender os afetos é também entender a maneira como os
corpos se constituem e se estabilizam sem por isso se mostrarem imunes a transformações.
Conseguir entender o funcionamento dos mecanismos afetivos fornecerá um ponto de apoio
para pensar que tipo de normalidade (ou saúde) é possível para os corpos na medida em que
sabemos o que um corpo é. Queremos, portanto, operar um crivo na realidade que nos
permitiria agir. Tomar os afetos como experiência central para a reflexão sobre as nossas
possibilidades ético-políticas não é, portanto, um gesto totalmente arbitrário. É preciso dizer,
também, que conceber os afetos como um crivo não é simplesmente encaixar aleatoriamente
um conceito a outro, não é formar um Frankenstein e dizer que as coisas são assim porque
assim as fizemos. O que se pretende fazer aqui é uma experimentação a partir do problema
que nos concerne — algo que não está longe da fabulação que Shaviro tem em mente.

303
Na verdade, considerando o tanto que havia de problemático nele isso parece um ganho.
106

II. A LÓGICA DOS AFETOS

Ghost in the shell (1995)


107

II.1. SIGLAS REFERENTES À OBRA DE ESPINOSA

As obras de Espinosa serão citadas com as seguintes siglas e abreviaturas

CM — PENSAMENTOS METAFÍSICOS (Cogitata metaphysica). As partes serão indicadas


em algarismos romanos, seguidas do número dos capítulos em algarismos arábicos (CM I, 2).

E — ÉTICA demonstrada em ordem geométrica. (Ethica ordene geométrico demonstrada).


As partes serão indicadas por algarismos romanos (E I). Serão indicados por algarismos
arábicos: as definições e suas explicações (E II, def. 1, expl.), os axiomas (E I, ax. 2), as
proposições (E III, P2), as demonstrações (E II, 6 dem.), os corolários (E I, 20 cor. 1), os
escólios (E IV, 9 escol.), os lemas (E II, lem. 3), os postulados (E III, post. 2), as definições
dos afetos (E III, 29 AD) e suas explicações (E III, 7 AD expl.), os capítulos do apêndice da
parte IV (E IV, Ap. 8). Os prefácios das partes (E, IV, Pref.) também serão abreviados.

Ep — CORRESPONDÊNCIA (Epistulae). A numeração das cartas será conforme a edição


utilizada (Ep 82).

KV — BREVE TRATADO de Deus, do homem e do seu bem-estar (Korte Verhandeling van


God, de Mensch en deszelfs Welstand). Em algarismos romanos serão indicadas as partes, em
arábicos os capítulos e entre parênteses os parágrafos (KV I, 1 (2)).

PPC — PRINCÍPIOS DA FILOSOFIA CARTESIANA (Renati Des Cartes principiou


philosophiae). As abreviações são como na Ética.

TIE — TRATADO DA EMENDA DO INTELECTO (Tratactus de intelectos emendatione).


Será indicada a numeração dos parágrafos conforme a edição utilizada (TIE §6)

TP — TRATADO POLÍTICO (Tratactus politicus). Em algarismo romano será indicado o


capítulo e em algarismos arábicos será indicado o parágrafo (TP 2, 3).

TTP — TRATADO TEOLÓGICO-POLÍTICO (Tratactus theologico-politicus). Em


algarismos romanos será indicado o capítulo (TTP VII).
108

II.2. A PROBLEMÁTICA DOS AFETOS

Pode-se afirmar sem muito problema que ao longo de toda a história da filosofia não
passou em branco o fato de que os seres humanos eram atravessados por “estados”,
“disposições” que não só os dominavam (isto é, eram incapazes de lutar contra) como muitas
vezes os determinavam a tal ou tal posição (limitavam o seu escopo de ação ou reflexão) —
deixando as pessoas distantes dos caminhos que, em tese, ditaria a razão. A raiva que cega, o
amor que perdoa são apenas algumas das tópicas clássicas desses fenômenos que se
identificarão sob o nome do afeto ou paixão304. Os filósofos que se interessaram por esse tipo
de questão inicialmente se preocuparam com a maneira como certos acontecimentos
supostamente perturbariam uma serenidade natural do ser humano, podendo, inclusive,
chegar ao ponto dele perder um domínio que ele teria sobre si mesmo. Como fruto dessa
primeira investigação sobre os afetos, veremos a formação da figura da paixão como oposta à
razão. O retrato de um homem virtuoso e racional será aquele de um homem tranquilo,
incapaz de ser dominado pelas paixões. No seu avesso vemos a construção da imagem de um
homem passional, viciado, incapaz de conter ou domar aquilo que lhe atravessa.
Aristóteles, talvez um dos primeiros a explorar detalhadamente esse campo, já aponta esse
caráter de domínio das paixões no livro II da sua Retórica: “As emoções são causas que
fazem alterar os seres humanos e introduzem mudanças nos seus juízos, na medida em que
elas comportam dor e prazer”305. Esse atravessamento causa uma alteração tão determinante
que “os fatos não se apresentam sob o mesmo prisma a quem ama e a quem odeia, nem são
iguais para o homem que está indignado ou para o calmo, mas ou são completamente
diferentes ou diferem segundo critérios de grandeza”.306 Não será exagero dizer que essa
caracterização do afeto como aquilo que altera o homem e modifica seus juízos acabará por
circunscrever grande parte das descrições dos afetos da antiguidade até o início da
modernidade. Mas o que é notável e certeiro na análise de Aristóteles é, como veremos mais a
frente, a associação entre afetos e uma alteração.
Pode-se dizer dessa forma que os afetos serão tidos nesse intervalo ora como disposições
que se deve superar (posição encontrada principalmente na escola estóica e nos seus
herdeiros), ora como aquilo que nós devemos aprender a aceitar para conseguirmos lidar
melhor com eles (pode-se encaixar Aristóteles e Epicuro nesse ponto, embora cada um de

304
A razão para preferir aqui o nome de afeto ficará mais claro a medida que desenvolvermos o conceito.
305
Aristoteles. Retórica. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012. p. 85. (grifo meu)
109

uma maneira bem diferente)307. Independente do caso, parece que a diferença entre essas
concepções diz respeito simplesmente às diferentes medidas que se faz da potência do homem
diante desse problema, ou seja, da sua capacidade de dominar ou coibir essas paixões. O
afeto, para bem ou para mal, será visto como um obstáculo a qualquer tipo de vida ideal que
se conceba. Sendo excluído do campo da razão, acabará se gerando uma moralização desse
tipo de fenômeno. Não se buscará entender os afetos, de compreender a sua natureza, mas
simplesmente manipulá-los a partir de uma repartição deles em vícios ou virtudes. A
operacionalização dos afetos não é da natureza da ciência e do conhecimento, mas da prática,
e, mais especificamente, do âmbito da retórica “pois desde Aristóteles sabe-se que esse
gênero tem como objeto o elogio e o vitupério, que o elogio se dirige às belas/boas ações ou à
virtude, enquanto o vitupério se volta para a censura e a condenação do vício.”308
Não estou dizendo aqui que seja um problema que o estudo dos afetos seja
prioritariamente entendido como um campo de ação. A formação e estabilização do campo da
retórica, dos sofistas aos romanos talvez tenha sido uma das máquinas mais eficientes de
moer o tipo de razão que eles próprios defendiam. Uma maneira bem sofisticada de mostrar
quem realmente manda ao deixar transparecer que o discurso racional não é nenhum elemento
que se sustenta sozinho e que a sua própria efetividade está ligada à imposição de um certo
discurso como racional e, por conta dessa posição, como o produtor de um certo tipo de afeto
nos ouvintes309. A força que sustenta o seu discurso decididamente não é do âmbito
racional310. Ao longo de toda a história do ocidente é possível ver de que maneira uma massa
significativa de movimentações políticas se deram por mobilização dos afetos, seja em
pequena ou larga escala, seja por meio de discursos, ações ou imagens. Diante disso poderia-
se até mesmo especular se uma certa vergonha da esquerda recente (ainda mais exacerbada
com os fracassos da esquerda institucional após a Revolução Russa e a União Soviética) tenha
bloqueado um tipo de ação que vise mobilizar e engajar por meio de um trabalho diretamente
sobre os afetos. Uma infinidade de propostas de projetos e planos da esquerda se mostra
implicitamente dependente da possibilidade de uma comunicação absolutamente transparente
(a razão como instrumento de um convencimento que não seria sujo) e de uma antropologia
que toma o homem como ser racional e capaz de agir livremente, isto é, um ser cujas causas e

306
Idem, ibidem, p. 84.
307
A esse respeito cf. Lebrun, Gérard. “O conceito de paixão” in: A filosofia e sua história. São Paulo: Cosac
Naify, 2006.
308
Chauí, Marilena. “A ciência dos afetos” in: Desejo, paixão e ação na ética de Espinosa. São Paulo:
Companhia das Letras, 2011. p. 105.
309
Nietzsche em sua Genealogia da moral foi um dos que melhor abordou esse aspecto do discurso racional.
110

motivações podem ser sempre postas de maneira clara e transparente — que podem ser
comunicadas e trocadas com outros homens sem a menor possibilidade de ruído311 e que estes
podem modificar suas ações por meio da reflexão racional. Se esse tipo de comunicação
racional nunca pareceu muito promissor, dado os exemplos da história, é ainda mais
surpreendente que a esquerda tenha dificuldade de sair dessa esfera de ação considerando que
Freud nos mostrou há mais de cem anos que nós não somos sócios majoritários nem de nós
mesmos.
O que nos leva a retomar nossa questão: o problema que vejo na maneira como os antigos
concebem os afetos não tem nada a ver com o seu interesse em manipular o afeto por meio de
práticas de persuasão. O problema maior é a antropologia que sorrateiramente se inscreve
junto ao discurso sobre os afetos e que elege um ideal de racionalidade absolutamente
inexistente ao tratá-los como vícios ou virtudes. Nesse ponto acredito ser possível apontar que
a diferença que temos entre os filósofos anteriores à modernidade e os modernos, no que diz
respeito aos afetos, é que se, em diversos momentos, esboçou-se aquilo que a modernidade
teria a dizer sobre os afetos de maneira dispersa, foi apenas a partir do momento que se
procurou estabelecer uma ciência dos afetos, tal como tentaram Descartes e Espinosa, que se
começou a desenvolver uma pragmática dos afetos que abrisse mão dos fantasmas de uma
antropologia racionalista. Não quero dizer com isso que esse novo discurso sobre os afetos
automaticamente aboliu esse fantasma, pelo contrário, há diversos problemas em Descartes e
Espinosa que acabam levando à uma variação do ideal de racionalidade — questões que serão
tratadas adiante. Com eles temos, porém, o começo de uma compreensão dos afetos não mais
como vícios ou virtudes. Ao tentarem entender o funcionamento dos afetos e das paixões para
além do campo moral, temos a possibilidade de começar a conceber novamente uma prática
ético-política a partir dos afetos mais efetiva (livre dos moralismos) e menos envergonhada.
Com relação ao nosso problema principal, isto é, a dissolução da experiência do futuro e a
tentativa de rearticular o tempo de outra maneira, acredito que entender o funcionamento dos
afeto nos permitirá descobrir se há uma temporalidade própria aos nossos corpos a partir da
investigação sobre o que acontece com um corpo diante das transformações que ele passa em
seu contato com outrem. De certa forma a pergunta que surge é se será possível encontrar
uma temporalidade imanente ao nosso corpo que nos permita agir ao rearticular a nossa
experiência do tempo para além do jogo entre horizonte de expectativa e solo de experiência.

310
Cf. Prado Jr., Bento. A retórica de Rousseau. São Paulo: Cosac Naify, 2008. Nessa leitura de Rousseau,
Bento Prado Jr. aponta para essa natureza violenta e infundada de qualquer discurso.
311
Isso sem contar a ideia de que haveria uma “verdade política” a ser revelada desde que se empregue os meios
adequados para encontrá-la.
111

Essas questões não aparecerão abertamente ao longo do que se segue, mas são elas que estão
no fundo da nossa pergunta pela questão dos afetos.

Retornando aos afetos: o que acontece no início da modernidade? Podemos dizer que há
uma ruptura na reflexão sobre os afetos com Descartes, ruptura que será radicalizada com
Espinosa, quando se começa a tentar compreender esses “atravessamentos”. Ao invés de
simplesmente tomá-los como vícios ou virtudes, estes autores buscaram retirar o campo dos
afetos da esfera moral. Como aponta Chantal Jacquet, Descartes

se recusa, de início, a tratar as paixões como orador e rompe assim com a


tradição em vigor entre os jesuítas, que recomendam o recurso à erudição
para o ensino da moral. (…) esse método era mais retórico do que científico
pois visava a descrever as paixões da maneira mais tocante possível, de
modo a exortar os ouvintes a combater umas e praticar outras. Trata-se
portanto de manter um discurso sobre as paixões com fins catárticos do que
de elucidar sua natureza e suas leis.
Descartes se recusa igualmente a tratar as paixões como filósofo moral.
Toma, assim, distância de Tomás e dos escolásticos, que explicam as paixões
a partir de um ponto de vista ético e delas fazem uma rubrica da filosofia
moral. (…) Os filósofos morais, com efeito, concebem as paixões como
perturbações, movimentos violentos que agitam a alma e se aparentam mais
aos meteoros, na física, do que aos fenômenos regulares. Seu controle,
portanto, decorre mais de uma sabedoria, de uma arte de viver, do que de
uma ciência.312

No início do seu Tratado Político, Espinosa faz crítica semelhante à maneira como eram
compreendidos os afetos/paixões:

Os filósofos concebem os afetos com que nos debatemos como vícios em


que os homens incorrem por culpa própria. Por esse motivo, costumam rir-se
deles, chorá-los, censurá-los ou (os que querem parecer mais santos) detestá-
los. Creem, assim, fazer uma coisa divina e atingir o cume da sabedoria
quando aprendem a louvar de múltiplos modos uma natureza humana que
não existe em parte alguma e a fustigar com sentenças aquela que realmente
existe. Com efeito, concebem os homens não como são, mas como gostariam
que eles fossem.313

312
Jacquet, Chantal. A unidade do corpo e da mente. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011. pp. 51-52
313
Espinosa, Bento de. Tratado Político. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009. p. 5
112

Assim, não se trata de entender

os afetos humanos, como são o amor, o ódio, a ira, a inveja, a glória, a


misericórdia e as restantes comoções do ânimo, como vícios da natureza
humana, mas como propriedades que lhe pertencem, tanto como o calor, o
frio, a tempestade, o trovão e outros fenômenos do mesmo gênero pertencem
à natureza do ar, os quais embora sejam incômodos, são contudo necessários
314
e têm causas certas, mediante as quais tentamos entender a sua natureza.

Essa postura com relação aos afetos não trará junto com ela simplesmente uma maior
compreensão da natureza dos afetos. Tratar eles como elementos que pertencem à natureza
humana é aceitar que os afetos não só não são moralizáveis (não se trata de coisas que sejam
naturalmente virtudes ou vícios) mas que eles constituem essa própria natureza humana.
Conceber, pois, o afeto como elemento constituinte, conceber os corpos como produzidos no
jogo dos afetos é propor que há uma relação entre a nossa capacidade de ação com as
maneiras de organização e disposição dos nossos afetos — é nos obrigar a repensar toda a
dinâmica do desejo. Nesse movimento será possível ver como o afeto vai se afastando de
qualquer noção de sentimento, que ele não é uma simples excitação no espírito.
Mas isso não é tudo. Há um elemento nos afetos que é seu caráter de expressivo. Se verá
que os afetos, enquanto elementos constitutivos dos corpos, não são um simples efeito
produzido quando meu corpo é atravessado por outro corpo. Ele é a própria expressão da
transformação que se efetua nesse contato. O que chamamos de afeto, veremos, é o próprio
corpo na medida em que ele se transforma — essas coisas que sentimos são a expressão de
um movimento do nosso corpo. O tipo de transformação que se opera, porém, sempre acabará
tendo um valor positivo ou negativo dependendo da maneira como ela afeta o nosso corpo. É
preciso deixar bem claro, porém, que essa valoração não diz respeito a um juízo da ordem
moral, mas um sinal da capacidade de ação de um corpo. A alegria não é simplesmente um
aumento nas capacidades de um corpo (para já entrar na terminologia espinosana), ela é a
experiência dessa variação. É a “sensação” dessa transformação que será descrita como
alegria. Quando estou alegre não há dúvida dessa alegria, inclusive não faz o menor sentido
duvidar se estou alegre. Posso duvidar dos objetos que represento e portanto minha mente e
do que seria a causa da minha alegria ou ainda crer que eventualmente essa alegria vai me

314
Idem, ibidem, p. 8
113

levar para uma tristeza maior ainda, mas duvidar que estou alegre no instante em que
experimento a alegria é abrir as portas para a ascese e para o rebaixamento do corpo.315
O que vemos portanto, nessa alternativa que visamos, é que a investigação sobre a lógica
dos afetos acaba nos encaminhando para a possibilidade de tratá-los de maneira positiva. Os
nossos movimentos poderão ser vistos como algo além da carência e nós poderemos tentar
caracterizar o desejo sem ter que nos restringir à uma economia conceitual negativa —
poderemos esboçar uma descrição dos seus mecanismos reais e a maneira como isso nos
constitui. É essa possibilidade de se pensar a esfera afetiva de maneira positiva que nos move
para perto do pensamento espinosano.
Nesse sentido, uma exploração sobre o campo do afetos não nos forçará a explorar
simplesmente as “paixões” da alma, descrevendo elas de maneira precisa, mas nos forçará a
retomar toda a metafísica que está implícita em qualquer concepção dos afetos. A começar
pela necessidade de se pensar a relação entre corpo e mente, a ligação entre os afetos e a
experiência (como os afetos são provocados e como se apreende a sua experiência). Com
esses elementos bem delineados começaremos a enxergar que há uma relação profunda entre
os conceitos de afeto, desejo e transformação — o que nos faz permitirá retornar, na terceira
parte, para o nosso problema original, isto é, como a filosofia pode nos ajudar reabilitar a
nossa capacidade de agir ao rearticular a nossa experiência do tempo.
Nesse ponto, portanto, é preciso reforçar e relembrar, se vamos nos apoiar no pensamento
de Espinosa sobre os afetos é porque cremos que as suas reflexões abrem um campo a se
explorar que pode ser muito fértil, mas isso de maneira alguma significa que o nosso
propósito é apresentar uma apresentação ou descrição do seu pensamento. O interesse aqui é
absolutamente pragmático, de maneira que se buscamos uma precisão isso é feito menos por
uma suposta fidelidade com o pensamento de Espinosa do que por um interesse no que seu
pensamento pode produzir. É com esse princípio que guiaremos a nossa leitura e que acaba
por justificar as interpretações aqui realizadas e que justifica eventuais desvios da ortodoxia.

315
Esse assunto será abordado em outro momento, mas não custa lembrar a famosa passagem de Nietzsche na
Genealogia da moral, no ataque aos ideais ascéticos: “Existe apenas uma visão perspectiva, apenas um
‘conhecer’ perspectivo; e quanto mais afetos permitirmos falar sobre uma coisa, quanto mais olhos, tanto mais
completo será nosso ‘conceito’ dela, nossa ‘objetividade’. Mas eliminar a vontade inteiramente, suspender os
afetos todos sem exceção, supondo que o conseguíssemos: como? — não seria castrar o intelecto?…”
(Nietzsche, Friedrich. Genealogia da moral. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 109)
114

II.3. DIGRESSÃO METODOLÓGICA

Muito rapidamente se identifica a tarefa do filósofo com a viagem de Ulisses rumo à Ítaca.
A aventura do conceito, a busca pela origem, a descoberta de si na viagem, o apelo do
passado; incontáveis são as maneiras que a filosofia vai buscar se associar à empreitada desse
grande herói da filosofia, Ulisses, o astuto — restaria tentar entender o que os filósofos
esperam ganhar com essas associações, ou o que querem esconder. Ignorando por um breve
momento a potência desse personagem onipresente em nossa cultura ocidental, gostaria de
associar a atividade filosófica a uma outra personagem da Odisseia. Seguindo uma pista de
Barbara Cassin, talvez não seja tão estranho falar que o trabalho filosófico está mais para o
tear de Penélope do que as errâncias de Ulisses. Tratar de um conceito, seja um conceito seu
ou de algum outro autor, é inevitavelmente trazer com ele uma constelação de conceitos que
precisam ser todos elaborados para que o conceito principal consiga entrar em foco. Mas
como nenhum conceito se apoia no vazio, ao mesmo tempo em que esse conceito vai tomando
forma a partir dos outros conceitos, é necessário fazer o caminho de volta e desfiar aqueles
conceitos que serviram de apoio a partir do conceito recém-construído para que eles possam
se adaptar ao novo conceito criado. Estes por sua vez, a cada novo conceito que é desfeito e
refeito, obrigam aquele conceito a se desfazer e refazer e assim por diante, até o infinito.
Como se pode ver, Penélope não vê fim para esse movimento incessante de costura, ainda
mais que, como disse Barbara Cassin: “Ulisses não existe, ele não veio e de qualquer modo eu
não o reconheci.”316

Essa teia de conceitos que se desenha ainda não é, porém, suficiente para explicar o que se
segue. O caminho de se perder sempre sendo grande demais nos obriga a respirar um pouco e
nos lembrarmos o porquê de estarmos nos enfiando nesses buracos. Isso se torna ainda mais
evidente quando de certa forma nos encontramos na situação do Barão de Munchausen, já que
a tese, que tem uma meta de construção de uma certa prática é ao mesmo tempo já uma
aplicação dessa prática. Não pretende-se nesse momento adiantar qualquer coisa, mas apenas
apontar para uma distinção que pode ajudar a inibir certos tipos de leituras do estou fazendo.

316
Cassin, Barbara. Se parmênides. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015. p. 21.
115

Dito isso, é preciso reforçar que essa tese não é uma tese de história da filosofia que tem
como objetivo elucidar e contextualizar certos conceitos na obra de certos filósofos. O que se
pretende fazer aqui, para roubar um termo de Pedro Gomlevsky, é uma espécie de bricolagem
conceitual317. Vamos percorrer o pensamento do Espinosa com uma preocupação em
reconstruir certos conceitos que nos parecem interessantes para os problemas que nos
ocupam. Se vou gastar um certo tempo descrevendo certas minúcias da sua teoria dos afetos,
e deixando de lado outras, isso tem que ser compreendido sempre a partir do problema que
nos ocupa. Dito isso, o movimento que pretendo elaborar aqui vai ser de certa forma duplo.
Por um lado, deve-se operar uma reconstrução do conceito a partir da construção que o
próprio Espinosa elabora em sua obra. Não se furta nesse momento a entrar em discussões
técnicas e precisas sobre o que permite e o que condiciona a emergência de tal ou tal conceito.
Por outro lado, é preciso sempre lembrar, e a recepção da obra do Espinosa ao longo da
história talvez seja forte indício disso, que o pensamento filosófico tem parte do seu valor no
seu grau de efetividade — em outros termos, um conceito só nos interessa na medida em que
ele nos põe em movimento. Pode-se afirmar sem muitas dúvidas que não devem ser poucos os
leitores da Ética que conseguiram transformar as suas vidas sem que eles conseguissem se dar
conta do que sustentava toda a rede de conceitos318. Mas, retomando a ideia da bricolagem,
nos servimos daquilo que conseguimos agarrar com nossas mãos, ou seja, daquilo que temos
capacidade de conceber, por mais fraco que seja a nossa capacidade filosófica de partida.
Assim sendo, o fato de que conseguimos retirar poucos elementos inteligíveis da Ética não
nos impede de organizá-los de uma forma eficiente, ainda que bruta e muito menos impede
que esses elementos dispostos de uma maneira supostamente pobre produzam algum efeito
positivo. Não custa lembrar o valor inestimável que as máximas de Epicuro tem para qualquer
um que se dispor a ler elas sem grandes compromissos. A precisão e a sutileza de uma rede
conceitual não deve, portanto, ser buscada em nome de uma adequação histórica, mas como
uma tentativa de dar mais consistência para os conceitos, para que não tenham a sua eficácia
comprometida — seja por se mostrarem gerais demais, específicos demais ou mesmo
irrelevantes319. Quando nos voltamos então para o pensamento do Espinosa, é isso que temos
em mente: não uma pesquisa histórica, mas uma tentativa de extrair um conceito de um
horizonte particular e tentar trazê-lo para o nosso problema. Daí o método aqui adotado, que

317
Gomlevsky, Pedro Vasconcelos Junqueira de. Da possibilidade da metafísica. 2016. 178f. Dissertação
(Mestrado em Filosofia) — IFCS, UFRJ, Rio de Janeiro, 2016.
318
Isso pode parecer um tanto paradoxal, se pensarmos que o movimento mais valorizado pela Ética é
justamente o conhecimento.
319
Não se está sugerindo aqui que existam conceitos que dêem conta de tudo, pelo contrário.
116

pretende percorrer a construção que Espinosa faz desse conceito para então tentar determinar
quais são os limites que precisamos preservar para poder transportar esse conceito sem que
ele se desmonte320. Já deixo adiantado, e a sobrevivência do pensamento do Epicuro no
formato de máximas, de novo, é exemplo disso, que em tese seria preciso muito pouco para
produzir uma efetividade. Se vamos carregar conosco algumas coisa a mais é porque a teoria
dos afetos do Espinosa nos interessa a partir do ângulo e dos destaques que faremos.

320
Há uma certa inspiração, pela maneira como Deleuze parece operar, principalmente na fase final do seu
pensamento, onde os conceitos que ele constrói tem pouca preocupação com adequação (embora possam calhar
ter, ou possam calhar inventar essa adequação). O que interessa é a imagem que é produzida. O conceito é uma
certa forma de composição cuja lei é determinada na composição.
117

II.4. A METAFÍSICA DE BENTO DE ESPINOSA

É sempre bom começar lembrando que a teoria dos afetos é uma parte que, ainda que
absolutamente central no pensamento do Spinoza — ainda que seja o telos para onde se dirige
toda a Ética —, aparece em um momento relativamente tardio. Ela é discutida apenas no
terceiro livro, após o Espinosa ter passado por uma elaboração precisa da sua metafísica, da
sua “pequena física dos corpos”, de parte da sua antropologia (ao estabelecer qual é a relação
entre corpo e mente) e por aquilo que, por falta de termo melhor, podemos chamar da teoria
da experiência espinosana. Esses desenvolvimentos são evidentemente incompletos, já que
embora não sejam subvertidos pela teoria dos afetos, sem os afetos nós acabamos não
entendendo o que faz com que todas essas partes da máquina do Espinosa se movam. Mas não
poderia ser de outra forma. Se concordamos com o axioma da Ética que diz que “o
conhecimento do efeito depende do conhecimento da causa e o envolve” (E I, ax. 4), ou seja,
com o fato de que para entender o que quer que seja, é preciso entender como se dá a sua
produção321, é imprescindível entender como e porque os afetos são produzidos.
Nesse ponto é importante destacar dois pontos. Primeiramente, como diz Espinosa, ainda
que a experiência dos afetos seja aquela que experimentamos de maneira mais próxima e
imediata, ela é definitivamente posterior por natureza (o próprio fato de que um afeto é
sempre provocado por algo, já é um sinal disso). É por essa razão, pelo fato de que o homem
(e consequentemente, seus afetos) não é primeiro na natureza, que ele criticará quem se atém
demais à experiência imediata em detrimento da ordem real das coisas. Essa posição acaba
por provocar inúmeras confusões, pois “a natureza divina, que deviam contemplar antes de
tudo, já que é anterior tanto por conhecimento quanto por natureza, acreditaram ser a última
na ordem do conhecimento, e as coisas chamadas objetos dos sentidos, as primeiras de todas”.
Conclui então que “não é de admirar que a cada passo tenham caído em contradição.” (E II,
10 cor., escol.)
Mas ao mesmo tempo, e isso é, talvez, uma das grandes forças do seu pensamento, a
reflexão sobre essas questões prévias já é parte do caminho para o aprimoramento ético. Não
se trata de uma investigação abstrata sem efeitos reais. Conhecer as coisas é já aumentar o
nosso campo de ação possível. Entender a diferença entre seres finitos e infinitos, seres
substanciais e seres modais, é já um movimento de produção de afetos alegres, afetos que

321
Cf. Ep. 9 e TIE §72, §95-96
118

aumentariam a nossa potência de agir. Dito isso, é importantíssimo que percorramos, se não
todos os pontos, ao menos aqueles que são essenciais para poder dar conta da teoria dos
afetos.

Tentaremos evitar dar conta de todo o livro I da Ética, falarei apenas de alguns pontos
indispensáveis para a produção da teoria dos afetos, sempre atento para algumas nuanças que
nos permitem levar o pensamento do Spinoza o mais longe possível.
O caminho que percorreremos, para começar, é um que vai da diferença de algo infinito
para algo finito. Espinosa nos dá uma definição de finito sem muitos problemas quando diz
que “é dita finita em seu gênero aquela coisa que pode ser delimitada por outra de mesma
natureza” (E I, def. 2). A distinção com o infinito se opera principalmente a partir do fato de
que algo infinito para o Spinoza não é jamais um infinito composto de infinitos elementos
finitos. Não se trata de uma linha ao qual se vai adicionando pontos indefinidamente (o mau
infinito de Hegel). Como podemos ler na carta sobre o infinito (Ep. 12), ele é infinito em sua
essência e se trata de uma grandeza que embora não seja excessiva, são tais “que nãos se
prestam a qualquer determinação numérica” (Ep 12). O infinito, como a definição do finito
faz a gente crer, é a “afirmação absoluta da existência de alguma natureza” (E I, 8, escol. 1).
Algo que é infinito, não podendo ser, portanto, delimitado por qualquer outra coisa, não pode
ter também relação com qualquer outra coisa de sua natureza, não pode ser causado por
qualquer outra coisa em seu gênero. Em suma, quando falamos que algo é infinito falamos de
algo que só consegue existir na medida em que é único322 em seu gênero, caso contrário, esse
ser infinito não conseguiria se afirmar absolutamente323.
É preciso, portanto, ter em mente que o homem (assim como todas as coisas
singulares324), podendo sempre ser delimitado por outra coisa de mesma natureza, jamais é

322
Essa unicidade não deve ser entendida no sentido numérico, mas no sentido de ser uma afirmação plena sem
limites. Lembremos a carta de Spinoza para Jarig Jelles onde Spinoza diz que “uma coisa não pode ser dita só e
única antes que uma outra seja concebida, tendo a mesma definição (como se diz) da primeira.” (Ep 50)
323
Esse algo infinito pode tanto ser uma substância (algo que é em si ou é concebido por si) como um modo.
Toda substância é necessariamente infinita, tal como se atesta no desenvolvimento entre as Proposições E I, P1-
8. Quanto aos modos estes podem ser infinitos ou finitos. Infinitos quando seguem imediatamente de um atributo
(que é a expressão de uma essência da da substância) ou quando seguem mediatamente, ou seja, quando seguem
de um modo infinito (cf. E I, P21). Os modos “finitos”, por sua vez, são necessariamente causados por outros
modos “finitos” (cf. E I, P28) Isso é um tema de grande controvérsia no pensamento do Espinosa, não tendo sido
ele capaz próprio capaz de dar conta da passagem do infinito para o finito como atesta sua troca de cartas final
com von Tschirnhaus (Ep 80-83).
324
Tudo o que falamos aqui é válido, a princípio, para todas as coisas finitas. O primeiro livro da Ética e parte
do segundo não operam propriamente uma distinção entre o homem e outros corpos compostos. Isso fica bem
119

algo que se afirma absolutamente. Muito menos podemos considerar o homem algo
substancial, visto que por não ser infinito, também não pode ser causa de si mesmo325. Ele é
um ser modal, ou seja, ele só é em outro ou é concebido por outro (E I, def. 5). Isso não quer
dizer que, sendo apenas uma modificação da substância (aquilo que é ou é concebido por si),
ele seja algo fictício ou ilusório. Quer dizer apenas que a causa tanto da sua essência como da
sua existência não estão em si (E I, P24) — isso pois só pode haver uma coisa que seria em si
e concebida por si, Deus326, logo, tudo o que há, além de Deus, só pode ser ou ser concebido
nele (E I, P15). Só havendo uma coisa que é causa de si (já que, Deus sendo em si e
concebido por si não pode ser causado por outra coisa), Espinosa pode dizer que “da natureza
divina devem seguir infinitas coisas em infinitos modos” (E I, P16); em outras palavras,
“Deus é causa eficiente de todas as coisas que podem cair sob o intelecto infinito” (E I, 16
cor. 1). É pois nesse sentido, de que o homem não é causa da sua essência ou da sua
existência (E I, P25), que dizemos que o homem não é causa de si. Dito isso, o homem é
necessariamente causado por outro em dois sentidos. Ele é causado, claro, por Deus na
medida em que “Deus é causa imanente de todas as coisas” (E I, P18) já que todas as coisas
são em Deus e dele seguem. Mas ao mesmo tempo, o homem sendo uma modificação finita327
da substância, ele é necessariamente causado por outra modificação finita que é por sua vez
causadas por outra modificação finita e assim até o infinito (E I, P28). Nesse sentido então as
coisas serão causadas por Deus enquanto substância infinita mas também “Deus ou algum
atributo dele enquanto modificado por uma modificação que é finita e tem existência
determinada” (E I, 28 dem.).
Esse caminho seria o suficiente para nos enfiar na espiral de um determinismo vulgar, ou
seja, um determinismo puramente atual328, já que as causas finitas se encadeariam

claro no início da “Pequena Física”: “Com efeito, as coisas que até aqui mostramos são bastante comuns e não
pertencem mais aos homens do que aos demais Indivíduos, os quais, embora em graus diversos, são entretanto
todos animados.” (E II, 13 escol., grifo meu)
325
“A essência do homem não envolve existência necessária, isto é, pela ordem da natureza tanto pode ocorrer
que este ou aquele homem exista como não exista” (E II, Ax. 1)
326
Cf. E I, P1-P15 para a demonstração detalhada sobre o porquê de só poder haver um Deus.
327
Espinosa não se utiliza explicitamente do termo “modificação finita” ou “modo finito”, mas há elementos
suficientes para permitir que nos utilizemos dessa expressão. Espinosa dirá que “as coisas particulares nada são
senão afecções dos atributos de Deus, ou seja modos pelos quais os atributos de Deus se exprimem de maneira
certa e determinada.” (E I, 25, cor., grifo meu) Ou seja, a princípio temos que as coisas singulares são modos.
Logo adiante Espinosa dirá que uma coisa singular “deve ter seguido ou sido determinado a existir e operar por
Deus ou algum atributo dele enquanto modificado por uma modificação que é finita e tem existência certa e
determinada” (E I, 28, dem., grifo meu), o que, creio, permite assumir que as coisas singulares são modificações
que não podem não ser finitas.
328
O problema de um determinismo vulgar, isto é, um determinismo absolutamente sem potência, como
podemos encontrar no atomismo antigo por exemplo, são algumas consequências éticas. Mas antes de falar das
consequências éticas é preciso explicar um pouco mais sobre o caráter ontológico desse atomismo. Penso ver
nesse determinismo uma espécie de visão (não necessariamente consistente) que aparece em diversos momentos
120

infinitamente mas também necessariamente, pois “tudo é determinado pela necessidade da


natureza divina não apenas a existir, mas também a existir e operar de maneira certa, e nada é
dado de contingente.” (E I, 29 dem., grifo meu). Espinosa não nos ajuda a sair dessa
impressão quando um pouco mais adiante no bloco de proposições E I, P31-33 constrói a
absoluta necessidade de tudo o que existe. Ele dirá nessas proposições que “A vontade não
pode ser chamada de causa livre, mas somente necessária” (E I, P32, grifo meu) e que “as
coisas não puderam ser produzidas por Deus de nenhuma outra maneira e em nenhuma outra
ordem do que aquelas em que foram produzidas.” (E I, P33). Espinosa está interessado
demais nesse momento em afastar aqueles que apostam no absurdo de que Deus poderia agir
de forma diferente do que age. “Se as coisas pudessem ser de outra natureza ou determinadas
a operar de outra maneira, de sorte que a ordem da natureza fosse outra, então também a
natureza de Deus poderia ser outra do que agora é” (E I, 33 dem.), o que seria absurdo, já que
Deus, sendo um ser absolutamente infinito, seria o grau máximo de perfeição. Mas há uma
saída no fim da E I.

As proposições E I, P34-36 nos apontam um caminho que retira o elemento infernal dessa
cadeia de causalidade necessária infinita das coisas finitas. Algo que nos parece
absolutamente fundamental para dar sentido ainda ao conteúdo ético dessa obra. Na E I, P34
Espinosa dirá que “a potência de Deus é sua própria essência” (E I, P34). Como diz
Zourabichvili,

a identidade da essência e da potência, não no sentido de que a potência seria a essência do ser
(ontologia vulgar da potência), mas o contrário, no sentido de que o ser só tem potência em virtude da
sua essência, nem sequer à altura da sua essência, como se fosse uma faculdade distinta ou que venha
a ser adicionada a ela, mas sim como potência da essência.329

da história da filosofia que concebe todas as coisas como absolutamente determinadas a partir da simples
combinação dos elementos básicos do universo com a força sendo sempre pensada como um elemento externo à
esses elementos básicos do universo — algo que pode ser descrito como uma morte térmica ontológica. Isso
acaba levando a uma variedade de soluções para dar conta do movimento e da interação (para não falar da
gênese) das coisas: Para ficar com alguns exemplos, no atomismo antigo encontra-se a necessidade de admitir a
existência do vazio, no ocasionalismo cartesiano, por outro lado, encontraremos a ideia de um Deus que a todo
momento esteja refazendo o mundo devido à impotência das próprias coisas. A consequência ética dessa posição
é que elas podem levar a um fatalismo. O fatalismo é problemático não apenas pelo tipo de determinismo que
está nele imbricado, mas pelo fato de que o que ele causa é justamente uma resignação. Essa resignação toma
como irrelevante qualquer discussão ética por simplesmente entender que nada faz absolutamente nenhuma
diferença, tudo estando já pré-determinado. O fatalismo acaba sendo, dessa forma, causa de fraqueza e tristeza.
329
“la identidad de la esencia y de la potencia, no en el sentido de que la potencia sería la esencia del ser
(ontología vulgar de la potencia), sino a la inversa, en el sentido de que el ser solo tiene potencia en virtud de su
121

Não se trata, como destaca o Zourabichvili, de uma ontologia da potência que concebe a
essência do ser como a própria potência de ser (“a essência do ser é justamente poder ser”),
mas se trata do fato de que a essência do ser é justamente aquilo que ele pode — “a potência
de Deus, pela qual ele próprio e todas as coisas são e agem, é sua própria essência” (E I 34
dem., grifo meu). A essência de Deus não é, pois, nem algo puramente atual330, nem uma
potência abstrata, mas uma potência concreta, podemos falar talvez de um campo possível331
— a grande novidade que o Espinosa traz é que, identificando a potência com a essência,
aquela é concebida como atual e necessária332, sem que a força que produza o movimento
causal seja algo externo333. A essência dele é, pois, ao mesmo tempo a potência de causar a si
mesmo e a potência de causar todas as infinitas coisas que existem.
O atualismo de Espinosa se desdobra nesse ponto ao deixar bem claro que tudo aquilo que
de Deus se segue faz parte da sua essência como potência — e não, como em um
determinismo vulgar, como se fossem figuras inertes sem o menor poder causal334. Pois a
potência nesse caso não é de maneira alguma abstrata; ele é tal como as propriedades de um
círculo, que serão dedutíveis necessariamente de sua essência — está complicada335 nele sem
estar desenvolvida.
Tudo de outro que existe (infinitas modificações finitas e infinitas), pela E I, P15, é
necessariamente produzido por Deus, ou seja, tem nele a sua causa eficiente (E I, 16 cor. 1).
Dessa maneira tudo o que é “deve (…) estar compreendido em sua essência, de tal maneira
que siga necessariamente dela” (E I, 35 dem.). Mas não se trata de uma potência abstrata que
pode ou não vir a ocorrer, trata-se de um potência que “age somente pelas leis da sua
natureza” (E I, P17), ou seja, da mesma maneira como “da definição dada de uma coisa
qualquer, o intelecto conclui várias propriedades, que realmente dela (isto é, da própria
essência da coisa) seguem necessariamente” (E I, 16 dem.). Assim podemos dizer que a

esencia, ni siquiera a la altura de su esencia, como si se tratara de una facultad distinta o que viene a
sobreañadirse a ella, sino como la potencia de la esencia.” (Zourabichvili, François. Spinoza - una física del
pensamento. Buenos Aires: Cactus, 2014. p. 88. grifo meu)
330
Por puramente atual quero dizer que a essência de Deus não é um simples conjunto de propriedades.
331
É de vital importância explorar a ideia do possível concreto em Espinosa sem cair nas armadilhas da noção
de possível tão bem descritas por Henri Bergson em seu ensaio “O possível e o real” (Bergson, Henri. O
pensamento e o movente. São Paulo: Martins Fontes, 2006).
332
“O que quer que concebamos estar no poder de Deus, necessariamente é.” (E I, P35)
333
O que seria impossível no sistema do Espinosa, já que nada existe fora da substância Deus que possa causá-lo
(cf. E I 14 dem.)
334
O que seria o caso do determinismo vulgar (i.e., aquele da morte térmica ontológica), que concebe essência e
potência como coisas distintas.
335
Sobre o par complicatio-explicatio em Espinosa cf. Deleuze, Gilles. Spinoza et le problème de l’expression.
Paris: Les éditions de Minuit, 1968.
122

potência de Deus é a sua essência, na medida em que a essência de Deus é a potência de ser
ele mesmo e tudo o que segue dele necessariamente. Em outras palavras, Deus não é
simplesmente o que ele é, ele é tudo aquilo que ele pode [produzir]. Mas sendo Deus — a
pura afirmação absoluta — tudo o que ele pode, ele é336.
Disso se segue a saída de um determinismo vulgar e do fatalismo. A proposição que fecha
o primeiro livro da Ética é justamente a abertura para a possibilidade da ética por meio da
inserção da potência nas coisas singulares (os modos finitos) sem que essa potência
permaneça abstrata. Nela Espinosa diz que “nada existe de cuja natureza não siga algum
efeito” (E I, P36), pois se a potência de Deus é a sua essência e “o que quer que exista
exprime de maneira certa e determinada (…) a natureza, ou seja, a essência de Deus” (E I, 36,
dem.) então “o que quer que exista exprime de maneira certa e determinada a potência de
Deus” (E I, 36, dem.) e dessa expressão “certa e determinada” se seguem necessariamente
certos e determinados efeitos. Cada coisa singular é não só uma modificação singular de
Deus, mas, e justamente por isso, é a modificação singular da potência de Deus. A essência
de algo não é, portanto, um conjunto de propriedades estáticas, mas tudo aquilo que a coisa
pode ser. A título de exemplo, posso dizer que a essência de todo corpo não é uma
configuração de partes inertes (como uma combinação de átomos sem força, por exemplo).
Ela é o que essa configuração específica pode produzir. Meu corpo é não a minha
configuração atual considerada de maneira estática, mas todos os meus movimentos possíveis
é que são a minha atualidade. Dessa forma pode-se dizer que meus movimentos possíveis são
a minha atualidade. E é nesse sentido que o atualismo do Espinosa pode adquirir uma nova
compreensão. Não há determinismo vulgar pois cada essência das coisas singulares é uma
potência — que é limitada, “certa e determinada”, mas relativamente indeterminadas no
sentido de que elas dependem dos encontros com as outras coisas singulares, já que as coisas
singulares sendo modificações da substância, jamais são causas de si mesma, mas sempre são
causadas por uma outra coisa singular, que por sua vez é causada por outra coisa singular e
assim até o infinito337.

Com a ideia de que as coisas singulares são a sua potência, Espinosa começa a esboçar o
caminho que leva não só aos afetos como a sua concepção de virtude (ou seja, como aquilo

336
“O que quer que concebamos estar no poder de Deus, necessariamente é.” (E I, P35)
337
Cf. E I, 28 dem.
123

que pode ser tomado como sentido para a ética), pois os afetos são justamente a variação na
potência de agir que o homem338 experimenta. Para entender em que sentido essa potência de
agir varia, é preciso portanto entender o que são as coisas, como elas se constituem, já que ele
não pode ser tomado como um simples conjunto de átomos infinitamente pequenos. Essa
possibilidade é descartada automaticamente pelo fato de que a única coisa que é em si é a
substância (Deus), logo, seria impossível que existisse átomos que fossem em si. Mas antes de
entrar nesse ponto, é importante que a gente faça um pequeno desvio para falar da questão dos
atributos, pois é por meio da reflexão sobre os atributos, e da relação da tríade substância-
atributo-modo que poderemos esclarecer um ponto da concepção que o Espinosa tem das
coisas que tem consequências gigantescas para a sua ética. Falo aqui do fato de que, para o
Espinosa, não há hierarquia entre extensão e pensamento.
O que nos ajuda a entender como não pode haver essa hierarquia é justamente o seu
conceito de atributo que ocupa um papel intermediário entre a substância e os modos. Como
já foi dito, só podem haver substâncias e modos: “Tudo que é, ou é em si ou em outro” (E I,
ax. 1, grifo meu). Os atributos não são, portanto, coisas que são, mas são justamente “aquilo
que o intelecto percebe da substância como constituindo a essência dela.” (E I, def. 4, grifo
meu). Se o atributo é a maneira como se concebe — e aqui podemos pensar no verbo
distinguir — o que constitui a essência da substância, fica rapidamente claro o porquê do
Espinosa dizer que atributos e substâncias são o mesmo339. O atributo não é pois “algo”, mas
é aquilo que “exprime a realidade” (E I, 10 escol.) considerada segundo uma essência340 da
substância. Sendo essas essências necessárias, eternas e infinitas (pois são a substância),
“cada atributo de uma substância deve ser concebido por si.” (E I, P10). O atributo pode ser
encarado como o processo de distinção qualitativa da substância, a única distinção real que
haveria para Espinosa. Ela não mostra que a substância é numericamente plural, nem que ela
é composta de várias partes que juntas compõem uma totalidade, mas aponta para uma
substância unívoca que se diferencia qualitativamente, ou seja, que é uma multiplicidade sem
ser múltipla. Como já dizia o satanás: Meu nome é legião, porque somos muitos.
Consideremos, além disso, aquilo que já vimos: que a substância, sendo absolutamente
infinita (e sendo necessário a existência dessa substância absolutamente infinita), ela será
necessariamente composta de infinitas essências que são expressas por atributos que não tem
a menor interação entre si. Cada um deles é uma afirmação absoluta e “todos os atributos que

338
Mas todas as outras coisas também.
339
“(…) substância, ou seja, o que é o mesmo, seus atributos” (E I, 4 dem.).
340
“Deus, ou seja, a substância, que consiste em infinitos atributos, dos quais cada um exprime uma essência
eterna e infinita, existe necessariamente.” (E I, P11, grifo meu)
124

ela tem sempre foram simultaneamente nela, e nenhum pôde ser produzido por outro” (E I, 10
escol.). Os atributos são pois expressões distintas da mesma e única substância, ou, como dirá
Deleuze em seu livro sobre Espinosa, “a substância se exprime nos seus atributos, e cada
atributo exprime uma essência”341, de maneira que o que cada atributo exprime é sempre o
mesmo (a substância) em sua multiplicidade (as essências). Os atributos são, portanto, a
substância considerada a partir das suas diferenças qualitativas, de forma que o processo de
expressão é o processo de desdobramento da substância (ou seja, do que dela se segue)
diferencialmente, isto é, de acordo com essências específicas. Como atributo e substância são
o mesmo, a sua essência será a sua potência, incluindo tudo o que dela se segue, ou seja, seus
modos. Cada atributo sendo a substância considerada segundo uma das suas essências
infinitas e eternas não deixa de produzir “infinitas coisas de infinitas maneiras” segundo essa
essência específica. Assim Deleuze pode concluir: “os atributos se exprimem por sua vez:
eles se exprimem nos modos que deles dependem e cada modo exprime uma modificação.”342
Pode-se dizer que temos nesse ponto a distinção qualitativa da substância única expressa nos
modos, ao se considerar que eles podem ser concebidos segundo uma infinidade de
atributos343.
O atributo expressa a diferença qualitativa da substância nos próprios modos porque o que
ele expressa é uma modificação da substância segundo uma essência específica. E nesse ponto
temos uma questão interessante, pois se cada modo é sempre uma modificação que é expressa
segundo um atributo (essência) da substância344, os modos só podem causar e ser causados
segundo um atributo específico. Mas como todos os atributos são todos expressões da mesma
substância e eles se diferenciam apenas qualitativamente, conforme a essência com que se
concebe a substância, é possível, então, encarar uma determinada modificação como passível
de ser expressas de infinitas maneiras, segundo infinitos atributos. Daí a sugestão de G. H.
Schuller na carta 63 de que existem infinitos outros mundos formados por outros atributos345.
Sugestão suscitada pelo próprio Espinosa, quando é dito que “quer concebamos a natureza
sob o atributo Extensão, quer sob o atributo Pensamento, quer sob outro qualquer,
encontraremos uma só e a mesma ordem, ou seja, uma só e a mesma conexão de causas, isto
é, as mesmas coisas seguirem umas das outras.” (E II, 7 escol.) Temos assim duas situações.

341
Deleuze, Gilles. op. cit., p. 10. (tradução minha)
342
Idem, ibidem, p. 10. (tradução minha)
343
Isso sendo válido, não para o intelecto finito humano, mas para o intelecto divino.
344
“Tudo o que segue da natureza absoluta de algum atributo de Deus deve ter existido” (E I, P21)
345
Cf. Ep 63. Essa sugestão de Schuller é dispensada rapidamente por Espinosa, afirmando que o ser humano é
composto apenas por dois atributos. Isso parece nos pôr numa situação complicada que não poderemos tratar
nesse momento.
125

De um lado, os modos são modificações da substância que podem ser concebidos do ponto de
vista de infinitos atributos, ou seja, podem ser expresso de infinitas maneiras. Por outro lado,
essas modificações só existem sempre segundo um atributo346 qualquer e só podem ser
causadas por coisas concebidas segundo esse mesmo atributo qualquer, já que não há relação
de comunicação ou causação entre os infinitos atributos. Fica claro que não existe a
possibilidade de uma modificação não estar já sendo expressa segundo um atributo específico.
Não existe na Ética um “modo neutro” que não seja considerado segundo sob um ponto de
vista, pois a diferença qualitativa não é algo externo, que acontece depois, ela já está
implicada na substância. Temos dessa forma duas maneiras de pensar os modos . A primeira
tomando eles como produtos ou da substância concebida segundo algum atributo específico
ou de modos infinitos ou finitos, também concebidos a partir de um atributo específico. A
segunda maneira de conceber os modos, é como um desenvolvimento da substância que pode
ser expresso de infinitas maneiras, dependendo do atributo que está em questão, sem que isso
implique em 1) uma superioridade de algum atributo sobre outro 2) ou na existência dos
modos fora de qualquer atributo. Não é certamente uma palavra que o Espinosa se utiliza, mas
talvez seja possível pensarmos que há uma questão de perspectiva em jogo aqui. Não uma
perspectiva visual, que o termo ponto de vista pode nos levar a crer, mas uma espécie de
perspectiva ontológica, onde a essência considerada funciona como critério que acaba por
reger e orientar a maneira como o modo será expresso. E é nesse sentido que talvez seja
possível defender que esses atributos exprimam diferentes modos de ser347 sem exprimir
diferentes modificações da substância.
O que parece permanecer problemático é que cada atributo é absolutamente infinito, ou
seja, se afirma sem que encontre qualquer limite, se afirma plenamente. Ora, como é que é
possível que uma substância contenha infinitas essências que se afirmam cada uma em si e
sem ser causada por outrem ou causar qualquer outra essência? Essa confusão é reforçada
quando nos lembramos da proposição que diz que “quanto mais realidade ou ser cada coisa
tem, tanto mais atributos lhe competem” (E I, P9, grifo meu) e nos lembramos que o termo
“realidade” nos deixa sem nenhuma referência. Esse nó do pensamento espinosano pode ser
desatado, mas requer um pouco de trabalho. É preciso entender o que se chama de diferença
qualitativa e também o que são essências. O último é mais fácil, Espinosa dirá que a essência
é algo sem o qual algo pode ser concebido. O segundo se mostra um pouco mais complicado

346
Cf. E I, 16 dem.
347
Modo evidentemente deve ser entendido nesse contexto não no sentido espinosano, mas no sentido de
“maneira”. Nos sentimos autorizados de utilizar essa expressão, “modos de ser”, a partir do que Espinosa fala em
E I, 10 escol.: “cada um [de seus atributos] exprime a realidade, ou seja, o ser da substância” (grifo meu).
126

pois só temos acesso às essências e aos atributos na medida em que eles são expressos. Isso
talvez possa ser contornado se conseguirmos não pensar nessas diferenças qualitativas como
“coisas”, mas a partir da maneira como temos acesso a esses atributos. A expressão mais geral
desses atributos, os modos infinitos imediatos, algo que “segue da natureza absoluta de algum
atributo de Deus” (E I, P21), podem talvez nos dar uma ajuda. Na famosa carta 63, Schuller
pede para Espinosa, em nome de Ehrenfried Walther von Tschirnhaus (sempre ele), aquilo
que todos nós gostaríamos de perguntar quando nos deparamos com a teoria dos atributos
espinosana: “gostaria de ter exemplos das coisas que são imediatamente produzidas por Deus
e daquelas que o são por uma modificação infinita.” (Ep 63) Ao que Espinosa responde,
dando-nos uma preciosa indicação:

“Para os exemplos que vós pedis, os do primeiro gênero [modos infinitos imediatos] são, para o
Pensamento, o entendimento absolutamente infinito; para a Extensão, o movimento e o repouso; os do
segundo gênero, a forma do universo inteiro, que permanece sempre a mesma, embora mude em uma
infinidade de maneiras.” (Ep 64).

Fica um pouco mais claro, a partir do exemplo, como podemos conceber a irredutibilidade de
um atributo ao outro. O atributo da extensão tem como modificação imediata a dinâmica entre
o movimento e o repouso enquanto o atributo do pensamento tem o entendimento
absolutamente infinito como produto imediato de tal atributo. É, preciso se lembrar, ambos
são expressões da mesma substância. Ambos são a mesma coisa, como Espinosa dirá mais
tarde, “um modo da extensão e a ideia desse modo são uma e a mesma coisa, expressa todavia
de duas maneiras” (E II, 7 escol.). Não é o momento ainda de explorar a enigmática natureza
da ideia, mas podemos ao menos ter como indicação que a irredutibilidade de um com o outro
significa que nada que pertence ao atributo da Extensão pertencerá ao atributo do Pensamento
(e vice-versa), ainda que também signifique que ambos os atributos são desenvolvimentos da
mesma substância e que “a ordem e a conexão das ideias é a mesma que a ordem e a conexão
das coisas.” (E II, P7) — é nesse ponto que encontramos mais claramente a univocidade da
substância. Quando concebemos a Extensão como a dinâmica de movimento e repouso pode-
se deduzir daí que o que esse modo infinito imediato exprime são as leis de interação dos
corpos, sua física. Consequentemente, o “entendimento absolutamente infinito” deve ser
entendido como as leis de interação das ideias, a física do pensamento, para se utilizar da
expressão de Zourabichvili. Não são pois interações distintas, por serem desenvolvimentos da
mesma substância, mas as interações sendo concebidas de perspectivas diferentes modificam
127

dessa forma como as coisas se exprimem e como se entende a causalidade sem que isso
modifique a ordem e conexão causal.
Isso ficará mais claro no momento em que falarmos da relação mente-corpo, mas
Espinosa nos fornece um exemplo que pode servir para ao menos facilitar o entendimento
daquilo que ele próprio não consegue explicar claramente: “um círculo existente na natureza e
a ideia do círculo existente, que também está em Deus, são uma só e a mesma coisa, que é
explicada por atributos diversos” (E II, 7 escol.). A produção do círculo na natureza segue a
mesma ordem e a conexão da produção do círculo na mente — ou seja, são o mesmo círculo.
Por ser, porém, um corpo, o círculo na natureza se produz a partir física dos corpos, isto é, das
leis de movimento e repouso que regem os corpos e que fará que certos corpos se
movimentem e se encontrem, de acordo com essa física, de modo a produzir esse outro corpo
finito. Podemos dizer que para esse círculo ser produzido é preciso que a minha mão se
movimente e pegue um lápis, que eu mova esses lápis numa superfície de papel que está em
repouso e que a fricção entre o lápis em movimento e a folha de papel em repouso acabe
deixando um vestígio, traço, do lápis no papel; traço esse que, de acordo com as minhas
habilidades, teria a forma circular a partir de um movimento de arco que realizo com o meu
pulso. Por outro lado, na física do pensamento não há “movimento e repouso”. As ideias não
se movem, mas elas não deixam de se produzirem e de causarem umas as outras348. Então a
ideia do círculo certamente não precisa que corpos efetuem os movimentos elencados acima.
Mas na medida em que faço esses movimentos — e levando em conta que “a ideia verdadeira
deve convir com o seu ideado” (E I, ax. 6) — (já resumindo a história), da ideia de um lápis
com tais e tais características em movimento tomado em conjunto com a ideia de uma folha
de papel com tais e tais características deduz-se a ideia de um traço, e somado à ideia do meu
pulso movendo-se em um formato de arco, segue-se como consequência dessa situação que
essa ideia de um traço será a ideia de um traço em forma circular.

Essas distinções são fundamentais, pois é justamente nesse ponto, na ausência de


hierarquia entre os atributos (e mais especificamente entre os atributos de Extensão e
Pensamento) que Espinosa irá ancorar a relação corpo-alma.

348
O caráter dessa “física do pensamento” será melhor desenvolvida próxima parte. A única coisa que quisemos
pôr em destaque aqui é que a física da extensão e a física do pensamento (e a física referente a qualquer outro
dos infinitos atributos de Deus) operam de maneira diferente.
128

II.5. SOBRE CORPOS, IDEIAS E A MANEIRA QUE SE COMPÕEM

A relação entre o corpo e a alma é um problema clássico da história da filosofia. Esse


problema tradicionalmente procura conciliar uma sensação que experimentamos de que corpo
e alma são unidos na na composição do nosso ser com o fato de que a matéria do corpo e a
matéria da alma aparentam ser de naturezas diversas, sem a possibilidade de relacionar uma à
outra. Essa dificuldade é expressa em certo tom de resignação por Descartes, em carta à
Elizabeth, quando afirma que “parece-me que a mente humana não pode conceber (a) a
distinção da alma em relação ao corpo e (b) sua união como corpo, concebendo-as muito
claramente e ambas ao mesmo tempo.”349 Visto que pensar isso seria “concebê-las como (b)
uma única coisa e, ao mesmo tempo, como (a) duas coisas, o que é contraditório.”350. Se essa
questão persiste, porém, é porque “todo mundo sempre experiência em si mesmo sem
filosofar – simplesmente por saber que é uma pessoa singular que tem tanto corpo e
pensamento”351. Espinosa estará ao mesmo tempo muito próximo de Descartes — na
incompatibilidade entre extensão e pensamento, mas também no fato de que a união, como
veremos, é em certo sentido sentida. Mas por outro lado há uma ruptura enorme entre ele e
Descartes pois há uma rejeição forte da proposta de interação cartesiana entre corpo e
pensamento. Descartes, mesmo ciente da impossibilidade de interação entre esses dois
elementos (por serem de naturezas diversas), irá ainda assim tentar traçar a rede causal que
leva de um ao outro ao postular a glândula pineal como, ao mesmo tempo, eixo de articulação
entre corpo e alma e também como aquilo que permitirá instalar o livre-arbítrio cartesiano.
Nesse ponto Chantal Jacquet faz um bom resumo da situação:

A interação entre a alma e o corpo se efetua, em Descartes, por intermédio da glândula pineal, situada
atrás do cérebro, de uma tal maneira que a cada movimento da glândula é unido um pensamento. Essa
correspondência entre um movimento da glândula e um pensamento é uma instituição da natureza, de
modo que o medo na alma dispõe o corpo a um movimento de fuga, mas pode ser modificado pelo
hábito e pela indústria, a fim de que, por exemplo, à cólera, à qual se junta naturalmente um
movimento da glândula que impele os espíritos animais em grande quantidade para o braço a fim de
bater, seja associado outro movimento, como a retenção. O exercício e o direcionamento de que são
dadas ilustrações no artigo 50 [das Paixões da alma] podem assim modificar o curso dos espíritos
animais e permitir adquirir um poder absoluto sobre as paixões. Esse império da alma é em realidade

349
Descartes, René; Elisabeth, Princesa. Correspondências de 1643 entre Descartes e Elizabeth. Inquietude,
Goiânia, vol. 4, n. 12 ,p. 183, 12, jan./jul. 2013.
350
Idem, ibidem.
351
Idem, ibidem.
129

um império sobre o corpo, seja no caso do movimento voluntário ou no caso do controle das paixões
pelo exercício e o hábito.352

A solução espinosana não poderia caminhar para um ponto mais distante. Primeiramente
ela não tem essa preocupação que se encontra em Descartes de preservar o livre-arbítrio — a
liberdade tem todo um outro sentido em seu pensamento. Espinosa também não cai no erro
cartersiano de criar uma relação causal entre extensão e pensamento, e por conta disso ele não
é obrigado a ficar caçando um elo entre os dois. A solução dele passa por dois pontos: o
primeiro, que já tratamos, que é a relação entre substância, modos e atributos, que, tal como
ele dispõe, permite que concebamos que uma coisa seja única (uma modificação finita da
substância) mas que ela se expresse de várias maneiras (de acordo com vários atributos) sem
que alguma dessas expressões seja superior a outra (sem que o império da alma seja um
império sobre o corpo, ou vice versa). O segundo ponto, que devemos explorar para poder ter
uma concretude melhor dessa relação, é o que o Espinosa entende por corpos e por ideias, por
extensão e pensamento. Como devemos conceber o atributo da extensão e o atributo do
pensamento? Passando por esses pontos poderemos ter uma clareza maior sobre o que
Espinosa quer dizer quando ele fala que “a ideia do corpo e o corpo, isto é (pela Prop. 13
desta parte), a Mente e o Corpo são um só e o mesmo indivíduo, o qual é concebido seja sob
o atributo do Pensamento seja sob o da Extensão.” (E II, 21 escol.)

352
Jacques, Chantal, op. cit., pp. 61-62 (grifo meu)
130

II.5.1. A natureza dos corpos

Na hora de falar dos atributos, o único que Espinosa de fato explica e desenvolve com
clareza é o que diz respeito aos corpos, ou seja, à extensão. Em E II, 13 escol. ele irá elaborar
detalhadamente quais são as leis que regem esse atributo, permitindo que se compreenda
como os corpos agem e quais são os seus limites. A física da extensão espinosana é bem
simples. Ela trata da natureza, da constituição e da interação dos corpos. Ela não é tão
fundamentada como as outras partes da Ética, mas seu caráter provisório, como se fosse um
placeholder para um trabalho futuro, não é o suficiente para diminuir sua potência. E o que
nós teremos, ao fim dessa física é a visão de um mundo onde os corpos não tem nenhum
substrato último inerte (nenhum atomismo vulgar). A física da extensão nos joga em um
relacionalismo violento que acaba por definir os corpos mais em termos de suas diferenças do
que em qualquer suposta identidade a si próprio.

Para começar Espinosa determinará que o critério de distinção entre os corpos é da ordem
do movimento e do repouso, mas também da velocidade desse movimento (ora mais rápido,
ora mais lento)353. Isso acaba não sendo simplesmente uma diferenciação entre os corpos, mas
aquilo mesmo que irá definir o que um corpo extenso é a partir daquilo que ele pode fazer:
“Com efeito, todos os corpos convêm em que envolvem o conceito de um só e o mesmo
atributo (pela Def. 1 desta parte)” (E II, lem. 2 dem.). Além disso, “[convêm] em que podem
mover-se ora mais lentamente, ora mais rapidamente e, em termos absolutos, ora mover-se,
ora repousar.” (E II, lem. 3 dem., grifo meu). O que há, portanto, de comum entre todo e
qualquer corpo extenso, sua natureza, é que eles ou se movem (em velocidades diferentes) ou
repousam em relação a si mesmos354. Temos portanto dois eixos que determinam a relação
diferencial entre os corpos: 1) eixo movimento-repouso (discreto), 2) eixo rapidez-lentidão
(contínuo). Com essa primeira distinção Espinosa dá conta da constituição ontológica dos
corpos, ou seja, determina-se não como esse corpo foi produzido (o que seria a sua
constituição genética) mas a maneira como ele se diferencia de todos os outros corpos. A

353
“Os corpos se distinguem uns dos outros em razão do movimento e do repouso, da rapidez e da lentidão, e
não em razão da substância” (E II, lem. 1)
131

escolha por começar pelo elemento diferencial já mostra que, independente da maneira como
é produzido, os corpos sempre se determinam relativamente aos outros, eles são enquanto
diferenças dos outros corpos — diferença, que no caso da extensão, diz respeito aos eixos
movimento-repouso e rapidez-lentidão. A sua constituição genética é, enquanto modo finito,
sempre a partir de outro modo finito sob o atributo da extensão, que por sua vez também foi
determinado por outro modo finito sob o mesmo atributo e assim por diante.355 Ou seja, se um
corpo é constituído pelas relações de movimento e repouso e de velocidades que ele tem com
relação aos outros, isso deve necessariamente ocorrer por determinação de outros corpos.
Assim sendo as próprias mudanças num corpo também não podem acontecer sem que um
outro corpo o tire da sua configuração atual.
Como os corpos se determinam diferencialmente, é inevitável que as suas interações
acabem por depender da natureza de ambos os corpos, “de modo que um só e o mesmo corpo
é movido diferentemente conforme a diversidade de natureza dos corpos moventes e
inversamente, corpos diversos podem ser movidos diferentemente por um só e mesmo corpo”
(E II, ax. 1 após lem. 3 corol.). Pois se os corpos são sempre relativos uns aos outros, as
interações possíveis não podem ser determinadas de maneira absoluta sem referências aos
corpos. Os tipos de interações possíveis são delimitadas pela natureza do corpo afetado e do
corpo afetante, de modo que será possível, inclusive, que Espinosa aponte para o que acontece
quando dois corpos se encontram e as suas dimensões são incompatíveis:

quando um corpo em movimento atinge outro em repouso e não pode demovê-lo, é refletido de tal
maneira que continua a mover-se no ângulo da linha do movimento de reflexão com o plano do corpo
em repouso que foi atingido será igual ao ângulo que a linha do movimento de incidência formou com
o mesmo plano (E II, ax. 2 após lem. 3 corol.)

Um corpo, portanto, não é simplesmente um elemento produzido, como vimos quando


falamos da E I, P36. Há uma potência produtiva de cada coisa singular que faz com que ele
não pare de afetar e ser afetado por infinitas coisas singulares, simultaneamente ou não. O
mundo que se desenha a partir dessa parte da Ética é um onde as coisas são apenas na medida
em que se diferenciam. E elas só podem se diferenciar na medida em que são causadas ou que
causam. Não é possível dessa maneira crer em nada nessa física que é em si (como um
atomismo vulgar nos faria crer). As coisas só são na medida em que estão em relação com

354
Esse repouso deve ser considerado relativo. Ou seja, não se trata de um repouso absoluto, mas de uma
mesma velocidade nos dois corpos em questão.
132

outras coisas e, em certa medida, com todos os elementos do universo, visto que se
certamente nem tudo está numa relação causal direta, todas as coisas reverberam
indiretamente356.
Mas há um outro tipo de corpo, os corpos compostos que trazem consigo um outro critério
de distinção, que é a sua composição interna. Podemos falar de corpos compostos

quando alguns corpos de mesma ou diversa grandeza são constrangidos por outros de tal maneira que
aderem uns aos outros, ou se movem com o mesmo ou diverso grau de rapidez, de tal maneira que se
comunicam seus movimentos uns aos outros e todos em simultâneo compõem um só corpo ou
Indivíduo, que se distingue dos outros por essa união de corpos. (E II, def. antes de lem. 4, grifo meu)

O critério que aparece aí é o da união desses corpos. Mas essa união não pode ser uma
união de átomos, como já falamos. Os corpos simplíssimos se distinguiriam por relações de
movimento e repouso, logo pode-se falar de um corpo composto apenas na medida em que
diferenças de movimento e de repouso, rapidez e lentidão se coordenam, seja em repouso (no
caso em que “aderem uns aos outros”), seja em movimento (no caso em que “se movem com
o mesmo ou diverso grau de rapidez”). O que importa é que nessa coordenação a relação
diferencial entre as partes se mantenha. Daí Espinosa afirmar que é preciso que, no caso de
movimento, que as partes comuniquem seus movimentos, ou seja, que as mudanças por quais
uma determinada parte sejam comunicadas à outra (por meio do seu movimento) de maneira
que a outra parte se mova e mantenha a mesma relação diferencial que essa parte. Mas, e isso
talvez seja um ponto interessante, isso não quer dizer que as partes tenham uma tendência
espontânea a se unir e compor um corpo. Elas formam um corpo apenas na medida em que
são constrangidas a isso, na medida em que algo cause não só que duas partes se coordenem
mas que estabeleça uma relação entre as partes que faz com que elas por sua vez acabem por
reforçar a sua constituição. Esse constrangimento não é uma super bonder, mas é a criação de
um circuito de relações relativamente autônomo que passa a “funcionar sozinho”. Como
sabemos bem que circuitos de relações absolutamente autônomas não podem existir — já que,

355
“Um corpo em movimento ou em repouso deveu ser determinado ao movimento ou ao repouso por outro
corpo, que também foi determinado ao movimento ou ao repouso por outro, e este por sua vez por outro, e assim
ao infinito.” (E II, lem. 3)
356
De acordo com Espinosa esse ponto dirá respeito aos corpos simplíssimos. Mas o que seriam esses corpos?
Espinosa diz que são aqueles que se distinguem simplesmente nos eixos movimento-repouso e rapidez-lentidão.
Essa questão não pretendemos resolver aqui, mas o caminho que parece mais indicado é tomar esses corpos
como hipótese lógica, caso contrário acabaríamos caindo no atomismo vulgar que o próprio Espinosa parece
querer sair quando fala que os corpos são relativamente uns aos outros mas que também são sempre causados
por outros. Além disso, nada nos impede de dizer que o que foi abordado até agora não se aplica também aos
corpos compostos, na medida em que os corpos compostos se comportam como corpos simplíssimos se
133

mesmo que um corpo seja constituindo, que um certo circuito se estabeleça, nada garante que
elementos externos não possam afetar/alterar/destruir esse corpo/sistema — diremos que um
corpo é um sistema que, enquanto ele persiste, tem uma força centrípeta maior que a força
centrífuga, ou seja, as causas se encadeiam e reverberam numa tendência (em nada
espontânea) à manutenção do corpo.
A rejeição ao atomismo persiste quando Espinosa discute a maneira como persiste a
identidade diferencial de um corpo a despeito da alteração das suas partes. Daí a descrição de
quatro mutações possíveis que um corpo pode sofrer sem que ele deixe de ser o corpo em
questão, sem que ele mude a sua forma. Temos aí ao mesmo tempo as condições de
permanência e de transformação de um corpo. 1) A primeira alteração diz respeito à troca das
partes. Como as partes são relações diferenciais de movimento-repouso e rapidez-lentidão
caso uma parte seja separada mas substituída por outra que estabeleça as mesmas relações
diferenciais com outras partes, o corpo “manterá a sua natureza de antes, sem nenhuma
mudança de sua forma. Um exemplo disso é o fato de que todos os dias ingerimos nutrientes
com as comidas, que ainda que diferentes (ontem comi frango, hoje comi ovos), essas
comidas vão acabar estabelecendo a mesma relação no meu corpo. As suas relações
diferenciais se mantém “ainda que ocorra uma contínua mudança de corpos” (E II, lem. 4
dem.)357. 2) A segunda alteração diz respeito ao crescimento ou diminuição das partes.
Segundo a mesma lógica da alteração anterior, caso as partes de um corpo modifiquem de
tamanho mas mantenham a mesma relação de proporção não é possível falar em mudança de
forma. Exemplo disso é o desenvolvimento do corpo humano na passagem da adolescência
para a vida adulta358, onde as partes do corpo modificam o seu tamanho (ele já está de fato
mais ou menos desenvolvido) mas mantendo a mesma proporção. 3) A terceira alteração,
como a quarta, tem a ver com o movimento do corpo ou de uma parte do corpo. Na terceira o
que está em questão é a movimentação de algumas partes. Para Espinosa

consideramos eles em sua unidade (e não na medida em que são compostos). Assim sendo, movimento-repouso
e rapidez-lentidão seriam critérios de distinções dos corpos compostos, sem ser a única distinção.
357
Há um caso limítrofe dessa situação, que não é abordado nesse ponto que é no caso de um corpo perder uma
parte que não é substituída sem que o corpo perca a sua relação de proporção. O exemplo clássico desse
movimento é no caso de um homem que perde o braço. Pode-se dizer nesse momento, porém, que ele se
transforma e não se transforma. Pois ao mesmo tempo em que o seu corpo continua funcionando exatamente da
mesma maneira, sem um braço o homem tem que modificar uma série de hábitos e práticas.
358
Sabemos que a passagem da infância para a maturidade para Espinosa é de fato uma mudança de forma. Por
isso preferimos falar aqui em adolescência, quando grande parte das partes do ser humano já está desenvolvida
sem que as alterações de tamanho tenham se interrompido. Gostaríamos que aqui nesse exemplo se considerasse,
portanto, a transformação do corpo físico, ou seja, o tamanho das suas partes (cabeça, tronco, pernas, braços etc).
134

se alguns corpos, componentes de um Indivíduo, são coagidos a mudar a direção de seu movimento de
um lado para outro, mas de maneira tal que possam continuar seus movimentos e comunicá-los entre
si com a mesma proporção de antes, igualmente o Indivíduo manterá a sua natureza sem nenhuma
mudança de forma. (E II, lem 6)

Desde que nessa movimentação de alguma das partes, a comunicação dos movimentos se
mantenha na mesma proporção, não se pode falar em transformação. Como quando movo o
meu braço, que pode ficar em diversas posições sem que por isso a forma global do meu
corpo seja alterada. 4) A quarta alteração, como adiantamos, também tem a ver com
movimento, mas ela se refere ao movimento total do corpo composto. No caso Espinosa dirá
que desde que um corpo mantenha as mesmas relações de proporção na medida em que ao se
mover o corpo inteiro, todas as suas partes mantenham a mesma relação diferencial.
Fica claro que há uma plasticidade na forma do corpo, pois “vemos porque razão um
Indivíduo composto pode ser afetado de várias maneiras, conservando, contudo, a sua
natureza.” (E II, escol. Após lem. 7) A plasticidade de um corpo é o que o Espinosa chamará
de figura, ou seja, os limites de mudanças que um corpo pode sofrer sem que ele altere a sua
natureza. Essa noção é reforçada ainda mais no momento em que Espinosa detalha as formas
que as partes de um corpo aderem umas às outras, ou seja, a maneira que essa união das partes
(que é o que constitui um corpo359) pode variar. Dependendo de que relação de aderência há
entre as partes dos corpos360 os corpos podem ser chamados de duros, moles ou fluidos. Esta
relação de aderência pode variar conforme tenham uma superfície maior ou menor, o que
acaba por dificultar mais ou menos uma alteração na sua situação. Quanto maior a superfície,
mais difícil o indivíduo ser coagido a mudar de situação e, por fim, maior a dificuldade de que
o corpo adquira outra figura. Quanto menor a superfície, mais fácil ser coagido e,
evidentemente, mais fácil que o corpo assuma outra figura. Duros serão os corpos de maior
superfície, moles os de menor superfície e fluidos “aqueles cujas partes se movem umas por
entre outras” (E II, ax. 3 antes do lem. 4) — fica evidente que um corpo fluido está nos limites
de ser considerado um corpo, isto é, de ter ainda uma unidade. Há, porém, um papel
importantíssimo para os corpos fluidos, já que se os corpos são de fato compostos por partes
duras, moles e fluidas361, por meio das partes fluidas de um corpo é possível que um corpo

359
“aquilo que constitui a forma do Indivíduo consiste na união dos corpos” (E II, escol. após lem. 4)
360
Que podem ser, e são, por sua vez, partes de outros corpos, que por sua vezes são partes de outros corpos e,
como diz Espinosa, “se continuarmos assim ao infinito, conceberemos facilmente que a natureza inteira é um
Indivíduo, cujas partes, isto é, todos os corpos, variam de infinitas maneiras sem nenhuma mudança no indivíduo
inteiro.” (E II, escol. após lem. 7)
361
“Dos indivíduos de que o Corpo humano é composto, alguns são fluidos, alguns moles e, por fim, alguns
duros.” (E II, post. 2)
135

exterior possa imprimir vestígios do seu corpo na parte mole do nosso corpo. Isso acontece
pois como a parte fluida é de uma alterabilidade extrema, ao ser determinada pelo corpo
externo a atingir a parte mole, a parte fluida irá se ordenar conforme o corpo externo.
Consequentemente, ao atingir a parte mole, ela modifica a sua superfície, imprimindo nela
vestígios do corpo externo que foram comunicados pela parte fluida362.
Como essas partes nunca existem em si (mesmo que fossem corpos simplíssimos, elas
seriam apenas relações diferenciais) é importante ressaltar que esses tipos são eles mesmos
relativos. O que é duro para um corpo vai ser mole para outro, o que é fluido para um será
mole para outro e assim por diante. A dureza, moleza ou fluidez de um corpo é sempre uma
questão de escala e ponto de vista. Essa descrição das relações de aderência não só nos
ajudam a compreender a plasticidade dos corpos, mas só reforçam para nós como os corpos
nunca podem ser considerados em si, mas sempre a partir das relações que ele entretem com
outros corpos, que vão fazer com que consideremos eles mais ou menos plásticos a partir de
tal ou tal ponto de vista363. A própria maneira como a relação entre as partes se determina já
contém nela um potencial de variação, de modo que a forma de um corpo comporta inúmeras
figuras.
Espinosa pode então concluir nos postulados que “os indivíduos componentes do Corpo
humano364 e, consequentemente, o próprio corpo humano, são afetados pelos corpos externos
de múltiplas maneiras.” (E II, post. 3) O corpo é afetado, alterado, de múltiplas maneiras, sem
que por isso ele perca a sua forma, sem que ele transforme a sua natureza. A transformação da
natureza de um corpo sempre se dá quando se altera as relações entre as partes de modo que
elas componham uma nova relação de proporção entre as partes. Relações essa, visto que se
tratam de corpos extensos, são sempre relações de movimento-repouso e rapidez-lentidão.
Pois ao fim e ao cabo, com todas as especificidades que descrevemos aqui, num nível
fundamental, é isso, e apenas isso, que os corpos podem fazer e fazem: se mover ou repousar,
mais rapidamente ou mais lentamente.

362
“Quando uma parte fluida do Corpo humano é determinada por um corpo externo a atingir amiúde uma outra
mole, ela muda a superfície desta última e como que imprime nela alguns vestígios do corpo externo que a
impeliu.” (E II, p. 5)
363
“Esses termos [durus, mollis, fluidus, magnus, parvus] não qualificam a natureza ou as propriedades de tal
corpo que designariamos para além das suas relações com outros [corpos], mas [qualificam] as suas relações. Em
si, os ossos não são mais duros que o sangue é em si. O que não quer dizer que dentro de certos contextos, ou
relativo à certas situações, eles não podem ser qualificados como duros, moles ou fluidos.” (Vinciguerra,
Lorenzo. Spinoza et le signe. Paris: Vrin, 2005. p. 127. tradução minha)
364
Como Espinosa deixa claro no início de E Ii, 13 escol., essas relações não dizem respeito apenas aos corpos
humanos, mas a qualquer corpo composto.
136

II.5.2. A natureza das ideias

Se o corporal é definido a partir do movimento — é corpo o que se move — então fica


excluído pensar as ideias desse ponto de vista.365 A elaboração do atributo do pensamento
deve passar por outra via. Infelizmente, porém, a física do pensamento não é nem sequer
esboçada por Espinosa. Como apontam os trabalhos excelentes de Lorenzo Vinciguerra366 e
François Zourabichvili367, qualquer tentativa de lidar com esse atributo passa sempre por uma
espécie de (re)construção arqueológica a partir dos poucos momentos em que o Espinosa fala
desse atributo. Deixamos então de aviso que o que se pretende elaborar aqui é, obviamente,
uma reconstrução também, fortemente inspirada pelos trabalhos de Vinciguerra e
Zourabichivili, mas com acentos ligeiramente diferentes. Podemos dividir a reflexão sobre a
física do pensamento em três partes. Primeiramente a natureza da sua unidade atômica, ou
seja, a ideia. Gostaria de inicialmente tentar entender o que o Espinosa quer dizer quando ele
fala da ideia. O segundo momento falará sobre como as ideias se relacionam entre si, os
efeitos que elas geram e a maneira como elas se compõem e se decompõem.

Para tratar dessa unidade atômica que é a ideia, o caminho (tomado pela maioria
esmagadora dos comentadores, e que será também o nosso) é a enigmática afirmação no
Tratado da emenda do intelecto que afirma que a ideia é sensação368. A frase em si deixa bem
claro inclusive que não se trata de delimitar o conteúdo da ideia. Diz Espinosa que: “em si

365
É possível afirmar que as ideias se movem apenas num sentido metafórico, como veremos adiante.
366
Idem, ibidem.
367
Zourabichvili, François, op. cit.,
368
Há dois caminhos possíveis a se tomar quando falamos da ideia, um diz respeito ao seu aspecto objetivo e
outro ao seu aspecto formal. Pensar a ideia a simplesmente a partir da sua objetividade é pensar ela como mera
referência. É tomar o E I, ax. 6 debaixo do braço e assumir que a ideia se esgota na sua função referencial. Diz o
axioma que “A ideia verdadeira deve convir com o seu ideado”. Mais para frente, no início da segunda parte do
livro, Espinosa falará sobre esse ideado, afirmando que “o objeto da ideia que constitui a Mente humana é o
Corpo, ou seja, um modo certo da Extensão, existente em ato, e nada outro.” (E II, P13) O ideado seria sempre
um corpo. Cada ideia, na medida em que for verdadeira, convirá sempre com um corpo. No entanto, como
aponta o Espinosa um pouco antes, isso não explica a ideia. Que ela convêm com um corpo é fruto da
univocidade entre os atributos. Não podemos, portanto, entender a ideia como produzida a partir de um corpo.
Ela não é verdadeira por concordar com o corpo, mas concorda com o corpo por ser verdadeira. Devemos
portanto atentar para o aspecto formal da ideia, ou seja, pensar a ideia enquanto ideia. Já que, como diz o
Espinosa “o ser formal das ideias reconhece como causa Deus apenas enquanto considerado como coisa
pensante, e não explicado por outro atributo.” (E II, P5) A escolha que se faz aqui é apenas para poder explicar a
137

mesmo, [a ideia] nada mais é que tal sensação” (TIE §78). Antes de entrar no que se chama de
sensação é interessante pegar a pista de Vinciguerra, que começa falando sobre a noção de
dúvida em Espinosa para esclarecer o contexto dessa frase enigmática. Nesse momento do
TIE está-se falando sobre “a ideia dúbia, isto é (…) aquelas coisas que podem nos arrastar
para a dúvida” (TIE §77). É preciso deixar bem claro que a dúvida tem todo um outro estatuto
no pensamento do espinosano, contrário até à maneira cartesiana de concebê-la. Não há
voluntarismo na dúvida, não é possível “duvidar arbitrariamente” das coisas: “falo do
verdadeiro duvidar na mente, e não daquele que muitas vezes vemos acontecer, a saber,
quando por palavras, ainda que o ânimo não duvide, alguém diz que duvida” (TIE §77). Isso
jamais poderia ser uma dúvida verdadeira já que para o Espinosa a dúvida não está na coisa
que duvidamos369. Ela ocorre quando não temos a menor certeza sobre como proceder entre
ideias que se opõem. Daí a descrição do duvidar como aquele momento que “se dá por outra
ideia, que não é tão clara e distinta a ponto de podermos, a partir dela, concluir algo de certo
acerca da coisa da qual se duvida”. (TIE §78) A dúvida não é um elemento voluntário, mas
uma consequência inevitável (e de certa forma indesejável posto que nos deixa dilacerado) de
uma falta de clareza. A dúvida cartesiana, aquela que provêm de uma suspensão do juízo
voluntária é, por sua vez, como aponta Vinciguerra, efeito de um espanto370. O voluntarismo
da dúvida cartesiana é tomado por Espinosa como fruto de uma causa qualquer que nos
deixou sem conseguir elaborar qualquer continuidade e que nos prende na contemplação371 de
apenas uma ideia. Nas palavras de Vinciguerra, “sobrevindo algum acaso, a surpresa é como
um tempo morto na atividade do espírito. Nada além. Estamos surpresos pois não sabemos
atribuir significado àquilo que ocorre.”372 Voltaremos a esse ponto mais para frente quando
falarmos da natureza “relativa” das ideias, mas é importante deixar claro que esse momento
de contemplação é o ponto em que a ideia não vai para além, quando ela se estaciona e não se
conecta com outras ideias.
Voltando ao contexto da citação inicial. Tomando a ideia sozinha, isto é, de maneira
contemplativa, não há nela o menor resquício de dúvida ou inquietação. Temos apenas “tal
sensação” nua que permanece nesse ponto sem avançar nem retroceder. Isto é, a ideia sem

ideia a partir dela enquanto ideia e não enquanto ela convêm com outro atributo — já que essa conveniência é
explicada na teoria dos atributos e será também retomada quando falarmos da relação mente-corpo.
369
Nisso implicado está a noção de que para Espinosa a falsidade e o erro não tem nenhum elemento de
positivo. Como consequência disso, “se houver apenas uma única ideia na alma, quer ela seja verdadeira, quer
falsa, não se dará duvidar algum, nem tampouco certeza, mas apenas tal sensação.” (TIE §78)
370
Ou, nos termos do Espinosa, admiração.
371
“esta distração da Mente [a admiração] não se origina de nenhuma causa positiva que distraia a mente das
outras coisas, mas apenas da ausência de uma causa pela qual a Mente, da contemplação de uma coisa, seja
determinada a pensar em outra.” (E III, 4 AD expl.)
138

conexão com qualquer outra ideia é identificada por Espinosa como algo que “nada mais é
que sensação”. Se consideramos o momento do espanto como aquele em que não
conseguimos nem dar conta do que ele é no momento do espanto junto ao fato de que depois
do espanto podemos fazer sentido dele (ainda que com graus variados de sucesso nisso), fica
um pouco mais claro a concepção dele como um “tempo morto”, como um momento em que
não é possível conectar a ideia-sensação com nenhuma outra. A sensação nua acaba sendo
simplesmente a possibilidade de determinada conexão com outras ideias, possibilidade essa
que pode ser pensada como uma distinção373 — mas trata-se, no caso de uma sensação
solitária, de uma possibilidade não atualizada (e por isso hipotética374), visto que ela não está
conectada a nenhuma outra ideia. Como o tempo posterior é justamente um de conexão
daquela experiência do espanto (que no instante do seu acontecimento era apenas uma
momento sem nenhuma continuidade) com outras ideias, me parece evidente que a
consequência disso é que a ideia-sensação só ganha contornos na medida em que ela se
engancha com outras ideias. Um exemplo claro disso, me parece, é a sensação que temos
quando vamos escutar música375: Quando nós ouvimos uma nota tocada por um violão, um
dó, um fá, etc., embora consigamos escutar esse som, fora de qualquer contexto ele não tem o
menor sentido, temos apenas um som que é rigorosamente ininteligível. É evidente que
estando sempre inseridos em algum ambiente, essa nota nunca é escutada num vazio. Estamos
sempre em um contexto sonoro, que é o que permite que a gente possa escutar (operar
distinções entre esse som da nota do instrumento e o som ambiente), que pode inclusive
permitir que essa nota tenha algum valor mesmo “isolada” (já que ela não estaria de fato em
um vácuo sonoro). A música, ou a melodia, é aquilo que depende do encadeamento de outras
notas, outros sons produzidos pelo violão. A nota singular apesar de ser algo que tem uma
existência positiva, portanto, de fato apenas tem sentido quando ela está relacionada às notas
que vem antes e depois dela. A experiência de não conseguirmos conectar as ideias com
qualquer coisa nos oferece uma possibilidade de pensar a natureza da ideia pois ela torna

372
Vinciguerra, op. cit., p. 44 (tradução minha)
373
Pode-se pensar nas sensações como a experiência de distinções que na medida em que se complexificam
podem se tornar mais e mais sutis. Daí o interesse do momento do “tempo morto”. Como se trata de uma
experiência razoavelmente bruta (por não conseguir se conectar com nenhum ponto) o momento é estranho pois
visível, mas ao mesmo tempo absolutamente ininteligível por não conseguirmos relacionar essa sensação com
nenhuma outra.
374
É uma possibilidade hipotética pois ainda que nós tenhamos a experiência do espanto, essa ideia só ganha
sentido, forma, contorno na medida em que conseguimos conectar ela com outras ideias. Ou seja, no momento
em que ela não é mais espanto em ato. De certa forma é como se a experiência do espanto só viesse existir
quando ela já não pode mais ser espanto.
375
O recurso a uma fenomenologia barata é devido à impossibilidade de tratar da sensação de maneira atômica,
ou seja, a partir de unidades basais (já que elas são hipotéticas). Daí o uso de um exemplo em que as ideias-
sensações já estão num nível de complexidade altíssimo.
139

visível tanto a natureza da ideia enquanto sensação como também a dependência que a ideia
tem de outras ideias, ou seja, seu caráter relativo. É a sua sequência que nos permite
experimentar cada uma das notas como uma distinção específica.
No que diz respeito a natureza da ideia como sensação, concordamos com a descrição que
Vinciguerra da ideia como “significante sem significação. Ela afirma, abre àquilo que é
presente. Ela assinala a presença antes mesmo de determinar aquilo que é presente.”376 Ela, a
sensação, é

o índice daquilo que em cada ideia constitui a brisura de um contínuo e uma disposição ao sentido e ao
conhecimento (…). A sensação não é então um elemento primeiro ou a origem do conhecimento, ela é
mais o sentimento de que uma distinção se faz. É o ato mesmo da distinção própria à ideia que faz
sensação: “isso (esse vermelho)!” — ou seja, o efeito contraste do plano e da mancha, que faz que
alguma coisa seja distinguida ou percebida, como sendo tal vermelho.377

Essa impossibilidade da ideia ter algum sentido autônomo e próprio nos leva a crer,
portanto, que o seu caráter relativo não é acidental, mero acaso das ideias serem postas juntas,
mas é efetivamente constitutivo da ideia. Isso nos leva para o segundo ponto que gostaríamos
de analisar, o caráter plural das ideias e a relação que elas entretêm entre si.
Antes se prosseguir acho que é importante apenas deixar mais um ponto em destaque. Nos
parece evidente, a partir do que foi elaborado, que a sensação é algo que pertence ao atributo
do pensamento, da mesma maneira que o movimento pertence ao atributo da extensão. Não há
nos corpos nenhuma sensação, há apenas movimento (e repouso). Entre as ideias, por outro
lado, não há nenhum movimento, há apenas sensações, que são essas teias de relações de
distinções. Um corpo, portanto, jamais sente, quem sente é apenas a mente.

Aqui talvez se trata propriamente da física das ideias se entendemos por física aquilo que
rege o comportamento das ideias entre si. Pretendemos falar, portanto, da maneira como elas
são produzidas — produção que é descrita pelo Espinosa quando ele fala da definição
genética —, mas também da relação que as ideias tem entre si. Comecemos pelo ponto
anterior.

376
Idem, ibidem, p. 53 (tradução minha)
377
Idem, ibidem, p. 55 (tradução minha)
140

A definição genética é o método que o Espinosa vai se utilizar para definir as coisas a
partir da sua produção. Ou seja, definir algo não é apenas dar uma definição nominal
(definindo os limites do uso da palavra), mas dar uma definição que dê conta do processo de
produção de tal ideia — sua causa eficiente. Um exemplo clássico da definição é a definição
que o Espinosa dá do círculo:

Para procurar as propriedades do círculo, por exemplo, pergunto-me se posso, definindo-o pela
equivalência de todos os retângulos formados com os segmentos de uma reta que passe por um ponto
dado, dessa ideia deduzir todas as suas propriedades, ou diria, se ela envolve a causa eficiente do
círculo. Como assim não é, considero uma outra, a saber, que o círculo é uma figura descrita por uma
linha reta, da qual uma extremidade é fixa e a outra é móvel. Como aí tenho uma definição que
exprime uma causa eficiente, sei que posso deduzir todas as propriedades do círculo etc. (Ep 60)

Uma ideia não é pois, simplesmente, uma ideia, ela, é sempre produto de uma produção (e
por sua vez ela pode se tornar produtora de um outro produto), isto é, de uma relação de causa
e efeito. Uma ideia tem a sua gênese, portanto, não no seu caráter objetivo, como já dissemos,
mas no movimento de ser causada por outra ideia.
Precisamos desempacotar melhor essa noção de causa. No início da Ética, nos primeiros
axiomas, Espinosa irá dizer que “o conhecimento do efeito depende do conhecimento da
causa e o envolve.” (E I, ax. 4) Se compreendemos que o conhecimento se dá sempre no
âmbito do pensamento, fica patente que as ideias que tem qualquer relação são ligadas
segundo uma lógica de causa e efeito, mas uma lógica de causa e efeito em que a causa não é
sublimada ao gerar determinado efeito, ela continua envolvida naquilo que é produzido —
esse tipo de ligação pode muito bem ser chamado de encadeamento. O que temos de partida
nesse axioma é que, salvo uma causa inicial absolutamente incausada378, as ideias são sempre
complexas/compostas. Assim como na física da extensão, a natureza da ideia como sensação
relega a uma hipótese teórica a existência de ideias simples, já que a natureza de uma ideia
singular é ela mesma relativa. A maneira como essas ideias se organizam, porém, é diferente
da física dos corpos. Se de fato há uma espécie de auto-organização das ideias (como quando
falamos nos corpos constrangidos), ela segue outros princípios.
O primeiro ponto a se destacar é que nessa auto-organização que as ideias tem ao
comporem ideias compostas o critério diz respeito à conectibilidade das distinções. Se as
ideias são sensações, e as sensações são distinções possíveis, não há outro lugar para procurar
a natureza da relação entre as ideias. Uma distinção possível pode ser pensada como um

378
O que não faz sentido, visto que mesmo a substância é causa de si.
141

movimento de individuação, isto é, um movimento que estabelece formas (sempre mais de


uma, já que a diferença sempre se funda numa pluralidade379). Sobre esse ponto Espinosa dirá
que

quem diz que percebe uma forma, mostra por isso que concebe uma coisa limitada, e de que maneira
ela é. Essa determinação não pertence à coisa enquanto ela é, mas ao contrário, indica a partir de onde
a coisa não é. A forma, portanto, não é outra coisa senão uma limitação, e toda limitação, sendo uma
negação, a forma não pode ser, como disse, outra coisa que uma negação. (Ep 50)

Devemos então pensar que as distinções que são as ideias são sempre processos de
individuação que podem se dar de inumeráveis maneiras. No entanto, como as ideias são
distinções possíveis, não há nada a princípio que, nelas mesmas, determine tal ou tal conexão.
Ou dito de outra maneira, cada ideia, tem sempre um limite infinito de possibilidades de
conexão que só pode ser confirmada em ato. É possível imaginar as ideias como espécies de
ganchos380. Todas as ideias são possibilidades de conexão, mas se elas vão se conectar ou
com quem vão se conectar isso depende de uma infinidade de fatores. Isso fica bem claro
quando o Espinosa pensa na plausibilidade de alguém ter na mente a ideia de um cavalo alado
que não seja contradita:

concebamos uma criança imaginando um cavalo alado e não percebendo nenhuma outra coisa. Visto
que essa imaginação envolve (…) a existência do cavalo e que a criança não percebe qualquer coisa
que suprima a existência do cavalo, ela necessariamente o contemplará como presente; e não poderá
duvidar da existência dele, ainda que não esteja certa disso. (…) Concedo ademais, que ninguém se
engana enquanto percebe, isto é, concedo que as imaginações da Mente, consideradas em si mesmas,
não envolvem nenhum erro (…); mas nego que o homem nada afirme enquanto percebe. Pois o que é
perceber um cavalo alado senão afirmar asas do cavalo? Se, com efeito, a Mente não percebesse nada
além do cavalo alado, contemplá-lo-ia como presente a si, e não teria causa alguma para duvidar de
sua existência nem faculdade alguma de dissentir, a menos que a imaginação do cavalo estivesse
unida a uma ideia que suprime a existência dele, ou que a mente percebesse ser inadequada a ideia
que tem do cavalo alado e então, ou negaria necessariamente a existência desse cavalo ou dela
duvidaria necessariamente. (E II, 49 escol., grifo meu)

379
“Com efeito, nós não concebemos as coisas como existentes em um certo número de exemplares senão após
reconduzi-las a um gênero comum. Quem tiver em mãos, por exemplo, um sou [centavo] e o escudo só pensará
no número dois se dispuser o sou e o escudo sob uma mesma denominação, a de peças de moeda.” (Ep 50)
380
“Pense em pequenos ganchos, o universo inteiro sendo composto de pequenos ganchos. E se você balança
eles, então os ganchos se juntam, especialmente se esses ganchos são dobrados em ambas as pontas. Você tem
que dar uma balançadinha. Todo mundo pode tentar isso em casa. Ponha anzóis em um pote e balance ele. Então
tire eles para fora do pote. Todos estarão conectados. Maravilhosa auto-organização. Tudo o que eu preciso fazer
é balançar. E nada mais.” (von Foerster, Heinz. The beginning of heaven and earth has no name. Nova Iorque:
Fordham University Press, 2014, p. 34. tradução minha)
142

Temos aí uma espécie de critério pragmático para o encadeamento das ideias381. O cavalo
alado só é dubitável na medida em que há outras ideias que suprimam a ideia do cavalo alado
— ou, que o restrinjam a um âmbito menor, como reduzi-lo a uma entidade imaginária382. O
critério é se tal ou tal ideia consegue funcionar (ou, como o Espinosa fala, não havendo
“qualquer coisa que suprima” ela). Não tendo uma ideia que a suprima, a encadeação se torna
possível. O critério das distinções é, portanto, a maneira como as ideias estão encadeadas.
Para falar melhor desse movimento — até para nós conseguirmos destacar outro elemento
dessa física — vou dar um exemplo de um tipo de coisa que acontece corriqueiramente
comigo, isto é, a constante reorganização de certas ideias a partir da chegada de um elemento
novo. Quando comecei a me interessar por filosofia, após o fim do colégio (e não foi nada boa
a experiência no colégio), ouvia falar de alguns nomes e quando parecia ser alguém
interessante eu acabava entrando na Wikipédia para ler a sua entrada. Numa dessas fui parar
na página de Jacques Derrida. Existe (ou existia) uma parte desse artigo que falava sobre as
críticas ao seu pensamento, principalmente as críticas ao seu estilo obscuro/confuso e por
alguma razão (razão que já não faz mais sentido, e por conta disso se dissolveu sem deixar
traços) cismei que muita gente não considerava Derrida um filósofo (o que persiste em alguns
círculos ainda), mas sim um jornalista. Não saberia explicar de onde tirei isso — talvez eu
tenha pensado isso ao ler sobre a posição institucional precária que ele sempre teve na França
—, mas o fato é que durante algum tempo (e mesmo quando peguei as primeiras coisas para
ler dele) eu lia ele desse ponto de vista, como alguém que era alvo dessas críticas. Toda uma
imagem de Derrida se construiu em minha mente e se relacionava àquela leitura inicial que fiz
na Wikipédia e, portanto, pensava nele primariamente como um jornalista que praticava
filosofia. Vê-se aí os ecos do que o Espinosa fala no axioma mencionado quando diz que o
conhecimento do efeito depende e envolve o conhecimento da causa. Nesse meu caso o efeito
era absolutamente deformado pela maneira como eu concebia mal a figura Derrida. Na ideia
que eu tinha do pensamento de Derrida, como isso aparecia para mim, estava envolvido a
maneira específica que eu o considerava. Um tempo depois acabei voltando pra mesma
página e não consegui encontrar nenhum traço dessa minha leitura passada. Aquilo
simplesmente não fazia mais sentido, aquela imagem de um Derrida-jornalista era
imediatamente suprimida toda vez que eu tentava pensar ela. A mudança e a reorganização

381
Há uma questão importante a se tratar, mas não nesse momento. Falo da diferença entre as ideias adequadas e
as não adequadas mas também entre os diferentes gêneros do conhecimento. Mas o momento para falar disso
será quando falarmos de questões epistêmicas. No momento presente falamos apenas da física das ideias, então
não estamos levando em conta os pontos de vistas que que orientam as ideias de tal ou tal perspectiva.
382
Imaginária entendido aqui no sentido amplo.
143

das ideias fez com que aquilo que eu pensava, “Derrida-jornalista”, não pudesse mais fazer
sentido. Era uma espécie de quimera do pensamento.
As ideias se relacionam, portanto, sempre a partir de uma teia cujo critério é dado sempre
pela própria organização atual. Como disse Espinosa, em E II, 49 escol., as ideias não
envolvem nenhum erro, elas são apenas uma pura sensação. Elas só podem ser tomadas como
falsas ou como verdadeiras dado um contexto, dado uma determinada organização das ideias.
Vimos que os corpos se organizam enquanto compostos na medida em que eles, as causas,
estão dispostos de tal maneira que eles sejam impelidos a permanecerem juntos. As ideias
também acabam se organizando de maneira semelhante em ideias compostas na medida em
que elas são impelidas a permanecerem juntas, Cria-se nisso uma espécie de mecanismo em
que estando unidas faz surgir uma tal organização que ela mesma acaba impelindo as ideias a
permanecerem unidas, uma espécie de mecanismo de feedback negativo.

Pode-se supor, após essa apresentação da física das ideias, que temos em Espinosa um
pensador de “dois mundos” – ou, no caso, infinitos mundos, considerando que há infinitos
atributos –, como é atribuído a Platão. Isso seria, porém, um erro, já que desconsidera dois
pontos. O primeiro é que não há entre esses dois atributos nenhuma hierarquia. O “mundo das
ideias” espinosano não é mais real que o “mundo dos corpos”. Persistir nesse erro é também
esquecer o caráter simultâneo da expressividade dos atributos, que tratamos acima.
Gostaria de falar porém, de falar sobre esse atributo de outro ponto de vista, já que agora
temos ferramentas suficientes para poder distinguir de maneira menos vaga os atributos da
extensão e do pensamento. Enquanto os corpos são movimentos, as ideias são sensações, que
por sua vez são distinções. Essa concepção das ideias como distinções nos deixa bem
próximos da teoria da informação que se desenvolveu ao longo do século XX. A definição do
quantum de informação que o antropólogo Gregory Bateson dá não soará em nada estranha
para ouvidos acostumados com o pensamento de Espinosa: “o que queremos dizer com
informação — a unidade elementar da informação — é uma diferença que faz diferença”.383
Com uma concepção das física das ideias espinosana tornada inteligível (na medida do
possível), podemos agora prosseguir e tentar entender de que maneira corpos e ideias se
relacionam.

383
Bateson, Gregory. Steps to an ecology of mind. Chicago: University of Chicago Press, 2000. p. 459 (tradução
minha). Retomaremos mais adiante a possível relação entre a filosofia espinosana e o pensamento cibernético.
144

II.5.3. A relação entre ideias e corpos

Corpos e ideias são, como pôde ficar evidente, dois tipos absolutamente irredutíveis. Um
dos pontos mais interessantes do pensamento do Espinosa, com todas as questões que isso
pode trazer, é que há uma tentativa de entender a relação entre os corpos e as ideias sem que
se sacrifique um termo pelo outro. Nem o corpo é submisso às ideias, nem as ideias se
submetem ao corpo — não há sequer uma relação causal . Não se fala com isso que eles não
tenham a menor ligação, mas a ligação não é uma de submissão, e nem pode ser, pois, como
vimos, um não se reduz ao outro. É esse ponto, aliás, que nos interessa. Como dissemos e não
custa repetir, o nosso interesse (apesar de não parecer, dado esse longo movimento
preparatório) é o conceito de afeto de Espinosa. Não simplesmente a maneira como ele
concebe os afetos, mas como, a partir dessa concepção, podemos lidar com eles. Pois o afeto
é, como veremos, uma espécie de dimensão das possibilidades dos corpos. Pode-se nesse
ponto enxergar melhor o valor de se entender a relação entre corpo e mente, já que o afeto é a
expressão de uma variação simultânea em modificações da mesma substância considerada sob
atributos diferentes — variação que se exprime de maneira diferente segundo cada um dos
atributos. Como se dá, então, essa simultaneidade?
A resposta para Espinosa está na já mencionada proposição enigmática E II, P7. Nela
Espinosa dirá que: “a ordem e a conexão das ideias é a mesma que a ordem e a conexão das
coisas”. A justificativa dessa proposição está pautada no fato de que as ideias tem não só uma
realidade formal, mas também uma realidade objetiva384. Pode-se com isso dizer que na
medida em que as relações diferenciais se organizam de maneira efetiva, elas acabam por
convir com as relações de movimento e repouso. Não se trata de uma simples teoria da
correspondência aqui, visto que o valor de verdade nas ideias não está na sua
correspondência. Muito pelo contrário. Pode-se ver ao longo da segunda parte da Ética que as
ideias em si mesmas não podem nunca ser falsas, pois “nada há de positivo nas ideias pelo
que sejam ditas falsas.” (E II, P33)
Considerando pois, que cada modificação se exprime de infinitas maneiras segundo
infinitos atributos, é lícito afirmar que uma modificação que se expressa como tal e tal
conjunto de movimentos, ou seja, como um determinado corpo, também é expressa segundo o
atributo das ideias, ou seja, segundo um conjunto de distinções específicas — ou uma série de
diferenças que faz diferença. Dado que a ideia, o conjunto de distinções, sempre se refere
384
“A ideia verdadeira deve convir com o seu ideado.” (E I, Ax. 6)
145

objetivamente a um corpo, “o que primeiramente constitui o ser atual da Mente humana é


nada outro que a ideia de uma coisa singular existente em ato” (E II, P11) , coisa singular
existente em ato que é o (nosso) corpo. O que se diz com isso é que quando falamos sobre um
homem qualquer385 a “ordem e a conexão” dos corpos (ou seja, seus movimentos) é o mesmo
que a “a ordem e a conexão das ideias”. Ambas as redes causais se organizam de maneira
simultânea por serem ambas expressões da mesma substância.
Com isso não se está implicando um paralelismo em sentido estrito386, mas é importante
destacar que se não houvesse qualquer simultaneidade não faria o menor sentido a empreitada
prática que Espinosa realiza na Ética. Fosse o caso de não haver qualquer relação entre ideias
e corpos, seria o caso de reduzir o Espinosa a um estoicismo vulgar. Se faz algum sentido
tratar os afetos pela via do intelecto é porque isso gerará algum efeito em nossos corpos. Essa
relação, explicitada na E II, P7 — mas já presente antes, visto que essa proposição é
simplesmente uma reformulação da simultaneidade dos atributos discutida na primeira parte
da Ética — de simultaneidade entre corpo e ideia em cada coisa determinada, em cada
indivíduo387, é o que condiciona qualquer possibilidade de buscar uma vida melhor por meio
da filosofia388. É o que possibilita, em suma, que um corpo pode ter uma parte na sua
transformação — algo que será trabalhado na última parte desse trabalho.

Descrevemos nesse ponto aquilo que seria a unidade do corpo e da mente, falamos
também da maneira como em cada uma das duas físicas os corpos e as ideias se organizam de
modo a formar indivíduos compostos segundo cada um dos atributos — mas falamos disso
sempre de um ponto de vista relativamente abstrato389. Resta falar dessa unidade de um ponto
de vista prático-concreto. Quais seriam então os elementos que causam a unidade desse
indivíduo? Ou seja, como é que os indivíduos não só se compõem mas permanecem
compostos? No pensamento espinosano vamos encontrar dois elementos que trabalham na
perpetuação de um corpo. São eles a memória e o desejo. É nesse ponto, entre o primeiro e o

385
Ou um ser que tenha um corpo qualquer.
386
Cf. Jacquet, Chantal, op. cit.,
387
Falaremos de indivíduo quando formos nos referir a modificação determinada que se exprime segundo
infinitos atributos.
388
Caso contrário nos restaria simplesmente a medicina.
389
Para roubar uma terminologia kantiana, falamos das condições para que os corpos e as ideias se formem sem
falar de como eles de fato se tornam o que são. Lidamos, portanto, com a relação mente e corpo de maneira
transcendental.
146

segundo elemento, que começamos a transitar para a esfera afetiva — mas deixemos esse
último para mais adiante.
Podemos falar da memória como um elo limite, um coeficiente de elasticidade máxima de
transformação de um indivíduo sem que ele deixe de ser esse indivíduo. Se entendemos por
indivíduo como um sistema que tem a tendência de se reforçar (feedback), a memória é o
limite de alterações que esse sistema pode sofrer sem que a sua dinâmica se modifique.
Vamos falar, pois, dessas alterações, que Espinosa chama de afecções.
147

II.5.3.1. As afecções e os gêneros do conhecimento

Self-consciousness is the lamp of the whole system of


knowledge, but it casts its light ahead only, not behind.
F. W. J. Schelling, System of transcendental philosophy

As afecções podem ser entendidas como o ponto em que somos determinados por outro
corpo (ou a ideia de outro corpo), ou seja, em que um outro corpo (ou a ideia desse corpo)
produz um efeito em nosso corpo (ou na ideia do nosso corpo)390. É dessa maneira que
podemos compreender o que Espinosa fala quando diz que “a Mente humana percebe a
natureza de muitíssimos corpos junto com a natureza do seu corpo.” (E II, 16 cor. 1, grifo
meu) Esse junto é o fato de que a afecção é o ponto em que somos de certa maneira
indistinguíveis daquilo que nos determina. A afecção é, portanto, uma transformação que
pode ser mais ou menos definitiva. Mas o que se chama de indistinguível tem aqui um sentido
específico que é importante esclarecer.
Vamos inicialmente focar no aspecto extensivo da questão. Se concebemos cada corpo
como um conjunto de relações dispostos num sistema de retroalimentação (ou seja, as partes
do corpo se organizam de tal maneira que elas tendem a permanecerem juntas), cada evento
ou acontecimento externo que ocorre com esse corpo, caso não destrua esse corpo391, acaba
por entrar numa relação com esse corpo de modo a fazer parte desse corpo de alguma maneira
— seja por tempo determinado ou indeterminado. Quando eu visto uma roupa, elemento que
não faz parte daquilo que constitui o meu corpo físico, ela não deixa de compor com meu
corpo físico uma terceira composição, que ainda que não seja tão durável como as partes
dessa composição (“corpo do Rafael” + “roupa”), ainda assim é razoavelmente estável para se
poder chamar de um corpo que seja mais que a soma das suas partes. Trata-se de uma afecção
na medida em que “o conhecimento do efeito depende do conhecimento da causa e o
envolve” (E I, ax. 4) — a experiência que se tem dessa composição depende e envolve das
partes que compõem (causam) o corpo “Rafael vestido”. Se vou conseguir separar os
elementos e entender como eles compõem um todo que vai além das partes, isso dependerá do

390
Não faz diferença se o sentido da operação for o inverso. Quando encosto em alguém, ou seja, quando
produzo uma sensação tátil na pessoa em que eu toco, nem por isso deixo eu de sentir uma sensação da parte da
pessoa que eu toco, nem por isso essa parte não produz em mim um efeito, ainda que eu tenha sido o agente da
operação.
391
Falaremos desse ponto um pouco mais adiante.
148

meu conhecimento adequado das causas. Mas mesmo na falta de um conhecimento adequado
(isto é, um conhecimento que se dá pelas causas) o corpo será percebido de maneira a
produzir uma indistinção — a diferença é que teremos uma experiência confusa no caso de
um conhecimento não adequado. Dando uma sequência a esse exemplo, podemos inclusive
pensar o caso em que visto uma roupa que confunde as pessoas que me veem ao maquiar
certos aspectos do meu corpo que eu possa não gostar, como no caso das roupas que podem
engordar ou emagrecer alguém. Como a pessoa não compreende adequadamente como certas
disposições gráficas da roupa podem gerar tal ou tal efeito, muitas vezes elas acabam achando
que o próprio corpo físico da pessoa que usa a roupa é mais ou menos magro. Pode-se dizer,
portanto, que no que diz respeito à extensão (aos corpos), a afecção é uma transformação que
ocorre quando dois corpos (dois conjuntos de complexos de movimentos e repousos) distintos
se determinam392.
No que diz respeito ao atributo do pensamento, Espinosa é bem claro: “A ideia de cada
maneira como o Corpo humano é afetado por corpos externos deve envolver a natureza do
Corpo humano e simultaneamente a natureza do corpo externo.” (E II, P16) Isso não quer
dizer que a ideia da afecção é uma simples soma (ideia do corpo A + ideia do corpo B). Quer
dizer que ela é justamente uma mistura (razoavelmente) estável dessas ideias — o que temos
é um terceiro complexo de distinções (diferenças) a partir maneira como se estabilizam as
distinções de um primeiro complexo com um segundo393. Daí a ideia espinosana de que se nós
(nossa mente) somos “uma ideia de um corpo” e “o que quer que aconteça no objeto da ideia
que constitui a Mente humana deve ser percebido pela mente humana, ou seja, dessa coisa
será dada necessariamente na mente a ideia” (E II, P12), então não temos como perceber (isto
é, operar as distinções) direito nem “a ideia que constitui a mente humana” e nem aquilo que a
afeta, já que o que nós experimentamos é sempre já uma afecção (ainda que mínima, ainda
que imperceptível394). Somos sempre já a nossa mente em um constante processo de
individuação de uma terceira composição que sempre pressupõe a nossa mente (a nossa ideia
de corpo) e a ideia de outros objetos, sem que consigamos ter a experiência de cada um desses
elementos de forma “pura”. Pode-se então dizer que “a mente humana não conhece o próprio

392
Sobre esse ponto seria interessante ler E II, 17 dem., que trata justamente desse processo de determinação
que é a afecção com referência à física da extensão esboçada por Espinosa anteriormente.
393
Não tenho gabarito para me estender nessa comparação, mas me parece próximo demais de uma reação
química.
394
A questão da perceptibilidade, creio, é sempre uma questão de escala. Aquilo que pode ser aparentemente
imperceptível para o meu corpo físico em sua totalidade não necessariamente o é para as partes que o compõem.
Certamente não estou ciente de todas as trilhões de operações que acontecem em meu corpo num nível celular,
mas nem por isso elas deixam de acontecer até formarem eventos que sejam mais perceptíveis na minha escala.
149

Corpo humano nem sabe que ele existe senão pelas ideias das afecções pelas quais o Corpo é
afetado” (E II, P19) mas também que, igualmente, “as ideias que temos dos corpos externos
indicam mais a constituição do nosso corpo que a natureza dos corpos externos” (E II, 16 cor.
2). Somos aqui obrigados a fazer mais um desvio pelo problema do conhecimento que ficou
evidente nas citações acima, ou seja, a impressão que estaríamos sempre reféns de um
conhecimento parcial.

No início da segunda parte Espinosa diz que “por ideia adequada entendo a ideia que,
enquanto é considerada em si, sem relação ao objeto, tem todas as propriedades ou
denominações intrínsecas da ideia verdadeira” (E II, def. 4). Ou seja, uma ideia é adequada —
logo, verdadeira — não porque ela convêm com um objeto, mas é na medida em que ela é
verdadeira que ela acaba por convir. Como a mente humana — essa ideia do corpo, ou seja,
essa sensação do corpo, ou seja, esse complexo de distinções — nunca se dá fora de um
afecção, ou seja, como ela só é "sentida" já enquanto efeito de uma
individuação/transformação da ideia que ela é “em si”395. Essa sensação que somos, na
medida em que somos uma mente, é, portanto, sempre algo de outro que nós mesmos, uma
versão transformada do que somos. Não se pode dizer, portanto, que conhecemos a nós
mesmos, embora a nossa mente esteja envolvida naquilo que sentimos. A justificativa para
isso está bem exposto na E II, 19 dem.:

A Mente humana, com efeito, é a própria ideia, ou seja, o conhecimento do Corpo humano (…), a qual
(…) certamente está em deus enquanto considerado afetado por uma outra ideia de coisa singular; ou
ainda, porque (…) o Corpo humano precisa de muitíssimos corpos pelos quais é continuamente como
que regenerado, e a ordem e a conexão das ideias é (…) a mesma que a ordem e a conexão das causas,
aquela ideia estará em Deus enquanto considerado afetado por ideias de muitíssimas coisas
singulares. Assim, Deus tem a ideia do Corpo humano, ou seja, conhece o Corpo humano, enquanto é
afetado por muitíssimas outras ideias, e não enquanto constitui a natureza da Mente humana, isto é
(…), a Mente humana não conhece o corpo humano. Mas as ideias das afecções do Corpo estão em
Deus enquanto constitui a natureza da Mente humana, ou seja, a Mente humana percebe essas
afecções (…) e, consequentemente (…), o próprio Corpo humano, e este (…) como existente em ato;
logo, a Mente humana percebe o Corpo humano apenas nesta medida. (E II, 19 dem., grifo meu)396

Pois como diz Espinosa: “Os indivíduos componentes do Corpo humano, e consequentemente o próprio Corpo
humano, são afetados pelos corpos externos de múltiplas maneiras” (E II, 13 post. 3)
395
Se é que se pode falar de um “em si”, considerando o caráter composto de virtualmente todas as ideias.
396
Cf. tb E II, 23 dem. (no que diz respeito ao conhecimento da própria mente de si mesma) e E II, 24 dem.: “As
partes que compõem o Corpo humano não pertencem à essência do próprio Corpo senão enquanto comunicam
seus movimentos umas às outras numa proporção certa (…), e não enquanto podem ser consideradas indivíduos,
150

Para termos um conhecimento adequado do corpo teríamos que ter também a ideia
daquilo que nos produz, ou seja, teríamos que ter ideia daquilo que é anterior à experiência
que nós sentimos. Teríamos que ter um conhecimento claro e distinto daquilo próprio que nos
produz. Isso gera um problema de recuo infinito, já que seríamos obrigados a pegar a nossa
própria sombra397. Se o que experimentamos é sempre já uma transformação sobre um fundo
prévio, ficamos relativamente cegos para aquilo que nos compõem. A ideia que temos da
nossa mente é, portanto, apenas um conhecimento não-adequado desse efeito, pois apesar de
envolver e depender daquilo que o compõem, esses elementos não são conhecidos de maneira
adequada (isto é, não são conhecidos pelas suas causas).
O raciocínio para o desconhecimento dos elementos externos segue de maneira similar,
pois “a ideia de uma afecção do Corpo humano envolve a natureza do corpo externo apenas
enquanto o corpo externo determina o próprio Corpo humano de maneira certa.” (E II, 25
dem., grifo meu). Nós conhecemos o corpo apenas na medida em que ele nos afeta, e não em
si. De novo ficamos cego para aquilo que produz o efeito que nós somos.
Esse tipo de conhecimento mutilado será aquilo que o Espinosa chamará de imaginação
(conhecimento do primeiro gênero), ou seja, aquele que não é adequado por não dar conta das
relações de produção das ideias completamente. É uma ordem do conhecimento que lida
apenas com imagens398, ou seja, com “as afecções do Corpo humano cujas ideias representam
os Corpos externos como que presentes a nós, ainda que não reproduzam as figuras das
coisas.” (E II, 17 escol.) A imaginação consiste portanto na contemplação da ideia desse
corpo externo não como ele é, mas a partir da afecção, ou seja, a partir da sua mistura. Não se
trata, como Espinosa esclarece em seguida, de crer que a imaginação, o conhecimento do
primeiro gênero, é necessariamente um conhecimento errado, pois "as imaginações da mente,
consideradas em si mesmas, nada contêm de erro" (E II, 17 escol.). O ponto é antes que, na
ausência de um caráter positivo da falsidade (E II, P33), “a falsidade consiste na privação de

sem relação com o Corpo humano. Com efeito, as partes do Corpo humano são (…) Indivíduos assaz compostos,
cujas partes (…) podem ser separadas do Corpo humano, conservada totalmente a natureza e a forma dele, e
comunicar seus movimentos (…) a outros corpos numa outra proporção; e por isso (…) a ideia ou conhecimento
de qualquer parte estará em Deus, e precisamente (…), enquanto considerado afetado por uma outra ideia de
coisa singular, a qual coisa singular é anterior, na ordem da natureza, àquela parte (…). Ademais, o mesmo
deve ser dito também de qualquer parte do próprio Indivíduo que compõe o Corpo humano; dessa maneira, o
conhecimento de cada parte que compõe o Corpo está em deus enquanto é afetado por muitíssimas ideias de
coisas, e não enquanto tem apenas a ideia do Corpo humano, isto é (…), a ideia que constitui a natureza da
mente humana; sendo assim (…) a Mente humana não envolve o conhecimento adequado das partes que
compõem o Corpo humano. (E II, 24 dem., grifo meu)
397
Sobre esse problema, conferir o vídeo de Iain Hamilton Grant:
https://www.youtube.com/watch?v=cMoTh3HpO0E
398
Sobre como imagens são antes corpos que ideias, cf. Vinciguerra, op. cit.,
151

conhecimento que as ideias inadequadas, ou seja, mutiladas e confusas, envolvem.” (E II,


P35). O erro, quando há, estaria não nas ideias em si, mas no encadeamento que elas realizam,
ou seja, na maneira como as distinções se organizam. Isso fica ainda mais clara quando
Espinosa diz que “nenhuma [ideia] é inadequada nem confusa a não ser enquanto referida à
Mente singular de alguém” (E II, 36 dem.)
Pode-se dizer dessa forma que o que guia a imaginação, o que organiza esse processo é
antes a noção de memória. Mas se a memória é a própria concatenação, veremos, a partir da
explicação do Espinosa, que o próprio processo de encadeamento pode ser concebido a partir
da noção de hábito.

Com efeito, não é nada outro que alguma concatenação de ideias que envolvem a natureza das coisas
que estão fora do corpo humano, a qual ocorre na mente e segundo a ordem e a concatenação das
afecções do Corpo humano. Digo, primeiro, que a concatenação é apenas daquelas ideias que
envolvem a natureza das coisas que estão fora do Corpo humano, e não das ideias que explicam a
natureza dessas mesmas coisas. Pois, em verdade, são (…) ideias de afecções do Corpo humano, que
envolvem tanto a natureza dele quanto a dos corpos externos. Digo, segundo, que essa concatenação
ocorre conforme a ordem e a concatenação das afecções do Corpo humano, para distingui-la da
concatenação de ideias que ocorre segundo a ordem do intelecto, pela qual a mente percebe as coisas
por suas causas primeiras e que é a mesma em todos os homens. (E II, 18 escol., grifo meu)

A imaginação é portanto um encadeamento de ideias que se ordena e concatena a partir da


ordem das próprias afecções. Mas apesar de esse encadeamento não ser feito segundo a ordem
do intelecto, ou seja, segundo a ordem de produção das coisas, nem por isso ele é
necessariamente inadequado. A questão é que esse encadeamento não é realizado pela razão,
mas pelo hábito, pelo processo de contração das afecções. O hábito sendo justamente esse
processo de ligação entre diferentes afecções, por qual “cada um conforme costumou juntar e
concatenar as imagens das coisas desta ou daquela maneira, a partir de um pensamento
incidirá em tal ou tal outro.” (E II, 18 escol., grifo meu), forma nesses movimentos de
contrações sucessivas uma cadeia de sentido. Daí o exemplo que Espinosa insere no final
desse escólio ao falar da leitura diferente que um soldado e um camponês fazem da mesmo
vestígio de um cavalo na areia. A maneira como cada um desses dois irá ler aquele vestígio
(se esse vestígio é algo relacionado à guerra ou ao arado) depende da maneira como estão
encadeadas as causas, ou seja, depende justamente das contrações anteriores, dos hábitos
adquiridos por meio de sucessivos encontros. Essa cadeia, como dissemos, não
necessariamente corresponde à ordem de produção das coisas, mas nem por isso ela deixa de
ter qualquer valor ou é necessariamente inadequada. A maneira como organizamos o mundo
152

pode ser bem efetivo ainda que seja um encadeamento dependente das nossas afecções.
Pensemos por exemplo no caso histórico da duração da física aristotélica-ptolomaico. Ainda
que hoje saibamos que a Terra não é o centro do universo e que somos nós que giramos em
torno do sol e não o inverso, nem por isso essa física não teve sua utilidade por mais de mil e
quinhentos anos. Isso pode ser pensado também numa escala menor: como no fato de que não
há a menor diferença se lavo a minha mão por saber que o sabão irá retirar a gordura que está
presente na minha mão ao operar uma reação química ou simplesmente pelo costume de ser
obrigado a lavar minhas mãos por meus pais durante toda a minha infância. Ambas as ações
serão igualmente efetivas nesse caso, ainda que a segunda ação não seja fundada em nenhuma
compreensão dos elementos envolvidos nesse ato de lavar as mãos.
Os conhecimentos de primeiro gênero podem ser considerados como efetivos desde que
não se deparem com situações que travam o seu encadeamento ou que apontem problemas ao
longo do encadeamento, ameaçando tal organização das ideias. Retomando uma hipótese de
Rodrigo Nunes, é possível especular que num futuro infinitamente distante mesmo que
consigamos finalmente produzir um saber filosófico-científico que dê conta de todas as
questões, todos os problemas, todos os acontecimentos do nosso universo, ainda assim é
possível que esse saber não se adeque à “verdade do universo”. Queremos dizer com isso que
em muitas situações o conhecimento imaginativo tem uma potência enorme, visto que ele, por
estar refém das afecções, acaba estando invariavelmente atado a questões e problemas
concretos que surjam na realidade. Mas se “o conhecimento do primeiro gênero é a única
causa da falsidade, o do segundo e do terceiro, por outro lado, é necessariamente verdadeiro.”
(E II, P41)
Vamos tentar entender o que são esses dois outro gêneros do conhecimento. O
conhecimento de segundo gênero é aquele que será o conhecimento das coisas comuns. O
conhecimento do segundo gênero tem, porém, um elemento estranho. Pois ainda que esse
conhecimento seja “necessariamente verdadeiro”, ainda assim ele não dirá respeito às coisas,
já que “o que é comum a todas as coisas (…) e está igualmente na parte e no todo não
constitui a essência de nenhuma coisa singular.” (E II, P37) Esse tipo de conhecimento se
funda, pelo contrário, no lema 2 da Ética, que diz que “todos os corpos convêm em alguma
coisa” (E II, lem. 2), pois todas as coisas que pertencem a um mesmo atributo invariavelmente
compartilham algo, nem que seja um elemento extremamente geral e, por isso mesmo,
relativamente inútil. A verdade do conhecimento comum está no fato de que quando dois
corpos se determinam a partir de uma propriedade em comum, a ideia dessa afecção
necessariamente irá envolver a propriedade comum sem que seja necessário nenhuma outra
153

coisa para pensar essa propriedade em si — a propriedade em comum é portanto concebida


intrinsicamente sem precisar de nenhum elemento externo para compô-la.399 No que diz
respeito a essa propriedade, ao menos, haverá um conhecimento adequado.400 Nesse sentido
pode-se compreender as coisas comuns como aspectos compartilhados por diversos corpos
quando postos em comparação mas que não dizem respeito à sua essência. Pode-se dizer
então que as coisas comuns tem dois tempos. Elas são num primeiro tempo condição de
contato, já que sem elas, ou seja, sem algo em comum (mesmo algo extremamente geral,
como o fato de ser um corpo composto por movimento e repouso), não seria possível qualquer
relação. No segundo momento elas são o efeito de um contato; como diz Deleuze, “ela
exprime as relações de conveniência ou de composição dos corpos existentes.”401 Mas elas
também são o próprio princípio de um conhecimento mais estável (segundo a razão) por não
se apoiar na concatenação das afecções, mas no que as coisas tem em comum. É com isso em
mente que Espinosa irá dizer que a ideia “é determinada internamente, a partir da
contemplação de muitas coisas em simultâneo, a entender as conveniências, diferenças e
oposições entre elas; com efeito, toda vez que é internamente disposta desta ou daquela
maneira, então contempla as coisas clara e distintamente.” (E II 29 escol.)
O elemento estranho, portanto, é o fato de que se a coisa comum é a relação entre as
coisas concebida de maneira adequada, essa coisa não é uma propriedade de algo singular. Ela
é sempre algo que é dependente de uma comparação, já que essa coisa comum é um elemento
generalizável entre dois corpos. Como a comparação não se finca em nenhuma propriedade
singular, o elemento generalizável de uma relação (fora as relações mais gerais) pode sempre
acabar por se desfazer caso o ponto de vista seja alterado. O caso clássico da gestalt do pato-
coelho é exemplar nesse ponto. Não podemos comparar a imagem do coelho com outros
coelhos em nossa mente no momento em que olhamos essa imagem enxergando um pato (o

399
Isso se verifica pois para Espinosa “todas as ideias, enquanto referidas a Deus, são verdadeiras” (E II, P32).
Assim sendo, explica-se um pouco adiante a maneira como as coisas comuns são referidas a Deus: “Seja A o que
é comum e próprio ao Corpo humano e a alguns corpos externos e, por fim, igualmente na parte de qualquer
desses corpos externos e no todo. A ideia adequada do próprio A será dada em Deus (…) tanto quanto tem a
ideia do Corpo humano como enquanto tem as ideias dos corpos externos supostos. Suponha-se agora que o
Corpo humano é afetado por um corpo externo mediante o que tem em comum com ele, isto é, por A; e por isso
(…) a ideia desta afecção, enquanto envolve a propriedade A, será adequada em Deus enquanto afetado pela
ideia do Corpo humano, isto é (…), enquanto constitui a natureza da Mente humana; e por isso (…) esta ideia é
adequada também na Mente humana.” (E 39 dem.)
400
Sobre o caráter dessa coisa comum, é interessante ler as observações de Zourabichvili, 2004, p. 164-168 e
mais especificamente esse trecho: “Mas existe essa ideia separada em Deus? A resposta é não, daí a segunda
fórmula. As propriedades comuns singulares existem na natureza (ou no entendimento infinito) de um modo
envolvido. Não se as confundirá com essas propriedades da natureza pensante que são as ideias, nem com as
propriedades destas últimas que também serão ideias, enquanto partes componentes (assim, por exemplo, a ideia
do braço, como propriedade dedutível da ideia do corpo humano)” (Zourabichvili, op. cit., p. 167. tradução
minha)
154

inverso também sendo verdadeiro). Ver nessa imagem um pato exclui os coelhos, ver um
coelho exclui os patos.

Figura 1. Imagem de um Pato-Coelho

Além disso, não se poderá ter acesso à essa coisa comum de maneira absoluta
(primeiramente porque ela não é “algo”), pois se ela é quem condiciona a relação entre os
corpos, ela fica sempre razoavelmente encoberta. Na verdade, pode ser vista como a própria
condição para “conveniências, diferenças e oposições” que podem ter agora um fundo para
dele se destacar.
O conhecimento comparativo do segundo gênero, não parece, dessa forma, se opor ao
conhecimento imaginativo. Em certo sentido é possível inclusive supor que o conhecimento
imaginativo é condicionado de antemão por coisas comuns, já que não é possível afecções
que não tenham nem as propriedades mais gerais de todos os indivíduos (como aquela exposta
na física da extensão). Devemos também lembrar que as contrações habituais acabam, na
construção dos encadeamentos, apresentando possibilidades de semelhança que poderiam não
haver antes. Podemos pensar evidentemente nos vestígios de um cavalo que são encontradas
na areia. O soldado enxergará um cavalo de guerra pois os hábitos e as experiências anteriores

401
Deleuze, Gille. Espinosa - filosofia prática. São Paulo: Escuta, 2002. p. 99
155

levaram ele a pensar nisso com mais frequência. Mas nem por isso deixa de existir uma
semelhança entre os vestígios de cavalo e o cavalo que ele tem em sua memória. Se podemos
porém dizer que o conhecimento comparativo é mais estável, é no sentido em que ele
funciona como um solo firme para os encadeamentos das ideias, a comparação. Dessa
maneira é possível dizer que o conhecimento de segundo gênero é um que tem a sua solidez
na medida em que ele funciona, na medida em que ele não é desfeito por algum giro de
perspectiva que faz com que aquele solo se dissolva ao desmontar uma comparação em nome
de outra.402
Resta, por fim, o conhecimento de terceiro gênero.403 Esse gênero que Espinosa nomeou
ciência intuitiva possui uma larga história de incompreensões na sua recepção. Não são
poucas as pessoas que buscam nesse conhecimento a abertura para alguma intuição mística
vaga que você antes sente do que entende. Quero acreditar que há uma concepção mais
desinflada da ciência intuitiva. É o que tentarei expor aqui.
Começamos pela própria descrição que Espinosa dá desse gênero: “este gênero de
conhecimento procede da ideia adequada da essência formal de alguns atributos de Deus para
o conhecimento adequado da essência das coisas.” (E II, 40 escol.)404 Essa descrição breve é
pouco clara no que ela quer dizer. O passo primeiro para compreendê-lo é, portanto, tentar
entender a passagem do conhecimento do segundo gênero para o do terceiro. É preciso
lembrar dois pontos em que esses dois conhecimentos convergem. Primeiramente, ambos
esses conhecimentos são necessariamente verdadeiros. Ou seja, esses tipos de conhecimento
são sempre adequados e por causa disso só vão produzir conhecimentos adequados405. Dessa
maneira é apenas a partir desses dois conhecimentos que “nos ensina[m] a distinguir o
verdadeiro do falso.” (E II, P42) O segundo aspecto compartilhado é aquilo mesmo que
garante a verdade desses conhecimentos, ou seja, o fato de que tomam as coisas sempre do

402
E quando dizemos que ele “não funciona” não estamos querendo dizer que ele se tornou falso. O ponto aqui
tem a ver com uma certa noção de funcionalidade. Isso talvez fique claro com um exemplo: É inegável que bem
antes do homem conseguir construir um avião ou um balão, o sonho de voar era algo presente no imaginário
humano. Mas durante grande parte desse tempo, antes de inventarem ele, o homem colecionou uma série de
fracassos. É possível especular que parte desse fracasso estava relacionado a uma comparação infrutífera, isto é,
as asas dos pássaros. Os modelos de máquinas ou vestimentas tentavam imitar os mecanismos de vôo dos
pássaros. Só no momento em que se mudou de perspectiva e se deixou de ter esse tipo de vôo como modelo é
que o homem conseguiu desenvolver o avião tal como conhecemos hoje em dia. Ou seja, aquela relação de
semelhança entre as tentativas fracassadas de voar e o vôo dos pássaros não desapareceu, apenas se tornou algo
inócuo.
403
Nenhuma das discussões aqui presentes sobre o conhecimento de terceiro gênero seria possível sem as
intermináveis conversas que tive com Pedro Gomlevsky tentando dar um sentido para esse tipo de conhecimento
sem que resvalássemos no misticismo barato que assombra esse tema.
404
Mais adiante, na quinta parte, encontraremos essa descrição similar: “O terceiro gênero do conhecimento
procede da ideia adequada de alguns atributos de Deus para o conhecimento adequado da essência das coisas” (E
V, 25 dem.).
156

ponto de vista da necessidade ou, nos termos do Espinosa, “é da natureza da razão perceber as
coisas sob algum aspecto de eternidade” (E II, 44 cor. 2)
A partir dessa semelhança pode-se entender melhor como se produz o salto entre esses
conhecimentos. É preciso lembrar que em certo sentido, assim como o conhecimento
imaginativo depende da existência de coisas comuns, o fato de termos coisas comuns depende
por sua vez de uma univocidade em cada atributo. Para que haja esse tipo de conhecimento do
segundo gênero, para que ele seja possível, é preciso que exista alguma comunicabilidade
entre as coisas de um dado atributo. Ou seja, o fato de todas as modificações compartilharem
das propriedades do atributo no qual são expressas (movimento e repouso no caso dos modos
que se exprimem segundo o atributo da extensão) é condição necessária para a existência de
propriedades comuns, para que possa haver qualquer comparabilidade. Só podemos especular
sobre essa justificativa, porém, a posteriori — a partir da experiência de coisas comuns. Os
atributos devem, para que faça algum sentido esse tipo de conhecimento, existir tal como se
deduz eles na primeira parte da Ética. É essa experiência que vai fazer com que Espinosa
aponte sobre como o conhecimento do segundo gênero nos direciona para a ciência intuitiva:
“O esforço ou Desejo de conhecer as coisas pelo terceiro gênero de conhecimento não pode
originar-se do primeiro, mas certamente do segundo gênero do conhecimento.” (E V, P 28).
Não somos impulsionados do segundo gênero para o terceiro, mas para o esforço em direção a
ele.
De certa forma, a tentativa de compreender o funcionamento do conhecimento do segundo
gênero nos encaminha para o terceiro. Trata-se de uma especulação sobre o meta-
conhecimento que busca entender a condição metafísica que sustenta o segundo gênero.
Nesse sentido, pode-se dizer que o processo de dedução (ou, para sair da terminologia
espinosana, o processo de invenção) dos conceitos de Deus, de substância, atributo, modo; da
dinâmica das suas relações nos movimento de expressão e de complicatio-explicatio etc. é o
próprio movimento do terceiro gênero406. Estamos aqui bem longe do misticismo barato que
se atribui facilmente ao Espinosa. O conhecimento do terceiro gênero acaba sendo condição
para que o conhecimento de segundo gênero possa se realizar, pois sem o fundo metafísico
das coisas comuns, não será possível que ele se dê.
As proposições do Espinosa na quinta parte da Ética que mais esclarecem o terceiro
gênero parecem apenas confirmar aquilo que falamos. Num primeiro momento ele destaca o
aspecto, que já mencionamos, da eternidade que é inerente à ciência intuitiva: “Tudo que a

405
Cf. E II, 40 dem.
406
Cf. Zourabichvili, op. cit., p. 187
157

mente entende sob o aspecto da eternidade, ela não o entende por conceber a existência atual
do presente do Corpo, mas por conceber a essência do Corpo sob o aspecto da eternidade.” (E
V, P29) Em seguida dirá que “nossa mente, enquanto conhece a si e ao Corpo sob o aspecto
da eternidade, tem necessariamente o conhecimento de Deus e sabe que é em Deus e é
concebida por Deus.” (E V, P30). Nossa mente entende que enquanto conhece a si e ao corpo
sob o aspecto da eternidade, ela terá necessariamente um conhecimento de Deus, pois
conhecer segundo a eternidade é conhecer segundo a ordem de produção necessária.407 O
conhecimento adequado não precisa dar conta, portanto, de todos os aspectos específicos que
compõem o meu corpo, mas sim a compreensão de como se dá a passagem do infinitamente
infinito que é a substância até o modo finito. Como nos lembra Zourabichvili,

Diremos então que o conceito de ciência intuitiva é justamente um segundo esquema de definição
genética real? “Este gênero de conhecimento se estende da ideia adequada da essência formal de
alguns atributos de Deus ao conhecimento adequado da essência das coisas” [E II, 40 escol.] Mas se é
verdade que Deus é causa próxima de todas as coisas singulares, é de todas as coisas de uma só vez!
(…) O conhecimento é intuitivo em cada nível, no sentido da síntese operada pela definição genética;
mas se vê bem que as singularidades obtidas são relativas ao nível em que se opera a síntese, e
aparecem como universais desde que se desça um nível, de modo que segundo e terceiro gênero do
conhecimento não são mais que uma questão de ponto de vista.408

O terceiro gênero, sendo, evidentemente, algo que diz respeito às coisas eternas, logo
necessárias, é o conhecimento do processo de produção das diversas instâncias da realidade.
Talvez isso seja estender um pouco demais as coisas, mas creio que seja possível partir daí
para a posição de que a ciência intuitiva é uma que lida com os processos de individuação409,
sem que precise dar conta de todos os aspectos reais que compõem tal ou tal indivíduo.410 Se
no caso do Espinosa isso se daria num processo de dedução, preferimos nos ater à uma
palavra mais profana: especulação. Creio que tomá-la, a ciência intuitiva, como o local de
investigações metafísicas/ontológicas, acaba desinflando suficientemente o conhecimento de
terceiro gênero e, no mesmo movimento, criando espaço para uma relevância prática, ética e
política desse tipo de empreitada.
Após essa análise das afecções e dos três gêneros do conhecimento podemos ter uma
melhor visão de como eles se relacionam entre si. Se na ordem da experiência passamos do
primeiro para o segundo e do segundo para o terceiro, no plano ontológico o movimento é o

407
Cf. Idem, ibidem, p. 178
408
Idem, ibidem, pp. 181-182. (tradução minha)
409
“É evidente que a física, a dos físicos, sozinha não consegue formar esta ideia adequada.” (Idem, ibidem, p.
187. tradução minha)
158

inverso. Em outras palavras, as verdades da ciência intuitiva condicionam o conhecimento das


coisas comuns que, cujas verdades, por sua vez, condicionam a imaginação. As afecções que
experimentamos já seriam, portanto um movimento que sobe e desce nessa escada dos
conhecimentos, como se fosse preciso, inclusive, já ter ela em mente para que pudéssemos
descrevê-las.

410
Fosse esse o caso, a ciência intuitiva consistiria na coleção e descrição de todos os processos causais
159

II.5.3.2. A memória como elo

Voltemos ao ponto que tentávamos desenvolver, ou seja, a unidade de um indivíduo.


Dissemos que um dos eixos dessa unidade se faz a partir da memória. Com o que falamos
acima sobre as afecções estamos um pouco mais preparados para lidar com esse conceito. As
proposições que tratam especificamente desse tema no segundo livro dirão que a memória é
um traço deixado no corpo, uma modificação operada no próprio corpo sem que o corpo seja
alterado a ponto de se desfazer ou se transformar completamente (ou seja, que tenha a sua
dinâmica de constituição alterada).
Isso é mencionado num primeiro momento quando Espinosa trata das coisas que
contemplamos em nossa mente. A descrição desse processo é a seguinte:

Quando os corpos externos determinam as partes fluidas do Corpo humano de tal maneira que atinjam
muitas vezes as mais moles, eles mudam as superfícies destas (pelo post. 5), donde acontece (ver
Axioma 2 após Corol. Do Lema 3) que as partes fluidas sejam refletidas diferentemente do que
costumavam antes, e que depois também, ao reencontrar, no seu movimento espontâneo, essas novas
superfícies são refletidas da mesma maneira que quando foram impulsionadas pelos corpos externos
para aquelas superfícies; e por consequência, quando assim refletidas continuam a mover-se, afetam o
Corpo humano da mesma maneira, no que a Mente (…) pensará de novo, isto é, a Mente (…)
contemplará de novo o corpo externo como presente; e isso todas as vezes que as partes fluidas do
Corpo humano reencontrarem, no seu movimento espontâneo, aquelas superfícies. (E II, 17 cor. dem.,
grifo meu)

O movimento que se dá é que qualquer coisa que nos atinja, ou seja, qualquer afecção que
ocorra, pode, nesse processo, fazer com que se altere as superfícies de partes moles, deixando
vestígios nessa parte mole do que a atingiu. Devido a isso, toda vez que as partes fluidas411
baterem nessa parte mole, elas serão refletidas de outra maneira, ou seja, elas terão um efeito
diferente de antes do vestígio ser deixado naquela superfície em que ela estava batendo. Por
serem elementos fluidos elas não tem força pra alterar a parte mole, mas farão o mesmo
movimento que aquilo que alterou a superfície inicialmente, fazendo com que se contemple
novamente o corpo externo, embora de maneira menos forte (pela própria natureza dessas

411
Sobre a importância das partes fluidas para essa dinâmica cf. Vinciguerra, 2005, pp. 135-136 e,
especialmente: “essa propriedade [a fluidez] lhe confere uma outra, a saber, que ele pode transmitir ao se dobrar,
desde que a sua natureza aguente isso, à natureza daquilo que lhe afeta. Este ponto é importante, pois de modo
geral, a fluidez na natureza permite justamente pensar a formação de marcas em uma física contínua. É em
relação a uma certa fluidez que os corpos moles podem receber traços e os conservar.” (Vinciguerra, op. cit., p.
136. tradução minha)
160

partes serem fluidas, que difere do corpo afetante original). O processo de memória, podemos
dizer sem mais delongas, é esse processo de alteração sem modificação. Um movimento que
deixa vestígios sem que se desfaça a superfície, sem que a altere de maneira suficiente para
desfazer as relações de proporção entre movimento e repouso que compõem tal corpo.
Vinciguerra irá denominar essas variações de figuras: “a forma de um corpo não é, portanto,
senão a totalidade de figuras que lhe cabe revestir. Ela é a regra interna que permite as
decliná-las e conjugá-las ao encadeá-las”412. Fala-se aqui daquela possibilidade de mudanças
sem alteração da forma que os lemas finais da pequena física descrevem413. Mas as figuras
por sua vez são apenas os limites possíveis para todo e qualquer traço que se possa inscrever
na superfície. Continuando com Vinciguerra:

Os traços [vestigia] representam esse meio termo que permite pensar o revestimento da forma pela
figura e, ao mesmo tempo, a passagem de uma figura à outra nos limites de uma mesma forma. A
figura é o resultado de uma certa traçabilidade do corpo, que a forma reveste pelo jogo regrado de
encontros com outros corpos.414

Vemos então como esses três elementos forma-figura-traço acabam por balizar a
possibilidade de transformação de um indivíduo sem que ele desfaça sua forma, ou seja,
enquanto permanece esse indivíduo415. Daí podermos descrever os indivíduos como circuitos
de feedback com um razoável grau de possibilidades de adaptação sem que o circuito seja
destruído. Voltando à memória, pode-se então dizer que a memória é “a ordem e a
concatenação das afecções do Corpo humano” (E II, 18, escol.) sem que a forma seja
comprometida. Ou seja, sem que essas afecções alterem a maneira como as partes do corpo
“comunicam seus movimentos uns aos outros numa proporção certa” (E II, def. antes de lem.
4).
O caso do poeta espanhol, Góngora, ilustra de maneira paradigmática a centralidade da
memória na constituição de um indivíduo. Ao contar esse caso, Espinosa parece preocupado
em pensar a continuidade de uma forma, até que limite vai essa continuidade. Para ele parece
claro que o laço do corpo não está simplesmente no corpo:

412
Idem, ibidem, p. 140 (tradução minha)
413
Não custa lembrar que vários desses lemas finais terminam com a expressão “sem nenhuma mudança de
forma”.
414
Idem, ibidem, p. 142.
415
É interessante lembrar nesse ponto a leitura que a Catherine Malabou faz desse tema ao pensar o conceito de
plasticidade. Nesse sentido recomenda-se muito a leitura de Ontologia do acidente - ensaio sobre a plasticidade
destrutiva por ser um livro que dialoga explicitamente com a plasticidade do indivíduo no pensamento de
Espinosa.
161

não ouso negar que o Corpo humano, mantidas a circulação do sangue e outras coisas pelas quais se
estima que o Corpo vive, contudo possa mudar para uma natureza de todo diversa da sua. De fato,
nenhuma razão me obriga a sustentar que o Corpo não morre senão mudado em cadáver; e mais, a
própria experiência parece persuadir-me do contrário. (E IV, 39 escol.)

Não se trata de dizer que o corpo do homem, o estado desse corpo, não é um bom ponto
para constatar a sua unidade. Não é que seja um critério absolutamente sem sentido, apenas
não é garantia suficiente de que a individualidade permanece. É óbvio que se olhamos para
um corpo morto, sem vida, pode-se ver que as relações e comunicações entre os movimentos
das partes do corpo em uma certa proporção acabou-se. O corpo ao entrar no estado de
decomposição entrou em outra relação de proporção — agora com as bactérias que o devoram
tomando protagonismo. No entanto isso não parece ser o ponto chave para conceber a
unidade. Se o corpo é uma continuidade, se ele é essa continuidade que pode se alterar sem se
transformar, o laço que liga o corpo é justamente aquele que mencionamos da memória, dos
vestígios que ocorrem sem alterar completamente a composição. A memória não deve ser
entendida aqui, portanto, como um “elemento fantasmático” que acontece em nossa cabeça.
Ela é, pelo contrário, a continuidade que se estabelece através das afecções. Ecoando
sentimentos bem nietzschianos, é o próprio corpo que é o espaço da memória416. Vem daí o
interesse de se abordar casos estranhos como o poeta espanhol amnésico e a própria infância,
em que a continuidade aparenta estar rompida absolutamente apesar do corpo físico-biológico
permanecer razoavelmente intacto:

Com efeito, às vezes ocorre a um homem padecer tais mudanças, que não é fácil dizer que continue o
mesmo, como ouvi contar sobre um Poeta Espanhol que fora tomado pela doença e, embora se tenha
curado, ficou porém tão esquecido de sua vida passada que não acreditava serem as suas Fábulas e
Tragédias que escrevera, e certamente poderia ser tomado por um bebê adulto se também tivesse
esquecido a língua vernácula. E, se isso parece inacreditável, o que diremos dos bebês? O homem de
idade avançada crê que a natureza deles é tão diversa da sua, que não poderia persuadir-se de ter sido
um dia bebê se não conjecturasse sobre si a partir dos outros. (E IV, 39 escol.)

416
“Talvez nada exista de mais terrível e inquietante na pré-história do homem do que a sua mnemotécnica.
‘Grava-se algo a fogo, para que fique na memória: apenas o que não cessa de causar dor fica na memória’ — eis
um axioma da mais antiga (e infelizmente mais duradoura) psicologia da terra. (…) Jamais deixou de haver
sangue, martírio e sacrifício, quando o homem sentiu a necessidade de criar em si uma memória; os mais
horrendos sacrifícios e penhores (entre eles o sacrifício dos primogênitos), as mais repugnantes mutilações (as
castrações, por exemplo), os mais cruéis rituais de todos os cultos religiosos (…) pense-se nos velhos castigos
alemães, como o apedrejamento (— a lenda já fazia cair a pedra do moinho sobre a cabeça do culpado), a roda (a
mais característica invenção, a especialidade do gênio alemão no reino dos castigos!), o empalamento, o
dilaceramento ou pisoteamento por cavalos (o ‘esquartejamento’), a fervura do criminoso em óleo ou vinho
(ainda nos séculos XlV e xv), o popular esfolamento (‘corte de tiras’), a excisão da carne do peito; e também a
prática de cobrir o malfeitor de mel e deixá-lo às moscas, sob o sol ardente.” (Nietzsche, op. cit., pp. 50-52)
162

O elo da memória não precisa passar pelas partes externas ou por órgãos internos do
corpo. O poeta amnésico não tem mais relação com a sua persona anterior, ainda que o
funcionamento motor do seu corpo não aparente nenhum problema. A quebra na forma se dá
pela ausência de continuidade na memória entre o Góngora pós-amnésia e pré-amnésia. Não
há, evidentemente, um ponto específico no corpo, um local “da memória”, um local no
cérebro de Góngora, que simplesmente parou de funcionar. Isso não faz o menor sentido
considerando a física espinosana. Como se trata de uma continuidade de um sistema, e como
esse sistema é feito de infinitas partes (infinitas relações de movimento e repouso), há uma
infinidade de maneiras de se romper essa continuidade, sem que algo destrua qualquer
elemento pontual mais visível. A memória como elo não é outra coisa que a própria
continuidade de afecções, o fato de que as afecções conseguem se encadear continuamente.
Mas o caso do poeta espanhol talvez possa ser entendido sobre outra luz. Pode ser que
possamos encarar esses cortes como graus de intensidade. Podem haver cortes na
continuidade mais e menos duros dependendo do ponto de vista que se assume417. Podemos
pensar, como exemplo, em uma situação de aprendizagem, pois no momento em que
aprendemos algo que muda totalmente a maneira como concebemos as coisas é como se o que
enxergávamos antes nem fizesse mais sentido e, consequentemente, se tornasse inimaginável.
Chegamos ao ponto de nos perguntar: “como era possível pensar diferente?”
Num só lance, o caso do poeta amnésico nos abre uma outra porta. Pois se Espinosa
mostra como não há uma continuidade na doença, parece que pensar diversos graus de corte
nos leva ao fim e ao cabo a pensar que ainda há uma continuidade muito sutil que permeia
todas as coisas, aquela que diz respeito à totalidade das coisas (facies totus universi). Trata-se
da própria ligação de todas as coisas, uma ligação que não pode ser desfeita já que não há
nada para desfazê-la (não há nenhum fora que possa forçar ela a se romper). A facies totus
universi, embora mude de infinitas maneiras (assuma infinitas figuras), sempre permanece
sendo a mesma (continua na mesma forma). Pode-se então dizer, por mais estranho que isso
pareça, que se há uma memória que é indestrutível, trata-se da memória cósmica418.

417
Assim como o que se chama de “duro”, “mole” e “fluido” depende do ponto de vista, o nível e a intensidade
do corte também dependerá do ponto de vista.
418
Sobre isso, recomenda-se fortemente ver o vídeo do Iain Hamilton Grant, Nature after nature:
https://www.youtube.com/watch?v=IyGh1ZXnXpE
163

Essa descrição de unidade que demos dá conta do aspecto formal do indivíduo, da


estrutura da sua unidade. Essa estrutura é uma continuidade no encadeamento das afecções, a
contínua contração das afecções. Mas falta responder o porquê da individuação. Falta
entender o que faz com que ele, esse encadeamento, seja assim ou assado. Há uma motivação
ou isso é absolutamente aleatório? É com isso em mente que Espinosa desenvolverá o
conceito de desejo. E é nesse ponto que podemos finalmente focar naquele que é o nosso foco
principal, o problema dos afetos.
164

II.6. DESCRIÇÃO DOS AFETOS

As emoções, uma vez que são moções, movimentos,


comoções, são também transformações daqueles e daquelas
que se emocionam. Transformar-se é passar de um estado a
outro: continuamos firmes na nossa ideia de que a emoção
não pode ser definida como um estado de pura e simples
passividade. Inclusive, é por meio das emoções que podemos,
eventualmente, transformar nosso mundo, desde que, é claro,
elas mesmas se transformem em pensamentos e ações.
Georges Didi-Huberman, Que emoção! Que emoção?

Como indicamos ao citar Barbara Cassin acima, o pensamento espinosano se faz em


voltas. Nós começamos o capítulo querendo entender em que sentido Espinosa concebe o
afeto. Para conseguir tratar desse conceito nós acabamos passando tanto pela sua metafísica
geral (encabeçada pela tríade substância-atributo-modo) como também pela maneira que ele
concebe os indivíduos que fazem parte do real — pois é inconcebível se pensar que os afetos
ocorrem em algum outro lugar que indivíduos específicos. É nesse sentido que nos
aventuramos a explicar aquilo que Espinosa chama de homem419 e de que maneira ele se
exprime tanto no atributo da extensão como no atributo do pensamento. Pensar o indivíduo,
porém, nos obriga a tentar compreender de que maneira ele se caracteriza como indivíduo,
isto é, como se pode descrever a perduração da sua forma. Foi com isso em mente que
destacamos a memória e o desejo como os elementos que dão a consistência de um indivíduo.
A memória, como vimos, é uma causa formal, ou seja, a estrutura da memória é a forma como
os indivíduos perduram, é na estrutura de encadeamento de afecções, contrações entre
diferentes afecções, que podemos enxergar um mesmo indivíduo. Mas isso só explica um
aspecto da unidade do indivíduo. Resta entender o porquê das afecções se encadearem mas,
principalmente, é preciso compreender porquê as afecções se encadeiam de tal ou tal maneira.

419
Como deixamos claro em diversos pontos, não é preciso tomar esse foco no homem como um
antropocentrismo vulgar. Espinosa deixa bastante claro em vários momentos que o que se diz sobre a física da
extensão se aplica à todos os corpos, o mesmo vale para a física das ideias que esboçamos. Dessa maneira, em
todo momento que falarmos de homens devemos entender que isso pode ser substituído por qualquer corpo
minimamente complexo e que o foco no homem se dá simplesmente pelos problemas específicos que Espinosa
quer tratar em sua obra.
165

É essa uma das funções do conceito de desejo, que precisamos tratar para termos uma noção
mais precisa do que seria um indivíduo.
O problema está que, como anunciamos, a noção de desejo requer um desenvolvimento da
noção de afeto. A Ética aparece de forma translúcida nesse instante como uma verdadeira
máquina. As partes se relacionam de tal maneira que a todo momento elas estão se
pressupondo (outro sinal pode ser encontrado na discussão que fizemos sobre os gêneros do
conhecimento). Se o nosso objetivo era, inicialmente, apenas desenvolver os pontos
necessários para tratar do afeto, vimos como no caminho para esse tema acabamos esbarrando
num impasse ao tratar as “coisas individuais” no sistema de Espinosa, impasse esse que nos
obriga a entender como podemos conceber a permanência dos indivíduos e, mais
especificamente, o que é que acaba por determinar tal ou tal permanência. É, porém, a própria
estrutura afetiva que acaba funcionando como determinante para os indivíduos. Não há outro
caminho fora a necessidade de desenvolver ambos os conceitos ao mesmo tempo. Devemos
portanto avançar nesse fio que estamos perseguindo, o caminho que vai da metafísica geral à
compreensão dos indivíduos aos afetos, mas, simultaneamente, devemos tentar elucidar a
estrutura dos afetos com os elementos que temos em mãos no momento. Após essa
elaboração, poderemos veremos que esses dois fios se cruzam no conceito de desejo. Nesse
momento o caminho para se compreender tanto a unidade do indivíduo como a centralidade
dos afetos para se pensar que tipo de ação é possível — o que nos permitiria descobrir que
tipo de articulação temporal está envolvido nessa ação.

Como já falamos, a preocupação principal de Espinosa ao falar dos afetos é evitar cair no
lugar comum de tomá-los como vícios ou virtudes. Conceber os afetos a partir da moral é
abrir mão de compreender o seu funcionamento. Não se trata de concebê-los como “emoções”
delimitadas e prontas que julgamos posteriormente como boas ou más. O afeto é justamente a
maneira de tratar sem preconceitos morais essas experiências de transformação que sentimos
e que eventualmente damos nomes como alegria, tristeza, ciúmes, raiva etc. Precisamos além
disso ter em mente que quando Espinosa fala de afetos, ele fala sempre em um duplo registro.
O primeiro registro diz respeito à esfera afetiva propriamente dita. Afetivas são todas as
experiências que nos transformam em alguma medida. No segundo registro, Espinosa dirá que
os afetos se opõem às paixões, visto que os primeiros são ativos enquanto os segundos são
passivos. Essa diferença ficará clara ao nos aproximarmos do texto de Espinosa.
166

Para falar do afeto, não há outro lugar para começar além da primeira definição que é
dada no início da terceira parte da Ética420: “Por afeto entendo as afecções do Corpo pelas
quais a potência de agir do próprio corpo é aumentada ou diminuída, favorecida ou coibida, e
simultaneamente as ideias destas afecções.” (E III, def. 3) Fica bem claro que os afetos são,
portanto, a experiência da afecção, a maneira como elas transformam o corpo e a ideia do
corpo — ou, em termos que precisamos desenvolver aqui, o afeto é o movimento de variação
na potência de agir que uma afecção gera. Para podermos ter uma imagem clara dos afetos
precisamos então, inicialmente, entender o sentido da expressão “potência de agir” e seu
movimento de variação (“aumentar”, “diminuir”, “favorecer” e “coibir”).

Os afetos, como dissemos, se relacionam com a variação da potência de agir de um


indivíduo. Mas a potência de agir, apesar de aparecer sem grandes explicações, não está muito
distante daquilo que discutimos quando falamos do conceito de potência no final da primeira
parte da Ética. Naquele momento vimos que um indivíduo não se define por um conjunto de
partes inertes, como átomos. O indivíduo é um conjunto de capacidades. Quando dissemos
que um indivíduo tem uma potência de agir maior ou menor, podemos também dizer, num
mesmo sentido, que o “os indivíduos componentes do Corpo humano e, consequentemente, o
próprio Corpo humano, são afetados pelos corpos externos de múltiplas maneiras” (E II, post.
3) e que ele “pode mover os corpos externos de múltiplas maneiras e dispô-los de múltiplas
maneiras” (E II, post. 6). A potência de agir se refere às capacidades de um indivíduo (o corpo
ou a ideia desse corpo) em relação à outros indivíduos gerarem efeitos (em qualquer um dos
indivíduos envolvidos no encontro).
A capacidade, porém, como ela sempre se dá na relação, também não existe
abstratamente. Para nos apoiarmos num exemplo tomado por Manuel DeLanda421, pensemos
nas capacidades de uma faca de cortar pão. Ela tem entre as suas capacidades mais evidentes,
o “cortar”, o “perfurar”. Esse “cortar”, porém, jamais é absoluto, já que não importa o quão
afiada seja a sua faca, ainda assim não será possível que ela corte um bloco de titânio. Ela
também não tem capacidade de perfurar um líquido qualquer, já que eles não são perfuráveis.

420
Sobre a comparação das duas definições de afeto que existem na terceira parte da Ética, nos reportamos aos
comentários de Jaquet, que mostra como as duas definições não se contradizem, mas tem problemas diferentes
em mente. Cf. Jaquet, op. cit., pp. 107-120.
421
Cf. “Manuel De Landa. Metaphysics As Ontology: Aristotle and Deleuze's Realism. 2011” em
https://www.youtube.com/watch?v=1ZjMKGTYfK4&t=2524s
167

Por outro lado, podemos pensar em uma série de capacidades menos evidentes, que
transparecem apenas na medida em que elas vem à ser, como na possibilidade, que DeLanda
sugere, que a faca seja usada para transmitir uma ameaça, ao ser pregada junto a um bilhete
na porta da sua ex-namorada que acabou de terminar contigo. De todo modo, o que importa
deixar claro é algo que o próprio Espinosa diz numa frase que será replicada por todo leitor de
Deleuze: “[as pessoas] não sabem o que pode o corpo” (E III, 2 escol.) O que podemos retirar
dessa afirmação de Espinosa é que as capacidades são sempre dependentes da potência de agir
dos indivíduos que vão se modificar. As afecções possíveis não são nem finitas nem infinitas
— não são de maneira alguma quantificáveis. Elas são indefinidas, no sentido de que ainda
que haja limites, esses limites se determinam à medida que ocorrem os encontros entre os
diversos indivíduos.
Resta desatar um outro nó no conceito de potência de agir. Como diz Jaquet,

“Agere”, em Espinosa, possui com efeito um sentido largo e um sentido restrito. Em Espinosa ele é
primeiro empregado no sentido largo de “sequi”, o que segue da causa. Agir é produzir efeitos, seja
como causa, seja como causa parcial. Nesse caso, a potência de agir engloba tanto as ações quanto as
paixões. “Agere”, em sentido restrito, tal como enunciado na definição 2 da Ética III, é produzir
efeitos de que se é causa adequada. Neste caso, a potência de agir remete unicamente às ações.
“Agere” em Espinosa, tem portanto um sentido mais largo que “actio”.422

A potência de agir pode ser encarada, portanto, sob dois pontos de vista. Num ponto de
vista exterior não haverá distinção entre os indivíduos envolvidos numa afecção. O foco,
como Jaquet destaca, se dá na produção dos efeitos. Nesse primeiro ponto de vista, fala-se que
se age na medida em que se produz efeitos simplesmente sem delimitar quem age e quem
sofre.
Se falamos de uma variação de potência de agir, podemos, portanto, entender isso sob
dois pontos de vista, também. Nesse primeiro sentido, que estamos tratando inicialmente,
aquilo que varia, é o próprio conjunto de capacidades de um indivíduo, de tal maneira que ele
deixa de ser o indivíduo que ele era antes423. Uma larva antes de construir seu casulo para se
transformar em borboleta, tem um conjunto de capacidades bem limitadas. Ela pode andar,
pode se alimentar, pode tecer o casulo. Após o período de transformação no casulo, a
borboleta que surge tem toda uma outra gama de capacidades que não existiam no ser-larva,
como poder voar e se reproduzir. A variação na potência de agir é, nesse primeiro sentido,
uma verdadeira transformação qualitativa da potência do indivíduo. Caso seja o caso, ele

422
Jaquet, Chantal. op. cit., pp. 129-130
168

poderá realizar coisas que não poderia antes, ou deixará de poder realizar coisas que não
poderia antes. É claro que há uma continuidade entre a larva e a borboleta, mas há elementos
suficientes para podermos distingui-las a partir do que elas podem realizar. Esse sentido de
potência de agir ainda não nos permite entender o porquê da continuidade de um indivíduo,
ele apenas nos aponta as balizas que acabam servindo como seu limite.
Há porém uma outra maneira de se compreender a potência de agir, que é a partir do
ponto de vista dos indivíduos — é nesse ponto que o afetivo começa a fazer sentido. Cada ser
pode, segundo Espinosa, “agir” (em sentido amplo), de duas formas. Pode-se dizer que ou
eles agem (em sentido restrito) ou padecem. Conforme define Espinosa,

Digo que agimos [em sentido restrito] quando ocorre em nós ou fora de nós algo de que somos causa
adequada, isto é (…), quando de nossa natureza segue em nós ou fora de nós algo que pode ser
entendido clara e distintamente só por ela mesma. Digo, ao contrário, que padecemos quando em nós
ocorre algo, ou de nossa natureza segue algo, de que não somos causa senão parcial. (E III, def. 2,
grifo meu)

Nesse segundo caso, a ação (agir) e a paixão (padecer) são referências quanto à autonomia
daquilo que ocorre. Agimos na medida em que somos causa adequada424 das nossas ações,
quando podemos ser considerados causa absoluta das nossas ações. Como, porém, tudo o que
é, ou é em si mesmo (substância) ou é em outro (modos), só a substância (Deus), pode ser
causa adequada absoluta das suas ações. Com isso em mente, se dissemos que um homem
(ou qualquer outro ser) age, estamos dizendo que ele tem um certo grau de autonomia. Afinal,
é possível afirmar, sem grandes problemas que, embora todos os modos sejam causados por
algo além dele, há diferentes graus de atividade e de passividade. Há uma diferença de grau
de autonomia entre a pessoa que faz natação por enxergar a relação entre esse exercício e um
aprimoramento da sua saúde e uma criança que faz natação por ser obrigada a isso por um
parente.
Devemos ter em mente, portanto, quando se fala nesse segundo sentido de potência de
agir que todo indivíduo — ou seja, todo conjunto de capacidades que se organiza de maneira
a constituir um sistema — se encontrará entre duas tendências que funcionam como polos. De
um lado temos a tendência da autodeterminação absoluta. e do outro a tendência da
sobredeterminação absoluta. Se falamos desses polos como tendência, isso se dá pois os
indivíduos não são nunca nem absolutamente autodeterminados (só a substância é a

423
Cf. II.5.1.
424
Cf. E III, def. 1
169

autodeterminação absoluta) e nem absolutamente sobredeterminados (se por um lado o


próprio indivíduo não pode se autodeterminar completamente, por outro ele sempre se425
determinará parcialmente). Como não podemos dizer que a “ausência de determinação” é426
alguma coisa, essa potência de agir sempre se refere a algo positivo. A potência de agir é,
nesse segundo sentido, um grau de autodeterminação de um indivíduo. Quando falamos, em
aumento ou diminuição da potência de agir, ou seja, de uma variação da potência de agir,
estamos indicando aqui uma maior ou menor autodeterminação. É preciso lembrar, também,
que como diante de uma autodeterminação absoluta qualquer grau de autodeterminação
relativa será menos autodeterminado, quando falamos que um indivíduo se autodetermina
estaremos falando sempre em comparação a um grau de autodeterminação em algum outro
estado — seja para dizer que a autodeterminação é maior ou menor.
Mas é justamente nesse ponto que os dois sentidos de potência de agir começam a entrar
novamente em um nó. O primeiro sentido indica as balizas de um indivíduo, ou seja, os
limites qualitativos de um indivíduo ao mostrar como um indivíduo tem a sua potência de agir
aumentada e diminuída na medida em que as suas próprias capacidades são modificadas. Isso
talvez seja simples no caso de uma larva que se torna uma borboleta, ou mesmo de uma
estrela que se torna uma anã branca. As coisas ficam mais complicadas, porém, quando há
continuidades aparentes, como no caso da criança e do adulto. Há uma continuidade e uma
transformação sem que nós possamos precisar exatamente em que momento uma começa e a
outra termina. As coisas se tornam um pouco nebulosas.
É nesse momento que o segundo sentido de variação de potência de agir mostra o seu
caráter pragmático. Se, como falamos, esse sentido é o de um ponto de vista de um indivíduo
específico com um conjunto de capacidades específicas então fica claro que a questão da
variação da potência de agir se refere à maneira como esse indivíduo consegue efetuar as suas
próprias capacidades, ou seja, em que medida ele se autodetermina ou é sobredeterminado. O
problema, e o nó, nessa questão é que a autodeterminação não é um movimento meramente
quantitativo. Na medida em que me torno mais potente, eu sou potente apenas na medida em
que posso afetar e ser afetado — é isso que está sendo medido na variação de potência. Logo

425
Falamos que ele se determina parcialmente pois, como já dissemos, cada coisa que ocorre, cada afecção,
sempre envolve nos seus efeitos os indivíduos envolvidos na ação. Podemos dizer, para usar um vocabulário
distinto de Espinosa, que é impossível que algo ocorra com um indivíduo sem que esse indivíduo não esteja
mediando de alguma forma aquilo que ocorre com ele. Se alguém enfia uma faca em meu corpo, ainda assim o
meu corpo participa da ação, é “causa parcial”, na medida em que sua composição forma uma resistência pra
faca, que por sua vez faz com que a faca não simplesmente atravessem eu corpo como se ele fosse um nada, mas
obriga ela a perfurar minha pele, a realizar uma abertura na minha pele à despeito de uma resistência da pele.
170

a variação é também um aumento (ou diminuição) da sua capacidade de afetar e ser afetado:
“a mente humana é apta a perceber muitíssimas coisas, e é tão mais apta quanto mais pode ser
disposto o seu Corpo de múltiplas maneiras” (E II, P14)427. Como diz Marilena Chauí, “Um
corpo humano é tanto mais forte, mais potente, mais apto à conservação, à regeneração e à
transformação, quanto mais ricas e complexas forem suas relações com outros corpos, isto é,
quanto mais amplo e complexo for o sistema das afecções corporais.”428 Dizer portanto que
nós aumentamos a nossa capacidade de autodeterminação, que variamos nossa potência de
agir é dizer também que nós complexificamos a nossa capacidade de afetar e ser afetado
(assim como, no caso da diminuição, nossa capacidade de afetar e ser afetado é simplificada).
O mundo se torna, como veremos, mais rico quando estamos mais alegres.
Quando um indivíduo varia a sua potência de agir, ele também estará, simultaneamente,
transformando as suas capacidades. Exemplos disso abundam, mas podemos ficar com um
bem simples. Se eu tenho o desejo de aprender a tocar um instrumento qualquer, no processo
desse aprendizado, um dos elementos mais importantes é aprender a distinguir diferenças que
eram antes nebulosas. Ler partituras, praticar, são maneiras de num só lance me tornar causa
adequada da produção de uma música (não será um mero acidente) como também é uma
experiência que aumenta a minha capacidade de distinguir o som. Se antes eu escutava
música com um prazer razoável, após a prática eu conseguirei escutar e diferenciar elementos
que antes passavam desapercebidos.
Talvez seja possível dizer nesse ponto, para voltarmos ao nó, que um indivíduo não pode
ser definido como simplesmente um conjunto de capacidades. O corpo (e a mente) é
dinâmico. Se fazemos, portanto, uma diferenciação entre duas potências de agir, pode-se dizer
que ela é uma diferenciação meramente didática. Pois na realidade elas estão enredadas. Toda
variação de potência é ao mesmo tempo um quociente de autodeterminação, mas todo
processo de autodeterminação é uma transformação na experiência qualitativa.429

426
Podemos entender essa questão de uma maneira bem nietzschiana. Quando eu sou sobredeterminado não é o
caso que meu ser “deixe de determinar” para que então se exerça uma força externa qualquer que me determina a
tal ou tal ação. O que ocorre é que a força exterior domina a minha força de autodeterminação.
427
No fim da Ética, Espinosa fala também sobre esse processo de transformação que nós miramos. Diz ele que
“esforçamo-nos antes de tudo, nesta vida, para que o Corpo da infância, o quanto sua natureza permite e a isso o
conduz, transforme-se num outro que seja apto a muitíssimas coisas, e que se refira a uma Mente que seja muito
cônscia de si, de Deus e das coisas” (E V, 39 escol.).
428
Chauí, Marilena, op. cit., p. 73
429
Temos aqui um terreno bem pantanoso, que exige um mergulho eventual. Se a transformação é a constante
do corpo, como é que determinamos o limite, como determinamos certos parâmetros para que o que ocorra não
seja uma ausência absoluta de um certo corpo consistente? Temos para isso dois caminhos (que talvez não se
contradigam). O primeiro será tratado mais adiante e diz respeito ao conceito de conatus. O segundo abre a
suposição de que em cada ser esteja implicada toda a história do universo. Como um ser se define relativamente
ele está relacionado tanto à todas as coisas que ocorrem sincrônicamente como às que ocorrem diacrônicamente.
De maneira que os limites de um corpo se estendenriam a um ponto em que só haveria um fluxo só que se auto-
171

Com uma noção delimitada de potência de agir podemos agora entender o que Espinosa
chama de afeto (em sentido amplo). O afeto é o movimento de variação dessa potência de agir
— é a transformação das capacidades de um indivíduo. Mas isso não é tudo. Inicialmente
pode-se ter a impressão de que para Espinosa, o afeto acaba sendo simplesmente a sensação
de uma transformação, ou seja, ele deve ser compreendido como uma transformação em uma
modificação que vai se exprimir sob o atributo do pensamento. Em tese a definição geral do
afeto no final de E III corroboraria essa ideia. Lá será dito que “o afeto é dito Pathema
[paixão] do ânimo é uma ideia confusa pela qual a Mente afirma de seu Corpo ou de uma de
suas partes uma força de existir maior ou menor do que antes e, dada [esta ideia], a Mente é
determinada a pensar uma coisa de preferência a outra." (E III, def. geral dos afetos) Na
definição de afeto que vimos acima (E III, def. 3), porém, fica bem evidente que o afeto se
aplica tanto às transformações no corpo como na ideia desse corpo. Como, porém, o foco de
Espinosa na ética é uma filosofia que vise liberar a potência do intelecto, o seu foco
rapidamente se restringe para os aspectos “mentais” dos afetos.430 Se com relação ao corporal,
o afeto a transformação das capacidades é a uma variação nas relações de movimento e
repouso, no que diz respeito ao atributo do pensamento o afeto é a experiência (sensação) de
uma diferença que faz diferença, — é a própria sensação de uma diferenciação, da diferença
se fazendo diferença.
Assim sendo, é possível dizer que o afeto é a transformação que ocorre em um indivíduo a
partir do seu contato com outro indivíduo (ou consigo mesmo). Essa transformação pode tanto
ser uma transformação que aumenta as capacidades de afecção de um corpo (poder de afetar
ou ser afetado) como pode diminuir essas capacidades. Como vimos, essa transformação é ao
mesmo tempo um movimento de maior ou menor autodeterminação dessa transformação. No
primeiro caso falaremos de um aumento na potência de agir enquanto no segundo falamos de
uma diminuição da potência de agir. Esses dois movimentos serão justamente os dois afetos

transformaria. Essa hipótese nos obrigaria, porém, a dar um mergulho maior nas filosofias da natureza que
compartilham semelhanças com o pensamento espinosano, como as de Schelling e Whitehead.
430
Não deve, portanto, aparecer como uma surpresa que ao longo de todo esse livro (e do resto da Ética) que o
foco seja quase que exclusivamente voltado para o atributo do pensamento — inclusive a definição geral dos
afetos, como mencionamos, no final da E III trata o afeto apenas no aspecto do atributo do pensamento. Mais
uma vez indicamos a leitura de Jacquet, op. cit., para esse assunto. Como não é o nosso caso aqui, falaremos do
afeto de uma maneira geral. Como vimos na análise das duas físicas, ainda que elas tenham suas maneiras de
organização distintas, o que nos interessa é que elas são expressões irredutíveis de um mesmo movimento (de
uma modificação determinada da substância).
172

base431 que Espinosa enumera no início de E III: “Assim, por Alegria, entenderei na sequência
a paixão pela qual a Mente432 [o indivíduo] passa a uma maior perfeição. Por Tristeza, a
paixão pela qual ela passa a uma menor perfeição.” (E III, 11 escol.) A alegria e a tristeza
tem, portanto, sentidos bem específicos no pensamento de Espinosa, elas são o grau de
autodeterminação e transformação de um determinado indivíduo. Elas são índices
comparativos para a capacidade de um corpo de afetar e ser afetado. Espinosa opera nesse
momento uma inversão simples. Não é porque estamos tristes que nos sentimos incapazes e
nem é por nossa alegria que nos sentimos mais capazes. A tristeza e a alegria é que são os
nomes desses movimentos de diminuição ou aumento de potência. A sensação de tristeza é a
própria incapacidade de movimento ou de distinção de diferenças, e a sensação de alegria é a
potência de movimento ou de distinção. Retomando o nosso exemplo do músico aspirante, a
alegria não é o que permite ele tocar com todas as sutilezas que são necessárias, mas a própria
capacidade de operar nessas sutilezas. Isso nos traz de volta para o ponto que mencionamos
acima, a alegria, sendo um movimento de complexificação, é um movimento em que as
diferenças se diferenciam mais e, consequentemente, mais possibilidades são abertas para nós.
É a partir desses afetos, alegria e tristeza, que todo um jogo complexo de afetos será
deduzido por Espinosa, deixando claro que, sendo variações, a maneira (a ordem) como essas
variações se dão e se encadeiam acabam por modificar a experiência que se tem. O ponto
importante para se destacar, porém, é que os afetos não são nunca nem bons nem maus, vícios
ou virtudes, eles são uma forma de tentar compreender e conceitualizar os processos de
transformação por que passamos.

Mas se o afeto ganha tamanha importância no pensamento de Espinosa e no que estamos


tentando desenvolver aqui é por conta do seu caráter inevitável. Se conseguimos concordar
minimamente com Espinosa, isso se dá no fato de que, enquanto seres finitos, estamos
imersos num mar de encontros com outros seres, encontros esses que provocam
transformações mínimas ou máximas, perceptíveis ou imperceptíveis. O afeto, ou o afetivo,
pode ser considerado, por conta disso, um grau-zero da experiência. Isso não quer dizer que

431
Falaremos do terceiro, o desejo, mais adiante, mas pode-se verificar em E III, 11 escol. sobre quais são os
três afetos base.
432
Como dissemos, Espinosa está se interessado no aspecto “mental” da questão, portanto, a menos que seja
indicado, toda vez que ele falar apenas do mental, estaremos ampliando para todo e qualquer atributo. Na
sequência dessa própria citação o próprio Espinosa irá distinguir o afeto na medida em que for relacionaodo à
Mente e ao Corpo, mas acredito que essa distinção, ao menos para os nossos propósitos, não é tão importante.
173

ele é primeiro, nem que ele é o mais fundamental. Queremos com isso dizer que o afeto é uma
espécie de fundo que em certa medida condiciona as nossas ações ao ser a expressão da
variação das nossas capacidades.
Falta, porém, uma peça nesse quebra-cabeça, uma peça que nos permitirá enxergar de que
maneira a esfera afetiva acaba funcionando como condição da ação. Ao tratar do afeto
ressurge a pergunta sobre a consistência dos corpos. Como sabemos até que ponto essas
transformações permitem que um corpo não se torne absolutamente outro? É a partir do
conceito de desejo que conseguiremos arrematar essa questão e compreender como ele é um
elemento constituinte.
174

II.6.1. O caso particular do afeto do Desejo

Para o coração a vida é simples: ele bate enquanto puder. E


então para. Cedo ou tarde, mais dia, menos dia, cessa aquele
movimento repetitivo e involuntário, e o sangue começa a
escorrer para o ponto mais inferior do corpo, onde se
acumula numa pequena poça, visível do exterior como uma
área escura e flácida numa pele cada vez mais pálida, tudo
isso enquanto a temperatura cai, as juntas enrijecem e as
entranhas se esvaem.
Karl Ove Knausgård, Minha luta 1

O conceito de desejo no pensamento de Espinosa é talvez um dos aspectos mais potentes


do seu pensamento. Isso é chover no molhado, mas ao contrário de grande parte da tradição
que remonta ao O banquete de Platão — e a sua descrição do amor (Eros) como filho da
Penúria e do Recurso —, Espinosa não irá conceber o desejo a partir de uma noção de falta
que se busca preencher ou satisfazer. Essa noção de desejo não é nem marginal433 nem
absolutamente inócua. Basta olhar para as grandes manifestações de cultura popular no século
XX e no início do XXI para se entender rapidamente como a noção de "falta" é um dos
pilares da moral ocidental atual434. A posição peculiar de Espinosa não é, como falei,
nenhuma surpresa, é o que se espera de um sistema que tem alergia a qualquer tipo de
finalismo.
Mas não é apenas em sua rejeição do finalismo que o conceito de desejo adquire a sua
potência. Há dois outros fatores. O primeiro é a maneira como Espinosa irá conceber o desejo
positivamente, isto é, a ideia do desejo como um movimento, uma tendência. O segundo é o
fato de que para ele o desejo é o mais próximo que se pode chamar da essência de um

433
O texto de Marilena Chauí, Laços de desejo (Chauí, “Laços de desejo” in: Desejo, paixão e ação na ética de
Espinosa. Companhia das Letras, 2011.), faz um bom apanhado de diversos momentos de aparição da noção de
desejo como falta na tradição ocidental, passando desde Platão até a tradição neoplatônica renascentista em
Marsílio Ficino, Hobbes, Hegel e Freud.
434
Um estudo do alcance dessa noção na cultura popular é capaz de já existir, mas basta verificar qualquer
seriado americano genérico e seu clássico conceito de “the one” (Friends, The big bang theory, How i met your
mother são apenas algumas séries televisivas que dramatizam a ideia de que o desejo é uma falta que se deve
preencher), ou mesmo as novelas brasileiras e a maneira como as tramas sempre se organizam no entorno de
desencontros amorosos — inclusive é notável a quantidade de novelas que terminam, no último episódio, com
alguma espécie de casamento, deixando bem claro que o desejo é uma falta que se satisfaz.
175

indivíduo. É nele, podemos dizer, que um indivíduo encontra o porquê de tal individuação
específica. Se a estrutura da memória estabelece a maneira que um corpo se perpetua, é o
conatus (que é o movimento do desejo) que impele o corpo nessa perpetuação. Entender esse
conceito de desejo pode nos ajudar a repensar a maneira como experimentamos o tempo.
Iremos nesse momento, portanto, desenvolver os seguintes pontos: 1) A crítica de Espinosa ao
conceito de finalidade e da noção de desejo como falta e 2) a construção de um conceito
positivo do desejo.
176

II.6.1.1. O desejo como falta e seus problemas

Estoy en apuros, todo el tiempo pienso en las consecuencias


de mis actos más cotidianos y causales. Los trayectos que
recorro sin saber qué me puede pasar. Pensamientos
imposibles, sin resoluciôn: “Si no me hubiera detenido ese
coche al cruzar la calle, si no hubiera doblado la esquina…”
La vida es una cadena de encuentros casuales pero tratamos
de explicarnos a nosotros mismos como si hubiéramos
elegido desde el comienzo. Caminos que “parecen” casuales
pero son el resultado de toda una manera de vivir. Pensemos
en lo que va desde noviembre, al conocer a Lidia, hasta hoy y
se verá claro que las casualidades han sido rigurosamente
programadas por mí para alcanzar estos mismos resultados.
Ricardo Piglia, Los diarios de Emlio Renzi

Se o desejo é tomado como aquela parte do homem que faz com que ele se movimente
(Espinosa, encontra-se nessa tradição), a divergência que queremos apontar aqui está na
maneira como esse movimento se dá. Como falamos há pouco, Platão será um dos primeiros
que irá enxergar no jogo entre a falta (Penúria) e a riqueza prometida (Poros) a posição do
desejo. Ele seria, assim, o movimento de satisfação de uma falta435. A grande questão para
nós é como é que se pode conceber essa falta? Trata-se de algo que já existe? Mas qual é a
natureza de algo que não existe? Como podemos falar positivamente de algo que só tem uma
existência negativa? O próprio Platão, em outro momento e contexto (no diálogo d’O sofista)
irá ser obrigado a tratar da natureza do não-ser como uma espécie de efeito de comparação
para que ele não caia em graves contradições. Sem contar que para se falar do desejo como
falta devemos conceber aquele que deseja (o homem436) como um ser incompleto. Essa
incompletude é de um tipo especial, porém. Não é uma incompletude da ordem do inacabado,
mas uma incompletude que aparenta ser simplesmente um espaço que já está pronto na espera
para ser preenchido. Essa ideia do desejo como falta, inclusive, se aparenta bastante com a

435
Pode-se perceber que essa dinâmica do desejo acabará deixando a sua marca na estrutura temporal descrita
por Koselleck e que determina o movimento em direção ao futuro.
436
Mas, na realidade, qualquer ente.
177

imagem de um homem esfomeado, que tem um vazio no estômago e cujo desejo seria
justamente a satisfação dessa fome.
Essa descrição do desejo como falta que estamos elaborando tem uma série de problemas
e é contra ela que gostaríamos de ativar o pensamento espinosano. Como mencionamos, há
uma alergia em Espinosa a qualquer tipo de finalismo. A ideia de que o desejo é uma falta
está implicitamente apoiada em uma certa ideia de finalismo, ou seja, na ideia de que as
coisas agem na medida em que tem uma causa final em mente. Se eu resolvo pegar um
martelo no armário é porque, eu preciso desse martelo para martelar um prego na parede.
Nossa ideia aqui é, portanto, realizar um movimento duplo. O primeiro é tentar entender de
que maneira Espinosa se opõe à essa noção de desejo como falta, entendendo no caminho
tanto o porquê dele se formar como tal (como uma falta), mas também a inconsistência desse
conceito. No segundo momento, gostaríamos de examinar alguns dos problemas que acabam
surgindo a partir do momento em que tomamos o desejo como algo que se deve satisfazer.
Não veremos uma crítica explícita à ideia do desejo como falta. Na verdade, não veremos
nem uma descrição do desejo como falta. No sistema de Espinosa a crítica à essa noção de
desejo se pressupõe como consequência da sua recusa ao finalismo, recusa que não se dirige
inicialmente aos desejos particulares dos homens, mas à própria ideia de Deus — está aí aliás,
a razão da crítica ao finalismo aparecer tão cedo na Ética, no final da primeira parte. O alvo
primário é justamente a maneira como a tradição concebe tanto Deus quanto a Natureza como
incompletos, imputando uma carência que só pode ser satisfeita em um processo. O homem,
porém, sendo uma modificação finita da substância divina também não pode ter essa estrutura
de incompletude que o desejo como falta pressupõe — é desse local que poderemos
compreender o que seria o desejo como falta a partir da ontologia espinosana.

Assim, o longo apêndice que segue à primeira parte tem justamente com o objetivo lidar
com o erro em que

os homens comumente supõem que as coisas naturais agem, como eles próprios, em vista de um fim;
mas ainda, dão por assentado que o próprio Deus dirige todas as coisas para algum fim certo: dizem,
com efeito, que Deus fez tudo em vista do homem, e os homens, por sua vez, para que o cultuasse. (E
I, apêndice, grifo meu)
178

A destruição que Espinosa realiza desse conceito de finalismo é longa e detalhada,


acompanharemos alguns de seus passos a seguir, mas é importante ter em mente o ponto
fundamental dessa crítica. Trata-se aqui de atacar a generalização indevida nessa operação,
ou seja, que de uma ideia que diga respeito a um caso particular seja universalizada,
concebida para além do seu contexto sem as adaptações necessárias.
Mas isso não é tudo. Essa generalização está apoiada em uma compreensão errada do
nosso desejo. Como ele escreve no apêndice, “os homens opinam serem livres porquanto são
cônscios de suas volições e de seu apetite, e nem por sonho cogitam das causas que os
dispõem a apetecer e querer, pois delas são ignorantes” (E I, apêndice, grifo meu). O erro
fica claro quando nos lembramos sobre a importância, já discutida, que a ordem da produção
tem no pensamento espinosano. É, portanto, mais adiante, no prefácio da quarta parte da
Ética, que devemos começar a entender o problema do finalismo.
Para Espinosa há uma inversão errônea inicial que causa os problemas: “a causa que é dita
final nada mais é que o próprio apetite humano enquanto considerado como princípio ou
causa primeira de uma coisa.”(E IV, prefácio) O exemplo que Espinosa nos fornece em
seguida deixa bem claro a questão. Para ele, quando se constrói uma habitação, geralmente
imaginamos que construímos a casa para poder aproveitar dos benefícios que essa casa pode
nos fornecer. A ideia da casa, suas, a projeção futura das suas vantagens (seu “para que”)
seria, portanto, concebido, normalmente, como a causa primeira para a ação construir casa —
a causa final seria, portanto, a principal causa. Para Spinoza, porém, isso é um erro. Nós não
construímos a casa pois tínhamos um objetivo em mente. Essa finalidade só pode ser
projetada posteriormente, já que não construímos a casa para ficar confortável, mas ficamos
confortável por construir a casa. A razão dessa confusão está em dois pontos. O primeiro é de
ordem epistêmica, o segundo é uma questão pragmática.
O problema epistêmico está justamente no fato de que grande parte do nosso
conhecimento é da ordem do primeiro gênero do conhecimento. Isso acaba provocando uma
ilusão que será descrita por Deleuze como a ilusão teológica da finalidade: “Captando (…) o
apetite apenas sob a forma de afetos determinados pelas ideias de afecções, a consciência
pode crer que essas ideias de afecções, enquanto exprimem os efeitos de corpos exteriores
sobre o nosso, são verdadeiramente primeiras, são verdadeiras causas finais”437. Isso ocorre
pois grande parte dos nossos conhecimentos se pautariam em encontros sem que tenhamos
noção da sua ordem necessária de produção. Porém, é importante lembrar: a imaginação é
justamente a instância em que não estamos no conhecimento adequado, porém nem por isso
179

estamos imersos numa falsidade absoluta. Como já apontamos em outro local, há sempre uma
positividade em todo conhecimento imaginativo438. Mas lhe falta, evidentemente, o
conhecimento da ordem de produção das coisas, ou seja, falta a compreensão sobre a causa
eficiente. Se concebemos o desejo como aquilo que causa a nossa ação então é preciso
entendê-lo para que possamos compreender as nossas ações. Não podemos ter conhecimento
das nossas ações, para Espinosa, se não conseguimos dar conta das causas que produzem
essas ações, já que “o conhecimento do efeito depende do conhecimento da causa e o
envolve” (E I, ax. 4). Se continuarmos a tomar o desejo como uma causa final entraremos,
porém, em uma situação bem problemática, pois, em certa medida, aquilo que “se busca” não
deixa de ser, também, o efeito da ação — a causa final, como o objetivo, a meta prévia de
uma ação seria justamente o efeito esperado da ação, que seria a sua causa. A confusão que
toma o desejo como uma causa final seria, portanto, uma mesma que acreditasse que a causa
está identificada ao seu efeito. Essa identificação é a tomada da ideia da afecção (uma
imagem mental), que foi provocada por um conjunto determinado de causas, como a própria
origem da ação. A crença de que se quero algo é porque pensei nessa coisa em um primeiro
momento e a partir dessa ideia eu fui impelido a realizá-la é a crença na causa final —
quando na verdade essa ideia que eu tenho (que tomo como causa final) é ela mesma fruto da
pluralidade de causas que me leva a agir, ela é a ideia de uma afecção. Não somos pois
impelidos por uma meta, mas se temos a meta é porque já estamos impelidos em uma direção.
Como dirá Espinosa, “são [os homens] (…) certamente cônscios de suas ações e de seus
apetites, mas ignorantes das causas pelas quais são determinados a apetecer algo.” (E IV,
prefácio) Entre outras tantas coisas, um dos elementos da emenda do intelecto espinosana é
justamente a tradução dessa compreensão inicial errônea que entende as ações a partir de
causas finais para um registro que concebe as coisas por meio de causas eficientes.
A segunda razão da confusão tem a ver com o valor (ou a vantagem) que essa confusão
tem para o homem. Dizer que “erramos” certamente não é o suficiente pois isso não explica o
porquê de tal erro. Também evita lidar com o porquê desse erro persistir439. Sem entrar em

437
Deleuze, Gilles. Espinosa - filosofia prática, 2002. p. 66
438
“é falso que o sol esteja a duzentos pés, mas é verdadeiro que eu o vejo a duzentos pés” (Idem, ibidem, p. 66)
439
Longe de querer se aventurar por essa seara, mas isso que estamos perguntando não deixa de ter relação com
certas pesquisas das ciências cognitivas, que começam a questionar a ideia de que os nossos aparelhos cognitivos
buscam apreender a realidade da maneira mais precisa possível. De acordo com alguns pesquisadores, como
Donald Hoffman, o que vemos é o exato oposto. A evolução da cognição caminharia não para uma maior
“precisão” mas para uma espécie de desenvolvimento pragmático. Em outros termos, se percebemos as coisas
com deformações ou com alguma vagueza isso se dá por conta de um maior valor para a perpetuação de tal ou
tal espécie. As conclusões de Hoffman inclusive nos levam a questionar a própria existência de uma “realidade a
ser apreendida”, como se houvesse alguma “coisa em si” antes dos processos de individuação que os aparelhos
perceptivos efetuam — isso não quer dizer que as coisas não existem antes da percepção, mas que aquilo que
180

muitos detalhes, podemos dizer que há uma certa utilidade na maneira como concebemos as
coisas e na própria atitude de tomar as coisas como causas finais. Isso fica mais claro se
lembrarmos a maneira como Espinosa caracteriza o afeto de amor. Para ele “o amor é a
alegria conjuntamente à ideia de causa externa” (E III, 6 AD) A maneira como Espinosa
apresenta esse afeto já está transposto na maneira correta de conceber as coisas, isto é,
entende o amor como origem da variação afetiva. Quando, porém, experimentamos o amor,
isto é, quando algum objeto externo produz alegria em nós, concebemos a coisa da ordem
ilusória que Deleuze descreveu. Acreditamos que teremos alegria por causa do objeto amado.
Somos então compelidos a acreditar que o objeto externo deve ser buscado para que tenhamos
a alegria — o amor é enxergado como uma causa final, como um objetivo que produz alegria,
quando o que ocorreu foi o inverso: temos amor na medida em que uma causa externa nos
provocou alegria. A questão nesse ponto se inverte e acabamos por acreditar que esse objeto
que foi causa eficiente da nossa alegria é na verdade sua causa final. Isso não é, para
Espinosa, a maneira adequada de conceber as coisas, mas nem por isso essa maneira de
conceber as coisas não tem nenhuma utilidade. Ainda que seja uma maneira de lidar com as
coisas na esfera da imaginação, nem por isso não pode gerar hábitos que se não garantem ao
menos nos ajudam em nossa busca por uma vida com mais alegrias que tristezas — pois ao
menos estaremos navegando minimamente em uma distinção entre coisas que nos fazem bem
e coisas que nos fazem mal, ainda que essas distinções não sejam segundo a ordem das
razões, mas segundo o habitual. Iremos parar por aqui nesse ponto. Há, porém, uma passagem
de Laurent Bove que nos parece resumir bem o interesse desse erro, além de servir como
abertura para futuras investigações:

Nós sabemos que é de acordo com a necessidade do princípio do prazer (ou da utilidade) que o ser
humano chega ao Amor, associando a sua Alegria à ideia de uma causa exterior (…) A coisa exterior,
objeto do nosso amor, é, portanto, simultaneamente à sua descoberta como coisa e coisa desejável,
reconhecida também como “causa” de nosso “contentamento”. O mundo é causalizado [causalisé] no
mesmo instante em que ele é coisificado ou valorado; a emergência de um Mundo exterior das coisas é
também imediatamente, para nós, a [emergência] de uma ordem temporal e antropocêntrica de
determinações das coisas. Uma “causa” é intrinsicamente também uma “coisa”, e uma coisa útil ou
prejudicial, amável ou odiável. Mas isso supõe que essa coisa exterior (independente no espaço) deve
ser também anterior no Tempo com relação ao ser sobre o qual ela produzirá seu efeito. Assim, a
relação causal atribui aos nossos afetos e às nossas ações um “sentido” constitutivo de uma ordem do
Mundo. É porque uma coisa é designada como a causa de uma Alegria (efeito), sempre renovada e
amplificada pela sua presença, que nós temos o interesse de buscá-la e que nós buscamos

existe fora da percepção não é algo já absolutamente indivudado que a cognição simplesmente “capturaria. Para
mais informações cf. https://www.youtube.com/watch?v=6eWG7x_6Y5U&feature=youtu.be
181

efetivamente, ou seja, que nós acabamos dispondo de diferentes maneiras em função desse fim. É,
portanto, de acordo com um verdadeiro princípio de causalidade (inerente à recognição-constituição
temporal do objeto) que o nosso conatus, sob a figura da imaginação, é determinado como sujeito
amoroso que, segundo a minha via, vai se esforçar por buscar a coisa amada. De fato, “o
contentamento que se dá no amante diante da presença da coisa amada” se transforma na meta da
ação, além de ser sua motivação.440

É dessa confusão que irá surgir o erro do finalismo para Espinosa. Pois é a partir do
momento em que acreditamos que há uma causa final em nossas ações que começamos por
conceber as coisas como coisas a se realizar. O homem passa a ser compreendido como um
ser que tem carências (seja quais forem) que devem ser supridas. Estamos, porém, apenas
lidando com a origem dessa noção, sem termos apontado a sua inconsistência ontológica.
Após essa exposição do erro inicial, pode-se entender com mais precisão a origem do
finalismo que Espinosa combate. Não se trata de uma simples universalização, mas de uma
universalização que se baseia em uma confusão. Os homens generalizam a ideia de que as
coisas são realizadas a partir de uma causa final até alcançar o conceito de Deus. Isso começa
incialmente por uma falta de conhecimento sobre as coisas que os cercam: “como encontram
em si e fora de si não poucos meios que em muito levam a conseguir o que lhes é útil (…) daí
sucede que considerem todas as coisas naturais como meios para o que lhes é útil.” (E I,
apêndice, grifo meu) Como não pensam assim sobre si mesmos, não conseguem evitar
projetar sobre a natureza a ideia de que ela só poderia ter sido criada com alguma ideia em
mente. Pelo simples fato de algumas coisas se mostrarem como úteis eles acabam esquecendo
e ignorando todas as que lhes são inúteis. Os homens, para Espinosa, portanto, “não puderam
crer que se fizeram a si mesmas, mas a partir dos meios que costumam prover para si próprios
tiveram de concluir que há algum ou alguns dirigentes da natureza, dotados de liberdade
humana, que cuidaram de tudo para eles e tudo fizeram para seu uso.” (E I, apêndice, grifo
meu) É por meio dessa projeção que se constrói a ideia de um finalismo, de que as coisas
todas tem um sentido, que em seu desenvolvimento há um rumo certo, uma meta. Vemos aqui
a mesma confusão que apontamos antes, tomar a coisa que é produzida (o efeito) como a
origem (a causa).

440
Bove, Laurent. La stratégie du conatus. Paris: Vrin, 2012. p. 68. (tradução minha) Recomendamos, porém, a
leitura de todo o segundo capítulo desse livro, que lida com a utilidade do conhecimento não-adequado, ou seja,
o conhecimento imaginativo.
182

O problema mais geral do finalismo, portanto, é a crença de que “tem algo a ser realizado”
num nível ontológico, ou seja, de que todas as ações de Deus (a substância) têm uma meta.
Não é à toa que Espinosa acusará os teólogos finalistas de antropomórficos: “dizem que Deus
criou tudo com ordem e, desta maneira, sem saber, atribuem imaginação a Deus” (E I,
apêndice). O problema principal, porém, é a tentativa de se conciliar essas ideias com a
suposta onipotência divina. Sendo Deus onipotente, argumenta Espinosa,

é perfeitíssimo aquele efeito que é produzido imediatamente por Deus, e quanto mais precisa de
muitas causas intermediárias para ser produzido, tanto mais é imperfeito. Ora, se as coisas
imediatamente produzidas por Deus tivessem sido feitas para que Deus perseguisse seu fim, então
necessariamente as últimas, para as quais as primeiras teriam sido feitas, seriam as mais excelentes de
todas. (E I, apêndice)

Só isso já deixa qualquer ideia de finalismo bem complicada. Seria supor que Deus
precisa produzir algo intermediário para que aí ele consiga realizar sua meta final, como se
ele não fosse capaz de realizá-la imediatamente. Ora, se ele não é capaz, Deus é tem algum
grau de impotência, “pois se Deus age em vista de um fim, necessariamente apetece algo de
que carece.” (E I, apêndice). Caso Deus tivesse alguma carência já não poderíamos chamar
ele de onipotente, pois haveria algo fora dele que o impeliria a agir. Isso iria de encontro a
tudo aquilo que Espinosa desenvolveu ao longo de toda a primeira parte da Ética, isto é, que
“Deus age somente pelas leis de sua natureza e por ninguém é coagido” (E I, P17).
Simplesmente não pode haver qualquer carência a se realizar em Deus pois isso seria limitar a
potência divina, algo que certamente os teólogos criticados por Espinosa não fariam. A ideia
de causas finais (de um finalismo), que tinha sido apontada como uma confusão epistêmica é
agora descartada num nível ontológico. Assim como o nada, ou a negação, ela é um mero
efeito de um conhecimento imperfeito.
O problema do desejo como falta, como se vê a partir desse “erro da universalização”,
deixa de ser uma questão meramente epistêmica e se torna também ontológica. Não é possível
pensar o desejo como uma falta que se precisa suprir pois a falta, para Espinosa, não tem
qualquer realidade em si. Como é que poderíamos ser impelidos à ação por algo que não
existe de maneira positiva? Mas apenas de maneira negativa? A resposta para essa questão
pode ser encontrara na descrição que Espinosa faz da noção de privação nas suas famosas
cartas à Blyenbergh. Nelas Espinosa, ao tratar do problema do mal, falará sobre como aquilo
que consideramos uma falta, uma privação, não tem uma existência real. Para ele “o ato de
183

privar, mas pura e simplesmente a ausência ou a falta de uma certa coisa, ou, dito de outra
forma, ela não é nada por si mesma; é apenas um ser de razão, uma maneira de pensar que nós
formamos quando comparamos coisas entre si.” (Ep 21) Do ponto de vista do entendimento
absoluto (não o nosso, como já vimos), não podemos dizer que Deus (causa de todas as
coisas) é causa de algo que está ausente. O exemplo do cego que Espinosa dá é lapidar pois
ela deixa claro a loucura que é dar algum valor ontológico pra noção de falta.

Dizemos, por exemplo, que um cego está privado da vista porque o imaginamos facilmente vidente,
seja por comparação com outros homens videntes, seja porque comparamos com o estado presente
desse homem com seu passado, quando enxergava. Quando, pois, consideramos esse homem desse
modo, comparando sua natureza com a de outros indivíduos ou com sua natureza pregressa,
afirmamos que a visão pertence à sua natureza e, por essa razão, dizemos que ele está dela privado.
Mas se dermos atenção ao decreto de Deus e à natureza desse decreto, não se pode mais dizer que esse
cego está privado da visão, como não se pode dizer isso de uma pedra. Dizer que a visão pertence ao
homem é tão ilógico quanto dizer que pertence à pedra, uma vez que nada mais lhe pertence, e pode
ser dito seu, do que aquilo que o intelecto e a vontade de Deus lhe atribuíram. Portanto, Deus não é
mais a causa de que ele não tenha visão tanto quanto não é a de que uma pedra não a tenha; é no que
consiste uma negação pura e simples. (Ep 21)

A questão é que aquilo que nos produz não pode jamais produzir em nós uma coisa que
não existe, uma falta. Mesmo no caso da fome, não se trata de um “vazio” que quer ser
preenchido. O que acontece nesse caso é algo de outra ordem. A experiência da fome (falo
aqui de uma fome de verdade, fruto de um longo jejum, e não aquela fome que estamos
sentindo antes do almoço quando passamos por frangos de padaria cheirosos) é antes uma
espécie de definhamento do meu corpo. Se compreendo meu corpo, tal como Espinosa
explica na sua física dos corpos, como um conjunto de relações de proporções que estão a
todo momento sendo renovadas, que novas partes estão a todo momento substituindo as partes
antigas, pode-se dizer que a fome é o enfraquecimento do corpo que se experimenta quando
as partes que o compõem (positivas), os nutrientes, carboidratos, etc., que tem um papel
positivo nas operações metabólicas do corpo param de participar do meu corpo. A fome não é
um vazio, mas é o próprio corpo não funcionando num nível óptimo (daí outros sintomas que
se associam à fome, como cansaço, fraqueza etc.). Não há, portanto, falta, há sempre apenas
um conjunto de causas que produz outras relações (ou no caso, o mesmo conjunto de relações,
mas mais frágil, fraco).
Esse movimento acaba também por implodir qualquer expectativa de um Deus que nos
julga a partir de critérios universais e eternos como bem, mal, ordem, confusão etc. Deus não
pode ter esses valores pois simplesmente não há nada que lhe falta, não há variação de
184

potência em Deus que possa gerar esses valores, não há qualquer confusão em Deus (visto
que ele segue sempre a sua necessidade). Com isso em mente, não é possível falar que ele
espera que os seres humanos se comportem de tal ou tal maneira pois isso seria
antropomorfizá-lo (e depostencializá-lo) — é querer imputar nele uma imperfeição ontológica
por meio da imaginação, que é a fonte das causas finais. Para Espinosa na impossibilidade de
que esses valores existam em si, esses valores são apenas a universalização de certas
experiências habituais. Os homens, como é dito no apêndice, “creem que todas as coisas são
feitas em vista deles próprios e dizem que a natureza de algo é boa ou má, sã ou podre e
corrompida, conforme são afetados por ela. (E I, apêndice, grifo meu) O que se entende por
bem ou mal, por virtude ou por vício, ou seja, a moral, não é nada além de uma má
compreensão do que ocorre. As ações não são boas por se conformarem a um determinado
valor, mas elas são valoradas como boas na medida em que eu as realizo e elas me trazem
afetos alegres ao invés de afetos tristes. É esse movimento que acabamos de descrever que
exclui da esfera dos afetos a ideia de concebê-los como vícios e virtudes, pois como diz
Espinosa, “a perfeição das coisas é a estimar pela só natureza e potência delas, e por isso as
coisas não são mais nem menos perfeitas em vista de deleitarem ou ofenderem o sentido dos
homens, de contribuírem ou repugnarem à natureza humana." (E I, apêndice).

É com isso em mente que podemos observar de maneira mais clara os efeitos nocivos
dessa compreensão. Se acreditamos em uma falta original, ou seja, se a carência faz parte da
natureza do homem (ou de qualquer ser), o caminho para uma vida ascética tal como descrita
por Nietzsche em Genealogia da moral nos assombra. Segundo ele o grande mal do
cristianismo para a civilização ocidental foi levar ao cabo o movimento platônico de negação
da vida terrena (sensível) rumo a uma promessa de uma vida “superior” que está para além
dessa que estamos imersos agora. Esse movimento é descrito em detalhes ao longo da obra
nietzschiana, mas podemos aqui apenas atentar para a maneira como, em nome dessa “outra
vida”, os homens inventam uma série de estratagemas, que vão desde jejuns, castidade até
tortura física do corpo. Isso sem falar na situação complicada que é a aposta de viver num
mundo que se considera impuro e abdicando de uma série de alegrias em nome de um bem
maior, sem ter alguma garantia de que existe um plano puro (pois ao fim e ao cabo, essa
“outra vida” só pode se fundar numa promessa inverificável).
185

Mesmo quando não caímos nessa ladainha de uma vida futura, ainda é possível ter uma
vida bastante degradada se somos obrigados a conviver com a ideia de que nós somos
incompletos por natureza, como se não houvesse escapatória desse erro (não se trata nem de
um defeito de fábrica, seria algo planejado — obsolescência ontológica programada). No
momento em que nos concebemos como seres carentes, a tentativa de remediar essa carência,
ainda que de maneira provisória, acaba ganhando uma certa prioridade e colorindo toda a
nossa experiência da realidade441. Nos tornamos, de certa formas, escravos de todo e qualquer
objeto exterior que pode vir a saciar a nossa carência e acabamos assumindo uma postura
predominantemente passiva: “assim esse preconceito virou superstição, deitando profundas
raízes nas mentes, o que foi causa de que cada um se dedicasse com máximo esforço a
entender e explicar as causas finais de todas as coisas.” (E I, apêndice, grifo meu)

Não estamos dizendo que conceber as coisas como plenas resolve todo o problema, mas
há um peso e uma urgência (de completude) que são aliviados. Se a filosofia ainda pode nos
ajudar, como acreditamos, é por meio de um paciente desmonte dessas instâncias produtoras
de ansiedade que nos cercam e que muitas vezes estão arraigadas demais nos processos de
reprodução das subjetividades.

441
Seria interessante entender a relação entre os processos de formação de subjetividade que tendem a conceber
o homem como um ser incompleto e os processos de produção capitalista.
186

II.6.1.2. Uma compreensão do desejo como vetor

Não há na China, de um lado, o real e, do outro, o bem; mas


aquilo de que procede o real, e que é a condição de seu
advento, como justo meio da regulação, é também a norma
do bem. Ou antes, não é uma norma, mas apenas “o
caminho”, pelo qual o real é viável, o tao.
François Jullien, O sábio não tem ideia.

Sabemos o que Espinosa quer evitar quando fala de desejo, que tipo de discurso é para ele
nocivo para a vida. Precisamos, portanto, elaborar agora uma noção positiva do desejo. Com
esse conceito poderemos fechar dois fios que deixamos soltos nas partes anteriores e que se
mostrarão como duas faces do mesmo problema. O primeiro fio, o mais antigo, tem a ver com
a pergunta sobre o que dá unidade aos corpos. Na tentativa de resolver esse problema
começamos a trabalhar um segundo fio, que é entender os processos de variações por quais
passam os corpos, ou seja, suas estruturas afetivas.
No que diz respeito à unidade do corpo, lembremos rapidamente o primeiro elemento
dessa constituição. A memória é a estrutura formada pelo encontro sucessivo de corpos de
maneira que as suas afecções tenham uma continuidade. A memória é, portanto, a cadeia de
contrações ininterruptas de transformações por qual um corpo passa. Ela é a estrutura, a
forma, da unidade de um corpo. O desejo (ou mais especificamente aqui, o conatus)442 é o
conceito que dá conta do porquê a estrutura ser de um jeito e não de outro. É com isso em
mente que Espinosa poderá dizer, nas definições dos afetos, que “o desejo é a própria essência
do homem” (E III, 1 AD)
Quando falamos da estrutura afetiva, porém, falamos primariamente da maneira como os
corpos variam sem dar conta para o que garante a sua estabilidade e consistência. Não nos
preocupamos em explicar que esse jogo de variações (de afetos) não é um caos sem ordem
alguma. Trata-se, para nos apropriarmos de uma expressão de Gilbert Simondon, de um jogo
que é composto por nódulos de metaestabilidades443 (os corpos) que tem a sua essência numa

442
Falaremos dessa diferença um pouco mais adiante.
443
A princípio deve-se entender que a metaestabilidade indica uma organização estável de um determinado
corpo mas com um potencial de variação presente. Segundo Simondon os corpos são metaestáveis no sentido de
que há sempre um potencial de variação energética que permite que eles possam assumir outra forma. Quando
187

dinâmica de transformações razoavelmente estável, ou seja, falamos aqui de um certo


circuito444 — essas variações afetivas ocorrem sempre segundo a maneira como esses corpos
(circuitos) se organizam . Ganharemos clareza quanto a isso à medida que avançarmos.

O conceito de desejo começa a se desenhar a partir da noção de conatus, que é elaborada


nas proposições E III P4-P8. É um conceito que surge de maneira um tanto abrupta, tanto que
a sua demonstração inicial (nas proposições E III P4-P5) está fundamentada num argumento
ao absurdo. Daí um comentador como Pierre Macherey dizer que essas proposições tem um
caráter quase axiomático, tendo uma forma negativa.445 Olhemos mais de perto a gênese desse
conceito.
Na E III, P4 será dito que “nenhuma coisa pode ser destruída senão por uma causa
externa”. Isso, como nos lembra Macherey,446 parece a princípio uma simples questão lógica.
Algo que é reforçado pela demonstração, que diz que “a definição de uma coisa qualquer
afirma, e não nega, a essência da própria coisa; ou seja, põe, e não tira, a essência da coisa. E
assim, enquanto prestamos atenção à própria coisa, e não a causas externas, nada nela
poderemos encontrar que possa destruí-la.” (E III, 4 dem.) A consequência dessa proposição é
exposta na proposição seguinte quando ele diz que “Coisas são de natureza contrária, isto é,
não podem estar no mesmo sujeito, enquanto uma pode destruir a outra.” (E III, P5) Caso elas
pudessem existir no mesmo sujeito, ele poderia ser causa de sua própria destruição — pois
uma destruiria a outra. Com essas duas proposições entendemos bem o conceito de conatus,
que é a ideia de que não pode haver na essência de uma coisa algo que tire (e nem mesmo que
ponha) a sua existência, já que nenhuma coisa (nenhum modo) é causa da sua própria
existência e, consequentemente, da sua finitude. Dessa forma não pode haver nada na essência
de algo que existe que implique na sua não-existência.
Somos levados agora para uma definição positiva do conatus: “cada coisa, o quanto está
em suas forças, esforça-se para perseverar em seu ser.” (E III, P6, grifo meu) Isso quer dizer

falamos aqui de metaestabilidade estamos pensando na maneira como os corpos não tem como ser
absolutamente determinados a ponto de serem imunes à transformacão.
444
Compreendemos um circuito como uma rede de causalidades que organizam de modo a formar uma
interioridade que se opõem enquanto uma totalidade ao que lhe é exterior. Desenvolveremos mais esse ponto ao
descrevermos mais para frente os mecanismos de feedback que constituem circuitos. Mas podemos dizer que a
princípio pensamos aqui nos trabalhos de von Foerster. cf. von Foerster, op. cit.
445
Cf. Macherey, Pierre. Introduction à l’Ethique de Spinoza. La troisième partie - la vie affective. Paris: PUF,
1998. p. 72
446
Nos apoiamos aqui na leitura de Macherey sobre o conatus. Cf. Idem, ibidem.
188

que todas as coisas na medida em que são só podem tender para se perseverarem, já que
qualquer destruição é sempre obra de algo externo. Disso segue que, para Espinosa, “o
esforço pelo qual cada coisa se esforça para perseverar em seu ser não é nada além da
essência atual da própria coisa” (E III, P7, grifo meu). A essência das coisas é, dessa forma o
próprio movimento da coisa em sua afirmação, ou seja, no seu movimento de perseverar em
seu ser, já que

da essência dada de uma coisa qualquer seguem necessariamente [efeitos] (…); e as coisas não podem
nada outro a não ser o que segue necessariamente de sua natureza determinada (…) por isso, a
potência de uma coisa qualquer, ou seja, o esforço pelo qual, ou sozinha ou com outras, ela faz [age]
ou esforça-se para fazer algo, isto é (…) a potência (…) não é nada além da essência dada da coisa, ou
seja, sua essência atual. (E III, 7 dem.)

Tudo o que segue de uma coisa é um movimento que busca dar continuidade à sua
existência sem que, contudo, ela tenha domínio sobre a duração dessa existência. Caso ela
perseverasse por um tempo definido, poderia se dizer que há algo nela que é causa do seu fim,
o que, segundo as análises de Espinosa, não seria possível. Dessa forma pode-se dizer que
esse esforço, o conatus, esforça-se por perseverar indefinidamente.447
Todo ser tem uma tendência a perseverar, embora essas tendências sejam todas diferentes.
É nessa variedade de conatus que vemos os conflitos entre os diferentes corpos surgirem. A
minha existência, enquanto ser humano, por exemplo, precisa necessariamente decompor
(pelo processo de digestão) certos corpos vivos para deles extrair nutrientes que vão
(re)compor as relações entre as minhas partes e, dessa forma, me permitir perseverar na
existência — a minha perseverança (conatus) precisa se opor à perseverança de outros corpos.
Com isso em mente podemos dizer que um corpo é sempre um conjunto de causas (um
circuito) cujos efeitos tendem a perpetuar e a manter essas causas organizadas., salvo quando
um outro corpo é forte o suficiente (consegue desorganizar esse circuito) a ponto de decompô-
lo (ou, no ponto de vista desse corpo externo, recompô-lo segundo novas regras).
Não seria exagero dizer que o que temos com o conceito de conatus é uma ideia sobre o
movimento intrínseco genérico de cada coisa. Genérico aqui, é importante dizer, não quer
dizer uma estrutura universal ou prévia, uma ideia (vulgar) platônica. O genérico que falo é
uma distinção de razão operada a partir da abstração das diferenças dos diversos movimentos
de perseverança de cada ser.

447
Não poderia se esforçar por um tempo infinito pois, como já vimos, a infinitude real depende da coisa ser
causa de si, algo que só é possível para a substância.
189

A partir desse ponto podemos compreender melhor qual a diferença entre o conatus e o
desejo. Quando falo, então, que o conatus é um movimento genérico o que quero dizer é que a
essência de cada ser tem essa forma genérica (abstraída as diferenças das instanciações
particulares) de perseverança em si mesmo (ou seu avesso, a impossibilidade de conter nela
mesma a causa da sua destruição), ainda que o conatus específico (o desejo), se organize de
maneiras diferentes. Como diz Frédéric Lordon, “o conatus é uma energia genérica e, como
tal, intransitiva, então sua determinação para anseios particulares lhe vem necessariamente de
fora, e apenas as afecções por coisas exteriores o orientam concretamente em direção a este
ou aquele objeto.”448 Pode-se então distinguir entre os dois conceitos ao levar em conta que “o
conatus de atividade genérica e intransitiva (isto é, tal qual sem objeto), necessita de uma
afecção, necessita ser afetado para encontrar suas orientações concretas e ser determinado
como desejo de perseguir determinado objeto, e não outro.”449

Se o conatus é a forma genérica, podemos então dizer que o desejo é sua forma específica,
ou, como vimos na sua definição: “o Desejo é a própria essência do homem enquanto é
concebida determinada a fazer [agir] algo por uma dada afecção qualquer.” (E III, 1 AD,
grifo meu). Ele é o conatus na medida em que tal corpo está em tal situação, em contato com
tais objetos. Nossa essência é, portanto, algo que depende das relações em que estamos
inseridos, pois só em um contexto é que um corpo pode ser “determinad[o] a fazer algo que
serve a sua própria conservação” (E III, 1 AD dem.). A essência de um corpo pode ser
encarada, portanto, como uma espécie de equilíbrio dinâmico, pois temos ao mesmo tempo
uma tendência a perseverar do corpo (conatus) constantemente delimitado por outros corpos
que também procuraram perseverar. É desse conflito que se desenha o desejo, a partir da
maneira como interagem (ou seja, das afecções) essas duas dinâmicas distintas. O circuito do
conatus, que mencionamos acima, não se organiza, portanto, de maneira puramente
intrínseca, ele é também orientado pelas suas interações com outros corpos e por aquilo que
ele é ou não capaz de realizar no contato com esses outros corpos.
Se isso está correto, me parece também evidente que o desejo não pode de maneira
nenhuma ser estável — o devir é um movimento inevitável — então os corpos podem no
máximo ser metaestáveis.

448
Lordon, Frédéric. A sociedade dos afetos. Campinas: Papirus, 2015. p. 73
449
Idem, ibidem, pp. 63-64.
190

Se a essência de um corpo é fruto necessário do confronto com outros corpos (ou seja,
com uma alteridade), então ele sempre está envolvido em processos de transformação, seja
numa transformação que ainda preserve uma continuidade, uma memória, como falamos em
outro momento, seja numa transformação radical que provoque uma ruptura entre o que esse
corpo era e o que ele se tornou. É por essa razão que achamos justo definir a essência de um
corpo, o seu desejo, como uma certa amplitude de transformações que não rompem a
continuidade das suas afecções. Diremos então que o desejo é uma rede (um circuito) de
transformações no contato com outrem ou si próprio que retroalimentam ou intensificam as
relações desse circuito. Um corpo é o mesmo corpo na medida em que ele passa por
transformações sem que se opere um corte na dinâmica dessas transformações, na medida em
que não se destrói ou decompõe seu circuito, a dinâmica das relações anteriores.
Se afetar é se transformar, o desejo é o critério de determinação das transformações a se
efetuar. Ele é, ao mesmo tempo, um filtro (pois indica quais transformações são possíveis) e
uma orientação em direção a essas afecções, ele é o conjunto de causas em metaestabilidade
que faz com que o corpo se mova em tal e tal direção e não em outra. É também o conjunto de
(micro-)transformações necessárias para que uma certa metaestabilidade se mantenha. Ou
seja, ele é, de certa maneira, um circuito cibernético razoavelmente fechado. Fechado até o
ponto em que ele é levado a outro estado ou simplesmente destruído.

Mas isso não é tudo. Pois, se o devir é inevitável, precisamos ainda lidar com as
transformações por que passa o desejo. Se parece claro e simples compreender as
transformações radicas, as que decompõem ou destroem completamente uma determinada
rede de relações, ou as transformações meramente conservadoras, que não alteram nada no
circuito de transformações; parece mais difícil dar conta das transformações que ainda
apresentem alguma continuidade, alteram de maneira significativa a rede de transformações
que compõem um equilíbrio. As variações afetivas por que um corpo passa, ou seja, as
transformações nas suas capacidades, podem ser compreendidas como uma espécie de metal
elástico. Puxe ele até certo ponto e ele ainda conseguirá voltar à sua posição original. Puxe ele
longe demais e o seu coeficiente de elasticidade será perdido e por perder a sua elasticidade
ele acaba se tornando outro objeto. Bem como o critério de demarcação, entender o limite da
elasticidade é uma das últimas peças que nos restam para compreender não só a dinâmica
afetiva, mas o que pode estar em jogo no plano da ação. Se estamos preocupados em
191

encontrar uma articulação temporal mais saudável, entender até que ponto um corpo pode se
transformar — alterar as suas capacidades — sem que com isso se rompa uma continuidade
total é fundamental. O devir-outro dos corpos acaba sendo, portanto, um aspecto importante
dessa investigação.
Como dissemos, é mais fácil entender a descontinuidade, ela é sempre o momento em que
não há mais retorno, em que eu não consigo mais traçar uma continuidade entre as minhas
afecções atuais e minhas afecções anteriores. Quando alguém morre temos uma instância bem
clara dessa ruptura. Mas o que falar das situações em que uma transformação ocorre e as
coisas parecem não mais ser as mesmas? Um caso típico dessa transformação é a passagem da
infância para a idade adulta e todas as mudanças que isso implica450. O mais estranho é que
justamente uma continuidade é verificável, não só no meu corpo (que é o mesmo), mas nas
memórias que também são as mesmas. A questão é que aquilo que era se transformou
também451. As minhas lembranças da infância certamente não são fiéis, são até, em muitos
casos, fictícias. Mas não podemos negar, porém, que mesmo que essa continuidade seja uma
via repleta de falsos atalhos, becos sem saídas e visibilidade baixa, essa continuidade ainda
permanece. Alteramos a maneira como se organizam os processos de transformação e de
retroalimentação, mas não rompemos totalmente com a sua composição. Variamos o próprio
circuito a um ponto em que ele talvez não possa retornar para seu ponto anterior, mas
podemos, por outro lado, traçar com paciência as diversas transformações estruturais que
ocorreram452 (caso tivéssemos o tempo e os instrumentos adequados).

Talvez seja possível levar adiante essa reflexão de Espinosa sobre os limites de
transformação se nos apoiarmos nas inovações da cibernética que em alguns momentos
parece ser antes uma derivação contemporânea da filosofia espinosana. A cibernética,

450
Apesar de Espinosa abordar pontualmente a questão da infância em sua Ética, não estamos nesse momento
nos referindo ao seu tratamento do tema e nem estamos interessados em desdobrar aqui essas aparições visto que
nossos objetivos são outros e nos levam para outros caminhos. No entanto, cabe aqui apontar para o trabalho de
Zourabichvili, visto que ele explora esse tema ao mostrar como os processos de desenvolvimento da criança
recapitulam o próprio desenvolvimento ético que se encontra na Ética espinosana, deixando em evidência
também a possibilidade de refletir sobre a infância sem apelar para uma concepção da criança como um adulto
privado de certas capacidades. Cf. Zourabichvili, François. Le conservatisme paradoxal de Spinoza - enfance et
royauté. Paris: PUF, 2002. pp. 91-177
451
O acontecimento Freud — penso sobretudo na análise do caso clínico que Freud faz sobre “o homem dos
ratos — está aí para nos lembrar da espantosa mobilidade que a memória tem e o quanto podemos ser enganados
pelas certezas que temos.
452
Até porque essas transformações não são um simples jogo de somas. Há a possibilidade de uma continuidade
mesmo quando há perdas e ganhos.
192

podemos descrever de maneira breve, foi um campo de investigação inaugurado em meados


do século XX preocupado em entender os mecanismos de controle e comunicação em um
sistema (seja esse sistema um corpo humano, animal ou mesmo uma máquina). Acredito que
as ferramentas desenvolvidas pela cibernética em suas investigações sobre auto-regulação,
equilíbrio homeoestático e controle nos permitem tornar mais claro o funcionamento dos
corpos a partir do desejo. Se não encontramos uma discussão explícita na literatura
cibernética sobre corpos, a maneira como Espinosa pensa esse tipo de objeto se aproxima
demais dos circuitos investigados por autores que desenvolveram a cibernética: o corpo na
filosofia de Espinosa, não custa lembrar, acaba funcionando como uma espécie de circuito
autorregulado por feedbacks que acabam constituindo uma espécie de equilíbrio interno que
constrange as partes a ficarem juntas. Além desse ponto, é possível ainda dizer que uma das
principais questões pensadas pela cibernética não está muito longe das perguntas que fazemos
com Espinosa, isto é: até que ponto pode um circuito se complexificar sem entrar em um
estado caótico (um estado em que as relações perdem sua organização, em que o fio de
continuidade é rompido)? É por essa razão que acredito que a cibernética pode contribuir para
aprofundar a reflexão espinosana sobre o desejo.
Há um artigo de um espinosista amador,453 Kevin von Duuglas-Ittu que nos permite
aproximar bem dessa mistura entre Espinosa e cibernética. Como o próprio Duuglas-Ittu fala,
a leitura da obra de Espinosa e das reflexões sobre cibernética revelam uma afinidade
inesperada.454 O ponto principal de contato é que encontraremos em ambos uma tentativa de
compreender processos de autorregulação e o desenvolvimento de equilíbrios internos (o
conatus no caso espinosano, a homeostase, para os cibernéticos). Mas, como é prontamente

453
Chamamos esse autor de amador por duas razões. Primeiramente por ele se ver como primariamente um
escritor. Como ele diz sobre si, suas investigações sobre Espinosa são (ou foram) exercícios para aprofundar a
sua literatura. A segunda razão é para reforçar o aspecto atrativo que a filosofia pode (e deve) ter para não-
filósofos.
454
“Para aqueles que estão preocupados com a filosofia de Espinosa há correspondências de prima facie aqui, o
suficiente para especular que Espinosa parece ser uma espécie de proto-ciberneticista. A regulação, de tipo
estóica, interna dos processos de pensamento de alguém, especialmente no esforço de evitar ideias confusas,
junto à sua doutrina de que o conatus (perseverança essencial) de uma pessoa ou de uma coisa era a principal
força para se preservar contra destruição exterior, parece se adequar ao enquadramento cibernético da questão da
epistemologia e do poder/controle. Some-se a isso que os modelos cibernéticos tinham uma manifesta natureza
linear matemática (marcada pelas propriedades aditivas da causa), e que em alguns momentos Espinosa parece
tratar causas da mesma maneira linear (por exemplo, a asserção idealizada de que dois homens da mesma
natureza, quando combinam suas forças, produzem um novo corpo duas vezes mais forte), sugere profundas
conexões conceituais entre os corpos auto-regulados da continuação do conatus de Espinosa com a teoria da
informação inicial, conceitos cibernéticos de controle de “ruído” e que buscam homeostase. (Há claro, a
diferença significativa no conceito de entropia propriamente dita, já que Espinosa lê qualquer forma de
degradação como causada por uma influência externa, e não natural à qualquer sistema). Para essa comparação
de afinidades podemos adicionar também uma homologia metafísica significativa, que pareceu-me
surpreendente.” (Duuglas-Ittu, Kevin von. Is Spinoza a Cyberneticist, or a Chaocomplexicist?. 2009. Disponível
193

apontado por Duuglas-Ittu, isso não descreve totalmente a questão de Espinosa. Como
estávamos falando acima, é preciso dar conta dos momentos em que um corpo altera o seu
equilíbrio interno. O próprio Espinosa irá indicar que a ideia de uma mudança na maneira
como opera sua perseverança é algo interessante para o corpo:

É útil ao homem o que dispõe o Corpo humano tal que possa ser afetado de múltiplas maneiras ou o
que o torna apto a afetar os Corpos externos de múltiplas maneiras; e tanto mais útil quanto torna o
Corpo mais apto a ser afetado e afetar os outros corpos de múltiplas maneiras; e, inversamente, é
nocivo o que torna o Corpo menos apto a isto. (E IV, P38)

A ideia, portanto, do conatus como uma pura auto-conservação é já uma redução do


movimento que se opera nos corpos — é preciso lidar também com o movimento dos próprios
estados de equilíbrio, ou seja, com a transformação do conatus. Essa transformação é uma
mudança nas capacidades de um corpo (aumento ou diminuição) sem que ele decomponha
absolutamente suas relações (sem que a continuidade das suas afecções seja rompida). Na
linguagem da cibernética, encontraremos dois conceitos que podem ser utilizados para
compreender esses dois movimentos envolvidos no conatus, os movimentos de auto-
conservação e os de transformação do estado de equilíbrio: são respectivamente o feedback
negativo e o feedback positivo.
Para entender o funcionamento desses conceitos, precisamos antes descrever brevemente
o seu contexto de atuação. Como mencionamos acima, a cibernética é uma ciência
preocupada em entender o funcionamento de sistemas, entendidos aqui como um circuito de
causalidades relativamente fechados que formam uma interioridade organizada que se
contrapõe e reagem a uma exterioridade desorganizada (ou organizada de maneira diferente,
segundo princípios diferentes)455. Em um contexto semelhante, embora não completamente
restrito à cibernética, Simondon irá definir o sistema ao opô-lo a um mecanismo meramente
receptivo.

em: <https://kvond.wordpress.com/2009/09/02/is-spinoza-a-cyberneticist-or-a-chaocomplexicist/>. 2 set. 2009.


Acesso em 1 fev. 2017. tradução minha)
455
James Gleick, em seu A informação, descreve o impulso inicial da cibernética do seu fundador Norbert
Wiener: “A cibernética, escreveu ele em suas memórias, correspondia a ‘uma nova interpretação do homem, do
conhecimento que o homem tem do universo, e da sociedade’. Enquanto Shannon enxergava a si mesmo como
matemático e engenheiro, Wiener se considerava principalmente um filósofo, e de seu trabalho com o controle
balístico tirou lições filosóficas a respeito do propósito e do comportamento. Se o comportamento for definido
com inteligência — ‘qualquer mudança de uma entidade com relação a seu entorno’ —, então a palavra poderá
ser aplicada às máquinas e também aos animais. O comportamento voltado para uma meta é objetivo, e o
propósito pode às vezes ser imputado à máquina em lugar de um operador humano: o caso do mecanismo de
busca de alvo, por exemplo. ‘O termo servomecanismos foi criado precisamente para designar máquinas de
comportamento intrinsecamente objetivo.’ A chave estava no controle, ou na autorregulação.” (Gleick, James. A
informação. São Paulo: Companhia das letras, 2013. livro virtual)
194

É virtualmente receptora toda realidade que não possui inteiramente nela mesma a determinação do
curso de seu devir. Essa condição é realizada se o receptor não é completamente um sistema, isto é, se
de um lado ele possui um nível de organização elevado com isolamentos internos e uma distribuição
não-aleatória de seus elementos permitindo-o reter uma energia potencial capaz de operar
transformações futuras, e se, de outro lado, a mudança de estado possível pelo jogo da energia
potencial não depende de fatores internos, locais456.

Sendo um sistema relativamente organizado e endoconsistente, qualquer estímulo que ele


recebe não afeta de maneira singular cada parte sua. Ao receber estímulos externos, inputs,
eles são recebidos por aquilo que constitui o canal com a exterioridade desse sistema e correm
a rede interna do sistema (de acordo com as propriedades do estímulo e a rede de interações
internas a esse sistema) até que esse estímulo sai transformado em um output que pode ser
uma reação ou mesmo algo que é produzido por esse sistema. Para tornar mais claro esse
movimento podemos pensar no corpo humano a maneira como ele reage a uma ordem de
pegar um lápis. A recepção (o input) se dá pelos mecanismos auditivos (no ouvido) que
funcionam como uma parte desse sistema especializada em servir de receptor para um certo
tipo de estímulo (sonoro). Desse receptor as ondas sonoras são transformadas em estímulos
elétricos que se dirigem ao cérebro, ativando memórias, que por sua vez acabam sendo
transformadas em novos impulsos que correm pelo sistema nervoso até realizar contrações
musculares que levam esse corpo a pegar esse lápis. Essa ação realizada é o output para o
input que foi a ordem inicial. Isso não significa que há apenas um tipo de output, este pode ser
variado. Podemos pensar desde uma impressora que imprime de maneira diferente quer a tinta
seja preta quer a tinta seja colorida, mas podemos pensar alguns elementos complexos como
os seres vivos que produzem a sua própria preservação. Eles consomem energia mais ou
menos organizada (mas “convertível”, “utilizável”), que por sua vez produzem ou reforçam
uma organização interna mas expelem o que restou de desorganizado desse input original, ou
seja, calor (geralmente). O ser vivo, nesse sentido acaba sendo uma máquina de expelir
entropia (desorganização), enquanto produz internamente neguentropia (organização)457.

456
Simondon, Gilbert. A amplificação nos processos de informação (1962), s/d. Disponível em:
<https://sociologiassociativa.wordpress.com/projetos/simondon/a-amplificacao-nos-processos-de-informacao/>.
Acesso em: 7 mar 2018.
457
De acordo com a segunda lei da termodinâmica o mundo tende à desordem, que será compreendida como um
aumento da entropia. Entropia nesse sentido é uma medida da desordem. Quando Norbert Wiener sugere o
conceito de neguentropia (entropia negativa), o que ele tem em mente são justamente os processos que
produzem ordem internamente com um custo de uma produção externa de entropia. Gleick elabora isso ao
descrever o movimento a maneira como a vida para Schrödinger era um combate a tendência entrópica do
universo: “Schrödinger sentiu que a fuga temporária à segunda lei, ou a aparência de fuga, seria exatamente o
motivo pelo qual uma criatura viva ‘parece tão enigmática’. A habilidade do organismo de fingir um movimento
195

Podemos agora ter uma maior dimensão dos dois conceitos da cibernética de que nos
interessam para ampliar a compreensão do conatus espinosano. Por feedback
[retroalimentação] entende-se tradicionalmente o mecanismo de retorno de uma energia do
seu output para o seu input em um sistema [relativamente] fechado. Esse feedback pode ser
negativo, levando a uma estabilização. Como exemplo Gleick em seu livro sobre teoria da
informação, descreve o funcionamento de um “governador de Maxwell: “quanto mais rápido
o governador de Maxwell gira, maior é a extensão de seus braços, e quanto maior for a
extensão de seus braços, menor será a velocidade de rotação do governador.”458 Em tese a
criação de circuitos com feedbacks negativos é uma maneira notável de conseguir criar
sistemas estáveis — e pode-se observar que há uma quantidade enorme desses sistemas
estáveis. Essa seria a maneira mais simples de conceber o conatus de Espinosa — uma
simples máquina que a todo custo busca preservar a sua estabilidade.
Há porém um aspecto patogênico desse feedback. Pode-se observá-lo claramente na
maneira como as pessoas se viciam por curtos períodos em certos jogos de celular. São jogos
simples, viciantes que muitas vezes se acabam se transformando numa repetição mecânica de
movimentos onde o jogador entra num ciclo de querer jogar para alcançar os níveis mais altos
e ao alcançar os níveis mais alto ele simplesmente tem o direito de jogar uma forma nova do
jogo apenas ligeiramente rearranjada para poder em seguida alcançar níveis mais altos e assim
por diante. O grau de feedback negativo nesses jogos é altíssimo, daí o vício.459 Também
pode-se falar nos riscos da própria estabilidade que ele promove, já que uma estabilidade
completa tem a sua dose de letalidade. Se consideramos um sistema com uma produção de
uma interioridade organizada em contraposição à uma exterioridade desorganizada (confusa),
se se estabelece um sistema de feedback negativo que recebe de um input de fora estímulos
que acabam sempre por reforçar o mecanismo presente, isto é, o sistema permanece imutável,

perpétuo leva muitos a crer numa especial e sobrenatural força vital. Ele caçoou dessa ideia — vis viva ou
entelequia —, e também da noção popular segundo a qual os organismos ‘se alimentam de energia’. Energia e
matéria eram apenas dois lados da mesma moeda e, seja como for, uma caloria vale tanto quanto qualquer outra.
Não, afirmou ele: o organismo se alimenta de entropia negativa. ’Em termos menos paradoxais’, acrescentou
Schrödinger, paradoxalmente, ‘o elemento essencial no metabolismo é o fato de o organismo conseguir se
libertar de toda a entropia que é incapaz de deixar de produzir enquanto está vivo.’ Em outras palavras, o
organismo suga o caráter ordenado de seus arredores. Herbívoros e carnívoros se alimentam de uma variedade
de tipos de estruturas; alimentam-se de compostos orgânicos, matéria num estado bem ordenado, e a devolvem
‘numa forma muito degradada — mas não completamente degradada, entretanto, pois as plantas são capazes de
utilizá-la’. As plantas, por sua vez, retiram não apenas a energia como também a entropia negativa da luz solar.
Em termos de energia, o registro pode ser feito de maneira mais ou menos rigorosa. Em termos de ordem, os
cálculos não são tão simples. O cálculo matemático da ordem e do caos continua sendo mais delicado, com suas
definições mais suscetíveis a seus próprios ciclos de retroalimentação.” (Gleick, op. cit.)
458
Idem, ibidem.
196

esse sistema fica extremamente vulnerável à mudanças que ocorrem fora dele. No momento
em que ocorre uma mudança no exterior do sistema ele não tem capacidade de adaptar o seu
sistema à mudança de estímulo. A sua estabilidade acaba virando então uma ponte para o
futuro (para a morte). O feedback negativo certamente é um aspecto importante do conatus,
mas caso ele fosse simplesmente essa perpetuação de si, sem dar conta das mudanças que
ocorrem no seu ambiente, os corpos não teriam capacidade de sobreviver em ambientes que
se transformam. A sua estabilidade seria apenas um equilíbrio precário, já que a sua
perseverança não levaria em conta a variação do que lhe é externo. Seria um sistema burro.
O feedback positivo, por outro lado, funciona como um sistema amplificador, como se
a energia ao voltar para o ponto de input, ao invés de gerar uma estabilidade acaba por
modificar a própria estrutura do sistema interno. Ou seja, quando o sistema se depara com
estímulos diferentes do esperado ele tem a capacidade de se alterar para se adaptar a essas
mudanças. Na medida em que o sistema se altera dois caminhos são possíveis, um que leva
para uma patogenia e outro que leva a uma estabilidade dinâmica. A patogenia seria o caso
em que determinados estímulos modificassem o sistema a tal ponto que ele perde qualquer
possibilidade de recursividade, ou seja, ele deixa de ser um sistema — vira caótico. O
segundo caminho, o da estabilidade dinâmica, se dá nos casos em que, diante de um novo
estímulo, ele consegue se adaptar ao novo estímulo, ele se modifica internamente de acordo
com as mudanças externas (há um indício de ressonância entre exterioridade e interioridade).
O sistema, no caso do feedback positivo, não tem uma estabilidade fixa, ele tem uma
estabilidade plástica que tem o potencial de se adaptar às mudanças no exterior, que
acabariam por produzir outros tipos de estímulo. É preciso lembrar que esses dois caminhos
nunca se separam de verdade, o fantasma da perda de qualquer recursividade está sempre
presente na estabilidade dinâmica.460 O conatus nesse sentido teria a capacidade de se adaptar,
diante das mudanças no ambiente em que ele está inserido, alterar as suas capacidades (seja
expandido-as, substituindo-as, e até, dependendo do caso, reduzindo-as). Isso não quer dizer
que ele possa sempre responder à alterações no ambiente. Certamente haverão momentos em
que ele não conseguirá dar conta e os estímulos externos serão fortes demais e o decomporão
ou momentos em que a transformação é tamanha que rompe completamente a continuidade
do corpo.

459
Outro exemplo de feedback negativo que seria interessante explorar eventualmente é toda a maneira como
Vilém Flusser descreve a máquina fotográfica e como ela na verdade acaba limitando os usos que o homem pode
fazer dela, inserindo-o num loop em que ele acaba sempre tirando mais fotos da mesma maneira.
460
Isso pode gerar um sistema patogênico, a pessoa acha que está produzindo bons resultados, mas ela está
apenas entrando na maquina de outra coisa. Virando servo.
197

Figura 2. Desenvolvimento dos dois processos de feedback

Se o conatus é um equilíbrio dinâmico, então esse equilíbrio pode ser compreendido


como o próprio desejo, pois, como Espinosa diz, “o Desejo é a própria essência do homem
enquanto é concebida determinada a fazer [agir] algo por uma dada afecção qualquer.” (E
III, 1 AD, grifo meu) É justamente esse movimento de lidar com outrem e se adaptar que é a
dinâmica do desejo que descrevemos. Mas é também o movimento de auto-conservação
descrito pelo movimento de feedback negativo. Para lidar com esse desdobramento envolvido
no conceito de conatus, Duuglas-Ittu acredita que mais que a primeira fase da cibernética, o
pensamento caopléxico (chaoplexic thinking) parece mais apto a lidar com esses
problemas.461 Segundo ele, esse tipo de pensamento

é a percepção de que o feedback negativo [retroalimentação] não é o único princípio organizador nos
sistemas. De fato, se um sistema poderá em algum momento se adaptar a ambientes que, por sua vez,
estão eles próprios em constante mudança, ele próprio deve ter a habilidade de reescrever e mudar
suas relações de interpretação internas. E para fazer isso eles precisam sair da busca por um equilíbrio
(o Bem específico procurado) rumo a outros estados de equilíbrio. Em certo sentido, aliás, quanto
mais estados metaestáveis um sistema pode alcançar, maior a sua chance de ter a flexibilidade para se
adaptar à eventos esperados (mas não realizados).462

461
Não pretendemos entrar em grandes debates históricos, mas acreditamos que se, certamente, na primeira fase
da cibernética há uma preocupação maior com sistemas homeostáticos (sem dar conta da dinâmica dos próprios
sistemas de equilíbrio) isso não significa nem uma recusa de aceitar essas transformações nem de uma
ignorância total. Encontraremos no pensamento de W. Ross Ashby, já no início dos anos 50, a tentativa de lidar
com o potencial de transformação desses circuitos. Com a segunda geração da cibernética, porém, que começa a
refletir a cibernética de segunda ordem, teremos essas questões ganhando mais espaço (penso aqui, de novo, em
Von Foerster). Dito isso, acredito que o que Duuglas-Ittu chama de “pensamento caopléxico” não se trata de
uma rejeição aos paradigmas da cibernética, mas simplesmente do seu desenvolvimento, podendo ser
considerado uma fase posterior da cibernética ou da teoria da informação.
462
Idem, ibidem.
198

Figura 3. Pensamento caopléxico

Pode-se dizer então que nesse tipo de sistema o desejo é de ordem caopléxica. Há dois
tipos de movimento possíveis, um feedback negativo (retroalimentação, auto-conservação) e
um feedback positivo (transformação da dinâmica de auto-regulação). Como diz Duuglas-Ittu:

Não podemos concordar com os teóricos de sistema de que é necessário uma combinação de
conservações do feedback negativo e exposições, saltos, do feedback positivo para poder produzir um
sistema auto-conservador viável? E, no nível mais fundamental, não devemos também admitir que
para Espinosa os comportamentos e as condições da racionalidade são eles próprios feedbacks
positivos em sua natureza: racionalidade e compreensão clara tendem a produzir mais racionalidade e
compreensão clara (não importando o quão contingentemente contextualizado). O que estou sugerindo
é que o modelo cibernético de Espinosa de uma auto-organização clara inserida num meio
potencialmente perigoso de ruídos é temperado (ou, deve-se dizer, é transformado) com uma inclusão
alternativa caopléxica das amplificações do feedback positivo, e que essas amplificações nos ajudam a
entender algumas das prescrições chaves dos conselhos de Espinosa.463

463
Idem, ibidem.
199

Se o desejo é a essência atual de um corpo, e o desejo é também um movimento, um


vetor,464 podemos dizer, então o corpo é a sua ação, ação interessada. Não se trata de uma
ação com uma finalidade, pois, afinal, foi Espinosa quem disse que “não nos esforçamos,
queremos, apetecemos, nem desejamos nada porque o julgamos bom; ao contrário, julgamos
que algo é bom porque nos esforçamos por ele, o queremos, apetecemos e desejamos.” (E III,
9 escol.) A ação é interessada tanto no sentido de que ela busca sua perseverança (conatus),
mas realiza essa busca num meio determinado. Um corpo, podemos agora concluir, é a
amplitude dos seus movimentos delimitados pelo contato com outrem.

Resta agora entender as implicações práticas dessa concepção de desejo. Podemos


entender de uma nova forma as ações que realizamos. Costumeiramente a ideia de uma auto-
conservação é posta em primeiro plano. Busca-se criar práticas e estimular hábitos que
permitam preservar esse indivíduo que somos, essa nossa configuração que temos nesse
momento. Isso é de suma importância se queremos ter uma boa vida. É preciso conhecer a nós
mesmos e nosso ambiente (e a complexa passagem de um para o outro, o limite) para que
possamos traçar estratégias, para que consigamos agir de maneira a fortalecer o nosso corpo e
evitar seu enfraquecimento. O problema, e é aí que a coisa ganha a dimensão, é que esse
ambiente não é fixo (e nem mesmo nós somos fixos, como Heráclito já observava). É preciso
estar atento para as dinâmicas do ambiente e de nós mesmos. Não adianta de nada
continuarmos os mesmos e não estarmos atentos para as mudanças que ocorrem e que acabam
tornando inócuas a maneira como habitualmente agíamos. É só atentando para a mudança,
para o devir, que conseguiremos alcançar uma espécie de estabilidade dinâmica.
O tipo de prática que está em questão aqui, como já dissemos, é uma espécie de abertura
para um devir-outro. Isso não significa se jogar num movimento de autotransformação
infinito e voluntarista. Pelo contrário: é simplesmente aceitar que se há alguma coisa que
devemos levar em conta é o fato de que aquilo que serviu ontem, pode não servir hoje e, por
fim, voltar a servir amanhã. A posição que se desenha parece muitíssimo com a sabedoria
confuciana descrita por François Jullien:

É necessário que, não se imobilizando em nenhum ponto de vista particular, se possa evoluir de
acordo com o curso das coisas; e é por isso que se diz, em seguida, que o sábio não tem “posição”

464
Agradecemos ao Pedro Gomlevsky, por esse termo.
200

formada. Estando o real em transformação contínua, sua conduta também está e, como ele, não se
“estabelece”.465

Definimos o desejo como uma certa amplitude de transformações operadas por um corpo
com vistas à sua preservação. Não se trata de um conjunto de transformações definidas
previamente, o desejo é uma autopreservação (conatus) na medida em que é delimitado por
outrem. Quando digo delimitado, não se trata necessariamente de uma relação de conflito,
quero apenas dizer que o desejo é o conatus que para se efetuar precisa dar conta da
existência de outros corpos no mundo que buscam, por sua vez, se perpetuarem. É antes uma
inevitabilidade do contato (que pode levar a disputas ou a alianças) do que propriamente uma
situação em que cada indivíduo se põe como inimigo de todos os outros indivíduos.466 O
escopo do que se considera ação ganha contornos mais precisos.
A compreensão do desejo a partir de uma lógica da transformação permitirá encarar as
coisas, independentemente do que sejam, fora de uma dinâmica de “carência → suprir
carência”. É preciso sublinhar esse ponto, já que esse é talvez um dos movimentos centrais
que gostaria de desenvolver. Grande parte do que é feito aqui é tentar encontrar um caminho
para lidar com o desejo sem que ele seja compreendido como uma falta. Parte do investimento
que foi feito na obra de Espinosa estava interessado nas ferramentas que ele fornece para sair
dessa lógica negativa do desejo. Não se trata de uma mera reconstituição histórica, mas da
tentativa de seguir a trilha apontada por Espinosa (mas que certamente não é só dele) e levar
às últimas consequências como esse conceito de desejo pode nos ajudar a entender em que
consiste agir. Conseguiremos vislumbrar dessa forma a maneira como os corpos não se
prendem a uma temporalidade voltada para a realização de um futuro (suprindo uma falta),
mas, antes, podem ser concebidos sem recurso a uma ideia de futuro a partir das noções de
afeto e desejo. Dito isso, é importante não só reconhecer os pontos em que as noções de afeto
e desejo espinosana podem ser levadas mais adiante, radicalizadas, como também, encarar e
lidar com suas limitações.467

465
Jullien, François. Um sábio não tem idéia. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 22. grifo meu.
466
A menos que se trate de repensar toda uma outra noção de inimigo. Para esse outro sentido cf. Saldanha,
Rafael. op. cit.
201

É preciso lembrar que os movimentos dos corpos não estão perseguindo nada, nenhuma
finalidade determinada previamente. Dizer que eles estão buscando perseverar em seu ser e
que esse movimento se dá contra/com outrem é certamente um avanço, mas ainda não nos
explica de que maneira isso se ocorre, como se dá exatamente essa dinâmica de contato. Isso
nos leva a outro ponto que pode ser mais bem elaborado, o que falar das transformações? Os
corpos são processos de transformações, sejam transformações que buscam preservar uma
certa ordem, sejam transformações que visam mudar a própria ordem atual para se adaptar a
alguma nova demanda — mas também não temos uma noção clara o suficiente do que ocorre
e de como ocorrem esses processos de transformação. A passagem pela cibernética nos
permitiu vislumbrar o elemento dinâmico que está envolvido na auto-regulação dos corpos —
a maneira como a transformação é central na existência —, mas ainda não conseguimos
descrever a partir da obra de Espinosa o elemento de continuidade presente nessa noção. Se
seu pensamento é, como acredito, extremamente potente, não é possível deixar de lado o fato
de que o tema da metamorfose ainda aparece como uma quimera e um erro da imaginação que
o assusta468. Embora haja uma preocupação em mostrar que grande parte dos erros que nossa
imaginação comete tem a ver justamente com a violação de uma continuidade entre as
transformações,469 essa preocupação nos leva a crer que o seu olhar está mais preparado para
atentar para a descontinuidade entre dois estados distintos do que na suposta mobilidade entre
um e outro estado. De forma que acredito que isso torna visível uma questão inerente ao seu
próprio pensamento470 que dificulta a reflexão sobre a passagem contínua que ocorre nas
infinitas transformações que povoam o real — visto que isso exigiria procuremos o fio móvel

467
É esperar demais de qualquer filósofo que ele consiga levar até o limite todos os seus conceitos ou que não
cometa eventuais deslizes — muitas vezes frutos das limitações epistêmicas de seu tempo.
468
Cf. Zourabichvili, Spinoza - una física del pensamiento, 2014, pp. 205-242.
469
As críticas que Espinosa faz à certas ideias, como personagens literários míticos que são metamorfoses e/ou
misturas entre seres completamente distintos, tem a ver justamente com a incapacidade de aceitar que essa
“metamorfose” seja possível, apontando para a falta de uma continuidade real entre o antes e o depois da
metamorfose como sinal do seu caráter quimérico. Cf. Idem, ibidem.
470
Macherey, ao comentar um livro Le conservatisme paradoxal de Spinoza de Zourabichvili, irá inclusive dizer
que o conceito de transformação sempre teve um lugar marginal no pensamento espinosano: “este método [de
Zourabichvili] é ‘paradoxal’, no sentido de que ele conduz a examinar a filosofia de Espinosa do ponto de vista
daquilo que constitui, de modo descentrado, uma das suas dificuldades, que resume a questão da transformação
ou da metamorfose, visto que essa questão, de fato, não é abordada salvo em certas margens da sua
argumentação, o que torna estranha e desconcertante o fato de focalizar sobre ela a atenção e de a tornar
reveladora das preocupações mais profundas subjacentes ao projeto de Espinosa. (Macherey, Pierre. Présentation
de l’ouvrage de François Zourabichvili Le conservantisme paradoxal de Spinoza (Enfance et royauté), 2004.
Disponível em: <https://f.hypotheses.org/wp-content/blogs.dir/165/files/2017/09/04-02-2004.pdf>. Acesso em: 5
mar 2018.
202

que une dois estados diferentes. A análise dos afetos nos trouxe para um local em que
precisamos ir além desse autor471.
O ponto em que paramos é na maneira como a noção de desejo está envolvida na
problemática da transformação. Para dar continuidade, iremos procurar ajuda na obra dos dois
pensadores que talvez mais tentaram dar conta desse conceito no século XX. Acredito que
uma incursão por alguns dos conceitos chave de Deleuze e Guattari permitirá dar mais
concretude para uma noção positiva de desejo ao explorar a ideia de transformação.

471
É preciso nesse ponto fazer uma menção ao livro de Zourabichvili que citamos há pouco. Ainda que
tenhamos escolhido percorrer outro caminho, é preciso destacar que um dos grandes méritos da leitura que
Zourabichvili faz de Spinoza é mostrar que apesar de ocupar uma posição marginal nos estudos de Spinoza, há
em sua obra um conceito revolucionário de transformação: “Em um primeiro momento, portanto, o pensamento
de Espinosa não parece propício para uma interrogação positiva ou fecunda sobre a transformação e o historiador
da filosofia estaria mais inclinado desse ponto de vista a se orientar para o lado de Bacon. Nós temos porém
razões de crer que Espinosa não apenas se lança no problema da transformação, como o encara de uma forma
diferente de qualquer filósofo anterior.” (Idem, Le conservatisme paradoxal de Spinoza - enfance et royauté,
2002. pp. 5-6). Reconhecemos a potência da leitura do autor que inclusive em muito contribuiu com a nossa
leitura sobre o pensamento espinosano. A nossa questão, porém, não é apenas a transformação, mas o movimento
de transformação contínua, algo que não se encontra suficientemente desenvolvido na obra de Espinosa e que só
começa a ganhar consistência na história da filosofia a partir das reflexões hegelianas sobre a dialética e a
construção de um conceito positivo dessa transformação a partir da duração bergsoniana.
203

II.6.2. Máquinas, devires, ritornelos e corpos sem órgãos

e era então a roda dos homens se formando primeiro, meu


pai de mangas arregaçadas arrebanhando os mais jovens,
todos eles se dando rijo os braços, cruzando os dedos firmes
nos dedos da mão do outro, compondo ao redor das frutas o
contorno sólido de um círculo como se fosse o contorno
destacado e forte da roda de um carro de boi, e logo meu
velho tio, velho imigrante, mas pastor na sua infância,
puxava do bolso a flauta, um caule delicado nas suas mãos
pesadas, e se punha então a soprar nela como um pássaro,
suas bochechas se inflando como as bochechas de uma
criança, e elas inflavam tanto, tanto, e ele sangüíneo dava a
impressão de que faria jorrar pelas orelhas, feito torneiras,
todo o seu vinho, e ao som da flauta a roda começava, quase
emperrada, a deslocar-se com lentidão, primeiro num
sentido, depois no seu contrário, ensaiando devagar a sua
força num vaivém duro e ritmado ao toque surdo e forte dos
pés batidos virilmente contra o chão, até que a flauta voava
de repente, cortando encantada o bosque, correndo na
floração do capim e varando os pastos, e a roda então
vibrante acelerava o movimento circunscrevendo todo o
círculo, e já não era mais a roda de um carro de boi, antes a
roda grande de um moinho girando célere num sentido e ao
toque da flauta que reapanhava desvoltando sobre seu eixo, e
os mais velhos que presenciavam, e mais as moças que
aguardavam a sua vez, todos eles batiam palmas reforçando
o novo ritmo
Raduan Nassar, Lavoura arcaica

Antes de entrar propriamente nos conceitos que pegaremos de empréstimo para estender
nossa compreensão positiva do desejo, precisamos lidar com duas escolhas que fizemos. A
204

primeira diz respeito à escolha do pensamento de Deleuze e de Guattari, que pode soar
arbitrária.472 A segunda é uma escolha por privilegiar os conceitos elaborados em Mil platôs
em detrimento dos conceitos de O Anti-Édipo — que poderiam parecer mais apropriados, já
que lidam explicitamente com a questão do desejo.
Para começar podemos apontar o fato de que esses autores compartilham a mesma
problemática que nos ocupa. Não apenas uma reflexão sobre os afetos, mas, como sugere
David Lapoujade, trata-se de pôr o problema da ação (e da capacidade de agir) a partir da
questão do tempo, pois “não se pode colocar a questão da ação política sem partir do niilismo
passivo que a impede ou sufoca como uma espécie de a priori”473. Dessa forma,

o problema não é, primeiro, como se tornar capaz de agir politicamente? De gerar essa capacidade em
nós? Não agimos apenas pelo fato de que isso seja possível ou porque temos a capacidade de agir,
muito menos porque temos a vontade. O problema não é o de saber como agir, mas, primeiro, de se
tornar capaz de agir. Sob vários aspectos, já o problema de Diferença e repetição: como se tornar
capaz de ação? Como se tornar capaz da ação formidável = x ? Esse é o problema geral do empirismo
transcendental como doutrina das faculdades: como se tornar capaz de sentir, de imaginar, de pensar?
E, a cada vez, a resposta de Diferença e repetição implica as forças do tempo em dimensões do
problema. Acaso isso quer dizer que o problema da ação política também implica as forças do tempo?
Na criação de novos espaços-tempos?474

Podemos acrescentar a essa identidade de problemas o fato de que talvez tenha sido na
obra desses autores475 que a noção de transformação, devir, tenha ganho contornos mais
nítidos. Vemos desfilar em um livro como Mil Platôs as mil caras que a transformação pode
adquirir. Além disso, há outro ponto que os aproxima do que estou tentando fazer aqui: é a
insistência com que combatem a ideia do desejo como falta em nome de uma concepção do
desejo como produção. Como dizem Deleuze e Guattari em O anti-Édipo,

tudo é produção: produção de produções, de ações e de paixões; produções de registros, de


distribuições e de marcações; produções de consumos, de volúpias, de angústias e de dores. Tudo é de
tal modo produção que os registros são imediatamente consumidos, consumados, e os consumos são
diretamente reproduzidos. Tal é o primeiro sentido de processo: inserir o registro e o consumo na
própria produção, torná-los produções de um mesmo processo.476

472
E em certa medida é, como todas as escolhas dessa ordem acabam sendo, visto que somos sempre limitados
pelos nossos encontros.
473
Lapoujade, David. Deleuze, os movimentos aberrantes. São Paulo: n-1 edições, 2015. p. 264
474
Idem, ibidem, p. 263. Cf. idem, ibidem, pp. 263-270
475
Falo tanto da obra conjunta de Deleuze e Guattari como na obra individual de cada um desses autores.
476
Deleuze, Gilles; Guattari, Félix. O anti-Édipo, 2010, p. 14
205

Mas também, mais adiante: “Acreditamos no desejo como no irracional de toda


racionalidade, e não porque ele seja falta, sede ou aspiração, mas porque é produção de desejo
e desejo que produz, real-desejo ou real em si mesmo.”477
Encontraremos, portanto, na obra de Deleuze e Guattari uma enorme preocupação em
tentar entender de que maneira a concepção de desejo como falta acaba por gerar uma série de
patogenias. Não se trata simplesmente de desconstruir essa noção negativa. Deleuze e
Guattari buscam dar conta de como o desejo, sendo algo positivo, uma instância produtiva
(um movimento, vetor), pode acabar gerando essa concepção deturpada de si próprio. Não nos
interessa aqui compreender essa transformação específica, mas é importante destacar o
seguinte: não basta simplesmente dizer que desejo é “x” ou “y”. A nova concepção de desejo
que se quer instaurar precisa, num mesmo lance, justificar o porquê dela poder ter sido
ignorada e, também, nos fazer ver em que sentido ela (essa nova concepção do desejo) pode
ser libertadora. Acreditamos que ao longo das duas principais obras de Deleuze e Guattari, O
anti-Édipo e Mil platôs, acaba-se satisfazendo ambas as condições.
Isso nos leva à nossa segunda escolha. Certamente a escolha mais óbvia seria partir dos
conceitos trabalhados em O anti-Édipo, afinal, trata-se de um livro que se presta a mostrar os
efeitos de uma concepção problemática de desejo (e a gênese desse erro) e suas repercussões
por toda a esfera social. A questão é que mesmo admitindo que esse livro foi imprescindível
no que estamos tentando elaborar aqui — afinal, é um livro que tem como um de seus
projetos a reforma conceitual da noção de desejo — , grande parte do seu intuito é destrutivo,
ou seja, os conceitos se apresentam como armas de guerra numa batalha muito particular,
aquela contra as instituições psicanalíticas e certos grupos da esquerda francesa dos anos
60.478
Isso não significa que não haja conceitos interessantes. Para não ir muito longe, o conceito
de máquinas desejantes é, inclusive, bem próximo do que estamos concebendo como desejo.
Por meio desse conceito teremos a descrição de três operações que os corpos (máquinas)
realizam: produção, registro e consumo. Vê-se que há o cuidado de não simplesmente
postular o desejo como positividade, mas de tentar descrever o que concerne a essa

477
Idem, ibidem, p. 503
478
A isso pode-se acrescentar o que Deleuze diz no prefácio que escreveu para a edição italianas de Mil Platôs:
“O Anti-Édipo tinha uma ambição kantiana, ele tentava elaborar uma espécie de Crítica da Razão Pura ao nível
do inconsciente. (…) Mil Platôs afirma, por outro lado, uma ambição pós-kantiana (ainda que decididamente
anti-hegeliano). O projeto é ‘construtrivista’. É uma teoria das multiplicidades elas mesmas, lá onde o múltiplo
passa ao estado de substantivo, enquanto que O Anti-Édipo as considerava ainda dentro das sínteses e sob as
sínteses do inconsciente.” (Deleuze, Gilles. “Préface pour l’édition italienne de Mille Plateaux” in: Deux régimes
de fous. Paris: Les Éditions de Minuit, 2003. p. 289, tradução minha)
206

positividade. Por que razão, então, considero mais interessante se ater a Mil Platôs? Bem,
vamos, antes de responder isso, fazer uma apresentação do conceito mencionado acima

*
.
Como dissemos, as máquinas desejantes realizam três operações. O primeiro deles é o da
produção da produção, que se dá pelo acoplamento dos corpos, sempre parciais que, nesse
movimento, fazem correr seu fluxo adiante. Segundo Deleuze e Guattari, “há sempre uma
máquina produtora de um fluxo, e uma outra que lhe está conectada, operando um corte, uma
extração de fluxo (o seio — a boca).”479 Assim “o desejo não para de efetuar o acoplamento
de fluxos contínuos e de objetos parciais essencialmente fragmentários e fragmentados. O
desejo faz correr, flui e corta.”480 O desejo é, na sua primeira operação, essa construção de
passagens de fluxos:

Todo “objeto” supõe a continuidade de um fluxo, e todo fluxo supõe a fragmentação do objeto. Sem
dúvida, cada máquina-órgão interpreta o mundo inteiro segundo seu próprio fluxo, segundo a energia
que flui dela: o olho interpreta tudo em termos de ver — o falar, o ouvir, o cagar, o foder...481

O segundo movimento descrito pelos autores é a de uma produção de registro. Ela está
relacionada a uma antiprodução que provém da produção da produção. Nessa produção “as
máquinas desejantes fazem de nós um organismo; mas, no seio dessa produção, em sua
própria produção, o corpo sofre por estar assim organizado, por não ter outra organização ou
organização nenhuma.”482 Elas produzem um corpo sem órgãos483 — este que “é o
improdutivo, o estéril, o inengendrado, o inconsumível”.484 Esse corpo sem órgãos, como
lembram os autores, não é uma projeção da produção e nem os restos de uma originalidade ou
totalidade perdida. O corpo sem órgãos, dizem, “se assenta sobre toda a produção, constitui
uma superfície na qual se distribuem as forças e os agentes de produção, de modo que se
apropria do sobreproduto e atribui a si próprio o conjunto e as partes do processo, que, então,
parecem emanar dele como de uma quase-causa.”485 E na produção de registro (o segundo
movimento) essa quase-causa (o corpo sem órgãos) acaba servindo como uma espécie de polo

479
Deleuze, Gilles; Guattari, Félix, op. cit., p. 14
480
Idem, ibidem.
481
Idem, ibidem.
482
Idem, ibidem, p. 20
483
Não entraremos nessa discussão no momento, mas é importante ter em mente que o conceito de corpo sem
orgãos em O anti-Édipo é diferente da maneira como ele aparece em Mil Platôs.
484
Idem, ibidem.
207

organizador das produções: “Sobre o corpo sem órgãos as máquinas se engancham como
outros tantos pontos de disjunção entre os quais se tece toda uma rede de sínteses novas que
quadriculam a superfície.”486
O terceiro movimento, por fim, é a produção de consumo. Como uma espécie de resíduo

na superfície de inscrição, algo da ordem de um sujeito se deixa assinalar. É um estranho sujeito, sem
identidade fixa, errando sobre o corpo sem órgãos, sempre ao lado das máquinas desejantes, definido
pela parte que toma do produto, recolhendo em toda parte o prêmio de um devir ou de um avatar,
nascendo dos estados que ele consome e renascendo em cada estado.487

Temos, nesse ponto a constituição da subjetividade, que de maneira alguma preexiste aos
processos de produção. O sujeito é, nesse esquema, um resíduo que “circula através das
disjunções e as consome como diversos estados de si mesmo”.488
O que podemos dizer, de cara, é que se esse conceito tem alguns elementos que nos
interessam muitíssimo, como a noção de máquina, que trabalharemos em breve, ou mesmo a
ideia de que o sujeito tem uma posição marginal; ainda assim não encontraremos lá o conceito
de transformação que procuramos. Temos máquinas que se acoplam (criam circuitos), que
produzem, como uma fábrica, mas não temos uma elaboração (aí) sobre os processos de
transformação envolvidos na produtividade do desejo. Só após O anti-Édipo489 (que, como
dissemos, está preocupado com outros problemas), é que Deleuze e Guattari começarão a
trabalhar de maneira mais sistemática o conceito de devir. Levando isso em consideração,
vemos mais potencial na elaboração dos conceitos em Mil Platôs, já que o que pensamos
sobre o conceito de desejo como algo positivo (a partir de Espinosa) tem a ver justamente
com a ideia de transformação de/nos corpos. Se esse livro não elabora explicitamente o
conceito de desejo (como O anti-Édipo), há, por outro lado, uma série de conceitos que ao
descreverem processos de transformação se avizinham da noção positiva de desejo que
queremos pensar.

485
Idem, ibidem, p. 22
486
Idem, ibidem, p. 25
487
Idem, ibidem, p. 30
488
Zourabichvili, François. Le vocabulaire de Deleuze. Paris: Ellipses édition, 2003. p. 49 (tradução minha)
489
Como diz Zourabichvili, “Deleuze e Guattari o anunciam em O anti-Édipo, mas só constróem um conceito
específico a partir do Kafka.” (Idem, ibidem, p. 29, tradução minha)
208

Se o desejo é sempre o movimento de transformação de um corpo, comecemos pelo


conceito de máquina, pois é por meio desse conceito que Deleuze e Guattari expandem a
noção tradicional de corpo490 — veremos que não estamos longe da maneira como pensamos
Espinosa junto à cibernética. Esse conceito tem uma longa história no pensamento dos
autores, tendo aparecido já em um ensaio de Guattari de 1969 antes do seu encontro com
Deleuze, “Máquina e estrutura”, com o propósito de atacar o conceito, então dominante, de
estrutura pelo seu suposto imobilismo. Posteriormente, a partir do seu trabalho junto a
Deleuze, vemos o conceito maturar. O conceito de máquina, tanto nas obras em conjunto com
Deleuze, como em seus projetos pessoais, acaba se tornando uma descrição da dinâmica do
real a partir dos seus focos de estabilização — é uma espécie de teoria dos corpos (ou uma
pequena física guattariana). Para falar desse conceito, resolvemos nos focar em uma
conferência tardia de Guattari (realizada no fim de 1990), pois acreditamos que lá
encontramos, como poucas vezes acontece em seus trabalhos, uma descrição deliberada e
precisa desse conceito — que geralmente aparece sempre de relance.
Apesar de ser um texto tardio — ou seja, um texto que carrega nele toda a evolução do
conceito de máquina — pode-se ver claramente que a razão por se apoiar no conceito de
máquina não se transformou muito. Se em 1969, Guattari se preocupava com um conceito que
nos tornasse móveis, vê-se nessa fala de 1990 o mesmo tipo de interesse prático na lida com
conceitos. Para ele “a posição autopoética e ‘hipertextual’ da máquina possui uma
potencialidade pragmática, ela permite assumir uma atitude criacionista, de composição
maquínica, contra essa cortina de ferro ontológica que separa o sujeito, de um lado, e as
coisas, de outro.”491 Vemos, portanto, como o objetivo de tomar as coisas como máquinas,
tem um duplo objetivo: possibilitar a ação e transformar a fronteira entre homens (sujeitos) e
coisas ao concebê-los como um mesmo tipo de ser que se diferencia internamente. Nesse
sentido “é preciso reaprender, reconceitualizar de outra forma a máquina, para partir do ser da
máquina como aquilo que está no cruzamento tanto do ser em sua inércia , em seu caráter de
nada, como do sujeito, da individuação subjetiva ou da subjetividade coletiva”.492 Guattari
não está buscando simplesmente inserir uma alma nas máquinas493. O que ele quer é expandir

490
Isso talvez já pode ter ficado claro, mas aqui quando falamos em “corpos” estamos falando de indivíduos,
sem nos reportar necessariamente à apenas um dos atributos do pensamento espinosano.
491
Guattari, Félix. “À propos des machines” in: Qu’est-ce que l’écosophie. Paris: Éditions Lignes, 2012a. p. 129
492
Idem, ibidem, p. 113
493
“Não se trata exatamente de um retorno a uma concepção animista a que eu proponho, mas de tentar
considerar que, na máquina, na interface maquínica, existe algo que é, não da ordem da alma, humana ou animal,
anima, mas da ordem de uma protossubjetividade. Isto quer dizer que há na máquina uma função de
consistência, de relação a si e de relação a uma alteridade.” (Idem, ibidem)
209

o conceito de máquina para além dos objetos técnicos494 e tomar a diferença entre os entes
como variações nos modos de ser desse ser-máquina:

No lugar de ter um ser, como traço comum que habitaria o conjunto de entes maquínicos, sociais,
humanos, cósmicos, nós temos, ao contrário, uma máquina que desenvolve universos de referência,
universos ontológicos heterogêneos, marcados por viradas históricas, um fator de irreversibilidade e
de singularidade.495

É sendo máquina que o ser então se atualiza como diferença. Mas como se dá esse ser[-
máquina]? A máquina é uma organização de partes que “não pode ser limitada à sua
materialidade.”496 Dessa forma, ela será composta, sobretudo, por dois elementos: um
ontogenético e outro filogenético. O movimento ontogenético tem a ver com composição de
uma máquina atual. É o processo de gênese (ou transformação) da máquina a partir da
adaptação das partes que vem a compô-la do exterior para seus próprios propósitos. Podemos
até arriscar dizer que nesse movimento (ontogenético) a máquina está num registro da
bricolagem, pois “a essência da máquina é ligada aos procedimentos que desterritorializam
seus elementos, seu funcionamento, suas relações de alteridade. Falaremos de uma relação
ontogenética da máquina técnica, que a faz se abrir ao exterior.”497 Se um corpo-máquina é
sempre composto por inúmeras partes, o funcionamento dessas partes, na medida em que
passam a fazer parte dessa máquina, é redeterminado a partir do novo contexto em que se
inserem. O movimento filogenético, por sua vez, está relacionado às transformações entre as
máquinas, pois “elas vão por geração — como as gerações de automóveis —, cada uma
abrindo uma virtualidade de outras máquinas por vir.”498 A filogênese no caso tem a ver então
com os próprios processos de transformação das máquinas em outras máquinas — ou seja,
novas máquinas que possam surgir da máquina atual. Se cada máquina tem um conjunto
indefinido de capacidades a partir da sua composição atual, cada mudança que ocorre na
máquina altera o seu horizonte de transformações e delimita que tipos de máquinas podem
surgir. De modo que o seu movimento filogenético é a expressão da das possíveis alterações
de uma máquina a partir de uma composição específica. É levando em conta esses dois
movimentos que

494
Exemplos dessa expansão podem ser encontradas em Idem, ibidem, pp. 115-116
495
Idem, ibidem, p. 115
496
Idem, ibidem, p. 113
497
Idem, ibidem, p. 114
498
Idem, ibidem.
210

podemos estabelecer uma ponte entre uma máquina tecnológica de tipo moderna e as ferramentas ou
as próprias peças da máquina, e as considerar como uma série de elementos que se conectam uns aos
outros. A partir de Leibniz dispomos de um conceito de máquina articulada, de uma forma que hoje
chamaríamos de “fractal”, a outras máquinas, elas mesmas composta de elementos maquínicos ao
infinito.499

Não estamos muito longe da noção de indivíduo que construímos com Espinosa. Essa
aproximação se acelera quando se vê que a máquina só é máquina na medida em que ela tem
uma espécie de conatus. Guattari dirá justamente que “ela [a máquina] possui um nódulo de
consistência, de insistência, de afirmação ontológica, que é anterior ao seu desdobramento em
coordenadas energético-espaço-temporais.”500 Vemos porém um desenvolvimento a mais no
conatus da máquina, pois, segundo Guattari,

esse nódulo maquínico é sempre, de alguma maneira, ligado aos sistemas de metamodelização que
demandam um desenvolvimento da teoria. (…) Esse nódulo de afirmação autopoético e interestrático,
de abertura sobre o exterior, implica uma concepção de complexidade considerada em coordenadas
completamente “extraordinárias”.”501

Essa máquina, em seu movimento de auto-composição, acaba por dar uma organização à
exterioridade segundo seus interesses e capacidades. Não se trata de dizer aqui que a máquina
“inventa”, “fabula” uma exterioridade irreal. O que ela faz é antes um movimento de seleção,
à maneira bergsoniana, do real.502 Essa seleção (metamodalização, nos termos de Guattari) é,
portanto, um aspecto fundamental da vida das máquinas.503
Mas apesar da proximidade entre a máquina (deleuzo-)guattariana e o indivíduo
espinosano há algumas diferenças que é preciso ressaltar. Ela (a máquina) não pressupõe uma
impossibilidade de relação entre diferentes registros do ser. Não temos na máquina de
Guattari e Deleuze nem um paralelismo estrito (nenhum dos atributos se relacionando entre
si) e nem a promessa de uma submissão de todos os diferentes seres a um tipo de ser supremo.
Como diz Guattari, “nesse modelo que proponho, não existem traduções entre os diferentes
níveis de complexidade. Eles todos carregam seus substratos ontológicos”.504 Mas por outro

499
Idem, ibidem.
500
Idem, ibidem, p. 118
501
Idem, ibidem, p. 119
502
Sobre esse assunto, pensamos aqui no trabalho desenvolvido por Bergson em Matéria e memória, onde, além
de outras coisas, o autor desenvolve a maneira como os corpos que compõem o mundo nunca experimentam o
mundo de maneira absoluta, mas apenas segundo seus interesses. Também encontraremos esse caminho sendo
seguido, hoje em dia, por alguns pesquisadores de ciências cognitivas, especialmente Donald Hoffman.
503
Elaboraremos com mais calma essa noção de metamodelização na próxima parte ao discutir o caráter
diagramático da filosofia. Cf. III.1.3.
504
Idem, ibidem, p. 121
211

lado, esses diferentes registros “não são sem qualquer relação entre eles, pois eles possuem
uma unidade maquínica (…); mas eles não são completamente articulados uns aos outros; eles
são como que postos em paralelo”505.506 O ser maquínico é, portanto, justamente essa
pluralização dos modos de ser. Busca-se ao mesmo tempo preservar a irredutibilidade dos
diferentes modos de ser sem que isso deixe cada um dos registros absolutamente sem relação
um com o outro.
Isso se torna mais evidente quando, já trabalhados os aspectos positivos da máquina,
vemos Guattari desenvolver o outro da máquina, isto é, o caos. Para ele, “ela é sempre
assombrada pelo caos que vai dissociá-la, repartir seus elementos em uma decomposição de
natureza diferente. Como se esse ser autopoético, essa protussubjetividade maquínica
estivesse ora no registro da complexidade, e ora no do caos.”507 O caos é uma espécie de
pulsão de morte da máquina. Não falo aqui de um desejo negativo, mas do chamado de uma
força maior ou mais forte. Pois “é preciso tomar o caos como não sendo simplesmente
caótico, mas podendo, em suas composições de elementos e entes, desenvolver fórmulas de
uma complexidade extrema. (…) O caos carrega as dimensões da maior
hipercomplexidade”508 e “os entes que habitam o caos são dotados de velocidade infinita. Eles
podem, então, compor as complexidades mais diferentes mas, também, se descomplexificar
com a mesma velocidade.”.509
Com o caos, o outrem absoluto das máquinas, ou as máquinas num grau de complexidade
infinitamente mais complexo — mas também infinitamente mais instável —, fica mais
evidente a importância da função metamodelizadora das máquinas. “É nesses ambientes
caóticos que vem a se inserir essa proto-subjetividade que pode, de vez em quando, estar em
adjacência a uma dissociação caótica, com sua própria morte e com composições
infinitamente complexas.”510 As máquinas seriam, portanto, momentos de estabilização desse
caos, mas advindo do próprio caos, o risco de decomposição é uma tormenta (para o ser
finito) sempre presente.511

505
Paralelo aqui, não sendo igual ao “paralelismo” espinosano, já que este paralelismo pressupõe uma interação.
Daí a importância do “como” na frase de Guattari, mas também dos exemplos que ele nos dá nesse ensaio (mas
também em outros locais) sobre como se dá a interação entre diferentes registros.
506
Idem, ibidem, p. 123
507
Idem, ibidem, p. 119
508
Idem, ibidem, pp. 119-120
509
Idem, ibidem, p. 120
510
Idem, ibidem.
511
Embora esse não seja o único risco, visto que uma máquina sempre pode ser decomposta por outra máquina
para que ela seja integrada a outros fins.
212

O mundo que é desenhado a partir desse conceito de máquina, certamente, pode nos trazer
muitas preocupações,512 mas é preciso estar atento para os ganhos desse tipo de concepção.
Conseguimos pensar a realidade sem nos apoiar na “cortina de ferro” entre sujeitos e coisas.
A agência não se restringe simplesmente aos humanos e nem mesmo à registros ontológicos
iguais (“extensão” e “pensamento”, por exemplo). Se no mundo proposto por Espinosa
podemos encontrar uma fronteira inultrapassável513 no que diz respeito à causalidade entre
atributos diferentes, o conceito de máquina internaliza a diferença externa dos atributos para
dentro de um só ser-máquina514 — os diferentes registros ontológicos podem operar uns sobre
os outros. Cada registro, evidentemente, terá suas próprias regras e delimitações, os seus
modos de efetuação específicos. Pode-se dizer, inclusive, que essas interações entre diferentes
registros não será livre de uma espécie de alfândega ontológica, condições sobre a maneira
como se dão esses contatos entre diferentes registros — desde que se conceba essas condições
como determinações imanentes dos diferentes modos de ser.515 É um movimento análogo,
como lembra Guattari, a um dos principais ganhos do pensamento de Freud: é justamente na
articulação entre o registro afetivo e o registro discursivo, na investigação sobre como esses
dois registros diferentes se comunicam, que se abre espaço para a prática psicanalítica (e,
consequentemente, sua efetividade).
A partir desse conceito de máquina também se torna possível pensar o indivíduo não
como um substrato estático, imutável e eterno, mas como um complexo de mudanças e
transformações que buscam preservar sua estabilidade (estabilidade estática e dinâmica). Os
corpos, ou seja, as estabilidades que encontramos no mundo, são vistos como processos,
devires, mas devires e processos que de maneira alguma podem ser previamente

512
Mas afinal, qualquer visão de mundo que revela a nossa finitude tende a provocar esse efeito.
513
Certamente é possível encontrar em Spinoza, especialmente no projeto pragmático que é a Ética, uma série
de contrabandos entre o atributo da extensão e o atributo do pensamento — o que indicaria uma porosidade
dessas fronteiras.
514
Um espinosano [chato] poderia dizer que, havendo interação, estamos ainda em um mesmo modo infinito
imediato. O que permite, porém, que o pensamento maquínico de Deleuze e Guattari ponha abaixo essas
fronteiras é justamente a recusa de uma instância conciliadora absoluta entre os diferentes registros. Se é
possível que cada um dos registros se comunique, as leis de cada registro diferente não são necessariamente
conciliáveis em uma síntese unificadora que permita uma conversão total entre os diferentes registros. O
conceito de ser-máquina, ainda precisa de um desenvolvimento, um que nos apontaria, certamente, para uma
reflexão sobre a filosofia da natureza, já que ele exige que nós pensemos um fundo das transformações que não
seja nem instância conciliadora final de todas as transformações (telos), nem origem que determinaria de
antemão todas as transformações possíveis. O que estamos cogitando, provisoriamente, é que esse fundo, esse
ser-máquina, deve ao mesmo tempo ser o espaço de toda e qualquer transformação, mas também deve ser
variável, segundo os devires que o povoam sem que ele opere uma síntese dessas variações.
515
Quero evitar aqui a ideia de que essas fronteiras (ou mesmo as regras de cada “registro”) transcendam àquilo
que efetivamente existe. Não se trata de pensar aqui em regras prévias, mas em condições que se apresentam (e
que podem ser observadas retrospectivamente) a partir dos processos reais. Como já dissemos na nota anterior,
essas questões nos obrigariam a pensar toda uma filosofia da natureza a partir desse conceito, pois todo o
cuidado é pouco para que consigamos evitar de reinventar a glândula pineal cartesiana.
213

determinados. Isso é um ponto fundamental para as questões práticas, pois é a partir do


conceito de devir, do devir que os corpos são, que se começa a abrir espaço para que corpos
que possam agir sem por isso cair num voluntarismo tosco em que a ação é um processo
decidido de modo espontâneo pelo agente. A ação, se é possível, diz mais respeito a
articulações complexas do que a um simples querer. Conceber os corpos e indivíduos como
máquinas, “complexos de transformação”, nos encaminha para o passo seguinte, que é tratar
da transformação propriamente dita dessas máquinas.

Dissemos anteriormente que os afetos e o desejo são intimamente relacionados a esses


processos de transformação pelos quais um corpo passa, mas faltava descrever com mais
precisão em que consistiria essa transformação. A maneira como é desenvolvido em Mil
platôs esse conceito do desejo nos parece muito oportuna, já que os próprios autores dirão que
“o devir é o processo do desejo”.516 Pode parecer estranho, num primeiro momento, igualar
esses dois conceitos, mas a verdade é que o próprio pensamento do Espinosa, como acredito
ter mostrado, nos encaminha para essa ideia. Se parece óbvio desde o início que há uma
centralidade nos conceitos de afeto e desejo para Espinosa, é o próprio desenrolar da Ética
que distingue esses conceitos de uma noção vulgar de sentimento, tão entranhada em nossas
visões de mundo. Dito isso, o que acabou se encontrando nessa investigação é a maneira
como na Ética esses dois conceitos estão intimamente relacionados com a ideia de
transformação, ainda que ela própria não seja mais do que rascunhada ou inferida. Temos, é
claro, uma elaboração sobre transformações específicas na “pequena física”, mas não
encontraremos nada que se aparente com uma teoria geral da transformação. É com isso em
mente que nos detemos em Mil platôs.
O contexto no qual o conceito de devir aparece na obra de Deleuze e Guattari tem a ver
com uma certa insuficiência dos conceitos que predominaram na discussão sobre
transformação517. São conceitos que antes acabam por desinflar a ideia de transformação ao
evitar seu aspecto mais complicado. O conceito em questão, o devir, surge como tentativa de

516
Deleuze, Gilles; Guattari, Félix. Mil Platôs - vol. 4. São Paulo: Editora 34, 2012b. p. 67.
517
Para uma análise do conceito de devir no interior do projeto deleuzo-guattariano e as suas consequências
políticas cf. Lapoujade, David, op. cit., pp. 271-290. De nossa parte concordamos com a leitura de Lapoujade,
,mas é preciso relembrar que nosso interesse não é mapear o funcionamento do conceito na obra desses autores,
mas compreender em que medida esses conceitos podem ser postos a serviço do problema que nos interessa, o
que explica eventuais divergências.
214

lidar com a passagem de um corpo a outro, ou seja, tenta lidar com o próprio movimento
contínuo da transformação.518
O conceito de devir pode ser visto, portanto, em oposição ao conceito de imitação. Para
Deleuze e Guattari o que se quer evitar é uma visão onde

a Natureza é concebida como imensa mimese: ora sob forma de uma cadeia de seres que não
cessariam de imitar-se, progressivamente ou regressivamente, tendendo ao termo superior divino que
todos eles imitam como modelo e razão da série, por semelhança graduada; ora sob forma de uma
Imitação em espelho que não teria mais nada para imitar, pois seria ela o modelo que todos imitariam,
dessa vez por diferença ordenada... (É essa visão mimética ou mimológica que torna impossível,
naquele momento, a ideia de uma evolução-produção.)519

Não se trata de um simples desgosto dessa noção, mas de uma incapacidade dessa visão
mimetizante em lidar com a experiência de uma continuidade na transformação. Nos dois
modelos mencionados por Deleuze e Guattari, o modelo da série e o modelo da estrutura, a
transformação propriamente dita, ou seja, o processo da passagem de um corpo de um estado
a outro estado, é desconsiderada.
No modelo das séries consegue-se dar conta das diferenças que compõem os estágios de
uma determinada série, ou seja, tanto se pressupõe um elemento orientador da série, como
também o olhar se foca sobre diferenças estáticas entre os diversos elementos das séries.
Essas diferenças serão sempre organizadas a partir de um elemento que dá a chave de
interpretação de toda a série e que permite enxergar afastamentos e aproximações dos termos
da série. Pode-se ver, sem muitos problemas, que essa maneira de conceber as diferenças
acaba escamoteando justamente a passagem entre as séries, sem dar conta do processo de
diferenciação dessas diferenças. O processo de transformação seria no máximo tomado como
uma aproximação infinitesimal na semelhança entre os termos da série — ou seja, seria
simplesmente a disposição de infinitas imagens estáticas cada vez mais semelhantes520.
O segundo modelo mimetizante, o das estruturas, também não se aproxima do movimento
da transformação. Para Deleuze e Guattari,

518
Deleuze e Guattari remeterão esse problema para os desenvolvimentos da história natural: “A história natural
só pode pensar em termos de relações, entre A e B, e não em termos de produção, de A a x” (Idem, ibidem, p.
13)
519
Idem, ibidem, p. 14
520
É preciso lembrar nesse ponto que não se trata do primeiro momento na obra de Deleuze que o conceito de
série e estrutura serão abordados. Se inicialmente encontramos uma abertura para o estruturalismo, algo presente
em seu artigo “Em que podemos reconhecer o estruturalismo?” e em livros como Diferença e repetição e Lógica
do sentido, é possível ver em livros como O anti-Édipo e Mil Platôs como ele se afasta do legado estruturalista.
Para ter uma dimensão dessa transformação no uso desses conceitos, cf. Deleuze, Gilles. “Em que podemos
reconhecer o estruturalismo?” in: A ilha deserta e outros textos. São Paulo: Iluminuras, 2008b.
215

o entendimento simbólico substitui a analogia de proporção por uma analogia de proporcionalidade; a


seriação das semelhanças por uma estruturação das diferenças; a identificação dos termos por uma
igualdade das relações; as metamorfoses da imaginação por metáforas no conceito; a grande
continuidade natureza-cultura por uma falha profunda que distribui correspondências sem semelhança
entre as duas; a imitação de um modelo originário, por uma mimese ela mesma primeira e sem
modelo. Nunca um homem pôde dizer: “Eu sou um touro, um lobo...”; mas pôde sim dizer: sou para a
mulher aquilo que o touro é para uma vaca; sou para um outro homem aquilo que o lobo é para o
cordeiro. O estruturalismo é uma grande revolução, o mundo inteiro torna-se mais razoável.521

A transformação escapa a esses dois modelos pois nenhum deles consegue conceber o
devir como um movimento contínuo: “devir é um verbo tendo toda sua consistência; ele não
se reduz, ele não nos conduz a ‘parecer’, nem ‘ser’, nem “equivaler”, nem “produzir”.522 É
preciso pensar em outros termos para conseguir dar conta dessa noção.523 Ambos os modelos
acabam privilegiando o indivíduo sobre a individuação, o descontínuo sobre o contínuo,
evitando, assim conceber esse movimento contínuo que é a passagem de um corpo a outro, o
devir.

Para conseguir dar conta dessa passagem, a primeira coisa a ser feita é pensar nos corpos
em termos populacionais. Como já vimos, quando passamos pelo conceito de máquina, os
corpos são feitos de infinitas máquinas que se organizam e que, nesse movimento de
articulação, acabam por produzir uma certa endoconsistência que não se resume à soma de
suas partes. As variações que os corpos experimentam, sejam variações que tendam para a
conservação ou que tendam para uma transformação, não são outra coisa do que o movimento
incessante dessas partes. Deleuze e Guattari não estão muito longe do espírito espinosano
quando dizem que “o afecto não é um sentimento pessoal, tampouco uma característica, ele é
a efetuação de uma potência de matilha, que subleva e faz vacilar o eu.”524 É nesse sentido
que os autores dizem que

521
Idem, ibidem, p. 17
522
Idem, ibidem, p. 20
523
“o devir animal não consiste em se fazer de animal ou imitá-lo, é evidente também que o homem não se torna
“realmente” animal, como tampouco o animal se torna “realmente” outra coisa. O devir não produz outra coisa
senão ele próprio. É uma falsa alternativa que nos faz dizer: ou imitamos, ou somos. O que é real é o próprio
devir, o bloco de devir, e não os termos supostamente fixos pelos quais passaria aquele que se torna.” (Idem,
ibidem, p. 19)
524
Idem, ibidem, p. 22
216

O animal não se define mais por características (específicas, genéricas, etc.), mas por populações
variáveis de um meio para outro ou num mesmo meio; o movimento não se faz mais apenas ou
sobretudo por produções filiativas, mas por comunicações transversais entre populações
heterogêneas.525

O próprio corpo não só passa por devires, como ele próprio já é um efeito de outros
processos de transformação — dessas comunicações transversais entre populações
heterogêneas — e de uma transformação que não cessa. Mas como já dissemos, essas
transformações podem ser de duas ordens. Elas podem tender para uma auto-conservação,
para a manutenção de um equilíbrio dinâmico, mas ao mesmo tempo, na medida em que o
corpo está sempre em relação com outros corpos — isto é, na medida em que uma
determinada endoconsistência se posiciona sempre diante de uma alteridade — está em jogo
também uma transformação de ordem mais radical. A questão é que, conforme vimos
anteriormente quando falamos sobre o afeto em Espinosa, mesmo um simples aumento de
potência (ou diminuição) implica uma maior complexificação das possibilidades desse
corpo.526 Acredito, portanto, que os corpos estão a todo momento inseridos em processos de
transformação, o que varia é sempre o ponto de vista que se assume com relação a esses
processos. Há um interesse pragmático, até vital, poderíamos dizer, em enxergar as coisas a
partir de uma certa estabilidade..527
O que é um corpo? Pergunto mais uma vez, pois nesse ambiente de transformações
constantes ele não pode ser definido por nenhuma essência prévia qualquer. O corpo, a partir
do momento em que é concebido de maneira populacional, um efeito de infinitas
transformações, passa a ser considerado sempre a partir do seu limite, ou seja, a partir da
própria linha que demarca uma certa endoconsistência de um fora. Seu limite será um
anômalo.

Nem indivíduo, nem espécie, o que é o anômalo? É um fenômeno, mas um fenômeno de borda. Eis
nossa hipótese: uma multiplicidade se define, não pelos elementos que compõem em extensão, nem

525
Idem, ibidem, p. 20
526
Haveria algo a dizer sobre uma suposta neutralidade, uma certa permanência. Mas isso parece bastante
improvável, pois mesmo um corpo parado não deixa de estar a todo instante inserido em uma série de micro-
transformações ou de trocas com os meios. Nesse sentido qualquer neutro talvez fosse um ponto virtual.
527
É bem oportuno nesse momento se lembrar da maneira como Bergson pensa essa variação de pontos de vista.
Para ele podemos encarar as coisas de maneira “real” ou de maneira pragmática. Enquanto corpos que estão
interessados em sobreviver, ele dirá que é útil para nós que a realidade seja mais estática, que nós consigamos
ver as coisas com relação à sua manipulibilidade, ou seja, com relação aos usos que podemos fazer dela (Donald
Hoffman está bem próximo de Bergson). Nesse sentido acabamos não enxergando a mobilidade das coisas, a sua
duração. Enxergar as coisas a partir do ponto de vista da duração seria enxergar as coisas “nelas mesmas”
(embora nesse caso o “nelas mesmas” seja o próprio movimento incessante do ser). Cf. Bergson, Henri.
“Introdução à metafísica” in: O pensamento e o movente. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
217

pelas características que a compõem em compreensão, mas pelas linhas e dimensões que ela comporta
em “intensão”. Se você muda de dimensões, se você acrescenta ou corta algumas, você muda de
multiplicidade. Donde a existência de uma borda de acordo com cada multiplicidade, que não é
absolutamente um centro, mas é a linha que envolve ou é a extrema dimensão em função da qual
pode-se contar as outras, todas aquelas que constituem a matilha em tal momento; para além dela, a
multiplicidade mudaria de natureza. É o que o capitão Ahab diz ao seu imediato: eu não tenho
nenhuma história pessoal com Moby Dick, nenhuma vingança a tirar, como tampouco um mito a
deslindar, mas tenho um devir! Moby Dick não é nem um indivíduo nem um gênero, é a borda, é
preciso que eu bata nela para atingir toda a matilha, para atingir toda a matilha e passar através. Os
elementos da matilha são tão somente “manequins” imaginários, as características da matilha são
apenas entidades simbólicas, só conta a borda — o anômalo.528

Vemos aí que o movimento de transformação é internalizado. Ele não pode nunca


simplesmente começar de fora, ele não pode ser, como o vulgo o concebe, como o simples
efeito do contato entre um “corpo A” com um “corpo B”. A transformação só é possível pois
a multiplicidade que compõe um indivíduo já é o seu devir:

As matilhas, as multiplicidades não param, portanto, de se transformar umas nas outras, de passar
umas pelas outras. Os lobisomens uma vez mortos, transformam-se em vampiros. Não é de se
espantar, a tal ponto o devir e a multiplicidade são uma só e mesma coisa. Uma multiplicidade não se
define por seus elementos, nem por um centro de unificação ou de compreensão. Ela se define pelo
número de suas dimensões; ela não se divide, não perde nem ganha dimensão alguma sem mudar de
natureza. Como as variações de suas dimensões lhe são imanentes, dá no mesmo dizer que cada
multiplicidade já é composta de termos heterogêneos em simbiose, ou que ela não para de se
transformar em outras multiplicidades de enfiada, segundo seus limiares e suas portas.529

Pode-se, inclusive, pensar que há uma espécie de transformação contínua que atravessa
todo o real, em que cada parte desse real não seja mais do que diferenciações internas desse
fluxo contínuo.

Tanto que o eu é apenas um limiar, uma porta, um devir entre duas multiplicidades. Cada
multiplicidade é definida por uma borda funcionando como Anômalo; mas há uma enfiada de bordas,
uma linha contínua de bordas (fibra), de acordo com a qual a multiplicidade muda. E a cada limiar ou
porta, um novo pacto? Uma fibra vai de um homem a um animal, de um homem ou de um animal a
moléculas, de moléculas a partículas, até o imperceptível. Toda fibra é fibra de Universo. Uma fibra
enfiada de bordas constitui uma linha de fuga ou de desterritorialização. Vê-se que o Anômalo, o
Outsider, tem muitas funções: ele não só bordeja cada multiplicidade cuja estabilidade temporária ou
local ele determina, com a dimensão máxima provisória; ele não só é a condição da aliança necessária

528
Deleuze, Gilles; Guattari, Félix, op. cit., p. 28
529
Idem, ibidem, p. 34
218

ao devir; como conduz as transformações do devir ou as passagens de multiplicidades cada vez mais
longe na linha de fuga.530

Não é preciso encontrar nenhuma continuidade de transformação — ou o início da


transformação —, um devir de um corpo A que vira x, pois, justamente o que se opera aqui é
um giro no ponto de vista. Um giro que faz com que nos instalemos no ponto de vista da
continuidade absoluta. Não é mais necessário, como no ponto de vista serial ou estrutural
sobre transformações, ficar atrás de semelhanças que estejam cada vez mais próximas uma
das outras, pois não há mais corpos “fixos”. A fixidez se torna, pelo contrário, apenas efeito
de superfície. Trata-se de entender, portanto, como se dão as transformações desse fluxo
constante, sua diferenciação interna. Mas como podemos nos aproximar dele sem nos
dissolvermos absolutamente?

*
Como é dito constantemente por Deleuze e Guattari, a linha de fuga, essa
desterritorialização que se anuncia, em sua tentativa de dar conta do movimento, pode acabar
nos levando em direção a uma falta de critérios ou, na ausência de qualquer limite — um
movimento que, levado ao seu extremo radical pode conduzir a uma linha de morte, ausência
de consistência completa, incapacidade de diferenciar.531 Deleuze e Guattari encontrarão
duas “pegas” para conseguir se aproximar do devir sem deixar de preservar um mínimo de
consistência. Com uma explícita inspiração no pensamento de Espinosa, eles irão dizer que os
corpos podem ser compreendidos a partir de duas coordenadas, dois eixos orientadores de um
movimento: uma longitude e uma latitude. “Chama-se longitude de um corpo os conjuntos de
partículas que lhe pertencem sob essa ou aquela relação, sendo tais conjuntos eles próprios
partes uns dos outros segundo a composição da relação que define o agenciamento
individuado desse corpo.”532 A outra coordenada de um corpo, a sua latitude, são “os afectos
de que ele é capaz segundo tal grau potência, ou melhor, segundo os limites desse grau.”
Dessa forma, “a latitude é feita de partes intensivas sob uma capacidade, como a longitude,
de partes extensivas sob uma relação.533 A partir desses dois eixos será possível descrever os
processo de transformação dos corpos sem que eles percam o seu caráter móvel (ou

530
Idem, ibidem, pp. 34-35
531
Os efeitos éticos desse tipo de visão podem ser vistos no niilismo, que no seu movimento de tudo negar
acaba por negar a própria vida. Nivelamento (indiferença) que, como Nietzsche ecoa, transforma a vontade de
nada em nada de vontade.
532
Idem, ibidem, p. 44
533
Idem, ibidem.
219

transformativo), pois o que essas categorias descrevem não são corpos fixos, mas nexos
estáveis, configurações provisórias que acabam se formando ao longo do movimento absoluto
do real. O que temos, com esses dois eixos, não são, portanto, meros “a prioris” — como se
repetições fossem apenas produções de um sujeito que sintetiza uma experiência estável a
partir de um fluxo contínuo. Ora, se há qualquer síntese, isso ocorre pois há na própria
realidade repetições e estabilizações. Trata-se de ir do movimento ao corpo e não do corpo
(pronto) ao movimento — um ponto de vista da individuação e não dos indivíduos.534
Esse processo de devir será então chamado de hecceidade535. Para Deleuze e Guattari, a
hecceidade é o conjunto delimitado a partir de um jogo entre os dois eixos mencionados:
entre a longitude, a relação entre as diversas velocidades (partes)536 que compõem um
movimento estável e as suas capacidades537 indefinidas538 de afetar ou ser afetado, de
transformar um outro conjunto: “São hecceidades, no sentido de que tudo aí é relação de
movimento e de repouso entre moléculas ou partículas, poder de afetar e ser afetado.”539 A
hecceidade é, e não poderia ser diferente, já um efeito do movimento. É o tipo de
corporalidade possível quando se põe no ponto de vista do movimento. Mas então, de que
maneira se dá esse movimento? Bem, como dirão os autores:

devir é, a partir das formas que se tem, do sujeito que se é, dos órgãos que se possui ou das funções
que se preenche, extrair partículas, entre as quais instauramos relações de movimento e repouso, de
velocidade e de lentidão, as mais próximas daquilo que estamos em vias de devir, e através das quais

534
Resta uma questão, que será tratada mais adiante, que é a natureza desses critérios. Serão esses critérios
meramente subjetivos, frutos de algum tipo de sujeito que percebe/experimenta a realidade ou, por outro ládo,
será esse critério extraído da própria realidade?
535
É importante lembrar aqui que se trata de um conceito apropriado do pensamento de João Duns Escoto.
Originalmente ele foi criado para dar conta do problema da individuação e se opor ao pensamento tomista:
“[Duns] Scotus chama de universal extra-mental a ‘natureza comum’ (natura communis) e o princípio de
individuação de ‘hecceidade’ (haecceitas). A natureza comum é o comum no sentido de que é ‘indiferente’ se
ela existe em qualquer quantidade de indivíduos. Mas ela tem uma existência extra-mental apenas nas coisas
particulares nas quais ela existe, e nelas ela está sempre ‘contraída’ pela hecceidade. Então a natureza comum da
humanidade existe tanto em Sócrates como Platão, mas em Sócrates ela é tornada individual pela haecceitas de
Sócrates e em Platão pela haecceitas de Platão. A humanidade-de-Sócrates é individual e irrepetível, assim como
a humanidade-de-Platão; ainda que a humanidade em si seja comum e repetível, e seja ontologicamente anterior
a qualquer exemplificação particular dela.” (Williams, Thomas. John Duns Scotus, 2015. Disponível em:
<https://plato.stanford.edu/entries/duns-scotus/>. Acesso em: 8 mar 2018. Tradução minha)
536
“Às relações que compõem um indivíduo, que o decompõem e o modificam, correspondem intensidades que
o afetam, aumentando ou diminuindo sua potência de agir, vindo das partes exteriores ou de suas próprias partes.
Os afectos são devires.” (Idem, ibidem)
537
“Não sabemos nada de um corpo enquanto não sabemos o que ele pode, isto é, quais são seus afectos, como
eles podem ou não compor-se com outros afectos, com os afectos de um outro corpo, seja para destruí-lo ou ser
destruído por ele, seja para trocar com esse outro corpo ações e paixões, seja para compor com ele um corpo
mais potente.”
(Idem, ibidem, p. 45)
538
Isto é, não absolutamente infinitas, delimitadas mas não especificadas.
539
Idem, ibidem, p. 49
220

devimos. É nesse sentido que o devir é o processo do desejo. (…) Os dois [Schérer e Hocquenghem],
por sua vez, invocam uma zona objetiva de indeterminação ou de incerteza, “algo de comum ou de
indiscernível”, uma vizinhança “que faz com que seja impossível dizer onde passa a fronteira do
animal e do humano”540

As hecceidades são essas zonas de indiscernibilidade que povoam os corpos a partir das
interações entre uma infinidade de corpos.541 Na medida em que corpos entram em contato
um com outro eles acabam por efetuar trocas entre as suas partes. Não se trata, como é bem
reforçado, de “se tornar o outro”, tal como uma imitação. O nome para essa interação que
Deleuze e Guattari mencionam é agenciamento, mas podemos, e devemos, entender essa
operação como (novamente) uma espécie de bricolagem. A partir do que se tem, das peças
que compõem (longitude) um corpo, entrar num comércio com outro corpo (devir-outro).
Essa relação não é uma em que um corpo simplesmente recebe peças (partes) do outro corpo.
O que está em jogo é que se troque (receba) as capacidades que aquele outro corpo tem. Ir aos
limites do seu corpo para fazer com que ele aja de outra maneira. O conto que Deleuze e
Guattari mencionam sobre o devir-cachorro de Vladimir Slepian é exemplar desse tipo de
agenciamento. No começo do texto, Slepian se dá conta de um problema, ele tem uma fome,
ele tem uma fome incontrolável. Se ele está com essa fome, percebe, ele já não pode mais ser
humano, só lhe resta ser um cachorro. Vê-se, nesse primeiro momento, que o devir, ou a
transformação, não tem começo. Ela já está presente desde a instauração do problema. De
uma forma ou de outra, estamos a todo momento inseridos em uma série de processos de
transformação (uma continuidade) que podem nos modificar mais ou menos, que vão nos
afetar com maior ou menor intensidade. O que se chama então de “fome”, pode então ser
simplesmente pensado como a delimitação de uma transformação específica — ou, melhor, é
a delimitação que especifica, recorta, um momento da transformação contínua.542 Essa
540
Idem, ibidem, p. 67
541
“Há um modo de individuação muito diferente daquele de uma pessoa, um sujeito, uma coisa ou uma
substância. Nós lhe reservamos o nome de hecceidade. Uma estação, um inverno, um verão, uma hora, uma data
têm uma individualidade perfeita, à qual não falta nada, embora ela não se confunda com a individualidade de
uma coisa ou de um sujeito. São hecceidades, no sentido de que tudo aí é relação de movimento e de repouso
entre moléculas ou partículas, poder de afetar e ser afetado.” (Idem, ibidem, p. 49)
542
E é por essa razão, também, que a hecceidade não é simplesmente um “instante”, como se poderia pensar a
partir de alguns exemplos que os autores dão. De acordo com eles, “não é absolutamente uma individualidade
pelo instante, que se oporia à individualidade das permanências ou das durações. A efeméride não tem menos
tempo do que um calendário perpétuo, embora não seja o mesmo tempo. Um animal não vive necessariamente
mais do que um dia ou uma hora; inversamente, um grupo de anos pode ser tão longo quanto o sujeito ou o
objeto mais duradouro. Pode-se conceber um tempo abstrato igual entre as hecceidades e os sujeitos ou as
coisas.” (Idem, ibidem, p. 50). O regime de temporalidade das hecceidades (ou acontecimentos) é todo outro,
pois “não é o mesmo Plano: plano de consistência ou de composição das hecceidades num caso, que só conhece
velocidades e afectos; plano inteiramente outro das formas, das substâncias e dos sujeitos, no outro caso. E não é
o mesmo tempo, a mesma temporalidade. Aion, que é o tempo indefinido do acontecimento, a linha flutuante
que só conhece velocidades, e ao mesmo tempo, não para de dividir o que acontece num já-aí e um ainda-não-aí,
221

delimitação, considerando a natureza dos corpos, se dá por um processo de contágio, um


contágio543 no contato das bordas (do anômalo). A partir dessa delimitação inicial, no caso a
“fome”, um devir é recortado. O processo de transformação é um, então, em que Slepian deve
“dar às partes do meu corpo relações de velocidade e lentidão que o façam devir cachorro
num agenciamento original que não procede por semelhança ou por analogia. Pois não posso
devir cachorro sem que o cachorro não devenha ele próprio outra coisa.”544 Os dois corpos
que entram em contato, acabam por produzir novos corpos que não se reduzem a uma simples
imitação,545 já que “a cada etapa do problema, é preciso não comparar órgãos, mas colocar
elementos ou materiais numa relação que arranca o órgão à sua especificidade para fazê-lo
devir ‘com’ o outro.”546 O que ocorre é antes a alteração do corpo “A”, a partir do comércio
com “B” que faz com que ele se torne “x”, que não é nem “A” nem “B”. É com esse processo
em mente que Deleuze e Guattari poderão repetir que não se trata de uma relação de filiação,
hereditária, da ordem da reprodução, mas de uma aliança, em que os corpos, após a aliança, se
tornam outro sem tornar-se o outro. Sobra uma pergunta: se esses corpos se afetam e se
transformam sem se imitar, qual é, efetivamente, o efeito que um corpo gera sobre o outro?
Bem, como dissemos, esses corpos são compostos por infinitos corpos em movimento. O
corpo é o efeito desses movimentos que ocorrem em todas as escalas possíveis:

ninguém devém-animal a não ser que, através de meios e de elementos quaisquer, emita corpúsculos
que entrem na relação de movimento e repouso das partículas animais, ou, o que dá no mesmo, na
zona de vizinhança da molécula animal. Ninguém devém animal senão molecular.547

O que nos aproxima de novo da física espinosana,548 pois, no fundo, “todos os devires são
moleculares; o animal, a flor ou a pedra que devimos são coletividades moleculares,

um tarde-demais e um cedo-demais simultâneos, um algo que ao mesmo tempo vai se passar e acaba de se
passar. E Cronos, ao contrário, o tempo da medida, que fixa as coisas e as pessoas, desenvolve uma forma e
determina um sujeito. (…) Em suma, a diferença não passa absolutamente entre o efêmero e o duradouro, nem
mesmo entre o regular e o irregular, mas entre dois modos de individuação, dois modos de temporalidade”
(Idem, ibidem, p. 51)
543
“Os bandos, humanos e animais, proliferam com os contágios, as epidemias, os campos de batalhas e as
catástrofes. É como os híbridos, eles próprios estéreis, nascidos de uma união sexual que não se reproduzirá, mas
que sempre recomeça ganhando terreno a cada vez. As participações, as núpcias antinatureza, são a verdadeira
Natureza que atravessa os reinos. (…) A diferença é que o contágio, a epidemia coloca em jogo termos
inteiramente heterogêneos”. (Idem, ibidem, pp. 23-24)
544
Idem, ibidem, p. 46
545
“Não se trata de imitar o cavalo, de se ‘fazer’ de cavalo, de identificar-se com ele, nem mesmo de
experimentar sentimentos de piedade ou simpatia. Não se trata tampouco de analogia objetiva entre os
agenciamentos. Trata-se de saber se o pequeno Hans pode dar a seus próprios elementos, relações de movimento
e de repouso, afectos que o fazem devir cavalo, independentemente das formas e dos sujeitos.” (Idem, ibidem,
pp. 45-46)
546
Idem, ibidem, p. 47
547
Idem, ibidem, p. 70
222

hecceidades, e não formas, objetos ou sujeitos molares que conhecemos fora de nós, e que
reconhecemos à força de experiência, de ciência ou de hábito.”549 Aquilo que nós concebemos
como corpos estáveis (molares), são, do ponto de vista da continuidade, apenas um efeito de
superfície. Trata-se de uma estabilidade, certamente, e uma estabilidade com um alto valor
pragmático, mas a visão das coisas de maneira estável nos cega para o seu movimento.
Assim sendo, a dificuldade de dar conta da continuidade não é fruto de um mero descaso
ou qualquer erro contingente. É constitutivo da nossa experiência que não consigamos dar
conta do devir, pois a própria transformação tem como seu fim imanente, ou seja, como
realização absoluta, um devir-imperceptível.550 Como já falamos, as transformações, o devir,
são justamente a continuidade absoluta. E se acabamos por abrir mão de todo e qualquer
critério, balizar, acabamos sem conseguir nada ver, pois “o movimento está numa relação
essencial com o imperceptível, ele é por natureza imperceptível. É que a percepção só pode
captar o movimento como uma translação de um móvel ou o desenvolvimento de uma
forma.” É por isso que Deleuze e Guattari vão falar que “Os movimentos e os devires, isto é,
as puras relações de velocidade e lentidão, os puros afectos, estão abaixo ou acima do limiar
da percepção.”551
Nesse sentido a transformação se dá nos dois polos de velocidade que apontam para dois
pontos de vista absolutos:

o movimento continua passando alhures: se constituímos a percepção em série, o movimento ocorre


sempre além do limiar máximo e aquém do limiar mínimo, em intervalos em expansão ou em
contração (microintervalos). É como os enormes lutadores japoneses, cujo passo é demasiadamente
lento e o golpe demasiadamente rápido e repentino para ser visto: então, o que se acopla, são menos os
lutadores do que a infinita lentidão de uma espera (o que vai se passar?) com a velocidade infinita de

548
Conforme já falamos, ao tratar da física da extensão de Espinosa, falo do comércio constante que ocorre nas
partes de um corpo, que estão a todo momento circulando sem alterar suas relações de proporção.
549
Idem, ibidem, p. 71
550
“[Devir-imperceptível é] ser como todo mundo. (…) É preciso para isso muita ascese, sobriedade, involução
criadora: uma elegância inglesa, um tecido inglês, confunde-se com as paredes, eliminar o percebido-demais, o
excessivo-para-perceber. (…) Pois todo mundo é o conjunto molar, mas devir todo mundo é outro caso, que põe
em jogo o cosmo com seus componentes moleculares. Devir todo mundo é fazer mundo, fazer um mundo. À
força de eliminar, não somos mais do que uma linha abstrata, uma peça de quebra-cabeça em si mesmo abstrata.
É conjugando, continuando com outras linhas, outras peças que se faz um mundo, que poderia recobrir o
primeiro, como em transparência. (…) É nesse sentido que devir todo mundo, fazer do mundo um devir, é fazer
mundo, é fazer um mundo, mundos, isto é, encontrar suas vizinhanças e suas zonas de indiscernibilidade. O
Cosmo como máquina abstrata e cada mundo como agenciamento concreto que o efetua. Reduzir-se a uma ou
várias linhas abstratas, que vão continuar e conjugar-se com outras, para produzir imediatamente, diretamente,
um mundo, no qual é o mundo que entra em devir e nós nos tornamos todo mundo. (…) Estar na hora do mundo.
Eis a ligação entre imperceptível, indiscernível, impessoal, as três virtudes. Reduzir-se a uma linha abstrata, um
traço, para encontrar sua zona de indiscernibilidade com outros traços e entrar, assim, na hecceidade como na
impersonalidade do criador.” (Idem, ibidem, p. 76-77)
551
Idem, ibidem, p. 78
223

um resultado (o que se passou?). Seria preciso atingir o limiar fotográfico ou cinematográfico, mas em
relação à foto, o movimento e o afecto de novo refugiaram-se abaixo ou acima.552

A dificuldade de lidar com transformações, ou afetos, o desejo, pode ser visto como
decorrente dessa impossibilidade de ter ao mesmo tempo a percepção do movimento e a
percepção da estabilidade. A incapacidade de ver o lutador de sumô se mover é sintoma
preciso da nossa maneira de experimentar o movimento — e, simultaneamente, da tendência
imperceptível dos devires. Quando lidamos com as coisas, quando vemos o lutador de sumô,
ficamos aguardando eternamente o seu movimento. A espera por qualquer movimento se
estende (quase que) infinitamente. O que está em jogo nessa lentidão é o vetor de
conservação. Pode-se pensar que ela é justamente o esforço por manter os mínimos
movimentos moleculares num grau máximo de estabilidade possível, preservando uma
imagem estável (o passo que não termina nunca de se dar) até que a estabilidade chegue a um
ponto crítico em que ela se rompa. E esse rompimento é, justamente, rápido demais. O golpe é
imperceptível pois no fundo todo devir sempre acontece numa velocidade imperceptível
quando não temos onde nos apoiar, nenhuma baliza para conseguir ver. Dessa forma apenas
conseguimos enxergar uma mudança descontínua entre os dois estados do lutador de sumô,
antes e depois do golpe. Uma imagem semelhante e certamente mais simples553 seja aquela
em que quebramos um pedaço de madeira ao tentar dobrá-lo. Até o momento em que o
pedaço (que deve ter um mínimo de elasticidade) é destruído, o processo de dobrar parece
poder durar tanto quanto a corrida de Aquiles e a tartaruga. O momento em que ele quebra,
porém, é algo que não conseguimos acompanhar. Nós sempre já quebramos o pedaço de pau.
Nossa percepção não consegue lidar com a continuidade do movimento, apenas com sua
descontinuidade.554

552
Idem, ibidem, p. 78
553
E mais fácil de imaginar para aqueles que não são peritos em lutas japonesas.
554
“Se o movimento é imperceptível por natureza, é sempre em relação a um limiar qualquer de percepção, ao
qual é próprio ser relativo, desempenhar assim o papel de uma mediação, num plano que opera a distribuição dos
limiares e do percebido, que dá a sujeitos perceptivos formas a serem percebidas: ora é esse plano de
organização e de desenvolvimento, plano de transcendência que dá a perceber sem poder ser percebido, sem que
ele próprio seja percebido. Mas, no outro plano, de imanência ou de consistência, é o próprio princípio de
composição que deve ser percebido, que não pode senão ser percebido, ao mesmo tempo que aquilo que ele
compõe ou dá. Aqui, o movimento deixa de ser remetido à mediação de um limiar relativo ao qual ele escapa por
natureza ao infinito; ele atingiu, seja qual for sua velocidade ou sua lentidão, um limiar absoluto, se bem que
diferenciado, que faz um com a construção desta ou daquela região do plano continuado. Diremos igualmente
que o movimento para de ser o procedimento de uma desterritorialização sempre relativa, para tornar-se o
processo da desterritorialização absoluta. É a diferença dos dois planos que faz com que aquilo que não pode ser
percebido num deles só pode ser percebido no outro. É aí que o imperceptível torna-se o necessariamente-
percebido, saltando de um plano ao outro, ou dos limiares relativos ao limiar absoluto que coexiste com eles.
(…) É que a percepção não estará mais na relação entre um sujeito e um objeto, mas no movimento que serve de
limite a essa relação, no período que lhe está associado. A percepção se verá confrontada com seu próprio limite;
224

Isso nos põe uma questão. Ainda que em certo sentido o movimento contínuo aponte para
um fluxo absoluto, uma continuidade total, há de fato estabilidades, há equilíbrios dinâmicos
que são justamente o que nos permite ver uma estabilidade. Se nós temos a tendência a
enxergar as coisas de maneira imóvel, é porque o movimento total não deixa de ter suas
repetições, suas constâncias, seus nódulos e pontos de concentração. É a tentativa de entender
a natureza das estabilidades que se formam nas transformações que nos levarão para o
conceito de ritornelo em Deleuze e Guattari.

Esse conceito, que em Mil Platôs vem logo após a investigação sobre o conceito de devir,
nos parece uma tentativa de descrever os movimentos que estão envolvidos na ideia de
repetição555 Se podemos compreender o devir como uma exploração sistemática da diferença
(ou diferenciação), então o ritornelo faz a sua contraparte ao abordar o que seria a repetição a
partir do que se entendeu por diferença. É claro que nesse livro Deleuze e Guattari parecem
estar preocupados mais em seguir o movimento das próprias coisas do que resumir esses
movimentos sob formas mais gerais. Não é à toa que ao longo desse platô e do platô anterior
encontraremos inúmeros encarnações do conceito sem que se arremate uma definição
genérica dos conceitos. O que pretendemos fazer aqui certamente não é eliminar as diferenças
entre as diversas encarnações desse conceito, mas simplesmente apontar para um mínimo de
continuidade que se encontra entre as maneiras que Deleuze e Guattari descrevem esses
movimentos de diferença e repetição. Ao mesmo tempo, é esse olhar para a repetição que nos
permite começar a vislumbrar uma outra maneira de conceber o tempo que não se apoie no
futuro. Se a realidade do devir é metamórfica — se transformando incessantemente —, então
não é possível pensar a estabilidade de maneira estática. O ritornelo nos permite pensar como
se constitui os equilíbrios dinâmicos dos corpos.
O que se busca entender, portanto, com o conceito de ritornelo, são em que medida as
transformações que perfazem toda a realidade podem adquirir algum grau de consistência.556

ela estará entre as coisas, no conjunto de sua própria vizinhança, como a presença de uma hecceidade em outra,
apreensão de uma pela outra ou a passagem de uma a outra: olhar apenas os movimentos.” (Idem, ibidem, pp.
79-80)
555
Para uma comparação sobre os tratamentos do tema da repetição em Diferença e repetição e Mil Platôs (a
partir do ritornelo) e a maneira como este prolonga aquele cf. Lapoujade, op. cit., pp. 65-98
556
“Uma primeira questão seria a de saber o que mantém junto todas essas marcas territorializantes, esses
motivos territoriais, essas funções territorializadas, num mesmo intra-agenciamento. É uma questão de
consistência: o “manter-se junto” de elementos heterogêneos. Eles não constituem inicialmente mais do que um
conjunto vago, um conjunto discreto, que tomará consistência…” (Idem, ibidem, 140)
225

O primeiro passo para entender essa consistência é a identificação de uma dinâmica composta
por três “movimentos” nos ritornelos. Como dizem Deleuze e Guattari:

Não são três momentos sucessivos numa evolução. São três aspectos numa só e mesma coisa, o
Ritornelo. Vamos reencontrá-los nos contos de terror ou de fadas, nos lieder também. O ritornelo tem
os três aspectos, e os torna simultâneos ou os mistura: ora, ora, ora. Ora o caos é um imenso buraco
negro, e nos esforçamos para fixar nele um ponto frágil como centro. Ora organizamos em torno do
ponto uma “pose” (mais do que uma forma) calma e estável: o buraco negro tornou-se um em-casa.
Ora enxertamos uma escapada nessa pose, para fora do buraco negro.557

A ideia é tentar descrever esses três movimentos que compõem um ritornelo, mas sempre
atentando para o fato de que se eles podem ser desmembrados abstratamente, isso não pode
ser feito realmente. Cada uma dessas fases já encaminha para a fase seguinte. Com isso em
mente, pode-se pensar no primeiro movimento558 como uma espécie instauração.559 Um
movimento inicial de organização que estabelece um ponto de referência de onde irá irradiar
uma organização futura. Mas aonde se dá esse movimento inicial? Ele certamente não é
primeiro com relação ao movimento da realidade. Ele é, pelo contrário, uma espécie de
reação ao fluxo (caótico) da realidade — ele acontece sob esse corpo caótico que é o real.
Fluxo que por sua própria natureza não pode de maneira alguma ser imaginado como um
fluxo indiferente ou homogêneo. Se qualquer estabilização pode se dar, é justamente por
conta de um movimento de diferenciação original, já presente no seio do caótico, que
funciona como solo de qualquer estabilidade e repetição. Assim sendo, “o caos não é o
contrário do ritmo, é antes o meio de todos os meios. Há ritmo desde que haja passagem
transcodificada de um para outro meio, comunicação de meios, coordenação de espaços-
tempos heterogêneos.”560 Se o caos é justamente a passagem entre um meio e outro, este não
pode ser interpretado como uma repetição periódica ou homogênea — “O ritmo é o Desigual
ou o Incomensurável, sempre em transcodificação”.561 Em certo sentido o caótico, ou o ritmo,
é a variação desigual (descoordenada - já que um “ritmo”, uma “batida” já seria uma
codificação da variação) entre movimentos “ritmados”/repetitivos/estáveis — ou seja é uma

557
Idem, ibidem, p. 123
558
É preciso deixar claro que nessa dinâmica do ritornelo o primeiro movimento não é um movimento primeiro.
Em certo sentido o ritornelo se estabelece sempre sob um fundo do fluxo (caótico) da realidade.
559
“Uma criança no escuro, tomada de medo, tranquiliza-se cantarolando. Ela anda, ela pára, ao sabor de sua
canção. Perdida, ela se abriga como pode, ou se orienta bem ou mal com sua cançãozinha. Esta é como o esboço
de um centro estável e calmo, estabilizador e calmante, no seio do caos. Pode acontecer que a criança salte ao
mesmo tempo que canta, ela acelera ou diminui seu passo; mas a própria canção já é um salto: a canção salta do
caos a um começo de ordem no caos”. (Idem, ibidem, p. 122)
560
Idem, ibidem, p. 125
561
Idem, ibidem, p. 125
226

variação que dá lugar à diferenças de repetições/equilíbrios. É sob essa variação desigual que
os ritornelos se formam, pois a quebra (a variação desigual dos ritmos) já é, por sua vez, sinal
de uma heterogeneidade (ou heterogenização) desse fluxo. Dessa forma é possível observar
como o ritornelo se faz a partir do fluxo caótico:

Do caos nascem os Meios e os Ritmos. (…) Cada meio é vibratório, isto é, um bloco de espaço-tempo
constituído pela repetição periódica do componente. Assim, o vivo tem um meio exterior que remete
aos materiais; um meio interior que remete aos elementos componentes e substâncias compostas; um
meio intermediário que remete às membranas e limites; um meio anexado que remete às fontes de
energia e às percepções-ações. Cada meio é codificado, definindo-se um código pela repetição
periódica; mas cada código é um estado perpétuo de transcodificação ou de transdução. A
transcodificação ou transdução é a maneira pela qual um meio serve de base para um outro ou, ao
contrário, se estabelece sobre um outro, se dissipa ou se constitui no outro. Justamente, a noção de
meio não é unitária: não é apenas o vivo que passa constantemente de um meio para outro, são os
meios que passam um no outro, essencialmente comunicantes. Os meios são abertos no caos, que os
ameaça de esgotamento ou de intrusão. Mas o revide dos meios ao caos é o ritmo.562

Pode-se ver sem muitos problemas que o ritornelo é algo que surge como fruto dos
próprios movimentos caóticos. Mas se surge dele, ele logo se opõe a ele ao produzir
estabilidades e produzir um limite entre a sua estabilidade interna (endoconsistência) e uma
exterioridade — o ritornelo, ou os meios, são fluxos os caóticos ganhando estabilidade e
relativizando o seu movimento absoluto. O primeiro movimento do ritornelo é, então, um
movimento que Deleuze e Guattari chamarão de territorialização.

O território é de fato um ato, que afeta os meios e os ritmos, que os “territorializa”. O território é o
produto de uma territorialização dos meios e dos ritmos. (…) Um território lança mão de todos os
meios, pega um pedaço deles, agarra-os (embora permaneça frágil frente a intrusões). Ele é construído
com aspectos ou porções de meios. Ele comporta em si mesmo um meio exterior, um meio interior,
um intermediário, um anexado. Ele tem uma zona interior de domicílio ou de abrigo, uma zona
exterior de domínio, limites ou membranas mais ou menos retráteis, zonas intermediárias ou até
neutralizadas, reservas ou anexos energéticos. Ele é essencialmente marcado por “índices”, e esses
índices são pegos de componentes de todos os meios: materiais, produtos orgânicos, estados de
membrana ou de pele, fontes de energia, condensados, percepção-ação. Precisamente, há território a
partir do momento em que componentes de meios param de ser direcionais para devirem
dimensionais, quando eles param de ser funcionais para devierem expressivos. Há território a partir do
momento em que há expressividade do ritmo. É a emergência de matérias de expressão (qualidades)
que vai definir o território.563

562
Idem, ibidem, pp. 124-125
563
Idem, ibidem, p. 127
227

Na ausência de qualquer início absoluto, o movimento primeiro do ritornelo, fazer um


território, é sempre uma espécie de bricolagem. Ele é efeito do movimento de uma série de
partes564 que se afetam e fazem emergir em sua interação algo que vai para além das suas
funções específicas (eis o caráter “expressivo”, emergindo). Temos algo aqui da mesma
ordem que o indivíduo espinosano: uma série de partes que em sua interação acabam
compondo uma nova organização que, por sua vez, contra-efetua elas a partir desse novo
corpo que surgiu como efeito. No caso esse efeito que é descrito aqui pode ser compreendido
inicialmente como a demarcação de uma exterioridade de uma interioridade e que tem as suas
“partes” organizadas em torno dessa determinação de um limite. Deleuze e Guattari
conceberão esse movimento da territorialização como a determinação de uma distância
crítica.565 É dessa composição que irá surgir aquilo que será, para os autores, a marca
distintiva dessa primeira fase: “O fator T, fator territorializante, deve ser buscado em outro
lugar: precisamente no devir-expressivo do ritmo ou da melodia, isto é, na emergência de
qualidades próprias (cor, odor, som, silhueta…).”566
O território é o que emerge de uma composição de movimentos (essa composição é o
movimento de territorialização), que faz nascer uma “marca qualitativa”. Essa marca que é a
própria composição de uma quebra com relação a uma medida anterior. O aspecto de “ritmo”
dessa marca é o fato de ela se demarcar de uma outra ordem de coisas. Nesse sentido pode-se
dizer que o movimento de territorialização é a diferenciação: o estabelecimento de uma nova
ordem em que o que era função virou índice da diferença (membrana/limite) com relação à
outros corpos/meios. O que cabe tentar entender é, portanto, esse movimento de
territorialização que produz a marca qualitativa, pois é essa marca que irá constituir uma
zona limite dos corpos, um certo foco para uma estabilidade, pois “elas desenham um
território que pertencerá ao sujeito que as traz consigo ou que as produz (…) é a marca
constituinte de um domínio, de uma morada.”567 Esse movimento de expressão é o passo
inicial na formação da estabilidade que é constitutiva de qualquer indivíduo:

564
Falo de partes, mas estamos apenas pegando um termo genérico, pois pode se tratar de movimentos, direções,
vetores, corpos.
565
“O território é primeiramente a distância crítica entre dois seres de mesma espécie: marcar suas distâncias.
(…) Trata-se de manter à distância as forças do caos que batem à porta. (…) A distância crítica não é uma
medida, é um ritmo. Mas, justamente, o ritmo é tomado num devir que leva consigo as distâncias entre
personagens, para fazer delas personagens rítmicos, eles próprios mais ou menos distantes, mais ou menos
combináveis (intervalos)”. (Idem, ibidem, pp. 134-135) Pode-se enxergar aqui nessa ideia de distância crítica a
passagem do primeiro para o segundo movimento do ritornelo.
566
Idem, ibidem, p. 129
567
Idem, ibidem, p. 130
228

Qual é este movimento objetivo? O que uma matéria faz como matéria de expressão? Ela é
primeiramente cartaz ou placa, mas não fica por aí. Ela passa por aí, e é só. Mas a assinatura vai
tornar-se estilo. Com efeito, as qualidades expressivas ou matérias de expressão entram em relações
móveis umas com as outras, as quais vão “exprimir” a relação do território que elas traçam com o
meio interior dos impulsos e com o meio exterior das circunstâncias. Ora, exprimir não é pertencer; há
uma autonomia da expressão.568

A “autonomia da expressão” que é referida pode ser considerada o ponto em que uma
certa zona do fluxo marca uma diferença com relação ao seus outros e pode ser dita como
relativa a eles. Pois se o fluxo contínuo é o solo onde vêm a se constituir os corpos, os
equilíbrios dinâmicos, isso se dá na medida em que dessa diferenciação contínua emergem
zonas de diferenciação que marcam tanto o surgimento de interioridades como de
exterioridades. O primeiro movimento, portanto, do ritornelo é o traçar de uma referência para
estabelecer uma zona interior e uma zona exterior. Seguindo essa partilha, há um modo de se
organizar diferente entre as partes com relação aos elementos interiores e aos elementos
exteriores. É nesse ponto que se torna possível falar em afetos e desejos. Afeto e desejo,
como falamos, não são mais que as transformações que ocorrem no fluxo contínuo do real na
medida em que elas são referenciáveis. Ou seja, quando começamos a ter uma autonomia
tornam-se pensáveis essas noções que descrevem os movimentos de potencialização e
despotencialização dos indivíduos (ou seja, dessas regiões autônomas dinâmicas) — é do
movimento dessas zonas (relativamente) autônomas que se fala.
Como dizem os autores, “as qualidades expressivas estabelecem entre si relações internas
que constituem motivos territoriais”.569 Os motivos podem ser compreendidos como aquilo
que emana da relação entre certas partes na medida em que elas acabam por formar um
circuito de relações razoavelmente fechado570 (isto é, um circuito que tem uma membrana
entre um exterior e um interior). Nesse sentido ela é a face interior da autonomia que a
territorialização produz. Por outro lado, é evidente que esse movimento primeiro não exclui a
existência de uma relação com o fora, pois “as qualidades expressivas entram também em
outras relações internas que fazem contrapontos territoriais”.571 Mas as partes não se
relacionam com o fora da mesma forma que elas se relacionam com o dentro. Se em sua
568
Idem, ibidem, p. 131
569
Idem, ibidem, p. 132
570
“estes sobrepujam os impulsos internos, ora se sobrepõem a eles, ora fundem um impulso no outro, ora
passam e fazem passar de um impulso a outro, ora inserem-se entre os dois, mas eles próprios não são
“pulsados”. Ora esses motivos não pulsados aparecem de uma forma fixa, ou dão a impressão de aparecer assim,
mas ora também os mesmos motivos, ou outros, têm uma velocidade e uma articulação variáveis; e é tanto sua
variabilidade quanto sua fixidez que os tornam independentes das pulsões que eles combinam ou neutralizam.”
(Idem, ibidem, p. 131)
571
Idem, ibidem, p. 131
229

interioridade as partes se relacionam como singularidades (como partes), a relação com o fora
é sempre a partir da totalidade das partes, “de maneira que desta vez, é a maneira pela qual
elas constituem, no território, pontos que tomam em contraponto as circunstâncias do meio
externo.”572
A estabilidade inicial de um corpo, podemos dizer, passa diante dessa duplicação na sua
forma de ser. Há a criação de um limite na medida em que podemos encontrar uma
organização interna (relativamente) independente, onde as partes internas acabam por
produzir uma certa estabilidade. Mas essa mesma estabilidade sempre terá uma relação com
um fora, com uma exterioridade. A diferença é que essa segunda face da organização e de um
equilíbrio — agora não mais entre partes dentro de uma interioridade, mas entre um dentro e
um fora — se dará a partir da maneira que um corpo se opõe a uma exterioridade.573 Podemos
pensar aqui, para facilitar a compreensão, na maneira como o corpo humano se organiza. Por
um lado, vemos uma estrutura composta de uma infinidade de partes que entram em relações
nos mais diversos níveis. Os vasos sanguíneos têm uma relação com o coração e o cérebro e o
pulmão (e outros tantos) que acabam gerando, pelo fato de serem partes (relativamente)
isoladas de uma certa exterioridade uma dinâmica específica, que acaba gerando certas
capacidades de agir que não se reduzem a uma simples soma das partes. Por outro lado,
percebe-se que na lida com o exterior que o corpo se opõe como uma espécie de totalidade,
como se nessa sua oposição não estivesse cada uma das suas partes individuais se
relacionando com o fora.574
Esse movimento primeiro, o de o estabelecimento de um limite, a demarcação de uma
interioridade/exterioridade, e da autonomia575 decorrente dela, já nos põe no segundo

572
Idem, ibidem, p. 131
573
É preciso deixar claro que nenhum desses movimentos é anterior ao outro. Pois se podemos dizer que os
contrapontos territoriais exigem um certo efeito total de uma interioridade para se opor a uma exterioridade,
pode-se dizer, também, que os motivos territoriais precisam de uma certa demarcação de uma exterioridade para
que possam se relacionar de maneira (quase-)fechada. Nesse sentido, quando falamos desses movimentos, é
inevitável que as descrições acabem falando de um dos dois primeiro, mas nem por isso qualquer um dos dois é
primeiro em relação ao outro.
574
É claro que há uma série de eventos, doenças, casos em que essa relação dentro-fora do corpo humano pode
se complicar (complexificar). O que mencionamos foi apenas um exemplo da maneira como as relações de
interioridade se comportam de maneira diferente das relações de exterioridade.
575
“os motivos territoriais formam rostos ou personagens rítmicos e que os contrapontos territoriais formam
paisagens melódicas. Há personagem rítmico quando não nos encontramos mais na situação simples de um ritmo
que estaria associado a um personagem, a um sujeito ou a um impulso: agora, é o próprio ritmo que é todo o
personagem, e que, enquanto tal, pode permanecer constante, mas também aumentar ou diminuir, por acréscimo
ou subtração de sons, de durações sempre crescentes e decrescentes, por amplificação ou eliminação que fazem
morrer e ressuscitar, aparecer e desaparecer. Da mesma forma, a paisagem melódica não é mais uma melodia
associada a uma paisagem, é a própria melodia que faz a paisagem sonora, tomando em contraponto todas as
relações com uma paisagem virtual.” (Idem, ibidem, p. 132)
230

movimento do ritornelo — que é a organização de um espaço que filtra o caos.576 Temos nele
a passagem de um movimento em que os efeitos gerados se tornam autônomos com relação
ao que o gerou. Ou seja, se o primeiro movimento se gera uma dupla autonomia, o próximo
passo é a retroação (ou contra-efetuação) dessa autonomia sobre as suas partes, pois

quanto mais a obra se desenvolve, mais os motivos entram em conjunção, mais conquistam seu
próprio plano, mais tomam autonomia em relação à ação dramática, aos impulsos, às situações, mais
eles são independentes dos personagens e das paisagens, para tornarem-se eles próprios paisagens
melódicas, personagens rítmicos que não param de enriquecer suas relações internas. Então os motivos
podem permanecer relativamente constantes ou, ao contrário, aumentar ou diminuir, crescer e
decrescer, variar de velocidade de desenvolvimento: nos dois casos eles pararam de ser pulsados e
localizados; mesmo as constantes o são pela variação e endurecem mais ainda por serem provisórias e
acabam por valorizar essa variação contínua à qual resistem.577

É possível, levando isso em conta, dizer que o movimento de passagem é quando essa
diferença estabelecida/demarcada passa a se tornar, ela própria, organizadora do seu entorno,
a ponto de ela, a partir da sua emergência, (re)ordenar o seu jogo de
interioridade/exterioridade que a estabeleceu inicialmente. Como se ela acabasse por contra-
efetuar sua própria instância de produção. Um corpo é formado por partes, mas a partir do
momento em que esse corpo se torna, efetivamente, corpo (que tem desejo, conatus — uma
dinâmica de feedbacks), ele mesmo passa a gerar efeitos nas partes que o compuseram. Essa
nova composição terá, para os autores, dois efeitos principais: “uma reorganização das
funções, um reagrupamento das forças.”578
Quanto à primeira novidade, falamos dela já. É a maneira como as partes estabelecem
novas relações e se comportam de maneira diferente devido à nova organização que elas têm.
Podemos pegar um exemplo que Deleuze e Guattari dão em outro momento, mas que parece
dar conta da mesma experiência: é o movimento de desterritorialização pelo qual a voz passa
ao se tornar música.579 Se antes a voz era restrita à esfera da linguagem, no momento em que
ela entra numa máquina musical ela se libera para outras aptidões e ela própria se transforma

576
Agora, ao contrário, estamos em casa. Mas o em-casa não preexiste: foi preciso traçar um círculo em torno
do centro frágil e incerto, organizar um espaço limitado. Muitos componentes bem diversos intervém,
referências e marcas de toda espécie. Isso já era verdade no caso precedente. Mas agora são componentes para a
organização de um espaço, e não mais para a determinação momentânea de um centro. Eis que as forças do caos
são mantidas no exterior tanto quanto possível, e o espaço interior protege as forças germinativas de uma tarefa a
ser cumprida, de uma obra a ser feita. Há toda uma atividade de seleção aí, de eliminação, de extração, para que
as forças íntimas terrestres, as forças interiores da terra, não sejam submersas, para que elas possam resistir, ou
até tomar algo emprestado do caos através do filtro ou do crivo do espaço traçado.
577
Idem, ibidem, pp. 133-134
578
Idem, ibidem, p. 136
579
Cf. Idem, ibidem, pp. 108-109
231

(entra em um devir, para ficar nos termos dos autores). A voz que antes servia para
comunicar, nessa nova configuração, passa a cantar, se transforma em instrumento musical.

Há aqui como que o tema nascente da especialização ou da profissão: se o ritornelo territorial


atravessa tão frequentemente ritornelos profissionais, é que as profissões supõem que atividades
funcionais diversas se exerçam num mesmo meio, mas também que a mesma atividade não tenha
outros agentes num mesmo território. (…) se reconhecerá que no território todas as atividades
adquirem um aspecto prático novo.580

O segundo efeito, o reagrupamento das forças, é um movimento em que “o território


reagrupa todas as forças dos diferentes meios num só feixe constituído pelas forças da terra. É
só no mais profundo de cada território que se faz a atribuição de todas as forças difusas à terra
como receptáculo ou base.”581 Se o primeiro efeito diz respeito à interioridade, esse segundo
efeito tem a ver com as relações entre interioridade e exterioridade, já que “esse centro
intenso está ao mesmo tempo no próprio território, mas também fora de vários territórios que
convergem em sua direção ao fim de uma imensa peregrinação”.582 As forças reagrupadas
podem ser tomadas como a própria relação agonística entre um dentro e um fora, onde “dois
tipos de força se enlaçam e se esposam num combate que não tem senão a terra como crivo e
como o que está em jogo.”583 Se Deleuze e Guattari falam de uma terra que é onde essas
forças se reúnem, podemos tomá-la como o próprio espaço que se constitui a partir do contato
entre as exterioridades e as interioridades. Se parece que começamos a caminhar já para o
terceiro movimento não se trata de um acaso. Pois nessa relação de forças interiores e
exteriores há sempre a possibilidade do surgimento de um novo equilíbrio dinâmico, do
surgimento de um novo corpo constituído a partir do agenciamento dessas forças em disputa.
Se torna mais compreensível a passagem a seguir, onde vemos, a partir dessa relação com seu
fora, a saída do território de si mesmo:

O território surge numa margem de liberdade do código, não indeterminada, mas determinada de outro
modo. Se é verdade que cada meio tem seu código, e que há incessantemente transcodificação entre os
meios, parece que o território, ao contrário, se forma no nível de certa descodificação.584

Esse ponto mostra como é complicado diferenciar os momentos que compõem o ritornelo.
Por conta disso é preciso lembrar que as diferenças entre os diversos momentos do ritornelo

580
Idem, ibidem, p. 136
581
Idem, ibidem.
582
Idem, ibidem, p. 137
583
Idem, ibidem.
232

são abstrações — não há uma diferença real entre eles. De maneira que no momento de
descrever o segundo momento já somos também empurrados para a sua terceira fase. Isso, na
realidade, é também um sinal de endoconsistência do próprio conceito. Deleuze e Guattari
não poderiam resumir melhor esse ponto:

O território é o primeiro agenciamento, a primeira coisa que faz agenciamento, o agenciamento é antes
territorial. Mas como ele já não estaria atravessando outra coisa, outros agenciamentos? É por isso que
não podíamos falar da constituição do território sem já falar de sua organização interna. Não podemos
descrever o infra-agenciamento (cartazes ou placas) sem já estarmos no intra-agenciamento (motivos e
contrapontos). Não podemos tampouco dizer algo sobre o intra- agenciamento sem já estarmos no
caminho que nos leva a outros agenciamentos, ou a outro lugar. Passagem do Ritornelo. O ritornelo
vai em direção ao agenciamento territorial, instala-se nele ou sai dele. Num sentido geral, chamamos
de ritornelo todo conjunto de matérias de expressão que traça um território, e que se desenvolve em
motivos territoriais, em paisagens territoriais (há ritornelos motores, gestuais, ópticos, etc.).585

O terceiro movimento do ritornelo pode ser compreendido como uma abertura para a sua
própria transformação.586 Após o estabelecimento de um ponto de referência no caos que cria
um limite entre um interior e exterior (primeiro movimento) e a organização consequente
dessa autonomização de certas partes do fluxo contínuo (segundo movimento), vemos como
dessa determinação do limite e da relação do corpo autônomo com seu fora podem surgir
novos equilíbrios (ou uma volta ao desequilíbrio caótico):

em muitos casos uma função agenciada, territorializada, adquire independência suficiente para formar
ela própria um novo agenciamento, mais ou menos desterritorializado, em vias de desterritorialização.
Não há necessidade de deixar efetivamente o território para entrar nesta via; mas aquilo que há pouco
era uma função constituída no agenciamento territorial, torna-se agora o elemento constituinte de um
outro agenciamento, o elemento de passagem a um outro agenciamento.587

Teremos, portanto, dois tipos de caminhos possíveis para os ritornelos na medida em que
eles estão saindo para fora de si: uma saída absoluta e uma saída relativa. A segunda saída já
foi prenunciada, pois o “território não para de ser percorrido por movimentos de
desterritorialização relativa, inclusive no mesmo lugar, onde se passa do intra-agenciamento a

584
Idem, ibidem, pp. 137-138
585
Idem, ibidem, p. 139
586
“Agora, enfim, entreabrimos o círculo, nós o abrimos, deixamos alguém entrar, chamamos alguém, ou então
nós mesmos vamos para fora, nos lançamos. Não abrimos o círculo do lado onde vêm acumular-se as antigas
forças do caos, mas numa outra região, criada pelo próprio círculo. Como se o próprio círculo tendesse a abrir-se
para um futuro, em função das forças em obra que ele abriga. E dessa vez é para ir ao encontro de forças do
futuro, forças cósmicas. Lançamo-nos, arriscamos uma improvisação. Mas improvisar é ir ao encontro do
Mundo, ou confundir-se com ele.” (Idem, ibidem, p. 123)
587
Idem, ibidem, p. 140
233

interagenciamentos”.588 Há sempre uma demanda exterior que pode romper a zona limítrofe e
reorganizar as relações que antes tinham uma certa autonomia com relação a essa
exterioridade. Quando comemos algum alimento, um frango, por exemplo, dissolvemos os
seus componentes, suas partes e o que funda a sua interioridade contra uma exterioridade para
que as suas partes (seus nutrientes) entrem em uma nova relação com o nosso corpo. Mas esse
movimento de desterritorialização relativa não precisa ser simplesmente o de uma dissolução
de um dos corpos. Pode-se tratar de um acoplamento onde um novo limite é traçado, como é
no caso, para pegar um exemplo de outro momento do livro de Deleuze e Guattari, da relação
nova que se constitui entre um homem e um cavalo a partir de um estribo, pois “o estribo
engendra uma nova simbiose homem-cavalo, que engendra, ao mesmo tempo, novas armas e
novos instrumentos.”589 É por isso que “um território está sempre em vias de
desterritorialização, ao menos potencial, em vias de passar a outros agenciamentos, mesmo
que o outro agenciamento opere uma reterritorialização”590
A saída absoluta, por outro lado, tem a ver com o retorno para um desequilíbrio caótico,
onde “se sai de todo agenciamento, que se extrapola as capacidades de todo agenciamento
possível, para entrar num outro plano.”591 O corpo como zona autônoma se dissolve, o limite
se desfaz e ele volta a entrar no fluxo contínuo do real sem se opor a ele. Não se diz aqui que
ele se homogeniza pois, como já dissemos, esse fluxo não pode ser homogêneo. O que ocorre
é algo de outra ordem,

não é mais um movimento nem um ritmo de meio, tampouco um movimento ou um ritmo


territorializantes ou territorializados; o que há agora, nesses movimentos mais amplos, é Cosmo. Os
mecanismos de localização não deixam de ser extremamente precisos, mas a localização tornou-se
cósmica. Não são mais as forças territorializadas, reunidas em forças da terra, são as forças
reencontradas ou liberadas de um Cosmo desterritorializado.592

Entre essas duas desterritorializações possíveis — esses dois movimentos que jogam o
ritornelo para fora de si — transparece que a última fase do movimento é algo que nunca
deixou de existir. Na realidade, o que podemos apreender disso é que foi essa força mesma de
desterritorialização que, em um momento anterior, deu início aos processos de
territorialização (ou seja, o primeiro movimento). Se os corpos são momentos em que se
estabelecem equilíbrios no fluxo é porque um corpo, com relação a esse fluxo contínuo, por

588
Idem, ibidem, p. 144
589
Deleuze, Gilles; Guattari, Félix. Mil Platôs - vol. 2. São Paulo: Editora 34, 2011. p. 33
590
Deleuze, Gilles; Guattari, Félix. Mil Platôs - vol. 4, 2012b. p. 144
591
Idem, ibidem, p. 144
234

meio de repetições e estabilizações, separou-se (relativamente, sempre) desse fluxo. Com


relação a ele próprio, poderia se dizer, portanto, que houve uma desterritorialização — uma
saída para fora de si. Mas que fora existe diante de um fluxo que corre continuamente e que é
o próprio real em seu movimento de auto-diferenciação? Ora, é sempre um movimento para
dentro, um movimento que cria uma interioridade que se opõe ao fluxo — uma dobra, em
suma. É por isso que Deleuze e Guattari dirão que essa estrutura toda “é uma série de
desengates.” E continuam, “O território não é separável de certos coeficientes de
desterritorialização, avaliáveis em cada caso, que fazem variar as relações de cada função
territorializada com o território, mas também as relações do território com cada agenciamento
desterritorializado.”593 Nesse sentido esse movimento de desterritorialização é simplesmente o
movimento considerado sob um certo ponto de vista, já que “é a mesma ‘coisa’ que aparece
aqui como função territorializada, tomada no intra-agenciamento, e lá como agenciamento
autônomo ou desterritorializado, interagenciamento.”594
Após descrever as três fases desse movimento de estabilização dos corpos, é possível
voltar a olhar para o seu movimento que é, de fato, indecomponível. Nele

ora se organiza o agenciamento: componentes dimensionais, intra-agenciamento. Ora se sai do


agenciamento territorial, em direção a outros agenciamentos, ou ainda a outro lugar: inter-
agenciamento, componentes de passagem ou até de fuga. E os três juntos. Forças do caos, forças
terrestres, forças cósmicas: tudo isso se afronta e concorre no ritornelo.595

É com isso em mente que será dito que

O agenciamento territorial não pára de atravessar outros agenciamentos. Assim como o infra-
agenciamento não é separável do intra-agenciamento, tampouco o intra-agenciamento o é dos
interagenciamentos, e, no entanto, as passagens não são necessárias; elas se fazem “dependendo do
caso”.596

Com o conceito de ritornelo podemos enxergar de maneira mais clara de que maneira os
corpos podem adquirir estabilidade no movimento absoluto de transformação. A distinção em
três fases (sendo a última fase podendo ser desmembrados em dois caminhos possíveis)597

592
Idem, ibidem, p. 144
593
Idem, ibidem, pp. 144-145
594
Idem, ibidem, p. 145
595
Idem, ibidem, p. 124
596
Idem, ibidem, p. 142
597
“É por isso que uma classificação dos ritornelos poderia se apresentar assim: 1) os ritornelos territoriais, que
buscam, marcam, agenciam um território; 2) os ritornelos de funções territorializadas, que tomam uma função
especial no agenciamento (a Cantiga de Ninar, que territorializa o sono e a criança, a de Amor, que territorializa
235

possibilita entender como os indivíduos não só se constituem, mas também como essa
constituição não freia o movimento de transformação. Pelo contrário, essas estabilizações
acabam povoando o campo de transformação contínua com organizações que tem um mínimo
de consistência para conseguirem, temporariamente, criar zonas de autonomia. Pode-se dizer,
para resgatar uma noção clássica da filosofia francesa, que essas zonas podem ser entendidas
como hábitos, como organizações provisórias, arbitrárias (isto é, não há nenhuma teleologia
escondida), mas que ainda assim são detentoras de uma certa endoconsistência. E não foi essa
questão que nos fez passar por esse conceito?598 Nesse sentido as consistências que são
encontradas por meio desses procedimentos não podem nunca ser absolutas (e nem
pretendem). Dessa teoria da consistência Deleuze e Guattari extrairão três consequências:

que haja não um começo de onde derivaria uma sequência linear, mas densificações, intensificações,
reforços, injeções, recheaduras, como outros tantos atos intercalares (“não há crescimento senão por
intercalação”); em segundo lugar, e não é o contrário, é preciso que haja acomodação de intervalos,
repartição de desigualdades, a tal ponto que, para consolidar, às vezes é preciso fazer um buraco; em
terceiro lugar, superposição de ritmos disparatados, articulação por dentro de uma inter-ritmicidade,
sem imposição de medida ou de cadência. A consolidação não se contenta em vir depois; ela é
criadora. É que o começo não começa senão entre dois, intermezzo. A consistência é precisamente a
consolidação, o ato que produz o consolidado, tanto o de sucessão quanto o de coexistência, com os
três fatores: intercalações, intervalos e superposições-articulações.599

Se afeto e desejo são os índices de uma certa transformação então esse sobrevoo que
fizemos por Deleuze e Guattari permite compreender de que maneira podemos aprofundar

a sexualidade e o amado, a de Profissão, que territorializa o ofício e os trabalhos, a de Mercado, que territorializa
a distribuição e os produtos...); 3) os mesmos, enquanto marcam agora novos agenciamentos, passam para novos
agenciamentos, por desterritorialização-reterritorialização (as parlendas seriam um caso muito complicado: são
ritornelos territoriais, que não se canta da mesma maneira de um bairro para outro, às vezes até de uma rua para
outra; elas distribuem papéis e funções de jogo no agenciamento territorial; mas também fazem o território
passar pelo agenciamento de jogo que tende, ele próprio, a se tornar autônomo); 4) os ritornelos que colhem ou
juntam as forças, seja no seio do território, seja para ir para fora (são ritornelos de afrontamento, ou de partida,
que engajam às vezes um movimento de desterritorialização absoluta “Adeus, eu parto sem olhar para trás”. No
infinito, esses ritornelos devem reencontrar as canções de Moléculas, os vagidos de recém-nascidos dos
Elementos fundamentais, como diz Millikan. Eles deixam de ser terrestres para tornarem-se cósmicos: quando o
Nomo religioso desabrocha e se dissolve num Cosmo panteísta molecular; quando o canto dos pássaros dá lugar
às combinações da água, do vento, das nuvens e das brumas. “Fora o vento, a chuva...” O Cosmo como imenso
ritornelo desterritorializado).” (Idem, ibidem, p. 145)
598
“O problema da consistência concerne efetivamente a maneira pela qual os componentes de um
agenciamento territorial se mantêm juntos. Mas concerne também a maneira pela qual se mantêm os diferentes
agenciamentos, com componentes de passagem e de alternância. Pode até ser que a consistência só encontre a
totalidade de suas posições num plano propriamente cósmico, onde são convocados todos os disparates e
heterogêneos. No entanto, cada vez que heterogêneos se mantêm juntos num agenciamento ou em
interagenciamentos, já se coloca um problema de consistência, em termos de coexistência ou de sucessão, e os
dois ao mesmo tempo. Mesmo num agenciamento territorial, é talvez o componente o mais desterritorializado, o
vetor desterritorializante, como o ritornelo, que garante a consistência do território”. (Idem, ibidem, p. 146)
599
Idem, ibidem, p. 148
236

esses conceitos. Falamos acima que essas estabilizações são o que permitem o
estabelecimento de referências, pontos a partir de onde se pode estabelecer limites entre uma
interioridade e a exterioridade sem que qualquer causa final esteja em jogo, qualquer
movimento teleológico que guie essas transformações. Podemos enxergar no movimento do
ritornelo como um movimento que cria perspectiva. Mas a perspectiva aqui não é nem mera
“visão” ou “percepção” decorrentes de uma subjetividade á produzida. Perspectiva é o próprio
movimento de uma interioridade que tenta se perpetuar e, nesse movimento, se organiza
internamente e se digladia com a sua exterioridade.600 O afeto passa a ser compreendido como
a medida de transformação das capacidades de um corpo sem que ele se dissolva
completamente. O desejo, por sua vez, é o próprio movimento de ritornelo que busca
perpetuar a consistência de um território, é a tentativa de afastar o horror que é a dissolução
(ou seja, sem que seu movimento de desterritorialização o leve a ser dissolvido
completamente, em outro corpo ou no próprio cosmos) — desejo é o movimento de
construção e perseverança da perspectiva, mas sem que a perspectiva esteja fechada em si
mesma. Não se trata, é preciso lembrar, de afastar a desterritorialização por completo, já que é
sempre possível estabelecer relações com outros corpos que não rompam com a consistência e
a segurança de um território.601 A esfera afetiva não é, é preciso repetir sempre, uma questão
de “emoção” ou “sentimento”, ela tem a ver com as capacidades de um corpo de se perpetuar
e de se transformar — de conseguir manter uma certa consistência.602 A questão da
consistência dos corpos parece distante de nós; mas não poderíamos estar mais perto. Se há
algo que une grande parte603 da humanidade é esse desejo de não se dissolver no604 cosmo.
Queremos viver (e não morrer) — mas não por qualquer temor da dor que pode ser provocada
no instante da nossa morte. O que tememos é que chegue um momento em que o nosso ponto

600
Sobre o conceito de perspectiva, cf. Saldanha, op. cit.,
601
“O que torna o material cada vez mais rico é aquilo que faz com que heterogêneos mantenham-se juntos sem
deixar de ser heterogêneos; o que assim os mantém, são osciladores, sintetizadores intercalares de duas cabeças
pelo menos; analisadores de intervalos; sincronizadores de ritmos (a palavra “sincronizador” é ambígua, pois
estes sincronizadores moleculares não procedem por medida igualizante ou homogeneizante, e operam de
dentro, entre dois ritmos). Não seria a consolidação o nome terrestre da consistência? O agenciamento territorial
é um consolidado de meio, um consolidado de espaço-tempo, de coexistência e de sucessão. O ritornelo opera
com os três fatores.” (Deleuze, Gilles; Guattari, Félix, op. cit., p. 149)
602
E consistência, como deve ter ficado claro, não é conservação — pois o equilíbrio que falamos aqui é sempre
dinâmico.
603
A ideia de que possa haver um desejo por uma transformação no corpo que rompa completamente o fio de
continuidade que o constitui parece inicialmente difícil de aceitar. O fenômeno do niilismo (desejo de auto
aniquilação) nos parece fundamental para prosseguir nessa questão. Uma pesquisa sobre esse ponto seria
necessária em algum momento futuro até pelas implicações políticas desse niilismo.
604
Mesmo os que acreditam num além mundo, pois o que seria esse além mundo sem alguma forma de
continuidade entre a vida na terra e a vida no céu? O conceito de alma é apenas uma forma de tentar resguardar
essa continuidade.
237

de vista e a continuidade que construímos na vida de repente se interrompa. “Para o coração a


vida é simples: ele bate enquanto puder. E então para.”605

Após entender de que maneira se formam no fluxo contínuo zonas estáveis, repetições
consistentes, equilíbrios dinâmicos, resta a pergunta sobre em que medida é possível agir
sobre essas transformações. A pergunta que fazemos aqui é já é o começo de uma entrada na
nossa questão da temporalidade, pois pergunta em que medida é possível operar esses
processos de transformação para que eles possam atuar em nosso606 favor sem que haja
qualquer futuro ou expectativa que oriente essa transformação. Segundo um certo ponto de
vista (exterior aos corpos), já respondemos essa pergunta quando falamos dos ritornelos. Os
corpos, nesse movimento de estabelecer um limite interioridade/exterioridade, ao organizar e
filtrar o universo segundo esse limite e, não menos importante, ao se abrir para
transformações com o seu exterior, não estão fazendo mais do que se consolidando, mantendo
o máximo possível o seu fio de continuidade que o caracteriza como um indivíduo. Falta,
porém, responder essa pergunta de um ponto de vista interno, ou seja, o que se passa quando
nos instalamos no próprio corpo?607
O que sobra para os corpos, como veremos, é uma espécie de prática-de-si608. A única
coisa que os corpos podem, de seu ponto de vista, é agir e reagir segundo a sua composição e
segundo a maneira como o outrem (qualquer outrem) lhe afeta. É a partir desse ponto que
poderemos desenvolver, junto com Deleuze e Guattari, a ideia de que a ação tem a ver com o
conceito de experimentação. A experimentação aqui tem um duplo sentido: trata-se tanto de
uma experimentação no sentido de um tatear, a partir da efetuação suas próprias capacidades,

605
Knausgård, Karl Ove. A morte do pai: minha luta 1. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. p. 7
606
“Nosso” aqui é nós, humanos, mas não só. Essa questão concerne qualquer corpo ou indivíduo (independente
da complexidade ou da escala em que ele se encontra — tanto para cima, no caso de certas megamáquinas como
Gaia ou o Capital, mas para baixo, como no caso de células, moléculas etc.), já que se há endoconsistência há
conatus (a endoconsistência é o conatus), portanto a pergunta sobre a manipulabilidade das transformações para
se perpetuar definitivamente não se restringe ao âmbito humano.
607
Pois, afinal, é o que de fato somos.
608
Evidentemente pensávamos em Foucault quando escrevemos esse termo, a maneira como ele se preocupou
em pensar as práticas de constituição de subjetividade que se encontram entre os gregos e romanos e que se
encontram nos volumes posteriores da História da sexualidade e nos cursos que deu nos anos 1980. No entanto,
ainda que tenhamos sido inspirados por Foucault, nosso uso é completamente distinto pois não estamos
preocupados em reconstruir a maneira como uma sociedade específica constituía suas práticas-de-si mas, em um
sentido mais espinosano, procuramos entender essa prática-de-si como um movimento próprio de qualquer
corpo na medida em que ele procura se constituir. O que está em jogo aqui é, portanto, mais uma dinâmica
espinosana do que foucaultiana, ainda que, sem dúvida, seria um caminho interessante de se explorar, ainda mais
considerando as pistas deixadas por Deleuze no último capítulo do seu Foucault.
238

mas também de um testar contínuo da realidade. Não consigo, a partir do que falei, imaginar
outra coisa que um polvo caminhando pelo fundo do mar, estendendo seus tentáculos e por
meio desse processo avançando e se adaptando aos obstáculos na sua frente. Essa imagem já
nos leva para o segundo sentido de experimentar, que é a ideia de avaliação.609 No mesmo
momento em que se vai tateando o espaço, se produz uma avaliação sobre esse tatear. O corpo
que experimenta está também recebendo um retorno sobre essa experiência. Do ponto de vista
de um corpo, portanto, o que ele pode fazer, a sua efetividade, circunscreve-se nesse exercício
das suas possibilidades.610 É a partir dessa conceituação de ação, que iremos desenvolver
agora, que teremos um tipo de prática que não se orienta em direção ao futuro.

Encontraremos a noção de experimentação que nos interessa611 no platô 28 de novembro


de 1947 — Como criar para si um Corpo sem Órgãos?. Deleuze e Guattari começam a
investigação desse conceito ao tratar de corpos que são levados para além dos limites
(moralmente) prescritos.612 Como diz Anne Sauvagnargues, “o corpo sem órgãos é útil
quando se pensa sobre a corporalidade e a morfogênese dos corpos sem limitá-los a algum
princípio unificador externo, como a alma, a forma, ou a unidade do organismo” e ele realiza
isso “se localizando no nível da matéria que ainda não está enformada e que se encontra no
plano das forças.”613 Considerando que temos um interesse em compreender o processo de
constituição dos corpos por meio de sua experimentação, esse conceito se torna um local

609
O mote inicial para encarar a ética deleuziana (em seus trabalhos sozinhos ou com Guattari) sob esse ponto
de vista veio de um artigo de Mariana de Toledo Barbosa sobre a importância da noção de avaliação para a ética
desse pensador. No caso a fórmula da autora para o aspecto ético do pensamento deleuziano é a seguinte: “um
corpo que avalia e experimenta”. Se o nosso trabalho estava caminhando para a importância da noção de
experimentação foi apenas a partir do contato com a fórmula de Barbosa que uma luz se acendeu e permitiu que
a questão ganhasse mais dimensão. Cf. Barbosa, Mariana de Toledo. Regras facultativas ou variáveis: a
regulação da vida na ética deleuziana. Trágica: Estudos sobre Nietzsche, Rio de Janeiro, v. 8, p. 54-72, 2015
610
Falaremos na próxima parte da tese sobre a possibilidade de “não exercer”, “não agir”.
611
A essa altura isso não é surpreendente, mas é preciso deixar claro que não nos interessa aqui entrar na
discussão sobre as variações que esse conceito (CsO) sofre entre O anti-Édipo e Mil Platôs. O que queremos é
um conceito que nos ajude a pensar o ponto de vista dos corpos sobre a sua perseverança. É justamente por conta
do conceito de experimentação presente nessa parte do livro que nos interessamos pelo CsO. Também é
importante marcar de que modo nos diferenciamos de outras leituras sobre esse conceito. Ao contrário de Anne
Sauvagnargues que enxerga nele
612
“Cada vez que o desejo é traído, amaldiçoado, arrancado de seu campo de imanência, é porque há um padre
ali.” (Deleuze, Gilles; Guattari, Félix. Mil Platôs - vol. 3. São Paulo: Editora 34, 2012a. p. 18)
613
Sauvagnargues, Anne. Deleuze and art. Londres: Bloomsbury, 2013. p. 57 (tradução minha). Como diz a
autora, podemos, portanto encontrar duas operações ocorrendo nesse conceito: “[1] tratar os modos de
individuação corporal anterior a sua organização centralizada, salvando a hipostasiação de um centro
organizador (…). [2] Por outro lado, o corpo sem órgãos tem a ver com o pensamento sobre a junção entre arte e
o corpo”. (Idem, ibidem, p. 56, tradução minha) Como ficará claro na sequência, privilegiaremos o primeiro
aspecto desse conceito, ainda que, obviamente, eles se dêem conjuntamente.
239

privilegiado para dar sequência à nossa investigação. Dessa forma, o corpo sem Órgãos
(CsO) que os autores buscam é, como os próprios dizem, “um exercício, uma experimentação
inevitável (…). Não é uma noção, um conceito, mas antes uma prática, um conjunto de
práticas. Ao Corpo sem Órgãos, não se chega, não se pode chegar, nunca se acaba de chegar a
ele, ele é um limite.”614
É por isso que os corpos que são descritos em seguida nos parecem estranhos, doentios.
Não é um mau uso do corpo, pelo contrário, é o uso do corpo possível:

Mas por que este desfile lúgubre de corpos costurados, vitrificados, catatonizados, aspirados, posto
que o CsO é também pleno de alegria, de êxtase, de dança? Então, por que estes exemplos? Por que é
necessário passar por eles? Corpos esvaziados em lugar de plenos. Que aconteceu? Você agiu com a
prudência necessária? Não digo sabedoria, mas prudência como dose, como regra imanente à
experimentação: injeções de prudência. Muitos são derrotados nesta batalha.615

A experimentação que está implicada nesse conceito é portanto uma que caminha para ir
além das determinações puramente morais dos usos do corpo.

Será tão triste e perigoso não mais suportar os olhos para ver, os pulmões para respirar, a boca para
engolir, a língua para falar, o cérebro para pensar, o ânus e a laringe, a cabeça e as pernas? Por que não
caminhar com a cabeça, cantar com o sinus, ver com a pele, respirar com o ventre, Coisa simples,
Entidade, Corpo pleno, Viagem imóvel, Anorexia, Visão cutânea, Yoga, Krishna, Love,
Experimentação. Onde a psicanálise diz: Pare, reencontre o seu eu, seria preciso dizer: vamos mais
longe, não encontramos ainda nosso CsO, não desfizemos ainda suficientemente nosso eu. Substituir a
anamnese pelo esquecimento, a interpretação pela experimentação.616

É por isso que o masoquista nos soará sempre tão estranho. Enquanto continuarmos
associando, argumentam Deleuze e Guattari, sua prática como uma busca de dor ou prazer,
estaremos simplesmente reduzindo o que está em jogo nele.617 Temos aí uma tentativa de

614
Idem, ibidem, pp. 11-12
615
Idem, ibidem, p. 13
616
Idem, ibidem, p. 13
617
“É falso dizer que o masoquista busca a dor, mas não menos falso é dizer que ele busca o prazer de uma
forma particularmente suspensiva ou desviada.” (Idem, ibidem, p. 15) Mais adiante o sentido do masoquismo
ganha mais precisão: “(…) o sofrimento do masoquista é o preço que ele deve pagar, não para atingir o prazer,
mas para desligar o pseudoliame do desejo com o prazer como medida extrínseca. O prazer não é de forma
alguma o que só poderia ser atingido pelo desvio do sofrimento, mas o que deve ser postergado ao máximo,
porque seu advento interrompe o processo contínuo do desejo positivo. Acontece que existe uma alegria
imanente ao desejo, como se ele se preenchesse de si mesmo e de suas contemplações, fato que não implica falta
alguma, impossibilidade alguma, que não se equipara e que também não se mede pelo prazer, posto que é esta
alegria que distribuirá as intensidades de prazer e impedirá que sejam penetradas de angústia, de vergonha, de
culpa. Em suma, o masoquista serve-se do sofrimento como de um meio para constituir um corpo sem órgãos e
depreender um plano de consistência do desejo. Que existam outros meios, outros procedimentos diferentes do
240

descobrir pela via da experimentação quais são os limites da sua capacidade. Busca-se levar
esse movimento até um ponto em que se ameaça romper os limites desse corpo. Mas se esses
tipos de corpos nos parecem perigosos (e não deixam de ser) é porque nós fomos habituados a
não explorar as capacidades que temos de afetar e ser afetado.
O que Deleuze e Guattari estão chamando de CsO pode ser entendido, portanto, como o
campo composto pelas capacidades de um corpo,

Por isto tratamos o CsO como o ovo pleno anterior à extensão do organismo e à organização dos
órgãos, antes da formação dos estratos, o ovo intenso que se define por eixos e vetores, gradientes e
limiares, tendências dinâmicas com mutação de energia, movimentos cinemáticos com deslocamento
de grupos, migrações, tudo isto independentemente das formas acessórias, pois os órgãos somente
aparecem e funcionam aqui como intensidades puras.618

Um corpo, como já vimos, é sempre mais do que a simples soma das suas partes. Há um
elemento intensivo que complementa o seu aspecto extensivo. Tudo o que um corpo faz está
sempre condicionado pelas suas próprias capacidades. Precisamos tomar cuidado com esse
termo, porém, já que estas capacidades não são coisas que existem como uma “potência
prévia” que se pode ativar ou desativar segundo os interesses em questão.619 O corpo tem
determinadas capacidades na medida em que age. Essas capacidades são um limite do corpo
de ordem intensiva. De acordo com Deleuze e Guattari, “ele é a matéria intensa e não
formada, não estratificada, a matriz intensiva, a intensidade = O, mas nada há de negativo
neste zero, não existem intensidades negativas nem contrárias. Matéria igual a energia.
Produção do real como grandeza intensiva a partir do zero.”620 Se a ação de um corpo é
sempre um exercício das suas capacidades, o CsO, esse ponto em que “nunca se acaba de
chegar a ele”, é “o meio de intensidade pura, o spatium e não a extensio, a intensidade Zero
como princípio de produção”621 — ele é o próprio corpo enquanto conjunto coordenado de
capacidades. Mas esse conjunto de capacidades ao mesmo tempo que “é contemporâneo por
excelência, carrega-se sempre consigo, como seu próprio meio de experimentação, seu meio
associado”,622 não é algo que existe de forma definitiva e determinada. Se “o CsO não existe

masoquismo e certamente melhores é outra questão; o fato é que este procedimento convém a alguns.” (Idem,
ibidem, p. 19)
618
Idem, ibidem, p. 16
619
“o CsO não é uma cena, um lugar, nem mesmo um suporte onde aconteceria algo. Nada a ver com um
fantasma, nada a interpretar. O CsO faz passar intensidades, ele as produz e as distribui num spatium ele mesmo
intensivo, não extenso.” (Idem, ibidem, p. 16)
620
Idem, ibidem, p. 16
621
Idem, ibidem, p. 31
622
Idem, ibidem.
241

‘antes’ do organismo, ele é adjacente”, então, ele “não pára de se fazer.”623 É justamente por
meio da experimentação que o CsO não para de se fazer a partir da exploração das suas
intensidades, das capacidades de afetar e ser afetado.
A experimentação acaba não sendo mais, simplesmente, a atualização de uma potência já
pronta. Ela é o próprio ato de delimitação de uma intensidade, de uma capacidade a partir do
próprio tatear. Isso fica bastante claro no exemplo que é dado nesse platô. Os autores
discorrem nesse ponto sobre uma compilação japonesa de tratados taoístas chineses:

Vê-se aí a formação de um circuito de intensidades entre a energia feminina e a energia masculina, a


mulher desempenhando o papel de força instintiva ou inata (Yin), mas que o homem furta ou que se
transmite ao homem, de tal maneira que a força transmitida do homem (Yang) aconteça por sua vez e
torne-se tanto mais inata: aumento das potências. A condição desta circulação e desta multiplicação é
que o homem não ejacule. Não se trata de sentir o desejo como falta interior, nem de retardar o prazer
para produzir um tipo de mais-valia exteriorizável, mas, ao contrário, de constituir um corpo sem
órgãos intensivo, Tao, um campo de imanência onde nada falta ao desejo e que, assim, não mais se
relaciona com critério algum exterior ou transcendente. É verdade que todo circuito pode ser
rebaixado para fins de procriação (ejacular no bom momento das energias); e é assim que o
confucionismo o entende. Mas isto é verdade apenas para uma face deste agenciamento de desejo, a
face voltada em direção aos estratos, organismos, Estado, família... Não é verdade para a outra face, a
face Tao de desestratificação que traça um plano de consistência próprio ao desejo ele mesmo.624

O que se pode observar nesse exemplo é o adiamento da ejaculação como a construção de


um limite para a experiência do corpo. Um tatear ao limite infinitesimal que adia justamente o
momento de corte da experiência que é o gozo. As capacidades são, portanto, determinadas
no momento mesmo da sua experimentação.
Mas se esse tipo de ação é valorizada isso se dá pois de alguma forma nossos corpos são
previamente limitados de uma maneira que não é natural. O movimento de constituição de um
CsO, delimitação máxima das capacidades de um corpo, será, portanto, sempre
contraefetuado pelo movimento de constituição de um organismo.

O organismo não é o corpo, o CsO, mas um estrato sobre o CsO, quer dizer um fenômeno de
acumulação, de coagulação, de sedimentação que lhe impõe formas, funções, ligações, organizações
dominantes e hierarquizadas, transcendências organizadas para extrair um trabalho útil. Os estratos
são liames, pinças. “Atem-me se vocês quiserem”. Nós não paramos de ser estratificados.625

623
Idem, ibidem.
624
Idem, ibidem, p. 22
625
Idem, ibidem, p. 24. Nas palavras de Sauvagnargues, “o sujeito, assim como o corpo, é formado na realidade
por forças múltiplas em devir e que não podem ser concebidas enquanto indivíduos pré-formados por um
princípio transcendente que é representado pela alma, consciência, sujeito transcendental ou uma forma
orgânica.” (Sauvagnargues, Anne, op. ci., p. 57. tradução minha)
242

Precisamos tomar cuidado nesse ponto, pois há uma certa ambiguidade que Deleuze e
Guattari não se preocupam muito em desfazer. Ao longo do capítulo pode parecer que há uma
hierarquia de valores entre o CsO e o organismo. Como se constituir o nosso CsO fosse o
movimento de libertação da opressão do organismo. É verdade, que em certo sentido esse
movimento procede, mas precisamos lembrar em que medida essa valorização da
experimentação tem a ver com questões mais circunstanciais que ontológicas. Se esse
movimento que estamos acompanhando aqui é apenas uma mudança de ponto de vista sobre o
que discutimos ao tratar do ritornelo, então essa “estratificação” não é de todo ruim, pois é
nesse movimento que se adquire um mínimo de endoconsistência.
O que precisamos ficar atento, portanto, são os dois tipos de organismos que
encontraremos (há também uma multiplicação com relação aos sentidos do CsO). Por um
lado, o organismo é fruto de uma delimitação formal que não necessariamente leva em conta a
realidade das experiências. O problema dessa delimitação será tanto maior na medida em que
ela bloquear arbitrariamente as capacidades de um corpo:

A superfície de organismo, o ângulo de significância e de interpretação, o ponto de subjetivação ou de


sujeição. Você será organizado, você será um organismo, articulará seu corpo — senão você será um
depravado. Você será significante e significado, intérprete e interpretado — senão será desviante.
Você será sujeito e, como tal, fixado, sujeito de enunciação rebatido sobre um sujeito de enunciado —
senão você será apenas um vagabundo.626

Nesse sentido o movimento de construção de um CsO (exploração dos limites das


capacidades) é um “combate perpétuo e violento entre o plano de consistência, que libera o
CsO, atravessa e desfaz todos os estratos, e as superfícies de estratificação que o bloqueiam
ou rebaixam.”627 O movimento de experimentação é, nesse caso, um movimento de destruição
de fronteiras formais para as suas capacidades rumo à determinação real de seus limites.
Movimento do corpo moral para o corpo real.
Mas isso não é tudo, pois CsO e organismo também se encontram no avesso desse
movimento. Numa descrição mais neutra (antes de entrarmos no seu avesso), podemos dizer
que o CsO é o movimento para a experimentação e o organismo é o movimento de contenção
arbitrária que limita. Daí os organismos, as funções determinantes e imobilizadoras,
acabarem sempre estando num certo jogo contra essa tendência para a experiência pura (que,

626
Idem, ibidem, p. 25
627
Idem, ibidem.
243

não deixa, por outro lado, de, em sua realização absoluta, caminhar para uma linha de
morte).628 Assim, “ao conjunto dos estratos, o CsO opõe a desarticulação (ou as n
articulações) como propriedade do plano de consistência, a experimentação como operação
sobre este plano”629
O lugar que a experimentação tem como prática ganha mais contornos mais claros quando
entendemos que ela não é simplesmente um movimento que busca romper delimitações. Ela é
justamente o contrário, é a tentativa de constituir limites reais.

O que quer dizer desarticular, parar de ser um organismo? Como dizer a que ponto é isto simples, e
que nós o fazemos todos os dias. Com que prudência necessária, a arte das doses, e o perigo, a
overdose. Não se faz a coisa com pancadas de martelo, mas com uma lima muito fina. Inventam-se
autodestruições que não se confundem com a pulsão de morte. Desfazer o organismo nunca foi matar-
se, mas abrir o corpo a conexões que supõem todo um agenciamento, circuitos, conjunções,
superposições e limiares, passagens e distribuições de intensidade, territórios e desterritorializações
medidas à maneira de um agrimensor. No limite, desfazer o organismo não é mais difícil do que
desfazer os outros estratos, significância ou subjetivação. A significância cola na alma assim como o
organismo cola no corpo e dela também não é fácil desfazer-se. E quanto ao sujeito, como fazer para
nos descolar dos pontos de subjetivação que nos fixam, que nos pregam numa realidade dominante?
Arrancar a consciência do sujeito para fazer dela um meio de exploração, arrancar o inconsciente da
significância e da interpretação para fazer dele uma verdadeira produção, não é seguramente nem mais
nem menos difícil do que arrancar o corpo do organismo. A prudência é a arte comum dos três; e se
acontece que se tangencie a morte ao se desfazer do organismo, tangencia-se o falso, o ilusório, o
alucinatório, a morte psíquica ao se furtar à significância e à sujeição.630

Há toda uma arte da prudência envolvida nesse movimento que não permite que o
tomemos por uma saída de si sem critérios. Como mencionamos, a experimentação também
comporta uma dimensão de avaliação. Nesse sentido, ela se localiza entre o organismo e o
CsO. Ela é certamente uma tentativa de dissolver as fronteiras meramente formais631 (o
organismo vazio) para poder experimentar as capacidades reais de um corpo (o movimento
para o seu CsO). Mas, por outro lado, esse movimento de experimentação nunca pode ir longe
demais, já que a experiência desenfreada pode sempre levar um corpo ao se próprio
aniquilamento — algo que não é de interesse desse corpo. Ele precisa sempre resguardar uma
fronteira mínima que garanta a sua endoconsistência (um organismo real). Só assim que se
pode tentar evitar romper o fio de continuidade que constitui seu corpo (rompimento que leva
a um CsO morto). É preciso de um mínimo de organização (a referência, o primeiro

628
É a desterritorialização cósmica que reencontramos aqui.
629
Idem, ibidem p. 25
630
Idem, ibidem, pp. 25-26
631
Morais, na maior parte dos casos.
244

movimento do ritornelo), pois é ela que permite experimentar e testar os pontos ideias de
desestratificação. A prudência envolvida na experimentação exige um certo pathos da
paciência para que não se tome passos em falso.632

É necessário guardar o suficiente do organismo para que ele se recomponha a cada aurora; pequenas
provisões de significância e de interpretação, é também necessário conservar, inclusive para opô-las a
seu próprio sistema, quando as circunstâncias o exigem, quando as coisas, as pessoas, inclusive as
situações nos obrigam; e pequenas rações de subjetividade, é preciso conservar suficientemente para
poder responder à realidade dominante. Imitem os estratos. Não se atinge o CsO e seu plano de
consistência desestratificando grosseiramente.633

É a segunda possibilidade do CsO, que essa prudência procura evitar. Mas este não é o
único perigo que pode decorrer da experimentação. Se estamos concebendo ela como criação
ou transformação das capacidades de um corpo (determinação dos seus limites) a partir da sua
realização, é possível especular que “existe um CsO que se opõe à organização dos órgãos
chamada organismo, mas há também um CsO do organismo, pertencendo a este estrato.”634
Os estratos, como vimos, são as coagulações das capacidades, suas delimitações arbitrárias.
Ora, assim como um corpo pode entrar num movimento patológico em que a sua própria
experimentação o desfaça, é possível que um coágulo (que no momento em que é
estratificado, se comporta como uma parte de um corpo), seja o agente de uma experiência.
Nesse momento ele deixa de se coordenar com as outras partes e se torna um tecido
cancerígeno: “basta uma velocidade de sedimentação precipitada num estrato para que ele
perca sua figura e suas articulações, e forme seu tumor específico nele mesmo, ou em tal
formação, em tal aparelho.”635 Quanto, portanto,

632
“A arte dessa prudência pode ser vista aqui: Liberem-no com um gesto demasiado violento, façam saltar os
estratos sem prudência e vocês mesmos se matarão, encravados num buraco negro, ou mesmo envolvidos numa
catástrofe, ao invés de traçar o plano. O pior não é permanecer estratificado — organizado, significado, sujeitado
— mas precipitar os estratos numa queda suicida ou demente, que os faz recair sobre nós, mais pesados do que
nunca. Eis então o que seria necessário fazer: instalar-se sobre um estrato, experimentar as oportunidades que ele
nos oferece, buscar aí um lugar favorável, eventuais movimentos de desterritorialização, linhas de fuga
possíveis, vivenciá-las, assegurar aqui e ali conjunções de fluxos, experimentar segmento por segmento dos
contínuos de intensidades, ter sempre um pequeno pedaço de uma nova terra. É seguindo uma relação meticulosa
com os estratos que se consegue liberar as linhas de fuga, fazer passar e fugir os fluxos conjugados, desprender
intensidades contínuas para um CsO. Conectar, conjugar, continuar: todo um “diagrama” contra os programas
ainda significantes e subjetivos. Estamos numa formação social; ver primeiramente como ela é estratificada para
nós, em nós, no lugar onde estamos; ir dos estratos ao agenciamento mais profundo em que estamos envolvidos;
fazer com que o agenciamento oscile delicadamente, fazê-lo passar do lado do plano de consistência. É somente
aí que o CsO se revela pelo que ele é, conexão de desejos, conjunção de fluxos, continuum de intensidades. Você
terá construído sua pequena máquina privada, pronta, segundo as circunstâncias, para ramificar-se em outras
máquinas coletivas.” (Idem, ibidem, p. 27)
633
Idem, ibidem, p. 26
634
Idem, ibidem, p. 29
635
Idem, ibidem.
245

uma célula torna-se cancerosa, louca, prolifera e perde sua figura, apodera-se de tudo; é necessário que
o organismo a reconduza à sua regra ou a reestratifique, não somente para sobreviver, mas também
para que seja possível uma fuga para fora do organismo, uma fabricação do “outro” CsO sobre o plano
de consistência.636

Identificamos, então, três gêneros de CsO. O primeiro é o CsO pleno, que é o conjunto
coordenado das capacidades de um corpo (é a consistência de um corpo no campo intensivo)
na medida em que ele age. É um corpo que não deixa de se mover e que por isso nunca de
fato chega ao termo. Pois esse termo seria já o CsO vazio, o rompimento da sua continuidade
devido a um movimento de desestratificação tão grosseiro que o corpo perde o seu limite de
interioridade/exterioridade. Há um terceiro tipo, que acabamos de tratar: é o CsO canceroso
que emerge a partir da proliferação descontrolada de um estrato do organismo. São
“aterrorizadoras caricaturas do plano de consistência”637
Mas essa não é a única maneira que podemos enumerar os CsO. Como podemos nos
lembrar, no início do platô, há inúmeros tipos de corpos (o corpo esquizofrênico, o corpo
drogado, o corpo masoquista etc.). Se cada corpo tem um conjunto de capacidades
coordenadas então pode-se dizer que há infindáveis CsO. Saímos um pouco da perspectiva
“de dentro” dos corpos e nos posicionamos ao nível da pluralidade de Corpos sem Órgãos.
Daí a pergunta que Deleuze e Guattari se fazem: “existe um conjunto de todos os CsO? Mas
se o CsO já é um limite, o que seria necessário dizer do conjunto de todos os CsO?”638
Um CsO é o limite das capacidades de um corpo que são constituídos por meio da
experimentação. Bem, se ele for alguma coisa ele só pode ser a partir das experimentações
concretas dos corpos e da maneira como esses limites de interioridade/exterioridade se
relacionam entre si. É com isso em mente que os autores se perguntam:

como chegar ao plano de consistência? Como cozer junto, como esfriar junto, como reunir todos os
CsO? Se é possível, isto também só se fará conjugando as intensidades produzidas sobre cada CsO,
fazendo um continuum de todas as continuidades intensivas. São necessários agenciamentos para
fabricar cada CsO, seria necessário uma grande Máquina abstrata para construir o plano de
consistência? Bateson denomina platôs as regiões de intensidade contínua, que são constituídas de tal
maneira que não se deixam interromper por uma terminação exterior, como também não se deixam ir
em direção a um ponto culminante: são assim certos processos sexuais ou agressivos na cultura
balinense. Um platô é um pedaço de imanência. Cada CsO é feito de platôs. Cada CsO é ele mesmo

636
Idem, ibidem.
637
Idem, ibidem, p. 30
638
Idem, ibidem, p. 17
246

um platô, que comunica com os outros platôs sobre o plano de consistência. É um componente de
passagem.639

A relação entre cada CsO é dessa forma uma relação entre as experimentações: podemos
chamar essas relações concretas entre os diversos limites de experiência pura. Não falo aqui
de uma experiência neutra ou formal, pelo contrário. Ela é justamente a conjunção das
intensidades, o local (não extensivo) em que todas as diferenças são internas. E como cada
CsO, ele também não é algo que existe previamente ou que tem forma fixa,

ele será construído pedaço a pedaço, lugares, condições, técnicas, não se deixando reduzir uns aos
outros. A questão seria antes saber se os pedaços podem se ligar e a que preço. Há forçosamente
cruzamentos monstruosos. O plano de consistência seria, então, o conjunto de todos os CsO, pura
multiplicidade de imanência, da qual um pedaço pode ser chinês, um outro americano, um outro
medieval, um outro pequeno-perverso, mas num movimento de desterritorialização generalizada onde
cada um pega e faz o que pode, segundo seus gostos, que ele teria conseguido abstrair de um Eu,
segundo uma política ou uma estratégia que se teria conseguido abstrair de tal ou qual formação,
segundo tal procedimento que seria abstraído de sua origem.640

Diante desse movimento cósmico, fica claro que não se trata de uma mera conservação
que está em jogo. A experimentação de cada corpo ocorre sempre diante de outrem (esse que
é sempre um aliado/inimigo em potencial, como a noção ameríndia de inimigo aponta)641 —
outrem que é sempre outros corpos, mas também a alteridade que é qualquer exterioridade. E
esse outrem está sempre pondo em perigo o corpo em questão, pois, a noção de
experimentação é também o movimento na endoconsistência que aponta em direção ao seu
fora, que tenta medir em que ponto o limite interioridade/exterioridade realmente se localiza.
Há uma ameaça que paira constantemente a continuidade desse corpo que experimenta, pois
esse limite é justamente o que se produz com outrem e a tentativa de, nessa interação, manter
não uma identidade, mas uma continuidade.642 É por essa razão que esse movimento que
estamos descrevendo não pode ser tomado como simplesmente ético. O que está em jogo aqui
é uma disputa na própria experimentação que faz com que o individual se converta em
transindividual. Desse transindividual é possível reimaginar a esfera política de outra forma:

639
Idem, ibidem, p. 23
640
Idem, ibidem, p. 22
641
Cf. Saldanha, op. cit.,
642
O CsO é desejo, é ele e por ele que se deseja. Não somente porque ele é o plano de consistência ou o campo
de imanência do desejo; mas inclusive quando cai no vazio da desestratificação brutal, ou bem na proliferação do
estrato canceroso, ele permanece desejo. O desejo vai até aí: às vezes desejar seu próprio aniquilamento, às vezes
desejar aquilo que tem o poder de aniquilar. Desejo de dinheiro, desejo de exército, de polícia e de Estado,
desejo-fascista, inclusive o fascismo é desejo. Há desejo toda vez que há constituição de um CsO numa relação
ou em outra. (Deleuze, Gilles; Guattari, Félix, op. cit., p. 32)
247

Não é um problema de ideologia, mas de pura matéria, fenômeno de matéria física, biológica,
psíquica, social ou cósmica. Por isto o problema material de uma esquizoanálise é o de saber se nós
possuímos os meios de realizar a seleção, de separar o CsO de seus duplos: corpos vítreos vazios,
corpos cancerosos, totalitários e fascistas. A prova do desejo: não denunciar os falsos desejos, mas, no
desejo, distinguir o que remete à proliferação de estratos, ou bem à desestratificação demasiada
violenta, e o que remete à construção do plano de consistência (vigiar inclusive em nós mesmos o
fascista, e também o suicida e o demente.). O plano de consistência não é simplesmente o que é
constituído por todos os CsO. Há os que ele rejeita, é ele que faz a escolha.643

Construir um plano de consistência é esse movimento de experimentar elevado a uma


escala política. E diante desse ponto certos impasses se abrem. Como evitar um determinismo
absoluto? Se nada faz diferença, qualquer impulso para preservação é automaticamente
eliminado como indiferente. Somos jogados num desespero onde nenhuma saída se vislumbra
para qualquer impasse que se apresentar.644 Por outro lado, como afastar tipo de ação que se
funde num voluntarismo? Se o determinismo peca pela ausência de possibilidades, o
voluntarismo peca pelo excesso. Tudo é possível, mas para isso seríamos obrigados a supor
uma espécie de sujeito mágico, um sujeito dotado de livre-arbítrio, onde basta querer para
poder.645 Ficamos sem saída. Queremos agir, mas precisamos evitar recair em uma dessas
duas opções que não cessam de reaparecer no nosso espectro político.

643
Idem, ibidem, p. 32
644
Eles podem até se resolver, mas isso não depende de nós.
645
Em um movimento que nos obriga sempre a evitar tratar a natureza desse “querer”.
248

II.6.3. O afeto como grau-zero

Uma demora pela noção de “afeto” se mostra como fundamental para compreender em
que sentido se põe a dinâmica da patologia que apontamos na primeira parte. Ela nos permitiu
ver qual é a situação de “normalidade” de um corpo/indivíduo e que uma outra forma de
articulação do tempo é possível646. Nós já falamos: afeto e desejo têm relação com a ideia de
transformação, mas uma transformação sem fim — no duplo sentido, ou seja, tanto sem
qualquer finalidade prévia, como sem qualquer ponto final. Os conceitos que trabalhamos a
partir de Deleuze e Guattari servem justamente para conceber com mais precisão os
movimentos, as transformações pelas quais os corpos passam. Os afetos são justamente a
medida dessa transformação, a experiência do tipo de transformação que se está passando. A
alegria, que tanto buscamos, é a experiência de uma mudança em nossos corpos que amplifica
a nossa capacidade de agir, nos torna mais aptos a lidar com outrem. A tristeza, por outro
lado, é o inverso, é justamente o encolhimento nas nossas capacidades de reagir a qualquer
alteridade que nos ameace. Os afetos, podemos resumir, são elementos que permitem a um
corpo se orientar, por serem a expressão das transformações por quais um corpo passa. É por
meio deles que se avalia os limites de variação de um corpo sem que ele se transforme em
outro — eles permitem que nos orientemos no tempo sem que para isso precisemos realizar
projeções. O desejo, como falamos, é o próprio movimento de auto-preservação-dinâmica
desses processos de transformação, de um fio de continuidade — e é apenas isso que
indivíduos são. Não uma casa onde se instala a gloriosa liberdade, mas simples circuitos de
feedbacks positivos e negativos: máquinas.
Os corpos se mostraram como equilíbrio dinâmico sob um fundo caótico. Conceber o real
como esse fundo caótico, essas transformações inconstantes, nos obriga a aceitar que a
natureza dos corpos, seus movimentos de preservação e consolidação não podem ser pensados
a partir de qualquer tipo de imobilidade — é preciso aceitar e abraçar seu caráter movente.
Foi para responder a esse problema que procuramos delimitar os corpos a partir das repetições
e estabilizações que surgem do próprio caos, estabilizações que populam o real com recortes
que funcionam como perspectivas (há uma perspectivação da realidade). Qualquer ideia de

646
Sobre a rearticulação do tempo na obra de Deleuze cf. Zourabichvili, François. “Deleuze. Une philosophie de
l’événement” in: Zourabichvili, François; Sauvagnargues, Anne; Marrati, Paola. La philosophie de Deleuze.
Paris: PUF, 2011. pp. 69-88
249

saúde temporal que pretendemos pensar, portanto, só pode surgir a partir dessa ideia dos
corpos como máquinas, como equilíbrios dinâmicos em um meio instável.
Mas apesar disso, é sempre bom lembrar que apesar dessa outra maneira de articular a
nossa experiência do tempo — como uma transformação sem fim —, ou seja, se temos um
problema, é porque de fato o articulamos de outra forma. É como se essa capacidade de agir
sem fim tivesse sido capturada por outros mecanismos (descritos na primeira parte desse
trabalho) e nos tornássemos escravos de outro modo de vida. É por isso que uma outra
pergunta aparece nesse momento: será possível operar/manipular essas estabilizações de
modo que possamos fugir dessa articulação temporal patológica? Como é possível inscrever
algo (hábitos?) no corpo da natureza? Viu-se, a partir do que discutimos, que a ideia de um
núcleo duro da subjetividade, ou uma subjetividade dada e pronta (o humano — ou qualquer
outra espécie) nem faz sentido, já que os recortes ontológicos são sempre uma determinação
de perspectiva que “cria” mundo a partir dos recortes de interioridade/exterioridade. Os
corpos/indivíduos podem, portanto, vir em múltiplas escalas e sua consideração sempre
depende do foco em questão. É por essa razão que corpo e perspectiva são entrelaçados, o que
se considera como corpo tem sempre uma dependência da perspectiva em questão, da
configuração específica de realidade que se estabiliza e a partir de onde ou que corpo se
estabiliza.647
Mas há um outro elemento nesses corpos, que nos introduz na esfera prática: trata-se do
movimento de experimentação (seja uma experiência da interioridade, da exterioridade ou
mesmo dessa distância/limite) que os corpos realizam. Essa prática dos corpos é propriamente
uma espécie de prática-de-si648 que determina os limites possíveis desse corpo, que investiga,
como já elaboramos acima, quais são os limites da nossa ação. E não é essa a questão que
queremos entender? A pergunta que fazemos agora, porém, não é mais O que fazer?. O que
interessa é como fazer?.

647
Na medida em que analiso um time de futebol, os jogadores desse time não são dispostos (no plano
ontológico) como indivíduos autônomos, mas como um corpo ritmado (um agenciamento) que determina uma
interioridade coordenada que se põe contra um outrem (no caso, desde o outro time, ao campo, à torcida).
648
Lembrando que, apesar da expressão, estamos pensando essa prática em um contexto mais espinosano que
foucaultiano. Além disso é preciso marcar que esse “si” não tem referência a uma pessoa qualquer, mas a
qualquer “individualidade”, humana, não-humana, viva, não-viva etc
250

III. O QUE PODE A FILOSOFIA?

É nas épocas de grande perigo que aparecem os filósofos —


no momento em que a roda gira com velocidade cada vez
maior — eles e a arte ocupam o lugar do mito que está
desaparecendo. Contudo eles surgem muito adiantados, já
que a atenção de seus contemporâneos só muito lentamente
se volta para eles. Um povo que toma consciência dos
perigos engendra o gênio.
Friedrich Nietzsche, O livro do filósofo

Usou precisamente desmarginar. Foi naquela ocasião que


ela recorreu pela primeira vez àquele verbo, se agitou para
explicar seu sentido, queria que eu entendesse bem o que era
a desmarginação e quanto aquilo a aterrorizava. Apertou
ainda mais forte minha mão, resfolegando. Disse que o
contorno de coisas e pessoas era delicado, que se
desmanchava como fio de algodão. Murmurou que, para ela,
era assim desde sempre, uma coisa se desmarginava e se
precipitava sobre outra, era tudo uma dissolução de matérias
heterogêneas, uma confusão, uma mistura. Exclamou que
sempre se esforçara para se convencer de que a vida tinha
margens robustas, porque sabia desde pequena que não era
assim — não era assim de jeito nenhum —, e por isso não
conseguia confiar em sua resistência a choques e solavancos.
Ao contrário do que fizera até pouco antes, começou a
escandir frases excitadas, abundantes, ora as misturando
com um léxico dialetal, ora recorrendo às infindáveis
leituras que fizera quando menina. Balbuciou que nunca
deveria se distrair, quando se distraía as coisas reais — que
a aterrorizavam com suas contorções violentas e dolorosas
— se sobrepunham às falsas, que a acalmavam com sua
251

compostura física e moral, e ela submergia numa realidade


empastada, viscosa, sem conseguir dar contornos nítidos às
sensações. Uma emoção tátil se diluía em visual, a visual se
diluía em olfativa, ah, Lenu, o que é o mundo real, a gente
viu agora mesmo, nada, nada que se possa dizer
definitivamente: é assim. De modo que, se ela não estivesse
atenta, se não cuidasse das margens, tudo se desfazia em
grumos sanguíneos de menstruação, em pólipos
sarcomatosos, em fragmentos de fibra amarelada.
Elena Ferrante, História da menina perdida

Diante do diagnóstico de uma destemporalização produzida pela ausência de futuro, a


questão que nos interessa investigar é como conseguir produzir bons hábitos, hábitos novos
para que consigamos superar essa estagnação que nos domina. Vimos por meio do
Canguilhem que a capacidade de nos transformarmos era essencial para uma vida saudável.
Se, por um lado, a orientação em direção a um futuro possibilitou momentaneamente que
aumentássemos as nossas capacidades de agir — trazendo junto a si toda uma série de
evoluções sociotécnicas que efetivamente expandiram nossos limites —, pudemos também
observar que essa temporalidade levada aos limites acabou nos conduzindo justamente a uma
espécie de estranho imobilismo em que só conseguimos repetir o que já temos. O que vimos
na segunda parte desse trabalho, porém, é que uma investigação sobre a nossa composição
afetiva, isto é, a maneira como os corpos são constituídos e se desenvolvem sem qualquer
direção, nos mostra que um outro tipo de temporalidade é possível.
Após essa compreensão do funcionamento dos afetos e do desejo podemos redimensionar
o movimento inicial de diagnóstico que realizamos. É preciso lembrar, como Espinosa aponta
em sua Ética, que um dos primeiros movimentos para a saída da tristeza se dá pelo
reconhecimento daquela situação como triste (tristeza entendida aqui como redução da
potência de agir). Ora, esse reconhecimento gera um afeto alegre pelo fato de que a
experiência da tristeza ao ser reconhecida como tal — como um afeto triste — aumenta a
nossa capacidade de agir, pois temos mais capacidades do que antes desse reconhecimento.
Antes estávamos tristes mas não sabíamos, após o reconhecimento podemos até continuar
tristes, mas ao menos sabemos que estamos assim. Esse reconhecimento pode ocorrer pois
mesmo um corpo triste procura persistir, e nesse movimento de persistência ele não deixa de
experimentar, de tatear e avaliar as suas próprias condições para que as coisas possam
252

melhorar, ainda que ele possa nem ter plena consciência de que está triste — inclusive, a
tristeza muitas vezes implica justamente essa confusão em que não conseguimos distinguir
bem os nossos estados atuais. Mas independente da nossa clareza de espírito, esse movimento
de reconhecimento pode ocorrer quando essa experimentação consegue identificar o que está
acontecendo nesse corpo (no caso, o fato de que ele está triste). Um estalo acontece e o que
fazíamos (ou não fazíamos) de repente faz sentido quando nos deparamos com algo que
aponta para a nossa tristeza e que nos força a reorganizar a imagem que tínhamos do nosso
estado anterior — produzindo uma quebra com ele.649 Se esse movimento certamente não
esgota completamente a tristeza — e nem sempre é garantido que vamos encontrar algo que
dê esse estalo e muito menos que a partir desse estalo vamos conseguir eventualmente superar
a tristeza —, ainda assim, esse processo de reconhecimento é um passo fundamental para
melhorarmos nossa situação. O que podemos ver agora é que a tentativa de descrever a
situação atual, a patologia temporal do cancelamento do futuro, pode ser visto como um
esforço de tatear e entender os contornos reais da nossa situação. Algo nos incomodava, algo
que não conseguíamos identificar muito bem e que apenas o encontro ao acaso com certos
textos acabou tornando visível o que vivemos.650 A partir desses encontros começamos a
tentar produzir tanto uma boa imagem do que experimentamos651 como também identificar o
que levou a essa situação.652 O ponto a se destacar, porém, é que essa descrição da estagnação
já é ela mesma um movimento que pode nos encaminhar para além dela. Conseguir relacionar
essa estagnação com uma certa temporalidade que se articula no entorno da noção de futuro
aponta para a contingência dessa situação. É nesse ponto que acho que é possível começar a
falar da prática filosófica.
Nosso interesse aqui não é dar conta do problema de forma absoluta, há muitos caminhos
que podem e devem ser seguidos e a filosofia pode ser apenas um desses mecanismos de
experimentação que nossos corpos realizam. Gostaríamos, porém, de nos focar aqui nessa
atividade específica. A aposta feita aqui é que uma certa prática filosófica pode ter esse papel
ao nos fornecer meios de contraefetuar os efeitos negativos que sentimos por meio de uma
experimentação do real. A própria perpetuação dessa prática ao longo de mais de dois mil
anos parece ser um sinal de que essa atividade deve gerar algum efeito sobre aqueles que a
efetuam. Como espero mostrar a seguir, ao filosofar acabamos reorganizando o mundo e essa

649
Isso implica que há uma certa dose de acaso na nossa capacidade de superar a tristeza.
650
A leitura simultânea de um certo conjunto de textos — no caso de Mark Fisher, Reinhart Koselleck e Paulo
Arantes — foi o que possibilitou esse estalo inicial no trabalho aqui realizado.
651
Que procuramos descrever em I.1.
652
Cf. I.2. e I.3.
253

reorganização nos permite encarar as coisas de uma forma que novos caminhos se tornam
possíveis. O efeito da filosofia pode então ser descrito como uma transformação das nossas
capacidades. Mas não se deve encarar isso como uma atividade pontual ou marginal, pois o
que a filosofia pode transformar é justamente a nossa meta-constituição, i.e., a própria
maneira como lidamos com a nossa constituição e nosso modo de vida. É por isso que ela
pode ser uma ferramenta valiosa para rearticular a nossa experiência temporal: pois o tempo é
justamente um dos maiores condicionantes da nossa existência. Isso não significa, porém, que
a coisa estará resolvida, pois há duas armadilhas nessa prática que estão sempre presentes e
que é preciso tomar cuidado: de um lado o voluntarismo e do outro o fatalismo.
O voluntarismo que falamos é aquela postura de que basta crer para ser — uma postura
que exige uma teoria da subjetividade em que os sujeitos são absolutamente autônomos e
potentes. É evidente que dessa forma que a descrevemos trata-se de uma caricatura,653 mas
encontraremos essa tendência em alguns pensadores contemporâneos, como os
654
aceleracionistas de esquerda Nick Srnicek e Alex Williams, que parecem recair nesse
voluntarismo, como aponta Yuk Hui, devido ao seu baixo conhecimento sobre os
desenvolvimentos e a capacidade da tecnologia.655 O fatalismo é, por sua vez, um
determinismo raso que, a partir da ideia de que tudo tem sua causa, suporia que tudo que vai
acontecer já está de antemão determinado, tornando irrelevante qualquer tipo de ação ou
impossibilitando qualquer mudança de curso. Se queremos pensar a prática filosófica como
uma capaz de gerar efeitos, temos, então que evitar de um lado o voluntarismo que vem junto
a uma noção de sujeito absolutamente autônomo e do outro o fatalismo que exclui qualquer
possibilidade de agência nos processos de transformação. Shaviro mostra em seu No speed
limit, livro que mencionamos anteriormente, que qualquer tentativa de sair do realismo
capitalista, de nos libertar da opressão do capital, exige não só um movimento de negação
dessa realidade mas a construção de uma nova. A proposta de Shaviro de nos voltarmos para
a potência da imaginação de imaginar outros mundos, outros futuros,656 nos parece mais
condizente com o que estamos pensando, ainda que isso seja apenas o início do caminho.

653
Salvo, é preciso dizer, se prestarmos atenção aos discursos de auto-ajuda, neopentecostais ou mesmo pseudo-
científicos.
654
Autores do Manifesto Aceleracionista e de Inventing the future.
655
Hui, Yuk. On the unhappy consciousness of neoreactionaries. 2017. Disponível em: <http://www.e-
flux.com/journal/81/125815/on-the-unhappy-consciousness-of-neoreactionaries/>. Acesso em: 9 set 2017
656
Algo que implica todo um outro regime temporal diferente do tempo da modernidade.
254

Penso que é preciso uma espécie de terceira margem, uma espécie de determinismo
quântico.657 Com isso quero dizer que a realidade opera segundo ordens causais mas que em
alguma medida as causas podem ter efeitos indefinidos — no sentido de que o efeito
produzido tem um espectro de variação e que a variação específica atualizada depende de
outros tantos fatores que não faz sentido falar em uma causalidade simples e direta. As
relações parecem acabar criando um campo de causalidades não-lineares onde o cálculo
dessas redes causais é a priori impossível. Acredito que na segunda parte dessa tese ao menos
conseguimos deixar claro a complexidade desses movimentos, que estariam relacionados à
maneira como os corpos/coisas/indivíduos estão sendo constituídos e reconstituídos a todo
instante. Em certo sentido o núcleo ontológico da ação estaria nesse local. Se compreendemos
os corpos como organizações em equilíbrios dinâmicos,658 podemos dizer que um corpo se
individua (se transforma) a partir das características do corpo com quem ele trava relação.
Dessa forma, agir segundo um interesse talvez tenha a ver com “saber esperar”, visto que não
é possível se projetar para um futuro. A nossa aposta é que a ação teria a ver com essa
paciência de esperar pelo o momento em que as forças de um corpo em contato com outrem
vão se atualizar de uma forma que seja do seu interesse. Não queremos fugir de um
pragmatismo, mas como veremos mais adiante ao explorar o pensamento chinês, o
pragmatismo pode ter várias faces.
Mas ao mesmo tempo: o que significa esperar? Essa pergunta tem um duplo sentido.
Primeiramente trata-se do reconhecimento — um autoconhecimento? — de que nem todo
momento é propício para interagir com outros corpos. Se cada corpo está em constante
transformação, como mostramos, isso implica que podem ter pontos dessa transformação em
que o contato entre os corpos pode produzir resultados mais ou menos favoráveis para cada
um dos ou ambos corpos. A questão seria então saber esperar ou reconhecer o momento em
que outrem estaria num ponto de flexibilização suficientemente alto para produzirmos uma
situação favorável.659 É preciso investigar, então, se é possível produzir esses pontos de

657
Falamos isso de brincadeira (em referência às inúmeras “curas quânticas” que se multiplicam
indefinidamente), mas também com um pouco de seriedade, já que de fato o que estamos pensando se liga
diretamente a uma incapacidade real do futuro se estar precipitado de antemão.
658
Pensamos aqui num autor que não pudemos trabalhar, mas que certamente foi uma grande influência, Gilbert
Simondon. Seu conceito de metaestabilidade nos parece ser uma das principais chaves para se entender o
equilíbrio específico que os corpos tem na medida em que eles são sempre transformáveis. Cf. Simondon,
Gilbert, L’individuation à la lumière des notions de forme et information. Grenoble: Million, 2013.
659
É importante repetir — para que isso não seja esquecido — o “favorável para quem?” é sempre para o corpo
que pergunta. Nesse sentido o pragmatismo que nós subscrevemos é um que acredita que todo corpo busca
situações favoráveis. Nesse sentido não estamos singularizando, mesmo quando falamos aqui em “nós”, o que
queremos dizer é, “qualquer corpo que age”, podendo inclusive ser um corpo que age contra nós. Sobre essa
variação da perspectiva, cf. Viveiros de Castro, Eduardo. Metafísicas canibais, 2015.
255

flexibilização, já que ele próprio, enquanto espectro de possibilidades, é fruto de encontros


que o alteram.
Isso nos leva à segunda questão, que é a pergunta pelo papel da prática filosófica na ação.
O que pretendemos verificar é que tipo de eficácia a ação filosófica produz e se ela é capaz de
gerir ou gerar esse ponto de flexibilização. Com isso em mente, nosso primeiro passo será
esboçar um desenho da prática filosófica, isto é, dizer o que configura essa atividade. A partir
da compreensão dessa atividade estaremos mais preparados para entender em que sentido ela
pode ser eficaz, ou seja, poderemos nos perguntar sobre o que constitui a sua eficácia.
256

III.1. A PRÁTICA FILOSÓFICA

Admito que quem estuda a [Filosofia] pode ter a crença


infantil e comovente no poder organizador do nosso espírito
e do método em si, mas deve além disso respeitar a
incompreensível verdade, a realidade e a originalidade do
fenômeno. Estudar a [Filosofia], meu caro, não é uma
brincadeira nem uma ocupação infantil e irresponsável.
Estudar a [Filosofia] requer o conhecimento prévio de que
com esse estudo se almeja algo impossível de atingir, e
todavia necessário e importantíssimo. Estudar a [Filosofia]
significa entregar-se ao caos, conservando a crença na
ordem e no sentido. É uma tarefa muito séria, rapaz, talvez
mesmo trágica.
Herman Hesse, O jogo das contas de vidro

A filosofia, não mais como juízo sintético, mas como


sintetizador de pensamentos, para levar o pensamento a
viajar, torná-lo móvel, fazer dele uma força do Cosmo.
Gilles Deleuze e Félix Guattari, Mil Platôs

Não é certamente nenhuma novidade que a filosofia é uma prática interessada. Se olhamos
para a história da filosofia, vemos desde a antiguidade um esforço por transformar a realidade
por meio de conceitos.660 Autores como Michel Foucault661 e Pierre Hadot662 em seus
trabalhos sobre a filosofia antiga mostraram como o discurso filosófico é indissociável de
uma tentativa de produzir uma vida mais saudável. Pode-se dizer com tranquilidade, então,
que há um certo pragmatismo inerente à filosofia.

660
Uma teoria antropológica do conceito, que vemos esboçada na obra de Hans Blumenberg, pode nos dar pistas
sobre como a história da filosofia existe bem antes do discurso filosófico se estabelecer. Sobre isso cf.
Blumenberg, Hans. Teoria da não conceitualidade. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013.
661
Cf. Foucault, Michel. História da sexualidade, vol. 2 - O uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Graal Editora,
1984 e História da sexualidade, vol. 2 - O uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Graal Editora, 1984 e Idem,
História da sexualidade, vol. 3 - O cuidado de si. Rio de Janeiro: Graal Editora, 1985
662
Cf. Hadot, Pierre. O que é a filosofia antiga?. São Paulo: Edições Loyola, 1999.
257

Mas ao mesmo tempo — e desde o mesmo tempo —, é preciso contrastar essa imagem da
filosofia com um certo retrato que ela faz de si mesma, isto é, como uma tentativa de lidar
com o espanto (thaumázein) do/no real. Se podemos dizer que Platão é pai da filosofia— em
uma das suas infinitas genealogias possíveis — é porque ele talvez tenha sido aquele que
conseguiu dar início a uma tradição de pensar a partir de problemas.663 Os diálogos aporéticos
de Platão, que são justamente atribuídos à sua juventude, podem ser lidos como a simples
(mas difícil) tentativa de limpar o terreno das perguntas e questões banais, prontamente
respondíveis, para dar lugar ao problema como espaço de gênese do pensamento. Se Platão
não consegue, ou mesmo procura, resolver essas questões nesses diálogos, podemos dizer que
não é por nenhuma falha ou incapacidade do próprio, mas pelo fato de que a essência da
filosofia talvez se encontre justamente no aprendizado envolvido em dispor aquilo que não
conseguimos dar conta na forma de um problema.664
Não parece exagero sugerir que essa tradição que via no espanto como origem do
pensamento gerando uma corriqueira imagem da filosofia como concernindo o incognoscível
inabitável para arrogar uma certa independência ou autonomia da filosofia diante de outros
saberes. Podemos ouvir professores preguiçosos ecoando o clichê máximo de que “a filosofia
não serve para nada pois ela não é serva de ninguém”, como se isso a libertasse dos efeitos
que a sua prática gera. É a ideia da filosofia como puro desejo de conhecimento que
encontramos nesse tipo de descrição. Qualquer pragmatismo é, nessa identificação da
filosofia com uma investigação pura, simplesmente rejeitado, concebido como mera
funcionalização dessa arte nobre. Nietzsche, no capítulo “Do imaculado conhecimento” em
Assim falou Zaratustra, descreve com sua habitual malícia esse “homem do puro
conhecimento” que diz a si mesmo nada desejar além do conhecimento das coisas:

“Seria para mim o mais elevado” — assim diz a si próprio seu espírito mendaz — “olhar para a vida
sem desejo, e não, como um cachorro, com a língua pendente:
Ser feliz em olhar, com vontade já morta, sem as garras e a cobiça do egoísmo — frio e cinzento no
corpo inteiro, mas com ébrios olhos de lua!
Seria para mim o melhor” — desse modo seduz a si mesmo o seduzido — “amar a terra tal como a
ama a lua, e somente com os olhos apalpar a beleza.

663
Longe de dizermos que ele foi o primeiro (uma discussão que para nós simplesmente não faz sentido, como
se verá), mas apenas que ele foi aquele que gerou uma tradição que permanece até hoje (ainda que essa
persistência nem sempre se deu sem suas torções colonialistas que ao longo da história apagaram e apagam
outras possibilidades para a prática filosófica).
664
Mesmo o Platão tardio, aquele de diálogos como O sofista ou Teeteto, não tentará ir além das suas
capacidades, vendo inclusive que as respostas que ele ensaia são antes ocasiões para que o problema apareça
com mais clareza.
258

E isto seja para mim o imaculado conhecimento de todas as coisas, que eu nada queira das coisas:
exceto que possa estar diante delas como um espelho com cem olhos.”665
O que gostaríamos de discutir, nesse momento, é uma forma de conciliar essas duas
imagens e não simplesmente opô-las (ou hierarquizá-las): a da filosofia como uma prática que
busca produzir uma boa vida com a ideia dela como aquele domínio que lida sobretudo com
aquilo que simplesmente não conseguimos dar conta. A chave é o conceito de problema, um
conceito que tem sua origem numa certa tradição francesa composta por autores como Henri
Bergson, Gaston Bachelard, Georges Canguilhem, Gilles Deleuze e outros.666 O sentido desse
conceito de ‘problema’, não é, porém, uma simples pergunta pela essência de algum objeto
desconhecido. Encontraremos na obra de Bachelard uma formulação do problemático como
aquilo que põe em crise não só aquilo que se procura entender, mas o próprio sujeito que
encara a situação inconcebível. O problema pode então ser pensado como uma espécie de
ocasião da filosofia. É com isso em mente que se pode dizer que um problema de fato só
aparece na medida em que o próprio sujeito é posto em questão pela situação e é obrigado a
ser redeterminado junto ao acontecimento que provoca sua desestabilização.667 Como diz
Tatiana Roque, o que está em questão é uma reversão da relação entre verdade e problema
que modifica ambos os termos completamente:

A posição do pensamento em relação à verdade é radicalmente transformada pela ontologia do


problema. Quando associada ao campo das soluções, a verdade deve ser descoberta. Quando associada
ao campo dos problemas, a verdade interna de um problema não preexiste, mas é um ato criador – a
verdade é gerada no seio do próprio problema.668

É essa ontologia do problema que queremos abordar e que acreditamos que permite
compreender o caráter pragmático da prática filosófica. O interessante é mostrar como essa

665
Nietzsche, Friedrich. Assim falou Zaratustra. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 117
666
Outros que não necessariamente falaram da questão do problema explicitamente mas que construíram sua
prática filosófica a partir dessa ideia de problema que iremos explorar.
667
Como diz Patrice Maniglier em seu ensaio sobre a problemática em Bachelard: “Problemas não podem tomar
a forma de uma investigação sobre a essência das coisas (‘o que é a matéria?’, ‘o que é a vida?’, ‘o que é X?’);
trata-se do contrário pois eles constituem aquilo que fazem que seja importante, relevante, essencial, conhecer
sobre X. Bachelard argumenta, então, que não há, de um lado, o mundo, dividido em grandes regiões ônticas
(matéria, vida, etc.), cada uma caracterizada por um certo número de propriedades ou leios que as diversas
disciplinas (biologia, sociologia, etc.) teriam que aprender e, do outro lado, a mente, que tentaria mapear essa
realidade e preencher as lacunas com informações corretas; existem apenas problemas singulares que forçam
[determine] simultaneamente o sujeito a pensar e o objeto a ser pensado.” (Maniglier, Patrice. “What is a
problematic”. Radical Philosophy. N. 173, pp. 21-22. mai-jun. 2012. Disponível em:
<https://www.radicalphilosophy.com/article/what-is-a-problematic>. Acesso em: 2 out 2017.)
668
Roque, Tatiana. “Sobre a noção de problema”. Lugar comum. n. 23-24, p. 144. jan 2006-abr 2008.
Disponível em: <http://uninomade.net/wp-
content/files_mf/112703120540Sobre%20a%20no%C3%A7%C3%A3o%20de%20problema.pdf>. Acesso em: 2
out 2017.
259

prática filosófica enquanto composição de problemas não existe em um vácuo, mas se


constitui a partir da experimentação de um corpo que procura perseverar. Como, porém, esse
corpo que experimenta não é ele próprio estático ou absolutamente, ele é alterado pela própria
prática [filosófica] que ele engendra..669 Mas isso não é tudo. Pois além disso esse movimento
de constituição do problema passa por uma dissolução de falsos problemas. Há um aspecto
destrutivo na prática filosófica que queremos sublinhar. Para podermos abordar o conceito de
problema, precisamos antes desenvolver em que sentido falamos que a filosofia é uma
experimentação. O que pretendemos mostrar com isso é que a filosofia não precisa ser
encarada como algo que paira sobre os seres humanos, mas pode ser compreendida como um
desenvolvimento imanente do esforço de perseverança dos corpos.

A prática filosófica pode ser entendida em dois sentidos, primeiramente como uma
espécie de técnica primitiva de experimentação, uma espécie tecnologia de seleção ou recorte
do real que se exprime em um conceito — ou, o conceito enquanto expressão de uma seleção
ou um recorte operado pelo corpo. A seleção e o recorte devem ser entendidos aqui como um
processo que delimita o campo de experiência da realidade para que ele se torne
manipulável.670 Em certo sentido trata-se de um hábito, pois essa atividade é uma contração
de diversas experiências de modo estabilizador — ela delimita então as nossas capacidades.
Além disso é preciso dizer que na maior parte dos casos o conceito é um objeto discursivo,671
ou seja, esse objeto existe nos discursos. O discurso é o seu espaço de enunciação e
transmissão ainda que a operação propriamente dita (seleção e recorte) não se resuma à esfera
discursiva. Alguém poderia dizer que o conceito não precisa ser enunciado para existir, para
gerar efeitos, que a seleção e o recorte são realizados independentemente da sua formulação.
Não acho que o conceito seja condição sine qua non para a operação de recorte e seleção. Por
outro lado, o que estamos delimitando como conceito — uma expressão de uma seleção ou
recorte — passa necessariamente pelo discurso (ou por alguma outra forma de expressão) e é

669
Não estamos usando esse tipo de vocabulário, mas pode-se dizer que um corpo devém-sujeito na medida em
que ele passa a ser contraefetuado pelas suas próprias experimentações.
670
Falamos da operação de seleção e recorte e é impossível não lembrar da maneira como Bergson em seu
Matéria e memória pensa a nossa existência enquanto uma seleção de imagens. Diante da infinidade de imagens
que se atravessam a seleção é realizada para que ações sejam possíveis. Cf. Bergson, Henri. Matéria e memória.
São Paulo: Editora WMF, 2010. pp. 11-81
671
Uma exceção a esse caso talvez seja Diógenes, o cínico e Pirro, cuja prática filosófica estava ligada
diretamente ao seu corpo material. Exemplo disso é a maneira como Diógenes respondeu ao paradoxo de Zenão
sobre a impossibilidade do movimento ao se afastar dessa discussão andando.
260

por isso que o distinguimos da operação de seleção e recorte. O movimento de formulação


não é meramente secundário. Por um lado, a enunciação é o que permite que se possa tornar a
operação de recorte e a seleção visíveis e manipuláveis. Por outro lado, as restrições inerentes
aos discursos forçam o conceito a ser inteligível e, por conta disso, transmissível. É essa
transmissibilidade que permitirá que o conceito seja compartilhado e que, nesse movimento,
essa prática se autonomize de um indivíduo específico que realiza o movimento de seleção e
recorte. Uma certa história da atividade conceitual se torna, nesse mesmo gesto, possível.
Isso nos leva ao segundo sentido da filosofia, pois além disso ela também pode ser
compreendida como o corpus filosófico que encontramos na história — isto é, o conjunto de
atividades que foram reconhecidas como filosóficas.672 Nesse sentido ela é uma técnica que
foi se constituindo, transformando e complexificando historicamente por meio da atividade
conceitual (operação de seleção e recorte) de diversos filósofos. Mas não se trata apenas de
um conjunto de variações nos usos dessa “técnica”, já que o que possibilita que falemos da
filosofia enquanto uma história é o fato de que ela própria passa a ser objeto dessa técnica —
ou seja, a própria atividade de seleção e recorte se torna ela própria um conceito: i.e., a
filosofia. Enquanto discurso, essa prática pode ser transmitida e disseminada e os diversos
usos da atividade conceitual são passíveis de serem avaliados e experimentados, discutidos,
recusados ou superados pelos praticantes dessa atividade (os filósofos). Pode-se falar de um
refinamento dessa técnica na medida em que ela há uma reflexão sobre seu próprio uso.
É por isso que os dois sentidos de filosofia que mencionei não se excluem propriamente.
São apenas duas faces de um mesmo movimento. A filosofia no segundo sentido é apenas um
desenvolvimento reflexivo da filosofia no primeiro sentido. Por outro lado, pelo fato da
filosofia ser essa atividade de seleção e recorte, na medida em que ela se consolida enquanto
prática existente no mundo, parece ser inevitável que ela em algum momento se torne objeto
de seleção e recorte.
A nossa hipótese então é que a prática filosófica, a atividade conceitual, é uma forma de
experimentação que realizamos por meio de um movimento de seleção e recorte tornado
discurso por meio do conceito. Podemos agora começar a entender qual o papel do problema
nessa trama. Conforme falamos acima, essa operação da atividade conceitual não deixa de ser
um hábito, algo que estabiliza a nossa experiência e nos permite agir no mundo a partir de um
determinado quadro de recortes. Como mostramos na parte anterior do nosso trabalho, a

672
Não queremos aqui entrar na discussão sobre os méritos desse reconhecimento, já que sabemos que o que é
encarado como filosofia pode variar enormemente a partir de quem realiza essa operação e seleção. O que
queremos dizer com isso é apenas que a atividade conceitual implica uma delimitação de outras atividades como
também filosóficas.
261

realidade é um fluxo de transformações constantes, de modo que não é possível aferir a priori
nenhuma estabilidade à exterioridade de um certo corpo. A inevitabilidade das transformações
do real torna provável que novas experiências revelem a insuficiência/obsolescência das
nossas seleções ou recortes (sejam conceitos ou não). É nesse momento em que o ponto em
que nos apoiamos para agir falha que surge o espaço para o conceito de problema. Pois o que
queremos dizer com problema — e que veremos a seguir — é que se trata de um momento em
que precisamos realizar uma nova operação de seleção e recorte ao nos depararmos com algo
que foge das nossas capacidades atuais. A atividade filosófica é então a experimentação —
tatear e avaliar — que procura lidar com essa experiência que excede as nossas capacidade e
procura delimitá-la. Como se trata de um novo corte, podemos então dizer que esse problema
delimitado é ele próprio um [novo] conceito. É por isso que também não se pode falar de
nenhum ur-conceito, porque o conceito sempre nasce de um contato com a experiência, com
determinados encontros, de modo que falar em filosofia é falar de um certo modo de vida que
vai se refinando sem que haja um começo abrupto. Na verdade, pode-se dizer que é
justamente o problema que permite que o conceito se constitua — pois a superação da
insuficiência de uma seleção ou recorte necessita que ele se explicite. Trata-se de um
momento em que as categorias habituais (sejam conceitos ou não) falham e não dão conta da
situação e nos levam a uma experimentação de algo que transcende os nossos hábitos. O
conceito se forma então a partir da delimitação do problema, como uma quebra com relação a
uma seleção/recorte anterior.
Para dar seguimento ao nosso trabalho, precisamos, portanto, abordar essa ontologia do
problema. Só assim conseguiremos dar conta das especificidades dessa atividade que apenas
rascunhamos acima. É por conta disso que iremos nos demorar no pensamento de Deleuze (e
Guattari). Encontraremos em sua obra não só um destaque à noção de problema, como esse
conceito se relaciona diretamente com a prática filosófica. Dessa forma, do problemático
enquanto força destrutiva seremos conduzidos ao seu avesso, que é a criação conceitual
positiva — e é por isso mesmo, pela inseparabilidade desses dois movimentos, que mesmo
tratando separadamente de um dos movimentos da atividade filosófica, algum aspecto do
outro vaze e entre na discussão daquele. Com isso poderemos ter uma noção clara dessa
prática e pensar em que medida ela pode servir de ferramenta para ajudar a rearticular a nossa
experiência do tempo.
262

III.1.1. Aspectos destrutivos da filosofia: O problema

O conceito nasce na vida de criaturas que são caçadoras e


nômades. Talvez possa fazer mais claro o que um conceito
produz se se pensar na confecção de uma armadilha: é ela
em tudo orientada pela figura e pela medida, pelo modo de
comportar-se e de mover-se de um objeto a princípio
aguardado e não presente, cuja captura se aguarda. Por
outro lado, esse objeto se relaciona a necessidades que não
são momentâneas, que têm uma dimensão temporal.
Hans Blumenberg, Teoria da não conceitualidade

Se a filosofia começa com o problema isso não quer dizer, portanto, que o problema é seu
ponto inicial, mas que ele é uma espécie de grau-zero. Conseguir desenvolver uma
problemática é se posicionar diante de uma situação inédita que ao mesmo tempo que não
compreendemos (ao ponto de pôr tudo em questão, inclusive nós mesmos), também nos
impede de ignorá-la. Mas, é preciso deixar claro, não estamos aqui repetindo a ladainha do
martelo heideggeriano que só se apresenta no momento em que se quebra (ou some). Trata-se
de algo muito mais estranho, como diz Patrice Maniglier:

Eles são impensáveis não por insuficiência, mas por excesso. O problema não é que eles provocam a
falha de um mecanismo finalizado, mas, ao contrário, que “funciona”. Há problema filosófico quando
qualquer coisa que funciona (chamaria isso de uma prática) encontra-se, ao mesmo tempo, impensável
(transgride as formas ordinárias de inteligibilidade).673

O problema aparece no momento em que o nosso quadro categorial, nossas “formas


ordinárias de inteligibilidade”, não consegue dar conta de uma determinada situação ou
encontro. De acordo com Deleuze, é possível dizer, então, que o encontro que ocorre se torna
um problema na medida em que as nossas faculdades — as capacidades de afetar e ser afetado
— levadas ao limite não conseguem apreendê-lo ou mesmo coordenar a sua apreensão e
encaixá-lo em determinada categorização. O acontecimento pela força do seu excesso se torna

673
Maniglier, Patrice. “Manifesto para um comparatismo superior em filosofia”. Veritas, v. 58, n. 2. p. 259.
maio-ago. 2013. Disponível em:
<http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/veritas/article/view/16645/10914>. Acesso em 4 out 2017.
263

inapreensível e impensável. É por isso que esse encontro “força-[o] [o sujeito do


acontecimento] a colocar um problema, como se o objeto do encontro, o signo, fosse portador
de um problema — como se ele suscitasse o problema.”674 A coisa se torna ainda mais
complicada se nos dermos conta de que, sendo algo que excede as nossas capacidades
ordinárias, trata-se de algo completamente imprevisível. Não há como se prevenir e a questão
é sempre da ordem de um “o que se passou?”.
É por isso que saber lidar com o problema não tem a ver com qualquer precaução prévia,
mas, diante dele, passa por afastar essas “formas ordinárias de inteligibilidade” que não
conseguem dar conta de uma nova situação. Há algo de interessante nesse movimento de pôr
o problema que merece ser mais esmiuçado, visto que os verdadeiros problemas não são
nunca dados e sim constituídos. Como diz Deleuze em seu Bergsonismo, “a verdadeira
liberdade está em um poder de decisão, de constituição dos próprios problemas: esse poder,
‘semidivino’, implica tanto o esvaecimento de falsos problemas quanto o surgimento criador
de verdadeiros.”675 Mas o que temos antes da constituição de um verdadeiro problema? Uma
pista para isso é encontrada no livro Bergsonismo. Os verdadeiros problemas não surgem do
nada, eles só aparecem a partir da crítica de um falso problema — ou da sua identificação
como falso. Isso significa que a atividade conceitual, a filosofia, sempre se realiza a partir de
uma insuficiência de um quadro conceitual anterior. Esses falsos problemas, porém, não são
simples erros, são antes “ilusões inevitáveis, das quais só se podia conjurar o efeito.”676 Eles
tem uma gênese e traçar essa gênese — como Deleuze faz ao investigar a imagem do
pensamento tradicional — é um passo do ato filosófico, de modo que “só podemos reagir
contra essa tendência intelectual suscitando, ainda na inteligência, uma outra tendência, a
crítica.”677 É por isso que a crítica à imagem do pensamento é um passo fundamental na
atividade filosófica. É a partir da investigação da sua gênese faz parte de um movimento que
desfaz a aura de necessidade que acaba inevitavelmente contaminando o quadro conceitual ao
qual estamos habituados e torna possível a sua transformação. A filosofia passa
necessariamente pela crítica aos pressupostos que são tomados como dados, naturais ou
mesmo eternos e que se pretendem imunes a qualquer discussão — e isso quando são
explicitados. É por isso que acreditamos que a filosofia em sua face destrutiva é uma espécie
de anti-cagação de regra.678 Uma operação que procura desnaturalizar posições dogmáticas

674
Deleuze, Gilles. Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal, 2006. p. 204
675
Idem, Bergsonismo. São Paulo: Editora 34, 2008. p. 9
676
Idem, ibidem, p. 13
677
Idem, ibidem.
678
anti-nomodefecação, como sugeriu com mais delicadeza Rodrigo Nunes.
264

que em seu desejo de ser fundamento absoluto são mais morais do que propriamente
filosóficas. Há um movimento crítico inerente a qualquer futura construção que a filosofia
pode aspirar. Filosofar com o martelo nietzschiano é entender que ele constrói e destrói.
Essa operação crítica é essencial pois se o acontecimento-problema excede as nossas
capacidades, ao menos conseguimos observar quais são os limites das nossas formas
ordinárias de inteligibilidade que estão sendo afetados. Não se trata de uma operação crítica
generalizada, isso a tornaria apenas um movimento abstrato sem grandes consequências, visto
que nada estaria em jogo e não poderíamos efetivamente saber onde se encontram as
insuficiências. É só diante de um problema que a operação crítica se mostra como
verdadeiramente possível. Dessa forma o problema é uma parte fundamental de qualquer
emenda ao intelecto que podemos aspirar e realizar essa identificação é já se distanciar do
falso em direção a um verdadeiro problema, pois começamos a conseguir enxergar quais são
os limites do nosso pensamento atual. Mas, como dissemos, se esses limites podem começar a
se tornar visíveis é porque algo de novo passa a determinar a nossa experiência e apontar para
a obsolescência da nossa condição anterior.
O que salta aos olhos nesses comentários de Deleuze sobre a noção de problema é que o
movimento positivo de construção filosófica depende de um momento crítico.679 Não
estamos, porém, querendo dizer que um movimento vem após o outro. O movimento de
construção é simultâneo ao de destruição. O ponto é que de certa forma a filosofia sempre
começa in media res, seja por causa de um sistema filosófico predominante ou mesmo de uma
certa imagem de um senso comum.680 Estamos sempre já imersos em algum sistema de
conceitos que conduz ou orienta nossas experiências. É com isso em mente que Maniglier, no
mesmo texto já mencionado, irá dizer que a filosofia é inevitavelmente comparativista, algo
que parece convir com a posição que estamos tomando aqui. A filosofia começa diante de um
choque pois há algo que se destaca e vai contra o fundo de normalidade que tende a imperar:

679
Essa destruição que falamos, é bom explicitar, não deve ser confundida com aquilo que, a partir de Derrida,
passou a ser conhecido como desconstrução. Não que acreditamos que Derrida tenha errado sobre qualquer coisa
(como vimos, não se trata disso). Acredito apenas que esse conceito derridiano responde a outros problemas e
isso aparece sobretudo na maneira como a desconstrução sempre busca apontar certas relações binárias que
produzem o recalcamento injustificado de um dos termos (homem x mulher, humano x animal, voz x escrita). A
inversão que se opera na desconstrução e que retira o termo rebaixado da sua condição de inferioridade, por sua
vez, acaba gerando um deslocamento conceitual que transforma ambos os termos. Nesse sentido me parece claro
que falamos de coisas diferentes, já que a destruição que falamos é uma que não está necessariamente
preocupada com algum elemento que foi historicamente (e injustamente) rebaixado. Como disse, tratam-se de
problemas diferentes que levam a conceitos de prática diferentes. Nada impede, porém, que ambos os conceitos
sejam trabalhados conjuntamente.
680
Não é à toa que Deleuze e Guattari, ao final de seu livro sobre a filosofia (O que é a filosofia? dirão que o
verdadeiro inimigo do filósofo é o senso comum. Uma elaboração extensa do conceito de senso comum também
pode ser encontrada no texto de Maniglier. Cf. Deleuze, Gilles; Guattari, Félix. O que é a filosofia?. São Paulo:
Editora 34, 2007. pp. 261-270.
265

“O ente em geral torna-se problemático e interessante porque um ente está misteriosamente


incluso nisso, que parece em radical exceção com todos os outros.”681 O thaumázein só
aparece como th(r)aumático pois ele depende da existência de algum conjunto de categorias
prévio contra o qual há contraste. Mas se é possível, inicialmente, tomar essa posição anterior
como originária, o que o encontro gera é justamente uma situação em que dois caminhos são
possíveis — caminhos que não são necessariamente frutos de uma escolha, mas das nossas
capacidades. Por um lado pode-se rechaçar esse elemento novo que aparece (ou mesmo tomá-
lo como uma repetição do mesmo). O problema desse ponto é que aquilo que deve ser
explicado se torna explicador. Acaba-se simplesmente confirmando uma naturalidade do
anterior sem que em qualquer momento essa naturalidade seja posta em questão. Mas essa
situação pode durar para sempre? Bem, thauma rima com trauma. Nem todo encontro
conseguirá manter nossos sistemas de categorias intactos e permitirá ser absorvido de maneira
impune. O que se põe em questão agora são as próprias categorias, que se revelam como
contingentes e precisam ser repensadas diante dessa novidade.
Como dissemos, o problema não é, portanto, simplesmente um elemento preparatório ou
prévio da prática filosófica que virá em seguida. Ele não pode ser algo que preexiste à
experiência filosófica de modo abstrato e que é dissolvido assim que encontramos uma
resposta. Há, segundo Deleuze, uma diferença de natureza entre o problema e as suas
soluções que precisa ser destacada, de modo que ele é ao mesmo tempo transcendente e
imanente com relação às soluções. Isso significa que nenhuma solução pode resolver um
problema. Enquanto aquela é sempre particular, relativa, para Deleuze, “só o problema é
universal.”682 Diante de um problema não basta resolvê-lo, é preciso determiná-lo
exaustivamente, elaborar as condições em que ele se torna inteligível e que ganhe uma forma.
O que encontramos nesse movimento não é nenhuma resposta para uma pergunta abstrata,
mas aquilo que o autor chamará de singularidades ou pontos notáveis. A delimitação do
problema pode ser compreendida então como um processo de “repartições de pontos notáveis
e singulares, constituindo estes a determinação das condições do problema.”683
Mas o que é isso? Antes de qualquer coisa, é preciso deixar claro que esses pontos
singulares ou notáveis não se opõem à uma ideia de universalidade, mas sim ao regular ou o
ordinário..684 Dessa forma eles podem ser aproximados da ideia de acontecimento, que nas

681
Maniglier, Patrice, op. cit., p. 238
682
Deleuze, Gilles. Diferença e repetição, 2006., p. 233
683
Idem, ibidem, p. 234
684
“A noção de singularidade tem um outro sentido, definida antes com relação ao ordinário ou regular.”
(Roque, Tatiana; Oneto, Paulo. “L’objectivité des problèmes et la question du sujet: considérations sur l’Idée
266

palavras de Leibniz seriam “o como e as circunstâncias”. Não se fala aqui, porém, de


acontecimentos empíricos. Não se trata nem de uma singularidade que se reduz a uma
proposição particular, nem de um universal que é redutível às proposições gerais. Como diz
Deleuze, “as Ideias problemáticas não são essências simples, mas complexas, multiplicidades
de relações e de singularidades correspondentes.”685 Podemos então compreender esses
pontos como os elementos que compõem propriamente os limites dos problemas — este que
excede as nossas capacidades — e orientam as soluções, ainda que, eles próprios só são
visíveis a partir das soluções que engendram.686 O problema, dessa forma, só pode ser
construído por meio das suas soluções, ainda que as soluções são elas próprias produzidas a
partir das condições do problema.
É por isso que Deleuze afirmará que devido a essa estrutura (universal-singular), o
problema não desaparece nas soluções, mas permanece vivo apesar das soluções que são
encontradas. Inclusive, a determinação do problema se dá junto a sua solução. De novo, é
preciso frisar: problema e solução diferem por natureza, mas é na determinação do problema
que se tem a gênese da solução. É esse o sentido da “repartição das singularidades” que
mencionamos. Essa repartição “pertence completamente às condições do problema, ao passo
que sua especificação já remete às soluções construídas sob estas condições.”687 O problema
se determina a partir da criação de soluções que antes de “responderem a uma pergunta”,
auxiliam na determinação do problema.
É por isso que se afirma que “o problema é ao mesmo tempo transcendente e imanente em
relação a suas soluções.”688 Conforme explica Deleuze, ele é “transcendente, porque consiste
num sistema de ligações ideais ou de relações diferenciais entre elementos genéticos.”689 Ou
seja, o problema tem uma existência para além das soluções, inclusive as soluções possíveis
são sempre previamente condicionadas pelos limites do problema, isto é, pelas singularidades
ou pontos notáveis do problema. Por outro lado, ele é “imanente, porque estas ligações ou
relações se encarnam nas correlações atuais que não se assemelham a elas e que são definidas
pelo campo de solução.”690 O problema nesse caso é considerado imanente na medida em que
se pensa no ponto de vista das soluções que traçam, em seu movimento de determinação, as

dans la philosophie de Deleuze” in: Cassou-Noguès, Pierre (org.); Gillot, Pascale (org.). Le concept, le sujet et la
science. Paris: Vrin, 2009. p. 171)
685
Deleuze, Gilles, op. cit., p. 234. Cf. Roque, Tatiana; Oneto, Paulo, op. cit., pp. 172-173 para uma descrição
do papel dos pontos singulares na obra do matemático Albert Lautman.
686
Em III.1.2.2. veremos essa mesma estrutura na discussão de Deleuze e Guattari sobre o plano de imanência.
687
Deleuze, Gilles, op. cit., p. 235
688
Idem, ibidem.
689
Idem, ibidem.
690
Idem, ibidem.
267

condições do problema. Os problemas são, portanto, abstratos na medida em que são


universais, mas a sua determinação e experiência só é acessível por meio de uma solução que
o concretiza.691 Daí o caráter dialético que Deleuze aponta na dinâmica de constituição de
problemas (a dialética entre os aspectos transcendente e imanente do problema). É com isso
em mente que se pode dizer que ainda que o problema seja determinado a partir das soluções,
isso não implica que o problema se subordine à solução pois o que dirige a repartição desses
pontos singulares específicos (ou seja, o que põe em relevo certas coisas como singulares) é
justamente o problema.692 Mas resta uma questão: o que constitui esses problemas com essas
singularidades ou pontos notáveis específicos que aparecem de maneira urgente e impositiva?
Como já adiantamos, os problemas aparecem ao acaso. Nas palavras de Roque e
Domenech-Oneto,

Toda questão é ontológica, mas toda ontologia é um “lance de dados”. Pois a distribuição de “aquilo
que é” (os pontos singulares nas faces do dado) nos problemas (no lançar), assim como a avaliação
deles, sempre em relação a esses acontecimentos fortuitos que forçam a pensar e de onde acabamos
extraindo os elementos singulares.693

Além disso. Sendo algo que nos excede, o problemático não tem como ter uma forma pré-
determinada caso contrário as nossas capacidades seriam suficientes para conter o problema e
ele não nos excederia de fato. De modo que, nesse tipo de evento, não se trata de um sujeito
constituído que experimenta em sua consciência um problema. É antes esse excesso que faz
que nós nos transformemos diante de um problema, operando uma transformação com relação
à nossa posição anterior a partir das condições do problema em questão.694 O problema não só
é algo externo (ou seja, objetivo) ao sujeito, como é uma exterioridade tão radical que quando
estamos diante de um acontecimento que se impõe com essa força passamos a ser constituídos
por meio dele.695 Há uma transformação que marca um antes e um depois e que efetivamente
constitui uma nova realidade para o pensador e, dessa forma, “as questões a partir de onde ele
parte não se põe mais do ponto de vista de uma resposta, mas em função dos modos de

691
“Jamais temos a consciência de um problema antes que ele seja expresso em um campo de signos, em uma
língua que constitui um campo de resolubilidade.” (Roque, Tatiana; Oneto, Paulo, op. cit., p. 178)
692
“Como a determinação das soluções se faz a partir de pontos singulares específicados no problema, podemos
concluir a imanência do problema na solução. Mas a existência e a repartição das singularidade são dadas na
definição do problema, o que faz com que ele retenha seu poder de direção na gênese de soluções e a sua
transcendência com relação às soluções.” (Idem, ibidem, p. 174)
693
Idem, ibidem, p. 185
694
“Aquilo que anima as ideias não é em nada subjetivo, é evidente que o pensador não tem uma ideia sem se
transformar por meio dela naquilo que ele é.” (Idem, ibidem)
695
“É a vida enquanto fora ou o ser enquanto diferença que exige de maneira imperativa que nós pensemos os
acontecimentos.” (Idem, ibidem, p. 184)
268

existência que seu desenvolvimento em problemas gera.”696 Delimitar o problemático é um


movimento destrutivo pois ele implica a dissolução e reorganização de “formas de
inteligibilidade” anteriores em nome de uma nova situação, de novos modos de vida
possíveis.

Como se vê, a delimitação do problema já é em si mesma uma espécie de construção


positiva, uma figuração do conceito. Não podemos, portanto, dizer que há uma ordem entre o
aspecto destrutivo ou construtivo da filosofia, são simultâneos. Após elaborar sobre os
aspectos positivos da atividade filosófica esse ponto ficará mais claro, mas podemos já dizer
que o ato de destruição só ocorre quando há algo que não cabe nas categorias do pensamento
tradicionais e que nos obriga a recebê-la. A maneira como iremos concebê-la (sua
conceituação) já determina quais são os elementos do solo prévio que são postos em cheque.
Por outro lado, a própria criação conceitual que se realiza não pode ser feita sem a existência
de um certo “material”. A criação é uma operação de bricolagem,697 ela rouba seu material de
construção dos conceitos que existiam anteriormente (ainda que esses conceitos já tenham
caducado a um ponto em que viraram mera opinião).
Temos agora uma ideia razoável do caráter destrutivo da filosofia e como conceber a
filosofia assim implica abdicar da busca pelo começo ideal — o começo acaba sendo sempre
onde importa. E nesse movimento ela procura combater aquilo que se apoia sobre
fundamentos absolutamente infundáveis no momento em que esses fundamentos se mostram
insuficientes. Não se trata de algo muito distante da posição de um Epicuro, para quem o
papel da física era o de uma investigação sobre a realidade que ajudasse aliviar os nossos
medos, ou de Spinoza que dizia que o conhecimento das causas daquilo que nos aflige era o
caminho para o aumento da potência de agir. A filosofia enquanto prática destrutiva nos
liberta de imagens morais da realidade que nada têm de reais.

A filosofia, portanto, só se faz filosofia na medida em que ela é fruto de um problema, ou


seja, de um encontro que força a pensar e que a obriga a questionar seu antigo solo. Mas o que

696
Idem, ibidem, p. 185
697
Sobre esse ponto cf. Gomlevsky, Pedro. Da possibilidade da metafísica, 2016.
269

é esse encontro? Esse encontro é com aquilo que justamente não tem forma ainda, é o
encontro com algo que é da ordem do insensível e do impensável e é por isso que se trata de
um problema. Mas se temos ele como um problema é porque ele irrompe como uma
violência. Como diz Deleuze: “o que é primeiro no pensamento é o arrombamento, a
violência, é o inimigo, e nada supõe a Filosofia.”.698 O problemático, na filosofia, é o ponto de
confronto com algum aspecto da realidade que permanece ininteligível mas que, apesar disso,
aparece com uma necessidade violenta. Fica claro que para Deleuze a origem do pensamento
é de certa forma de uma ordem não-filosófica. Esse aspecto impensável, porém, nos forçará a
lidar com ele, a dar uma forma para ele. E é nesse sentido, que para Deleuze, parte do esforço
da filosofia será justamente determinar e traçar os contornos daquilo que é o problema. Não é
por acaso que ele dirá que pôr o problema é já o próprio processo filosófico.
Falamos dos aspectos destrutivos que o conceito de problema ilumina na atividade
filosófica. De como o começo do pensamento é sempre in media res e que nos obriga a de
certa forma limpar o terreno para que possamos criar nossos conceitos para os nossos
problemas. A situação se complica com o fato de que esse acontecimento que irrompe só pode
ser compreendido a posteriori. O ato filosófico, como veremos, será aquele que consegue dar
nome para esse acontecimento excedente e que, nesse gesto, permite que ele seja tomado
como um corte temporal que inaugura um novo tempo. O pensamento cartesiano, por
exemplo, é paradigmático, nesse sentido. Se por um lado a construção do cogito é algo que
vem sendo anunciado e preparado pela tradição, os efeitos que essa preparação gera não são
perceptíveis até o instante em que Descartes consegue determinar o problema em questão. O
cogito não é, então, uma simples proposição que fica pendurada no vazio, mas uma forma de
tornar visível a problemática da fundamentação imanente do conhecimento. Pode-se então
dizer que a enunciação do problema, por meio da sua determinação conceitual, inaugura um
novo tempo, pois aquilo que vinha sendo construindo no fundo não tinha ainda qualquer
forma. Ao determinar (e nomear) esse acontecimento, o conceito acaba operando um corte no
tempo, marcando um antes e um depois que faz com que o problema em questão apareça
como problema (e não mais como burburinho de fundo) — mas ele não só aparece pela
primeira vez como ele também traz junto a si todo um passado que agora se faz visível
(enquanto passado) a partir do conceito que operou o corte. Ao mesmo tempo, como esse
passado, esse quadro conceitual “superado”, aparece dessa forma a partir de uma determinada
criação conceitual, isso não implica que seu potencial esteja esgotado. Se pensamos em
Espinosa, podemos ver como de o problema da imanência da experiência (já há aí um
698
Deleuze, Gilles, op. cit., p. 203
270

deslocamento operado) recebe outra forma a partir do trio substância-atributos-modos sem


que isso nos impeça de retornar a essa questão. O problema é, então, uma espécie de
demanda, mas uma demanda que não tem solução específica pré-determinada já que ela,
enquanto problema, acaba sendo sempre de uma natureza das suas soluções (e aparições)
concretas.
Algumas coisas ainda precisam ser explicadas. Tanto o processo de criação conceitual
quanto o sentido desse corte temporal que enxergamos no ato filosófico. É por isso que o
próximo passo é investigar esse processo de criação específica na filosofia que acaba por
determinar positivamente o problema.
271

III.1.2. Aspectos construtivo da filosofia: A criação conceitual

Portanto, a questão “para que serve a filosofia?” é


particularmente mal colocada. A filosofia não é um discurso
sobre a vida, mas uma atividade vital, uma maneira que a
vida tem de se intensificar conservando suas passagens, de
sentir e avaliar suas próprias divergências, suas próprias
incompatibilidades — em suma, uma maneira de devir-
sujeito, na ambiguidade e instabilidade que caracterizam a
síntese disjuntiva.
François Zourabichvili, Deleuze, uma filosofia do
acontecimento

Encontraremos um solo oportuno para pensar os aspectos criativos da filosofia na obra O


que é a filosofia? de Deleuze e Guattari. O que nos interessa na maneira como esses dois
autores pensam a prática filosófica é o fato de que eles nos permitem pensar a filosofia de um
ponto de vista criativo sem que essa criação caia em um voluntarismo vazio em que os
conceitos seriam criados a partir de um vácuo. É a própria noção de problema — e seu caráter
de imposição externa, que discutimos agora — que impede que isso aconteça. É por isso que
eles não se demoram na resposta direta à pergunta do título do livro. Já nas primeiras páginas,
respondem quando dizem que “a filosofia é a arte de formar, de inventar, de fabricar
conceitos.”699 O que torna a pergunta significativa não é o jogo de pergunta-e-resposta, mas
sim o momento envolvido na questão. Não à toa os autores começam falando sobre a velhice.
Dizem, então, que “seria necessário também que determinasse uma hora, uma ocasião,
circunstâncias, paisagens e personagens, condições e incógnitas da questão.”700 Isso nos faz
lembrar da maneira como em Mil Platôs os autores descrevem as haeccitas, esses instantes
fulgurantes, acontecimentos singulares ainda não individuados. De certa forma a pergunta

699
Deleuze, Gilles; Guattari, Félix, op. cit., p. 10. Um olhar rápido sobre a filosofia no ocidental já deixa bem
claro que, no mínimo, o conceito é um elemento central dessa atividade — de Platão e Aristóteles ao pensamento
Moderno e Contemporâneo, encontraremos instâncias infindáveis de conceitos com os quais os filósofos não
pararam de se ocupar. É claro que se pode discutir o que é um conceito, ou o que se faz com ele, e é justamente
por isso que essas questões serão desenvolvidas ao longo do livro.
700
Idem, ibidem.
272

pela filosofia é então uma pergunta pelo acontecimento que a conduz, ou seja, pelo problema
que opera um corte no tempo e que a torna inevitável.
A face positiva da atividade filosófica pode ser resumida então como conhecimento por
puros conceitos — ou, para repetir a expressão que utilizávamos, uma experimentação por
puros conceitos. Mas essa atividade só faz sentido se os conceitos são eles próprios efeitos de
uma construção. Retomando Nietzsche, Deleuze e Guattari dizem que “você não conhecerá
nada por conceitos se você não os tiver de início criado, isto é, construído numa intuição que
lhes é própria”701 Isso não significa que é necessário construir conceitos ex nihilo, mas que os
conceitos só se tornam nossos na medida em que conseguimos elaborá-los, estabelecer o solo
onde eles se sustentam etc.
Isso traz um problema quando olhamos para a história da filosofia. Se os conceitos são de
fato assinados, como os autores afirmam, deve-se perguntar como se dá a sua continuidade
histórica, visto que parece ser um dado que os conceitos se perpetuam. Bem, o conceito é uma
criação e a criação diante de um problema, um acontecimento. Isso significa que ele tem uma
hora. Mas, como vimos, essa hora que é a hora do acontecimento não é nenhum momento
temporal historicamente qualificado, é simplesmente um ponto de transformação. O momento
em que um presente é substituído pelo outro.702 O movimento peculiar que ocorre é que ao
mesmo tempo que os conceitos são preservados na relação que têm com os problemas que o
suscitaram, eles, como veremos, podem sempre ser transformados a partir de outros
acontecimentos. A quebra que um acontecimento gera ao marcar um antes e um depois não
deixa de afetar conceitos que já existiam. Ocorre uma retrotransformação dos problemas e das
situações que existiam antes desse (novo) corte. O conceito antigo, de um problema (agora)
antigo, se torna um conceito passado. Como porém o que está em jogo agora é outro
problema, de um outro acontecimento, o antigo conceito, tornado passado, se reposiciona de
outra forma diante do novo problema.703 Os conceitos não param de mudar fora do tempo.
Isso significa que os conceitos uma vez criados não deixam de ecoar em cada novo corte
temporal. Também significa que a filosofia sempre opera sobre um tabuleiro já posto e é
preciso, junto à construção, realizar certos atos de destruição — mas uma que não conduz a
um apagamento do jogo.

701
Idem, ibidem, p. 15
702
Cf. Zourabichvili, François. Deleuze, uma filosofia do acontecimento. São Paulo: Editora 34, 2016.
703
“Os conceitos têm sua maneira de não morrer, e todavia são submetidos a exigências de renovação, de
substituição, de mutação, que dão à filosofia uma história e também geografias agitadas, das quais cada
momento, cada lugar, se conservam, mas no tempo, e passam, mas fora do tempo.” (Deleuze, Gilles; Guattari,
Félix, op. cit., p. 16)
273

É preciso entender a natureza do conceito para compreender o que se passa. O conceito


não é mera coleção de abstrações ou generalidade ou mesmo descrições a partir de
semelhanças de certos objetos reais. Um conceito, como os autores insistirão ao longo do
livro, só é conceito na medida em que ele se põe a si próprio, em que ele se torna uma espécie
de máquina autônoma a partir do engate inicial — uma máquina que tem nela uma operação
contraída de seleção e recorte do real. É por conta disso que o ponto de partida da pergunta O
que é a filosofia? precisa ser o conceito de conceito.
274

III.1.2.1. O conceito

O primeiro ponto destacado por Deleuze e Guattari sobre o conceito é a sua


complexidade. Ele não é nunca atômico, ele é sempre já uma multiplicidade (ainda que nem
toda multiplicidade seja conceitual, como advertem). Mesmo o primeiro conceito é sempre já
um conceito que tem vários componentes — sinal disso é a maneira como o conceito de
começo varia entre as filosofias. Sendo uma multiplicidade ele acaba sendo também
“irregular”. Como dizem os autores, “todo conceito tem um contorno irregular, definido pela
cifra dos seus componentes. (…) É um todo, porque totaliza seus componentes, mas um todo
fragmentário.”704 O fato de que o conceito não é uma unidade indivisível é a primeira
indicação de que ele é um fruto de uma bricolagem.
Disso procede a importância da posição de um conceito. Se os conceitos são feitos de
componentes isso implica que encontraremos entre os seus componentes outros conceitos.
Mas como, então, ocorre essa distribuição hierárquica dos conceitos — isto é, em que um
conceito seria primeiro em relação a um outro tornando esse outro conceito um componente
seu? Um conceito não é primeiro em relação a outro conceito por qualquer arranjo prévio, ou
mesmo por qualquer característica intrínseca sua. O seu posicionamento depende do problema
que ocupa o filósofo. “Todo conceito remete a um problema, a problemas sem os quais não
teria sentido, e que só podem ser isolados ou compreendidos na medida de sua solução”.705 É
isso que torna possível que em um dado momento, diante de um certo problema, um conceito
ocupe uma posição central e que, no momento em que um novo problema surge, ele acabe se
tornando parte acessória de um outro conceito que agora ocupa a posição central.
Essa transformação de posição implica aquilo que já mencionamos sobre a “perpetuação”
estranha dos conceitos (“todo conceito tem uma história”).706 O corte produzido por um novo
problema não implica que os conceitos anteriores somem de maneira absoluta, significa
apenas que nesse novo presente eles irão ser dispostos de uma outra forma. Nas palavras dos
autores:

704
Idem, ibidem, p. 27
705
Idem, ibidem, pp. 27-28
706
Idem, ibidem, p. 29
275

num conceito, há, no mais das vezes, pedaços ou componentes vindos de outros conceitos, que
respondiam a outros problemas e supunham outros planos. Não pode ser diferente, já que cada
conceito opera um novo corte, assume novos contornos, deve ser reativado ou recortado.707

Mas essa não é a única forma de movimento do conceito, pois ele “possui um devir que
concerne, desta vez, a sua relação com conceitos situados no mesmo plano.”708 Um conceito,
portanto, nunca funciona de maneira simples. A pluralidade (finita) de componentes o faz
“bifurcar” constantemente sobre outros conceitos que respondem a problemas
“conectados”.709 É da natureza do conceito que suas partes (elas próprias já conceitos em um
estado subordinado) o levem o para fora dele próprio. Assim sendo, o limite entre o dentro e o
fora de um conceito não pode ser um invólucro que impede o que está dentro de sair e o que
está fora de entrar. Trata-se antes de uma membrana porosa que permite que o conceito se
constitua a partir de um jogo de interiorização e exteriorização. É por isso que os autores
afirmarão que “um conceito não exige somente um problema sob o qual remaneja ou substitui
conceitos precedentes, mas uma encruzilhada de problemas em que se alia a outros conceitos
coexistentes.”710
Dessa forma, o elemento inicial que se tem na descrição do conceito de conceito é a
multiplicidade inerente à sua constituição. Ela é observável tanto internamente, na maneira
como um determinado conceito é feito a partir de outros conceitos (conceitos, muitas vezes
tradicionais , que são ressignificados a ponto de se tornarem partes de novos conceitos), como
externamente, se considerarmos seu devir atual (o movimento de um conceito para outros
problemas). Mas se as partes de um conceito são consideradas elas mesmas conceitos,
precisamos entender o que faz com que sua composição produza algo novo. Isso nos leva a
um segundo elemento desse conceito do conceito. Para Deleuze e Guattari aquilo que torna
um conjunto de partes um conceito é a sua inseparabilidade. Os autores chamarão essa
característica de endoconsistência: “é que cada componente distinto apresenta um
recobrimento parcial, uma zona de vizinhança ou um limite de indiscernibilidade com um
outro”711 sem que as partes se confundam numa mistura indiferenciada. O que garante então a
unidade do conceito é uma indiscernibilidade das partes.712 Mas essa endoconsistência não
exclui uma exo-consistência com outros conceitos, como já falamos, a articulação com

707
Idem, ibidem, pp. 29-30
708
Idem, ibidem, p. 30
709
Esse ponto ficará mais claro quando, mais adiante, discutirmos o movimento do plano de imanência.
710
Idem, ibidem.
711
Idem, ibidem, p. 31
712
“há um domínio ab que pertence tanto a a quanto a b, em que a e b ‘se tornam’ indiscerníveis.” (Idem,
ibidem, p. 32)
276

conceitos de “problemas conectáveis” ao nosso problema referência (trata-se do seu devir).


Dessa indiscernibilidade é que chegamos ao terceiro ponto elaborado por Deleuze e Guattari.
Um conceito pode ser concebido como o “ponto de coincidência, de condensação ou de
acumulação de seus próprios componentes.”713 Ele é o próprio movimento que decorre dessa
endoconsistência e percorre de maneira ininterrupta todos os seus componentes. Não basta,
então, simplesmente uma pluralidade de partes ou mesmo simplesmente uma vizinhança entre
as partes. Essa pluralidade se reúne a um ponto de se tornarem indiscerníveis por meio do
movimento que percorre todos os seus termos. Esse movimento será chamado pelos autores
de traço intensivo (uma ordenada intensiva), isto é, uma “pura e simples singularidade”.714
Pode-se então dizer que o conceito, enquanto traço intensivo, não faz referência a nenhum
objeto específico individuado, mas ao movimento próprio que produz um indivíduo qualquer.
“As relações no conceito não são nem de compreensão nem de extensão, mas somente de
ordenação, e os componentes do conceito não são nem constantes nem variáveis, mas puras e
simples variações ordenadas segundo sua vizinhança.”715 Os componentes do conceito não
são portanto nada que tenha qualquer referência quantitativa ou mesmo correspondência a
qualquer objeto que experimentamos — i.e., um conceito não é “sobre alguma coisa”, ele não
representa nada. Eles são diferenças qualitativas (não redutíveis a uma referência/escala
homogeneizante) que se organizam de acordo com as outras diferenças qualitativas (traços
intensivos) que se encontram em sua vizinhança. Como variações que são, porém, essas
diferenças comportam fases e nem todas as fases de uma variação irão compor com os outros
componentes. Mas essa fase, o que ela é especificamente? Um pouco mais adiante os autores
esclarecem que se trata de uma zona de variação de um conceito. Ao falar de Descartes,
dizem então que “com efeito, a dúvida comporta momentos que não são as espécies de um
gênero, mas as fases de uma variação: dúvida sensível, científica, obsessiva.”716 A fase de um
componente é então aquilo que delimita sua configuração específica e, consequentemente,
determina com quais conceitos ela poderá se relacionar. Um componente de um conceito reter
apenas uma determinada fase é, pois, “precisamente o sinal de que o conceito se fecha como
totalidade fragmentária (…) [e] não se passará às outras fases do [componente em questão]
senão por pontes-encruzilhadas que levam a outros conceitos.”.717 Encontramos aí nesse
conceito de fase não só a endoconsistência, como a exo-consistência, pois é a partir de

713
Idem, ibidem.
714
Idem, ibidem, p. 32
715
Idem, ibidem.
716
Idem, ibidem, p. 38
717
Idem, ibidem.
277

variação de fase de um componente que se passa para um outro conceito. Nesse sentido
pode-se dizer então que a vizinhança dos componentes é na verdade a proximidade das fases
de componentes distintos. O conceito, enquanto ponto de coincidência é, portanto algo que
“está em estado de sobrevoo com relação aos seus componentes. Ele é imediatamente
presente sem nenhuma distância de todos os seus componentes ou variações, passa e repassa
por eles.”718
Deleuze e Guattari falam, então, sobre como um conceito é de natureza incorporal. Isto
significa que ele encarna ou se efetua nos corpos apesar de que “não se confunde com o
estado de coisas no qual se efetua”719 — ou seja, as palavras ou s proposições nas quais ele
aparece. Isso remete aquilo que falamos anteriormente sobre os traços intensivos: que os
conceitos não têm extensão, são apenas diferenças singulares (não homogeneizadas). É por
isso que o conceito fala sempre do acontecimento e nunca de coisas propriamente ditas. O
Cogito, por exemplo, é um conceito não na medida em que ele representa “algo” da nossa
subjetividade (ou “a nossa subjetividade”), mas na medida em que ele fala sobre a ordenação
de certas diferenças qualitativas puras que apontam para a relação de um duvidar, com um
pensar, com um ser para dar conta de algo que excede (ou excedia) as nossas categorias
usuais. Se identificamos o conceito anteriormente como uma operação de seleção e recorte é
porque se trata de uma delimitação das experiências possíveis a partir dessa ordenação de
diferenças qualitativas. O cogito, enquanto conceito, é o movimento que percorre esses três
componentes em velocidade infinita720 e que busca dar conta desse acontecimento que se
efetua numa realidade extensa sem se reduzir a ela. Os autores definiram o conceito então
como “inseparabilidade de um número finito de componentes heterogêneos percorridos por
um ponto em sobrevoo absoluto, à velocidade infinita.”721
Dado essas características o conceito será ao mesmo tempo absoluto e relativo. Relativo
aos seus componentes, ao problema que ele se liga, aos outros conceitos que se encontram
conectados a ele. O caráter absoluto tem a ver com a condensação que ele realiza dos seus
componentes, o local que ele ocupa no plano e a maneira como ele determina o problema. Nas
palavras dos autores,

718
Idem, ibidem, p. 33
719
Idem, ibidem.
720
Para entender o conceito de velocidade infinita é de grande ajuda relembrar a descrição que Deleuze faz do
pensamento epicurista em Lógica do sentido. Lá o autor disuctirá a existência de um “tempo menor que o
mínimo do tempo pensável” (Deleuze, Gilles. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 2011. p. 282). A
velocidade infinita teria a ver não com qualquer aspecto quantitativo, mas com o fato de que as coisas se
transformam ou se dão numa velocidade mais rápida do que o mínimo de tempo que o nosso pensamento é capaz
de abarcar. É por isso que o sobrevôo operando no conceito é ao mesmo tempo infinito e simultâneo. A
simultaneadade, nesse caso, não sendo uma de ordem estática, mas de um movimento.
278

É absoluto como todo, mas relativo enquanto fragmentário. É infinito por seu sobrevoo ou sua
velocidade, mas finito por seu movimento que traça o contorno dos componentes. (…) A relatividade
e a absolutidade do conceito são como sua pedagogia e sua ontologia, sua criação e sua autoposição,
sua idealidade e sua realidade. Real sem ser atual, ideal sem ser abstrato… O conceito define-se por
sua consistência, endoconsistência e exo-consistência, mas não tem referência: ele é auto-referencial,
põe-se a si mesmo e põe seu objeto, ao mesmo tempo que é criado. O construtivismo une o relativo e o
absoluto.722

Isso é importante para diferenciar o conceito de uma simples proposição. Para Deleuze e
Guattari a proposição está relacionada a uma referência, ao estado de coisas ou corpos com os
quais ela tem relação. Nesse sentido a proposição é extensional (enquanto o conceito, como
vimos, é da ordem da intensidade). Elas “implicam sucessivas operações de enquadramento
em abcissas ou de linearização que fazem os dados intensivos entrar em coordenadas espaço-
temporais e energéticas, em operações de correspondência entre conjuntos assim
delimitados.”723 Isso quer dizer que as proposições dependem sempre de uma “referência”
que permite conversão do intensivo (a diferença qualitativa) em extensivo (diferença
quantitativa). Por isso que enquanto nos sistemas extensivos temos variáveis independentes
(elas são variáveis a partir do plano de referência), nos conceitos vemos uma inseparabilidade
das variações. Os conceitos não têm coordenadas pois não tem nenhum ponto que permite
homogeneizar as diferenças. Ele é a própria relação entre diferenças sem referências (puras
qualidades). A relação dos conceitos entre si é, então, uma de ressonância, já que eles “são
centros de vibrações, cada um em si mesmo e uns em relação aos outros. É por isso que tudo
ressoa, em lugar de se seguir ou de se corresponder.”724 Pode-se dizer então que essa relação é
sempre “irregular”, já que não há nada que organize os conceitos de antemão para que todos
eles se encaixem de em um framework organizado. Há uma outra razão para essa
irregularidade, mas discutiremos ela mais a frente quando falarmos sobre a relação entre a
criação conceitual e a instauração de um plano de imanência — um movimento que é o
contrário do movimento das referências, que precisam antes de um plano que neutralize essas
diferenças.
É por isso que a enunciação de posição que ocorre nas enunciações é diferente nas
proposições e nos conceitos. Enquanto nas proposições essas posições são exteriores às
proposições (já que o quadro de referência é anterior, no conceito), a enunciação de posição

721
Deleuze, Gilles; Guattari, Félix, op. cit.., p. 33
722
Idem, ibidem, p. 34
723
Idem, ibidem, p. 35
724
Idem, ibidem.
279

na filosofia só pode ser imanente ao conceito, pois “esta não tem outro objeto senão a
inseparabilidade dos componentes pelos quais ele próprio passa e repassa, e que constitui sua
consistência.”725 Nos conceitos a posição é determinada junto ao conceito, já que ele é
autoposição. Não existe plano a priori que o recebe, mas um plano se instaura em sua
enunciação. Isso não significa que as proposições são completamente sem valor, apenas que
sua área de atuação e o que elas tentam dar conta é algo de outro da filosofia.
Após essas análises, algumas questões parecem surgir no horizonte. Como se dá a relação
entre filósofos diferentes? Para responder a essa questão, o primeiro movimento de Deleuze e
Guattari é recusar a ideia de que é possível avaliar os conceitos de filósofos diferentes. Para
eles isso nem é uma questão, visto que o conceito tem sua relevância associada ao problema
que ele responde. Se certos conceitos semelhantes ressurgem em ocasiões diferentes (como
nos casos em que um determinado conceito parece estar preparando um conceito futuro) eles
ainda assim se distinguem pois os problemas que os orientam são distintos. Inclusive, é o
surgimento de novos problemas que leva à necessidade de produzir novos conceitos. Não é
possível dizer então que há um plano conceitual melhor que outro. Pode-se apenas dizer que
“os novos conceitos devem estar em relação com problemas que são os nossos, com nossa
história e sobretudo com nossos devires.”726 Ou seja, os conceitos podem ser ditos melhores
apenas no sentido de que “nos interessam mais” em determinado momento. Como dizem os
autores, “se um conceito é ‘melhor’ que o precedente, é porque ele faz ouvir novas variações
e ressonâncias desconhecidas, opera recortes insólitos, suscita um Acontecimento que nos
sobrevoa.”727 A passagem (recorte) do tempo que mencionamos, os novos acontecimentos,
acabam nos obrigando a pensar de outra maneira. Mas isso não leva a um apagamento da
história. Problemas já constituídos anteriormente e seus respectivos conceitos podem ser
reativados e podem também nos ajudar na construção de novos conceitos — ainda que nesses
casos, os antigos conceitos passam a ser conduzidos pelo novo problema em jogo. É por conta
dessa diversidade de problemas que os autores desprezarão qualquer discussão ou disputa
entre filósofos. Ou eles dizem a mesma coisa (quando buscam determinar o mesmo problema)
ou eles divergem por estarem lidando com problemas completamente diferentes. A filosofia
enquanto crítica — que discutimos anteriormente — ganha um novo sentido. A face
destrutiva da filosofia é um movimento que busca “constatar que um conceito se esvanece,

725
Idem, ibidem, p. 36
726
Idem, ibidem, p. 40
727
Idem, ibidem, pp. 40-41
280

perde seus componentes ou adquire outros novos que o transformam, quando é mergulhado
em um novo meio.”728
Essa relação do conceito com o acontecimento ainda está um pouco obscura nesse ponto e
precisa ser mais explicitada. É por isso que é preciso dizer que o conceito não apenas diz o
acontecimento (“O conceito é o contorno, a configuração, a constelação de um acontecimento
por vir.”),729 mas que ele precipita o acontecimento. É por meio da criação do conceito que —
anti-intuitivamente — o acontecimento é destacado. Como dizem os autores:

O conceito é evidentemente conhecimento, mas conhecimento de si, e o que ele conhece é o puro
acontecimento, que não se confunde com o estado de coisas na qual se encarna. Destacar sempre um
acontecimento das coisas e dos seres é a tarefa da filosofia quando cria conceitos, entidades. Erigir o
novo evento das coisas e dos seres, dar-lhes sempre um novo acontecimento: o espaço, o tempo, a
matéria, o pensamento, o possível como acontecimentos…730

O conceito, assim é, portanto mais do que uma palavra. Ao nomear um acontecimento ele
opera um recorte no tempo que produz um antes e um depois, ressignificando a partir desse
corte com o passado, mas também modificando o horizonte porvir — um novo mundo se
torna real.
É por isso que parece besteira querer atribuir o conceito filosófico às práticas científicas,
como vemos acontecendo hoje em dia em alguns ambientes da filosofia analítica, que
delegam para as ciências cognitivas uma série de responsabilidades. O que acontece na prática
com esse gesto é que isso acaba retirando da filosofia qualquer especificidade. Rapidamente a
filosofia se torna uma forma secundária de fazer conceitos, apenas dando conta de uma
insuficiência da ciência a partir de uma noção vaga de vivido que só a filosofia poderia dar
conta — e mesmo isso teria seus dias contados. O que a filosofia faz de fato é, como falamos,
da ordem do acontecimento. Ela “consiste, por sua própria criação, em erigir um
acontecimento que sobrevoe todo o vivido, bem como qualquer estado de coisas.”731 A
filosofia portanto é uma prática que só pode ser avaliada a partir dos “acontecimentos aos
quais seus conceitos nos convocam, ou que ela nos torna capazes de depurar em conceitos.”732
Só, portanto, a partir do corte temporal que a filosofia produz, os novos pontos de vista,
perspectivas que ela traz, é que é possível avaliar a filosofia.

728
Idem, ibidem, pp. 41-42
729
Idem, ibidem, p. 46
730
Idem, ibidem.
731
Idem, ibidem, p. 47
732
Idem, ibidem.
281

III.1.2.2. O plano de imanência

Agora que temos uma ideia do conceito, podemos examinar aquela sua contraparte
imediata, o plano de imanência. Ele é o plano de consistência dos conceitos. Ele não é um
conceito, mas o fundo a partir do qual os conceitos se instauram, como que sua condição —
ainda que ela não seja determinada a priori. O plano, portanto, apesar de não existir sem o
conceito, não pode ser confundido com ele, pois é no plano que se encontra uma certa
abertura criativa. Deleuze e Guattari elaboram então um segundo aspecto do construtivismo
filosófico, isto é, o ato de traçar um plano.
Como podemos distinguir, portanto, esses dois elementos da prática filosófica?
Inicialmente isso é feito a partir do tipo de movimento que está relacionado a cada conceito.
Segundo os autores, “O plano envolve movimentos infinitos que o percorrem e retornam, mas
os conceitos são velocidades infinitas de movimentos finitos, que percorrem cada vez
somente seus próprios componentes.”733 O plano é portanto a movimentação infinita (o que
lhe confere uma fluidez) enquanto o conceito é o movimento finito (considerando que ele tem
componentes finitos) em uma velocidade infinita. Outra forma de descrever a distinção entre
conceito e plano é que enquanto o conceito é uma região delimitada — “volumes absolutos,
disformes e fragmentários”734 —, o plano é o que percorre uma constelação de conceitos —
“o plano é a respiração que banha essas tribos isoladas”.735 Nesse momento Deleuze e
Guattari fazem um apelo a uma terminologia desenvolvida em Mil Platôs ao dizer que “os
conceitos são agenciamentos concretos como configurações de uma máquina, mas o plano é a
máquina abstrata cujos agenciamentos são peças.”736 O que significa que os planos são as
condições virtuais do conceito — seu espectro de capacidades indefinidas mas não infinitas.
É por isso que também será dito que o plano de imanência é o horizonte de
acontecimentos puramente conceituais, um horizonte “que torna o acontecimento como
conceito independente de um estado de coisas visível em que ele se efetuaria.”.737 Nesse
sentido o plano só pode ser indivisível, um meio onde os conceitos se distribuem ou ocupam
sem dividi-lo. Mas ao mesmo tempo o plano só existe na medida em que ele é ocupado, pois
“são os conceitos mesmos que são as únicas regiões do plano, mas é o plano que é o único

733
Idem, ibidem, p. 51
734
Idem, ibidem, p. 52
735
Idem, ibidem.
736
Idem, ibidem.
737
Idem, ibidem.
282

suporte dos conceitos.”.738 O plano é, portanto, a zona onde os conceitos se instauram, mas
uma zona que nunca excede o próprio espaço de ocupação ou movimentação dos conceitos
que nela se instalam.
Por conta dessa estrutura particular de condição do conceito, o plano de imanência não é
algo que é propriamente pensado, ele é “a imagem do pensamento, a imagem que ele se dá do
que significa pensar, fazer uso do pensamento, se orientar no pensamento…”739 Ele é portanto
o fundo impensado do pensamento que sustenta e condiciona o pensamento que se faz. Como
dizem os autores, “A imagem do pensamento implica uma severa repartição do fato e do
direito: o que concerne ao pensamento, como tal, deve ser separado dos acidentes que
remetem ao cérebro, ou às opiniões históricas.”740 Isso significa que diz respeito ao plano de
imanência apenas aquilo que lhe é de direito, que lhe pertence de maneira intrínseca e não
acidental. Para Deleuze e Guattari esse elemento de direito seria “o movimento que pode ser
levado ao infinito. O que o pensamento reivindica de direito, o que ele seleciona, é o
movimento infinito ou o movimento do infinito. É ele que constitui a imagem do
pensamento.”741
O que é esse movimento específico do plano de imanência? Bem, evidentemente não se
trata de nenhum movimento extensivo (distância percorrida em um tempo cronometrado). Os
autores então dirão que “o que está em movimento é o próprio horizonte”,742 é um movimento
que em todas as direções que ele parte ele sempre vai e volta (“é uma ida e volta, porque ele
não vai na direção de uma destinação sem já retornar sobre si, a agulha sendo também o
polo.”).743 É como se essa fosse a forma de simultaneidade do movimento. Se para algo
estático ocupar um espaço absoluto é preciso que se esteja em todos os pontos ao mesmo
tempo, um movimento absoluto (infinito) precisa percorrer em todos os vetores as direções
que ele toma num movimento menor que o menor movimento pensável.744 Então para cada
movimento (direção-vetor), há sempre o movimento inverso sendo percorrido também — só
assim podemos descrever o movimento infinito que é necessariamente plural sem ser
redutível a um movimento (“não é uma fusão, entretanto, é uma reversibilidade, uma troca

738
Idem, ibidem, “O plano não tem outras regiões senão as tribos que o povoam e nele se deslocam. É o plano
que assegura o ajuste dos conceitos, com conexões sempre crescentes, e são os conceitos que asseguram o
povoamento do plano sobre uma curvatura renovada, sempre variável.” (Idem, ibidem, pp. 52-53)
739
Idem, ibidem, p. 53
740
Idem, ibidem.
741
Idem, ibidem.
742
Idem, ibidem, p. 54
743
Idem, ibidem.
744
Para retomar aquele comentário que fizemos sobre a velocidade infinita a partir de Lógica do sentido.
283

imediata, perpétua, instantânea, um clarão”).745 Parece, a princípio, que estamos falando de


algo semelhante ao que Whitehead chama de ideias eternas, que é o campo de experiência
transcendental onde se encontram todos os movimentos possíveis ainda que não sejam todos
compossíveis (simultaneamente atualizáveis).746 Mas a coisa muda de figura se nos
lembramos que, não sendo extensivo, o movimento é de ordem intensiva. Ele precisa ser um
movimento intensivo e por ser intensivo podemos dizer que são diferenças qualitativas
incomensuráveis que estão em jogo. O movimento desse tipo ocorre na transformação das
qualidades umas nas outras pela sua variação (o que produz essa variação, se é interno ou
externo são outras questões, mas, considerando que falamos aqui do pensamento, tudo indica
que o que produz a variação sejam encontros) — um movimento que nunca é linear, mas
cumulativo (a retroação funcionando aqui). Nesse sentido não pode haver reversão no sentido
de um retorno pois o passado já não é mais o que era.747 O retorno num sentido corriqueiro
seria como seguir a trilha tomada, mas o fato é que como o próprio movimento de
transformação acaba por alterar o passado ao reposiciona-lo a volta não pode ser nesse
sentido.
Essa duplicidade (reversão) do movimento parece esclarecida quando Deleuze e Guattari
falam sobre a relação entre o movimento do pensamento e a matéria do ser. A relação de
reversibilidade é entre “imagem do pensamento” e “matéria do ser”. Quando dizem então que
“quando o pensamento de Tales, é como água que o pensamento retorna”748 o que parece estar
sendo dito é que o efeito que o pensamento produz é que o acontecimento incognoscível (o
problema) aparece a partir da forma pensada — ainda que tenha sido justamente o
incognoscível que tenha dado partida ao processo de pensamento. Dizer que o pensamento do
ser como água faz o pensamento retornar como água parece ser a descrição do mecanismo de
feedback entre pensamento e ser: “o plano de imanência tem duas faces, como Pensamento e
como Natureza, como Physis e como Noûs”.749 Somos afetados e responder a esse movimento
é atribuir-lhe uma forma, dar um nome. Mas dar um nome, por sua vez, faz com que o
acontecimento retorne de uma outra forma (pois não há retorno de fato — e o retorno de

745
Idem, ibidem.
746
Cf. Whitehead, Alfred North. Science and the modern world. Nova Iorque: Free Press, 1967. pp. 157-172
747
Há um comentário a ser feito sobre Twin Peaks: The return que leve isso em consideração mas que não
temos capacidade de fazer nesse momento. Mencionamos isso porém, pois as experimentações de David Lynch
foram fundamentais para conseguir uma orientação nessa discussão sobre o movimento infinito do plano de
imanência.
748
Deleuze, Gilles; Guattari, Félix, op. cit.., p. 54
749
Idem, ibidem, Não precisamos (nem devemos) pensar nessas duas faces do plano como atributos dados de
antemão, como acontece com Espinosa. O Noûs e a physis devem ser compreendidos como ressonâncias. Mas
mais que isso, devemos tratá-los – seguindo o mote deleuziano – não como algo que explica, mas que deve ser
284

direito é justamente esse movimento de reversão-irreversível que estamos tentando


descrever). Se voltarmos brevemente para o vocabulário de recorte e seleção que
utilizávamos, é possível dizer que uma determinada operação de seleção e recorte o real nos
apresenta determinados objetos a partir dessa operação. Por sua vez, a partir desse momento
esses objetos se tornam eles próprios reais e passíveis serem eles próprios alvos de um novo
movimento de operação e recorte que gera novos objetos. Se o recorte e a seleção se
relacionam ao conceito de conceito, o plano de imanência é a circunscrição dos limites
móveis dessa operação. A partir disso acredito que seja possível compreender melhor o que
Deleuze e Guattari dizem quando descrevem esse movimento:

É por isso que há sempre muitos movimentos infinitos presos uns nos outros, dobrados uns nos outros,
na medida em que o retorno de um relança um outro instantaneamente, de tal maneira que o plano de
imanência não pára de se tecer, gigantesco tear. Voltar-se-para não implica somente se desviar, mas
enfrentar, voltar-se, retornar, perder-se, apagar-se.750

Ou seja, o plano de imanência é como que o espaço onde se joga esse vai e vem, esse
feedback entre physis e noûs, que em tese é um plano que se desdobra na medida em que os
conceitos são criados para lidar com acontecimentos e desses conceitos novos, por sua vez,
abre-se espaço para que novos acontecimentos apareçam:

Cada movimento percorre todo o plano, fazendo um retorno imediato sobre si mesmo, cada um se
desdobrando, mas também dobrando outros ou deixando-se dobrar, engendrando retroações conexões,
proliferações, na fractalização desta infinidade infinitamente redobrada (curvatura variável do
plano).751

Esse movimento de variação pura que seria o plano de imanência traz uma nova questão.
É preciso explicar a possibilidade de existir diferentes planos de imanência, pois “tanto mais
necessário será explicar por que há planos de imanência variados, distintos, que se sucedem
ou rivalizam na história, precisamente segundo os movimentos infinitos retidos,
selecionados.”752 Vê-se como a própria dinâmica de feedback afeta a discussão de Deleuze e
Guattari sobre o plano de imanência. Eles partem de um problema (o elemento condicionante
dos conceitos) e a criação do conceito de plano de imanência faz com que o plano de
imanência retorne para eles, com novos problemas, no caso a sua possível pluralidade.

explicado. O pensamento de Schelling inclusive parece ter ido nessa via, ao tentar dar conta da gênese material
do sujeito transcendental.
750
Idem, ibidem, pp. 54-55
751
Idem, ibidem, p. 55
285

Dessa forma a natureza dos elementos do plano não podem se confundir com a dos
conceitos, mesmo quando acontecem de ter o mesmo nome. Há uma diferença de natureza
entre eles pois “os elementos do plano são traços diagramáticos, enquanto os conceitos são
traços intensivos.”753 E é nesse ponto que vemos mais claramente a distinção entre plano e
conceito, pois enquanto os traços diagramáticos são “movimentos do infinito”, os elementos
do conceito são “ordenadas intensivas desses movimentos, como cortes originais ou posições
diferenciais: movimentos finitos, cujo infinito é só de velocidade, e que constituem cada vez
uma superfície ou um volume, um contorno irregular marcando uma parada no grau de
proliferação.”754 Os componentes do conceito são justamente a circunscrição de um
movimento em alguns elementos finitos em uma movimentação em velocidade infinita, são
intensões. Os elementos do plano, porém, são “direções absolutas de natureza fractal”,755
intuições — mas intuição aqui no sentido específico de “movimentos infinitos do
pensamento, que percorrem sem cessar um plano de imanência.”756 São os aspectos
pressupostos de um pensamento e que o condicionam sem serem determinados de maneira
finita.
Isso precisa ser melhor elaborado. É por isso que em seguida os autores procuram
descrever a instauração do plano de imanência (algo que é diferente da criação dos conceitos).
O plano de imanência é uma pressuposição não-conceitual do conceito, ou seja, trata-se do
fundo contra o qual o conceito se destaca. Deleuze e Guattari dão alguns exemplos que
ajudam a esclarecer essa relação:

Em Descartes, tratar-se-ia de uma compreensão subjetiva e implícita suposta pelo Eu penso como
primeiro conceito; em Platão, era a imagem virtual de um já pensado que redobraria todo conceito
atual. Heidegger invoca uma “compreensão pré-ontológica do Ser” que parece implicar a captação de
uma matéria do ser em relação com uma disposição do pensamento.757

Como já falamos, o plano é simultâneo ao conceito, e por isso os autores dizem que “pré-
filosófica não significa nada que preexista, mas algo que não existe fora da filosofia, embora
esta o suponha. São suas condições internas.”758 O plano de imanência é, então, um certo
duplo do conceito, pois ele o condiciona sem ser anterior a ele. São as capacidades de uma

752
Idem, ibidem.
753
Idem, ibidem, p. 56
754
Idem, ibidem.
755
Idem, ibidem.
756
Idem, ibidem, pp. 56-57
757
Idem, ibidem, p. 57
758
Idem, ibidem.
286

filosofia em seu estado não-delimitado, mas uma capacidade que não existe fora de sua
relação com os conceitos criados. Por conta disso a própria “exploração” de um plano de
imanência é sempre feita como que as cegas, já que ele só pode ser realizado indiretamente
por meio dos conceitos. Podemos dizer então que essa exploração de um plano é feita a partir
de uma experimentação com os conceitos para encontrar seus limites na própria prática
conceitual.
Mas de que maneira ocorre a instauração de um plano? “O plano de imanência é como
um corte do caos e age como um crivo.”759 O caos é

menos a ausência de determinações que a velocidade infinita com a qual elas se esboçam e apagam:
não é um movimento de uma a outra mas, ao contrário, a impossibilidade de uma relação entre duas
determinações, já que uma não aparece sem que a outra tenha já desaparecido, e que uma aparece
como evanescente quando a outra desaparece como esboço. O caos não é um estado inerte ou
estacionário, não é uma mistura ao acaso. O caos caotiza, e desfaz no infinito toda consistência.760

O caos, podemos resumir, são as coisas em seu puro movimento sem que elas tenham um
mínimo de estabilidade. Isso significa que para os autores o real antes de qualquer recorte não
é algo morto ou sem vida, mas pelo contrário, um movimento de diferenciação tão intenso e
veloz que nenhuma estabilidade se produz.761 A atividade filosófica (mas não só ela) podemos
dizer é uma tentativa de produzir um mínimo de estabilidade (os autores usam a palavra
consistência). No caso específico da filosofia, trata-se de “dar consistência sem nada perder
do infinito”.762 A instauração de um plano de imanência é então uma preservação desse
movimento infinito nas suas “curvaturas variáveis”, curvaturas que indicam justamente o
movimento de ida e volta do caos e que não param, nesse feedback, de produzir novas
curvaturas. Os conceitos por sua vez são os contornos variáveis que se inscrevem sobre o
plano, delimitando no plano ordenadas intensivas. Mas como dissemos, considerando que o
plano de imanência não preexiste à criação conceitual, o estabelecimento de ordenadas
intensivas, dos contornos, é ele o mesmo movimento que instaura os pressupostos de um
pensamento — ou, nos termos utilizados agora, as curvaturas que os conceitos contornam —,
suas puras capacidades.

759
Idem, ibidem, p. 59
760
Idem, ibidem.
761
“Define-se o caos menos por sua desordem que pela velocidade infinita com a qual se dissipa toda forma que
nele se esboça. É um vazio que não é um nada, mas um virtual, contendo todas as partículas possíveis e
suscitando todas as formas possíveis que surgem para desaparecer logo em seguida, sem consistência nem
referência, sem consequência.” (Idem, ibidem, p. 153)
762
Idem, ibidem, p. 59
287

A filosofia começa então não com uma simples elaboração de proposições que fingem ser
conceitos, mas com conceitos que efetivamente instauram um plano de imanência e
conseguem preservar o movimento infinito do caos. Aí aparece mais uma característica do
plano de imanência: ele só é verdadeiramente instaurado quando ele é de fato imanente. Isso
ocorre quando se opera o recorte no caos a partir de alguma “ordem transcendente, imposta de
fora por um grande déspota ou por um deus superior aos outros”.763 O plano é imanente na
medida em que nele não há nenhum apelo a algo fora do plano para justificar a criação dos
conceitos — ou seja, quando os seus conceitos são imanentes ao plano. Os casos de uma
transcendência que acaba se instalando no seio dos planos filosóficos acontecem no momento
em que um plano de imanência se torna “imanente a algo”. Nas palavras dos autores, “cada
vez que se interpreta a imanência como ‘a’ algo, produz-se uma confusão do plano com o
conceito, de modo que o conceito se torna um universal transcendente, e o plano um atributo
no conceito.”764 Há uma inversão dos papeis do plano e do conceito que acaba por
reintroduzir o transcendente à imanência. “É somente quando a imanência não mais é
imanente a outra coisa senão a si que se pode falar de um plano de imanência.”765 É por isso
que esse campo só pode ser impessoal, pois qualquer “eu” rapidamente tenderia a reintroduzir
alguma transcendência. O que se encontra no campo são, pois, acontecimentos, que é
justamente aquilo que os conceitos buscam dizer, “um pensamento”, “um ser” etc. Em certo
sentido é a própria prática filosófica, enquanto atividade experimental, que constitui os corpos
ao traçar limites reais e não se ater a um corpo moral. É por isso que mesmo que os conceitos
tenham assinatura, falar da filosofia como uma prática que existe na consciência de algum
pensador não faz muito sentido. É antes a prática filosófica enquanto uma atividade autônoma
(mas nem por isso sem local ou momento) que constitui os corpos.
Mas, como os exemplos da história da filosofia que Deleuze e Guattari mostram,766 a
imanência absoluta é antes um polo extremo do que uma realidade concreta, de modo que há
uma tendência dos planos serem envolvidos por ilusões. As ilusões não são, portanto, meros
acidentes, elas são engendradas pelo próprio plano (“o plano de imanência ilimitado (…)
engendra também alucinações, percepções errôneas, sentimentos maus…”).767 Podemos

763
Idem, ibidem, p. 60
764
Idem, ibidem, p. 62
765
Idem, ibidem, p. 65
766
Cf. Idem, ibidem, pp. 61-67
767
Idem, ibidem, p. 67 Algumas dessas ilusões inclusive são enumeradas pelos autores. São quatro: a ilusão de
transcendência, a ilusão dos universais, a ilusão do eterno e a ilusão da discursividade (Cf. Idem, ibidem, p. 67-
68)
288

inclusive associar essas ilusões aos falsos problemas que tratamos acima, considerando que a
sua gênese deve ser traçada para poder dissolvê-los.
Como o plano é apenas um recorte ou crivo sobre o caos, pode-se entender agora como
que podem existir múltiplos planos: “nenhum abraçaria todo o caos sem nele recair, e (…)
todos retêm apenas movimentos que se deixam dobrar juntos.”768 A variação dos planos não
se restringe, portanto, apenas conforme os erros ou as transcendências reinjetadas em um
plano. Eles variam na medida em que cada um deles “opera uma seleção do que cabe de
direito ao pensamento.”769 Mas não se precisa conceber essa variedade de seleções como
determinações discretas. Como fazem questões de afirmar os autores, essa pluralidade dos
planos tem antes um caráter folhado. O que se pretende dar conta com isso é que em sua
variedade os planos não deixam de se aproximar ou de apresentar semelhanças. Os planos
podem então ser concebidos de maneira mais ou menos específica, dependendo da
proximidade ou das distinções que se pensa o plano, pois “o que varia não são somente os
planos, mas a maneira de distribuí-los.”770 O que se tira disso é que a instauração de um plano
novo é sempre um movimento mais complexo do que um simples recorte do caos.771 O
próprio jogo entre novidade e tradição é uma constante da história da filosofia, de modo que
os filósofos sempre acabam hesitando entre a figura do aventureiro que corre enormes riscos
de recair no caos ao tentar operar um novo crivo nele ou a figura de um mero funcionário do
pensamento, que só procura retomar os esforços de uma tradição. Os novos planos
inevitavelmente acabam sendo construídos sobre solos anteriores. Como porém nenhum plano
é perfeito — absolutamente imanente —, qualquer plano sobre o qual nos instalamos acaba
contendo imperfeições provocados pelo caos ou elementos transcendentes que se reinscrevem
e perfuram a imanência. É por isso que os autores dirão que nesse movimento de instauração
acaba-se “deixando passar essas névoas que o envolvem e nas quais o filósofo que o traçou
arrisca-se frequentemente a ser o primeiro a se perder.”772 As névoas sendo sempre frutos ou
de uma inevitável reintrodução de transcendência ao tornar a imanência imanente “a algo” ou
do risco de se aproximar demais do caos na hora de tentar instaurar um novo plano.
Apesar dessa variação e das imperfeições os planos não competem em si. O plano de
imanência é variado, mas em si ele não tem rivais, pois ele é propriamente a determinação do
que cabe de direito ao pensamento. O que cabe ao pensamento, por sua vez, está relacionado

768
Idem, ibidem, p. 68
769
Idem, ibidem.
770
Idem, ibidem.
771
Como se só isso já fosse simples…
772
Idem, ibidem, p. 69
289

ao problema em questão, de modo que não se pode dizer que os planos se opõem, mas que
quando um autor se opõe a um plano a oposição se deve ao fato de que o problema que está
em jogo para ele é outro. A distância entre dois planos seria, portanto, a distância entre duas
problemáticas diferentes — é isso que faz com que varie o que cabe de direito ao pensamento.
A história da filosofia nessa concepção ganha uma outra cara. Trata-se de fazer um retrato que
produza semelhança sem querer copiar, “desnudando ao mesmo tempo o plano de imanência
que instaurou e os novos conceitos que criou.”773 E a análise dos planos na história da
filosofia, a partir do seu caráter folhado, mostra que não há regra prévia que estabelece se no
momento de uma nova criação conceitual este conceito se inscreve em um certo plano de
imanência compartilhado com outros filósofos (o caso de Platão e os neoplatônicos, por
exemplo) ou se nessa criação surge um novo plano a partir de um movimento que o estende
“afetando-o com novas curvaturas”.774 Com isso em mente, nem faz sentido a ideia de uma
história da filosofia pautada numa cronologia pré-determinada. A filosofia seria da ordem de
“um tempo estratigráfico, onde o antes e depois não indicam mais que uma ordem de
superposições.”775 É por isso que nenhum plano pode ser traçado completamente a partir do
caos. Nesse tempo estratigráfico a geografia de um determinado plano é sempre a variação de
um outro plano a partir dos acontecimentos que ocupam tal filósofo e o pensamento só pode
começar in media res. Dessa forma,

as imagens do pensamento não podem surgir em qualquer ordem, já que implicam mudanças de
orientação que só podem ser situadas diretamente sobre a imagem anterior (…). As paisagens mentais
não mudam de qualquer maneira através das eras; foi necessário que uma montanha se erguesse aqui
ou que um rio passasse por ali, ainda recentemente, para que o solo, agora seco e plano, tivesse tal
aspecto, tal textura.”776

Essa concepção da história da filosofia é também o que permite que os conceitos


filosóficos anteriores não possam nunca ser esgotados absolutamente. O tempo estratigráfico
(de estratos) implica não só numa irreversibilidade — a impossibilidade de se quebrar
completamente com planos anteriores — como também uma certa possibilidade de
permanente reativação de conceitos que foram deixados de lado ou que permanecem como
fundo ou superfície de um novo problema. Os estratos dos planos filosóficos tem, portanto,
relações complexas que não podem ser reduzidas a uma lógica de superação. “O tempo

773
Idem, ibidem, p. 74
774
Idem, ibidem, p. 76
775
Idem, ibidem, p. 77
776
Idem, ibidem, pp. 78-79
290

filosófico é assim um grandioso tempo de coexistência, que não exclui o antes e o depois, mas
os superpõe numa ordem estratigráfica. É um devir infinito da filosofia, que atravessa sua
história mas não se confunde com ela.”777
É por conta disso, dessa empreitada sem fim que é a história da filosofia, que um outro
tipo de plano de imanência surge como uma constante para a filosofia. Ele seria o
absolutamente impensado do devir filosófico, O plano de imanência:

o que deve ser pensado e o que não pode ser pensado. Ele seria o não-pensado no pensamento. É a
base de todos os planos, imanente a cada plano pensável que não chega a pensá-lo. É o mais íntimo no
pensamento, e todavia o fora absoluto. Um fora mais longínquo que todo mundo exterior, porque ele é
um dentro mais profundo que todo mundo interior: é a imanência778

Enquanto cada plano de imanência é um recorte do caos que busca estabilizá-lo mas
acaba sempre injetando doses de transcendência, arbitrariedades, haveria em cada traçar de
planos o desejo de traçar um puro plano de imanência absoluto. Se cada filósofo instaura um
plano de imanência, é como se esse plano de imanência impensado fosse o plano da própria
(história da) filosofia enquanto uma espécie de macro-agente. Do ponto de vista da prática
filosófica, é como se todas as concretizações da filosofia, todas as suas variações e formas
acabasse compondo esse plano de imanência. Não se trata, portanto, de tentar pensá-lo, visto
que ele seria, do nosso ponto de vista, o absolutamente impensável por excelência, mas
apenas de apontá-lo. Ele seria um plano que talvez funcione como um motor da prática
filosófica.

777
Idem, ibidem, p. 78
778
Idem, ibidem.
291

III.1.2.3. O personagem conceitual

Resta falar do terceiro elemento envolvido na criação conceitual tal como Deleuze e
Guattari descrevem, o personagem conceitual. Para os autores haveria um segundo
“pressuposto” que existe na criação conceitual e que não pode ser reduzido ao plano de
imanência, um elemento que teria a ver com a intermediação entre o conceito e plano pois “é
ele que lança [o conceito], mas é ele também que detém os pressupostos subjetivos ou que
traça o plano.”779 É preciso, porém, não confundir o conceito de personagem conceitual com
eventuais personagens que os filósofos inseriam em seus textos. Se é o caso, como os autores
lembram, de filósofos comporem diálogos, em muitos casos os personagens simplesmente
debatem os conceitos em questão entre si. “Os personagens conceituais, em contrapartida,
operam os movimentos que descrevem o plano de imanência do autor, e intervêm na própria
criação de conceitos.”780
Também não se pode confundir o personagem conceitual como mero representante do
filósofo — não é à toa que Deleuze e Guattari preferem antes chamá-lo de heterônimo —
enquanto o nome do próprio filósofo não seria mais que um pseudônimo dos personagens.
Nesse sentido, portanto, eles, e não o filósofo, são o sujeito de uma filosofia, os “verdadeiros
agentes de enunciação.”781 O filósofo sendo apenas aquele que realiza a sua filosofia na
medida em que transforma-se em seu personagem, embora essa transformação só se dê no ato
da criação, já que o personagem conceitual também não preexiste ao conceito. Por isso que
não se trata de um personagem estático que permanece na figura a qual ele estaria associado
tradicionalmente, pois se “o destino do filósofo é de transformar-se em seu ou seus
personagens conceituais”, isso ocorre “ao mesmo tempo que estes personagens se tornam,
eles mesmos, coisa diferente do que são historicamente, mitologicamente ou comumente”.782
O personagem conceitual é, então, o criador de um conceito, mas um criador que existe na
justa medida do conceito que ele cria. Por essa razão talvez seja não só possível como
interessante ir além da imagem que o termo “personagem” produz. O sujeito de uma filosofia
não precisa ser um alguém, ele é antes o ponto de vista de uma operação, mas uma
perspectiva que se cria na ação filosófica. Esse conceito nos permite transcender à ideia do
filósofo como um autor das ideias, como agente. Se a filosofia é uma prática impessoal é

779
Idem, ibidem, p. 83
780
Idem, ibidem, p. 85
781
Idem, ibidem, 87
292

porque a sua criação não se dá na mente de uma pessoa específica escrevendo em certo
momento, mas na medida em que ocorre a criação o autor é transformado e se torna filósofo.
O personagem conceitual, por ser uma ponte entre o conceito e o plano de imanência,
acaba funcionando em dois registros. Por um lado é ele quem “mergulha no caos, tira daí
determinações das quais vai fazer os traços diagramáticos do plano de imanência.”783 Por
outro, é ele quem “para cada dado que cai, faz corresponder os traços intensivos de um
conceito que vem ocupar tal ou tal região da mesa”784 É por isso que os autores dirão que “Os
personagens conceituais constituem os pontos de vista segundo os quais planos de imanência
se distinguem ou se aproximam, mas também as condições sob as quais cada plano se vê
preenchido por conceitos do mesmo grupo.”785 É considerando essas duas operações que a
invenção do personagem conceitual pode ser pensada como algo distinto da criação do
conceito e do traçar do plano. Essa dupla atividade se relaciona, certamente, com a maneira
que o personagem, sendo o sujeito de uma filosofia, é um eixo orientador que se constitui a
partir de uma situação problemática. Não é à toa que Deleuze e Guattari descrevem o
personagem conceitual como algo que não é uma mera personificação, mas algo que insiste.
Sendo assim, da mesma maneira que os conceitos se bifurcam em novos conceitos e os planos
são folhados e se desdobram em inúmeros planos, os personagens conceituais também tem
sua multiplicidade, pois “cada personagem tem vários traços, que podem dar lugar a outros
personagens sobre o mesmo plano ou sobre um outro: há uma proliferação de personagens
conceituais.”786 A coisa inclusive funciona como se os novos personagens estivessem
implicados em algum personagem anterior. Algo visível no caso de certos personagens
positivos — como por exemplo Zaratustra, Dionísio, Sócrates ou o filósofo crítico — que não
param de convocar seus personagens conceituais antipáticos — respectivamente o macaco e o
bufão, Cristo, o sofista e os empiristas céticos. Mas mesmo a disposição desses personagens
também não é algo fixo ou estável. O que nos parece estar em jogo aí é a pluralização dos
pontos de vista de uma filosofia.

782
Idem, ibidem, p. 86
783
Idem, ibidem, p. 99
784
Idem, ibidem.
785
Idem, ibidem.
786
Idem, ibidem, p. 100
293

Mas mesmo com esse papel, isso não implica que o personagem conceitual tem qualquer
capacidade de sobredeterminar os outros dois aspectos da atividade filosófica. Com o
personagem conceitual Deleuze e Guattari tem agora em mãos os três elementos da
composição filosófica, elementos que sempre estão um em relação aos outros, como já vimos.
Assim os autores resumem: “o plano pré-filosófico que ela deve traçar (imanência), o ou os
personagens pró-filosóficos que ela deve inventar e fazer viver (insistência), os conceitos
filosóficos que ela deve criar (consistência).”787 A questão que surge é sobre como se
articulam esses três elementos, visto que já sabemos que nenhum é deduzido do outro.
“Chama-se gosto esta faculdade filosófica de co-adaptação, e que regra a criação do
conceito.”788 Se outras faculdades seriam responsáveis pelos outros elementos de maneira
individual — a razão para o traçado do plano, a imaginação para a invenção dos personagens
e o entendimento para a criação de conceitos — “o gosto aparece como a tripla faculdade do
conceito ainda indeterminado, do personagem ainda nos limbos, do plano ainda
transparente.”789 Essa faculdade consegue realizar essa articulação não na medida em que ela
consegue impor uma “moderação do conceito”, mas, pelo contrário, na medida em que “a
atividade conceitual não tem limite nela mesma, mas somente nas duas outras atividades sem
limites.”790 Dessa forma o movimento de criação de um conceito, seus componentes limitados
percorridos em uma velocidade infinita, sempre remetem para os movimentos infinitos do
plano que determinam (na própria criação conceitual) as condições de direito do pensamento.
Assim sendo, aquilo que pode ser pensado é o ilimitado a que os conceitos remetem e que
constituem seu plano. O traçado do plano, por sua vez, “só se confunde com os conceitos por
criar, que deve juntar, ou com os personagens que deve entreter.”791 Não há pois entre esses
elementos qualquer “lei” que rege sua articulação a priori, pois sendo elementos de natureza
distintas eles não deixam de ser incomensuráveis, de modo que

o filósofo só se aproxima do conceito indeterminado com temor e respeito, hesita muito em se lançar,
mas só pode determinar o conceito criando-o sem medida, um plano de imanência tendo como única
regra que traça e como único compasso os personagens estranhos que ele faz viver.792

Essa faculdade do gosto é a própria experimentação entre esses diferentes elementos sem
qualquer saber prévio sobre o resultado dessa articulação.793 O gosto, por conta disso, também

787
Idem, ibidem, p. 101
788
Idem, ibidem.
789
Idem, ibidem.
790
Idem, ibidem, p. 102
791
Idem, ibidem.
294

não pode ser algo que preexiste ao jogo entre conceito, plano de imanência e personagem
conceitual. Se nenhum dos três é anterior, se todos são simultâneos e inter-relacionados, isso
significa que é “a criação de conceito que faz um apelo a um gosto que a modula.”794 O gosto
será nesse sentido a própria experimentação tateante que analisamos ao falar do corpo sem
órgãos. Um momento em que o pensamento procura sair dos limites morais (a imagem do
pensamento) para um pensamento real (pensamento sem imagem).

792
Idem, ibidem, p. 103
793
Não acreditamos que as alusões a Kant nesses momentos sejam em vão.
794
Idem, ibidem, p. 103
295

III.1.3. O conceito como diagrama

Uma máquina abstrata ou diagramática não funciona para


representar, mesmo algo de real, mas constrói um real por
vir, um novo tipo de realidade.
Gilles Deleuze e Félix Guattari, Mil Platôs

Os metafísicos de Tlön não buscam a verdade nem sequer a


verossimilhança: buscam o assombro. Julgam que a
metafísica é um ramo da literatura fantástica. Sabem que um
sistema não é outra coisa além da subordinação de todos os
aspectos do universo a qualquer um deles.
Jorge Luis Borges, Tlön, Uqbar, Orbis Tertius

Conseguimos articular uma certa noção de filosofia como criação conceitual em seus
aspectos negativos e positivos. Um conceito não é uma mera proposição, ele não é redutível a
uma afirmação no vazio a que podemos atribuir um valor de verdade ou não caso a
proposição corresponda a um estado de coisas. O conceito não diz respeito a um estado de
coisas, ele diz um acontecimento. A sua verdade não pode, portanto, estar relacionada ao
estado de coisas. O que pode conferir um valor de verdade ao conceito é, então, um problema
— é a partir dele que se consegue evitar que a filosofia se transforme em opinião. Pode-se,
então, dizer que o conceito não responde a uma pergunta posta previamente, ou mesmo
perennis, pois “as condições do problema filosófico estão sobre o plano de imanência que ele
supõe (a que movimento infinito ele remete na imagem do pensamento?) e as incógnitas do
problema estão nos personagens conceituais que ele mobiliza (que personagem
precisamente?).”795 Isso significa que a determinação do problema só pode ser contemporânea
à criação do conceito e instauração do plano de imanência e invenção do personagem —
destruição e construção convivem. Podemos agora enxergar com mais clareza os aspectos
positivos do problema: ele é propriamente o sentido que se estabelece a partir da articulação
entre esses três elementos, um sentido que aponta sempre para um acontecimento, isto é, para
algum corte produzido por alguma transformação que não conseguimos dar conta. Vê-se aí

795
Idem, ibidem, pp. 105-106
296

em ação um leitmotif de toda a obra de Deleuze (que remete a Bergson) que diz que um
problema bem posto é um problema resolvido. Os autores alertam, porém, que “isso não quer
dizer que um problema é somente a sombra ou o epifenômeno de suas soluções, nem que a
solução é apenas a redundância ou a consequência analítica do problema.”796 O que ocorre é
exatamente o contrário, a determinação de um problema é o movimento de feedback entre os
três elementos da criação filosófica, de modo que cada elemento é determinado
correlativamente aos outros dois. Quando se diz então que na prática filosófica se busca acima
de tudo colocar um problema, essa sua determinação é o jogo dos três elementos na tentativa
de dizer o acontecimento:

as três atividades que compõem o construcionismo não cessam de se alternar, de se recortar, uma
precedendo a outra e logo o inverso, uma que consiste em criar conceitos, como caso de solução, outra
em traçar um plano e um movimento sobre o plano, como condições de um problema, outra em
inventar um personagem, como incógnita do problema. O conjunto do problema (de que a solução faz
parte) consiste sempre em construir as duas outras quando a terceira está em curso.797

E onde entra então a “verdade” do problema? Bem, a verdade do problema é justamente a


capacidade desse problema se pôr, pois “nenhuma regra e sobretudo nenhuma discussão dirão
a princípio se é o bom plano, o bom personagem, o bom conceito, pois é cada um deles que
decide se os dois outros deram certo ou não.”798 A verdade de um problema tem a ver,
portanto, com a sua capacidade de articular condições de um problema (plano), as suas
incógnitas (personagens) com suas soluções (conceitos). Isso significa que os conceitos
(talvez a superfície da atividade filosófica) só funcionam na medida em que se articulam em
um problema a partir do plano que ela traça e dos personagens que movimentam essa criação.
Isso necessariamente implica uma dose de pragmatismo pois o acontecimento que nos move e
que nos abala, nos pondo em movimento, é sempre também um acontecimento para nós. Não
se trata de um problema prévio, mas algo que nós não conseguimos lidar, que não temos
nome e que por isso acaba nos ocupando de maneira violenta. Essas questões prévias e
perenes só podem ser, então, falsos problemas, já que eles não se ligam a nenhum
acontecimento, mas a algo já dado, do âmbito da recognição e do já sabido. Mas mesmo
quando conseguimos elaborar uma solução (o conceito) e acabamos determinando o
problema, somos remetidos, pelas curvas do plano de imanência, para outras questões, pois a

796
Idem, ibidem, p. 106
797
Idem, ibidem.
798
Idem, ibidem, p. 107
297

cada conceito que criamos outras questões se tornam possíveis.799 A filosofia, fica evidente, é
uma atividade que acontece justamente durante choques sísmicos inesperados. A verdade até
aparece na prática filosófica, mas nunca como uma verdade das proposições e sim como um
verdadeiro problema, de modo que ela, a verdade, é sempre subordinada a categorias como “o
interessante” (para o conceito), “o notável” (para o personagem), “o importante” (para o
plano). A inversão que se opera sobre a noção tradicional se completa nesse ponto. Se na
tradição filosófica é comum privilegiarmos (como já mostramos) o conceito como algo que
designa um objeto, um mero jogo de correspondência certa ou errada, o que Deleuze e
Guattari propõem é que o conceito não tem referência. Ele é autoposição, e isso implica que
ao invés do conceito explicar ou descrever o mundo, é um mundo que emerge ou se delineia
de uma criação conceitual.

É a partir dessa elaboração positiva da atividade filosófica — e dessa sua capacidade de


criar mundos — que gostaria de sugerir que o conceito filosófico tem uma proximidade com
o diagrama. Meu interesse por esse conceito estranho de Deleuze e Guattari vem justamente
do fato de que os diagramas que aparecem na obra de Deleuze e Guattari (em trabalhos
conjuntos mas também em nos trabalhos separados) parecem sempre ser algo que não
representa algum objeto ou situação, mas algo que cria um novo mundo. Como diz Tatiana
Roque, “o diagrama, como veremos, não é uma representação. Ele faz existir um ser do qual
não se saberia falar de outra forma a não ser por meio do diagrama.”800 O interesse em se falar
do conceito a partir dos diagramas é que isso nos permite ter uma dimensão mais concreta da
maneira como ele age na realidade.
Não temos a intenção aqui de traçar uma genealogia desse conceito na obra de Deleuze
e/ou Guattari, algo que foi feito, parcialmente, por outros.801 Podemos, no entanto, apontar

799
“uma nova curvatura do plano, que não tínhamos visto de início, vem relançar o conjunto e colocar novos
problemas, uma nova série de problemas, operando por empuxos sucessivos e solicitando conceitos futuros, por
criar (nós nem mesmo sabemos se não é antes um novo plano que se destaca do precedente). Inversamente, pode
acontecer que um novo conceito venha insinuar-se como uma cunha entre dois conceitos que acreditávamos
vizinhos, solicitando por sua vez, sobre a mesa da imanência, a determinação de um problema que surge como
uma espécie de ponte.” (Idem, ibidem.)
800
Roque, Tatiana. “Sobre a noção de diagrama: matemática, semiótica e as lutas minoritárias”. Revista
Trágica. V. 8, n. 1, p. 88. jan-abr. 2015. Disponível em: <http://tragica.org/artigos/v8n1/roque.pdf>. Acesso em:
13 out 2017. Agradeço a ela por me apontar as potencialidades desse conceito.
801
Encontramos uma análise das aparições do conceito na obra de Deleuze em Batt, Noëlle. “L’expérience
diagrammatique: vers un nouveau régime de pensée”. in: Théorie, Littérature, Enseignement n° 22. Paris:
Presses Universitaires de Vincennes. 2004, pp. 5-28. Quanto à obra de Guattari, sugerimos consultar Watson,
Janell. Guattari’s diagrammatic thought. Nova Iorque: Continuum, 2009.
298

brevemente as aparições do conceito. Inicialmente o conceito aparecerá nos trabalhos de


Guattari posteriores a O anti-Édipo e que serão coletados na primeira edição de Revolução
molecular,802 sobretudo na parte final, Échafaudages sémiotiques. Na ocasião o conceito
aparece como uma forma de tentar escapar ao privilégio que o conceito de significante
adquire na filosofia francesa a partir dos anos 60. O diagramático (também pensado como um
regime de signo a-significante), surge como uma tentativa de superar esse modelo de signo
excessivamente preso à linguagem humana ou a uma visão do signo como pura representação
de objetos já dados. O conceito continuará a aparecer na obra de Guattari, mas sempre sem
um tratamento frontal e extensivo, como não é incomum em sua obra. Veremos o conceito
aparecendo em todos os seus livros seguintes, O inconsciente maquínico, Linhas de fuga—
passando por Mil Platôs —, Cartografias esquizoanalíticas, Caosmose, etc. Apesar de
variações e acréscimos que são observáveis no conceito ao longo do tempo, em Guattari
encontraremos ele sempre associado aos mesmos problemas, de modo que o conceito possui
no seu tratamento uma continuidade explícita, ainda que as suas aparições nem sempre sejam
absolutamente concordantes.
Se na obra de Guattari o conceito aparece como fruto de uma espécie de obsessão, uma
tentativa de ficar repensando over and over, em Deleuze a coisa ganha mais forma de um
campo de livre experimentação. O diagrama acaba funcionando como um espaço para se
pensar as relações entre o virtual e o atual. Em sua obra, portanto, o diagrama aparece
primeiramente803 em seu ensaio sobre Vigiar e punir de Foucault804 para lidar com o caráter
não-representativo [diagramático] da figura do panóptico. Após essa aparição o conceito
aparecerá em Mil Platôs, inserido na problemática guattariana, isto é, voltado para as
discussões de linguística. Em seguida nos cursos sobre Francis Bacon e no livro que se
originou desse curso, vemos a tentativa de pensar o diagramático como aquilo que conduz a
pintura para fora do regime visual da representação ao operar uma ligação entre o não-
figurativo e a pintura propriamente dita a partir do papel da mão nessa arte. Por fim vemos o
conceito ser retrabalhado em Foucault, agora tentando abordar o modo de eficácia específico
do diagrama nas relações sociais. A impressão que tenho é que Deleuze de fato nunca chegou
a bater o martelo sobre esse conceito, de modo que ele se apresenta em sua obra

802
Cf. Guattari, Félix. La révolution moleculaire. Paris: Les Prairies ordinaires, 2012b. Visto que esta edição
contém as duas edições (substancialmente diferentes) do livro.
803
Cf. Batt, Noëlle, op. cit., p. 9
804
Deleuze, Gilles. “Écrivain non: un nouveau cartographe”. In: Critique. Paris: Éditions de Minuit, n. 343,
1975, pp. 1207-1227.
299

(diferentemente de Guattari), mais como um problema que ele buscava determinar (e que ele
tentou determinar pelos ângulos mais diversos) do que um conceito propriamente dito.
É dessa incompletude do conceito que gostaria de pegar a deixa para pensar a prática
filosófica. Se o conceito de diagrama é algo que nem em Guattari nem em Deleuze receberá
uma formulação definitiva, gostaríamos de tentar ver se é possível, a partir do que os autores
especularam sobre ele, construir alguma espécie de unidade — unidade entendida aqui como
a endoconsistência que falamos. A tese que quero propor, então, é que o diagrama é uma
espécie de máquina que cria perspectivas (mundos possíveis) e que a prática filosófica é uma
tentativa de engendrar novas perspectivas, mais interessantes para nós (ainda que isso não
seja algo no nosso controle).

O primeiro traço do diagrama que gostaríamos de apontar é seu modo de existência


específico. Mas para conseguirmos entender esse caráter precisamos explicar uma distinção
que ocorre na filosofia de Deleuze e Guattari a partir da obra do linguista Hjelmslev, isto é, a
distinção entre forma de conteúdo e forma de expressão. Os autores se apropriarão em Mil
Platôs dessa distinção para conseguir fugir do modelo tradicional de conceber a realidade, isto
é, o hilemorfismo aristotélico. De uma maneira muito breve, podemos descrever esse modelo
como concebendo aquilo que nos aparece como efeito da junção entre uma matéria passiva e
uma forma ativa. Isso significa tanto que as formas só ganham realidade na medida em que se
encarnam sobre uma matéria (que funciona como um receptáculo) mas que a matéria, por sua
vez, não tem como aparecer se ela não for enformada — diferenciada — a partir de uma
imposição externa.
A grande sacada de Hjelmslev, prontamente apropriada por Deleuze e Guattari,805 é que o
conteúdo e expressão (os equivalentes respectivos à matéria e forma no sistema
hjelmsleviano) já possuem em si um princípio de diferenciação. A forma de conteúdo pode
ser concebida como a regra de repartição que rege uma determinada multiplicidade material,
como, por exemplo, a maneira como o espectro de cores será repartido em cores diferentes,
repartição que variaria de língua em língua. A forma de expressão, por sua vez, seria a regra
da repartição de uma determinada categorização-função, como por exemplo os recortes
diferentes nos mecanismos de emissões vocais sob o qual diferentes línguas se fundam —

805
Mas uma sacada que já é observável no pensamento de Simondon em L’individuation.
300

penso aqui na diferença entre as vogais numa língua latina qualquer e no mandarim.806 Para
usar uma expressão de Deleuze e Guattari em Mil Platôs, podemos dizer que o que temos em
jogo nessa distinção é um sistema semiótico em relação com um sistema pragmático. De
modo que quando procuramos entender a realidade das coisas

é preciso encontrar o conteúdo e a expressão, avaliar sua distinção real, sua pressuposição recíproca,
suas inserções fragmento por fragmento. (…) a expressão devém um sistema semiótico, um regime de
signos, e o conteúdo, um sistema pragmático, ações e paixões. É a dupla articulação rosto-mão, gesto-
fala, e a pressuposição recíproca de ambos.807

Forma de expressão e forma de conteúdo são as maneiras específicas que aquilo que nos
aparece toma forma. O fundamental, porém — e o que afasta os autores do hilemorfismo
clássico — é que não se trata de um elemento passivo e um ativo.808 Trata-se do
entrelaçamento entre duas formas ativas809 que operam recortes de naturezas distintas no
plano caótico da realidade e que não são intrinsecamente relacionadas. Em outro momento,
com um vocabulário ligeiramente modificado, Deleuze irá dizer que é do entrelaçamento
entre o visível [conteúdo] e o enunciável [expressão] que as coisas aparecem para nós — essa

806
Cf. Para um exemplo mais próximo, pensemos na maneira como para um brasileiro é muitas vezes
ininteligível a diferença entre os muitos ‘e’s que existem no francês a partir de variações vocais.
807
Deleuze, Gilles; Guattari, Félix. Mil Platôs - vol. 5. São Paulo: Editora 34, 2012c. p. 233
808
Ainda que, como os autores sublinham, há uma assimetria na relação que eles se entrelaçam: “Porém, num
outro sentido, diremos que a distinção subsiste, e mesmo é recriada, no estado de traços; existem traços de
conteúdo (matérias não formadas ou intensidades) e traços de expressão (funções não formais ou tensores). A
distinção é inteiramente deslocada, ou mesmo nova, visto que concerne agora a pontas de desterritorialização.
Com efeito, a desterritorialização absoluta implica um
‘desterritorializante’ e um ‘desterritorializado’, que se repartem em cada caso, um para a expressão, o outro para
o conteúdo, ou inversamente, mas sempre de modo a veicular uma distinção relativa entre os dois. Por isso, a
variação contínua afeta necessariamente o conteúdo e a expressão conjuntamente, mas nem por isso deixa de
distribuir dois papéis dissimétricos como elementos de um só e mesmo devir, ou como os quanta de um só e
mesmo fluxo. Donde a impossibilidade de definir uma variação contínua que não afetasse ao mesmo tempo o
conteúdo e a expressão tornando-os indiscerníveis, mas também que não procedesse por um ou pelo outro, para
determinar os dois pólos relativos e móveis daquilo que se torna indiscernível. É assim que se deve definir
aomesmo tempo traços ou intensidades de conteúdo, e traços ou tensores de expressão (artigo indefinido, nome
próprio, infinitivo e data) que se revezam, arrastando-se uns aos outros alternadamente, no plano de
consistência. (Idem, ibidem, p. 243)
809
“É que a matéria não formada, o phylum, não é uma matéria morta, bruta, homogênea, mas uma matéria-
movimento que comporta singularidades ou hecceidades, qualidades e mesmo operações (linhagens tecnológicas
itinerantes); e a função não formal, o diagrama, não é uma metalinguagem expressiva e sem sintaxe, mas uma
expressividade-movimento que sempre comporta uma língua estrangeira na língua, categorias não linguísticas na
linguagem (linhagens, poéticas nômades).” (Idem, ibidem.)
301

junção produziria o ponto de vista no real. O mundo, as coisas, objetos — ou os estratos,810


para usar outro conceito de Deleuze e Guattari — seriam então efeitos desse entrelaçamento.
O diagrama surge então como aquilo que opera essa junção, pois ele é “a exposição das
relações de força que constituem o poder”.811 O que significa que o diagrama não aparece
nem como conteúdo nem como uma forma, ele é algo que existe para além dessa distinção.
Por ser o próprio produtor dessa distinção, ele “não tem nem substância nem forma, nem
conteúdo nem expressão.”.812 O diagrama, também chamado de máquina abstrata,813 tem,
portanto, uma existência entre os estratos, pois “entre o visível e o enunciável, [há] uma
abertura, uma disjunção, mas essa disjunção das formas é o lugar, o ‘não lugar’, diz Foucault,
onde penetra o diagrama informal”.814 Encontramos uma formulação semelhante nas
elaborações de Guattari:

Aquilo que está “por trás” do enunciado linguístico, “por trás” da semiotização perceptiva, etc., é uma
máquina abstrata [diagrama] que escapa às coordenadas de existência (espacial, temporal e de
substância de expressão). Esse objeto, no coração do objeto, não é localizável, não é localizável em
uma espécie de céu das representações. Ele está ao mesmo tempo "na mente" e nas coisas. Ele está
fora das coordenadas. Seu carácter de maquinismo desterritorializante o faz passar através das
coordenadas linguísticas e das coordenadas de existência. Ele não é nem objeto mental, nem objeto
material.”815

Justamente por ser aquilo que faz forma de conteúdo e forma de expressão aparecerem
(sua condição) é que ele não pode concebido a partir de algum desses elementos (seja
material, seja mental). O diagrama tem, nesse sentido, uma face abstrata. Ao falar da pintura
de Bacon, Deleuze fala sobre como, em sua face abstrata, o diagrama “é um caos, uma
catástrofe, mas também um germe de ordem ou de ritmo. É um violento caos em relação aos

810
“Os estratos são fenômenos de espessamento no Corpo da terra, ao mesmo tempo moleculares e molares:
acumulações, coagulações, sedimentações, dobramentos. São Cintas, Pinças ou Articulações. Tradicionalmente,
distingue-se, de modo sumário, três grandes estratos: físico-químico, orgânico, antropomórfico (ou
‘aloplástico’). Cada estrato, ou articulação, é composto de meios codificados, substâncias formadas. Formas e
substâncias, códigos e meios não são realmente distintos. São componentes abstratos de qualquer articulação.
Um estrato apresenta, evidentemente, formas e substâncias muito diversas, códigos e meios variados. Portanto,
possui a um só tempo Tipos de organização formal e Modos de desenvolvimento substancial diferentes, que o
dividem em paraestratos e epistratos: por exemplo, as divisões do estrato orgânico. Os epistratos e paraestratos
que subdividem um estrato podem, por sua vez, ser considerados como estratos (de modo que a lista jamais é
exaustiva). Apesar de suas distintas formas de organização e desenvolvimento, nem por isso um estrato qualquer
deixa de ter uma unidade de composição. A unidade de composição diz respeito aos traços formais comuns a
todas as formas ou códigos de um estrato, e aos elementos substanciais, materiais comuns a todas as suas
substâncias ou meios.” (Idem, ibidem, p. 230)
811
Deleuze, Gilles. Foucault. São Paulo: Editora Brasiliense, 2005. p. 46
812
Deleuze, Gilles; Guattari, Félix. Mil Platôs, v. 2. São Paulo: Editora 34, 2011. p. 105
813
Um dos outros nomes do diagrama, como vemos nessa deixa de Deleuze e Guattari: “Existe diagrama cada
vez que uma máquina abstrata singular funciona diretamente em uma matéria.” (Idem, ibidem, p. 106)
814
Deleuze, Gilles, op. cit., p. 47
302

dados figurativos, mas é um germe de ritmo em relação à nova ordem da pintura: ele abre
‘domínios sensíveis’”816 Mas não devemos confundir essa face com o caos em si, visto que o
caótico é aquilo que é sem ordem. Isso nos obriga a perguntar pela outra face do diagrama,
pois “apenas a formação estratificada lhe dá uma estabilidade que ele não tem por si mesmo,
em si mesmo ele é instável, agitado, mesclado.”817 Sem esse movimento de estratificação não
conseguiríamos falar de um diagrama, já que essa virtualidade caótica de onde o diagrama
emerge (para então se encarnar em agenciamentos concretos) é sempre da ordem de uma
“microagitação ou é a velocidade infinita do caos” em que “as forças estão em perpétuo
devir”.818 Não é, portanto, a partir do caótico que poderemos identificar um diagrama.
Precisamos olhar para a sua face concreta. Desse ponto de vista podemos dizer que

o diagrama, ou a máquina abstrata, é o mapa das relações de força, mapa de densidade, de intensidade,
que procede por ligações primárias não-localizáveis e que passa a cada instante por todos os pontos
(…). Mas não deixa de ser verdade que o diagrama age como uma causa imanente não-unificadora,
estendendo-se por todo o campo social: a máquina abstrata é como a causa dos agenciamentos
concretos que efetuam suas relações; e essas relações de força passam, ‘não por cima’, mas pelo
próprio tecido dos agenciamentos que produzem.819

Em sua face concreta, portanto, o diagrama não é qualquer coisa que podemos apontar e
dizer e destacar de maneira simples, ele é sempre algo que aparece em todos os pontos
daquilo que ele produz, de maneira distribuída, sem se identificar com aquilo.820 Não é à toa
que Deleuze, de novo em Foucault, irá dizer que ele age de maneira imanente. Mas o que
significa ser causa imanente nesse contexto? Significa que “é uma causa que se atualiza em
seu efeito, que se integra em seu efeito, que se diferencia em seu efeito. (…) Se os efeitos
atualizam, é porque as relações de forças ou de poder são apenas virtuais, potenciais,
instáveis, evanescentes, moleculares”.821 Dessa forma, “a atualização também é uma
integração, um conjunto de integrações progressivas”.822 Mas ao mesmo tempo isso ocorre
sempre de uma maneira divergente, pois essa multiplicidade só se atualiza “tomando

815
Guattari, Félix, op. cit., p. 511
816
Deleuze, Gilles. Francis Bacon: lógica da sensação. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2007. p. 104
817
Idem, Foucault , 2005. p. 92
818
Idem, ibidem.
819
Idem, ibidem, p. 46
820
“este seria uma emissão, uma distribuição de singularidades. Ao mesmo tempo locais, instáveis e difusas, as
relações de poder não emanam de um ponto central ou de um foco único de soberania, mas vão a cada instante
“de um ponto a outro” no interior de um campo de forças, marcando inflexões, retrocessos, retornos, giros,
mudanças de direção, resistências. É por isso que elas não são localizáveis numa instância ou noutra. Constituem
uma estratégia, enquanto exercício do não-estratificado, e “as estratégias anônimas” são quase mudas e cegas,
pois escapam às formas estáveis do visível e do enunciável.” (Idem, ibidem, p. 81)
821
Idem, ibidem, p. 46
303

caminhos divergentes repartindo-se em dualismos, seguindo linhas de diferenciação sem as


quais tudo ficaria na dispersão de uma causa não-efetuada.”823
Isso significa que o diagrama tem uma face dupla.824 Ao mesmo tempo que ele produz
essa realidade ele apenas aparece retroativamente a partir das relações materiais que
engendra.825 Pode-se observar de maneira especialmente clara esse duplo caráter do diagrama
em um exemplo bem banal que Guattari discute em seu Caosmose. Se pegarmos uma chave e
sua fechadura encontramos nesse par tanto uma realidade material desses objetos como
também um diagrama (“formas ‘formais’, diagramáticas”)826 que possibilita essa relação. No
que diz respeito à realidade material da chave e da fechadura fica evidente que se trata de algo
que se transforma. As chaves e as fechaduras, com o tempo, não deixam de sofrer desgastes
ou se oxidarem. Com isso em mente, podemos dizer, então, que o elemento diagramático não
seria nenhuma configuração específica da chave ou da fechadura, mas “um continuum
incluindo toda a gama dos perfis F[orma chave] e F[orma fechadura], compatíveis com o
acionar efetivo da fechadura.”827 O diagrama é a condição dessa relação, dessa possibilidade
que é a chave abrir a porta. Mas, por outro lado, ele só pode ser pensado quando
retroprojetado a partir de um limite das transformações respectivas entre chave e fechadura. É
claro que esse exemplo é relativamente simples, mas ele serve para iluminar a maneira como
o diagrama ao mesmo tempo condiciona uma realidade sem que ele possa ser conhecido para
além dela. Ele é um campo indefinido — mas não infinito — de capacidades ou
possibilidades.
Tendo agora em mãos uma distinção de natureza entre um diagrama (uma “máquina
abstrata”) e a sua atualização (“máquinas concretas”, “agenciamentos concretos”),828
podemos compreender o que um diagrama faz. Como já adiantamos, um diagrama produz
perspectivas. Isso fica evidente nessa passagem de Mil Platôs:

822
Idem, ibidem, p. 47
823
Idem, ibidem.
824
Como diz Roque, “a dimensão do diagrama pode ser dita abstrata, porque não concerne às encarnações
concretas (funções finalizadas organizadas) que a atualizam; mas ela é também real (e não somente pensada),
pois cartografa funções e matérias informais que se estendem por todo o tecido social, e que agem positivamente
sobre ele.” (Roque, Tatiana, op. cit., p. 97)
825
Em um outro contexto, Deleuze falará sobre essa dinâmica ao falar da relação entre o atual e virtual. Cf.
Deleuze, Gilles; Parnet, Claire. “O atual e o virtual” in: Diálogos. São Paulo: Editora Escuta, 1998.
826
Guattari, Félix. Caosmose. São Paulo: Editora 34, 2012c. p. 54
827
Idem, ibidem.
828
A importância dessa distinção é realçada por Deleuze em uma carta à Joseph Emmanuel Voeffrey. Na
ocasião o autor a partir de um vocabulário mais próximo ao Diferença e Repetição, ainda que ele mesmo opere a
tradução daqueles conceitos para os termos mais recentes de Mil Platôs. Cf. Deleuze, Gilles. Lettres et autres
textes. Paris: Les Éditions de Minuit, 2015. pp. 89-90
304

Ela tem, antes, um papel piloto. Isso ocorre porque uma máquina abstrata ou diagramática não
funciona para representar, mesmo algo de real, mas constrói um real por vir, um novo tipo de
realidade. Ela não está, pois, fora da história, mas sempre 'antes' da história, a cada momento em que
constitui pontos de criação ou de potencialidade.829

Ainda precisamos, porém, explicar como ocorre essa criação. Segundo Deleuze e
Guattari, o diagrama opera ao dissolver os estratos atuais num movimento em que “tudo foge,
tudo cria, mas jamais sozinho; ao contrário, com uma máquina abstrata que opera os
continuuns de intensidade, as conjunções de desterritorialização, as extrações de expressão e
conteúdo.”830 Não se trata de uma dissolução material — embora uma certa transformação se
opera ao fim desse movimento —, mas de uma reorganização dos traços que compõem os
corpos em determinado estrato. Como diz Deleuze, “[O diagrama] faz a história desfazendo
as realidades e as significações anteriores, formando um número equivalente de pontos de
emergência ou de criatividade, de conjunções inesperadas, de improváveis continuuns. Ele
duplica a história com um devir.”831 Mas isso não acontece por qualquer desejo voluntarista.
Esse movimento acontece na medida em que os corpos são confrontados com seus limites
reais, são encontros que os forçam a ultrapassar a situação em que estavam — ou seja, o tipo
de transformação que estamos descrevendo aqui, é sempre fruto de um encontro que
desestabiliza a maneira como os corpos se organizavam. Não é, pois, sem razão que, ao
discutir a pintura, Deleuze dirá que o diagrama tem como um dos seus alvos o clichê, isto é, a
forma morta.832 Pode-se dizer então que nessas situações “o diagrama agiu, portanto, impondo
uma zona de indiscernibilidade ou de indeterminabilidade objetiva entre duas formas, onde
uma não é mais e a outra não é ainda: ele destrói a figuração de uma e neutraliza a da
outra.”833 Nesse movimento de desterritorialização, os traços que estavam organizados como
determinadas formas de expressão e formas de conteúdo se encontram livres para se
reorganizarem de uma nova forma. O que determina essa nova forma é algo mais complicado
de saber, pois justamente aquilo que produz é aquilo que não tem forma e nem pode ser
qualificado fora da sua articulação posterior em formas de conteúdo e formas de expressão.
Em834 sua face abstrata, portanto, “o diagrama é altamente instável ou fluido, não pára de

829
Deleuze, Gilles; Guattari, Félix. Mil Platôs - vol. 2, 2011, p. 106
830
Idem, ibidem.
831
Deleuze, Gilles, op. cit., p. 45
832
“O caos e a catástrofe são o desabamento de todos os dados figurativos; já são, portanto, uma luta, a luta
contra o clichê, o trabalho preparatório (tanto mais necessário quanto menos somos inocentes).” (Idem, Francis
Bacon: lógica da sensação, 2007, p. 113)
833
Idem, ibidem.
834
Essa dificuldade nos remeteria para o problema da gênese da diferença, algo que nem temos como discutir
aqui dado a complexidade do assunto.
305

misturar matérias e funções de modo a constituir mutações.”.835 Não podemos ter acesso ao
diagrama salvo pela sua face concreta. É por isso que Roque diz, ao comentar Deleuze
comentando Francis Bacon, que

há uma redistribuição das relações que compunham a primeira figura (o pássaro) em outras relações
que constituem a segunda. Essas relações já estão presentes no diagrama, naquilo que ele sugere, mas
se constituem de fato ao saírem do diagrama. Os traços são transladados de uma figura a outra como
um princípio condutor, e não como uma forma. Há uma modulação que leva de um a outro, que
articula a passagem de um passado a um futuro. As duas efetuações se dão pela via de uma zona de
transição.836

O que isso implica é que aquilo que conseguimos produzir a partir do diagrama é que nos
dá a medida e o acesso ao diagrama. O que é assustador nessa operação é que ela não tem
como não ser cega.837
É também do entrelaçamento entre uma forma de conteúdo e uma forma de expressão
operada pelo diagrama que decorre a formação das coisas, ou seja, dos estratos que povoam
uma perspectiva. Na realidade, pode-se dizer que os estratos são o próprio movimento de
formalização e explicitação das distinções entre forma de expressão e forma de conteúdo. Se
no plano diagramático as distinções entre conteúdo e expressão eram intensivas, os estratos se
formam no momento em que essas diferenças se tornam extensivas:

É aí que surge uma dupla articulação que irá formalizar os traços de expressão por sua conta, e os
traços de conteúdo por sua conta, e que irá fazer, com as matérias, substâncias formadas físicas ou
semioticamente, com as funções das formas de expressão ou de conteúdo. A expressão constitui assim
índices, ícones ou símbolos que entram em regimes ou semióticas. O conteúdo constitui assim corpos,
coisas ou objetos, que entram em sistemas físicos, organismos e organizações.838

É por conta disso que Deleuze e Guattari — uma constância que podemos encontrar em
todos os textos — não terão qualquer preciosismo em reservar o diagrama (ou a máquina
abstrata) para situações positivas/potentes ou mesmo raras. Os diagramas estão sempre
operando na realidade, produzindo as perspectivas a partir da qual vivemos nossas vidas.839
Não me parece errado dizer, inclusive, que a imagem do pensamento dogmática que é

835
Idem, Foucault, 2005, pp. 44-45
836
Roque, Tatiana, op. cit., p. 96
837
“É uma máquina quase muda e cega, embora seja ela que faça ver e falar.” (Deleuze, Gilles, op. cit., p. 44)
838
Deleuze, Gilles; Guattari, Félix, op. cit., p. 107
839
“As máquinas abstratas não existem simplesmente no plano de consistência onde desenvolvem diagramas,
elas já estão presentes, envolvidas ou 'engastadas', nos estratos em geral, ou mesmo estabelecidas nos estratos
306

criticada por Deleuze em Diferença e Repetição é ela própria efeito de um diagrama. O que se
pode acrescentar é que o desgaste dos diagramas não deixa também de produzir efeitos. Se os
diagramas produzem estratos, os estratos, por sua vez, “substancializam as matérias
diagramáticas, separam um plano formado de conteúdo e um plano formado de conteúdo”840 e
“fazem reinar um dualismo que não cessa de se reproduzir ou de se redividir. Interrompem os
continuuns de intensidade, introduzindo rupturas de um estrato ao outro”.841 O efeito disso é
que os corpos recaem em limites meramente formais (isto é, morais). Vê-se, então, que há
uma dinâmica de feedback entre estratos e diagramas que não deixa nenhum dos dois se
consolidar absolutamente:

um, através do qual as máquinas abstratas trabalham os estratos, e não cessam de fazer aí fugir algo: o
outro, através do qual elas são efetivamente estratificadas, capturadas pelos estratos. Por um lado,
jamais os estratos se organizariam se não captassem matérias ou funções de diagrama, que eles
formalizam do duplo ponto de vista da expressão e do conteúdo; de forma que cada regime de signos,
mesmo a significância, são ainda efeitos diagramáticos (mas relativizados ou negativizados). Por
outro lado, jamais as máquinas abstratas estariam presentes, incluindo-se aí já nos estratos, se não
tivessem o poder ou a potencialidade de extrair e de acelerar signos-partículas desestratificados
(passagem ao absoluto). De modo que o diagrama (máquina abstrata) em operação sempre acaba por
desterritorializar (dissolver as formas morais dos corpos e dos regimes semióticos): A consistência não
é totalizante, nem estruturante, mas desterritorializante.842

Me parece que esse feedback nos ajuda a entender como perspectivas são criadas, como
condicionam a experiência até um ponto em que se tornam diluídas pela estratificação que
produziram. Nesse ponto, porém, os limites desgastados não conseguem mais dar conta das
relações reais dos corpos e um novo recorte do real é operado. É justamente a estratificação e
o desgaste do diagrama que permite a proliferação de um diagrama. Por sua vez, é a
incapacidade dos estratos coagularem e ossificarem todas as vias da realidade, bloquearem
todas as linhas de fuga, delimitarem de uma vez por todas os limites de um corpo, que deixa
uma abertura para tudo se transformar mais uma vez.843

particulares onde organizam simultaneamente uma forma de expressão e uma forma de conteúdo.” (Deleuze,
Gilles, op. cit., p. 109)
840
Deleuze, Gilles; Guattari, Félix, op. cit., p. 107
841
Idem, ibidem.
842
Idem, ibidem, p. 109
843
“Um agenciamento está tanto mais próximo da máquina abstrata viva quanto mais abre e multiplica
conexões, e traça um plano de consistência com seus quantificadores de intensidade e de consolidação. Mas se
afasta dela na medida em que substitui as conexões criadoras por conjunções que criam bloqueios (axiomáticas),
organizções que formam estrato (estratômetros), reterritorializações que produzem buraco negro
(segmentômetros), conversões em linha de morte (deleômetros).” (Idem, Mil Platôs - vol. 5, 2012. p. 244)
307

Estamos imersos em diagramas. Nossos pontos de vista são condicionados por


experiências que delimitam previamente nossas capacidades. A pergunta que surge é então:
podemos operar os diagramas? Eles podem ser produzidos, criados por nós? Essa pergunta é
importantíssima, considerando a hipótese que nos interessa, isto é, da possibilidade do
conceito filosófico ser compreendido a partir do diagrama. Como vimos, o diagrama é uma
espécie de exterioridade pois “não estão do lado de fora dos estratos, mas são o seu lado de
fora.”844 Por conta disso, ao se perguntar sobre a possibilidade de pensar um diagrama,
Deleuze dirá que “se ver e falar são formas da exterioridade, pensar se dirige a um lado de
fora que não tem forma. Pensar é chegar ao não-estratificado.”845 Qualquer ato de criação
implica a relação com algo que é por natureza sem forma. Não estamos longe da
caracterização do caos em O que é a filosofia? e do crivo no caos que a criação filosófica
realiza. De modo que “é sempre de fora que uma força confere às outras, ou recebe das outras,
a afetação variável que só existe a uma tal distância ou sob tal relação.”846 Não se cria um
diagrama num gesto voluntário, mas se é, de certa forma, forçado a criar um.
Isso fica evidente se retomamos o estudo de Deleuze sobre Bacon, quando ele descreve o
pintor como alguém que está “traçando marcas que não dependem mais da nossa vontade nem
da nossa visão”.847 É por isso que a pintura — mas também todas as operações diagramáticas
— é perigosa. Trata-se de ocupar uma posição insólita entre o caótico e o atual, de modo que
“não há pintor que não faça essa experiência do caos-germe, em que nada mais vê e corre o
risco de perder-se: desmoronamento das coordenadas visuais.”848 A situação é perigosa
justamente pelo fato de que se está jogando com aquilo que permite a sensibilidade (o ser do
sensível) — o criador está lidando com aquilo que é o insensível por excelência. É preciso
adquirir toda uma arte da prudência para evitar que a face abstrata do diagrama não acabe por
destruir a operação.849 Em que consiste essa prudência? Bem, não há nenhuma regra prévia,
nem poderia haver. O único critério é uma certa consistência, ou seja, a construção de
equilíbrio ao produzir uma inseparabilidade de elementos heterogêneos: “o que não apenas

844
Deleuze, Gilles, op. cit., p. 91
845
Idem, ibidem, p. 93
846
Idem, ibidem.
847
Idem, Francis Bacon: lógica da sensação 2007, p. 104
848
Idem, ibidem, pp. 104-105
849
“É preciso que o diagrama não corroa todo o quadro, que permaneça limitado no espaço e no tempo: que
permaneça operatório e controlado; que os meios violentos não se desencadeiem, e que a catástrofe necessária
não inunde tudo. O diagrama é uma possibilidade de fato e não o fato em si mesmo.” (Idem, ibidem, pp. 111-
112)
308

lhe confere uma consistência funcional e uma consistência material mas lhe impõe também o
desdobramento de seus diversos registros de alteridade, que o fazem escapar a uma identidade
restrita a simples relações estruturais.”850 É por isso “o essencial do diagrama é que ele é feito
para que alguma coisa surja, e ele fracassa se nada surgir.”851 Não é surpreendente que
Guattari chame o diagrama de máquina autopoética, ainda mais se considerarmos o caráter
efetivo dessa máquina.852
Dito isso, podemos agora retornar à hipótese em questão: que o conceito filosófico é uma
espécie de diagrama. Em nenhum momento os autores chegam a afirmar isso, ainda que, em
O que é a filosofia? os autores descrevam o movimento de instauração do plano de imanência
como algo que é feito por traços diagramáticos. Em primeiro lugar, portanto, é preciso deixar
claro que quando falo do conceito como diagrama quero dizer que o processo de criação
conceitual é diagramático, ou seja, isso implica não só o conceito propriamente dito, mas o
plano de imanência e o personagem conceitual ligados a esse conceito. É essa unidade que
acredito ser diagramática. Se vejo interesse nessa aproximação, porém, é porque ela nos
permite ver de outra forma o problema da ação e do tempo.
Podemos, pois, identificar dois elementos principais que justificariam essa conjugação: o
primeiro está relacionado aos efeitos produzidos e o segundo a uma semelhança formal entre
diagrama e conceito. Dessa forma, a primeira razão pela qual acredito ser possível identificar
o conceito ao diagrama é que este encontra sua eficácia justamente na sua capacidade de falar
sobre aquilo que ainda não tem forma, mas que, ainda assim, está presente sob a forma de
uma demanda. Acima vimos que a atividade filosófica procura lidar com a obsolescência das
nossas categorias e nossos conceitos prévios diante de alguma experiência que os excede.
Outra forma de compreender esse excesso é sob a forma de um possível — ou, por razões que
ficarão mais claras adiante, como tendências — que escapa a nossas formas habituais de
compreensão da realidade . Nesse sentido, a filosofia estaria procurando dar conta dos
⁠1

850
Guattari, Félix, op. cit., p. 55
851
Deleuze, Gilles, op. cit., p. 160
852
“Claro, existe um domínio em que os signos encontram uma eficácia direta sobre as coisas, — é aquele das
verdadeiras ciências experimentais, que põem em jogo toda uma tecnologia material e todo um tratamento
complexos das máquinas de signos. É isso que nos levará em outro ponto a distingui-las dos sistemas
significantes e as classificar sob a rúbrica de semióticas a-significantes”. (Guattari, Félix. La révolution
moleculaire. Paris: Les Prairies ordinaires, 2012., Félix. pp. 205-206, tradução minha) Mas também: “O objeto
do complexo matemática-física não é físico; ele não se provém nem da natureza do físico nem do físico como
natureza. O maquinismo articula o físico e as matemáticas; ele trabalha tanto com o ‘signo’ como também com a
‘partícula’. A partícula é definida por uma cadeia de signos. Os físicos ‘inventam’ as partículas que não existiam
na
‘natureza’. Acabou-se a natureza anterior à máquina. A máquina produz uma outra natureza, e para produzi-la,
ela desenha, ela trabalha com os signos (processo diagramático).” (Idem, ibidem, p. 478, tradução minha)
309

possíveis (ou tendências) que se encontram presentes. Na ausência de uma figuração desse
excesso, a tarefa positiva que resta ao filósofo é a própria construção de conceitos que
procuram dar conta desse excesso constituindo, nesse movimento, novas condições de
experiência que possam acolher os movimentos tendenciais. Dessa forma não há critério
prévio, pois o que interessa é apenas que consigamos navegar a partir dessas novas condições
2⁠

e não simplesmente representá-las. O critério que existe para avaliar os conceitos reside,
portanto, numa esfera pragmática: na sua capacidade de construir outros conceitos e
categorias que nos permitam lidar com aquilo que antes nos excedia, ou seja, ao reordenar a
maneira como concebemos a realidade.
O diagrama, como vimos, é um mecanismo que não apenas torna visível, mas constitui as
condições da realidade ao entrelaçar formas de conteúdo e formas de expressão. Isso não
significa, porém, que eles existam de maneira absolutamente estável e condenados a
persistirem indefinidamente. Há um movimento de desgaste, como apontam Deleuze e
Guattari, que faz com que diagramas caduquem na medida em que não conseguem mais dar
conta das tendências da própria realidade . Os diagramas desgastados dão lugar a novos
⁠3

diagramas que operam um novo recorte do real a partir dos possíveis. Ora, trata-se do mesmo
tipo de movimento que ocorre na prática filosófica. É a partir desse ponto que fica claro o
interesse em falar do conceito como diagrama. Se o conceito puder ser pensado como um tipo
de diagrama, torna-se possível pensar um novo tipo de ação que não dependa das estruturas de
projeção de um horizonte de expectativas. O novo tipo de ação que se desenha aqui não
depende do futuro, pois age diretamente na produção de condições de existência que sejam
mais interessantes para nós por meio de uma criação de conceitos-diagramas. O que ela
inventa são, pois, novas condições que podem permitir que escapemos desse horizonte
infernal do cancelamento do futuro, ao dispor de outra forma as regras do jogo e nosso modo
de habitá-las.
Com isso em mente, se, por um lado, o diagrama permite entender a eficácia do conceito,
o conceito permite compreender o processo de criação de diagramas. Isso se torna mais
evidente se atentarmos para a segundo elemento que relacionaria conceitos e diagramas, sua
semelhança formal. Como vimos, o diagrama, é composto de uma face abstrata e de uma face
concreta, sem que ele possa ser reduzido a qualquer uma delas. Podemos dizer que é
justamente o seu movimento entre um plano caótico e um plano atual que constitui essa sua
dupla face. Ora, também encontraremos esse mesmo tipo de movimento na criação
conceitual. Quando se opera um recorte no caos se consegue ir da variação contínua — onde
as relações fazem e se desfazem continuamente — em velocidade infinita do plano caótico a
310

uma zona estável e finita onde um traço intensivo percorre essa zona em uma velocidade
infinita. Essa face abstrata (voltada para o caótico) da criação filosófica é justamente o
movimento de instauração de um plano de imanência, que é, não por acaso, o impensado do
pensamento.853 Assim como a face abstrata do diagrama é sem forma por ser aquilo que dá
forma, o plano de imanência é, na atividade filosófica aquilo que condiciona um conceito sem
que ela própria possa ser explicitada.854 Só podemos falar do plano a partir dos conceitos que
são criados nele. Nesse sentido vê-se que o conceito, como aquilo que se vê do plano, sua
superfície, o que o povoa, seria o equivalente à face concreta do diagrama. Mas, é preciso
repetir, em nenhum dos casos uma das faces precede a outra.
Mas essa face concreta que é o conceito, por sua vez, não é nenhum objeto concreto ou
físico (no sentido que uma vã filosofia fisicalista se ateria). Trata-se de algo que, como o
diagrama, se encontra distribuído de maneira diferencial pela realidade. Quando falamos da
existência de um conceito, como o conatus espinosano, por exemplo, não queremos dizer que
existe em cada pessoa um conatus — ou que cada pessoa é um conatus —, ou mesmo uma
ladainha que fica repetindo eternamente “estou perseverando em meu ser”. É como se a partir
da criação desse conceito — e da sua disseminação855 — uma série de experiências passassem
a ser concebidas a partir desse conceito. Não é que um corpo não buscasse perpetuar a sua
existência antes desse conceito ser criado, mas a partir do momento que esse conceito é criado
uma nova perspectiva das coisas surge. O acontecimento que ocorre — quando ocorre, isto é,
quando é forte o suficiente — opera uma redistribuição das coisas a partir do elemento novo
que ele traz à luz. No caso, podemos dizer que é o mundo que se abre com o conatus, é um
mundo em que não faça mais sentido a distinção entre uma natureza inorgânica passiva e uma
natureza orgânica ativa, por exemplo. Isso me parece extremamente próximo da maneira

853
As descrições a seguir são para o diagrama, mas poderiam muito bem ser para o surgimento de novas
curvaturas nos planos de imanência: “um diagrama é um mapa, ou melhor, uma superposição de mapas. E, de
um diagrama a outro, novos mapas são traçados. Por isso não existe diagrama que não comporte, ao lado dos
pontos que conecta, pontos relativamente livres ou desligados, pontos de criatividade, de mutação, de
resistência” (Deleuze, Gilles, Foucault, 2005, p. 53). “Certamente o diagrama se comunica com a formação
estratificada que o estabiliza ou o fixa, mas conforme um outro eixo; ele se comunica também com o outro
diagrama, os outros estados instáveis do diagrama, através dos quais as forças perseguem seu devir mutante.”
(Idem, ibidem, p. 92)
854
É por isso que Deleuze e Guattari dirão que “O plano de imanência é ao mesmo tempo o que deve ser
pensado e o que não pode ser pensado.” (Deleuze, Gilles; Guattari, Félix, O que é a filosofia, 2007, p. 78)
855
Há uma necessidade de em algum momento tentar entender como funciona a disseminação de um diagrama
(e de um conceito). Em que momento podemos dizer que um conceito opera um corte na realidade? Basta ele ser
criado? Tem a ver com a sua propagação? Essa invenção afeta apenas aqueles que tem contato com ele ou ela
pode se reverberar de maneira indireta? São questões importantes para conseguir entender o funcionamento do
diagrama. Além disso, no que diz respeito a filosofia, entender essa questão é entender como se desenvolve
geograficamente a história da filosofia. Não se tratando de uma simples sucessão de teorias, mas de um
verdadeiro campo de contaminações de domínios. Os conceitos operam como um virus, não sendo nunca
311

como Deleuze descreve em Francis Bacon o funcionamento do diagrama na pintura, já que se


trata do “conjunto operatório das linhas e zonas, dos traços e manchas assignificantes e não
representativos. E a operação do diagrama, sua função, diz Bacon, é ‘sugerir’. Ou, mais
rigorosamente, introduzir ‘possibilidades de fato’”856 O conceito, assim como o diagrama,
portanto, tem esse mesmo efeito de, em sua criação, abrir uma nova possibilidade de
organização das relações do mundo — ainda que conceito e diagrama operem em âmbitos
distintos do real, o primeiro no âmbito das coisas e o segundo nos regimes de signos,
respondendo à problemas diferentes. Ambos operam um corte que instaura (a possibilidade
de) um novo mundo. Pode-se dizer, então, que um conceito se encontra distribuído pela
realidade em sua face concreta.
O conceito, além disso, possui o mesmo movimento — isto é, seu funcionamento
específico — que o diagrama. Também o conceito opera a partir da dissolução de conceitos
desgastados e velhos (a imagem de pensamento tradicional, por exemplo). A criação passa
inevitavelmente pela demonstração de que certos problemas que nos povoam a nossa
experiência são apenas falsos problemas e, nesse movimento, mostra-se como esses falsos
problemas acabam emperrando a compreensão ou a experiência de algo que de fato nos
incomoda ou mexe conosco, isto é, de algo que se impõe como necessário. E dessa dissolução
passamos à sua face positiva. Se o diagrama realiza sua criação ao entrelaçar uma forma de
conteúdo a uma forma de expressão, não estamos muito longe do construtivismo do conceito.
Dissemos já que um conceito nomeia um acontecimento, e que nesse movimento se opera um
recorte no tempo que faz com que um novo tempo apareça. Bem, antes a coisa ainda estava
um pouco vaga, mas agora pode-se dizer que a maneira que esse acontecimento se produz é a
partir de uma redeterminação da forma de conteúdo e da forma de expressão, ou seja, dos
sistemas de signos e sistemas de corpos. Um conceito acaba sempre gerando novas regras
para repartir as multiplicidades materiais e funcionais, modificando assim as condições de
experiência da realidade. É por isso que se trata de um novo mundo, uma nova perspectiva.
Ainda que nem Deleuze ou Guattari tenham dito isso expressamente, nos parece fecundo
conceber um conceito a partir do diagrama. Ambos possuem uma face dupla, mas, o conceito,
como o diagrama, produz uma nova perspectiva ao destruir e (re)construir os elementos
presentes na realidade atual. Trata-se de um movimento de redeterminação do atual a partir
da experiência de que conceitos que já foram reais — isto é, que em sua criação foram

limitados ao seu momento de nascimento, podendo permanecer hibernando até encontrar um hóspede ideal ou
mesmo, após um nascimento explosivo, rapidamente ser esquecido.
856
Deleuze, Gilles, Francis Bacon: lógica da sensação 2007, p. 104
312

necessários — se tornaram morais — isto é, formas desgastadas que já não dão mais conta
dos movimentos reais.

É por isso que é possível dizer que a filosofia é uma prática que acaba, por seus
movimentos construtivos e destrutivos, produzindo uma variação no real. Como diz
Maniglier, em um ensaio importantíssimo para essa investigação, “filosofar é levar em conta
o novo”.857 Isso significa que a filosofia passa pela experiência de algo que não cabe nas
nossas categorias. Esse impulso, que só pode vir de fora — e mesmo quando vem de dentro,
não deixa de ser de um exterior interior a nós mesmos —, é que nos obriga a pôr em questão
as categorias que repartem o nosso mundo e que utilizamos para conseguir nos orientar nele.
É dessa experiência de insuficiência que nasce a filosofia. Mas se falei que há uma variação
do real que é produzido a partir desse encontro é porque são essas categorias que dispõe e
organizam as multiplicidades do mundo — elas funcionam como a sua gramática. Nesse
sentido, diante de algo novo, sem nome, nós somos obrigados a reconstruir as nossas
categorias para conseguir dar conta dessa novidade. Mas ao mesmo tempo não se trata de um
corte completo e é também por isso que falamos de variação.858 Só podemos construir
conceitos a partir daquilo que temos a mãos, daí a bricolagem presente na criação filosófica.
O que emerge dessa operação, quando bem sucedida, é uma outra realidade, visto que a
gramática da existência foi alterada [variada]. Produz-se aí uma nova “possibilidade de
mundo”. Falaremos sobre esse movimento um pouco mais adiante, mas o que pensamos sobre
essa atividade é que ela tem um efeito psicotrópico por expandir e transformar os limites
experimentados da realidade.

857
Maniglier, Patrice, op. cit., p. 257
858
Para entender o porquê dessa impossibilidade de variação cf. Idem, ibidem, pp. 253-257
313

III.2. A PROPENSÃO DAS COISAS E A EFICÁCIA FILOSÓFICA

As gralhas afirmam que uma só poderia destruir o céu. Não


há dúvida quanto a isso, mas não prova nada contra o céu,
pois os céus significam justamente: impossibilidade de
gralhas.
Franz Kafka, Aforismos

A prática filosófica pode ser pensada como uma rearticulação da gramática do real, isto é,
uma reorganização das coisas que nos permita operar e agir de maneira mais interessante para
os nossos desejos. É por isso que resta entender em que medida essa rearticulação se relaciona
com as nossas discussões sobre a esfera do afeto e os efeitos que ela pode produzir na
dinâmica temporal que discutimos no início. Devemos perguntar se a prática filosófica pode
nos auxiliar na realização dos nossos desejos e se de alguma forma eles intervém na
construção conceitual. Precisamos entender, então, como a filosofia efetivamente articula
afeto e tempo,859 compondo, nessa interação, uma outra perspectiva sobre a realidade.
Para dar conta disso o que pretendo ensaiar aqui é uma aproximação do conceito de
eficácia que François Jullien elabora a partir dos seus livros sobre o pensamento chinês. O
que aparece como oportuno (e relevante para nós) no trabalho de Jullien é que a eficácia, que,
adiante atribuiremos à filosofia, nos ajuda a fugir de uma certa dicotomia que costuma
imperar no pensamento ocidental. Trata-se da oposição entre uma disposição estática das
coisas e um movimento dinâmico das coisas. Ainda que, como o próprio Jullien reconhece e a
história da filosofia também não deixa de evidenciar, essa maneira de conceber as coisas —
separando o estático do dinâmico — não deixa de ser útil e fundamental para certos
progressos operados na história do ocidente. Por outro lado, como vimos, ao discutir as ideias
de Espinosa, Deleuze e Guattari sobre as noções de afeto, desejo e indivíduo, quando
pretendemos falar da realidade de um corpo, é impossível fugir do dinamismo inerente à sua
existência. Se esses conceitos nos atraíram tanto nesses autores é porque de alguma maneira
eles parecem transcender essa oposição entre uma disposição estática (espacial) e o seu
movimento (temporal). Isso é importante pois essa própria articulação temporal da
modernidade que descrevemos se apoia no jogo entre uma oposição de um solo de
314

experiências e um horizonte de expectativas. O solo seria justamente as condições atuais


concebidas de maneira estática enquanto o horizonte de expectativas aponta para um
movimento dinâmico que leva conduz a ele como uma causa final. Conforme mostramos ao
longo da primeira parte desse trabalho, a dialética entre essa estaticidade da experiência e o
dinamismo do futuro acabou produzindo o cancelamento do futuro que vivemos hoje em dia.
Nesse sentido, os problemas produzidos por essa articulação temporal moderna podem ser
apresentados também em termos da reprodução dessa clivagem entre o estático e o dinâmico
no próprio tempo. É por não operar a partir dessa distinção/oposição que nos interessamos
pelo pensamento chinês.
O que é oferecido em seu lugar é o conceito de propensão que, como veremos, procura
dar conta do caráter movente das coisas que encontramos pela realidade. Falar, portanto, da
propensão de algo é caracterizá-la a partir das suas tendências que estão se desenvolvendo.
Isso nos aproxima da eficácia diagramática (semelhante ao diagrama) que identificamos no
conceito filosófico. À sua maneira o conceito está preocupado em dar conta das
transformações que excedem categorias já caducadas. O que a linguagem da propensão
elaborada por Jullien nos permite, portanto, é falar de algo que ainda não se encontra
atualizado, algo que — para retomar o vocabulário do diagrama — se encontra ainda na
esfera do possível860. A princípio, a maneira como ele descreverá os movimentos tendenciais
que se encontram na propensão das coisas nos deixa conceber esse possível como algo
manipulável ao mostrar quais são os caminhos mais propícios para intervenção na realidade.
A coisa se torna mais interessante, porém, quando vemos que, além disso, a própria descrição
de uma propensão é ela própria um movimento criativo que ordena as coisas a partir de certos
interesses que estão em jogo. Como falar das propensões é falar sobre uma região indefinida
da realidade, o ato de identificação das tendências que estão ainda frágeis — e, portanto,
manipuláveis, como veremos isso adiante — já é ele próprio estruturado a partir de interesses
e tendências daquele que captura essas propensões861.
Mas não se trata de dizer que se concebe as coisas ex nihilo da maneira que se quer —
como se o próprio desejo fosse algo já delimitado e que existisse numa reserva esperando para

859
O tempo é apenas o que nos interessa aqui, evidentemente a filosofia se articula de modo a transformar
outros domínios do real.
860
Um possível, como já falamos, que não é da ordem do previamente existente, mas enquanto indefinido.
Como diz Roque, “é o ’não saber’ em si que é posto em jogo para fazer surgir um novo modo de saber, um modo
que é aquele do [ou da ordem do] possível. O diagrama se relaciona com essa maneira de retraçar a linha entre o
dizível e o não dizível. Não se trata somente da questão de dizer novas coisas sobre uma realidade já dada, mas
de produzir o dizível, o conhecível, ao mergulhar em um espaço de possibilidades.” (Roque, Tatiana. op. cit. p.
5. traduçnao minha)
861
Ou seja, seus afetos e desejos.
315

ser utilizado. Se, como vimos, o desejo ou o interesse de um corpo é seu próprio movimento,
então podemos dizer que ele também é uma propensão que pode ser captada. Mas isso não é
tudo. A sua própria propensão (suas tendências) se estruturam na medida em que se procura
captar uma propensão (alheia) em determinada situação. Isso ocorre, como veremos, pois um
corpo só pode agir de maneira eficaz se ele possui, além da compreensão do que ele pretende
manipular, um saber sobre a sua própria propensão, já que a ação eficaz envolve ambos os
termos dessa relação. Mas se o que se pretende manipular só é manipulável a partir de um
certo interesse — e por conta disso será concebido com isso em vista —, o agente
manipulador só se constitui enquanto agente eficaz a partir da realidade que ele procura dar
conta. O movimento de captura é, em certo sentido, duplo e ambas as partes se constituem
mutuamente. O agente se constitui no próprio ato de capturar uma propensão. O que se notará
a partir dessa dinâmica é que o critério que avalia essa captura da propensão só pode ser
pragmático, visto que o seu valor está associado aos efeitos que são produzidos a partir dela.
É nesse ponto que acreditamos ver uma possível continuidade entre a prática diagramática do
conceito e a reflexão sobre propensão (e eficácia) que encontramos no pensamento chinês.
A via chinesa apresentada por Jullien apresenta um caminho para fugir da oposição entre
o estático e o dinâmico ao enxergar o dinamismo inerente à disposição. Se, como
mencionamos, esse par encarna a dinâmica temporal moderna de um solo de experiências e
um horizonte de expectativas, pensar o real a partir das suas propensões nos oferece uma
alternativa para ao menos imaginar a saída desse cancelamento do futuro que nos oprime. O
que esses conceitos elaborados por Jullien nos permitirão, ao fim, é a possibilidade de se
pensar um tempo atrelado à dinâmica dos corpos e sem qualquer finalidade transcendente ou
escatológica. Em outros termos, trata-se de um tempo das metamorfoses.
316

III.2.1. O conceito de propensão e eficácia na China de François Jullien

The farther one travels


the less one knows
the less one really knows.

Arrive without travelling,


See all without looking,
Do all without doing.
George Harrison, The inner light

Antes de abordarmos propriamente a noção de eficácia, é importante que tenhamos uma


visão mínima da lógica chinesa já que, de acordo com Jullien, o seu contraste com a lógica
predominante no ocidente começa já nas concepções mais gerais sobre o real. Para o autor,
haveria uma intuição de base que atravessaria o pensamento chinês como um todo e que seria
a base do conceito de eficácia que nos interessa: a realidade seria pensada “como um
dispositivo no qual devemos nos apoiar e o qual devemos empregar; consequentemente, a
arte, a sabedoria, do modo como são concebidas pelos chineses, é explorar estrategicamente a
propensão que emana desse dispositivo — para um efeito máximo”862 — e o conceito
filosófico, como especularemos mais para frente, talvez seja justamente a formalização dessa
disposição em forma discursiva para fins operacionais. Para Jullien isso significa que a
“física” chinesa se opõe à física aristotélica que dominaria até hoje o pensamento ocidental.
Se no ocidente costuma-se conceber a natureza a partir de distinções da razão como princípio,
causa e por meio de categorias abstratas como matéria, forma, pensamento, ato etc., Jullien
sugere que do ponto de vista chinês

experimentemo-la como um sopro único, “original e sempre circulando”, fluindo por todo o espaço,
gerando infinitamente os existentes: “expandindo-se continuamente no grande processo de advento e
transformação do mundo” e “atravessando de parte a parte todas as espécies particulares”.863

Esse tipo de concepção do real, não estaria terrivelmente longe do que elaboramos a partir
de Espinosa, Deleuze e Guattari. Em comum temos a tentativa de pensar a imanência a partir

862
Jullien, François. A propensão das coisas. São Paulo: Editora UNESP, 2017. p. 18
317

de uma continuidade. A continuidade é, portanto, a concepção de fundo a partir de onde se


estrutura o pensamento chinês do che, ou, o potencial de disposição das coisas — conceito
que dá conta das condições para uma ação eficaz. Mas, é preciso deixar claro que essa
continuidade apontada por Jullien não é homogeneizante. O que está em jogo, e que se põe
como problema central desse pensamento, é que nessa continuidade há diferenciações internas
que vão se desenvolvendo.864 Como, porém, esse movimento de transformação contínua é
uma espécie de fundo da realidade — não uma outra realidade “mais profunda”, mas o
suporte no qual as coisas se dão, sua condição —, não se trata de algo que seria
imediatamente visível. Temos acesso a ela apenas pelo que alguns autores vão chamar de
“linhas da vida” por onde atravessaria o “sopro vital” que circula. Assim sendo, uma linha de
vida é “a ‘veia’ por onde se efetua a circulação do sopro e a ‘ossatura’ que dá consistência ao
relevo.”865 São então justamente a variação que imprime ao espaço (e à realidade) uma
capacidade dinâmica e permite que ele possa ser atravessado pelo fundo de transformação. É
por isso que será possível dizer que na tradição chinesa toda a realidade é um dispositivo
manipulável. As diferenciações internas presentes no real já seriam desde sempre uma série
de disposições com variadas capacidades indefinidas de efeitos (num sentido semelhante ao
que discutimos ao falar sobre o conceito de afeto e desejo) sem qualquer fim específico ou
pré-determinado. Dessa forma, essas linhas de vida que povoariam o fluxo de transformação
“serpenteia[m] incessantemente o horizonte de um extremo ao outro, subindo e descendo,
desenhando curvas e meandros, transformando-se sem parar, sem trajetória rígida ou modelo
preestabelecido”.866
Encontramos, portanto, na ‘metafísica’ chinesa uma tentativa de lidar com a realidade
para além das categorias de causalidade, de modo que a explicação causal só teria lugar em
“experiências ordinárias — à vista —, quando sua apreensão é imediata.”867 Quando se lida
com as coisas para além desse escopo limitado o pensamento causal aparece muito pouco
nessa tradição. Jullien irá dizer que a forma principal de conceber a realidade é a partir de
uma espécie de diagrama: uma “configuração [que] se oferece à uma captura momentânea e
global de todas as relações em ação”.868 O que se procura observar na realidade não são as

863
Idem, ibidem, p. 116
864
Esse seria um elemento central que é possível encontrar em todos os textos canônicos da tradição chinesa. “A
sua mais antiga obra (…) (O Yiking ou Clássico da Mudança), construído a partir da oposição de dois tipos de
traço, o grosso e estilhaçado, representando os dois pólos de todo o processo, retrata a realidade sob o ângulo de
uma transformação contínua.” (Jullien, François. Tratado de eficácia. Lisboa: Instituto Piaget, 1998. p. 75)
865
Idem, A propensão das coisas. p. 118
866
Idem, ibidem.
867
Idem, ibidem, p. 284
868
Idem, ibidem, p. 286. A semelhança com o que discutíamos há pouco não nos parece meramente casual.
318

redes causais externas que explicam um determinado efeito. Antes trata-se de tentar constituir
um dispositivo que dá conta da “evolução em curso [que] decorre totalmente da relação de
força inserida na situação inicial, constituindo-se como sistema fechado e, portanto, à maneira
do inevitável.”869 Como se trata de um desdobramento imanente de um processo, não se pode
falar de qualquer finalidade envolvida nessa forma de conceber a realidade.870 O que se diz
com isso é que aquilo que acontece é concebido sempre a partir de certas tendências
anteriores e nunca a partir de algum desenvolvimento final (não estamos tão longe de
Espinosa, como se vê, já que não há escatologia na China). Daí ser adequado falar da
realidade como um desdobramento de tendências sem uma finalidade orientadora.
A princípio pode-se ter a impressão de que esse modo de conceber a realidade, e a história
(por conseguinte), leva a uma ideia de um destino inexorável, inescapável que condena a
todos independente dos seus desejos de divergência. Essa impressão parece particularmente
forte quando vemos Jullien descrever a transição do poder feudal (hereditário) para o poder
imperial (burocrático) na China antiga, apontando como disseminação do princípio de
hereditariedade levou a um crescimento das tensões provenientes do fato de que quem exercia
certas funções não era necessariamente capacitado para tal. Para ele, “disso decorre, por fim, a
mutação histórica que anula o princípio de hereditariedade: à exacerbação e à explosão das
tensões sucede um estado de coisas mais coerente. Sob pressão da tendência, a própria
‘lógica’ se alterou.”871 O que precisamos destacar para descartar esse suposto fatalismo da
história é que isso só seria possível a partir de um quadro teórico que junto ao determinismo
do fatalismo, procurasse também pensar uma certa noção de liberdade. O fatalismo só aparece
(e aparece como problema) se pensamos — ou desejamos — que as ações se fazem de
maneira ex nihilo.872 Longe dessa oposição entre liberdade e necessidade, o curso da história
não teria nada de definitivo e determinável. No pensamento chinês ela [a história, mas
também o próprio real] é fruto de um acúmulo de transformações silenciosas que acabam
gerando tendências que estão constantemente em desequilíbrio. Dessa forma, “é impossível,
mesmo para o Sábio, prever qual será a próxima mutação. A única coisa que sabemos é que,

869
Idem, ibidem.
870
“não é para atender às necessidades do homem que o Céu faz brotar os cereais ou o linho (…). O céu procede
sem causas, por sua interação com a Terra, em função apenas de suas disposições recíprocas: ele não é
‘criador’.” (Idem, ibidem, p. 290) Sobre sentido do Céu, na tradição de pensamento chinês: “A principal
disposição, para os chineses, é a do Céu e da Terra: o Céu está em cima e a Terra está embaixo, um é redondo e
o outro é quadrado. Porque a Terra, em razão de sua situação está abaixo do Céu e corresponde a ele, sua
‘propensão’ (che) sempre a conduz a ‘conformar-se e obeder’ à iniciativa que emana do Céu. Graças ao efeito
dessa disposição, Céu e Terra encarnam os princípios anti-téticos e complementares que governam todos os
eventos. A um só tempo o ‘iniciador’ e o ‘receptivo’, Pai e Mãe: desse dispositivo primeiro decorre todo o
processo de realidade.” (Idem, ibidem, p. 287)
871
Idem, ibidem, p. 233
319

oscilando dessa maneira, sob a tensão da alternância, a História avança: nem segue uma linha
de progresso contínuo nem anda em círculos.”873 A questão que de fato é colocada nesse
pensamento diz respeito a uma certa irreversibilidade dos acontecimentos (ainda que de
forma gradual).874 O acúmulo de tendências torna a transformação de um sistema feudal para
um sistema imperial de certa forma irreversível pelo próprio esgotamento — que decorre da
radicalização da tendência, descrita por Jullien, de universalizar o princípio da hereditariedade
— do sistema feudal. É por isso que, nesse contexto, o acontecimento (aparentemente)
revolucionário seria apenas o aspecto visível de uma série de transformações silenciosas que
se acumulam no passado e tornam esse acontecimento inevitável. Como diz Jullien, “nada
acontece de um dia para o outro, mas tudo muda dia a dia. A História é feita desses
‘deslocamentos profundos’, dessas ‘transformações silenciosas’.”875 Caso contrário, caso
fosse de fato uma transformação abrupta, a tendência seria justamente que após esse abalo as
coisas retornassem ao seu estado anterior, devido à falta de força que o acontecimento traria
consigo.876
Há, porém, nesse curso de transformações, uma espécie de lógica dupla dessas tendências
e que dariam conta do percurso específico das transformações do real. Por um lado, as
tendências teriam sempre uma tendência a se amplificar, isto é, cada dinâmica acaba sempre
se reforçando e se expandindo em sua dominação. Como já falamos, o princípio da
hereditariedade no sistema feudal que começou apenas entre os príncipes, foi aos poucos
sendo ampliado para outras posições até o momento em que todos os cargos eram
transmitidos de maneira hereditária. Essa realização plena da tendência (no caso por meio da
sua universalização), acaba levando ao outro princípio da lógica das tendências: “qualquer
tendência levada ao extremo, esgota-se e exige sua contraversão.”877 A consequência desse
esgotamento é o surgimento de uma nova tendência que substitui a anterior — no caso foi o
surgimento de uma burocracia não-hereditária pois “a partir do momento que todos os cargos
se tornaram hereditários, ocorreu um divórcio gritante entre as capacidades naturais e as
funções exercidas — já que existem tantos ‘estúpidos’ nas famílias nobres como ‘mentes
brilhantes’ entre os camponeses.”878 Esses dois princípios — amplificação e esgotamento —
compõe aquilo que Jullien chamará de lógica da contraversão. O movimento de realização de

872
O mesmo problema é discutido por Bergson em seu ensaio “O possível e o real” em Pensamento e movente.
873
Idem, ibidem, p. 243
874
E irreversibilidade que não pode ser confundida com evolução ou progresso. Cf. Idem, ibidem, pp. 238-239)
875
Idem, ibidem, p. 237
876
No entanto, e assim gira a roda da história, esse acontecimento fracassado pode acabar servindo como mote e
movimento inicial para outras transformações silenciosas que se acumulariam a partir desse esforço inicial.
877
Idem, ibidem, p. 247
320

uma tendência acaba levando, pelo seu esgotamento, à sua própria transformação de maneira
espontânea. É esse desequilíbrio natural — fruto de um desenvolvimento espontâneo das
próprias tendências — que justificaria a variação constante das tendências e a impossibilidade
da sua cristalização ou estagnação. Essa concepção da realidade histórica não é sinal de uma
fatalidade, mas uma indicação do espaço ideal de intervenção: sempre nas franjas ou pontos
periféricos que podem constituir uma nova propensão e se contrapor às tendências
dominantes879
Como podemos então compreender a propensão a partir dessa concepção da realidade
como um processo de desenvolvimento contínuo e imanente? A propensão nesse contexto
indica “as circunstâncias individuais que caracterizam os diversos estágios do processo e a
tendência particular que decorrem delas: é essa ‘propensão’ que conduz a seu advento
concreto a mínima potencialidade de existência, mal esta última se esboça.”880 As tendências
de cada coisa (e o recorte sobre o que é essa “coisa” podem e devem ser refeitos
constantemente dependendo da situação em questão já que delimitar o recorte de maneira a
priori é justamente uma forma de se limitar, visto que em determinadas situações certas
coisas se apresentam como relevantes e outras como irrelevantes) são sempre então uma certa
abertura de capacidades que decorre do seu próprio desenvolvimento: “a tendência é o termo
intermediário que une a relação de princípio e o advento do concreto e constitui a tensão
geradora e reguladora que é coextensiva ao real em sua totalidade.”881 Aqui nesse ponto fica
claro que a propensão não pode ser encarada como qualquer essência eterna e/ou a priori. Por
ser fruto de uma transformação, ela é de certa forma delimitada pelo seu desenrolar anterior (é
essa a irreversibilidade que Jullien menciona).882 As propensões indicam as tendências que
estão disponíveis (e as que estão indisponíveis) e que podem ser atualizadas — sempre de
acordo com as outras circunstâncias, claro. Mas, como vimos, a própria tendência não deixa
de ter seus graus concretude, de modo que há momentos em que uma certa propensão se
encontra mais ou menos inevitável (e mesmo seus pontos de contraversão, como já falamos,
em que realização plena e espontânea se confundem com esgotamento e transformação). A
grande sabedoria nessa lógica é conseguir encontrar os pontos em que uma tendência ainda

878
Idem, ibidem, p. 233
879
“O ponto de partida pode ser ínfimo, mas é determinante, porque introduz uma nova inclinação na História
que esta depois penderá constantemente a seguir.” (Idem, ibidem, p. 244). Cf. Idem, ibidem, pp. 244-245 para
exemplos sobre os efeitos provocados pelas ações na dinastia Tang e que ilustram esse ponto ínfimo de partida.
880
Idem, ibidem, p. 288
881
Idem, ibidem, p. 297
882
“Com efeito, o próprio Céu, em seu curso, é submetido à determinação das horas ou das estações do ano; e
uma vez que ‘se fez alto e grande’, ele não pode voltar a ser, por si mesmo, ‘baixo e pequeno’; uma vez que se
321

não possui concretude suficiente a ponto de ela poder ser alterada em favor do agente para
que, quando ela ganhe concretude, sua força e inevitabilidade possa provocar certos efeitos de
maneira espontânea e com o mínimo de esforço do agente. O que se procura extrair dessa
maneira de ver as coisas é a possibilidade de “aproveitar a tendência que se encontra no curso
das coisas”.883
O que a ideia de propensão nos permite é um afastamento de certas categorias que tendem
a comandar o nosso pensamento ocidental — noções como meios e fins e causa e efeito não
fazem sentido no quadro teórico chinês. O pensamento chinês, por ignorar essas categorias
finalistas acaba avançando sem telos. A realidade não deixa de se transformar e evoluir, mas a
preocupação do pensamento não é identificar a que fim as coisas se destinam, mas à lógica
interna que aponta para processos em curso e seu desenvolvimento imanente.

Agora que temos uma compreensão mínima do pensamento chinês, podemos entender o
que há de interessante e potente no conceito de eficácia. Como não poderia deixar de ser,
ainda mais considerando a história chinesa, o campo exemplar (mas certamente não o único)
em que esse conceito aparece é o da guerra. Por meio dos textos clássicos dessa tradição sobre
a guerra (Sun Tzu, Sun Bin), Jullien começa a construir esse conceito como uma alternativa
ao conceito de ação. Ao contrário da maneira como a guerra é concebida no ocidente, como
tendo um caráter imprevisível e dependente do acaso, a reflexão sobre a guerra na china se
mostrou campo privilegiado para conceber a noção de eficácia no pensamento na medida em
que se procurou entender como “seu desenrolar obedece a uma necessidade puramente
interna”.884
A partir do conhecimento do desenrolar, ou seja, da propensão dos elementos envolvidos
na guerra, o bom estrategista é aquele que conseguirá influenciar os acontecimentos antes da
sua efetivação:

a vitória não será mais do que a consequência necessária — e a consumação previsível — do


desequilíbrio, agindo a seu favor, ao qual ele soube levar. (…) A arte do estrategista consiste, portanto,

pôs em movimento, ‘não pode parar, por si mesmo, nem um único instante’: ele é submetido à inviolabilidade da
tendência.” (Idem, ibidem, p. 296)
883
Idem, ibidem, p. 254. Os erros e as ilusões também fazem parte do “curso das coisas” e das tendências. As
coisas não são tendências majoritárias à toa e o sábio é justamente aquele que consegue distinguir quais
tendências estão florescendo ou degenerando: seu saber é sempre comparativo.
884
Idem, ibidem, p. 28
322

em conduzir a esse resultado, antes que ocorra o verdadeiro confronto: percebendo suficientemente
cedo — em estágio inicial — todos os indícios da situação, de modo que possa influenciá-la antes
mesmo que tome forma e se efetive. Porque quanto mais cedo essa orientação favorável é adotada,
mais facilmente ela atua e se realiza. Em seu estágio ideal, a ‘ação’ do bom estrategista nem
transparece, o processo que o leva à vitória é determinado com tanta antecedência (e seu desenrolar é
tão sistematicamente progressivo) que parece natural, e não resultado de cálculo e manipulação.885

Vê-se, a partir desse caso, que a ação ideal é, portanto, sempre uma ação que desaparece
no desenrolar das coisas — esse será o indício de uma ação bem realizada. Evidentemente o
objetivo do general é conduzir a situação conforme os seus interesses (algo que Jullien repete
incansavelmente sem nunca explicitar direito o que seria esse ‘interesse’ nesse quadro teórico
— falaremos sobre isso adiante), mas nesse tipo de pensamento não há uma articulação que
separa de maneira absoluta passado, presente e futuro. O resultado da guerra não está
separado da sua preparação por uma bruma do acaso, como se vê nos escritos sobre a guerra
no ocidente886 já que a relação entre o antes e o depois tem um enlaçamento contínuo, de
modo que o futuro da batalha é sempre decidido antes da batalha.887 Agir é então agir sobre as
condições e não no próprio acontecimento, pois este não é mais que a espuma da onda. Mas
ao mesmo tempo, no contexto da nossa discussão, vemos que isso é fundamental, pois o que
está em jogo para nós é, entre outras coisas, como não ser alienado da nossa experiência
temporal. Isto é, o que significa uma ação num contexto em que já não temos — e nem
queremos — o tipo de experiência do futuro articulado na modernidade (considerando que foi
ele quem nos levou para a situação em que estamos)? Não é que se pode absolutamente se
tornar mestre do tempo, mas a ideia de ação eficaz parece ser um caminho para que tenhamos
alguma agência na temporalidade. Se podemos dizer que agimos na medida em que
conseguimos operar o tempo, então a ação eficaz não é nada mais do que uma tentativa de
influir e manipular aquilo que se mostra manipulável a partir de uma articulação temporal
distinta da nossa, visto que no pensamento chinês o tempo nunca se articulou a partir da
trindade passado-presente-futuro — ou a sua configuração moderna: um apoio em um solo de
experiências orientado por um horizonte de expectativas.
O que faz, então, o estrategista? Ele dispõe as peças de modo que a a guerra caminhe ao
seu favor com o mínimo de esforço. É por essa razão que para a tradição chinesa da guerra

885
Idem, ibidem, pp. 28-29
886
Algo que, como Jullien aponta, é justamente aquilo que dificulta a existência de uma ciência da guerra na
tradição ocidental, elemento encontrado no pensador paradigmático da guerra no ocidente. Cf. Idem, Tratado da
eficácia. pp.13-29
887
Aí encontramos a máxima de Sun Tzu: “as tropas vitoriosas começam por vencer e procuram depois travar o
combate; enquanto as tropas vencidas começam por travar o combate e procuram depois vencê-lo.” (apud Idem,
ibidem, p. 64)
323

será irrelevante (e nesse ponto vemos [mais] uma distância do ocidente) certas características
psicológicas/morais que tem destaque no modelo ocidental da guerra. Os valores e as virtudes
dos combatentes individuais prezados desde os gregos homéricos e tidos como essenciais para
o resultado da batalha, como coragem, sagacidade etc., são tidos como irrelevantes diante do
potencial de efetividade da intervenção na disposição. “O que é determinante é a propensão
objetiva que decorre logicamente da situação, tal como esta última é estruturada, e não a boa
vontade dos indivíduos.”888 Invertendo a lógica ocidental, a covardia e a coragem não seriam,
pois, características inerentes ao combatente, mas sempre algo que é produzido a partir da
situação.889
O bom estrategista, aquele que atua de modo eficaz, deve sempre agir em um momento
anterior em que a ação ainda é possível. Mas que momento é esse? Bem, o próprio Jullien
começa a esclarecer isso quando diz que “Tudo deve definir-se previamente, num estágio
anterior da determinação dos acontecimentos, quando disposições e manobras, ainda
dependendo apenas de nossa iniciativa, podem ser espontaneamente adaptadas e, encadeando-
se e reagindo logicamente, são sempre eficazes”.890 Não é surpreendente que na tradição
chinesa, como lembra Jullien, o ideal de guerreiro é justamente alguém não belicoso,891 ele
“vence com um dispêndio mínimo para atingir um efeito máximo à distância (de tempo e
espaço), por simples proveito dos fatores em jogo.”892 O que não significa agir simplesmente
num começo absoluto, mas saber o momento antecedente específico em que a tendência que
domina atualmente — e por isso é inflexível e/ou requer um enorme gasto de força para
alterá-la — se esgotará e chegará ao seu limite para então começar a se inverter e dar espaço a
uma nova tendência que no momento ainda é fraca e, por isso mesmo, ainda pode ser
afetada/alterada. O bom estrategista está sempre atento à lógica da contraversão das
tendências. Ou seja, não adianta simplesmente “intervir cedo demais, antes que o curso
natural do processo tenha se consumado no sentido desejado” pois “ela [a nossa intervenção]
o força e nos leva a passar da medida que lhe era natural: será mais difícil depois reequilibrar
o processo de maneira estável e duradoura.”893 É no momento em que a coisa ainda não está
completamente atualizada que se pode agir de maneira mais eficiente pois

888
Idem, A propensão das coisas, p. 34
889
Cf. Idem, ibidem, pp 34-35
890
Idem, ibidem, p. 29
891
Como encontramos no Dao De Jing: “[pois] quem sabe guerrear não [cede à] cólera.” (Laozi. Dao De Jing.
São Paulo: Editora Unesp, 2016. p. 481)
892
Jullien, François, op. cit., p. 33
893
Idem, ibidem, pp. 255-256)
324

no estado de actualização das coisas, o real tornou-se rígido (…); como no estado de actualização o
agir enfrenta a resistência do real, este agir é dificultado (…). Em contrapartida, a montante da
actualização, a realidade ainda é flexível e fluida, não é preciso afrontá-la, não se manifestou (porque
só o pode fazer no estado do concreto) aquilo sobre o qual é preciso ponderar. A este estado (…), o
real está ainda largamente disponível, as suas funções não estão canalizadas: também pode-se inflecti-
lo com doçura, e a menor inflexão será decisiva, uma vez que é levado pela processividade das coisas
a desdobrar-se.894

Como já falamos, porém, essa ação eficaz é sempre uma ação sobre coisas que já estão em
movimento e se relacionam sempre com as tendências que estão dominando ou que
permanecem periféricas. É por isso que o homem eficaz não é nunca eficaz de maneira
absoluta, mas sempre comparativamente, com relação à maior parte dos homens que não
fazem mais que seguir as tendências dominantes, tentando se opor a elas sem ver que isso só
lhes traz problemas. É como se fosse necessário a existência do idiota para que o sábio895
possa existir.
Se ação eficaz é entendida como aquela que explora ao seu favor o potencial inerente às
coisas, então o bom estrategista será aquele que tem habilidade de manipular o che (um
potencial nascido da disposição): Como diz Jullien, “o che dá poder sobre o processo da
realidade”896 pois “este potencial (de situação) é claramente o que ‘separa’, ‘aproveita’ e
‘estraga’, uma vez que é o factor que, pela sua ‘autoridade’, inflecte a evolução.”897 De modo
que a ação eficiente pode ser descrita a partir de dois traços: “de um lado, ela advém apenas
como consequência, implicada por uma necessidade objetiva; e, de outro, dada a sua
intensidade, é irresistível.”898 Produzir uma eficiência é então conseguir organizar as coisas a
partir do seu potencial para que os efeitos desejados assumam essas duas características.899 Na
esfera da política, na tradição da escola conhecida como de “legista”, vemos uma variação
dessa manipulação a partir da concepção de que “a arte do príncipe é fazer todo o resto da
humanidade concorrer para sua própria posição: não investindo sua própria pessoa, mas
levando o outro a esforçar-se por ele.”900 Fica claro a partir do que foi dito acima que a ação
eficaz é sempre uma que usa o mínimo de força do agente e o máximo de força das condições,
ou seja, que se apoiam no che das coisas ao seu redor.

894
Idem, Tratado da eficácia, pp. 166-167
895
Sábio aqui não no sentido vulgar, como alguém dotado de algum saber transcendente. Falo aqui
simplesmente de alguém que se faz sábio justamente pela sua ação eficaz.
896
Idem, A propensão das coisas, p. 36
897
Idem, Tratado da eficácia, p. 45
898
Idem, A propensão das coisas, p. 31
899
“A imagem ideal desse dinamismo que decorre da configuração e que se deve captar é a do curso da água:
quando se abre uma brecha para a água acumulada no alto, ela só pode se precipitar para baixo; e, em seu elã
impetuoso, arrasta até os seixos.” (Idem, ibidem.)
325

Podemos extrair então do trabalho de Jullien duas principais características do bom ator
eficaz. Primeiramente ele tem a capacidade de fazer funcionar o dispositivo [que é a realidade
em questão] da maneira mais natural possível, intervindo apenas em suas condições para que
os efeitos gerados não sejam mais do que consequências inevitáveis da propensão em questão.
“O resultado decorre de si mesmo — sponte sua — como puro efeito.”901 A verdadeira
transformação operada não será mais que um desenvolvimento espontâneo (e por isso
inevitável e irresistível) da ação sobre as condições enquanto as tendências ainda não são
dominantes o suficiente. Mas para que as ações possam de fato serem vistas como naturais
elas precisam ser realizadas de maneira imperceptível, de modo que a ação se confunda com o
curso natural das coisas. Passar desapercebido é, portanto, fundamental para a ação eficaz, já
que “no plano prático, deixar-se ver é abrir o flanco para o outro e dar-lhe o poder sobre si; no
plano teórico, o verdadeiro manipulador confunde-se com o funcionamento do dispositivo,
dilui-se nele.”902 Quando se age de maneira invisível você impede que o seu inimigo se
posicione contra você, já que o que vai se desenrolar na guerra — se o general agiu de
maneira eficaz — é um curso espontâneo e natural das coisas e, por isso mesmo, mais difícil
de evitar. Se no ocidente o conflito se dá à luz do dia, na tradição chinesa o que se procura é
sempre manipular indiretamente e de modo invisível.
Mas em que ponto é possível agir? Bem, o que vemos a partir dos textos de Jullien é que a
disposição não tem um conteúdo previamente determinado, ela varia sempre conforme a
circunstância. É justamente aquilo que é disposição em determinada situação que deve ser
investigado para se entender os potenciais inerentes à uma situação específica e o que se pode
ou não pode fazer, alterar, se opor etc. Dessa forma,

a circunstância já não é o que, na sua determinação particular e, portanto, imprevisível, arrisca sempre
a fazer tropeçar o plano projectado para ela; mas o que, precisamente graças à sua variabilidade, pode
ser progressivamente inflectido pela propensão emanada da situação e fazer advir o proveito
reduzido.903

Deslocando a discussão do che para as práticas artísticas, podemos elaborar ainda mais
essa noção. No campo da música, a identificação de uma propensão na circunstância aparece
quando Jullien se propõe a analisar os manuais de alaúde encontrados na tradição chinesa e
que procuram descrever e desenhar as técnicas de dedilhamento. Não encontramos nesses

900
Idem, ibidem, p. 61
901
Idem, ibidem, p. 75
902
Idem, ibidem, p. 76
903
Idem, Tratado da eficácia, pp. 38-39
326

manuais apenas uma descrição e um desenho minucioso dos movimentos de dedilhamento


(algo que esperamos encontrar nesse tipo de manual), mas também “séries muito mais
reduzidas de che — não apenas dos dedos, mas de toda a mão — que recuperam globalmente,
e em seu elã próprio, a lógica gestual de acorde que se deve executar.”904 Mas essa
preocupação com o che no dedilhamento nos põe uma questão: na hora de se descrever um
movimento de dedilhamento, apresenta-se a possibilidade de inúmeros recortes desse
movimento para apresentar graficamente seu che. Como saber qual o ponto mais interessante
do movimento para realizar esse recorte? É certo que qualquer corte realizado sobre um
movimento (pensamos aqui num rolo de filme), pelo próprio dinamismo presente na origem
desse corte, contém nele “a ‘configuração’ própria de todo o dinamismo investido nele.”905
Mas, fosse apenas isso, qualquer corte seria igual. É por isso que Jullien irá dizer que “essas
disposições são não apenas dinâmicas, como também estratégicas — porque essas séries de
che não representam qualquer corte operado no movimento, mas apenas aqueles que
exploram melhor as virtudes desse dinamismo e são os mais imbuídos de eficácia.”906 O
recorte eficaz é alcançado quando se consegue captar os “verdadeiros ‘diagramas’ do
dinamismo em ação’”,907 isto é, quando aquele diagrama consegue apontar para uma
complexidade de movimentos que o atravessam sem que a sua figura estática o limite. O fato
de que ele tenta dar conta dessa complexidade de movimentos acaba levando ele geralmente
sair da esfera restrita de uma simples descrição do movimento dos dedos. É por isso que
nesses manuais, além dos desenhos do che dos acordes e a sua descrição, vemos na mesma
página do acorde, acompanhando o desenho e a descrição, o desenho de uma postura de um
animal ou uma paisagem e um curto poema.

904
Idem, A propensão das coisas, p. 144
905
Idem, ibidem.
906
Idem, ibidem, p. 145
907
Idem, ibidem, p. 146
327

Figura 4. Prancha do Grande tratado do som supremo

Esse movimento de descrever a técnica para além da sua figuração na mão acontece pelo
fato de que só se alcança a complexidade do movimento diagramado na medida em que se
conecta ela com o próprio processo contínuo do real.908 É por isso que o autor dirá que isso
“representa, por meio do código da natureza, em seu estágio de perfeição absoluta (…),
quando a disposição é harmoniosa, o dinamismo é puro e a eficácia é completa: no estágio
ideal em que o domínio se une ao instinto, transmuda-se em espontaneidade.”909 Saber
identificar o potencial na disposição natural é, portanto, tão importante quanto saber
manipulá-lo.
É com isso em mente que podemos dizer que o ponto ideal de ação não tem como ter
qualquer determinação prévia que indique onde a intervenção deve se localizar. A disposição

908
Exemplo: “Imaginemos, por exemplo, o che do ‘pássaro faminto bicando a neve’ (quando a mesma corda
deve produzir dois sons em rápida sequência): a imagem que mostra um corvo muito magro, pousado numa
árvore pelada, no meio de uma paisagem inverna, bicando a neve com a esperança de descborir comida, traduz
bem esse toque rápido, seco, executado apenas com a ponta dos dedos… como se fosse uma bicada. Ao
contrário, o movimento indolente do rabo da carpa (quando o dedo indicador, o médio e o anular tocam juntos
duas cordas, uma vez para dentro e, logo em seguida, outra para fora) torna visível esse movimento amplo e
comedido das mãos.” (Idem, ibidem, p. 147)
909
Idem, ibidem, p. 148
328

específica que se apresenta como ideal é sempre constituída a partir das situações em que se
está inserido.910 Podemos então entender esses “diagramas”, dos quais os desenhos sobre os
dedilhados são um caso, como dispositivos que, uma vez construídos, podem gerar bons
efeitos de maneira espontânea/necessária/inevitável.
O problema que se põe para o pensador da eficácia é que, ao menos no campo da
estratégia, há um limite para os princípios fixos a partir de onde se pode tentar orientar a ação,
visto que a guerra é um campo constituído pela reciprocidade entre as partes em guerra.
Grande parte da tradição ocidental que pensa a guerra simplesmente se resigna a aceitar esse
elemento da guerra como um espaço da contingência que torna a guerra imprevisível, de
modo que a nossa capacidade de agência (e de atingir nossos objetivos) fica restrita. A
reflexão sobre a disposição das coisas por parte da tradição chinesa é precisamente uma
tentativa de superar esse impasse. Como diz o clássico chinês de Sun Tzu sobre estratégia,
“uma vez que forem determinados os princípios que nos são vantajosos, é necessário criar-
lhes as disposições favoráveis [dotadas de eficácia: che] a fim de auxiliar o que [no momento
das operações] se revela exterior [a esses princípios].”911 É por isso que Jullien dirá que “toda
a estratégia repousa, pois, numa empresa de informação sistemática (…), depois de avaliação:
convém ‘calcular’, ‘medir’, ‘enumerar’ e ‘sopesar’ até que, pela diferença dos pesos em
presença, a balança desequilibre brutalmente para um lado”.912
Não se trata, porém, de simplesmente conseguir operar uma passagem do âmbito teórico
da guerra para a sua concretude. O que o estrategista chinês procura é que reconhecer as
tendências que estão em jogo sem se prender de antemão a nenhuma delas. É isto que permite
ao combatente não limitar desnecessariamente de antemão o potencial do dispositivo
estratégico.913 O grande trunfo do estrategista é justamente fazer seu adversário não ter
condições de alterar sua disposição enquanto ele próprio a transforma ao sabor do
momento.914 Mas de novo, não se trata de simplesmente saber adaptar-se. Se o fundo da

910
Essa inexistência de um conjunto de disposições a priori explica a impossibilidade de se encontrar regras
gerais e com pretensões universais nas práticas artísticas. Ao analisar um conjunto de regras poéticas elaboradas
no século VIIII, Jullien chega a conclusão que “a razão chinesa serpenteia na horizontal, de caso em caso,
passando por pontes e entroncamentos, cada caso conduzindo ao seguinte e convertendo-se nele. Ao contrário da
lógica ocidental, que é panorâmica, a lógica chinesa é a de um itinerário possível, feito em uma sucessão de
etapas. O espaço da reflexão não é definido e fechado a priori: ele é desenvolvido progressivamente — e
fecundado — à medida que é feita essa balizagem; e uma trajetória não exclui as outras — que a margeiam
temporariamente ou a cruzam.” (Idem, ibidem, p. 157)
911
apud Idem, ibidem, p. 37
912
Idem, Tratado da eficácia, p. 65
913
Cf. Idem, A propensão das coisas, p. 37
914
“em vez de querermos dirigir imperiosamente o mundo por nossa ação, deixemo-nos conduzir ao sabor das
coisas; em vez de desejarmos impor ao mundo nossas preferências, deixemo-nos ir pelo fio dos seres,
abrançando a linha de menor resistência.” (Idem, ibidem, pp. 48-49)
329

realidade é movente, o objetivo é justamente evitar que a potencial se esgote — e não seria
essa a nossa situação atual do cancelamento do futuro em que as nossas capacidades parecem
completamente esgotadas? —, o que se procura é evitar que a disposição se imobilize. Dessa
forma agir acaba sendo muito mais uma atitude de espera para as tendências mais propícias
aos seus interesses do que a tentativa de impor à força seus objetivos em tendências já
plenamente formadas. Como diz Jullien,

a sabedoria resume-se logicamente a este grau zero de intervenção humana que, como tal, é prenhe de
maior eficácia: ‘saber esperar’. Sábio é aquele que, sabendo que todo processo que conduz ao
desequilíbrio fragiliza-se por si só, à medida que se intensifica, e que a tendência que o leva em uma
direção exige infalivelmente sua reversão, sabe esperar o processo objetivo atingir o estágio mais
propício a sua contraversão— i.e., esgote todos os seus fatores negativos e seja levado a seguir o mais
completamente a direção positiva — para então, com uma mínima intervenção pessoal, reorientar tudo
na direção certa e restabelecer a situação.915

O que isso implica é que a ideia de um telos deve necessariamente sair de vista, já que o
que conduz a ação, em princípio, não é um objetivo final, mas justamente a situação presente.
Como um bom jogador de cartas, deve-se aceitar a mão que se tem e jogar a partir delas e
construir o melhor jogo possível a partir delas. Esse tipo de lição talvez pareça estranho, visto
que não existem muitas pessoas com experiência comandando exércitos em guerra. Podemos
tornar isso mais próximo se pensarmos em certos jogos de estratégia, como War. Qualquer
pessoa que tenha jogado esse jogo sabe que todos os jogadores são reféns dos dados. Cada
batalha é decidida pelo lance de dados, de modo que uma das principais estratégias que
existem no War é torná-los irrelevantes pelo acúmulo desproporcional de soldados. O jogador
perde uma quantidade imensa de peças para derrotar um inimigo com uma força numérica
bastante inferior, mas esse movimento não deixa de ser uma forma de lidar com a
aleatoriedade dos dados e tornar inevitável a vitória sobre um determinado inimigo. Mas há
uma outra estratégia desse jogo que também cabe mencionar visto que ela reproduz a lógica
chinesa da ação eficaz sem telos. No início de cada partida, cada jogador recebe uma carta de
objetivos. Ainda que o apelo inicial do jogo seja começar a se mover rumo a concretização do
objetivo, isso pode ser um erro fatal. Primeiramente pois você pode estar muito distante dos
seus objetivos e tentar realizá-lo apressadamente pode acabar enfraquecendo as suas tropas.
Em segundo lugar, ao se dirigir para os seus objetivos você não deixa de revelar suas
intenções para o inimigo. Ao revelar as suas intenções suas ações se tornam previsíveis e
torna-se mais fácil bloquear a sua vitória. É por isso que uma das estratégias mais
330

interessantes é quando o jogador abdica do seu objetivo e simplesmente procura fortalecer o


que está em seu controle. Se suas peças se concentram em determinado continente
(independente de ser seu objetivo), procura-se conquistá-lo. Se você se encontra isolado,
procura-se simplesmente fortalecer o que você tem e avançar aos poucos. Enfim, incontáveis
caminhos são possíveis. O que importa tirar disso é que em nenhum momento o jogador,
quando adota essa estratégia, precisa realizar qualquer feito heroico. Trata-se de levar adiante
justamente aquilo que é mais fácil. Ao mesmo tempo, pelo fato de que você não se dirige a
nada, o seu objetivo final fica completamente inacessível aos oponentes, dificultando as ações
deles.
Vê-se então de cara como esse tipo de temporalidade é de partida divergente da
temporalidade moderna que descrevemos pelo fato de que não se busca orientar as ações
rumo a um horizonte de expectativas. É como se o horizonte de expectativas fosse desinflado
ao se subordinar ao potencial nascido das disposições (che). Curiosamente se o pensamento
estratégico chinês é um em que se procura criar condições para uma vitória fácil (inevitável e
irresistível — um elogio da facilidade, como diz Jullien) isso só é possível pois se abdicou de
uma finalidade definida e determinada como efeito desejável antes de uma consideração do
que é possível (ou mesmo de um telos geral).
Em seu Tratado da Eficácia, Jullien dirá que o pensamento ocidental tende a ser pensado
a partir de um paradigma do modelo916 e que as nossas ações são sempre realizadas com fins
em mente. É por isso que pode parecer tão estranho a orientação chinesa, em que “da própria
disposição das coisas resulta uma orientação que não vacila nem se desvia jamais, que nem
‘escolhemos’ nem ‘instruímos’: as coisas ‘tendem’ por si mesmas, infalivelmente, sem nunca
‘penar’.”.917 Enquanto no ocidente a tendência é partir de uma causa final para então se
compreender como é possível chegar lá (algo que identificamos na temporalidade moderna),
pode-se dizer que no pensamento chinês a ideia de uma finalidade nem chega a se constituir
propriamente, pois o que se procura é agir a partir das cartas que se tem na mão. É só a partir
dessas cartas que se procura descobrir o que de fato pode-se realizar que seja favorável. É por
isso que o autor dirá que “a boa política (…) corresponde ao caso da conformidade com o
princípio que faz advir a viabilidade da tendência.”918
Isso não significa que por não haver um telos ou uma causa final essa concepção de
realidade abdica completamente da ideia de orientação ou sentido. Como diz Jullien, “não há

915
Idem, ibidem, p. 255
916
Cf. Idem, Tratado da eficácia, pp. 13-17
917
Idem, A propensão das coisas, p. 48
918
Idem, ibidem, p. 312
331

norma transcendendo o real (tomada como Verdade), mas a normatividade está sempre em
ação, e é ela que gere todo o ‘fluxo’ do real em um eterno processo.”.919 Isso ocorre pois essa
finalidade não é externa ao processo de desenvolvimento das coisas, ela é como que a sua
lógica interna. Essa lógica interna leva, como vimos, ao florescimento e decaimento das
tendências, de modo que não basta conhecer o que é favorável em determinado instante para
agir de maneira eficaz, é preciso ter um saber sobre o próprio andamento das tendências, já
que na lógica de cada tendência, como apontamos, há na sua realização o seu próprio
princípio de dissolução. Podemos então dizer que o princípio orientador tem uma posição
completamente diferente das correntes de pensamento finalistas. Ele não está descolado da
própria disponibilidade das coisas, pois apesar de haver uma distinção abstrata entre um
princípio e a situação concreta das coisas, o conceito de propensão implica justamente a
inseparabilidade desses dois conceitos. De modo que “perseguir o que é efetivamente possível
resulta uma ordem ideal. (…) [N]esse caso, a ‘tendência’ (no interior do concreto) é que ‘faz
advir o princípio’.”920 Na lógica que Jullien tenta descrever, “o princípio de ordem não só dá
forma ao mundo, mas também depende do curso das coisas e advém a partir dele.”921
Um objetivo definido previamente seria, nesse quadro conceitual descrito por Jullien, um
dos elementos que mais imobilizaria uma ação ao delimitar de antemão o único efeito que se
procura ter. Por mais matizado e geral que esse efeito desejado possa ser, quando ele é
determinado de modo desconectado da situação de onde se parte, ele já é, de certa forma, algo
que limita a capacidade de transformação das coisas, suas propensões. É por isso que na
esfera da política quando se é guiado por uma moral, acaba-se criando mais dificuldades para
o exercício do poder: Para os pensadores da tradição legista, “a extrema facilidade com que se
exerce o poder a partir da posição de soberania é a prova da superioridade da sua política.
Porque aquele que governa em nome da moralidade deve, ao contrário, esforçar-se cada vez
mais, sem nunca chegar a êxitos confiáveis e definitivos.”922 Isso ocorre pois ao submeter o
exercício do poder a uma moral, “eles perturbam o exercício do dispositivo político, tal como
implicado pela posição soberana, levando-o a sair do trilho da regularidade dos processos.”.923
Nesse contexto as ações que se procuram fazer acabam sempre sendo apenas meios para um

919
Idem, ibidem, p. 319
920
Idem, ibidem, p. 311
921
Idem, ibidem, p. 313
922
Idem, ibidem, p. 66
923
Idem, ibidem, p. 67. Mas, como o próprio Jullien esclarece, esse moralismo confuciano, que inicialmente se
opõem aos legistas, tem, por sua vez, um fundamento no próprio che, ainda que de outro ponto de vista. Isso é
discutido em Idem, ibidem, pp. 80-83. Lá o autor mostra que o condicionamento moral é encarado como
dispositivo e não como mero telos — e não é à toa que o que acaba prevalecendo após inúmeras disputas de
332

fim, e esses meios são ações que são ligadas ao fim [objetivo moral] e não à situação presente
[che].
Daí, como menciona Jullien, essa maneira de pensar as coisas aparecer no campo da
guerra sob a forma da batalha como evento privilegiado, ponto de imprevisibilidade
necessário (e por conta disso não garantido) para atingir o objetivo — a ideia de que a guerra
é vencida na batalha x, ou devido a um evento y. O problema desse tipo de concepção, além
de o objetivo não nos fornecer nele mesmo as ferramentas para atingi-lo (já que nascido fora
da situação ele não nos diz nada ou muito pouco sobre ela), é que isso acaba nos levando a
uma série de situações em que simplesmente não temos como agir pois o objetivo desejado
está completamente fora do nosso alcance. A ausência de futuro não é, então, podemos agora
elaborar, uma simples ausência de possibilidades ou de capacidade de transformação. Ele
pode ser lido como sintoma do desacoplamento entre o que desejamos e a nossa situação
presente pelo fato de que nos orientaríamos a partir de um desejo que é apenas um horizonte
de expectativas descolado das nossas capacidades. A falta de futuro pode ser lido, então,
como a produção de um esgotamento nas nossas próprias capacidades por meio de uma
desvalorização histórica (ao menos durante a modernidade, como mostramos
anteriormente)924 da propensão das coisas em nome de um horizonte determinante. É por isso
que se pode dizer que agir segundo às disposições (invertendo a prática moderna) é reabilitar
o tempo sem que ele seja comandado por uma ideia de futuro.
É nesse sentido que podemos entender o clássico não-agir taoístas. Trata-se de agir sobre
as próprias condições para que a tendência que estava implícito tenha condições para se
afirmar espontaneamente (e, por conta disso, de maneira inevitável e irresistível). Como
explica Jullien,

a negação não assenta no verbo em si, mas no seu complemento de objecto interno: o agir é mantido
(na sua perspectiva de efectividade), apenas o seu objeto é retirado (no que se arrisca conter de parcial
e de resolução); também, libertada do que implica ordinariamente de rígido e de limitado, a actividade
é levada ao seu pleno regime, confunde-se com o decurso das coisas em vez de o confundir: se retiro
ao agir o seu activismo, suprimo de imediato a ocasião da desordem. Agir sem agir: não ajo (em
função de um plano assente, de forma pontual, forçando as coisas), mas contudo já não sou eu, não
agindo — não permaneço inactivo — uma vez que acompanho o real durante todo o seu
desenvolvimento (acompanho-o, sou seu parceiro). Ao mesmo tempo que o mundo deixa de ser um

poder na história da china é uma hegemonia que se estabelece e realiza um compromisso entre a tradição legista
e o confucionismo. Cf. Idem, ibidem, pp. 83-86
924
O próprio Jullien irá dizer que esse modo de agir pautado em meios e fins é algo que se encontra desde o
pensamento aristotélico.
333

objectivo de agir, torno-me parte adquirida do seu devir: “ajo” desde logo sem deixar de o
“afrontar”.925

Podemos agora começar a entender o uso insistente de Jullien da ideia de um interesse que
tentaríamos realizar ao manipular as tendências. Devemos nos perguntar, o que dirige esse
interesse que dá forma à tendência frágil? Bem, o desejo é justamente a tendência inerente
àquele que age, é o seu movimento desenvolvendo o seu curso. Quando falamos de um
interesse que conduz as intervenções estratégicas ou a busca de um favorecimento, não se
trata de algo externo ao corpo que age, algo que se projeta, mas de um movimento fruto da
própria lógica interna de um corpo. Esse interesse não pode ser compreendido como um
simples desejo externo à nossa constituição, ou como algo que nos falta. Retomando o que já
discutimos na parte anterior da tese, o interesse tem a ver justamente com o conceito de afeto.
Ele é o nosso curso das coisas. Trata-se de entender o desejo o afeto como indicador da nossa
tendência — e não como objetivo ou coisa que falta —, o que nos permite concebê-lo para
além de uma causa final. Falar dos afetos é, nesse contexto, descobrir qual a nossa tendência e
de que modo podemos nos aproveitar da sua propensão e evitar se opor a ela. “Mais do que as
nossas ferramentas, contamos com o desenvolvimento do processo para alcançar o efeito
desejado; mais que sonhar em construir planos, sabemos tirar partido do que a situação
implica e que nos promete a sua evolução.”926 Se lembramos que desejo, como vimos, não é
algo externo a nós que nos falta, mas pode ser compreendido como o movimento mesmo que
já realizamos, pode-se entender o nosso interesse pelo trabalho de Jullien. Ele nos
providencia um conjunto de conceitos que permitem explorar e manipular os afetos ao
concebê-los como tendências.

925
Idem, Tratado da eficácia, pp. 120-121. Ao falar da cultura agrária chinesa o que significa não-argir aparece
com mais clareza: “O modelo, ou pelo menos o exemplo privilegiado, é tirado do crescimento das plantas (…).
Como é dito no Mencius (II, A, 2), não é preciso nem esticar as plantas para as fazer crescer mais depressa
(imagem de uma acção ‘direta’), nem dispensar-se de sachar à sua volta para as ajudar a brotar (por um
condicionamento favorável). Não se pode forçar a planta a medrar, nem tão-pouco se deve desampará-la; mas,
libertando-a do que pode entravar o seu desenvolvimento, é preciso deixá-la brotar.” (Idem, ibidem, pp. 122-
123)
926
Idem, ibidem.
334

III.2.2. A filosofia como captura de propensão

Claro, existe um domínio em que os signos encontram uma


eficácia direta sobre as coisas.
Félix Guattari, Sentido e poder

Falamos no capítulo anterior sobre como a prática filosófica procura pensar o


acontecimento. O que nos parece interessante extrair da tradição chinesa é uma maneira de
pensar esse acontecimento sem que ele se torne um simples ponto numa linha do tempo.
Certamente o acontecimento não é isso no pensamento de Deleuze e Guattari. Como vimos, o
que o conceito faz é justamente estabelecer um corte que permite dar conta do movimento de
variação contínua da realidade (e que por isso mesmo torna sempre as nossas categorias e
conceitos obsoletos).927 A maneira como Jullien descreve a paisagem do pensamento chinês,
porém, nos permite ir mais afundo nessa dimensão prática dos conceitos ao trazer para jogo a
noção de propensão. Será isso dar conta do acontecimento? Conseguir capturar nos conceitos
não um corte apenas, mas a transformação e o jogo das tendências que estão em
desenvolvimento? Isso nos permitiria articular a prática filosófica com os afetos, já que os
afetos são mais propriamente um diagnóstico das nossas tendências na medida em que eles
são as variações da nossa capacidade de agir.
Se compreendemos os corpos a partir das relações que ele trava, um corpo se individua (se
transforma e/ou se constitui) a partir das características do corpo com quem ele trava relação.
Dessa forma, agir estrategicamente (na concepção de Jullien ao discutir a eficácia chinesa)
teria a ver com “saber esperar” o momento em que as suas forças em contato com outrem vão
se atualizar de uma forma que seja do seu interesse. Mas ao mesmo tempo o que significa
esperar? Trata-se do reconhecimento (que é uma forma de autoconhecimento) de que nesse
momento o seu corpo não “reage” com o outro por esse outro (ou você) ainda não estar num
ponto de flexibilização — ponto de flexibilização que é por sua vez gerado por outros
encontros que “transformam” a virtualidade de um corpo ao afetá-lo numa cadeia infinita. As
relações parecem acabar criando um campo de causalidades não-lineares onde o cálculo
dessas redes causais é a priori impossível.

927
Obsoletos aqui não significando que os conceitos simplesmente caducam e que o passado não tem valor, mas
que os próprios conceitos anteriores precisam ser rearticulados no novo tempo inaugurado pelo acontecimento.
335

Se compreendemos a dinâmica causal dessa forma, então em certa medida o não agir é o
“autoconhecimento” atuando como causa material na realidade ao inibir um movimento até
aquele movimento ter algum sentido. Caso não haja essa causa “auto conhecimento” atuando,
então nada inibirá que o corpo x tente reagir com y antes ou depois disso ser possível. O
resultado dessa interação pode ser desde uma inefetividade (no caso de agirmos cedo demais)
até uma situação catastrófica para uma ou ambas as partes (quando deixamos para agir tarde
demais). No último caso falamos aqui, para retornar ao quadro teórico chinês, de uma ação
que tenta se opor a uma tendência já bem visível e estabelecida. No outro caso, trataria-se de
uma tentativa de agir sem que houvesse qualquer tendência para acolher nossos esforços. A
questão que surge disso é sobre como compreender a gênese do autoconhecimento. Ora, essa
gênese se localiza na própria efetuação repetida (habitual) das potências de um indivíduo
(experimentação), como se a repetição pudesse produzir (nem sempre) uma intensificação das
capacidades a partir do “teste” dos seus limites.928
O desejo (mover-se em direção a), então, talvez possa ser compreendido como o
desenvolvimento espontâneo de um corpo a partir das tendências nas quais nos apoiamos —
sejam tendências plenas e dominantes, menos controláveis, mais inevitáveis ou tendências
ainda fracas e periféricas, mas por isso mais suscetíveis de serem alteradas. Se o desejo é
“mover-se em direção a” a partir de determinados limites (é o conatus enquanto atualização
prática) então é nos momentos em que conseguimos perceber uma tendência ainda em
formação — ou seja, uma que ainda é maleável — que parece ser possível abrir outros
percursos para o desejo. Não possível no sentido de uma “possibilidade definida”, mas no
sentido de uma capacidade indefinida que é levada adiante de maneira espontânea — pois o
desejo seria o movimento de um corpo que explora as tendências das coisas (e dos
alargamentos do rio) na tentativa de busca precipitar a atualização que lhe interessa (ou seja,
que o preserva naquele instante, naquele contexto) não a partir de escolhas prévias, mas de
uma exploração das tendências disponíveis. O papel do autoconhecimento que falamos aqui
tem a ver então com a capacidade de reconhecer as tendências que estão em jogo e em que
ponto do seu desenvolvimento essas tendências se encontram (frágil ou plena; maleável ou
rígida). O saber tem a ver com conseguir verificar quais tendências são positivas e quais são
negativas, quais vão compor comigo e quais vão tender para a minha dissolução. É por isso

928
O livro do Shaviro sobre senciência em ficção científica (Discognition), especialmente o capítulo sobre o
"computador hospitalar" que vira sentiente, é um bom caminho para entender essa experiência do auto
conhecimento — que no fundo é a gênese da senciência, mas também estamos pensando aqui na maneira como a
experimentação é ao mesmo tempo uma avaliação e um “tatear” — conforme discutimos num capítulo anterior.
Cf. Shaviro, Steven. Discognition. Londres: Repeater Books, 2016.
336

que em muitos momentos a questão é esperar os pontos em que a realidade se mostra mais
flexível.
Mas o que faz ele tender para x sem que ele esteja pré-determinado a isso? E o que
significa dizer que há essa flexibilização e que eu posso seguir outro curso na tendência?
Quanto ao primeiro ponto: é o jogo causal inibitório do autoconhecimento (experiência dos
limites) que permite e constrói os critérios de um corpo. Dessa forma a flexibilização é uma
espera para que a virtualidade das próprias coisas se modifiquem (e há momentos em que
você próprio é levado a construir essas modificações por conta de um jogo causal de
compreensão das tendências intermediárias das coisas quando a tendência é fraca o suficiente
para que você possa alterá-la) a ponto delas poderem reagir contigo de maneira positiva.
Nesse sentido deve haver uma certa indiferença no desejo por uma incapacidade constitutiva
de se orientar para um futuro. Pode-se apenas averiguar os desenvolvimentos possíveis a
partir da lógica da contraversão que guiam as tendências. O autoconhecimento tem então a
ver não com um cálculo do caminho necessário para realizar um objetivo pré-determinado x,
mas com o conhecimento da lógica interna que está em jogo em determinada tendência.
Acredito que essa espécie de autoconhecimento seja a própria filosofia. Ela, no que diz
respeito à seu efeito, pode atuar como um saber específico das tendências que não se resume a
meramente descrevê-las, mas procurar se escorar nas tendências do real que podem ser
conduzidas. O que procurarei fazer a seguir é então pensar a prática filosófica e o conceito a
partir das noções de eficácia e de dispositivo.

Podemos começar pelo próprio objeto principal da filosofia, o conceito, que tem, a meu
ver, um modo de existência similar aos dispositivos no pensamento chinês. Primeiramente é
preciso dizer que na constituição de um conceito, o que interessa não é tanto o seu
desdobramento absoluto — visto que isso apenas o delimitaria e esgotaria a sua capacidade de
gerar efeitos e de se realizar. É por isso que não costumamos ver na filosofia um conceito
tendo já em si o seu desdobramento absolutamente detalhado. É claro que vemos os filósofos
desenvolvendo seus conceitos para além da sua constituição, tentando vez ou outra aplicá-los
a situações concretas. Mas em nenhum momento se pretende que todas as suas possibilidades
estejam previamente delimitadas em sua construção. O conceito enquanto dispositivo é uma
máquina que, após constituída, deve ser livre para ela própria desenvolver seus efeitos sem
337

por isso exauri-los. É por isso que Jullien descreverá os dispositivos a partir de uma relação
entre vazio e plenitude. Acredito ser possível compreender o conceito da mesma forma.
O conceito, podemos dizer, tem uma espécie de existência como o que o autor chama de
efecto. “O efecto”, diz Jullien, “é a dimensão operativa do efeito”,929 ou seja, “o efeito
habitado pelo vazio e levado a manifestar-se, é o efeito em operação, jamais completamente
manifestado, como se faltasse, mas inesgotável.”.930 Como falamos, não é o essencial ao
conceito (em nossa concepção) que ele dê conta de cada ínfimo detalhe. Ele é uma máquina a
partir de onde se pode conceber a realidade. Dessa forma em si, ele tem uma espécie de
incompletude931 que é justamente o que o permite se desenvolver espontaneamente [conforme
discutimos o conceito], já que

graças à actualização do pleno, o funcionamento indefinido do vazio pode sair da sua indeterminação
e manifestar-se em proveito particular; mas também é graças à indiferenciação do vazio servindo de
fundo latente das coisas que cada actualização deixa de ficar oculta na sua particularidade, mas pode
comunicar no seu fundo com os outros e, por relação, descobre a sua própria virtualidade. Porque,
quando se realiza, o efeito é sempre específico; mas o que o indetermina, o “vazio”, é a condição —
genérica e geradora — que lhe permite existir.932

O conceito tem portanto uma natureza própria que diferencia o seu desenvolvimento
espontâneo de um desenvolvimento orientado (seja pelo filósofo933 ou leitor). É por isso que o
que propomos aqui é a ideia de que a prática filosófica e o conceito por ela engendrado tem
mais a ver com uma espécie de recorte do fluxo que não é ela própria o
desenvolvimento/detalhamento de todas as consequências desse recorte pois “para que o
efeito actue em pleno (…), é preciso que haja sempre eficácia de sobra e que esteja
disponível” já que “o que permite ao efeito efectivamente actuar é precisamente este
‘fundamento’ discreto — nos antípodas do efeito visível — que nenhuma actualização

929
Jullien, François, Tratado da eficácia, p. 159
930
Idem, ibidem, p. 160
931
Vazio ou incompletude que não significa um ‘nada’: “o vazio do Laozi é o meio onde o pleno se reabsorve e
se indiferencia; é também a partir daqui que o pleno se manifesta e se torna efectivo. Por consequência, não é
‘não-ser’, mas o fundo latente das coisas, como se fala de um fundo de um quadro ou do silêncio: este fundo é o
fundamento de onde o som é produzido e que o faz ressoar, de onde o traçado emerge e graças ao qual pode
vibrar” (Idem, ibidem, p. 145). Não estamos muito longe da ideia de plano de imanência, de Deleuze e Guattari
932
Idem, ibidem, pp. 147-148
933
Isso se vê muito nos casos de certos conceitos cujos filósofos confundem o que é do conceito e o que é posto
no conceito e, por consequência, acabam justamente limitando o conceito: “esta intenção penaliza o efeito —
paralisa-o: logo que ‘haja [alguma coisa] face à qual se age’, este agir é concertado e necessariamente ‘parcial’
(Wang Bi), uma vez que foi obrigado a privilegiar no início este em face à qual age; e, expressamente, o seu
efeito é irremediavelmente mesquinho: uma vez que deprime de antemão pelas suas motivações e não pode
ultrapassar o que a situação concebeu momentaneamente. Em vez de, levado por ela, ele possa, em função da sua
evolução, renovar sem fim.” (Idem, ibidem, p. 162) É claro que essa diferenciação precisa ser feito caso a caso e
não será, por isso mesmo, isenta de disputas.
338

consegue esgotar.”.934 A consequência desse tipo de concepção é que “já não há necessidade
de impelir o efeito para o fazer manifestar-se, a capacidade ‘aparece’ sem que se tenha de a
‘ilustrar’, ela manifesta-se ‘sem rivalizar’.”935 O conceito entendido a partir dessa ideia de
dispositivo faz com que a filosofia se torne uma espécie de investigação sobre as tendências
que perpassam o real.936 Mas o fato que nem sempre essas tendências são visíveis, é o que
torna essa prática complicada. Fosse simplesmente operar na esfera visível, a filosofia não
construiria efetivamente nada. Ficaríamos circulando entre um conjunto de categorias
estagnadas sem qualquer movimento. A realidade, porém, se encontra numa transformação
contínua (algo que vimos no pensamento chinês, mas também nos autores ocidentais que
abordamos, como Espinosa, Deleuze e Guattari), de modo que as tendências que constituem e
articulam um determinado momento estão sempre sendo transformadas. Se certas tendências,
porém, são invisíveis, por serem ainda periféricas ou frágeis, é justamente na sua figuração
que reside a potência do conceito. Em seu momento inicial, as tendências ainda são frágeis e
maleáveis, exigem menos força para serem alteradas, de modo que a construção conceitual
(que é ao mesmo tempo a figuração dessas tendências) em seu ato de constituição já opera
uma transformação sobre a tendência, fazendo com que ela tome uma forma determinada. A
princípio isso parece ir contra aquilo que dissemos anteriormente, que delimitar de antemão
uma disposição é delimitar o efeito, de modo a enfraquecê-lo. Bem, a questão está justamente
na área de atuação. Não se trata de atuar sobre (ou contra) o efeito, mas sempre sobre a
propensão. O que se pode e deve realizar é sempre no nível das condições, pois trata-se de um
momento em que as coisas ainda não estão decididas. Quando um general age de maneira
estratégica e eficaz, certamente ele não deixa de construir uma certa situação. O que ele evita
é agir em um ponto em que as tendências já estão plenamente desenvolvidas e gerando efeitos
irresistíveis (afinal, isso seria deixar a situação nas mãos de um acaso ou mesmo do seu
inimigo).

934
Idem, ibidem, p. 164
935
Idem, ibidem, p. 165
936
“Mesmo quando é percebido na simples dependência da configuração própria do caractere, o che lembra, por
sua oscilação entre esses polos, o ‘sopro’ que se manifesta pela figuração e a habita. ‘Na ausência de outro termo
herdado pela tradição’, e explicitando-se de maneira metafórica — pulo, salto, voo —, ‘esticando o pescoço e
retesando as asas, seu che aspira a alcançar as nuvens’, como se diz, por exemplo, de certa escrita sigilar. De
modo geral, é ele que ‘dá vida’ e faz vibrar eternamente o mínimo ponto e o mínimo traço, como se
revivêssemos a cada instante o momento de sua execução. Termo sempre valorizador, portanto, em relação ao
que seria a platitude da figuração, já que aprofunda e transcende esta última, revelando, no interior do estatismo
da forma atualizada, essa dimensão de florescimento perpétuo. Não apenas como o elã interior do qual ela
precede, mas também como o efeito de tensão que resulta disso. A ‘forma’ é captada em sua propensão. Isso
significa que ela não deve ser percebida como simples ‘forma’, mas como um processo em andamento.” (Idem,
A propensão das coisas, pp. 97-98)
339

Quando fala sobre a pintura chinesa, Jullien nos dá uma pista sobre como se opera essa
captura da propensão e sua dimensão invisível e o que significa agir sobre as condições.
Conforme diz o autor,

pintar, na China, é tentar encontrar, pela figuração de uma paisagem, o traçado elementar e contínuo,
da pulsação cósmica. Daí a orientação peculiar que a estética chinesa da paisagem sofreu, por sua
concepção do che: no plano filosófico primeiro, valorizando a importância da distância, para uma
melhor apreensão da paisagem, assim como a expressão, por seus lineamentos, da dimensão do
invisível que anima tal paisagem; e, mais tarde, no plano técnico, enfatizando a importância do traço
de esboço e contorno, assim como o movimento de conjunto da composição.937

O que se procura é tentar dar conta do próprio movimento de transformação que está em
jogo. É por isso que é tão importante para o pintor chinês não se restringir à superfície do que
é pintado. Se a pintura tem algum valor é sempre porque os movimentos invisíveis servem de
suporte ao que é visível.938 É nesse sentido que se pode compreender a valorização do esboço
na pintura chinesa. É por meio dele que se tenta dar conta da transformação que atravessa a
paisagem pintada. Algo de semelhante acontece na própria filosofia, já que há uma diferença
entre a construção de um conceito e a maneira como ele aparece. Essa aparência não esgota
nem orienta sua produção, pois justamente o que vemos nele é uma espécie de propensão que
é construída e não uma simples descrição finalizada. O esforço de tentar dar conta da
propensão é que fará com que o conceito seja sempre muito mais técnico e detalhado em sua
construção, ainda que nem sempre esses detalhes apareçam explicitamente no conceito —
mas, talvez seja possível dizer, é justamente a existência [invisível] desses detalhes que lhe dá
a sua mobilidade. O conceito dotado dessa profundidade se torna mais complexo, permitindo
que inúmeras transformações sejam operadas a partir dele. Como exemplo podemos tomar a
obra de Espinosa. Se um conceito como conatus se mostrou tão potente para a tradição
filosófica isso em parte se deve ao fato de que ele é muito mais profundo do que a sua
expressão visível (“o movimento de perpetuação de um determinado corpo”) faz parecer.

937
Idem, ibidem, p. 120
938
“Consideremos o frágil barquinho pintado no meio das águas. Como está distante, a escota que serve para
estender a vela não é perceptível; mas, ao mesmo tempo, ‘se ela não for pintada, a representação ficará privada
de che’: não pintar, portanto, apenas a extremidade inferior, mesmo que por causa da distância, não se possa
perceber o lugar preciso em que a mão a segura. O efeito da tensão do che opera no limite do visível e do
invisível, quando o caráter explícito da configuração aprofunda-se em riqueza implícita de sentido, o vazio
torna-se alusivo, o finito e o infinito iluminam-se e aliam-se. No princípio, trata-se apenas de puro procedimento
técinco, mas este não pode deixar de provocar emoção; predispondo eficazmente a forma, ele emana de imediato
uma impressão de vida. Efeito importante e determinante, porque cabe a ele abrir o concreto para o seu além e
operar pelo objeto representado — seja ele qual for — a transcendência essencial em arte. Graças a ele, a
configuração sensível serve de dispositivo para evocar o infinito: o mundo da representação ascende a sua
dimensão de espírito, e o extremo do visível aponta o invisível.” (Idem, ibidem, p. 107)
340

Todas as escolhas que levam e fundamentam a essa formulação podem ser lidas e articuladas
diversas maneiras. Não é casual o fato de que as diversas leituras que se fazem dos conceitos
filosóficos são em grande parte indecidíveis.939 Daí o conceito poder ter esse caráter ao
mesmo tempo natural (por ser recebido de maneira simples) e artificioso (já que para ter essa
naturalidade ele precisa ser construído de modo a captar uma propensão) simultaneamente.
Mas, apesar disso, não se pode confundir esse movimento “anterior” como uma espécie de
plano da obra. Trata-se do próprio movimento que determina de maneira inapreensível
(diagramática, para retomar aos nossos termos anteriores) o traço do contorno [a linha de
vida]. Nas palavras de Jullien,

“Ele [esse movimento prévio] faz parte de uma etapa anterior e mais sutil, e consequentemente mais
inapreensível, da criação: a erupção da configuração dota a paisagem da força de propensão que a
leva a existir (i.e., a exercer a sua eficácia estética). Somente a partir do momento em que se dá essa
apreensão intuitiva, a partir de seu próprio corpo, do corpo da paisagem e suas ramificações de vida, é
que a construção da pintura se torna possível.”940

Isso ocorre pois no processo de produção da pintura na tradição chinesa busca-se primeiro
dar conta dos contornos (que representam o che, as estruturas gerais da pintura) para só depois
se prender nos detalhes, na substância do que é pintado. Vemos esse mesmo movimento nessa
preocupação do conceito em ter uma estrutura que, quando formada, permite experimentar a
realidade de outra forma. Como diz Jullien sobre a pintura,

alcançar o che é capital, porque a realidade das coisas só existe — e, portanto, só se manifesta —
globalmente, graças à força de propensão que une os diversos elementos entre si. Somente quando se
capta o movimento do conjunto (o che) é que a montanha, apesar das curvas e dos desníveis do relevo,
conseguirá “deixar que o sopro passe por suas veias”; as árvores, apesar das irregularidades e do
contraste de sua silhueta, conseguirão “exprimir cada uma sua vitalidade própria”; as pedras
conseguirão “ser fascinantes em sua estranheza, sem ser bizarras”, “cativantes pela simplicidade, sem
ser comuns”.941

Como se dá essa captação? Bem, não há nenhuma regra prévia, o único critério para a
validade da captura é a sua própria capacidade de gerar efeitos.942 Trata-se então de uma

939
Falo, é claro, de leituras de um conceito que são consistentes em si apesar de apresentarem divergências com
leituras de outros autores sobre o mesmo conceito.
940
Idem, ibidem, p. 130
941
Idem, ibidem, pp. 127-128
942
“É preciso que o pintor esteja inspirado, que goze de certa disponibilidade de consciência para que possa
‘unir-se em espírito’ de forma suficientemente íntima a essa paisagem e, abrindo-se e comunicando-se com ela,
capte de uma vez todo esse funcionamento — ao mesmo tempo tão poderosamente geral e tão finamente
capilar.” (Idem, ibidem.)
341

articulação discursiva (visual, no caso da pintura) que pretende apresentar uma maneira de
experimentar a realidade. É a sua capacidade de espontaneamente persistir que se procura
produzir. O conceito filosófico age de forma eficaz ao produzir dobras que podem ser
percorridas. Ele de certa forma libera a imaginação na sua experimentação. A filosofia parece
ser uma sequência natural dessa posição pois ela é inevitavelmente sempre uma espécie de
prolegômeno, ela tende para o prolegômeno e está sempre “preparando o terreno”. Ainda que
a filosofia não se considere como tal, o fato de que ela está preocupada sempre com uma
investigação prévia, com uma descoberta das condições, como uma definição anterior, isso
parece implicar que ela age num mesmo regime temporal que aquele proposto pelo
pensamento da eficácia. Ela tende a agir sobre as condições de pensamento, refletir sobre eles
e é essa a sua forma de intervenção. A disputa é sempre, de certa forma, axiomática. É por
isso que muitas vezes o desenvolvimento das teses se dá de maneira quase automática (a
menos que esse desenvolvimento gere ele mesmo efeitos e retransforme/realimente as
próprias condições — mas de novo, o alvo das transformações são as condições). Como se vê,
o tempo da filosofia não precisa, portanto, ser o tempo da modernidade. Se concebemos a
filosofia sob o viés da espontaneidade vemos que ela não precisa se ocupar com o momento
contingente e imprevisível que separa um solo de experiências de um horizonte de
expectativas. Ela se torna indiferente a isso. Resta agora discutir de o pensamento chinês nos
permite rearticular o tempo para além da temporalidade moderna para podermos articular
afeto, filosofia e tempo.
342

III.2.3. A temporalidade chinesa

First. We pass through grass behush the bush to. Whish! A


gull. Gulls. Far Calls. Coming, far! End here. Us then. Finn,
again! Take. Bussoftlhee, mememormee! Till thousendsthee.
Lps. The keys to. Given! A way a lone a last a loved a long
the
(…)
Riverrun, past Eve and Adam’s, from swerve of shore to bend
of bay, brings us by a commodius vicus of recirculation back
to Howth Castle and Environs.
James Joyce, Finnegans Wake

Nesse desprezo chinês pelo telos se implica uma experiência do tempo que não pode ser
reduzida à trindade ocidental passado-presente-futuro. Enquanto o autor prefere inclusive
descartar a ideia de tempo — associando ele sempre a existência de um elemento abstrato e
alienado da realidade concreta que passaria de maneira independente, impelindo todas as
coisas juntas em seu movimento — preferirei manter a palavra tempo afim de ampliar em que
sentido podemos entender esse conceito. Como falamos no início do trabalho, a descrição da
temporalidade moderna elaborada por Koselleck (e ampliada por Arantes) procura mostrar
como se articulam passado, presente e futuro a partir do desenvolvimento do capitalismo. Se
enxergamos um problema nessa articulação isso decorre dos próprios limites contra os quais
ela esbarra. Como vimos, a tendência inerente ao tempo capitalismo leva justamente a uma
dissolução do futuro. Uma letargia se instala visto que aquilo que a estrutura formal do tempo
na modernidade exige (um impulso constante rumo a um horizonte de expectativas) é
impossibilitado de antemão pelo próprio desenvolvimento concreto dessa temporalidade
durante séculos. Os efeitos patológicos que se seguem são justamente a experiência de um
cancelamento do futuro que descrevemos anteriormente. Se queremos nos livrar desses
efeitos patológicos, não seria a rearticulação do tempo um dos caminhos preferíveis?943

943
É claro que essa rearticulação de maneira concreta a ponto de se tornar de fato “a experiência predominante
do tempo” exigiria uma série de outras medidas que não nos ocupam nesse momento. Queremos apenas explorar
essa possibilidade, a princípio e testar sua viabilidade.
343

Gostaríamos de ensaiar essa rearticulação, portanto, a partir da exploração da experiência do


tempo no pensamento chinês.
*

Bem, a primeira coisa que é preciso dizer é que a própria contingência do conceito
ocidental de tempo se revela já na superfície do pensamento, isto é, na linguagem. Como diz
Jullien ao começar a operar distinções entre a temporalidade chinesa e a ocidental, a estrutura
temporal que está embutida na nossa estrutura gramatical (sob a forma dos tempos
gramaticais) simplesmente não existe no chinês clássico. Enquanto nós conjugamos os verbos
em passado, presente e futuro, no chinês essas conjugações não existem e a própria
temporalidade é figurada antes a partir de uma espécie de infinitivo que exprimiria uma
experiência da transição contínua do vai e vem a partir do qual concebem o tempo.944 Além
dessa estrutura tripla, também não se encontrará no pensamento chinês nem o tempo enquanto
entidade abstrata — algo que, segundo Jullien, é devido à atenção que a física ocidental deu
ao movimento (derivando o tempo a partir do movimento)945 — e nem uma suposta oposição
entre tempo (enquanto espaço de contingência) e eternidade (enquanto espaço de
necessidade). Com relação ao primeiro ponto, o que parece interessar mais o pensamento
chinês é a maneira como transformações ocorrem em uma ordem que podemos chamar de
transindividual. Trata-se de uma concepção da temporalidade que acaba desconsiderando a
existência de unidades atômicas (corpos) que passariam incólumes pelo contato com outros
corpos. No que diz respeito à recusa do eterno, o que toma seu lugar (modificando toda a
equação, obviamente), é a ideia de constância, isto é, “o que nunca se interrompe.”946 Ela não
é, como o eterno, algo que está fora do tempo: ela é propriamente o fundo a partir do qual as

944
“Em vez de recorrer ao presente, ou ao passado, ou ao futuro, e portanto escolher entre eles, o chinês — sem
desinências — se exprimiria, para representar em termos que sejam os nossos, numa espécie de ‘infinitivo’’: aí
se percebe a consciência daquilo que ‘vem’ ou que ‘vai’, segundo a definição tradicional do ‘passado-presente’
na China, mas, mais sobre um modo de transição contínua, de caráter processual, do que o de uma oposição cujo
efeito seria temporalizante.” (Jullien, François. Do ‘tempo’ - elementos para uma filosofia do viver. São Paulo:
Discurso Editorial, 2004. p. 33) A gramática, como Nietzsche já disse, é a metafísica do povo. Mas que isso seja
entendido não como a metafísica das massas, mas como o subsolo pré-filosófico a partir de onde pensamos e
refletimos conscientemente sobre o real.
945
“De um modo geral, se a China não aprendeu a natureza em termos de movimento, foi porque ela a concebeu
a partir , não de corpos individuais destinaods ao movimento, mas de fatores em correlação, constituindo-se
como pólos: as energias yin e yang, das quais decorre uma interação sem fim (…). Ela se afastou da concepção
dos átomos e das partículas (…), para se interessar pelos fenômenos de influência e transformação —
comecemos, pelo menos, por falar assim: o yin se condensa enquanto o yang se expande, aquele se ‘apóia’ sobre
este para ‘desabrochar’, e este ‘obtém’ aquele para se ‘materializar’;e, enquanto um cresce, o outro decresce, sua
alternância é regulada. Ao pensar o curso ininterrupto destas fases, a China era levada a pensar, não o ‘tempo’,
mas o ‘processo’.” (Idem, ibidem, p. 22)
946
Idem, ibidem, p. 27
344

coisas se desenrolam, pois “os chineses não separam o tao do curso das coisas”.947 No que se
chama de uma reflexão sobre o tempo da china não teremos, portanto, nem uma externalidade
desse curso, algo que estaria fora do tempo e, no mesmo movimento, uma “origem”, já que
não há nada que lhe seja exterior, pois “é precisamente o indiferenciado e, por isso mesmo, o
harmonizante, que é o fundo ‘sem fundo’ da Via.”948 A ideia de um começo ou de um fim
torna-se completamente irrelevante nesse quadro teórico, portanto pelo fato de que não há
qualquer coisa externa à esse movimento de transformação contínua do real. Não é, então, que
o tempo não exista, mas a ideia de um tempo abstraído do real simplesmente não faz
sentido.949
É a partir dessa concretude do tempo que se pode destacar a sua estrutura formal principal.
Ele será concebido a partir do momento (em detrimento do instante) e da duração (não mais
abstraída da realidade, mas inerente às coisas). O fundamental desse deslocamento é entender
que o tempo, por ser ligado ao curso real das coisas, não apresenta nem uma uniformidade
entre os seus momentos — o que é o caso da ideia de instante, que predomina no ocidente —
ou uma existência abstraída do desenvolvimento das coisas. Concebido como uma transição
contínua, cada momento é diferenciado dos outros momentos pelo seu caráter qualitativo. O
exemplo mais visível da natureza do momento no pensamento chinês é a grande atenção que
se dá às estações. Nas palavras de Jullien, “o que as caracteriza, sob a banalidade pela qual
chegam até nós, é, de um lado, que elas são qualitativamente diferentes (…). Cada uma faz
apelo a uma espécie de atividade, induz um modo de vida.”950 Isso não significa que, por
serem qualitativamente distintas, que elas são uma completamente externas umas as outras.
Cada um desses momentos não é um instante estático, mas, propriamente, uma série de
processos particulares que em seu desenrolar constituem uma espécie de cena com duração
indefinida.951

947
Idem, ibidem, p. 29
948
Idem, ibidem, p. 31
949
“Como todo o real se encontra em transformação contínua, sem início que possa ser demarcado nem um fim
que possa ser esperado, compreenderemos por que a China não pensou a ‘criação’, pela qual se separa o eterno
do temporal e que serve de ponto de partida do tempo — como também não pensou o ‘fim dos tempos’. No qual
o tempo seria absorvido: nenhum Acontecimento abre ou fecha o escoamento, e os poucos elementos míticos
que poderiam, tanto aqui como alhures, servir para sua encenação (Nüwa) foram logo abandonados, não
assumiram função no pensamento e nos espantam mais pelo seu enfraquecimento.” (Idem, ibidem, p. 32)
950
Idem, ibidem, p. 43
951
“A estação constitui assim a rúbrica mais geral onde se cruzam analogicamente, segundo a qualidade
requerida, as evoluções mais diversas, dos astros ou dos animais, as escalas e as gamas, os homens e os números,
os lugares e os deuses e até os gestos e roupas. Ela é o princípio ordenador do mundo, segundo uma ecologia
particular, em evolução, cujos modos de adaptação devem ser estritamente fixados pelo ritualista.” (Idem,
ibidem, p. 45)
345

O que é pensado é sempre a processividade, o movimento de transição contínua que opera


por toda parte sem que ele seja um processo abstrato e descolado do movimento de transição
dos elementos particulares. Como já discutimos anteriormente, toda a realidade é composta de
processos contínuos que se desenrolam e se afetam. O que significa que não há nenhum
percurso geral que engloba todos os processos que existem e os conduz. Cada um desses
infindáveis processos apenas se acomodam uns aos outros sem qualquer síntese final.
É certo que no pensamento ocidental também se procura pensar essa multiplicidade de
processos que acabam compondo movimentos mais ou menos gerais. Mas diferente do
pensamento chinês, no ocidente vemos uma preocupação com a delimitação dos pontos de
transformação. Um antes e um depois servem como eixos de compreensão da mudança. Ou
seja, os processos e as mudanças que se operam na realidade são sempre compreendidos de
maneira espacializada, a partir de uma distensão.952 Na china essa distância entre um ponto e
outro (a lógica da distensão) é deixada de lado em nome de uma lógica da transição. É
justamente essa maneira de enxergar a temporalidade que dificulta a reflexão sobre
determinados processos de transformação sem demarcação clara.953 Os limites da concepção
ocidental se tornam visíveis em sua dificuldade de lidar com esses processos mais vagos e
sem uma fronteira, como, por exemplo, o envelhecimento de uma pessoa, um evento que não
tem um início demarcável.
É por isso que o foco no pensamento chinês se dará sobre o momento a partir das suas
diferenças qualitativas com relação a outros momentos. O caráter de estações da
temporalidade chinesa (que implica antes tempos que um tempo) aponta para as
transformações qualitativas que se operam ao longo dos tempos e de fato afetam toda a vida,
modificando sempre o que é exigido de acordo com a estação. Assim sendo, pode-se afirmar
que cada momento-ocasião não é um simples ponto numa linha temporal, mas é
qualitativamente marcado.954 Além disso, como lembra Jullien, essa marcação indicará a
própria propensão envolvida nessa estação e é por isso que a questão do momento (e
consequentemente do tempo) está ligada ao estratégico. Já comentamos isso anteriormente
esse ponto, mas o que está envolvido aqui é a ideia de propensão (che). Uma estação não é

952
Como aponta Jullien, isso seria o caso mesmo de pensadores como Bergson que procuram pensar a mudança
sem recair na concepção tradicional e espacializada do tempo.
953
o caso da velhice é um bom exemplo — algo que comentamos já anteriormente quando abordamos os limites
do pensamento de Espinosa — visto que o envelhecer não tem nem ponto de partida nem de chegada claramente
delimitados. Trata-se de um processo que está sempre ocorrendo, como uma transformação contínua
954
“Colocando em relevo a diferença, intrínseca entre os momentos, ou mesmo sua incomparabilidade, esta
noção de ‘momento’ serve para valorizar, de um ponto de vista teórico, o caráter de historicidade da história e
sua dimensão de inovação contínua; e de um ponto de vista mais polêmico, ela serviu para provar que, levando
346

meramente um “clima” ou mesmo um conjunto de processos. Ela é, por isso mesmo, uma
diferença qualitativa que abre disponibilidades.955 É somente no momento que as nossas
capacidades se constituem. De modo que, diferente do sujeito moderno que atravessa o
tempo, indo do seu passado rumo ao futuro com um núcleo inalterado (fora do tempo), o
sujeito que se constitui no momento é produzido no tempo.956
*

Essa ausência de preocupação com a extensão (o antes e o depois) é que fará com que o
pensamento chinês evite conceber o tempo como um jogo entre um passado, presente e
futuro. Como diz Jullien, o que encontramos é um passado que vai e um presente que vem.
Não são elementos cada um em um extremo, isolados um do outro. Lembremos, a distensão
não é uma questão para os chineses, de modo que o presente que vem e o passado que vai são
ao mesmo tempo opostos e complementares. A temporalidade que está em jogo aí é
justamente uma transição contínua, passagem, entre esse esses dois pontos.957
Mas que vai e vem é esse que falamos? Bem, se lembrarmos da noção de tendência que
falamos mais acima a coisa se esclarece. Para descrever essa temporalidade Jullien falará que
trata-se de uma espécie de Fim-início (Finnícius),958 visto que na tradição chinesa “não há
início nem fim extremos entre os quais se dá o transcurso, sendo este uma variação de todo

em conta a diferença e a unicidade dos momentos históricos, as normas que eram adaptadas a um momento não
o são mais para o momento seguinte”. (Idem, ibidem, pp. 46-47)
955
“Quando a energia yang (na primavera) desabrocha, / as formigas começam a andar; / e quando a gama do
yin se congela, / a manta começa a fazer provisões. / Insignificantes como são, estes insetos são afetados: / tão
profundamente os existentes são postos em movimento / pelas estações!” (Liu Xie, apud Idem, ibidem, p. 62)
956
“Por isto mesmo, o ‘pôr-se em movimento’ que atravessa a natureza de uma maneira tão geral — e que a
‘natureza’ faz — se traduz, no seu plano, o plano da interioridade, em e-moção; e é esta que, tomando o lugar do
movimento do mundo e ‘respondendo’ a ele, põe ela mesma em movimento uma palavra poética que seja
autêntica (…). Nosso ‘ser no mundo’ é segundo a estação do mesmo modo que nossa inspiração” (Idem,
ibidem.). Além disso, a própria noção de “sábio”, ilumina o tipo de subjetividade que está em jogo ali, já que “a
própria sabedoria não será ela mesma senão o prolongá-lo [o mundo em sua estação em atual], sob um modo
descritivo, na ordem da conduta. Através da estação, o sábio se coloca no diapasão do mundo, tendo acabado de
dissolver em si mesmo toda opacidade e tornando-se completamente acessível à incitação que faz a vida chegar a
vida e se expandir.” (Idem, ibidem, p. 65). É possível observar nessa concepção do tempo uma possível crítica à
noção de sujeito no ocidente pois “não se poderá entrar num pensamento do processo a não ser desconfiando
desta permanência de um substrato-sujeito, que renunciamos a ver ‘sob’ a mudança, um suporte da mudança, e
que não tem os estados opostos da mudança como simples predicados.” (idem, ibidem, p. 82)
957
“no pensamento chinês, há dois termos [passado-presente] e não três [passado, presente e futuro], e cada um
está em curso: ‘o passado que vai — o presente que vem’; ou antes, ‘o que se vai: passado — o que vem:
presente’, e os dois termos da relação, simultaneamente nocionais e verbais, passado — partir/ presente — vir,
são ao mesmo tempo opostos e complementares — virados um para o outro e de costas um para o outro, como se
diz de dois traçados contrastados mas que se correspondem, na arte chinesa da escrita. Entre eles se opera uma
constante transição: entre o presente e o passado, o que vem e o que vai. A fórmula diz, não nos extremos
(imobilizados), mas a passagem — que é contínua”. (Idem, ibidem, p. 53)
958
Ao falar sobre Finnegans Wake (Finnícius Revém em tradução de Donald Schüler), James Joyce diz em carta
a Harriet Shaw Weaver: “The book really has no beginning or end. (Trade secret, registered at Stationers Hall) It
347

momento.”959 Isso significa que em cada momento há em jogo tendências em estágios


diferentes de seu desenvolvimento. Umas plenas que irão se esgotar e outras frágeis e
invisíveis que irão tomar seu lugar. Se falamos de transição, portanto, não se trata
simplesmente de uma transformação/alteração, mas de um jogo em que determinadas
tendências levadas ao seu desenvolvimento pleno são substituídas por outras que sempre
existiram simultaneamente,960 ainda que em estágios menos desenvolvidos. É por isso que
pode-se descrever a transição a partir de dois tipos de movimento. Primeiramente podemos
destacar o movimento de continuação: Na medida em que uma determinada tendência existe
ela terá como movimento natural (espontâneo) se reforçar, realimentar. Esse reforço leva a
um desenvolvimento, mas este não pode se estender indefinidamente. Uma vez alcançado um
determinado limite, ela começa a definhar (algo que já discutimos anteriormente), de modo
que esse esgotamento acaba dando espaço para uma outra tendência que sempre esteve
presente embora nem sempre visível. Dessa forma, a substituição será o segundo movimento
envolvido na transição. O importante que se deve apontar é que nessa temporalidade chinesa é
a própria continuidade que leva à transformação (“o passado que vai — o presente que vem”).
Por sua vez, a transformação leva à continuidade na medida em que aquela nova tendência
procura justamente se fortalecer e desdobrar para se preservar.961
O acontecimento é dissolvido nas longas transformações silenciosas que se operam nesse
tipo de temporalidade. Não é que coisas não acontecem, mas é sempre preciso saber
reconhecer que o acontecimento não é algo que irrompe de fora do tempo, mas o fruto de uma
transformação silenciosa que só então teve força suficiente para se impor de maneira visível e
irresistível. Como falamos, trata-se apenas da espuma da transformação do real.

A dimensão dessas divergências sobre o tempo na escolha de conceito que cada uma
dessas tradições se utiliza pode ganhar mais concretude a partir da maneira como cada uma
dessas tradições pensa a própria passagem pela existência. Enquanto a tradição ocidental

ends in the middle of a sentence and begins in the middle of the same sentence.” (Joyce, James. Selected Letters.
Nova Iorque: Viking Press, 1975. p. 314)
959
Jullien, François, op. cit., p. 58
960
“A transição implica em pensar simultaneamente, como se um fosse já o outro.” (Idem, ibidem, p. 80)
961
Como diz Jullien, ambos os elementos são fundamentais, pois “uma é fator de transmissão, a outra de ruptura
e a transição possui estas duas dimensões ao mesmo tempo. Pois esta ruptura, por si, só tem em vista assegurar a
continuidade: é porque a evolução estava se esgotando que, rompendo com a tendência dominante, a
modificação reorienta a evolução e lhe abre de novo a via; ela é a renovação necessária para sair do embaraço ao
qual a tendência conduziria se se prolongasse.” (Idem, ibidem, pp. 90-91)
348

tende a dar uma centralidade ao conceito de vida, veremos no pensamento chinês um


privilégio do viver.
A centralidade que a ideia de vida tem no ocidente é justamente algo que aponta para a
diferença entre essa temporalidade ocidental, voltada para o futuro, e a maneira como os
chineses articulam a questão do tempo. Não se trata de uma simples diferença entre um
substantivo (“vida”) e um verbo no infinitivo (“viver”). A diferença entre os dois conceitos
exprime as escolhas de cada uma das tradições. Se a vida é aquilo que tem uma duração
delimitada, entre a morte e a vida,962 o viver “é sem extremidades que possam ser assinaladas,
início e fim”963 O problema desse primeiro conceito talvez não seja tão visível do ponto de
vista de uma vida completada (isto é, de alguém morto), mas se nos situamos no ponto de
vista do vivo, a articulação das nossas ações a partir do conceito de vida faz com que o nosso
momento atual seja sempre incompleto. Por nos situarmos sempre em uma linha do tempo
que vai do nosso nascimento à nossa morte, não conseguimos obter qualquer espécie de
tranquilidade que não seja temporária. A sombra do futuro (e a promessa que ele contém) faz
com que constantemente se sacrifique o momento atual em nome de uma realidade que pode
nunca vir a acontecer. Independente do fato de termos ou não uma vida repleta de sucessos, a
incompletude inerente à estrutura formal do tempo acaba constituindo uma demanda que não
pode efetivamente ser realizada — já que no presente seremos sempre incompletos.
A coisa muda de figura no caso do viver. Não se trata de um “objeto temporal”, no sentido
de que tem uma duração (pré)determinada. O viver é propriamente um ato que em sua própria
natureza não tem delimitação e por isso força/abre a possibilidade de uma outra compreensão
do temporal.964 Não estamos longe aqui da temporalidade do conatus. Nessa temporalidade
procura-se viver o momento ao invés de viver no presente pois “‘viver’, finalmente, seria
entendido considerando de uma outra maneira seu desdobramento: por coincidência com cada
momento particular, qualquer que ele seja, e na transição ininterrupta de um momento ao
outro.”965

962
A ideia aristotélica de que o valor de uma vida só pode ser avaliada propriamente após a morte já aponta a
centralidade (e mesmo invisibilidade) dessa lógica da distensão que predominará no pensamento ocidental.
963
Idem, ibidem, p. 120
964
“O viver, tal como consideramos, é um fenômeno ilimitado, transbordante, e que reclama se perpetuar”
(Idem, ibidem, p. 121)
965
Idem, ibidem, p. 122
349

Agora que entendemos positivamente a dinâmica temporal no pensamento chinês — i.e.,


pautada pela dinâmica de transição entre tendências — podemos ter uma maior clareza sobre
a sua rejeição a uma ideia de futuro. Não há um futuro, há apenas uma contínua transição
entre tendências que se esgotam e tendências que as substituem. Diferente do pensamento
ocidental, portanto, não há nenhuma escatologia ou teleologismo que direciona esse
desenvolvimento já que essa tradição a experiência temporal não é articulada a partir de um
ponto inicial e um ponto final.966
A falta de um telos implica toda uma outra maneira de se relacionar com o tempo, pois
não existe nenhuma redenção ou síntese final que redime e justifica uma vida. Como diz
Jullien, “o tempo do processo é o infinitivo; sua lógica, visto que é autorregulada, implica que
não possa haver término: uma conclusão da História é impensável.”967 Não havendo uma
ideia de futuro, não encontramos também uma visão de mundo que se constitui a partir de um
desejo de se impulsionar para o futuro — o que é o caso do tempo moderno que descrevemos,
que se orienta rumo a um horizonte de expectativas. É justamente essa orientação para a
realização do horizonte de expectativas que cria a temporalidade do risco que discutimos
antes. Sem risco, sem ansiedade.968 Cada momento não tem mais que uma disponibilidade,
uma abertura à transformação contínua que “permite evoluir continuamente naquilo que é,
não o ‘tempo’ de um progresso, mas o transcurso alternante de todo processo.”969

966
“Segundo a fórmula chinesa que diz o mundo enquanto ele dura, com efeito, ‘o passado se vai — o presente
vem’. Nada mais do que isto, a fórmula é estendida por seu paralelismo (…), este presente vindo sendo o pólo
em relação ao passado-passante: aqui não há ‘futuro’ como um terceiro termo, termo à parte e lugar de origem,
ou, inversamente, de resultado (o ‘progresso’: esta ideia de um progresso — orientado para, tendendo a — que
os chineses devem ter tomado emprestado do Ocidente no final do século passado); mas há somente este ‘de-vir’
contínuo, puramente verbal, do qual o presente está prenhe. (…) Pois se ele estivesse encerrado, confinado e
concebido entre estes dois pontos, futuro e passado, ponto de partida e ponto de chegada, este ‘vem’ não poderia
efetivamente vir, tal como uma ‘fonte inesgotável’, em sua atualidade renovada”. (Idem, ibidem, pp. 113-114)
967
Idem, A propensão das coisas, p. 272
968
Sobre essa ansiedade, cf. Idem, Do ‘tempo’ - elementos para uma filosofia do viver, pp. 191-212
969
Idem, ibidem, p. 180
350

III.2.4. Afeto, conceito e tempo

Podemos dizer que a passagem pelo pensamento chinês opera um deslocamento sobre os
conceitos principais que temos trabalhado aqui: O afeto se torna propensão, o conceito (como
figuração da prática filosófica) um dispositivo e o tempo é compreendido como transição.
Talvez o aspecto mais fértil por essa passagem pela tradição chinesa é que nesse quadro
teórico esses três conceitos se articulam de uma maneira que um depende do outro, um puxa o
outro e eles se constituem conjuntamente. O que devemos fazer é traçar essas relações de
dependência desses três conceitos para que fique claro como eles podem nos ajudar a lidar
com o nosso problema mais geral do cancelamento do futuro.

Discutimos na parte anterior que a ideia de afeto muito mais do dar conta de emoções tem
a ver com as transformações por quais nossos corpos passam. O desejo, por conta disso, não
seria nada que nos falta, mas simplesmente o movimento, o vetor, que constitui propriamente
o nosso corpo. O que chamamos de propensão está certamente bem próximo disso. Por meio
da ideia de espontaneidade, quando falamos de uma determinada propensão de um corpo,
falamos do movimento que inevitavelmente segue de uma determinada constituição. O
desejo, entendido a partir desse quadro, pode então ser compreendido como o movimento
espontâneo que em seu próprio movimento constitui determinado corpo. O afeto sendo, no
caso, uma descrição das fases e dos momentos (e a propensão específica) sob o qual
compreendemos um corpo. O que a ideia de propensão traz para o conceito de afeto, e que de
fato nos atraiu, é que ele nos permite, por meio do conceito de espontaneidade, retirar
qualquer voluntarismo que ainda poderia subsistir nos conceitos tradicionais de afeto. Um
corpo, a partir dessa compreensão, não age senão a partir do seu desdobramento natural de
modo que se ele age não é por alguma escolha, mas é um desenvolvimento inerente à sua
própria constituição. É por essa razão que dissemos que quando se trata de pensar a ação
eficaz, não se está dizendo que há um interesse que move o corpo e que lhe é externo, mas o
seu próprio movimento é que explicita o interesse em jogo.
Cabe a pergunta, nesse momento, se isso significa então que tudo o que se segue é
inevitável. Ou, reformulando: se tudo o que se segue é o desenvolvimento espontâneo de um
351

corpo, do meu corpo, então resta algo a fazer? Bem, a própria pergunta já contém nela própria
a perspectiva que estamos tentando superar. A ação, como queremos compreender, não é nem
livre nem determinada, ela é espontânea. Nesse sentido ela é um desenvolvimento de certas
capacidades (e capacidades não compreendidas como um “potencial”, mas algo que se
constitui enquanto capacidade na medida em que é realizada). Mas, e nesse ponto voltamos ao
pensamento de Espinosa (mas também de Deleuze e Guattari), os nossos corpos não são
conjuntos fechados e absolutamente determinados. Há uma série de processos com graus de
independência e acordos diferentes que estão procurando “desenvolver suas capacidades”. De
modo que talvez seja possível compreender como o elemento decisório da “ação” a própria
instância de competição entre diversos processos espontâneos. Uma decisão é ela mesma a
vitória (ou a conformação) de certos processos. Talvez vitória seja um termo forte demais
(nietzschiano demais), mas falo aqui de uma certa configuração. Como os processos são
particulares e não alcançam qualquer síntese global e como a própria configuração de certos
processos a partir de processos particulares não deixa de retroafetar os processos particulares
que o compuseram, não é possível que qualquer determinismo fatalista se instale
efetivamente.
Entre essas capacidades que se desenvolvam e procuram se afirmar de maneira espontânea
encontraremos a atividade conceitual. Não nos interessa aqui discorrer sobre sua origem ou
sobre a sua natureza — se ela é uma propriedade emergente ou não, ilusória ou real etc. —,
mas partimos de um ponto em que ela é uma atividade que gera efeitos. A propensão dessa
capacidade (que não é uma faculdade, no sentido kantiano, algo inato, mas sim, algo que pode
ter a sua constituição traçada na história dos corpos), uma vez existente, é a atividade que
procura criar conceitos e, nessa criação, operar recortes. Ao menos foi a maneira como
descrevemos essa capacidade.970 Esse movimento espontâneo da seleção e recortes acaba
criando conceitos. Se igualamos os conceitos aos dispositivos é porque acreditamos que o
conceito, fruto da operação filosófica, é sempre um dispositivo que procura descrever a
própria propensão de uma forma que se captura a própria disponibilidade de uma certa
situação — ou seja, uma propensão. A prática filosófica, entendida nesse sentido — e de uma
forma bem próxima de uma série de autores clássicos — é uma espécie de reflexão na medida

970
Embora não podemos entrar nessa discussão no momento, a análise que Reza Negarestani faz da prática
filosófica como o desenvolvimento de uma inteligência artificial geral muito nos interessa, já que essa
inteligência artificial geral surgiria de um movimento espontâneo. Cf. Negarestani, Reza. What is philosophy?
Part one: axioms and programs. 2015. Disponível em <http://www.e-flux.com/journal/67/60702/what-is-
philosophy-part-one-axioms-and-programs/>. Acesso em: 25 jan 2018 e Idem, What is philosophy? Part two:
programs and realizabilities. 2016. Disponível em <http://www.e-flux.com/journal/69/60608/what-is-
philosophy-part-two-programs-and-realizabilities/>. Acesso em: 25 jan 2018
352

em que ela se constitui a partir de uma análise da situação presente. Como essa situação é
móvel (na realidade, não apenas móvel, mas é, como diz o conceito da propensão, móvel e
fixa ao mesmo tempo) o que o conceito procura capturar são os movimentos espontâneos
disponíveis a partir de uma certa situação. Nesse momento pode-se perguntar se isso não nos
jogaria de volta em um certo solipsismo, ou mesmo se não transformaria a prática filosófica
em uma simples confirmação da potência da subjetividade humana. O que acreditamos que
nos evita cair nesse ponto é que a propensão que discutimos, e os corpos que se constituem
(ou seja, o que se considera corpo nesse contexto) são de certa forma genéricos. A prática
filosófica a princípio não estaria limitada a nenhum ente qualquer e muito menos aos
humanos.971 Mas esse dispositivo por apresentar um certo mapa das disponibilidades acaba
entrando em ressonância com a propensão, alterando-a (e no fim das contas, trata-se de mais
um dos processos particulares que estão em jogo no movimento de constituição dos corpos).
Ao mesmo tempo que a prática filosófica é ela própria uma certa propensão, a sua realização
(ou seja, os efeitos que ela produz) acaba por sua vez afetando aquela propensão a partir de
onde ela se desenvolveu espontaneamente.972 Há um jogo de feedbacks que faz com que o
pensamento tenha uma certa efetividade na ação dos corpos.
Por fim, completando essa triangulação, vemos que faz sentido esses dois conceitos se
relacionarem com a ideia de transição — que substitui a temporalidade ocidental pautada no
passado, presente e futuro ou, pensando no caso específico que nos ocupa, no jogo (presente)
entre solo de experiências (passado) e horizonte de expectativas (futuro). A temporalidade
própria da propensão é uma que se desenvolve sem qualquer finalidade, pois a própria
finalidade é em tese uma determinação e delimitação daquilo que está disponível. É claro que
isso pode ser realizado concretamente, que posso ter objetivos que me impedem de agir de
certa forma e que conduzem o meu caminho para outro lado. O que interessa, porém, é que do
ponto de vista da propensão não há finalidade, há apenas espontaneidade. Há um
desenvolvimento aberto que segue em todas as direções possíveis, e não rumo a um fim
inevitável. A ideia de futuro não faz sentido (e de um horizonte de expectativas), pois os
limites da espontaneidade dependem dos encontros com outros corpos que podem ou não vir a

971
Não é o objetivo do trabalho entrar nessas questões, mas acredito que é possível investigar o que seria essa
xenofilosofia que um pensamento panpsiquista exigiria.
972
É por essa razão que não acredito que seja possível restringir esse tipo de prática apenas aos humanos, pois o
antropocentrismo inevitavelmente depende de um núcleo duro que o diferencia de qualquer outro tipo de ser, que
não só demarca uma diferença qualitativa (algo que existe entre qualquer ser), mas que essa diferença qualitativa
o opõe a um resto que, do ponto de vista dessa diferença qualitativa, é genéricamente parecido. Exemplo disso é
a posição antropocêntrica que costuma opor o homem aos animais, visto que essa oposição precisa agregar à
força uma série de seres diferentes e sem grandes semelhanças, reduzindo-os, nesse movimento, a uma espécie
de “não-homem”.
353

limitá-lo. Ou seja, a delimitação não vem de dentro dos corpos, mas de fora deles. Ao mesmo
tempo, essa temporalidade esboçada no pensamento chinês não deixa de ser uma criação de
um certo dispositivo para uma operação na realidade. Ela própria é efeito de uma criação
filosófica (ainda que ela não seja necessariamente feita em textos costumeiramente
considerados filosóficos). Ela é filosófica na medida em que ela é um mapa sobre como se
pode e deve entender a mudança. E essa forma de compreender a mudança, por sua vez, como
um desenvolvimento sem fim, nos encaminha para a compreensão dos próprios corpos como
não possuindo nenhuma causa final.973 Afeto, tempo e conceito se encontram enrascados um
no outro de modo que mobilizar um acaba sendo também uma forma de mobilizar os outros
dois. A prática filosófica seria então uma atividade capaz de — se não efetivar isso — ao
menos apontar para uma certa disponibilidade que, pro sua vez, enquanto próprio caminho
disponível, pode ser percorrido espontaneamente.

973
O que quero dizer com isso é que poderíamos ter começado a discutir esses conceitos a partir da
temporalidade chinesa e chegar em sua concepção de afetos, por exemplo.
354

CONCLUSÃO - O CONCEITO FILOSÓFICO COMO PSICOTRÓPICO E O TEMPO


DAS METAMORFOSES

She sang beyond the genius of the sea.


The water never formed to mind or voice,
Like a body wholly body, fluttering
Its empty sleeves; and yet its mimic motion
Made constant cry, caused constantly a cry,
That was not ours although we understood,
Inhuman, of the veritable ocean.
(…)
It was her voice that made
The sky acutest at its vanishing.
She measured to the hour its solitude.
She was the single artificer of the world
In which she sang. And when she sang, the sea,
Whatever self it had, became the self
That was her song, for she was the maker. Then we,
As we beheld her striding there alone,
Knew that there never was a world for her
Except the one she sang and, singing, made.
Wallace Stevens, The Idea of Order at Key West

É difícil, devo admitir de cara, escrever qualquer tipo de conclusão. Inicialmente me vem
uma dúvida sobre a melhor maneira de abordar isso. Será que tento recapitular os argumentos
elaborados da tese e tentar apontar as ligações mais ou menos explícitas que existiam entre
cada uma das decisões que tomamos? Ou será que o melhor que se pode fazer nesse tipo de
espaço é descrever de maneira abstrata o movimento geral da tese e mostrar como ele nos
levou a alguma espécie de conclusão sintetizadora? A primeira opção parece pecar em dois
pontos: primeiramente ela pressupõe uma unidade maior do que esse trabalho pode ter. Em
segundo lugar, ao agir como uma voz em off que descreve os movimentos do nosso herói em
suas aventuras, ela inevitavelmente acaba apontando para uma insuficiência do próprio
trabalho deixar claro o que está em jogo ali. Além disso devo admitir que em nenhum
355

momento, como se vê no trabalho, mantive a disciplina necessária para atirar uma flecha que
percorre a tese do início ao fim sem hesitar. A segunda opção parece ruim por outros motivos,
ela faria crer que há alguma síntese-mór possível e — pior — que em todo o trabalho essa
síntese esteve pairando e orientando cada passo que dei. Nada poderia ser mais longe da
verdade do que isso.
O capricho, mais do que qualquer outra característica, foi uma presença constante na tese.
Mas é preciso entender esse capricho não como algo simplesmente voluntário. É certo que
tem nele algo de uma arbitrariedade, de um acaso, mas foram justamente esses “acidentes”
que acabaram me desviando de meu caminho inicial e me levando ao ponto em que eu
cheguei. É claro que há uma coerência e uma ordem nesse trabalho. Também não posso
ignorar que forjar esse esqueleto e as questões que percorrem a tese foi uma das coisas que
mais me ocupou nesse processo todo. Mas capricho significa precisamente que o percurso
empreendido foi constantemente alterado ao longo da execução do trabalho. A cada texto
novo que me deparava, conversa com algum colega ou mesmo fracasso no ato da escrita me,
vi obrigado a recalibrar a ordem do projeto, repensar certas partes e até mesmo descartar
algumas ideias para que aos poucos eu pudesse entender o que de fato estava em jogo ali. A
estrutura, de um ponto de vista externo, até poderia aparentar intocada, mas a verdade é que
os conceitos que se tornaram fundamentais para esse trabalho só acabaram aparecendo depois
de quebrar muito a cabeça. É por isso que me parece que só há uma forma de encerrar a
questão. Não poderia oferecer um resumo final que amarrasse de uma vez por todas o que foi
trabalhado pois a coisa simplesmente não acabou. Embora, é claro, também não
conseguiremos evitar repassar pelos grandes temas que percorrem esse trabalho. Seguindo o
espírito de capricho que permeou esse trabalho, gostaria de terminá-lo, então, com um último
vôo da bruxa antes de dar a questão por encerrada.

Afeto, Conceito, Tempo. Ou, nos termos que vimos a partir do pensamento chinês:
propensão, dispositivo, transição. Em que medida essa substituição de conceitos nos oferece
uma saída para o problema que nos domina? Se demos essa volta pelo pensamento de Jullien
é porque acreditamos que ele nos abre um outro caminho em que não precisamos mais
alimentar as nossas patologias. Identificamos no cancelamento do futuro a nossa doença e
vimos a partir das análises no início do nosso trabalho a maneira como o desenvolvimento do
capitalismo e irrupção da crise climática acabaram produzindo esse ethos presentista. A nossa
356

questão, considerando os limites nesse tipo de trabalho, era ao menos tentar esboçar a
possibilidade de sair dessa dinâmica patológica rumo a uma constituição mais saudável. O
que esse passeio pelo pensamento chinês permitiu — se lido à luz das análises que realizamos
na primeira parte — é a percepção de que a estrutura temporal que nos sufoca é ela própria
contingente. Ao mesmo tempo, e aí entra o longo intermezzo que ocupa o meio da tese, tanto
a nossa experiência concreta do tempo como a sua rearticulação (a partir da prática filosófica)
se relacionam de maneira intensa com a esfera afetiva, isto é, à experiência de transformação
por qual os corpos passam. De um lado o que vimos é que as transformações pelos quais os
nossos corpos passam constituem e são constituídas pela experiência de tempo que domina
em determinada realidade (seja isso uma comunidade, sociedade, ou mesmo uma população
globalizada). Por outro lado, a maneira que nos posicionamos na realidade não deixa de estar
relacionada com a maneira como se concebe essa realidade, isto é, como se recorta e organiza
aquilo que encontramos por aí. Dessa forma a prática filosófica (se entendemos ela como esse
recorte e organização), acaba também tendo um jogo de co-constituição com os afetos visto
que se por um lado os afetos se orientam pelos recortes operados, por sua vez, os recortes são
conduzidos pelos nossos interesses.
Não foi, pois, à toa que nos demoramos tanto pelo tema do afeto. Ele acabou se revelando
como uma espécie de centro no qual as outras duas questões orbitam. Não por qualquer
privilégio natural, mas pelo fato de que no que concerne às nossas vidas, às nossas práticas,
aquilo que acaba interessando é de fato a nossa constituição. A centralidade do afeto tem a ver
com a nossa contingência e um direcionamento inevitável que tomamos enquanto corpos que
procuram perseverar. Não se trata de um grau-zero absoluto para o real, uma filosofia
primeira974 ou mesmo de uma preocupação inevitável do universo, mas sim de um efeito de
uma perspectiva situada que se ocupa (conscientemente ou não) do seu cuidado — trata-se,
portanto, de um grau-zero relativo. O que descobrimos, porém, é que esse cuidado que pode
aparentar, inicialmente, ser apenas uma preservação, é antes um movimento transformativo.
O corpo saudável não é simplesmente aquele que consegue perseverar em seu ser. Ele é um
que é capaz de assumir a inevitabilidade das metamorfoses que são geradas e ativadas a partir
dos inúmeros encontros que se operam na realidade. Um corpo não se encontra nunca em um
sistema fechado e dessa forma qualquer aspiração à identidade é uma espécie de
confinamento que mais o limita do que o intensifica. Uma demanda por uma pura
preservação, diante da infinidade de corpos e experiências que se apresentam em nosso

974
Algo que de fato chegamos a insistir nos primórdios da escrita desse trabalho, em trechos já abandonados
graças às críticas recebidas, principalmente as de Ulysses Pinheiro.
357

percurso, parece uma receita para um desastre. É por isso que insistimos tanto sobre a
importância da experimentação ao discutir os afetos. A experimentação é um movimento que
nos permite ao mesmo tempo se alterar e avaliar o que se passa. Na ausência de qualquer
teleologia com T maiúsculo que nos guie, e na tendência de definhamento que uma simples
preservação acarreta, só resta aos corpos se lançarem de maneira cautelosa e hesitante, sempre
procurando descobrir qual é a melhor maneira de sobreviver e quais transformações são
positivas e quais são negativas. Nesse sentido não podemos nem falar de uma forma definitiva
do corpo em questão, já que ele próprio não é outra coisa, como vimos, que um certo conjunto
de transformações mais ou menos controladas. A vida saudável, nesse contexto, seria então
uma que conseguisse se apresentar como mais aberta (e sem rumo definido) à qualquer
transformação por vir — trata-se, para voltar ao vocabulário chinês, de tentar manter o corpo
com uma maior reserva de disponibilidade. O corpo saudável seria então um corpo
metamórfico.
O papel da prática filosófica nesse contexto pode parecer a princípio meio estranho, mas o
que procuramos mostrar foi justamente que a filosofia é capaz de influir sobre esses processos
de transformação. É claro que tudo influi, pois qualquer interação é uma operação de
transformação, mas há uma especificidade na transformação que a filosofia opera e foi
justamente ela que no interessou inicialmente. A sua capacidade de reenquadrar a realidade,
reorganizar a experiência nos parece uma dessas formas de experimentação que os corpos
realizam. Mas se os corpos estão em constante transformação, não faz sentido identificar essa
atividade que descrevemos anteriormente como uma espécie de “reflexão” como uma simples
atividade de “olhar para si mesmo”. Essa atividade “reflexiva” se torna outra coisa nesse
contexto de metamorfoses. Ela não mais se refere a um corpo específico e pessoalizado pois
esse corpo específico jamais existe de maneira essencial. Se os corpos são constantemente
afetados uns pelos outros, a própria prática filosófica deverá ser compreendida como uma
atividade transindividual que existe para além de um ou de outro corpo e, por isso mesmo,
pode circular975 —- inclusive a própria prática filosófica, eu seu movimento de
experimentação, é que produz subjetividades ao redeterminar os limites dos corpos. É com
isso em mente que podemos dizer que há nela uma espécie de impessoalidade976 . Não uma

975
Essa circulação, porém, não é uma circulação em que a atividade ou os produtos dessa atividade passariam
imunes aos espaços ou momentos em que elas circulam. Evidentemente trata-se de uma circulação que não deixa
de transformar a filosofia.
976
Para retomar um termo caro ao Mark Fisher: o impessoal. Cf. Fisher, Mark. Spinoza, k-punk, neuropunk.
2004a. Disponível em: <http://k-punk.abstractdynamics.org/archives/003875.html>. Acesso em: 1 fev 2018 e
Idem, Indifferentism and freedom. 2004b. Disponível em: <http://k-punk.org/indifferentism-and-freedom/>.
Acesso em: 1 fev 2018.
358

impessoalidade geral e abstrata — como a razão universal dos estóicos — mas uma
impessoalidade que é delimitada pelas suas condições sem ser por isso condenada a um
contexto específico — ou a um corpo que possa falar da minha ou sua filosofia. Podemos
então afirmar que é justamente essa estranheza e impessoalidade que há no ato filosófico que
lhe dão a sua capacidade transformadora. Pelo fato dos conceitos serem relativamente alheios
aos corpos que os produzem, não há neles nenhum compromisso em simplesmente repetir um
eu de um sujeito que procura se afirmar. Os conceitos são antes aliados numa aventura com a
alteridade. Eles podem ser compreendidos como uma espécie de ferramenta que permite um
corpo se orientar nos inúmeros encontros e transformações que ocorrem ao estruturar o
espaço (e o tempo) da sua existência. É, pois, devido a essa capacidade do conceito de dar
forma a nossa experiência do real que permite que ele seja tomado como um psicotrópico. Foi
isso que nos interessou no diagrama [deleuzo-guattariano] e no dispositivo [chinês]: são
formas de conceber a prática filosófica enquanto uma manipulação [jamais arbitrária ou sem
limites] do real. Dizer que a filosofia é uma forma de psicotropia é, pois, dizer que ela nos
permite experimentar a realidade de outra forma, dispô-la sempre de outro maneira (não de
modo arbitrário, claro, já que isso acaba dependendo sempre, claro, daquilo que se apresenta
em cada situação) e, consequentemente, nos permitindo operar uma transformação controlada
sobre a nossa vida.

Uma das grandes questões presentes nesse trabalho foi então: é possível ir para além dessa
experiência sufocante do tempo em que vivemos? Ao investigar as raízes dessa sensação,
identificamos que esse tempo deve ser entendido como uma espécie de clima. Há uma
qualidade específica nele e a gênese dessa qualidade pode ser traçada a partir da centralidade
que a ideia de futuro tem para a modernidade capitalista. A princípio, a ideia de que um
cancelamento do futuro é gerado por uma experiência do tempo que se orienta a partir do
futuro pode parecer estranho. O que as nossas análises acabaram mostrando, porém, é que a
ideia de um horizonte de expectativas como telos das nossas ações acaba, em nome da sua
preservação, produzindo um encurtamento das expectativas a fim de conseguir proteger esse
futuro contra qualquer risco que possa ameaçá-lo. O problema é que não só esse futuro se
encontra transformado numa repetição projetada do presente, como também a própria
possibilidade de futuro começa a se dissolver diante dos efeitos prenunciados na catástrofe
climática que já está em curso — e, não podemos esquecer, a exploração da terra, a extração
359

de recursos minerais e a devastação de florestas e outras estruturas responsáveis pelo


equilíbrio ecológico que permitiam a nossa vida, se intensificaram numa escala nunca antes
vista, a partir do momento que a modernidade começou a se orientar para o futuro. As
promessas de uma utopia deixaram o homem (sobretudo ocidental) mais conivente com um
sacrifício do seu presente. O resultado, como sabemos, é que presente e futuro se encontram
comprometidos. O tempo em que vivemos é, portanto, cancelamento do futuro em inúmeros
sentidos. Mas o problema não é só esse, o problema é que mesmo com esse esgotamento,
ainda estamos habituados a essa temporalidade moderna. É como se estivéssemos em tilt:
estamos estruturados para agir em direção a um futuro, embora não haja mais futuro que
possa nos orientar.
Se, porém, as nossas vidas se encontram afetadas por esse tempo-clima, é para sobrevivê-
lo que ativamos a capacidade de filosofar. Pois o que a passagem pela reflexão sobre os afetos
nos mostrou é que se o tempo da modernidade é orientado pelo futuro, o tempo dos corpos é
antes um tempo de metamorfoses, isto é, sem finalidade. Se somos condicionados a pensar
que não há alternativa (como descreve brilhantemente Mark Fisher, ao discutir o realismo
capitalista), a verdade é que qualquer caminho é um caminho e não há nada que nos condene
à essa temporalidade. É nesse ponto que acreditamos que a filosofia pode intervir, pois se o
futuro está acabando, talvez seja por meio do seu exercício que possamos nos abrir (ao menos
enquanto possibilidade) ao tempo das metamorfoses.977
Esse próprio movimento que descrevemos, que descreve o nosso tempo como contingente
já é ele próprio um efeito da prática filosófica.978 É ela que, em sua reorganização e re-
partição do real, pode conseguir descrevê-lo como um tipo de tempo ao qual não estamos
condenados. Mas não se trata de conseguir identificar “o tempo real”. O que está em jogo, na
verdade, é uma tentativa de alterar esse clima ao descrevê-lo, ao descrevê-lo de outra maneira
para conseguirmos agir de outra maneira. É por isso que a filosofia pode ser compreendida
como uma experimentação, como falamos. Ela tateia e avalia ao mesmo tempo. O que está em

977
E esse “tempo das metamorfoses” que, como me apontou Maikel da Silveira, pode acabar servindo como
substituto para a caracterização desse tempo porvir como um tempo das catástrofes. Certamente sabemos que os
autores que o descrevem dessa forma (como Stengers, discutida nesse trabalho) não encaram essa catástrofe de
maneira positiva ou com qualquer alegria. O que acredito, porém, é que a própria ideia de catástrofe ainda
aponta para o ponto de vista da temporalidade moderna que buscamos circunscrever e que gostaríamos de deixar
para trás. Nesse sentido “tempo das metamorfoses” não é nem algo necessariamente positivo (uma utopia ou
ucronia), mas simplesmente uma descrição que busca descrever um novo tempo que não se prende ao par solo de
experiência-horizonte de expectativas.
978
A filosofia, nesse sentido, pode ser tomada como uma prática emancipatória. Pois como diz Mark Fisher,
“políticas emancipatórias devem sempre destruir a aparência de uma ‘ordem natural’, devem revelar o que se
apresenta como necessário e inevitável como sendo uma simples contingência, assim como devem também fazer
com que aquilo que era visto como impossível aparente ser alcançável.” (Fisher, Mark. Capitalist realism: is
there no alternative?, 2009)
360

jogo não é, pois, a verdade — ou, o que é bem possível, a verdade tem de ser descrita de toda
uma outra maneira. O que nos ocupou aqui, portanto, foi tentar ao menos esboçar a
possibilidade dessa conexão para tornar a saída desse clima que nos assola possível (ainda
que, obviamente, não podemos fugir justamente do clima).

Em meio do caminho encontramos uma possibilidade que, infelizmente, não tivemos


condição de abordar de maneira adequada, ainda que em nossos rascunhos ela tenha
permanecido como um derradeiro capítulo não escrito. Na falta de tempo para desdobrar essa
possibilidade — que seria, nas últimas versões desse projeto, uma experimentação de
aplicação do que foi trabalhado aqui — acredito que ao menos um breve aceno deixe mais
claro não só em que direção pretendo seguir como, também, a maneira como eu acredito que a
prática filosófica efetivamente transforma a realidade.
Como se pode ter percebido, ao longo do trabalho as referências a uma
transindividualidade. O que isso significa é que um corpo não é nunca simplesmente um
corpo. Ele é sempre composto por uma infinidade de relações. E ao mesmo tempo mesmo a
sua extensão temporal, a sua continuidade, ela mesma não é isenta de transformações que
acabam fazendo com que esse corpo não tenha efetivamente um núcleo duro imutável, que
possa delimitar uma essência discreta, isolada de toda a realidade. É por isso que falamos do
corpo como algo dinâmico. Se, também, tomamos o afeto como elemento central nessa
descrição dos corpos, por ser a esfera que procura descrever o caráter transformativo dos
corpos, podemos nos apropriar de uma certa expressão usada por Vladimir Safatle para falar
de um sistema de corpos, uma ecologia dos corpos: um circuito dos afetos. Não conseguimos
(embora isso estivesse no meu objetivo inicial) entrar numa discussão apropriada com esse
livro que, apesar disso, foi talvez uma das fontes mais influentes nesse trabalho.979 Desse
livro, porém, extraímos a ideia de que há uma certa ecologia, um sistema de relações afetivas
que se estendem para além dos corpos individuais. Ou seja, os corpos sendo constituídos
sempre a partir do seu contato com outros corpos — e se misturando entre si nesses contatos

979
Embora, como as vezes calha de ser o caso, tratou-se de uma influência a posteriori. O livro foi lido depois
que grande parte das discussões sobre afeto estava já terminada (embora não necessariamente escritas). A
importância do seu livro O circuito dos afetos foi por ele ter me feito perceber a unidade que guiava o que eu
estava desenvolvendo sobre os afetos e a maneira como o interesse por essa questão não se desligava de uma
discussão mais ampla sobre a situação atual. Cabe nesse momento também um salve ao Rodrigo Nunes, pelos
cursos que ele deu nos primeiros anos do meu doutorado sobre a questão do afeto, da imanência e da
361

— acabam formando corpos de escalas maiores. Esses corpos podem ou não ser mais
organizados, podem ser menos visíveis, não importa. O que interessa nisso é que esses corpos
não se limitam ao que tradicionalmente se concebe como corpo (na verdade, é justamente
dessa limitação que procuramos fugir ao pensar o que é um corpo a partir do pensamento
Espinosano).
Com essa ideia de circuito de afetos acredito que seja possível falar de um tipo de corpo
que existe em uma outra escala que a nossa, uma espécie de megacorpo ou, para retomar uma
certa terminologia deleuzo-guattariana, uma megamáquina980. O que tenho em mente com
isso são corpos que excedem não só a nossa escala — espacialmente em seu tamanho e
temporalmente em sua duração —, mas também a nossa capacidade de percepção, devido ao
seu alto grau de complexidade. Acredito que esse conceito pode nos ajudar a pensar certas
“coisas” que são presentes em nossas vidas (as vezes até demais) ainda que com um estatuto
ontológico ou vago ou incerto demais. De forma que o que gostaria de ensaiar aqui é a
possibilidade de encarar certos “objetos” da nossa vida contemporânea como
megamáquinas — seres suficientemente complexos e com graus suficientes de
endoconsistência para serem considerados agentes (relativamente) autônomos.981
A tentativa de pensar esses tipos de seres vem sem sombra de dúvidas da minha leitura de
Espinosa. Já discutimos isso anteriormente, mas não custa lembrar que no meio da ética
encontramos um longo desvio que chamamos de “pequena física”. Sem poder justificar aquilo
que faz (não é sua intenção desenvolver esse ponto naquele momento), Spinoza apenas
oferece um esboço bem breve da maneira como ele encara a existência dos corpos físicos.
Não me interessa se aquilo ali é absolutamente original (afinal, que importa isso), mas creio
que temos ali uma maneira extremamente potente de pensar o que são as coisas, os corpos, os
sujeitos, sem recair num excepcionalismo humano (um excepcionalismo que criaria uma
“cortina de ferro ontológica entre sujeitos e objetos”, parafraseando Pierre Lévy).
O que Espinosa diz nessa parte da Ética é que um corpo é um conjunto de partes que se
organizam segundo certas proporções. Os corpos não são as próprias partes (que para Spinoza
são apenas “movimento” e “repouso” em velocidades variadas), mas a capacidade de um
corpo manter uma certa organização, uma certa forma, apesar da constante substituição das
suas partes específicas — o corpo aparece como um certo tipo de movimento cíclico,

complexidade. Esses cursos sim, posso dizer, me ajudaram a me dirigir com menos medo para a questão dos
afetos tal como trabalhada aqui.
980
Sabemos como esse conceito remete ao trabalho de Lewis Mumford. Como porém essa parte do trabalho
restou ‘por fazer’, não foi possível, ainda, averiguar em que medida nos aproximamos ou divergimos da obra de
Mumford sobre o conceito de megamáquina.
981
Ao menos tão autônomo quanto qualquer ser vivo.
362

repetitivo. É preciso que as partes se organizem de tal forma que a sua conjunção (e a
perpetuação dessa conjunção) seja fruto da própria interação das partes que compõem esse
corpo (e não de qualquer elemento externo). Pode-se dizer, por outro ângulo, que essa
conjunção é um movimento que traça um limite entre uma interioridade e uma exterioridade e
que a unidade que emerge dessa conjunção (que é sempre mais que a simples soma das
partes) acaba, por sua vez, contra-efetuando as próprias partes que a formam. O corpo é um
jogo de feedbacks.
Aquela imagem clichê do corpo humano que renova todas as suas células a cada [x] anos
é exemplar disso que queremos falar. Bem, se um corpo é isso, nada mais que isso, então
qualquer conjunto de partes que se organize de tal maneira que as suas partes, pela sua própria
organização específica, sejam constrangidas a permanecerem numa mesma ordenação
(independente da movimentação das suas partes) pode ser considerado como um sujeito, algo
capaz de agência. Em tese, a pergunta se transforma não mais em “quem é sujeito”, mas em
“é possível que algo não seja um sujeito?” É esse tipo de subjetividade que nos leva a pensar
que o corpo é da ordem do maquínico e que a agência (ou a vida) não se restringe a seres
biológicos. Isso, evidentemente, se não reduzimos as máquinas a um automatismo simples
(absolutamente determinada), mas se, seguindo a sugestão de Gilbert Simondon, pensarmos
que uma máquina é máquina na medida em que possui certa margem de indeterminação. O
interesse no conceito de máquina, que apenas aludimos brevemente, é que ele permite pensar
a agência para além de um vitalismo vulgar.982
Partindo desse ponto o caminho inevitável é atribuir agência a todos os seres que existem.
Mas eis aqui o momento em que o nosso excepcionalismo mais uma vez toma as rédeas. Pois
o que observamos é que conseguimos atribuir agência (ou vida) à seres que estão ou na nossa
mesma escala (mamíferos, animais etc) ou “inferiores” (muitas, muitas aspas) a nós (como
bactérias, vírus etc). Não quero entrar em mil disputas aqui, mas é muito mais comum ver
esse movimento de atribuição de agência àquilo que é tomado pelo homem como tendo um
grau de complexidade igual ou menor à do ser humano.983 Distribuímos agência entre símios,
mamíferos, polvos (sempre eles), pássaros, insetos, slime molds, células, bactérias etc. Essa
percepção de que a agência não é uma característica exclusiva dos seres humanos é essencial
para uma série de práticas ecopolíticas e o trabalho que se faz nessa direção é de um potencial

982
Sobre tal vitalismo, vale ler o sempre lúcido e cauteloso Canguilhem em “Aspectos do vitalismo”. Cf.
Canguilhem, Georges. O conhecimento da vida. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012. pp. 85-105.
983
Entendendo complexidade não como um salvo-conduto para um complexo-de-deus que encontramos na
história antropocêntrica, mas, num sentido espinosano, como uma maior ou menor capacidade de afetar e ser
afetado. Nesse sentido não estamos prescrevendo de antemão quais seres são mais ou menos capazes que nós,
mas que eles tem sido tomados como menos capazes (independente disso refletir a capacidade real desses seres).
363

enorme. Resta porém o outro lado da escala. Mas e os seres que estariam numa escala “mais
alta”? O próprio Spinoza apontava, sem desenvolver, para essa possibilidade ao dizer no seu
Tratado Político que o Estado atuava “como se tivesse uma mente”. Mas não vemos, eu pelo
menos vejo pouco, esse movimento sendo radicalizado.
Gostaria de propor aqui, então, apenas três exemplos, dessas coisas que chamarei de
megamáquinas. MEGAs, justamente pelo grau de complexidade astronômico, com relação
aos seres humanos, que encontramos nesses tipos de ser. Se estou focando nesse tipo de ser é
porque acredito que, no mínimo, aparecem como atores políticos que não lidamos
suficientemente — ou melhor, poucas vezes os consideramos enquanto atores políticos. É
claro que nos deparamos com esses “seres”, mas acredito que não os consideramos como
portadores de uma agência própria. Ou melhor, se é possível vislumbrar eles dessa forma é
porque só agora, em movimentos mais ou menos tímidos, começamos a enxergar essas coisas
como sujeitos.
O primeiro desses sujeitos é o Estado. Sempre que leio Foucault, e acredito que isso não
seja tão incomum, vem sempre aquela paranoia, mas quem tá fazendo isso tudo se mover? O
mais surreal na leitura de um livro como Vigiar e Punir é que uma série de engrenagens
acabam se movendo sem que seja possível apontar um sujeito (ou um grupo) que esteja
movendo elas. Antes, pelo contrário, é o inverso que acontece. O que Foucault nos mostra é
que os homens (os “supostos únicos sujeitos”) é que são movidos por algo. Mas quem? Bem,
acho que o Estado (ou cada Estado, isso, ainda deve-se discutir) é uma dessas forças. Ele se
movimenta para se preservar e é justamente esse movimento que é completamente alienígena
para nós (a sua racionalidade, como a de cada megamáquina, é de outra ordem) que dificulta a
nossa lida com ele.
O caso típico disso é a leitura mais rasteira do agrimensor K. em O castelo, de Kafka. O
que se encontra nessa pequena cidade é um ser-vivo, o castelo, que age apesar e à despeito
dos interesses de cada um dos seus funcionários ou dos moradores da cidade. As engrenagens
giram e ninguém nunca pode interferir pois ninguém nunca é responsável o suficiente. Estão
apenas seguindo as ordens — mas de quem? Essa impossibilidade de interferir nos lembra da
maneira como Koselleck, em seu Crítica e crise, descreve o processo de formação dos estados
absolutistas. O golpe de gênio de Hobbes (mas também a futura ruína), foi justamente separar
a moralidade da política. Para garantir o fim das guerras civis, o Estado deveria se constituir
em uma sociedade que restringisse as posições morais à esfera da consciência privada,
separando-as das ações exteriores. Nesse movimento, em que a valoração dos sujeitos
humanos se submete a uma máquina-de-garantir-paz (que é o papel do estado hobbesiano),
364

vemos a construção de um ser, uma megamáquina, que passa a ter sua própria agência e que
não pode mais ser reduzido ao pensamento de tal ou tal governante. A cisão que Hobbes
institui acaba por alienar certas ações que acabam por compor um ser que não é mais
controlado pelos homens, mas que passa a controlá-los para garantir a sua perpetuação.
A segunda megamáquina que gostaria de descrever é uma que já descrevemos (com
outros interesses) longamente: trata-se do Capital. O Capital não é dinheiro, ele é aquilo que
emerge a partir do momento que as relações de troca se intensificam de tal maneira em que
uma convertibilidade geral se instaura e que, por meio dessa convertibilidade, ele consegue
perpetuar a sua vida. Podemos pensar nesse ser também a partir daquilo que ele quer
perpetuar. Como diz o próprio Marx, “a circulação do dinheiro como capital é, ao contrário,
um fim em si mesmo, pois a valorização do valor existe apenas no interior desse movimento
sempre renovado. O movimento do capital é, por isso, desmedido.”984
Procurei descrever no início desse trabalho a maneira como aos poucos esse movimento
de valorização vai se tornando progressivamente mais forte e mais dominante. Se dizemos
que o capital é uma megamáquina, isso se deve a uma capacidade de agência que é autônoma
relativa a nós (humanos). Como fala Marx em outro momento, o Capital

se apresenta como um poder social estranhado, autonomizado, que se opõe à sociedade como uma
coisa, e como poder do capitalista através da coisa. A contradição entre o poder social geral em que se
converte o capital e o poder privado dos capitalistas individuais sobre essas condições sociais de
produção desenvolve-se de maneira cada vez mais gritante e implica a dissolução dessa relação985

Haveria muito ainda a discutir e desenvolver sobre esse ponto, mas acredito que a maneira
como o discurso econômico domina qualquer discussão política é sintoma suficiente da
existência dessa máquina como ator político.
O terceiro ser que gostaria de descrever aqui é outro que também abordamos
anteriormente e que é a própria condição da nossa existência. Falo aqui de Gaia. Gaia,
entendida como o sistema de interações que efetua o próprio movimento de cisão entre uma
interioridade e uma exterioridade (o espaço, o único le grand dehors verdadeiro — por
enquanto), como um movimento relativamente estável que tem se perpetuado por bilhões de
anos e que criou condições para que nós seres humanos existíssemos. Gaia não é
simplesmente a vida (isso cheira a misticismo), ela é uma interação complexa entre diversas
partes que acabam, por sua vez, uma vez constituída, afetando de volta as partes que a

984
Marx, Karl. O capital: crítica da economia política: livro I: o processo de produção do capital, 2013. p. 228
985
Idem, O capital: crítica da economia política: livro III: o processo global da produção capitalista. São Paulo:
Boitempo Editorial, 2017. p. 303
365

compõem e as transformando, iniciando um ciclo de feedbacks que continua até hoje. Essa
megamáquina talvez seja a mais complicada de se falar pois ela é talvez a que possa ser mais
facilmente confundida com outra coisa. Não estou falando aqui que Gaia tem alma, que ela
tem livre-arbítrio, estou apenas falando que ela é um corpo (seguindo o conceito de corpo que
eu discuti). Se ela aparece para nós hoje (A intrusão de gaia, como diz Stengers), é porque
alguns dos seus ciclos internos saíram para fora do controle a ponto de ameaçar o equilíbrio
(relativamente) estável que perdurava e gerar a possibilidade de que algumas das suas partes
sejam destruídas no processo. Não é exagero dizer que esse movimento desenfreado do
Capital, que Marx descreve, acaba por gerar um desequilíbrio interno no corpo-Gaia. O
capital surge, como uma espécie de câncer (“o movimento do capital […] é desmedido”) que
nos obriga a lidar com o fato de que as nossas (dos humanos, mas dos seres vivos (no sentido
vulgar) da terra em geral) condições de existência são também históricas — são fruto do certo
equilíbrio que pode sempre ser (e está sendo) dissolvido a qualquer momento. Do ponto de
vista das megamáquinas, não se trata de dizer que o Capital está matando Gaia. O que ocorre
é antes que esse novo ator político — novo do nosso ponto de vista — está simplesmente se
ajustando às modificações provocadas pelo Capital, já que ela própria seguirá adiante ainda
que provavelmente com um novo equilíbrio. Não temos um imaginário para conceber isso,
mas gosto de imaginar Gaia como alguém que dorme tranquilamente em sua cama até que em
certo momento um gato começa a morder o seu pé. Gaia pode até perder o dedo (improvável),
mas nesse movimento de afastar o gato, nessa mudança de posição, corremos o risco (nós,
todos nós, mas não necessariamente, todos) de sermos esmagados em sua reacomodação.
Pode ser que não haja mais tempo para encontrarmos uma nova posição na cama e esperar
que Gaia volte para seu sono tranquilo.
O que fiz aqui foi um esboço, apenas o começo de uma investigação que acho que está
acontecendo em diversos cantos. O que gostaria de reiterar, porém, é que há atores políticos
acima de nós, mais complexos (menos previsíveis) e, portanto, mais difíceis de lidar. Descrevi
apenas três, mas em nenhum momento quero dizer que há apenas esses três (a internet, a
“razão iluminista europeia”, o cristianismo, são apenas alguns outros exemplos, de tantos
outros possíveis, de megamáquinas). Eles apenas me parecem os atores políticos que mais
tem ocupado espaço no cenário atual. Também é preciso deixar claro que as relações com
megamáquinas, ao menos da maneira que encaro, não é uma relação onde outrem = inimigo.
Na verdade, se estamos aqui, como já falei, em parte é por causa de uma aliança que se
estabelece(u) com o corpo-Gaia. A questão, portanto, não é tanto, disputar o espaço com esses
corpos, ou mesmo destruí-los (que bobeira — e o desenvolvimento da inteligência artificial ou
366

da geoengenharia não deixam de ser apostas perigosas nesse sentido), mas tentar entender o
campo que se desenha diante de nós, para que a sobrevivência ainda seja possível.

Como se vê, essa possibilidade de rearranjar o cenário ontológico-político já seria uma


forma de pôr em ação o tipo de prática filosófica que tentamos descrever: uma prática com
potencial libertário na medida em que ela consegue aumentar o nosso campo de ação ao
operar seus recortes conceituais. É claro que essa reorientação pode permanecer num campo
puramente abstrato, mas o que acredito é que se esse rearranjo permanecer abstrato demais
(sem afetar a nossa própria prática) é porque ele ainda está insuficientemente descrito. Ele não
nos afeta pois esse conceito (o de megamáquina, para ficar no exemplo presente) não está
suficientemente delimitado e determinado. Na medida em que o conceito ganha consistência,
porém, o que começa a se desenhar é uma outra possibilidade de existir, outras maneiras
possíveis de agir se abrirão diante de nós. Considerando as megamáquinas como agentes,
podemos começar a especular se grande parte da tendência que tivemos de acreditar em meta-
narrativas ou teleologismos gerais não são apenas fruto de uma confusão que não conseguia
enxergar que apenas estamos envolvidos na teleologia (com t minúsculo) de certos corpos de
escalas incomensuráveis (como Gaia, como o Capital)? A própria ideia de um futuro e sua
precariedade, algo que discutimos longamente aqui, começa a se diluir se descobrirmos que
os grandes sentidos que acreditávamos eram apenas movimentações em escalas
imperceptíveis. Uma nova práxis precisa ser formulada em um mundo que há mais agentes do
que inicialmente supúnhamos. E agentes de qualidades completamente diferentes, com
“agências” que são tão distintas das nossas que fomos capazes (nós, os iluminados ocidentais)
de duvidar que fossem agências.
Há um certo horror nisso, em perceber o mundo como povoado de agentes que nem nos
damos conta. Que nos rodeiam, que afetamos e nos afetam sem que percebamos (e nem
sabemos o grau de percepção deles desses movimentos) — mesmo nós mesmos viramos
outrem quando vemos o quanto devemos à corpos estranhos. Parece que efetivamente não
resta muito a fazer nesse cenário, pois nos revelamos frágeis e impotentes diante do que
existe. Mas já não sabemos isso desde Copérnico, Darwin e Freud? É por isso que é bom
lembrar, ao mesmo tempo, que o nosso prometianismo [prometheanism] — a crença numa
potência ilimitada do humano — não teve um pequeno papel na crise em que nos
367

encontramos.986 Não é nenhuma novidade que a capacidade de agência do homem é bem


menor do que ele imaginava. O que me parece novo (ou: tornado visível apenas
recentemente), porém, é que não somos apenas menos do que acreditávamos ser. A questão é
que não cansamos de fechar os olhos para a maneira como a agência de outrem é que nos
constitui enquanto indivíduos. Esse outrem em todo momento esteve nos constituindo e nós,
por outro lado, em diferentes medidas e em diferentes escalas, nunca deixamos de constituir
outrem — uma mistura em constante transformação. O que a prática filosófica pode nos
mostrar, entre outras tantas possibilidades, é a capacidade de não se restringir e não se
delimitar a um ponto de vista — é esse o caminho que acreditamos que ainda pode ser
construído, embora aqui tenhamos apenas esboçado a sua possibilidade. Para isso, agir sem
um futuro que nos delimita e organiza o nosso ponto de vista é fundamental. Aumentar a
disponibilidade ao invés de reduzi-la. Talvez haja algo melhor para nós se conseguirmos abrir
mão de ser apenas nós mesmos. “Other echoes inhabit the garden. Shall we follow?”987

986
Esse trabalho certamente precisaria ser elaborado com mais precisão futuramente, mas a hipótese aqui é de
que o prometeismo ocidental foi uma das principais causas da cegueira quanto às causas que se empilhavam e
nos conduziram à situação atual. “É hybris que chama”. Cf. Brassier, Ray. “Prometheanism and its critics” in::
Mackay, Robin (org.); Avanessian, Armen (org.). #Accelerate. Falmouth: Urbanomic, 2014.
987
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______. Spinoza - una física del pensamento. Buenos Aires: Cactus, 2014.

______. Deleuze, uma filosofia do acontecimento. São Paulo: Editora 34, 2016.

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