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MANIFESTO DO CÍRCULO DE VIENA

A Concepção Científica de Mundo

Traduzido do inglês pelo Prof. Edgar Lyra.

[…] A concepção científica de mundo é caracterizada não tanto por teses propriamente
ditas, mas sobretudo pela sua atitude básica, por seu ponto de vista e orientação de
pesquisa. A meta a perseguir é a ciência unificada. A empresa é a de ligar e harmonizar
as realizações dos pesquisadores individuais dos vários campos da ciência.

Esse objetivo define o foco nos esforços coletivos e também naquilo que pode ser
captado intersubjetivamente; dele advém a busca por um sistema neutro de fórmulas,
por um simbolismo liberto do estorvo das linguagens históricas; e também a busca de
um sistema integral de conceitos. A ordem e clareza são tenazmente perseguidas; as
distâncias obscuras e as profundezas insondáveis são rejeitadas.

Em ciência não há “profundezas”; há superfície por toda parte: o conjunto das


experiências forma uma rede complexa, que nem sempre pode ser abrangida com a
vista, que pode ser compreendida somente em partes. Tudo é acessível ao homem, e o
homem é a medida de todas as coisas. Aqui há uma afinidade com os sofistas, não com
o platonismo; com os epicuristas, não com os pitagóricos; com todos aqueles que
defendem o estar na terra, o aqui e agora. A concepção científica de mundo desconhece
enigmas insolúveis. A clarificação dos problemas filosóficos tradicionais nos leva em
parte a desmascará-los como pseudo-problemas, em parte a transformá-los em
problemas empíricos e assim sujeitá-los ao juízo da ciência experimental. A tarefa do
trabalho filosófico reside na clarificação dos problemas e asserções, não na expressão de
pronunciamentos “filosóficos” especiais.

O método dessa clarificação é o da análise lógica; sobre ele diz Russell (em Nosso
Conhecimento do Mundo Exterior) que “se insinuou gradualmente na filosofia o
escrutínio crítico dos matemáticos … Isso representa, eu creio, o mesmo tipo de
progresso que foi introduzido na física por Galileu: a substituição por resultados
detalhados e verificáveis, passo a passo, das grandes generalidades não testadas,
respaldadas somente numa espécie de apelo à imaginação.

É o método da análise lógica que essencialmente distingue o empirismo recente e o


positivismo da versão mais antiga, mais biológica e psicológica em sua orientação. Se
alguém afirma que “existe um Deus”, ou que o “fundo primário do mundo é o
inconsciente”, ou que “existe uma enteléquia que é o princípio guia dos organismos
vivos”, nós não dizemos: “– O que você diz é falso”, mas perguntamos: “ – O que você
quer dizer com semelhantes enunciados?”

Torna-se visível o fato de haver uma fina linha de fronteira entre dois tipos de
enunciados. Num dos lados estão os enunciados feitos pela ciência empírica; seu
significado pode ser determinado pela análise lógica ou, mais precisamente, através da
sua redução lógica aos mais simples enunciados referenciáveis ao que é empiricamente
dado. Do outro lado estão enunciados, dentre os quais os anteriormente citados, que se
revelam vazios de significado quando tomados segundo propósitos metafísicos.
Pode-se, decerto, frequentemente reinterpretá-los como enunciados empíricos; mas
nesse caso eles perdem o conteúdo sentimental que é em geral essencial ao metafísico.
O metafísico e o teólogo acreditam, e por aí compreendem mal a si mesmos, que seus
enunciados dizem algo, ou que denotam um estado de coisas. A análise lógica mostra,
contudo, que esses enunciados não dizem nada, que meramente expressam certos
humores ou estados de espírito.

Expressar tais sentimentos durante a vida pode ser algo importante. Mas o meio próprio
para fazer isso é a arte, por exemplo, a poesia lírica e a música. É perigoso escolher ao
invés disso a roupagem linguística de uma teoria: posto que dessa forma simula-se um
conteúdo teórico onde nada disso existe. Se um metafísico ou teólogo quiser reter o
meio linguístico usual, então ele deve espontaneamente assumir e tornar claro que não
pretende fornecer descrições, e sim expressões, não teoria ou comunicação de
conhecimento, mas poesia ou mito. Quando um místico afirma que tem experiências
que estão acima e além de todos os conceitos, não é possível dizer que é mentira. Mas o
místico não pode falar sobre essas experiências, porque falar implica a apreensão
conceitual e a redução aos estados de coisas cientificamente classificáveis. […]

Caracterizamos a concepção científica de mundo essencialmente por dois atributos.


Primeiro ela é empirista e positivista: há conhecimento somente a partir da experiência,
apoiado no que é imediatamente dado. Isso estabelece limites para o conteúdo da
ciência legítima. Segundo, a concepção científica de mundo é marcada pela aplicação de
um certo método, chamado análise lógica.

A finalidade dos esforços científicos é alcançar como meta a ciência unificada através
da aplicação da análise lógica ao material empírico. Uma vez que o significado de cada
enunciado da ciência deve ser passível de redução a um enunciado sobre algo dado,
concomitantemente o significado de qualquer conceito, não importando a que ramo da
ciência pertença, deve ser passível de redução a outros conceitos, passo a passo, em
direção a conceitos de nível mais baixo, até que se refira ao dado.

Se tal análise fosse levada adiante para todos os conceitos, eles seriam dispostos num
sistema reduzido, um “sistema constitutivo”. As investigações em direção a um tal
sistema constitutivo, à “teoria constitutiva”, formam o quadro de referência da análise
lógica aplicada pela concepção científica de mundo. Tais investigações mostram muito
rapidamente que a lógica tradicional, de base aristotélica e escolástica, é bastante
inadequada para esse propósito.

Somente a moderna lógica simbólica (“logística”) é bem sucedida em ganhar a precisão


adequada às definições de conceitos e enunciados, e em formalizar o processo intuitivo
de inferência do pensamento ordinário, levando-o a uma forma automaticamente
controlada por meio de um mecanismo simbólico. As investigações na direção da teoria
constitutiva mostram que as camadas inferiores do sistema constitutivo contém
conceitos da experiência e qualidades da psique individual; nas camadas acima estão os
objetos físicos; e a partir destes são constituídas as outras mentes e por último os objetos
das ciências sociais.

A ordenação dos conceitos dos vários ramos da ciência no sistema constitutivo já pode
hoje ser antevista num esboço, mas muito resta a ser feito no nível do detalhe. Com a
prova da possibilidade e o esboço da forma geral do sistema integral de conceitos, a
referência de todos os enunciados ao dado e com ela a estrutura geral da ciência
unificada se tornará também reconhecível. […]

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