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A construção da equidade nas relações de gênero

e o movimento feminista no Brasil: avanços e desafios


The achievement of equity in gender relations and the feminist
movement in Brazil: advances and challenges

Angelita Maria Maders


Doutora em Direito pela Universidade de Osnabrück (Alemanha).
Docente de Ensino Superior da Universidade Regional
Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI) e da Unijuí
e Defensora Pública do Estado do Rio Grande do Sul.
angmaders@ig.com.br
 
Rosângela Angelin
Doutora em Direito pela Universidade de Osnabrück (Alemanha).
Docente de Ensino Superior da Universidade Regional
Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI) e Faculdades
Integradas Machado de Assis (FEMA)
rosangelaangelin@yahoo.com.br

Resumo As relações de gênero foram firmadas ao longo da história, configurando-se


como construções culturais de identidades masculinas e femininas, envolvendo rela-
ções de poder. Isto resultou na opressão e submissão das mulheres e na “naturalização”
dessas relações, fazendo com que o reconhecimento delas na sociedade seja um reco-
nhecimento equivocado. Diante desse cenário, sempre houve movimentos de resistên-
cia de mulheres em busca da equidade nas relações de gênero. Mais recentemente, na
modernidade, surgiram movimentos organizados capazes de alterar essa situação, sen-
do precursores de muitos avanços na melhoria da vida das mulheres. São denominados
movimentos feministas e movimentos de mulheres. Assim, o presente artigo pretende
abordar a caminhada desses movimentos, em especial no Brasil, apontando os avanços
jurídicos e os direitos de cidadania alcançados pelas mulheres.
Palavras-chave movimento feminista; relações de gênero; mulheres e direito.

Abstract Gender relations were established throughout History, shaping themsel-


ves into cultural constructions of male and female identities, involving power rela-

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tions. This situation resulted in the oppression and submission of women and in the
“naturalization” of these relations, leading to the misrecognition of women in so-
ciety. In face of this scenario, there have always been women resistance movements
seeking for equity in gender relations. More recently, in modern times, some orga-
nized movements appeared to change this situation, being the precursors of many
advances in the improvement of women’s life. They were called feminist movements
and women’s movements. So the present article intends to approach the trajectory
of these movements, especially in Brazil, emphasizing the legal advances and the
citizenship rights achieved by women.
Keywords feminist movement; gender relations; women and law.

Considerações iniciais

A história das relações de gênero tem sido contada de forma bastante controver-
sa. Na história oficial, as mulheres quase não são mencionadas. Porém, estudos mais
recentes, realizados a partir do século XIX, têm feito uma releitura da participação
feminina na história da humanidade e demonstrado que, apesar de um longo período
(aproximadamente 5 mil anos) de opressão e submissão das mulheres, sempre houve
movimentos de resistência e busca de um espaço na vida pública. Na modernida-
de, esses movimentos de resistência são denominados “movimentos feministas” ou
“movimentos de mulheres”.1
Embora, em algumas sociedades, os movimentos feministas apresentem-se
mais organizados do que em outras, não se pode olvidar que eles acompanham o
movimento feminista mundial, de modo que se torna difícil limitá-los, neste artigo, a
um único lugar ou a somente uma de suas múltiplas faces. Apesar de tal circunstân-
cia, pretende-se, com a presente abordagem, tratar do processo de reconhecimento
da identidade das mulheres, bem como a construção da equidade nas relações de
gênero2 no Brasil, levando-se em consideração os movimentos feministas e de mu-
lheres que deflagraram a conquista de diversos direitos pelas mulheres.

1
Os movimentos feministas apresentam um caráter mais político no sentido de buscar a equidade nas
relações de gênero e, portanto, abordar temas que envolvem política, direito sobre o corpo, econo-
mia etc. Já os movimentos de mulheres, no Brasil, estavam ligados às pastorais sociais das Igrejas e
ocuparam-se mais com demandas voltadas para a melhoria das condições de vida das famílias, como
saneamento, direito à saúde, alimentação, habitação. Mesmo assim, no Brasil esses movimentos se
uniram, no final da década de 1970, para lutar por bandeiras comuns envolvendo a busca de direitos
para as mulheres.
2
As relações de gênero pressupõem as relações entre seres humanos do gênero masculino e do gê-
nero feminino. Os seres humanos não nascem homem ou mulher. Essas identidades são construídas
socialmente.

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Será um desafio, dada a complexidade do assunto, bem como, em virtude de


certo menosprezo existente em torno do tema, não somente no mundo jurídico, mas
também nos meios social e estatal.

A construção e o reconhecimento da identidade do gênero femini-


no: um processo baseado nas relações de poder

As relações de gênero foram se firmando ao longo da história, configurando-


se como construções culturais de identidades masculinas e femininas, envolvendo
relações de poder e impondo comportamentos aos homens e às mulheres, que nem
sempre se desenvolveram por meio da coerção física, mas foram incutidos na sub-
jetividade humana “em toda a sua aparente liberdade e privacidade” (EAGLETON,
2005, p. 76). Diante disso, grande parte da humanidade acredita, equivocadamente,
que estas desigualdades de gênero são “naturais”, tanto que, normalmente,

homens e mulheres são identificados por seu sexo; em particular, as


mulheres são condenadas a ele, ancoradas em seus corpos de mulheres
chegando até a ser prisioneiras deles. […] Esta naturalização das mu-
lheres, presas a seus corpos, a sua função reprodutora materna e domés-
tica, e excluída da cidadania política em nome desta mesma identidade,
traz uma base biológica ao discurso paralelo e simultâneo da utilidade
social. (PERROT, 2005, p. 470).

Investigações e estudos acerca das relações de gênero na história demonstraram,


porém, que os papéis reservados ao sexo masculino e ao sexo feminino são constru-
ções sociais e culturais e, portanto, não podem ser relações “naturalizadas”. Além
disso, ao se rever a história da humanidade, pode-se perceber como estas relações de
gênero foram sendo construídas, paulatinamente, pela sociedade, sendo resultado das
relações sociais. Neste contexto, Maclaren (1997, ps. 162-167) atenta para a impor-
tância das narrativas, afirmando que as identidades são um resultado parcial da narra-
tiva da vida social, uma vez que ela possui um poder elevado de socializar, introduzir
os seres humanos em estilos de vida e, ao mesmo tempo, informar teorias, ideologias
e práticas sociais. As relações de gênero refletem esse fator social com base, muitas
vezes, na diferença sexual que acaba gerando a desigualdade. Assim, gênero

não se refere apenas às idéias, mas também às instituições, às estrutu-


ras, às práticas cotidianas, como também aos rituais e a tudo que cons-
titui as relações sociais. O gênero é a organização social da diferença
sexual. Ele não reflete a realidade biológica primeira, mas ele constrói

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o sentido dessa realidade. A diferença sexual não é a causa originária


da qual a organização social poderia derivar. Ela é antes uma estrutura
social movente, que deve ser analisada nos seus diferentes contextos
históricos. (BRAUNER, 2007, p. 62).

Não se pode deixar de referir que os poucos dados hoje disponíveis acerca da
história das mulheres, desde o início da humanidade, são compostos por evidências
arqueológicas interpretadas de diversos modos, em sua maioria por homens e, geral-
mente, seguindo uma análise masculina dominadora. Atualmente, essas descobertas
arqueológicas estão sendo reinterpretadas e têm revelado uma perspectiva ainda des-
conhecida: na pré-história existiram sociedades mais pacíficas e as mulheres tinham
um papel de destaque na vida social.3
Segundo essas pesquisas arqueológicas, os seres humanos do período paleolíti-
co e neolítico viviam em uma sociedade com relações humanas de parceria, em que
as mulheres eram veneradas por seu poder de gerar a vida e, portanto, por seu im-
pressionante poder de manutenção da espécie humana.4 Para melhor esclarecer essa
conclusão, Eisler (2007, p. 27) salienta que “em tradições que remontam ao princípio
da civilização, a vulva era venerada como o portal mágico da vida, possuindo o po-
der tanto de regeneração física quanto de iluminação espiritual e transformação”.
Vê-se, pois, que as relações entre o gênero humano, atualmente, ainda carac-
terizadas pela opressão e submissão das mulheres, não devem ser tratadas como um
fato “natural”, como insistem alguns, embora se perceba que a “naturalização” desse
processo de opressão das mulheres foi maquiado no decorrer dos milênios, também
por meio dos mitos que reforçaram o papel imposto de submissão das mulheres aos ho-
mens. Juntamente com a subjugação feminina, foi difundida a ideia de que às mulheres
é reservado o mundo privado, de dissabores e de servidão, que perdurou por séculos.
Entretanto, salutar se faz registrar que, em todos os períodos da história, também foram
percebidos movimentos de resistência das mulheres contra a opressão masculina.
Esta resistência contra o ideário social acerca do papel de submissão feminina é
retratada por Eduardo Galeano, em sua obra Mulheres, na qual o autor faz referência
à resistência de uma poetisa argentina chamada Alfonsina Stormi contra o machismo
de sua época:
3
Duas obras recentes apresentam a outra versão da história da humanidade ressaltando como viviam mu-
lheres e homens. São elas: O cálice e a espada: nosso passado, nosso futuro e O prazer sagrado: sexo,
mito e a política do corpo, da socióloga, advogada e historiadora cultural Riane Eisler, da Califórnia.
4
Esta teoria é desenvolvida por Riane Eisler na obra O cálice e a espada: nosso passado, nosso
futuro (Trad. Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2007) e retrata descobertas arqueológicas
que evidenciam um período no qual as mulheres não eram discriminadas e oprimidas, o que não
significa dizer que estas oprimissem os homens. Ao contrário, vivia-se num ambiente de cooperação
e parceria entre os sexos, embora a divisão do trabalho já fizesse parte do ambiente social.

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Na mulher que pensa, os ovários secam. Nasce a mulher para produzir


leite e lágrimas, não ideias; e não para viver a vida e sim para espiá-la
por trás da persiana. Mil vezes explicaram isso a ela e Alfonsina Stormi
não acreditou nunca. Seus versos mais difundidos protestam contra o
macho enjaulador. (GALEANO, 2000, p. 134).

A desvalorização do papel da mulher no mundo público é notória, tendo sido


percebida, inclusive, no círculo de pensadores e cientistas de várias épocas. Apesar
disso, em diferentes períodos da evolução da humanidade, os valores se direciona-
vam também para o reconhecimento das mulheres. Nesse rumo, não se pode olvidar
que os famosos filósofos gregos, Sócrates e Pitágoras, foram educados por sacerdo-
tisas. Além disso, descobertas reportam evidências da existência de faraós mulheres
no Egito e juízas na Grécia (EISLER, 2007, ps. 178, 84 e 122).
O processo de reconhecimento social do papel das mulheres, como menciona-
do, foi sendo alterado no decorrer da história, em especial pelo estabelecimento do
patriarcado. A relação de parceria existente entre homens e mulheres em determi-
nadas épocas e lugares transformou-se em uma relação de desigualdade e opressão.
Chegou-se ao cúmulo, mais precisamente na Idade Média, de as mulheres, em espe-
cial as camponesas, vivenciarem uma tentativa de extermínio de saberes milenares,
fruto de uma massiva campanha realizada pela Igreja, pelo próprio Estado e pela
classe dominante, numa perseguição de caráter religioso, político e sexual.
Não se pode deixar de relatar que o Direito, na época medieval, estava forte-
mente vinculado à religião, tanto que as fronteiras entre o que era considerado crime
e pecado eram muito tênues. Essa forte influência da Igreja e das normativas dos
livros da Bíblia, mormente do livro de Gênesis, consolidaram a ideia da mulher como
uma transgressora e, portanto, firmaram as bases do patriarcado cristão. As diferenças
entre homens e mulheres e também entre as classes, na época, regulavam as relações
sociais, ao contrário do Direito contemporâeno, fundado no princípio da equidade.
Posteriormente, ao longo do desenvolvimento do capitalismo, as “diferenças
de relação de gênero” foram intensificadas. As mulheres foram estrategicamente en-
carregadas do trabalho doméstico, do cuidado da casa, das crianças, dos velhos e
dos doentes, além de “servirem” ao marido. Por seus trabalhos, e como consolo,
recebiam o título de “rainhas do lar”. Neste sentido, é importante recordar que o
trabalho doméstico, na época, era gratuito e considerado não produtivo e, por isso,
destinado às mulheres. A submissão feminina, sob esse enfoque, acabou sendo útil
ao capitalismo para diminuir os custos de produção do trabalho, já que, desse modo,
o salário dos homens não precisava ser tão elevado, pois não era necessário pagar
pelos serviços domésticos.

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A exclusão das mulheres do espaço público existe, em grande parte, em vista


de seu papel na reprodução. A “naturalização” da tarefa feminina na reprodução e na
vida doméstica, bem como a responsabilidade pela alimentação e saúde da família,
acabou aproximando a mulher da natureza e afastando-a da vida pública.5
Mais tarde, porém, no período da industrialização, as mulheres foram “requi-
sitadas” ao mercado de trabalho, mas mantiveram a responsabilidade pelas obriga-
ções domésticas. Isso, além de gerar um conflito de identidade nas mulheres, que ao
mesmo tempo buscavam ser boas profissionais e boas mães, esposas e donas de casa,
gerou uma sobrecarga de trabalho para elas (WOODWARD, 2000, p. 32).
Os dados acima relatados conduzem, pois, a uma conclusão: o reconhecimento
da identidade das mulheres no decorrer da história da humanidade não foi o mesmo
e dependeu, como ainda depende, de vários fatores objetivos e subjetivos. É precisa
e contundente, nesse sentido, a lição de Taylor ao afirmar ser a identidade aquilo que
se é, de onde se provém e, ao mesmo tempo, o ambiente no qual os gostos, opiniões
e aspirações das pessoas fazem sentido, pressupondo, para tanto, uma relação dialó-
gica entre as pessoas que fazem parte deste ambiente (TAYLOR, l994, p. 54).
O reconhecimento da identidade depende de relações dialógicas entre os seres
humanos, construídas com relações afetivas, de trabalho e sociais. Essas relações ditas
dialógicas, especificamente no caso das relações de gênero, infelizmente ainda ocor-
rem de forma desequilibrada, dado o fato de existir uma relação de poder oriunda de
uma construção social e, portanto, “aceita” pelas mulheres, o que acaba por propiciar e
manter sua dominação pelo sexo masculino, pela família, pelo Estado e pela Igreja.
No que se refere, no entanto, à construção de uma identidade feminina e ao seu
reconhecimento, Bourdieu (2007, p. 79) pondera que “a dominação das mulheres
é produto de uma relação histórica de diferenciação”, que encontra fundamento no
masculino e não no feminino. Caberia às mulheres, então, a autoria do feminino, que

5
Embora, na atualidade, as mulheres estejam reconquistando espaços públicos, o que se percebe é que
as obrigações tidas como próprias do sexo feminino foram mantidas, o que acaba tendo um custo mui-
to elevado às mulheres, ou seja, o acúmulo de trabalho e responsabilidades, pois, além das tarefas da
esfera pública, elas mantêm todas as obrigações domésticas. No decorrer da história da humanidade,
as mulheres têm desenvolvido uma relação diferenciada com a natureza em comparação aos homens e
apresentado uma predisposição a proteger o meio ambiente. Tudo isso tem uma explicação. Uma das
primeiras representações divinas criadas pelos seres humanos foi a figura da “Deusa”, que representa-
va a “Mãe Terra”. Também as religiões pagãs antigas, como as dos vikings e celtas cultuavam deusas,
concedendo um destaque especial para as mulheres, pois estas tinham uma proximidade muito grande
com a “Mãe Terra”, possuindo, ambas, o poder da fertilidade, da criação e da vida. Também às mu-
lheres coube a tarefa do cuidado com a alimentação e a saúde das pessoas. Assim, elas desenvolveram
uma proximidade muito grande com a preservação da vida humana e de seu habitat.

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“se impõe quando elas não se reconhecem mais em imagens, vivências e represen-
tações que evocam o ‘eterno feminino’ dos poetas, quando aceitam a travessia da
ambiguidade como preço de experiências desejadas e temidas e se dispõem a encarar
o vazio como ponto de partida” (OLIVEIRA, 1993, p. 12).
Para Simone de Beauvoir, a construção da identidade ocorre a partir de posi-
ções binárias, pois “é por meio desses dualismos que as mulheres são construídas
como as outras, de forma que as mulheres são apenas aquilo que os homens não são”
(BEAUVOIR apud WOODWARD, 2000, p. 52).
Já para Silva, tanto a identidade como a diferença são resultado das relações
sociais e estão sujeitas a relações de poder entre os sexos, sendo estas impostas e
disputadas (SILVA, 2000, p. 81). Considerando tais aspectos, o autor refere que

A afirmação da identidade e a enunciação da diferença traduzem o dese-


jo dos diferentes grupos sociais, assimetricamente situados, de garantir
o acesso privilegiado aos bens sociais. A identidade e a diferença estão,
pois, em estreita conexão com relações de poder. O poder de definir a
identidade e de marcar a diferença não pode ser separado das relações
mais amplas de poder. A identidade e a diferença não são, nunca, ino-
centes. (SILVA, 2000, p. 81).

Tanto a construção quanto o reconhecimento da identidade feminina continuam


sendo, portanto, uma tarefa árdua, em razão da própria dificuldade em se negar ou
romper com uma identidade milenar atribuída ao feminino pelos homens, bem como
em virtude de as mulheres terem de buscar a construção desse novo “feminino” em
um contexto em que elas mesmas, em nome da pretendida igualdade entre os sexos,
acabaram por assumir uma dupla identidade: trabalhar como homens e continuar
sendo mulheres.
A luta das mulheres por sua identidade deve passar, portanto, pela superação de
qualquer forma de relação de poder ou de manutenção de poder que tenha se instau-
rado na sociedade. No que se refere a essa existente relação de poder e a uma suposta
construção de uma identidade feminina, deve-se tomar cuidado para não se chegar
a outro extremo, uma vez que, como refere Laclau (apud HALL, 2000, p. 110), “a
constituição de uma identidade social é um ato de poder”, pois sempre exclui algo
ou alguém e acaba estabelecendo hierarquia entre os dois polos de poder da relação,
gerando a exclusão de um deles e sua consequente submissão, o que, como mencio-
nado, tem de ser superado.
Com relação à política do reconhecimento das mulheres no mundo moderno,
Wolf (1994, ps. 96-98) adota outro posicionamento ao afirmar que, no caso das mu-
lheres, o que existe não é uma falta de reconhecimento de identidade, mas, sim,

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um reconhecimento equivocado. Normalmente, as culturas minoritárias que buscam


reconhecimento o fazem diante da ameaça de uma possível aniquilação desta cul-
tura. No caso das mulheres, é possível afirmar que elas já possuem sua identidade
reconhecida: a da opressão, da exploração e da submissão. O que buscam, no entan-
to, é a desconstrução dessa identidade e o reconhecimento respeitoso de uma nova
identidade que não seja excludente e subjugada, mas parceira e fundada em relações
entre semelhantes, respeitadas suas diferenças.6 Para isso, devem conquistar a efeti-
va proteção de seus direitos formalmente declarados e torná-los realidade –mais do
que isso, realidade para todas.

A resistência das mulheres por meio do movimento feminista

Para a superação da dominação, como marca do exercício do poder masculi-


no sobre o feminino, é imprescindível a participação de toda a sociedade e de suas
instituições para uma mudança de paradigmas. O Direito também tem um papel de
suma importância na alteração dessa situação e no combate à opressão vivenciada
pelas mulheres no seio de uma sociedade que pretende ser democrática, pois tem por
missão regular as relações sociais e amenizar os conflitos.
Ao se tratar desse aspecto, é oportuno recordar que as mulheres representam
mais de 51% dos seres humanos que habitam o Planeta, embora, diante da relação de
gênero construída ao longo dos séculos, se encontrem ainda em estado de submissão
diante de uma minoria masculina, inclusive nas relações de trabalho. Não são raras
as vezes em que as mulheres são consideradas dignas de menos direitos do que os
homens, embora vivam juntamente com eles sob o manto do mesmo estado demo-
crático de direito.
Não é necessário fazer maiores elucubrações a respeito, pois é evidente que,
em muitos momentos da evolução do Estado para um estado democrático de direi-
to, as mulheres não foram privilegiadas com a ampliação de direitos,7 isto para não
mencionar a violência e subjugação que vivenciaram e ainda vivenciam caladas no
recinto de seus próprios lares.
Não se sabe ao certo em que momento histórico da sociedade mundial a margina-
lização da mulher ocorreu, assim como sua exclusão da categoria de indivíduo, em que
pesem os diversos estudos realizados a respeito. Ocorre, no entanto, que as mulheres

constituem um caso especial entre os desfavorecidos pela cidadania,


6
Os movimentos de mulheres e movimentos feministas contribuem muito nesse sentido. Vale lembrar
que a resistência das mulheres perpassou culturas e segue forte nos dias de hoje.
7
Este fato pode ser evidenciado pela conquista do sufrágio, no ano de 1932, muitas décadas após sua
conferência aos homens (PINSKY; PINSKY, PINSKY, 2008, p. 265).

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pois não colhem na mesma medida que os homens do povo os avanços


na legislação, sendo que, algumas vezes, esses próprios avanços signi-
ficaram para elas discriminações ainda mais evidentes. […] Os novos
Códigos de lei nacionais regulamentaram os papéis sociais e as relações
entre os sexos de maneira, geralmente, desfavorável às mulheres, consi-
derando a submissão e a dependência femininas como dados naturais e
formalizando atitudes repressivas com relação às mulheres. (PINSKY,
in: PINSKY, PINSKY, 2008, p. 272).

Os movimentos feministas e os movimentos em prol dos direitos humanos que


surgiram no século XX, aliados aos avanços tecnológicos e científicos, ao crescimen-
to do mercado de consumo e à inserção da mulher no mercado de trabalho, foram
alguns dos fatores que acabaram ensejando a emancipação feminina. Esta, por sua
vez, implicou a liberdade feminina no que se refere ao controle da reprodução com o
surgimento e utilização dos métodos contraceptivos. A partir de então, alguns direi-
tos foram sendo gradativamente conquistados, como é o caso de votar e ser votada,
de estudar, de trabalhar, de participar das decisões familiares, como será apresentado
a seguir, numa breve retomada histórica do movimento feminista de resistência.
Em se tratando de relações de poder, não se pode deixar de mencionar que o
movimento feminista e o de mulheres contribuíram para uma mudança no pensa-
mento político e, portanto, no poder espacial, seja nas relações públicas como nas
privadas. O movimento feminista constituiu-se como um movimento humanizador
que, historicamente, tem sido muitas vezes ignorado e assume um caráter plural e
heterogêneo desde seu surgimento.

Embora também omitido dos livros de história padrão, o trabalho des-


conhecido ou ignorado de centenas de feministas do século XIX […]
melhorou óbvia e expressivamente a condição da metade feminina da
humanidade. No âmbito doméstico, estas “mães” do moderno feminis-
mo liberaram as mulheres das leis que permitiam o espancamento das
esposas. Do ponto de vista econômico, ajudaram a libertar as mulheres
das leis que davam aos maridos o controle sobre a propriedade das es-
posas. Também tornaram acessíveis às mulheres profissões como direi-
to e medicina, e deram a elas acesso à educação superior, enriquecendo
em muito a sua vida e a de suas famílias. (EISLER, 2007, p. 218).

Não se pode olvidar que, antes do movimento organizado em prol dos direitos
das mulheres, sempre houve movimentos de resistência contra sua opressão e sub-
missão. Nessa linha de pensamento, Eisler (2007, p. 219) relembra que “na Grécia
clássica, e depois nos tempos de Jesus, as mulheres, de fato, tiveram grande impacto

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na melhoria da sociedade”. O feminismo, como movimento organizado na moder-


nidade, surgiu após a Revolução Francesa, em reação à servidão ainda vivenciada
pelas mulheres daquele tempo.

A partir do século XVII, passaram a lutar pela cidadania e a demandar


direitos políticos e sociais como educação e controle de propriedade,
apostando também […] no poder do Estado democrático como agente
da melhoria da vida das mulheres, capaz de, com leis, reformar as re-
lações familiares e ampliar a participação das mulheres na sociedade.
(PINSKY, in: PYNSKY; PYNSKY, 2008 p. 286).

Nos Estados Unidos da América, desde a década de 1830, as mulheres resis-


tiram à dominação masculina. Inicialmente, atuaram nos movimentos da abolição
da escravatura, o que permitiu que percebessem melhor sua própria escravidão.
Nessa mesma década, surgiu o movimento feminista na Inglaterra, com importan-
te repercussão em toda a Europa. Nesse contexto, lutava-se pelo fim da legislação
que oprimia as mulheres, pelo direito ao divórcio, pelo direito de a mulher casada
controlar sua renda, o direito à ampliação da educação, bem como contra a violência
masculina e a participação das mulheres na política. Aliado à bandeira do sufrágio
feminino inglês encontrava-se o parlamentar e economista Stuart Mill, autor da obra
A sujeição das mulheres, na qual apresenta vários argumentos contundentes e até
biológicos para sustentar o direito ao voto feminino8 (MILL, 2006). As mulheres
alemãs tiveram grande importância no movimento feminista, que teve sua maior
expressão durante as revoluções de 1848. Buscavam desde o direito ao trabalho até
o direito ao sufrágio e à manifestação pública (PINSKY, in: PYNSKY; PYNSKY,
2008, ps. 288-289).
Importante também se faz salientar, em especial, o movimento feminista da
Rússia. Toledo, na apresentação da obra de Alexandra Kollontai, denominada Auto-
biografia de uma mulher comunista sexualmente emancipada, enfatiza que “a revo-
lução socialista na Rússia significou uma revolução também na situação da mulher.
Pela primeira vez, o país toma medidas concretas para alcançar a igualdade entre
homens e mulheres”.9 Nesse contexto revolucionário, deve-se ter presente que a
8
O direito ao sufrágio consistiu em um movimento bastante longo, iniciado no século XVIII e so-
mente alcançado no século XX. Assim, o sufrágio feminino foi conquistado na URSS, em 1917, na
Alemanha, em 1918, nos Estados Unidos da América, em 1919, na Inglaterra, em 1928, no Brasil,
em 1932 (Código Eleitoral Provisório) e em 1934 foi constitucionalizado, na França, em 1944, na
Itália e Japão, em 1945, na Suíça, em 1973 (MONTEIRO, 2009, p. 43).
9
Com a implantação do governo socialista na Rússia, as mulheres tiveram avanços no seu reconheci-
mento como cidadãs. Porém, com o governo de Stalin, a situação das mulheres piorou e o patriarca-
do foi restabelecido por meio do Código de Famílias (GOLDENBERG; TOSCANO, 1992, p. 22)

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Revolução Russa foi deflagrada pelas mulheres operárias, no Dia Internacional da


Mulher, oportunidade em que foram realizadas

manifestações massivas de mulheres em Petrogrado contra a miséria


provocada pela participação da Rússia na I Guerra Mundial (1914-
1918). A guerra havia empurrado a mulher russa para o mercado de
trabalho. Em 1917, um terço dos operários industriais de Petrogrado
era composto por mulheres. Nas áreas de produção têxtil da região in-
dustrial do centro, 50% ou mais da força de trabalho estava composta
por mulheres. […] com a revolução socialista elas conquistaram muito
mais que direitos civis. Pela primeira vez na História, um país legislou
que o salário feminino seria igual ao masculino pelo mesmo trabalho.
(TOLEDO, in: KOLLONTAI, 2007, p. 16).

A Primeira Guerra Mundial foi um marco importante para o feminismo europeu.


Ao mesmo tempo em que interrompeu as lutas das organizações feministas, requisitou
as mulheres como força de trabalho para substituir os homens que estavam na guerra,
forçando-as a deixar os lares. Terminada a guerra, a situação “não voltou ao normal”,
como muitos imaginavam, sendo que o mesmo ocorreu ao final da Segunda Guerra
Mundial (PINSKY, in PYNKY; PYNSKY, 2008, p. 295). A experiência de conduzirem
seus lares e garantirem o sustento da família representou um grande avanço em suas
vidas e na luta do movimento feminista por reconhecimento na sociedade e no Estado,
bem como na conquista de direitos sociais, políticos, sexuais e reprodutivos.
Na América Latina, o feminismo nasceu nos anos 1970, em meio à repressão
e ao autoritarismo dos regimes militares. Surgiu como corolário da resistência das
mulheres ao referido regime ditatorial e, também, como consequência do processo
de modernização, em decorrência do qual houve a incorporação das mulheres no
mercado de trabalho e a ampliação do sistema educacional.
A consciência feminista latino-americana teria, então, sido alimentada por di-
versas tensões e contradições experimentadas pelas mulheres atuantes nos movi-
mentos guerrilheiros ou nas organizações políticas, tanto que muitas foram obriga-
das a se exilarem, em especial aquelas que participaram do movimento estudantil,
das organizações acadêmicas politizadas e dos partidos políticos progressistas, como
dito alhures com relação às brasileiras. As feministas latino-americanas romperam
com as organizações de esquerda em termos organizativos, mas mantiveram seus
vínculos ideológicos e seu compromisso com uma reforma social, dentro da qual
se realizavam os direitos da mulher e formas organizativas que possibilitavam o
envolvimento de setores populares (MOLYNEUX, 2003, p. 269), o que, inclusive,
diferenciou o feminismo latino-americano do europeu.

Cadernos de Direito, Piracicaba, v. 10(19): 91-115, jul.-dez. 2010 101


Angelita Maria Maders

Sendo assim, o movimento feminista trouxe um novo significado ao poder polí-


tico e à forma de entendê-lo, buscando incluir as mulheres na vida da sociedade. Dis-
tingue-se de outros movimentos de mulheres por defender seus interesses de gênero,
questionando os sistemas culturais e políticos construídos a partir dos papéis de gênero
atribuídos a elas historicamente, assim como por sua autonomia em relação a outros
movimentos, organizações e o Estado e pelo princípio organizativo da inexistência de
esferas de decisões hierarquizadas (horizontalidade) (ÁLVAREZ, 1990, p. 23).
Como já mencionado, os movimentos feministas assumem correntes diversas,
porém sempre foram unânimes quanto à necessidade de acabar com a opressão e
submissão das mulheres, ditas naturais, “na crença de que a ampliação dos papéis e
opção para as mulheres criaria um mundo melhor para todos” (PINSKY, in: PINSKY;
PINSKY, 2008, p. 286). Diante de toda essa movimentação das mulheres na busca
por direitos de cidadania e de reconhecimento houve uma grande resistência contra
os movimentos feministas do séc. XIX, o que acabou por gerar um aumento das
lesões corporais graves contra mulheres, como resposta à sua rebeldia, (EISLER,
2007, p. 221) o que pode ainda ser evidenciado na atualidade, quando as mulheres se
reúnem em prol de direitos políticos, sexuais e sociais.
Ocorre, no entanto, que, não obstante os progressos alcançados, muitas amarras
jurídicas e sociais ainda persistem e precisam ser derrubadas para que se alcance
uma equidade nas relações de gênero (GOMES, 2003, p. 55).

Os movimentos feminista e de mulheres na construção da equidade


de gênero no direito brasileiro

Embora o movimento feminista tenha contribuído para a melhoria de vida das


mulheres, elas ainda padecem sob o patriarcado que domina o ordenamento jurídico
dos países, já que “a diferenciação de situações de vida e experiências peculiares ao gê-
nero não recebe consideração adequada, nem jurídica nem informalmente” (HABER-
MAS, 2007, p. 246). Não se pode olvidar, também, que a contribuição prestada pelas
mulheres para a cultura de seus países e regiões não recebe o devido reconhecimento,
seja por parte da comunidade, seja por parte de sua própria família, onde sua depen-
dência ou seu papel de mera coadjuvante ainda se verifica diariamente. Sendo assim,
a intenção é lançar um breve olhar sobre os movimentos feministas e de mulheres no
Brasil, avaliando as conquistas alcançadas e sua contribuição para a cidadania.
A participação das mulheres brasileiras na vida pública é recente, embora venha
avançando gradativamente. Apenas por volta de 1870, elas tiveram o primeiro contato
com os problemas sociais, quando algumas participaram do movimento pela abolição
da escravatura. Até então elas eram criadas e educadas no seio de suas famílias tão so-

102 Cadernos de Direito, Piracicaba, v. 10(19): 91-115, jul.-dez. 2010


A construção da equidade nas relações de gênero e o movimento feminista no Brasil: avanços e desafios

mente para o mundo privado, com o fito de serem boas esposas e mães exemplares. As-
sim, foi no contexto da abolição da escravatura brasileira que as mulheres começaram
a perceber que também vivenciavam situação análoga, pois estavam presas às amarras
que lhes eram impostas pelos laços familiares e sociais. Diante de tal constatação, ini-
ciaram um lento processo de busca pela emancipação feminina.
A primeira fase do feminismo no Brasil ocorreu na década de 1920, sob lide-
rança de Bertha Lutz, que criou a Federação Brasileira para o Progresso Feminino,
tendo como bandeira os direitos políticos, nesse caso, o direito ao sufrágio para as
mulheres.10 Mas é preciso mencionar que já em 1910 havia sido criado o Partido
Republicano Feminino, cujo objetivo era conquistar o direito ao sufrágio e a eman-
cipação das mulheres. Como estratégia, as mulheres participavam de eventos de vi-
sibilidade para a imprensa.11 (PINTO, 2003, ps. 18-19).
No Brasil, o direito ao sufrágio feminino foi alcançado somente em 1934, quan-
do foi constitucionalizado. Após essa conquista, os movimentos sufragistas acaba-
ram se desfazendo e o próprio movimento feminista brasileiro se enfraqueceu.
Nessa breve retomada do movimento feminista brasileiro, não se pode olvidar
da contribuição do feminismo anarquista no início do século XX. Essas mulheres
traziam ideais anarquistas de seus países, em especial da Itália, e foram trabalhar em
fábricas de São Paulo e Rio de Janeiro, embora não se declarassem feministas. Mui-
tas tinham, inclusive, resistência ao feminismo, não se preocupavam com os direitos
políticos, mas denunciavam o poder dos homens sobre as mulheres e batalhavam por
melhores condições de trabalho específicas para elas (PINTO, 2003, p. 33), tendo
alcançado muitos direitos trabalhistas.

10
Embora não de forma organizada, como no movimento feminista, no Brasil “no séc. XIX apa-
receram mulheres que lutaram pelo direito ao voto, porém de forma individual, solicitando seu
alistamento como eleitoras e candidatas. Em 1881, a dentista Isabel de Sousa Matos requereu, com
base em uma lei que facultava o voto aos portadores de títulos científicos, o direito de se alistar. Foi
vitoriosa em sua cidade natal, mas teve o direito suspenso quando tentou se alistar no Rio de Janeiro
em 1890” (PINTO, 2003, p. 15).
11
Um dos mecanismos importantes da difusão das ideias feministas foi a criação de um jornalismo fe-
minista, por muitos historiadores denominado “imprensa feminista”, que teve como escopo divulgar
as causas das mulheres. No Brasil, a primeira mulher a fundar um jornal com essas características
foi Francisca Senhorinha Motta Diniz, que fundou, em Minas Gerais, no ano de 1873, o jornal deno-
minado O sexo feminino. Depois disso, muitos outros jornais, revistas e periódicos cumpriram essa
função (PINTO, 2003, p. 28 ss). Porém, junto a essas revistas, existiram as revistas femininas que
cumpriam um papel oposto: manter e legitimar as relações patriarcais existentes. Nesse sentido, Car-
la Beozzo Bassanezi realizou um trabalho interessante sobre revistas femininas brasileiras em sua
obra Virando as páginas, revendo as mulheres: revistas femininas e relações homem-mulher 1945-
1964, buscando demonstrar como as mulheres se viam e como eram vistas no período mencionado
(BASSANEZI, 1996).

Cadernos de Direito, Piracicaba, v. 10(19): 91-115, jul.-dez. 2010 103


Angelita Maria Maders

Por volta de 1963 fortificou-se a participação das mulheres nos sindicatos, onde
se uniam para buscar melhores condições de trabalho, o fim das revistas íntimas no
ambiente de trabalho e dos testes de gravidez, a igualdade salarial para aquelas que
ocupassem o mesmo cargo que os homens, dentre outras reivindicações.
Um fato que marcou a ascensão ou retomada do movimento feminista brasilei-
ro foi a ditadura militar de 1964, quando um significativo contingente de mulheres
juntou-se aos homens para protestar contra a falta de democracia. O exílio dessas
mulheres, em sua maioria na Europa, colocou-as em contato com os movimentos fe-
ministas de lá. Ao retornarem ao Brasil, trouxeram novas ideias e avaliações sobre o
movimento no País. Isso contribuiu para uma visão mais clara e para a elaboração de
estratégias para a construção do movimento feminista brasileiro. Aqui encontraram
muitos movimentos de mulheres de baixa renda, a maioria ligada às pastorais sociais
das igrejas. Unidas, elas buscavam direitos básicos, como saúde, educação, alimen-
tação, moradia e saneamento. O grande desafio foi juntar o movimento feminista aos
diversos movimentos de mulheres, em especial porque estes últimos não tinham um
debate acerca das relações de gênero; ao contrário, eram contra muitas das bandeiras
do movimento feminista, como o direito de as mulheres decidirem sobre seus cor-
pos. Mesmo assim, houve uma importante aliança entre o movimento feminista e os
grupos populares de mulheres vinculados às associações de moradores e aos clubes
de mães, que passaram a trabalhar temas ligados às especificidades do gênero, tais
como creches e trabalho doméstico, assim difundindo o movimento feminista em
diversas cidades brasileiras. Novas bandeiras foram assumidas, como a dos direitos
reprodutivos, do combate à violência contra a mulher,12 da sexualidade, dentre ou-
tros, tendo-se conquistado muitos direitos cidadãos. Importante se faz salientar que
outros movimentos se juntaram a este, como os de gays, lésbicas e negros.
No caso brasileiro, na década de 1980, o interesse político-partidário parece ter
recaído sobre o movimento feminista. Os partidos políticos passaram a incorporar as
demandas das mulheres a seus programas e plataformas eleitorais, criando, inclusive,
comitês femininos. A possibilidade de atuação do feminismo no âmbito institucional
do Estado representava, para muitas mulheres, uma brecha na luta pela autonomia
do movimento feminista, pois elas não podiam deixar de reconhecer a influência do
Estado sobre a sociedade, seja por meio da força coercitiva, seja por meio de leis, de
políticas sociais e econômicas, de ações de bem-estar, de mecanismos reguladores
da cultura e comunicação públicas. Assim, elas compreenderam que o Estado seria
um importante aliado na transformação da condição feminina (MOLYNEUX, 2003,
p. 68). A par disso, elas conheciam os limites da política feminista no sentido da
Em 1985 foram criadas as Delegacias da Mulher, que muito têm contribuído para o combate à vio-
12

lência contra as mulheres.

104 Cadernos de Direito, Piracicaba, v. 10(19): 91-115, jul.-dez. 2010


A construção da equidade nas relações de gênero e o movimento feminista no Brasil: avanços e desafios

mudança de mentalidades sem acesso a mecanismos de comunicação, haja vista a


resistência oriunda de um aparelho patriarcal como o Estado. Caberia ao feminismo,
então, influenciar esse aparelho para viabilizar a definição de metas sociais e o de-
senvolvimento de políticas sociais, além de mudanças legislativas que garantissem
a equidade de gênero.
No contexto jurídico-constitucional, pode-se afirmar que as constituições brasi-
leiras, a partir da Constituição de 1934, também se reportaram, em diferentes graus,
à busca pela não discriminação das mulheres. Foi a Constituição Federal de 1988,
porém, que apresentou maiores avanços na seara das relações de gênero,13 pois fun-
dada no princípio da equidade.
Por ocasião da elaboração da Constituição Brasileira de 1988 houve grande ar-
ticulação entre as feministas e os movimentos de mulheres para que ela pudesse con-
templar a equidade entre os gêneros, tanto que foram criados direitos especiais para
as mulheres, o que em pouco tempo garantiu o reconhecimento do trabalho do movi-
mento feminista. Assim, a Constituição de 1988 igualou os direitos civis das mulheres
aos dos homens, tanto na vida pública quanto na privada, além de salientar, no rol dos
direitos fundamentais individuais, a igualdade entre os sexos: “Art. 5º, I – homens e
mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”.
Diz-se, pois, que a Constituição Federal de 1988 representou um marco na
conquista da igualdade de direitos entre os sexos e na positivação de direitos das mu-
lheres, que ganharam status de sujeito de direitos. Ela instaurou um novo paradigma
cultural no País, fundado na diversidade humana e na paridade dos diferentes. Nesse
contexto de conquistas constitucionais, não se pode olvidar o reconhecimento das
mulheres agricultoras como trabalhadoras e, portanto, portadoras de direitos traba-
lhistas e previdenciários, o direito à igualdade nas relações familiares, entre outros.
A partir de então, muitos avanços puderam ser constatados no que se refere à
situação das mulheres no mundo do Direito, como é o caso da garantia constitucional
da igualdade material, que repercutiu na legislação infraconstitucional alterando dis-
positivos que contradiziam esse status. Era o caso do Código Civil de 1916, que des-
crevia uma condição subalterna da mulher na relação conjugal, bem como o fato de
que a chefia da sociedade conjugal e a administração dos bens do casal pertenciam
ao marido, sendo ele o provedor do lar e, portanto, o detentor do poder sobre todos
os membros da família.14 Embora esta condição jurídica das mulheres tenha sido al-
13
As conquistas alcançadas pelas mulheres na Constituição Federal de 1988 foram resultado de uma
grande mobilização nacional dos Movimentos Feministas e Movimentos de Mulheres que pressio-
naram a Assembleia Nacional Constituinte a incluir direitos destinados especificamente às mulheres
no texto constitucional.
14
O Código Civil de 2002 alterou esta previsão, prescrevendo o que segue:
“Artigo 1.511 – O casamento estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos
e deveres dos cônjuges.

Cadernos de Direito, Piracicaba, v. 10(19): 91-115, jul.-dez. 2010 105


Angelita Maria Maders

terada com o novo Código Civil de 2002,15 a subjetividade desta ideologia perdura,
legitimando a autoridade do homem na tomada de decisões, muitas vezes, arbitrá-
rias, dentro da família. Como se não bastasse, o Código Civil Brasileiro, que vigorou
até poucos anos atrás, previa a anulação do casamento quando a mulher tivesse sido
“deflorada” antes do casamento,16 colocando-a na condição de simples mercadoria
que, depois de “usada”, perdia seu valor e poderia, portanto, ser “devolvida” a quem
havia vendido o bem “avariado”. Nesse contexto lastimável, não se pode olvidar que
o Código Penal brasileiro previa, na seara dos crimes contra os costumes (delitos
sexuais), a extinção de punibilidade em virtude do casamento do agente agressor
com a vítima ou do casamento da vítima com terceiro, afrontando, dessa forma, o
princípio da dignidade da pessoa humana em favor da honra da família patriarcal, o
que, felizmente, foi modificado pelo legislador.
Além da legislação, algumas decisões judiciais brasileiras também envolvem
um caráter sexista. No olhar da jurista Maria Berenice Dias,
Dificilmente se identifica em uma decisão judicial uma preocupação
com o contexto cultural, uma tentativa de visualizar as características
individuais dos envolvidos. O modelo é tão marcadamente masculino,
as sentenças são tão encharcadas de ranço discriminatório, que decisões
conservadoras e sexistas acabam sendo reproduzidas sem que se tome
consciência da perpetuação de injustiças. (DIAS, 2004, p. 9).

Mesmo no século XXI, o Judiciário brasileiro ainda realiza interpretações car-


regadas de preconceito e resistência em prejuízo das mulheres, ao invés de propugnar
seu reconhecimento como cidadãs com plenos direitos. Isso ocorre quando da pro-
latação de sentenças na seara da família, para definir questões de separação, guarda
de filhos, e também na criminal, quando se está a tratar da violência conjugal e dos
crimes sexuais, em que o preconceito torna-se ainda mais visível quando as decisões
são baseadas em definições como “mulher honesta”, “boa mãe” e “boa conduta”
(PANDJIARJIAN, 2002). Além disso, até pouco tempo era possível encontrar casos
de assassinos de mulheres absolvidos em nome da “legítima defesa da honra”.

Artigo 1.567 – A direção da sociedade conjugal será exercida, em colaboração, pelo marido e pela
mulher, sempre no interesse do casal e dos filhos.
Parágrafo único – havendo divergências, qualquer dos cônjuges poderá recorrer ao juiz, que decidirá
tendo em consideração aqueles interesses.”
15
Este cenário jurídico foi alterado antes do novo Código Civil de 2002, por meio da Constituição Fe-
deral de 1988, que explicitou que homens e mulheres têm os mesmos direitos na sociedade conjugal,
alterando o próprio conceito de família: “Art. 226, § 5º - Os direitos e deveres referentes à sociedade
conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher.”
16
“Artigo 219 - Considera-se erro essencial sob a pessoa do outro cônjuge:
IV – o defloramento da mulher ignorado pelo marido” (Código Civil de 1.916).

106 Cadernos de Direito, Piracicaba, v. 10(19): 91-115, jul.-dez. 2010


A construção da equidade nas relações de gênero e o movimento feminista no Brasil: avanços e desafios

Para se tratar, então, dos avanços ocorridos na sociedade brasileira, especifica-


mente na área juridica, não se pode deixar de mencionar o que refere Sabadell, no
sentido de que a incidência de gênero no Direito é identificada já na produção das
normas, na doutrina e na aplicação do Direito, mais precisamente na jurisprudência
(2010, p. 282), sempre voltada à prevalência do masculino.
As leis, por serem, em regra, produção masculina, carregam o caráter patriarcal
que impera na sociedade. Isso permanece mesmo com a ascensão de algumas mulhe-
res ao Legislativo e, portanto, à função legislativa, já que a maioria dos deputados e
senadores ainda é masculina. Não se pode deixar de mencionar, nesse aspecto, que
nas últimas duas décadas foram elaboradas leis mais consentâneas com os dispositi-
vos constitucionais quanto à proibição de discriminações, mas ainda existem outras
em vigor que possuem um cunho sexista e mesmo assim são interpretadas como
constitucionais, já que os prórios intérpretes e aplicadores da lei também estão forte-
mente vinculados à cultura patriarcal vigente.
Embora o Estado, por meio de seus agentes, tenha de proteger os mais frágeis,
ao fazer uma análise de gênero no sitema de justiça brasileiro, Sabadell ainda identi-
fica discriminação contra a mulher e a reprodução da violência patriarcal por meio da
descaracterização da infância, tratando as crianças vítimas de estrupro como moci-
nhas, jovens ou mulheres sexualmente experientes; da descaracterização do estupro
pelo suposto consenso da vítima ou tratando a conduta como mera ação insensata do
agressor; e da reprodução do discurso patriarcal nas decisões dos tribunais superio-
res (2010, p. 286-287).
Diante de atos discriminatórios cometidos contra qualquer pessoa, o Poder Ju-
diciário não deveria permanecer inerte, pois se acredita em seu papel de instrumento
de transformação social. Em que pese tal circunstância, as mulheres continuam sen-
do vítimas, inclusive nos tribunais brasileiros, “já que os processos sofrem a influên-
cia de normas sociais permeadas de preconceito de gênero” (DIAS, 2004, p. 45). No
caso dos delitos sexuais com vítimas do sexo feminino, há uma maior necessidade de
análise do caso sob a ótica das relações de gênero, mormente dos papéis de gênero
que se verificam no caso concreto, uma vez que a violência não esconde a diferença
e a desigualdade de poder havida nessa relação, muitas vezes de natureza familiar. É
fundamental, portanto, que o Poder Judiciário reconheça que o Direito não é somen-
te masculino;17 que enfrente a realidade sem medo de fazer justiça, uma vez que cabe
à jurisprudência inovar diante de novas situações (DIAS, 2004, p. 25) e da própria
evolução do conceito de gênero.

A jurista Francis Olsen formulou uma tese de que o Direito tem sexo e que esse é o masculino (OL-
17

SEN, apud SABADELL, 2010, p. 269).

Cadernos de Direito, Piracicaba, v. 10(19): 91-115, jul.-dez. 2010 107


Angelita Maria Maders

O mesmo papel cabe aos Poderes Legislativo e Executivo, a fim de viabilizar


o estado democrático de direito. Neste sentido, o Brasil, a exemplo de outros países,
tem avançado, pois cedeu à entrada das mulheres no espaço público e no mercado
de trabalho, bem como à política das organizações internacionais. Em virtude disso,
efetuou reformas legislativas em diferentes áreas – constitucional, de direito de fa-
mília, do trabalho, penal –, a fim de estabelecer uma equidade de gênero. Fez isso,
inclusive, por meio de sua legislação infraconstitucional, como é o caso da Lei Maria
da Penha e de políticas públicas voltadas ao reconhecimento da identidade da mulher
e da equidade nas relações de gênero.
No que tange à Lei Maria da Penha, tem-se que com ela se pretende não somente
coibir ou combater a violência doméstica e familiar praticada contra a mulher, mas
patrocinar direitos fundamentais, mormente no que se refere à dignidade da vítima
e às mais diversas emanações da individualidade feminina. Para tanto, ela apresenta,
além de medidas preventivas, também medidas de proteção, que consistem no afas-
tamento do agressor do lar, na fixação de alimentos, na proibição de contato com a
ofendida, dentre outras (arts. 22 a 24), além de dispor sobre a criação de juizados de
violência contra a mulher. Desse modo, percebe-se que a Lei n. 11.340/2006 também
apresenta aspectos processuais, já que, em seu art. 14, dispõe que poderão ser criados
juizados especiais de violência doméstica e familiar contra a mulher, os quais teriam
competência criminal e cível e poderiam funcionar no horário noturno, como forma
de facilitação do acesso das vítimas à Justiça. Outrossim, ela admite a necessidade de
um trabalho inter, trans e multidisciplinar para alcançar seus objetivos e reconhece a
necessidade de uma maior conscientização da sociedade acerca da necessidade de lutar
contra as desigualdades e qualquer forma de dominação, o que somente será possível
se os intérpretes da lei também tiverem sensibilidade para a questão de gênero.
Na doutrina, porém, discute-se a inovação trazida pela referida lei. Há os que
entendem que a lei não inovou, pois teria apenas conferido nova roupagem ao que
já prescrevia o Código Penal, mas agravou a pena aplicada pelos delitos praticados
com violência contra a mulher nas relações domésticas. Outros, todavia, entendem
adequada a iniciativa do legislador, o que, no entanto, não impediu que a Lei Maria
da Penha fosse recebida com desconfiança, assim como são tratadas as vítimas que
ela pretende proteger, tanto que se questiona sua constitucionalidade ante o princípio
constitucional da igualdade.
Nessa tangente, segundo Sabadell, os que se posicionam contrários à referida
lei esquecem a problemática do gênero. Desse modo,

O inaceitável é, como ocorre hoje, dar continuidade à discriminação


das mulheres em relação à violência doméstica por tratar-se de delito

108 Cadernos de Direito, Piracicaba, v. 10(19): 91-115, jul.-dez. 2010


A construção da equidade nas relações de gênero e o movimento feminista no Brasil: avanços e desafios

cometido por homens e, ademais, no âmbito das relações privadas, que,


de acordo com a ideologia do patriarcado, devem permanecer fora da
intervenção estatal. (SABADELL, 2005, ps. 440-441).

O que se constata é que o ordenamento jurídico brasileiro tradicional não rela-


cional dos direitos obscurece as relações sociais e peca por não vincular o Direito aos
processos histórico-sociais, o que, por sua vez, enseja decisões judiciais com pouca
eficácia no mundo dos fatos. O Direito, então, deixa de ser um instrumento, um dis-
curso de promoção dos direitos humanos, para ser um mecanismo de perpetuação
de um positivismo formalista que não é capaz de atender às demandas jurídicas. No
caso dos processos que envolvem crimes praticados contra mulheres, o que se tem
verificado é que,

A postura da Justiça não se distancia dos condicionamentos sociais. O


agressor que é um bom pai de família raramente é punido. A dificulda-
de das mulheres em denunciar os crimes dos quais são vítimas é vista
como masoquismo, chegando a afirmar que elas gostam de apanhar. De
outro lado, a mulher que exerce sua sexualidade é desdenhosamente
chamada de uma série de adjetivos que nem valem a pena declinar […].
Seu testemunho é desconsiderado, e as agressões que sofre simples-
mente não são reconhecidas como delituosas. (DIAS, 2004, p. 11).

A lógica jurídica, então, ainda parece ser masculina. Por isso ela deve ser ques-
tionada, não com o intuito de substituir uma racionalidade por uma irracionalidade,
mas para evitar reducionismos de situações que são mais complexas do que parecem,
assim como as relações de gênero.
Uma análise mais feminista dos direitos requer uma transformação dessa sua
dimensão androcêntrica individualista para uma perspectiva mais dinâmica, concre-
ta, relacional, que abranja as relações e os conflitos dos(as) oprimidos(as). O que se
espera é uma interpretação dos casos mais voltada para a realidade social e, portanto,
para a proteção efetiva da equidade de gêneros para que não aconteçam fatos como
os noticiados na imprensa eletrônica no mês de agosto de 2011, segundo a qual
28,4% das mulheres assassinadas no País o foram dentro de seus lares. Esse número
torna-se ainda mais significativo se comparado ao número de vítimas masculinas de
assassinatos dentro de casa, que é de 9,7%. Esses índices teriam sido extraídos do
Anuário das Mulheres Brasileiras 2011 e divulgados no País em julho pela Secre-
taria de Políticas para Mulheres do governo federal e pelo Dieese (Departamento
Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos). De acordo com informa-
ções extraídas do referido Anuário, quatro em cada dez mulheres já foram vítimas

Cadernos de Direito, Piracicaba, v. 10(19): 91-115, jul.-dez. 2010 109


Angelita Maria Maders

de violência doméstica.18 Além disso, não se pode deixar de referir os números do


Conselho Nacional de Justiça, que revelam que a Lei Maria da Penha aumentou as
punições em casos de violência doméstica nestes cinco anos. Até hoje, 332.216 pro-
cessos teriam sido distribuídos; 76.743 sentenças foram anunciadas; decretaram-se
1.577 prisões preventivas e realizaram-se 9.715 prisões em flagrante.19
A elaboração da Lei Maria da Penha e a evolução do Direito brasileiro no que
tange à garantia dos direitos das mulheres foram influenciadas pelas legislações in-
ternacionais, em especial as elaboradas pela Organização das Nações Unidas e pela
Organização dos Estados Americanos, que foram recepcionadas e acabaram por en-
sejar mudanças sociais, mesmo que tímidas, o que demonstra que muito ainda pre-
cisa a ser feito, pois a problemática de gênero é uma questão social. Também foram
implementadas algumas ações afirmativas relacionadas à mudança social por meio
do Direito, como forma de compensar a discriminação e o preconceito sofridos pelas
mulheres e tentar produzir uma igualdade na prática. São exemplos dessas ações a
Lei 9.100/95, que estabeleceu que 20% dos candidatos de cada partido nas eleições
municipais deveriam ser do sexo feminino, e a Lei 9.504/97, que fixou essa cota em
30% para todas as eleições.
Apesar disso, não se conseguiu efetivamente a igualdade de gênero, o que,
contudo, não significa que não houve avanços na seara jurídica com relação à ques-
tão de gênero, já que outras mudanças foram verificadas na sociedade brasileira ao
longo dos anos, pois as mulheres começaram a participar mais ativamente da vida
pública, ocupando cargos com alguma vinculação política ou jurídica. Outros cargos
na administração e na organização do Estado brasileiro também são ocupados por
mulheres, porém de forma muito tímida, como é o caso do Executivo, embora hoje
se tenha uma mulher na Presidência da República. Nas carreiras jurídicas, a reali-
dade é variável de acordo com o estado federado de que se está a tratar. No caso do
Rio Grande do Sul, especificamente, as mulheres têm ocupado diversos assentos no
Judiciário, apesar de, no âmbito dos Tribunais Superiores do País, esse número ser
reduzido. Além disso, apenas no ano 2000 uma mulher logrou ser nomeada ministra
do Supremo Tribunal Federal, o que se renovou em 2006.
Vê-se, pois, que apesar da crescente feminilização das carreiras, ainda existem
muitos resquícios patriarcais, a ponto de Sabadell, parafraseando Junqueira, referir
que “parece que as mulheres conquistaram o mundo jurídico, sem mudá-lo, isto é,
sendo obrigadas a adotar padrões de comportamento masculinos” (2010, p. 292).

18
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/956164-28-das-mulheres-assassinadas-no-
pais-morrem-em-casa.shtml. Acesso em: 08 ago. 2011.
19
Disponível em: http://noticias.r7.com/brasil/noticias/lei-maria-da-penha-completa-cinco-anos-em-
vigor-20110922.html. Acesso em: 22 set. 2011.

110 Cadernos de Direito, Piracicaba, v. 10(19): 91-115, jul.-dez. 2010


A construção da equidade nas relações de gênero e o movimento feminista no Brasil: avanços e desafios

Um aumento do número de mulheres em qualquer dos âmbitos de criação e


aplicação do Direito será, certamente, importante para sua transformação e, conse-
quentemente, para a efetivação de uma justiça de gênero, garantindo a todos, sejam
homens ou mulheres, a condição de sujeitos de direitos, pois os homens tendem
a identificar o jurídico como um sistema de direitos e deveres definidos por nor-
mas, enquanto as mulheres adotam atitudes menos dogmáticas e buscam soluções
mais consentâneas com uma concepção de justiça alicerçada nos direitos humanos
(FACIO, 2007, p. 18). Isso, na Idade Média, foi considerado um aspecto negativo,
ensejador de exclusão das mulheres do Direito, mas que no Direito contemporâneo
deve ser reavaliado.
Nesse apanhado histórico percebe-se, resumidamente, que a década de 1990
iniciou-se com pequenos avanços para as mulheres nos organismos de governo, em
virtude do conservadorismo dominante no Estado e do descrédito no movimento
autônomo, que lutava em condições precárias, e diante do desprestígio no âmbito
governamental. Já em 2000, em razão da proximidade das eleições presidenciais, o
feminismo brasileiro passou a articular uma atuação conjunta no sentido de garan-
tir um compromisso com a demanda das mulheres por parte dos candidatos, o que
ganhou corpo por ocasião do II Fórum Social Mundial, realizado em Porto Alegre,
no final de janeiro de 2002, com a adesão de várias organizações e redes feministas,
tendo os movimentos feministas e de mulheres aderido à Marcha Mundial de Mu-
lheres, abrangendo movimentos de mais de 180 países. A partir de então, passaram a
se organizar e a participar de conferências para discussão de metas e programas para
proteção das questões de gênero. O resultado dessas conferências demonstra a força,
a capacidade de mobilização e a articulação de novas alianças em torno de propostas
transformadoras, que devem se estender não somente à condição feminina, mas a
toda a sociedade brasileira.
O movimento feminista continua em plena atividade em busca da garantia da
equidade. A cada vitória, novas demandas e novos enfrentamentos surgem e são le-
vados a efeito. Vê-se, pois, que o feminismo está longe de ser um consenso na socie-
dade brasileira, pois ainda enfrenta resistências culturais e políticas. Touraine (2007)
ressalta a importância do movimento feminista e os avanços alcançados:

O movimento feminista transformou profundamente a condição das


mulheres em diversos países e permanece mobilizando lá onde a do-
minação masculina ainda conserva sua força. É cada vez mais raro
que o reconhecimento de suas conquistas e de suas lutas a favor da
liberdade e da igualdade não seja reconhecido. Entre os cidadãos dos
países ocidentais, somente um pequeno número rejeita as conquistas
e as ideias do feminismo. O sucesso deste é tão completo que muitas

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jovens mulheres consideram evidentes as liberdades que o movimento


lhes permitiu conquistar, e não suportam o espírito “militante”, político
ou sindical, de grupos ou associações feministas que guardaram o es-
pírito e o vocabulário do período de grandes combates. (TOURAINE,
2007, p. 19).

A lógica jurídica também parece continuar masculina. Por isso, deve ser ques-
tionada, não com o intuito de substituir uma racionalidade por uma irracionalidade,
mas para evitar reducionismos de situações que são mais complexas do que parecem,
como a das relações de gênero. Por isso, uma análise mais feminista dos direitos re-
quer uma transformação dessa sua dimensão androcêntrica individualista para uma
perspectiva mais dinâmica, concreta, relacional, que abranja as relações e os con-
flitos dos(as) oprimidos(as). O que se espera é uma interpretação mais consentânea
com a realidade social, como forma de proteção da equidade de gênero.

Considerações finais

A desconstrução da identidade submissa e oprimida das mulheres é um pro-


cesso que se encontra em curso, graças aos movimentos de resistência feministas e
de mulheres. Porém, para que esses movimentos possam culminar na equidade de
gêneros, é preciso que sejam acompanhados de uma mudança de paradigmas por
parte de toda a sociedade, inclusive do Direito. Isso passa por um longo processo
de educação para os direitos humanos. Por isso se diz que os poderes constituídos,
as universidades, as entidades e a sociedade civil são responsáveis por construir um
tratamento mais digno às mulheres, pois elas também fazem parte do que se entende
por um estado democrático de direito.
Por ser o estado democrático de direito um espaço de justiça, de bem-estar
social e de garantia da dignidade da pessoa humana, ele tem por responsabilidade
desenvolver políticas públicas e elaborar legislações que sirvam como vias privile-
giadoras de mudança social rumo à construção da preconizada equidade nas relações
de gênero, respeitando as diferenças entre elas.
O Direito, embora considerado um instrumento de transformação social, não
poderá, sozinho, ser instrumento de igualdade. A seu lado devem atuar outras áreas
do conhecimento, para que, assim, ele possa contribuir para proporcionar mudanças
para a melhoria da condição social das mulheres.
Apesar dos avanços, a ideologia patriarcal persiste, por ser uma questão cultu-
ral que necessita ser modificada. O próprio Direito encontra óbices nas questões de
gênero, muitas vezes porque essas relações ocorrem no âmbito privado. Mas não é

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A construção da equidade nas relações de gênero e o movimento feminista no Brasil: avanços e desafios

somente por meio de leis penais que se poderá pensar em equidade e, sim, por uma
mudança da estrutura ideológica por meio da educação. Superar o preconceito e
construir uma relação diferente de gênero não depende somente dos movimentos or-
ganizados, mas passa pela vontade humana, que também é responsável pela criação
do Direito. A sociedade, assim como o Judiciário, não deve permanecer inerte diante
dos atos discriminatórios que ocorrem e atentam contra os direitos, seja de que na-
tureza forem. É preciso superar o sistema patriarcal para que os diferentes possam
viver como iguais, sem distinções de sexo ou de qualquer natureza, já que o mundo
não deve ser somente dos homens. Para tanto, a construção de uma sociedade de
parceria é fundamental, tanto para os homens quanto para as mulheres que buscam
um convívio mais harmônico.
Como se pode observar, os movimentos feministas já são vitoriosos e, no de-
correr da história, proporcionaram melhores condições de vida para as mulheres.
Porém, as relações patriarcais e sexistas ainda persistem na sociedade e isso pode ser
constatado pela baixa participação das mulheres nos altos cargos da administração
pública, seja de que esfera ou função de poder for, onde predomina uma hierarquia
eminentemente androcêntrica.
Para que os direitos preconizados pela Constituição Federal e os princípios de-
mocráticos transformem-se em realidade social é necessário, portanto, mais do que
um esforço dos movimentos organizados de mulheres ou de juristas. É preciso um
esforço de toda a sociedade, por meio de uma mudança de pensamento que só se dará
por meio de uma educação voltada para os direitos humanos, sob pena de tornarem-
se letra morta. Viabilizar seu exercício em um contexto tão multicultural como o atu-
al passa pela criação de condições sociais, políticas, econômico-financeiras e fiscais.
Este é o desafio do presente para viabilizar um futuro mais equânime a todos.

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