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Introdução
Primum vivere, deinde philosophare1. Este adágio latino é repetido por muitos
estudantes “ad nauseam” quando filósofos e autores humanistas lhes parecem
desencarnados da realidade, perdidos em especulações metafísicas, históricas ou sociais
que pouco ou nada parecem contribuir para a realidade onde se vive.
Essa percepção é equivocada. Em primeiro lugar, nossa vida não se divide no pensar
especulativo e em atitudes práticas. O ser humano é uma unidade e como tal age. Suas
dimensões psíquico-físicas interagem continuamente num agir único. Nossas ações
nascem de concepções que temos da vida e do universo, havendo profunda relação entre
o que pensamos e vivemos, pois, o pensado e o vivido interagem constantemente, ora o
pensado dirigindo o nosso agir, ora nossa ação criando bases para um pensamento
teórico que a justifique. Há, portanto, estreita relação entre Filosofia, Educação e Vida.
Estas várias visões terão reflexos imediatos na prática da educação de cada época que
procurará adequar e enquadrar o ser humano a estas visões de mundo.
1
- primeiro viver, depois filosofar.
Preâmbulo
Dois elementos são perseguidos pelo pensamento filosófico: o bem pessoal e o bem
comum. No primeiro busca-se a auto-realização e no segundo o mesmo bem na
coletividade. Há um trinômio que perpassa o pensamento filosófico. O primeiro é
quando se explica de forma unitária o universo. O segundo é a busca da realização
pessoal com princípios e valores. E, finalmente, o terceiro está ligado à vida social que
busca a felicidade pessoal numa comunidade.
2
- Nesta análise assumo o princípio de Marx que a infra-estrutura econômica determina a superestrutura
social, reflexo no seu modo de produzir riquezas.
3
- entendida neste contexto em sentido amplo.
4
- alguns exemplos: Punks, Skinheads, Baladeiros, Emos, Góticos, Nerds, Geeks, Trekkers, Otakus...
O Homem cidadão
5
Sebastião Ribeiro Salgado (Aimorés, 8 de fevereiro de 1944) é um fotógrafo brasileiro reconhecido
mundialmente por seu estilo único de fotografar.Nascido em Minas Gerais, é um dos mais respeitados
fotojornalistas da atualidade. Nomeado como representante especial do UNICEF em 3 de abril de 2001,
dedicou-se a fazer crônicas sobre a vida das pessoas excluídas, trabalho que resultou na publicação de dez
livros e realização de várias exposições, tendo recebido vários prêmios e homenagens na Europa e no
continente americano. Cf. pt.wikipedia.org/wiki/Sebastião_Salgado
6
- não levaremos em conta a discussão se o pensamento socrático seria de Platão seu discípulo. Não
importando a autoria, este pensamento está descrito no texto “A Defesa de Sócrates” e que nos importará
aqui – independente da autoria – é o pensamento descrito.
7
Guillermo FRAILE. Historia de la Filosofia I – Grecia e Roma. Madrid, BAC, 1965. p. 240
Sócrates entendia que seria com a força moral de homens bem formados que se poderia
reabilitar uma sociedade moralmente corrompida.
O homem pessoa
O cristianismo não é uma filosofia, mas, uma religião. A verdade construída nestes dois
espaços se diferencia profundamente. A Verdade Filosófica nasce a partir da Razão e a
religiosa se impõe como um ato de fé num livro Sagrado. O cristianismo não deveria,
portanto, ser objeto desta nossa reflexão filosófica por sua própria natureza de
revelação12. Acontece, porém, que na era cristã o pensamento filosófico13 se organizou
sob forte influência desta mundividência nos períodos patrístico e escolástico14. O
cristianismo foi inovador ao estabelecer o conceito desconhecido até então, de pessoa.
8
- Especialmente no livro a Republica.
9
- Cf. Platão. A republica. Porto. 1996, pp. 53-100
10
- Cf. Aristóteles. A Política. São Paulo, Atena Editora, 1955. pp. 143-187
11
- entre eles seu principal interprete, Santo Tomás de Aquino.
12
- Este princípio aplica-se a todas as religiões que possuem livros entendidos por seus crentes como
revelado.
13
- deve-se rejeitar radicalmente o conceito de “Filosofia Cristã”. Deve-se adotar o conceito de “cristãos
que fazem Filosofia”, pois o pensar filosófico não pode possuir, por sua própria natureza, nenhum
princípio advindo de “revelações” que não se submetem à critica racional.
141414
- Etienne Gilson, reconhecido estudioso da Idade Média, afirma que “Toda Filosofia da Idade
Média pressupõe a decisão de abstrair essa filosofia do meio teológico onde ela nasceu e do qual não
pode ser separada sem violentar a realidade histórica. (...) não admitimosnenhuma linha de demarcação
rigorosa entre filosofia e história da teologia, não apenas na época patrística, mas também na Idade
Média”. Etienne Gilson. A Filosofia na Idade Média, São Paulo, Martins Fontes, 1995. pp. XII
Se antes na Grécia e Roma o que conferia a alguém dignidade era o ser cidadão, no
cristianismo a dignidade de cada pessoa está no ser concebida como imagem e
semelhança de Deus o que torna todas as pessoas irmãs16 e ao mesmo tempo iguais17.
Estes conceitos expostos nas periferias de Roma e do Império desestabilizam os
conceitos de cidadania tornando o cristianismo revolucionário e libertário ao criar e
fortalecer no homem respeito por si, por sua dignidade pessoal, e, na mesma medida,
pelo do próximo.
O Homem Político
15
- Franco AMÉRIO. História da Filosofia – I Antiga e Medieval. Coimbra, Casa do Castelo Editora.
1960. p. 147
16
- “Talvez Onésimo foi afastado de ti por algum tempo, precisamente para que o recebas de volta para
sempre: não mais como escravo, mas muito mais do que isto, como irmão querido”. Fl 1,15s
17
- “Na vossa reunião entram duas pessoas, uma com anel de ouro no dedo e bem vestido, e outra, pobre,
com roupa surrada”. Ao que está bem vestido dais atenção dizendo-lhe: vem sentar-te aqui à vontade.
Mas ao pobre dizeis: Ficai de pé, ou, Senta-te aqui no chão aos meus pés. Não será isso um caso de
descriminação entre vós? Será que não julgastes com critérios que não convêm? [...] mas se fazeis
acepção de pessoas, cometeis pecado e a lei vos acusa como transgressores. Tg 2, 3s, 9
O Homem industrial
Alguns elementos teóricos e práticos fazem parte da essência do capitalismo. Seu ponto
de partida é o materialismo que tem na matéria única realidade e sustentáculo de todas
as coisas21. Não existem valores e princípios transcendentes. Na organização econômica
social do capitalismo o acúmulo de capital é um objetivo em si que busca o lucro
máximo, mesmo se pela exploração do operário22, coisificado na linha de produção23.
Finalmente, ainda, o capitalismo fomenta o individualismo. Há uma lógica própria, que
coloca como objetivo primeiro o benefício do individuo e da sociedade burguesa através
da exploração da mão de obra, não se importando com a formação de populações
18
- res em latim.
19
- As idéias de Taylor estão no livro Princípios da Administração Científica.
20
- Texto didáticos de primeiro grau: “O operário mostra suas mãos cheias de calo: durante toda vida
tocaram a terra, os fogos, os metais. Estão Vazias de riquezas, estão negras, cansadas, pesadas. Diz o
senhor: Assim são aos mãos dos santos”. [...] “Piero vai visitar o avô na fundição”... (O avó diz para o
netinho - Eu também, Piero, entrei por curiosidade na fundição quando era menino). E me pareceu tudo
tão bonito... que aqui fiquei. É belo amar o trabalho que a gente faz. Estou velho e ao bom Deus só peço
uma coisa: quero ficar aqui, na fundição, até o último dia dos meus dias. E vovô levantou os olhos para o
céu, em direção às estrelas. Maria de Lourdes NOSELLA. As Belas Mentiras, São Paulo, Ed. Moraes.
1981.
21
- esta afirmação pode parecer radical, pois que se afirma materialista é o marxismo. Ainda que muitos
teóricos capitalistas usem o conceito de Deus, efetivamente, porém, a pratica capitalista se constitui numa
ação nascida e apoiada sobre a matéria como fundamento da realidade. No capitalismo a prática religiosa
esta associada a algo de privado não assumido pelo sistema que, eventualmente, poderá até se utilizar de
práticas religiosas como ferramenta de favorecimento de aumento do capital enquanto gere uma postura
conformista.
22
- Marx definirá isto como a mais-valia.
23
- É antológico o filme de Charles Chaplin, “Tempos Modernos” que retrata de forma este processo de
coisificação do operário.
As idéias liberais de Adam Smith estiveram presentes nos Estados unidos até 1929
quando a quebra da bolsa de Nova York comprometeu seriamente o sistema. A Defesa
do Estado de Bem Estar social, praticado então, foi apenas um antítodoto que visava,
primeiramente, não salvaguardar a situação de penúria dos operários atingidos pela
crise, mas preservar este sistema com algumas perdas calculadas. Muitas das “ações
altruístas” foram apenas molas que aliviavam o impacto da crise sobre o sistema
capitalista.
Após a Segunda Guerra Mundial o capitalismo foi perdendo seu lastro nacional para
uma dimensão internacional e supranacional. Quanto menos se tornava radical a Guerra
Fria mais se ampliava a globalização da economia apoiada no capital internacional,
fluido, volátil, interesseiro, sem Deus, sem pátria e sem amor. Esta grande massa de
capital pairando sobre a economia mundial representou o campo fértil para o surgimento
e fortalecimento do neoliberalismo.
O Homem Global
O Embasamento teórico24 do neoliberalismo se consolida em idéias claras elaboradas
após a segunda guerra mundial nos Estados Unidos e nos paises capitalistas da Europa,
sendo uma reação teórica e política contra o Estado Intervencionista de Bem Estar
Social surgido após a crise de 1929, sendo então contra toda e qualquer limitação dos
mecanismos de mercado por parte do Estado. Hayek25 argumentava que a desigualdade
era um valor positivo – na realidade, imprescindível – como elemento fundamental das
sociedades ocidentais. Em 1974 funda a sociedade Mont Pélerin26 cuja finalidade era
promover os ideais liberais já que desde 1973 o mundo capitalista começara a viver
recessão com baixas taxas de crescimento e com altas taxas de inflação. Este crise acirra
os ânimos dos grupos neoliberais. No pensamento de Hayek
24
- Os três primeiros parágrafos desta parte foram elaborados por mim no trabalho de Teorias do Estado e
Educação e transcritos aqui porque o conteúdo seria basicamente o mesmo.
25
Autor do livro O Caminho da Servidão
26
- The Mont Pelerin Society is an international organization composed of economists, intellectuals,
business leaders, and others who favour classical liberalism; the society advocates free market economic
policies and the political values of an open society. The Mont Pelerin Society was created on 10 April
1947 at a conference organized by Friedrich Hayek. Originally, it was to be named the Acton-Tocqueville
Society. After Frank Knight protested against naming the group after two “Roman Catholic aristocrats”
and Ludwig von Mises expressed concern that the mistakes made by Acton and Tocqueville would be
connected with the society, the name of the Swiss resort where it convened was used instead.
en.wikipedia.org/wiki/Mont_Pelerin_Society
com sua pressão parasitária para que o Estado aumentasse cada vez mais os
gastos sociais27.
Estas posturas passam, porém por críticas mesmo dentro do capitalismo por sua
radicalidade. Os sociais liberais combatem este Estado Minimalista defendido pelos
neoliberais acreditando que o Estado possui funções sociais a realizar. Argumentam que
os neoliberais se esqueceram de que a doutrina política não deve apenas tentar conciliar
os desejos humanos de liberdade e vida em comum, mas, também levar em conta o
sentimento natural de solidariedade que justifica a assistência do Estado aos
desamparados, e, preventivamente, a conpulsoriedade das contribuições para a
Previdência Social ou a proibição de drogas. Os neoliberais passam por cima de uma
questão que é muito importante: boa parte do destino de um indivíduo depende do que
lhe é fornecido em matéria de educação, saúde, nutrição durante a infância e
adolescência, período em que ele é juridicamente incapaz e, portanto, não tem como
tomar decisões responsáveis. Caso isto não seja realizado este mesmo individuo, além
de não ser produtivo para o sistema, poderá onerá-lo como cidadão marginal doente,
improdutivo ou criminoso.
O homem coisificado
A educação capitalista tem por meta primeira a justificativa e implantação deste sistema
ao qual se atribui liberdade individual à iniciativa privada, escondendo que o homem
fica coisificado, pois sua importância fica subordinada ao seu valor de mercado,
27
- www.lutadospovos.hpg.com.br/neoliberalismo.htm
28
- www.socialismo.org.br/portal/filosofia/155-artigo/302-balanco-do-neoliberalismo-
29
- laissez faire, laissez passé...
Recentemente foi lançado livro intitulado “Homens invisíveis” escrito pelo Fernando
Braga Costa30. Durante oito anos, durante dois ou três dias, trabalhou como gari no
Campus da USP realizando uma pesquisa de Campo para saber como era o universo
desses homens e mulheres.
Como gari, senti na pele o que é um trabalho degradante. “Vivi situações que me
impulsionaram a entender melhor o nosso meio psicossocial, explica ele, que
desenvolveu a tese sobre a “invisibilidade pública”, isto é, profissionais como
faxineiros, ascensoristas, empacotadores e garis não são “vistos” pela sociedade, que
enxerga a função, não a pessoa. Uma das situações experimentadas por Fernando foi
atravessar os corredores da faculdade uniformizado. Ninguém nem sequer olhou para
ele ou o cumprimentou. “A invisibilidade e a humilhação repercutem até na maneira
como você anda, fala, olha. Eles não conseguem nos olhar de frente e, quando olham,
piscam rapidamente. O modo de andar lembra movimentos de robô31.
O que mais o choca, e é o núcleo deste seu livro, no qual que esses limpadores de
ambientes não eram vistos e nem considerados pelos membros de uma Universidade
que forma as elites intelectuais e lideranças de nosso país e que, certamente,
reproduzirão esta marginalização do homem nos lugares de comando e decisões de
nossa pátria. Estes trabalhadores “não existiam”, sequer fisicamente, para todos os
intelectuais que os circundavam, considerados como obstáculos a serem contornados
nos corredores da universidade. Aqui temos uma realidade já indicada por Marx que é a
coisificação da pessoa que perde sua identidade para ser função ou elemento de
produção. Esta é uma das piores conseqüências do capitalismo: a busca desenfreada
pelo lucro acaba por anular a dignidade do rico e do pobre. Todos são, neste sistema,
qualificados pelo seu entorno financeiro e, mesmo as classes burguesas, são aliciadas
com atenções especiais não por serem pessoas, mas por serem possuidores de dinheiro e
poder. E o sistema não terá duvidas de colocá-las na sarjeta no momento que venham
perder a salvaguarda dos seus bens. O mundo capitalista coloca o lucro acima de tudo.
Não existe pessoa...
30
Fernando Braga da Costa nasceu em 1975 em Votuporanga, no interior de São Paulo. Mudou-se para
a capital paulista aos três anos de idade. Em 1993, ingressou na graduação no Instituto de Psicologia da
SP. Atualmente, faz doutorado no mesmo instituto, focando seus estudos na relação do pesquisador com s
garis. Homens Invisíveis é seu primeiro livro.
31
- www.terra.com.br/istoegente/261/diversao_arte/livros_foco_homens_invisiveis.htm
Concluindo...
A Educação tem por finalidade passar ao homem princípios e valores oriundos de uma
cosmovisão que dê sentido e explique o mundo. O ser humano será educado a partir da
elaboração filosófica da sociedade em que vive. No capitalismo o homem se dilui
enquanto pessoa frente ao imperativo da produção. O operariado, antes de tomar
consciência de que era uma classe, foi sacrificado sem escrúpulos em vista do lucro
máximo. Ainda que as conquistas sociais posteriormente tenham sido significativas,
formou-se uma mentalidade de individualismo como referencial de vida que atinge
mesmo as classes populares que vão aos poucos perdendo a solidariedade.
Bibliografia