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O CONCEITO DE CONTRAPONTO MÉTRICO EM VERSIFICAÇÃO

Paulo Henriques Britto

1. Considerações iniciais

Este trabalho visa dar conta de certos fenômenos métricos com que me deparei
ao apresentar análises rítmicas de poemas em língua portuguesa para alunos de Oficina
de Criação Poética, no curso de formação de escritor que leciono na PUC-Rio. Ao
analisar para a turma o poema “José”, de Carlos Drummond de Andrade, dei-me conta
de que havia ali uma complexidade rítmica que não era captada pela escansão
convencional; após a aula, reli o poema e constatei que eu próprio não entendia bem o
que estava acontecendo. Tentando chegar ao fundo da questão, fui obrigado a tornar
mais complexo o conceito de metro com que vinha trabalhando até então. Foram muitas
as fontes a que recorri na elaboração das idéias que aqui desenvolvo, mas gostaria de
dar um destaque especial a Ritmo e poesia de Cavalcanti Proença, livro publicado em
1955, que tem sido para mim uma fonte constante de insights preciosos. Foi essa obra
que me sugeriu o uso da notação musical que apresento abaixo.1
Em música, o termo “contraponto” é definido pelo Dicionário Houaiss como “a
arte de sobrepor uma melodia a outra; o conjunto de técnicas composicionais da
polifonia”. Já o Webster’s third international dictionary apresenta uma definição mais
detalhada de counterpoint, dando como uma de suas acepções “the combination of two
or more related but independent melodies into a single harmonic texture in which each
retains its linear or horizontal character”. Essa definição me interessa por destacar um
ponto importante: a idéia de que as duas melodias, embora se fundem numa mesma
“textura harmônica”, conservam cada uma seu próprio “caráter linear ou horizontal”. O
ouvinte experiente de Bach consegue, na audição de uma fuga a três vozes, fixar a
atenção na textura harmônica do todo e ao mesmo tempo destacar a progressão separada
de cada voz. Sem essa dupla leitura, a fruição da música polifônica seria sem dúvida
comprometida.
Ao tomar emprestado à música o termo “contraponto” para utilizá-lo numa
discussão sobre prosódia, não estou sendo original. Preminger e Brogan (1993: 242-3)
observam que a noção de contraponto foi aplicada à poesia pela primeira vez por Hegel
em sua Fenomenologia do espírito, em 1807, e comentam que a partir daí o conceito
tem sido usado nos estudos da poesia para exprimir a idéia de que,

quando lemos poesia, ouvimos o verso em si com o ouvido exterior, enquanto o “ouvido
interior” simultaneamente executa o padrão métrico ideal ao qual o verso deveria se
conformar; o reconhecimento das diferenças entre os dois padrões explicaria a maior
parte do prazer ou interesse proporcionado pela poesia metrificada. C. S. Lewis referiu-
se a esse processo como “dupla audição”.2

Podemos alterar um pouco o texto acima de modo a utilizar o conceito também no caso
da leitura silenciosa, em que o “ouvido interior” perceberia tanto o padrão métrico ideal
quanto a estrutura rítmica. Assim, a pessoa que faz uma leitura silenciosa dos Lusíadas
teria, numa espécie de pano de fundo mental, a seqüência predominantemente jâmbica

1
Por outro lado, foi só após a redação deste texto que tive acesso a Leech (1991), obra que defende
algumas posições bem semelhantes às minhas, em particular no capítulo 7.
2
A tradução é minha.
do decassílabo heróico, contra o qual se destacaria a distribuição de acentos do texto
real, que em muitos pontos diverge do padrão. O que talvez seja o prazer mais básico
proporcionado pela leitura de poesia formal seria justamente esse contraste entre dois
padrões métricos: no plano do fundo, um padrão mais rígido, uma espécie de
metrônomo interiorizado; e, no plano da figura, um outro padrão, menos previsível,
determinado pela distribuição de graus diversos de tonicidade entre as sílabas (além de
muitos outros fatores fônicos, é bom lembrar) do texto real produzido pelo poeta. O
metro ideal é chamado por Chociay (1974:35) de receita métrica; Fussel usa o termo
contrato métrico, cunhado por John Hollander (Fussel 1979: 15), que me parece
particularmente feliz: é de fato uma espécie de contrato entre poeta e leitor, assinalado
tipicamente nos primeiros versos do poema, o qual como que põe para funcionar um
metrônomo virtual na cabeça do leitor. Proponho reservar o termo metro para designar o
padrão rítmico ideal que se supõe estar por trás de uma passagem poética, e ritmo a
configuração fônica realmente observada na leitura de um poema (ou numa leitura
considerada típica de um poema); mas recorro com freqüência à expressão contrato
métrico com o mesmo sentido de metro.
Meu objetivo aqui é analisar um ponto que, salvo ignorância minha, parece até
agora ter escapado à atenção dos estudiosos do verso português. Parece-me que o
esquema proposto por Preminger e Brogan, que estabelece um contraste entre figura e
fundo, não é suficientemente complexo para dar conta de certos fenômenos com que nos
deparamos na análise prosódica de alguns poemas da língua portuguesa. Minha proposta
é a de que em muitos casos seria útil estabelecermos uma relação contrapontística entre
dois padrões métricos ainda num nível inferior ao da superfície fônica do poema real; ou
seja, teríamos uma tessitura polifônica de no mínimo três “vozes”: entre os dois metros
ideais de um poema e entre a estrutura formada por esses metros ideais e o ritmo real de
uma realização fônica do poema. Apresento inicialmente minha proposta analisando um
poema específico em que parece haver uma estrutura de duplo padrão métrico: “José”,
um poema pentassilábico de Carlos Drummond de Andrade. Porém, uma vez
esclarecida minha posição, pretendo demonstrar que essa duplicidade rítmica ainda no
nível do contrato métrico está institucionalizada no repertório prosódico do português,
constituindo a base do contraste entre os dois mais importantes metros decassilábicos do
idioma: o heróico e o sáfico.

2. Contrato métrico em dois níveis como recurso ad hoc

Em trabalho anterior (Britto 2002) propus um esboço de notação para análises


métricas, desenvolvido a partir de Cavalcanti Proença (1955), que tenho adotado em
outros estudos (p. ex., Britto 2004). No que se segue, serei obrigado a complexificar
minha notação original, utilizando alguns símbolos emprestados — tal como o termo
“contraponto” — à teoria musical. Comecemos examinando o poema “José”, de
Drummond. (Para facilitar as referências ao texto do poema, as estrofes serão
identificadas por letras maiúsculas e os versos por números.)

2
JOSÉ
A. E agora, José? não veio a utopia José, e agora?
A festa acabou, e tudo acabou
a luz apagou, e tudo fugiu E. Se você gritasse,
o povo sumiu, e tudo mofou, se você gemesse,
a noite esfriou, e agora, José? se você tocasse,
e agora, José? a valsa vienense,
e agora, você? C. E agora, José? se você dormisse,
Você que é sem nome, sua doce palavra, se você cansasse,
que zomba dos outros, seu instante de febre, se você morresse....
você que faz versos, sua gula e jejum, Mas você não morre,
que ama, protesta? sua biblioteca, você é duro, José!
e agora, José? sua lavra de ouro,
seu terno de vidro, F. Sozinho no escuro
B. Está sem mulher, sua incoerência, qual bicho-do-mato,
está sem discurso, seu ódio, — e agora? sem teogonia,
está sem carinho, sem parede nua
já não pode beber, D. Com a chave na mão para se encostar,
já não pode fumar, quer abrir a porta, sem cavalo preto
cuspir já não pode, não existe porta; que fuja a galope,
a noite esfriou, quer morrer no mar, você marcha, José!
o dia não veio, mas o mar secou; José, para onde?
o bonde não veio, quer ir para Minas,
o riso não veio, Minas não há mais.

Podemos esquematizar a estrutura rítmica do poema como se segue (usando /


para indicar o acento primário e \ para o secundário, e - para assinalar as sílabas átonas).
Nas três primeiras estrofes temos um padrão bem uniforme, com acento na 2a e 5a
sílabas. Há uns poucos versos que divergem do padrão, como B4 e B5, que têm uma
sílaba a mais, mas de modo geral podemos tomar os dois versos que abrem a primeira
estrofe como representantes desse metro, - / - - / :

- / - - / -/--/
(A1) E a | go | ra, | Jo | sé? 2-5
1 2 3 4 5

- / - - / -/--/
(A2) A | fes | ta a | ca | bou, 2-5
1 2 3 4 5

Na quarta estrofe surge um novo padrão, 1-3-5, do segundo ao quinto verso:

/ - / - / /-/-/
(D2) quer | a | brir | a | por | ta 1-3-5
1 2 3 4 5

O sétimo verso retoma o metro inicial (com o fator complicador de um acento


secundário na primeira sílaba, assinalado no esquema por um número entre parênteses),
o oitavo introduz um ritmo novo e o nono volta ao padrão inicial:

\ / - - / \/--/
(D7) quer | ir | pa | ra | Mi | nas, (1)-2-5
1 2 3 4 5
3
/ - - \ / /--\/
(D8) Mi | nas | não | há | mais. 1-(4)-5
1 2 3 4 5

- / - - / -/--/
(D9) Jo | sé, | e | a | go | ra? 2-5
1 2 3 4 5

Na quinta estrofe, surge um padrão com acento na 3a e 5a sílabas, semelhante ao


1-3-5 que vimos em D2-5, que perdura por sete versos sucessivos:

- - / - / --/-/
(E1) Se | vo | cê | gri | ta | sse, 3-5
1 2 3 4 5

- - / - / --/-/
(E2) se | vo | cê | ge | me | sse, 3-5
1 2 3 4 5

A volta ao padrão inicial, 2-5, se dá na passagem da quinta para a sexta estrofe,


tendo como transição E9, o último verso da quinta, ritmicamente anômalo, com sete
sílabas, contendo uma seqüência de três linhas acentuadas seguidas e uma pausa, de
modo a alongar ainda mais o verso. Vejamos a passagem de E8 a F1:

- - / - / --/-/
(E8) Mas | vo | cê | não | mo | rre, 3-5
1 2 3 4 5

- / \ / - - / -/\ /--/
(E9) vo | cê | é | du | ro, | Jo | sé! 2-(3)-4-7
1 2 3 4 5 6 7

- / - - / -/--/
(F1) So | zi | nho | no es | cu | ro 2-5
1 2 3 4 5

Porém F3 é metricamente ambíguo, graças à presença de um acento secundário que se


torna obrigatório em alguma sílaba de “teogonia”, pois, como Cavalcanti Proença
(1955) demonstra, o português brasileiro não aceita mais de três sílabas átonas seguidas.
Dependendo de qual sílaba de “teogonia” receba o acento secundário, o verso será lido
como 2-5 ou como 3-5:

- \ - - / -\--/
(F3) sem | te | o | go | ni | a (2)-5
1 2 3 4 5

- - \ - / --\-/
(F3) sem | te | o | go | ni | a (3)-5
1 2 3 4 5

Nos versos seguintes, F4 a 7, temos a volta do padrão 3-5. Tomemos F4 como exemplo:

4
- - / - / --/-/
(F4) sem | pa | re | de | nu | a (3)-5
1 2 3 4 5

Porém em F7 o padrão 2-5 retorna mais uma vez:

- / - - / -/--/
(F7) que | fu | ja a | ga | lo | pe 2-5
1 2 3 4 5

F8 é mais um verso anômalo, com 6 sílabas, e F9 reafirma o padrão 2-5, o do início do


poema:

- - / - - / --/--/
(F8) vo | cê | mar | cha, | Jo | sé! 3-6
1 2 3 4 5 6

- / - - / -/--/
(F9) Jo | sé, || pa | ra a | on | de? 2-5
1 2 3 4 5

Essa análise, no entanto, não dá conta de um fato importante. A leitura de “José”


em voz alta deixa bem claro que na quarta estrofe o metro sofre uma mudança
importante, que é reafirmada na quinta estrofe e que parece ser comentada pela menção
à “valsa vienense” em E4. Examinando a estrutura dos dois padrões métricos
dominantes do poema — o padrão predominante 2-5 ( - / - - / ) e os padrões semelhantes
da quarta e quinta estrofes, 1-3-5 ( / - / - / ) e 3-5 ( - - / - / ) — não fica claro por que
motivo a idéia de valsa parece ser evocada pelo segundo e não pelo primeiro. De onde
vem a diferença que percebemos?
Para responder essa pergunta, temos de recorrer a um outro tipo de análise, que
vai além da estrutura do verso isolado. Tomemos de novo os dois versos iniciais de
“José” e os disponhamos de modo linear, usando símbolos musicais para representar a
duração relativa das sílabas, as pausas e o ritmo. Partindo da minha própria leitura do
poema, chegamos ao diagrama abaixo:

/ // / //
┌─ 3 ─┐ ┌─ 3 ─┐ ┌─ 3 ─┐ ┌─ 3 ─┐ ┌─ 3 ─┐
| |
- / - - / - / - - /
E a- go- ra, Jo- sé? / A fes- ta a- ca bou,
1 2 3 4 5 1 2 3 4 5
A1 A2

Examinemos o diagrama, de baixo para cima. A linha inferior identifica os versos — no


caso, o primeiro e o segundo da estrofe inicial, A1 e A2; a segunda dá a numeração das
sílabas no interior dos versos; a terceira apresenta o texto do poema, dividido em
sílabas, tal como vimos anteriormente — nessa linha o símbolo / indica a fronteira entre
versos. Na quarta linha temos, também como antes, a marcação da pauta acentual: /
indica uma sílaba que recebe o acento primário e - simboliza a atonicidade. Até aqui,
estamos representando o verso em si, ou uma leitura específica dele; doravante temos
uma representação do contrato métrico propriamente dito. Na quinta linha, utilizamos
símbolos musicais convencionais para indicar a duração relativa das sílabas e as pausas
5
e as separações entre compassos; a sexta linha apresenta os símbolos que indicam as
quiálteras; na sétima e última linha, // representa o tempo forte que abre o compasso e /
o tempo meio forte que ocorre no interior dele, sendo o ritmo dois por dois; seguindo a
prática musical tradicional, colocamos o tempo forte na posição inicial do compasso.
Voltemos à quinta linha. Aqui representamos cada sílaba por uma semínima, , mas no
final de cada verso colocamos uma mínima, , indicando que o final do verso, somado
ao símbolo de pontuação que aparece aí, seja ponto de interrogação (como em A1) ou
vírgula (como em A2), corresponde a um prolongamento da última sílaba, a mais forte
do verso. (Numa representação de uma leitura possível do poema, poderia ser
substituído por , o que indicaria uma leitura mais seca, em staccato, com uma pausa
perceptível ao final de cada verso.) Essa notação deixa claro que, lendo os dois versos
linearmente, a estrutura métrica da estrofe é marcadamente binária; o elemento ternário
— o pé anapéstico contido no verso de estrutura 2-5 — é percebido pelo leitor como
uma estrutura de quiálteras. Podemos dizer que, embora num primeiro nível o contrato
métrico seja ternário, no segundo nível ele é binário.
Façamos agora uma esquematização análoga da quinta estrofe:

// / / // / / //
| |
- - / - / - - - / - / -
Se vo- cê gri- ta-sse, / se vo- cê ge- me-sse,
1 2 3 4 5 (6) 1 2 3 4 5 (6)
E1 E2

A estrutura resultante é, de certo modo, o inverso da anterior: temos agora um metro


binário no primeiro nível — pois a sexta sílaba de cada verso, que por ser átona não é
contada na versificação tradicional, se acrescenta ao final da estrutura métrica do verso,
resultando em - - / - / - ; se o leitor der uma ligeira ênfase à conjunção “se” de cada
verso, o que é possível, a presença do acento secundário deixa claro que temos uma
sucessão de troqueus, e portanto um metro perfeitamente binário: \ - / - / - (como o que
já aparecera em D2-5). Por outro lado, no segundo nível — isto é, quando levamos em
conta o metro estabelecido pelos ictos de cada verso — o metro dessa passagem é
ternário, pois entre cada dois ictos — a quinta sílaba dos versos — temos exatamente
cinco sílabas (contando com a sexta, átona), o que dá ao todo uma seqüência de seis
sílabas.
Não coloquei nenhuma pausa no final dos versos desta seção de “José”, ao
contrário do que foi feito na seção anterior, muito embora aqui tenhamos também finais
de versos marcados por vírgulas. Mas a diferença entre as minhas duas estratégias de
leitura — fazendo pausas ao final dos versos nas quatro primeiras estrofes e emendando
o final de cada verso no início do seguinte na quinta estrofe — não é arbitrária, porém
se sustenta na predominância de versos agudos nas estrofes A a C e de versos graves nas
estrofes D e E. Nas três primeiras estrofes, de um total de 36 versos, 18 são agudos, a
metade; porém observe-se que são agudos os 7 primeiros versos da estrofe inicial — e,
como observa Fussel (1979: 15), os versos iniciais de um poema são os que têm maior
importância na determinação do contrato métrico. Assim, na leitura dos versos iniciais
da estrofe A, somos naturalmente levados a fazer a prolongar os ictos (ou então, o que
dá no mesmo, fazer uma pausa após cada icto), de modo a compensar a sílaba átona
final que falta. Em contraste, dos 15 versos da segunda seção do poema — a passagem
que vai de D2 a E8 — apenas três (D4, D5 e D7) são agudos; e na que vai de E1 a E8
temos uma seqüência ininterrupta de 8 versos graves. Ora, a sílaba átona final desses

6
versos graves seguidos tende a preencher o espaço após a quinta sílaba acentuada, o que
tem o efeito de reduzir ou mesmo eliminar a pausa ao final do verso.
Resumindo o que foi dito acima, parece-me que a estrutura métrica de “José”
pode ser descrita em termos de dois níveis: o primeiro, em que sílabas acentuadas e
átonas se distribuem em pés no verso; e o segundo, em que os ictos de versos sucessivos
formam configurações métricas que podem ser tomadas como compassos musicais. O
contraponto rítmico se daria não apenas entre os dois padrões do contrato métrico
quanto também entre o metro e o ritmo — necessariamente menos regular — da
realização fônica propriamente dita, com uma série de irregularidades pontuais que se
destacam contra o pano de fundo dos dois níveis do contrato métrico. Podemos
representar agora as três partes do poema quanto ao aspecto métrico, que chamaremos,
mantendo a analogia musical, de três movimentos. O Movimento I corresponde às
estrofes A a C (metro 2-5); o Movimento II, às estrofes D e E, com algumas exceções
— D1, D7-8, E9 (metros 1-3-5 e 3-5); e o III, à estrofe F (metros mistos):

Movimento I
primeiro nível: 2-5 ( - / - - / ) , jambo + anapesto (juntando a pausa ao final do verso à
anacruse inicial do verso seguinte, temos um ritmo dactílico: / - - / - - )
segundo nível: ( // / )

Movimento II
primeiro nível: 1-3-5 ou 3-5 ( / - / - / ou - - / - / ), jambo + jambo ou anapesto + jambo
(contando-se as sílabas átonas finais dos versos, graves quase sem exceção, e com
um acento secundário no “se” da primeira sílaba em E1-8, temos um ritmo
trocaico — / - / - / - — em todo o movimento)
segundo nível: ( // / / )

Movimento III
primeiro nível: (a) 2-5; (b) 3-5; (c) 2-5
segundo nível: (a) ; (b) ; (c)

O esquema acima mostra que a estrutura métrica do Movimento II é exatamente


inversa à do Movimento I, e que o Movimento III de certo modo recapitula o
desenvolvimento métrico do poema, concluindo com o metro inicial.
Ao realizarmos a análise rítmica do poema verso a verso, temos de tomar como
pano de fundo a estrutura contrapontística já formada pelos dois níveis do contrato
métrico. Por considerações de espaço, vejamos apenas, a título de exemplo, a análise
rítmica pormenorizada de “José”, da passagem B3-B5.
Os versos B4 e B5 (“já não pode beber / já não pode fumar”) têm seis sílabas,
uma a mais do que o estabelecido pelo contrato métrico. Uma vez determinado no
segundo nível o ritmo , a tendência natural será ler as primeiras sílabas desses dois
versos mais depressa, de modo a acomodar a sílaba adicional ao padrão musical do
primeiro movimento, por efeito da pressão do contrato métrico. O trecho B3-B5 tenderá
a ser lido, pois, como

7
/ // / // / //
┌─3 ─┐ ┌─ 3 ─┐ ┌── 3 ─┐ ┌─ 3 ─┐ ┌─ 3 ─┐ ┌─ 3 ─┐ ┌─ 3
... | | |
- / - - / - \ - / - - / \ - / - - /
Es- tá sem ca- ri- nho /Já não po- de be- ber, / Já não po- de fu- mar,
1 2 3 4 5 (6) 1 2 3 4 5 6 1 2 3 4 5 6
B3 B4 B5

Observe-se que, em B4 e B5, temos duas sílabas, “já” e “não”, para uma única nota do
metro. Assim, se a representação musical acima correspondesse não ao metro, e sim ao
ritmo da passagem, precisaríamos colocar em vez de para corresponder às duas
sílabas. Note-se também que a acentuação naturalmente dada ao advérbio “já”
(secundária, no diagrama) contrasta com a ausência de acento musical da sílaba, que
ocorre precisamente entre o icto em “ri” e o tempo meio forte que recai em “po”. Essa
tensão entre tonicidade e atonicidade em níveis diferentes é um bom exemplo de
contraponto rítmico.

3. Contrato métrico em dois níveis como elemento estrutural do repertório métrico

Vimos que podemos compreender melhor os efeitos rítmicos de “José” se


postularmos uma estrutura métrica em dois níveis, e que parte da riqueza sonora do
poema se deve ao contraste entre a binaridade do metro num dos níveis e sua
ternaridade no outro, ocorrendo uma permutação entre as posições relativas do binário e
do ternário na passagem do primeiro para o segundo movimento do poema. Porém seria
possível argumentar que “José” é um caso isolado, e o efeito aqui analisado é apenas um
tour de force formal executado por um dos maiores poetas do idioma. Resta demonstrar,
pois, que o contraponto rítmico ainda no âmbito do contrato métrico é um recurso
institucionalizado na prosódia portuguesa. Pois a meu ver é justamente no segundo nível
do metro que encontramos a diferença que o leitor de poesia de ouvido educado percebe
entre o metro do decassílabo heróico e o do sáfico.
Comecemos analisando o heróico. Veja-se a primeira estrofe do segundo canto
dos Lusíadas:

Já neste tempo o lúcido Planeta,


Que as horas vai do dia distinguindo,
Chegava à desejada e lenta meta,
A luz celeste às gentes encobrindo,
E da Casa marítima secreta
Lhe estava o Deus Noturno a porta abrindo,
Quando as infidas gentes se chegaram
Às naus, que pouco havia que ancoraram.

A análise rítmica no primeiro nível nos dá a seguinte estrutura:

/\-/-/---/ 1-(2)-4-6-10
-/-/-/---/ 2-4-6-10
-/---/-/-/ 2-6-8-10
---/-/---/ 4-6-10
--/--/---/ 3-6-10

8
-/-/-/-/-/ 2-4-6-8-10
---/-/---/ 4-6-10
-/-/-/---/ 2-4-6-10

Se tomarmos essa estrofe como representativa do ritmo heróico, podemos afirmar que,
tal como afirmam todos os manuais de versificação, os acentos mais característicos do
metro são os que recaem sobre a sexta e a décima sílabas. De fato, o diagrama acima
mostra que essas sílabas recebem o acento primário em cada um dos oito versos
analisados, sem exceção. Temos, pois, que o contrato métrico é - - - - - / - - - / .
Podemos também, recorrendo mais uma vez a Cavalcanti Proença (1955), acrescentar o
acento a mais que forçosamente quebrará a cadeia de cinco sílabas átonas; o melhor
lugar é certamente o 2, que só não recebe algum tipo de tonicidade nos versos 4, 6 e 7;
nesse caso, teremos como contrato o esquema - / - - - / - - - / . Trata-se de um metro de
caráter marcadamente jâmbico; o verso 6 é um jambo perfeito, e apenas no primeiro
hemistíquio do verso 5 vamos encontrar uma cadência ternária (dois pés anapésticos)
quebrando o ritmo jâmbico; no mais, os acentos primários e secundários tendem a cair
apenas nas sílabas de número par.
Façamos uma análise semelhante de uma passagem em decassílabos sáficos, a
primeira estrofe de “Vandalismo” de Augusto dos Anjos:

Meu coração tem catedrais imensas,


Templos de priscas e longínquas datas,
Onde um nume de amor, em serenatas,
Canta a aleluia virginal das crenças.

---/---/-/ 4-8-10
/--/---/-/ 1-4-8-10
/ - / - - / || - - - / 1-3-6-10
/--/---/-/ 1-4-8-10

Aqui o primeiro verso apresenta o contrato sáfico da maneira mais clara: - - - / - - - / - / .


O segundo e quarto verso apenas acrescentam um apoio na primeira sílaba (o que, aliás,
também pode acontecer no primeiro verso, se dermos uma ênfase perfeitamente
concebível a “meu”). Só o terceiro verso, heróico, destoa do contrato.
Se compararmos os dois esquemas — o que representa o metro do trecho dos
Lusíadas e o que esquematiza a estrofe de Augusto dos Anjos — não fica muito clara
qual a diferença entre os dois ritmos, pois tanto o heróico quanto o sáfico tendem a
acentuar as sílabas pares; ou seja, são dois metros de tipo jâmbico. No entanto, para o
bom leitor de poesia a “música” do sáfico é impossível de se confundir com a do
heróico; intuitivamente, sentimos que ele representa um certo desvio em relação ao
heróico, o qual seria de algum modo mais básico e “menos musical”.
A diferença entre os dois metros fica clara quando recorremos à nossa notação
musical e representamos linearmente os dois versos iniciais de cada passagem:

// / // / // / // /
 | | |  | |
/ \ - / - / - - - / - - / - / -
Já nes- te tem-po o lú- ci do Pla- ne- ta, / Que as ho- ras vai do
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 (11) 1 2 3 4 5

9
// / //
| |
/ - - - / -
tem-po dis- tin- guin- do,
6 7 8 9 10 (11)

No chamado decassílabo heróico, temos, no primeiro nível, obrigatoriamente acentos


fortes na sexta e na décima sílaba. Isso nos leva a escolher a sexta e a décima sílabas (e,
conseqüentemente, também a segunda) como tempos fortes de início de compasso. O
intervalo entre 6 e 10 (tal como o entre 2 e 6), de quatro sílabas, determina um
compasso quaternário ou binário.
Examinemos agora o que ocorre com os versos sáficos:

/ // / / // / /
| | |
- - - / - - - / - / - / - -
Meu co- ra- ção tem ca- te- drais i- men- sas / Tem-plos de
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 (11) 1 2 3

// / / //
| |
/ - - - / - /
pris- cas e lon- gín- quas da-tas
4 5 6 7 8 9 10 (11)

O que diferencia o ritmo sáfico do heróico é a antecipação do primeiro icto, da sexta


para a quarta sílaba (Cavalcanti Proença 1955: 58), sendo que o segundo icto
permanece, é claro, na décima e última sílaba. Temos, pois, um intervalo de seis sílabas
entre os ictos (entre as sílabas de número 4 e 10), o que nos força a escolher um
compasso ternário e não binário. É nesse fato crucial que reside a diferença dos dois
metros. Embora no primeiro nível os dois tenham caráter binário, no segundo nível
temos um contrato métrico binário no caso do heróico, porém um contrato ternário no
caso do sáfico. Está explicada, também, a percepção intuitiva de que o sáfico é, de
algum modo, mais “musical” e desviante em relação ao heróico, que seria a norma: é
que, na música ocidental, os ritmos binários são os mais básicos, por corresponderem ao
ritmo natural de quem caminha, sendo os ternários associados não à caminhada, mas à
dança. Podemos dizer que o ternário é “marcado” e o binário “não-marcado”, no sentido
em que dizemos, em lingüística, que o gênero feminino é marcado em relação ao
masculino, e que o número plural é marcado em relação ao singular.
Cavalcanti Proença (1955) já havia utilizado a notação musical para registrar os
metros do português. No entanto, ao analisar as diferentes possibilidades do decassílabo,
ele parece partir do pressuposto de que o que chamo aqui de segundo nível do contrato
métrico é sempre binário. Eis as análises por ele propostas para os metros heróico e
sáfico (p. 64):

| | 2-6-10

┌─ 6 ─┐ ┌─ 6 ─┐ ┌ 3 ┐ ┌ 3┐
. | . | 4-8-10

10
O pressuposto da binaridade de compasso obriga o autor a atribuir durações arbitrárias
às sílabas. No caso do heróico, todas as sílabas correspondem a semicolcheias, menos a
primeira, que é uma colcheia, e a décima, uma semínima; já no exemplo do sáfico são
mais longas a quarta, a oitava e a décima sílaba (aparece também uma décima-primeira
sílaba, por motivos não muito claros). Ora, por que motivo as sílabas acentuadas são
mais longas no sáfico, enquanto no heróico são mais longas a primeira — que não é
acentuada — e a décima, que é, mas não a segunda e a sexta, que também são? A
solução é sem dúvida insatisfatória; o compasso binário adotado por Cavalcanti Proença
acaba se tornando um leito de Procusto. A análise que proponho aqui me parece bem
mais natural.

Comentários finais

Creio que, nos casos examinados, está suficientemente demonstrada a utilidade


de se postular dois níveis de contrato métrico. Em particular, o caso do decassílabo
mostra que o recurso de contraponto entre os dois níveis faz parte do repertório
prosódico do português. Estudos posteriores poderão testar minha proposta, aplicando-a
a outros metros e outros casos específicos. Podemos esboçar desde já algumas
sugestões:

• Hendecassílabo dactílico

// / / / // / /
|
- / - - - / - / - - / - - / - - / - -
No mei- o das ta- bas de a-me-nos ver- do-res / Cer-ca- das de tron-cos,–co-
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11(12) 1 2 3 4 5 6 7

/ //
|
/ - - / -
ber- tos de flo-res,
8 9 10 11(12)

Aqui o metro é ternário no primeiro nível (dactílico) e quaternário no segundo. Também


seria possível analisar o metro como binário no segundo nível, marcando como tempos
fortes as quintas sílabas dos versos (tabas, troncos). De qualquer modo, haveria
contraponto rítmico, entre três e quatro ou entre três e dois.

• Hendecassílabo trocaico

// / / / ’ / / // / /
|
/ - / - / - / - / - / - / - / -
To- que, to- que, to-que, lin- do bu- rri- qui-to/ Pa- ra as mi- nhas
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11(12) 1 2 3 4

11
/ ’/ / //
|
/ - / - / - /
fi- lhas quem mo de- ra a mim!
5 6 7 8 9 10 11

Nesse exemplo colhido em Chociay (1974), o metro é binário no primeiro nível


(trocaico) e sextário no segundo. O símbolo ’ indica que ali há uma cesura, uma pausa
no meio do verso semelhante à que, em todos os metros, sempre deve haver no final de
cada verso. Como no caso anterior, também seria possível analisar o ritmo do segundo
nível como ternário, marcando como tempos fortes as sétimas sílabas (lindo, quem).

• Alexandrino

// / / // ’ / /
| |
/ \ / - - / / - - / -
Ah! quem há de ex- pri- mir, al- ma im- po- ten- te e es-
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11

// / / // ’ / / //
| |
/ - - - / - - / - - - / - / -
cra-va,/O que a bo- ca não diz, o que a mão não es- cre-ve?
12 (13) 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 (13)

No contrato métrico, temos ritmo binário no primeiro nível (jâmbico) e ternário


no segundo — aqui a cesura é tão marcada que a alternativa de perceber como sextário
o ritmo do segundo nível dificilmente se coloca. Analisamos o metro do alexandrino
como uma seqüência de compassos em três por quatro com uma pausa após o tempo
forte. Este soneto de Bilac começa num tom de intensidade dramática que é reforçado
pelo intenso contraponto rítmico. Nos dois primeiros versos, há um descompasso entre a
acentuação silábica e os tempos meio fortes do contrato: embora as sílabas finais dos
hemistíquios sejam acentuadas, coincidindo com os tempos fortes do metro, no interior
dos compassos quatro acentos primários — “Ah”, “há”, “al-” e “bo-”, incidem sobre
tempos fracos. É só no primeiro verso da segunda estrofe que metro e ritmo coincidem
por completo, afirmando o contrato métrico de modo inequívoco:

// / / // ’ / /
| |
- / - / - / - - - / - / -
O Pen- sa- men- to fer-ve, e é um tur- bi- lhão de la-va;
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 (13)

Os estudiosos da prosódia do inglês observam que começar um poema com forte


contraponto rítmico, adiando a afirmação do contrato para um momento posterior do
poema, é uma maneira bastante comum de ressaltar um conteúdo emocional forte.
Exemplo clássico é o soneto CXVI de Shakespeare (“Let me not to the marriage of true
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minds”), caracterizado por um tom de indignação, em que o primeiro verso puramente
jâmbico, sem nenhuma inversão trocaica, nenhum pé pirríaco ou espondaico, é o sexto
(“That looks on tempests and is never shaken”). Seria interessante investigar se também
é freqüente no português esse fenômeno, que detectamos no soneto de Bilac cuja análise
acabamos de esboçar.

Referências bibliográficas

ANJOS, Augusto dos (1978). Toda a poesia. Estudo crítico de Ferreira Gullar. 2a ed.
Rio de Janeiro: Paz e Terra.

BRITTO, Paulo Henriques (2002). “Para uma avaliação mais objetiva das traduções de
poesia”. In Krause, Gustavo Bernardo. As margens da tradução. Rio de Janeiro:
FAPERJ/Caetés/UERJ.

__________ (2004). “Augusto de Campos como tradutor”. In Süssekind, Flora, e


Guimarães, Júlio Castañon (orgs.). Sobre Augusto de Campos. Rio de Janeiro:
Fundação Casa de Ruy Barbosa / 7 Letras.

CAMÕES, Luís de (1993). Os lusíadas. Intr. e notas de Alexei Bueno. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira.

CAVALCANTI PROENÇA, M (1955). Ritmo e poesia. Rio de Janeiro: Organização


Simões.

CHOCIAY, Rogério. Teoria do verso. São Paulo: McGraw-Hill do Brasil, 1974.

DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos (1969). Reunião: 10 livros de poesia. Rio de


Janeiro: José Olympio.

FUSSELL, Paul (1979). Poetic meter and poetic form. Ed. revista. Nova York:
McGraw-Hill.

LEECH, Geoffrey (1991). A linguistic guide to English poetry. Londres/Nova York:


Longman.

PREMINGER, Alex, e T. V. F. BROGAN (1993). The new Princeton encyclopedia of


poetry and poetics. Princeton, Nova Jersey: Princeton University Press.

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