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1. Considerações iniciais
Este trabalho visa dar conta de certos fenômenos métricos com que me deparei
ao apresentar análises rítmicas de poemas em língua portuguesa para alunos de Oficina
de Criação Poética, no curso de formação de escritor que leciono na PUC-Rio. Ao
analisar para a turma o poema “José”, de Carlos Drummond de Andrade, dei-me conta
de que havia ali uma complexidade rítmica que não era captada pela escansão
convencional; após a aula, reli o poema e constatei que eu próprio não entendia bem o
que estava acontecendo. Tentando chegar ao fundo da questão, fui obrigado a tornar
mais complexo o conceito de metro com que vinha trabalhando até então. Foram muitas
as fontes a que recorri na elaboração das idéias que aqui desenvolvo, mas gostaria de
dar um destaque especial a Ritmo e poesia de Cavalcanti Proença, livro publicado em
1955, que tem sido para mim uma fonte constante de insights preciosos. Foi essa obra
que me sugeriu o uso da notação musical que apresento abaixo.1
Em música, o termo “contraponto” é definido pelo Dicionário Houaiss como “a
arte de sobrepor uma melodia a outra; o conjunto de técnicas composicionais da
polifonia”. Já o Webster’s third international dictionary apresenta uma definição mais
detalhada de counterpoint, dando como uma de suas acepções “the combination of two
or more related but independent melodies into a single harmonic texture in which each
retains its linear or horizontal character”. Essa definição me interessa por destacar um
ponto importante: a idéia de que as duas melodias, embora se fundem numa mesma
“textura harmônica”, conservam cada uma seu próprio “caráter linear ou horizontal”. O
ouvinte experiente de Bach consegue, na audição de uma fuga a três vozes, fixar a
atenção na textura harmônica do todo e ao mesmo tempo destacar a progressão separada
de cada voz. Sem essa dupla leitura, a fruição da música polifônica seria sem dúvida
comprometida.
Ao tomar emprestado à música o termo “contraponto” para utilizá-lo numa
discussão sobre prosódia, não estou sendo original. Preminger e Brogan (1993: 242-3)
observam que a noção de contraponto foi aplicada à poesia pela primeira vez por Hegel
em sua Fenomenologia do espírito, em 1807, e comentam que a partir daí o conceito
tem sido usado nos estudos da poesia para exprimir a idéia de que,
quando lemos poesia, ouvimos o verso em si com o ouvido exterior, enquanto o “ouvido
interior” simultaneamente executa o padrão métrico ideal ao qual o verso deveria se
conformar; o reconhecimento das diferenças entre os dois padrões explicaria a maior
parte do prazer ou interesse proporcionado pela poesia metrificada. C. S. Lewis referiu-
se a esse processo como “dupla audição”.2
Podemos alterar um pouco o texto acima de modo a utilizar o conceito também no caso
da leitura silenciosa, em que o “ouvido interior” perceberia tanto o padrão métrico ideal
quanto a estrutura rítmica. Assim, a pessoa que faz uma leitura silenciosa dos Lusíadas
teria, numa espécie de pano de fundo mental, a seqüência predominantemente jâmbica
1
Por outro lado, foi só após a redação deste texto que tive acesso a Leech (1991), obra que defende
algumas posições bem semelhantes às minhas, em particular no capítulo 7.
2
A tradução é minha.
do decassílabo heróico, contra o qual se destacaria a distribuição de acentos do texto
real, que em muitos pontos diverge do padrão. O que talvez seja o prazer mais básico
proporcionado pela leitura de poesia formal seria justamente esse contraste entre dois
padrões métricos: no plano do fundo, um padrão mais rígido, uma espécie de
metrônomo interiorizado; e, no plano da figura, um outro padrão, menos previsível,
determinado pela distribuição de graus diversos de tonicidade entre as sílabas (além de
muitos outros fatores fônicos, é bom lembrar) do texto real produzido pelo poeta. O
metro ideal é chamado por Chociay (1974:35) de receita métrica; Fussel usa o termo
contrato métrico, cunhado por John Hollander (Fussel 1979: 15), que me parece
particularmente feliz: é de fato uma espécie de contrato entre poeta e leitor, assinalado
tipicamente nos primeiros versos do poema, o qual como que põe para funcionar um
metrônomo virtual na cabeça do leitor. Proponho reservar o termo metro para designar o
padrão rítmico ideal que se supõe estar por trás de uma passagem poética, e ritmo a
configuração fônica realmente observada na leitura de um poema (ou numa leitura
considerada típica de um poema); mas recorro com freqüência à expressão contrato
métrico com o mesmo sentido de metro.
Meu objetivo aqui é analisar um ponto que, salvo ignorância minha, parece até
agora ter escapado à atenção dos estudiosos do verso português. Parece-me que o
esquema proposto por Preminger e Brogan, que estabelece um contraste entre figura e
fundo, não é suficientemente complexo para dar conta de certos fenômenos com que nos
deparamos na análise prosódica de alguns poemas da língua portuguesa. Minha proposta
é a de que em muitos casos seria útil estabelecermos uma relação contrapontística entre
dois padrões métricos ainda num nível inferior ao da superfície fônica do poema real; ou
seja, teríamos uma tessitura polifônica de no mínimo três “vozes”: entre os dois metros
ideais de um poema e entre a estrutura formada por esses metros ideais e o ritmo real de
uma realização fônica do poema. Apresento inicialmente minha proposta analisando um
poema específico em que parece haver uma estrutura de duplo padrão métrico: “José”,
um poema pentassilábico de Carlos Drummond de Andrade. Porém, uma vez
esclarecida minha posição, pretendo demonstrar que essa duplicidade rítmica ainda no
nível do contrato métrico está institucionalizada no repertório prosódico do português,
constituindo a base do contraste entre os dois mais importantes metros decassilábicos do
idioma: o heróico e o sáfico.
2
JOSÉ
A. E agora, José? não veio a utopia José, e agora?
A festa acabou, e tudo acabou
a luz apagou, e tudo fugiu E. Se você gritasse,
o povo sumiu, e tudo mofou, se você gemesse,
a noite esfriou, e agora, José? se você tocasse,
e agora, José? a valsa vienense,
e agora, você? C. E agora, José? se você dormisse,
Você que é sem nome, sua doce palavra, se você cansasse,
que zomba dos outros, seu instante de febre, se você morresse....
você que faz versos, sua gula e jejum, Mas você não morre,
que ama, protesta? sua biblioteca, você é duro, José!
e agora, José? sua lavra de ouro,
seu terno de vidro, F. Sozinho no escuro
B. Está sem mulher, sua incoerência, qual bicho-do-mato,
está sem discurso, seu ódio, — e agora? sem teogonia,
está sem carinho, sem parede nua
já não pode beber, D. Com a chave na mão para se encostar,
já não pode fumar, quer abrir a porta, sem cavalo preto
cuspir já não pode, não existe porta; que fuja a galope,
a noite esfriou, quer morrer no mar, você marcha, José!
o dia não veio, mas o mar secou; José, para onde?
o bonde não veio, quer ir para Minas,
o riso não veio, Minas não há mais.
- / - - / -/--/
(A1) E a | go | ra, | Jo | sé? 2-5
1 2 3 4 5
- / - - / -/--/
(A2) A | fes | ta a | ca | bou, 2-5
1 2 3 4 5
/ - / - / /-/-/
(D2) quer | a | brir | a | por | ta 1-3-5
1 2 3 4 5
\ / - - / \/--/
(D7) quer | ir | pa | ra | Mi | nas, (1)-2-5
1 2 3 4 5
3
/ - - \ / /--\/
(D8) Mi | nas | não | há | mais. 1-(4)-5
1 2 3 4 5
- / - - / -/--/
(D9) Jo | sé, | e | a | go | ra? 2-5
1 2 3 4 5
- - / - / --/-/
(E1) Se | vo | cê | gri | ta | sse, 3-5
1 2 3 4 5
- - / - / --/-/
(E2) se | vo | cê | ge | me | sse, 3-5
1 2 3 4 5
- - / - / --/-/
(E8) Mas | vo | cê | não | mo | rre, 3-5
1 2 3 4 5
- / \ / - - / -/\ /--/
(E9) vo | cê | é | du | ro, | Jo | sé! 2-(3)-4-7
1 2 3 4 5 6 7
- / - - / -/--/
(F1) So | zi | nho | no es | cu | ro 2-5
1 2 3 4 5
- \ - - / -\--/
(F3) sem | te | o | go | ni | a (2)-5
1 2 3 4 5
- - \ - / --\-/
(F3) sem | te | o | go | ni | a (3)-5
1 2 3 4 5
Nos versos seguintes, F4 a 7, temos a volta do padrão 3-5. Tomemos F4 como exemplo:
4
- - / - / --/-/
(F4) sem | pa | re | de | nu | a (3)-5
1 2 3 4 5
- / - - / -/--/
(F7) que | fu | ja a | ga | lo | pe 2-5
1 2 3 4 5
- - / - - / --/--/
(F8) vo | cê | mar | cha, | Jo | sé! 3-6
1 2 3 4 5 6
- / - - / -/--/
(F9) Jo | sé, || pa | ra a | on | de? 2-5
1 2 3 4 5
/ // / //
┌─ 3 ─┐ ┌─ 3 ─┐ ┌─ 3 ─┐ ┌─ 3 ─┐ ┌─ 3 ─┐
| |
- / - - / - / - - /
E a- go- ra, Jo- sé? / A fes- ta a- ca bou,
1 2 3 4 5 1 2 3 4 5
A1 A2
// / / // / / //
| |
- - / - / - - - / - / -
Se vo- cê gri- ta-sse, / se vo- cê ge- me-sse,
1 2 3 4 5 (6) 1 2 3 4 5 (6)
E1 E2
6
versos graves seguidos tende a preencher o espaço após a quinta sílaba acentuada, o que
tem o efeito de reduzir ou mesmo eliminar a pausa ao final do verso.
Resumindo o que foi dito acima, parece-me que a estrutura métrica de “José”
pode ser descrita em termos de dois níveis: o primeiro, em que sílabas acentuadas e
átonas se distribuem em pés no verso; e o segundo, em que os ictos de versos sucessivos
formam configurações métricas que podem ser tomadas como compassos musicais. O
contraponto rítmico se daria não apenas entre os dois padrões do contrato métrico
quanto também entre o metro e o ritmo — necessariamente menos regular — da
realização fônica propriamente dita, com uma série de irregularidades pontuais que se
destacam contra o pano de fundo dos dois níveis do contrato métrico. Podemos
representar agora as três partes do poema quanto ao aspecto métrico, que chamaremos,
mantendo a analogia musical, de três movimentos. O Movimento I corresponde às
estrofes A a C (metro 2-5); o Movimento II, às estrofes D e E, com algumas exceções
— D1, D7-8, E9 (metros 1-3-5 e 3-5); e o III, à estrofe F (metros mistos):
Movimento I
primeiro nível: 2-5 ( - / - - / ) , jambo + anapesto (juntando a pausa ao final do verso à
anacruse inicial do verso seguinte, temos um ritmo dactílico: / - - / - - )
segundo nível: ( // / )
Movimento II
primeiro nível: 1-3-5 ou 3-5 ( / - / - / ou - - / - / ), jambo + jambo ou anapesto + jambo
(contando-se as sílabas átonas finais dos versos, graves quase sem exceção, e com
um acento secundário no “se” da primeira sílaba em E1-8, temos um ritmo
trocaico — / - / - / - — em todo o movimento)
segundo nível: ( // / / )
Movimento III
primeiro nível: (a) 2-5; (b) 3-5; (c) 2-5
segundo nível: (a) ; (b) ; (c)
7
/ // / // / //
┌─3 ─┐ ┌─ 3 ─┐ ┌── 3 ─┐ ┌─ 3 ─┐ ┌─ 3 ─┐ ┌─ 3 ─┐ ┌─ 3
... | | |
- / - - / - \ - / - - / \ - / - - /
Es- tá sem ca- ri- nho /Já não po- de be- ber, / Já não po- de fu- mar,
1 2 3 4 5 (6) 1 2 3 4 5 6 1 2 3 4 5 6
B3 B4 B5
Observe-se que, em B4 e B5, temos duas sílabas, “já” e “não”, para uma única nota do
metro. Assim, se a representação musical acima correspondesse não ao metro, e sim ao
ritmo da passagem, precisaríamos colocar em vez de para corresponder às duas
sílabas. Note-se também que a acentuação naturalmente dada ao advérbio “já”
(secundária, no diagrama) contrasta com a ausência de acento musical da sílaba, que
ocorre precisamente entre o icto em “ri” e o tempo meio forte que recai em “po”. Essa
tensão entre tonicidade e atonicidade em níveis diferentes é um bom exemplo de
contraponto rítmico.
/\-/-/---/ 1-(2)-4-6-10
-/-/-/---/ 2-4-6-10
-/---/-/-/ 2-6-8-10
---/-/---/ 4-6-10
--/--/---/ 3-6-10
8
-/-/-/-/-/ 2-4-6-8-10
---/-/---/ 4-6-10
-/-/-/---/ 2-4-6-10
Se tomarmos essa estrofe como representativa do ritmo heróico, podemos afirmar que,
tal como afirmam todos os manuais de versificação, os acentos mais característicos do
metro são os que recaem sobre a sexta e a décima sílabas. De fato, o diagrama acima
mostra que essas sílabas recebem o acento primário em cada um dos oito versos
analisados, sem exceção. Temos, pois, que o contrato métrico é - - - - - / - - - / .
Podemos também, recorrendo mais uma vez a Cavalcanti Proença (1955), acrescentar o
acento a mais que forçosamente quebrará a cadeia de cinco sílabas átonas; o melhor
lugar é certamente o 2, que só não recebe algum tipo de tonicidade nos versos 4, 6 e 7;
nesse caso, teremos como contrato o esquema - / - - - / - - - / . Trata-se de um metro de
caráter marcadamente jâmbico; o verso 6 é um jambo perfeito, e apenas no primeiro
hemistíquio do verso 5 vamos encontrar uma cadência ternária (dois pés anapésticos)
quebrando o ritmo jâmbico; no mais, os acentos primários e secundários tendem a cair
apenas nas sílabas de número par.
Façamos uma análise semelhante de uma passagem em decassílabos sáficos, a
primeira estrofe de “Vandalismo” de Augusto dos Anjos:
---/---/-/ 4-8-10
/--/---/-/ 1-4-8-10
/ - / - - / || - - - / 1-3-6-10
/--/---/-/ 1-4-8-10
// / // / // / // /
| | | | |
/ \ - / - / - - - / - - / - / -
Já nes- te tem-po o lú- ci do Pla- ne- ta, / Que as ho- ras vai do
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 (11) 1 2 3 4 5
9
// / //
| |
/ - - - / -
tem-po dis- tin- guin- do,
6 7 8 9 10 (11)
/ // / / // / /
| | |
- - - / - - - / - / - / - -
Meu co- ra- ção tem ca- te- drais i- men- sas / Tem-plos de
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 (11) 1 2 3
// / / //
| |
/ - - - / - /
pris- cas e lon- gín- quas da-tas
4 5 6 7 8 9 10 (11)
| | 2-6-10
┌─ 6 ─┐ ┌─ 6 ─┐ ┌ 3 ┐ ┌ 3┐
. | . | 4-8-10
10
O pressuposto da binaridade de compasso obriga o autor a atribuir durações arbitrárias
às sílabas. No caso do heróico, todas as sílabas correspondem a semicolcheias, menos a
primeira, que é uma colcheia, e a décima, uma semínima; já no exemplo do sáfico são
mais longas a quarta, a oitava e a décima sílaba (aparece também uma décima-primeira
sílaba, por motivos não muito claros). Ora, por que motivo as sílabas acentuadas são
mais longas no sáfico, enquanto no heróico são mais longas a primeira — que não é
acentuada — e a décima, que é, mas não a segunda e a sexta, que também são? A
solução é sem dúvida insatisfatória; o compasso binário adotado por Cavalcanti Proença
acaba se tornando um leito de Procusto. A análise que proponho aqui me parece bem
mais natural.
Comentários finais
• Hendecassílabo dactílico
// / / / // / /
|
- / - - - / - / - - / - - / - - / - -
No mei- o das ta- bas de a-me-nos ver- do-res / Cer-ca- das de tron-cos,–co-
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11(12) 1 2 3 4 5 6 7
/ //
|
/ - - / -
ber- tos de flo-res,
8 9 10 11(12)
• Hendecassílabo trocaico
// / / / ’ / / // / /
|
/ - / - / - / - / - / - / - / -
To- que, to- que, to-que, lin- do bu- rri- qui-to/ Pa- ra as mi- nhas
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11(12) 1 2 3 4
11
/ ’/ / //
|
/ - / - / - /
fi- lhas quem mo de- ra a mim!
5 6 7 8 9 10 11
• Alexandrino
// / / // ’ / /
| |
/ \ / - - / / - - / -
Ah! quem há de ex- pri- mir, al- ma im- po- ten- te e es-
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11
// / / // ’ / / //
| |
/ - - - / - - / - - - / - / -
cra-va,/O que a bo- ca não diz, o que a mão não es- cre-ve?
12 (13) 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 (13)
// / / // ’ / /
| |
- / - / - / - - - / - / -
O Pen- sa- men- to fer-ve, e é um tur- bi- lhão de la-va;
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 (13)
Referências bibliográficas
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Rio de Janeiro: Paz e Terra.
BRITTO, Paulo Henriques (2002). “Para uma avaliação mais objetiva das traduções de
poesia”. In Krause, Gustavo Bernardo. As margens da tradução. Rio de Janeiro:
FAPERJ/Caetés/UERJ.
CAMÕES, Luís de (1993). Os lusíadas. Intr. e notas de Alexei Bueno. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira.
FUSSELL, Paul (1979). Poetic meter and poetic form. Ed. revista. Nova York:
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