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LIMA, Fernanda Veloso; CARVALHO, Flávio de Oliveira. Antropologia Cultural.

Montes Claros/MG: Editora UNIMONTES, 2013.

Aula 2. A antropologia e a análise das sociedades primitivas – organização


social, sistemas de parentesco, economia, poder e expansão colonial

• No século XIX a antropologia se institui como ciência e adquire identidade


ao definir seu objeto de estudo: as sociedades ditas primitivas.
Posteriormente, percebemos o desaparecimento desse objeto, passando
para dentro de sua própria cultura, até finalmente a sua singularidade em
termos de método, ou seja, o olhar que lançava sobre seu objeto, o
homem em sua totalidade.

As relações da Antropologia com as sociedades primitivas ou selvagens

As sociedades ditas primitivas consistem naquelas


que, a princípio, são consideradas como possuidoras
de uma organização social homogênea, ou seja,
muito mais simples que as sociedades ditas
complexas ou industriais.

São populações cujas comunidades se aglomeram em pequena


escala, ocupam territórios limitados, e a amplitude das relações
sociais são simples, especialmente se comparadas às sociedades
com tecnologia mais desenvolvida e maior especialização e
diversidade de funções sociais.

Desconhecem a divisão política entre dominantes e dominados; dito de outra


forma, é uma sociedade sem Estado.

• A falta de percepção acerca de relações antagônicas,


explorador/explorados, sempre intrigou os ocidentais, visto que desde a
antiguidade grega sempre se admitiu a oposição entre dominantes e
dominados (no sentido político) como sendo uma marca intrínseca da
sociedade humana.

• Assim sendo, as primeiras visões sobre as sociedades simples acabavam


por classificá-las como uma massa uniforme dirigida por instintos e sem
qualquer racionalização sobre sua própria organização social.
Um dos maiores pesquisadores que contribuiu para romper com a ideia de
etapas de evolução, ou, ainda, que as sociedades ditas primitivas consistem em
etapas anteriores da sociedade europeia, a saber, Franz Boas.

Franz Boas - Minden, 1858 — Nova Iorque, 1942

O alemão naturalizado americano, Franz Boas (antropólogo culturalista), pensou


a cultura como um emaranhado de relações, sendo que os indivíduos e grupos
criariam para essas relações, soluções, mediações, ou formas de convivência
particulares.

Estudar uma cultura é perceber a sua


totalidade e considerar as maneiras com
as quais cada uma delas lida com o seu
próprio desenvolvimento.

Instituiu as primeiras observações diretas com as


sociedades ditas primitivas, quando estabeleceu, por
um ano, contato íntimo com os esquimós, os Inuit, da
Ilha de Baffin.

Pensou as culturas humanas como diversas e plurais.

Disse que a comparação entre as culturas somente poderia ser realizada entre
sociedades que possuíssem as mesmas leis, isto é, sociedades que possuíssem
o mesmo conceito de parentesco ou economia, por exemplo.
Como demonstrou Lévi-Strauss, poderíamos distinguir duas histórias
sociais: uma progressiva que acumula suas aquisições somando-as, e
outra, talvez igualmente inventiva, mas que não teria a característica
cumulativa. Contudo, isso não significa que as sociedades não
cumulativas (digamos, simples) e as sociedades cumulativas (digamos,
complexas) constituam um só caminho do desenvolvimento humano, no
qual a primeira seja a infância da segunda.

Claude Lévi-Strauss
Bruxelas, 1908 — Paris, 2009

• Portanto, ainda que aceitemos, em diversos níveis, que as sociedades


primitivas possam ser consideradas mais “simples” em relação às
sociedades modernas (complexas), partiremos do princípio de que sendo
múltiplas as culturas dos seres humanos, são múltiplos, também, os
caminhos que cada povo resolve trilhar no curso de seu desenvolvimento.

Considerações sobre os sistemas de parentesco

Podemos dizer que as relações de parentesco são


similares, ainda que mais complexas, à nossa noção
de família.

O casamento é algo além da união de duas pessoas


ou mesmo de suas famílias adjacentes, formatando,
na verdade, relações entre grupos inteiros, de
maneira que qualquer casamento tem significações
sociais de grande importância.

As relações de parentesco nas sociedades tribais


podem ser representadas como uma outra forma de
manter a ordem e buscar a paz.
Várias linhagens estão inteira e solenemente unidas
pelas trocas de suas filhas.

As relações de parentesco suprimem possibilidades


de conflitos, estabelecem regras para trocas
econômicas e criam normas matrimoniais que
estipulam quais indivíduos podem casar com quais e
que obrigações derivam dessas uniões.

Relações de parentesco na vida das sociedades ditas


primitivas, não são apenas doutrinas fundamentais
das relações econômicas, jurídicas e políticas dessas
sociedades, mas contribuem, também, para delimitar
conceitos ligados à moralidade e até mesmo a
questões de ordem religiosa.

Na base mesmo de qualquer sistema de parentesco


está uma proibição religiosa, a do incesto, pois é essa
proibição que as relações de parentesco estabelecem
para seus membros no exato momento em que
constroem categorias de mulheres com as quais os
homens podem ou não podem casar-se.

Os tipos de relações de parentesco ou grupos de descendência se encontram


organizados de acordo com os mais variados fundamentos.

Clãs Cônicos: possuem uma formação segmentada e


hierarquizada. O tempo genealógico é a primeira regra de
hierarquia desse clã; assim, as pessoas são classificadas
conforme sua longitude do fundador da linhagem.

Sistemas de Linhagem Segmentários: não é hierarquizado; não


existem políticas perenes de chefia ou regionais, mas sim negociações
e arranjos em momento de tensão.

Clãs Territoriais: esse tipo de clã assume e defende um espaço territorial


definido no interior do qual vive a maior parte dos homens adultos; não existe
uma sistematização de cargos de chefia, mas sim líderes locais que representam
seus subclãs ou seus clãs em questões intergrupais.

Clãs Dispersos: essa forma de clã é a mais comum, sendo encontrada em quase todos
os continentes; baseado em descendência comum, matrilinear ou patrilinear; é uma
classe de pessoas, não coordenada, que possuem mesma ancestralidade, mas não
agem como coletividade. Os membros desses clãs vivem espalhados e misturados com
pessoas de outros grupos.

Grupos de Descendência Local Cognáticos: a filiação ao grupo é uma combinação entre


descendência e residência.
O comportamento social e econômico destas tribos normalmente funciona por
lógicas distintas das que interessam à economia moderna.

Nelas, inexistem paradigmas que se baseiam


muito mais em um status social do que
propriamente no ganho pessoal.

Nas organizações sociais não industriais, a


redistribuição da riqueza desempenha um papel
muito importante nas formas como as tribos se
relacionam socialmente.

Dessa maneira, o que um indivíduo possui de excedente é


utilizado para sanar as deficiências de seus amigos,
parentes ou vizinhos, constituindo uma rede que tem por
princípio corrigir as anomalias locais do provimento de
alimentação e tragédias individuais.

Em alguns casos, ainda, essa redistribuição pode estar ligada a


fatores religiosos que estipulam o valor da doação; assim, a religião
também admite um caráter econômico.

o valor material não é valorizado, mas sim, e o que é mais prestigiado, as


vantagens ‘relacionais’ que um negócio (ou troca) pode proporcionar. Ou
seja, essas trocas constituem-se em estratégia social; configuram-se,
portanto, em tratados de paz.

O kula, estudado por Bronisław Malinowski, constitui-se como uma instituição


extremamente complexa que abarca várias tribos em um extenso sistema de
trocas.

Bronisław Malinowski
Cracóvia, 1884 — New Haven, 1942

• Os dois principais artigos dessas trocas são os Soulava (colares de


conchas vermelhas) e os Mwali (Braceletes de conchas brancas).
• Os Soulava e os Mwali partem em rotas contrárias e quando se cruzam
são trocados em cerimônias que, além dessas trocas diretas, envolvem
também trocas secundárias que são essenciais ao funcionamento do
sistema.

• Nessas cerimônias do Kula, quando uma pessoa ganha de outrem uma


doação, fica obrigada, em um intervalo de tempo, a retribuir com uma
oferta de correspondente e honrado valor.

Outro dos exemplos antropológicos mais frutíferos provém da análise de Mauss,


investigando uma atividade não econômica designada de Potlatch, situada entre
os índios da Columbia britânica.

Marcel Mauss
Épinal, 1872 — Paris, 1950

• Trata-se de um sistema de status e posições que era sustentado por uma


competição, segundo a qual as pessoas destruíam ou doavam
demasiadamente enormes quantidades de seus bens.

Evans-Pritchard menciona que negociar (trocar) mercadorias com preços e


padrões de valor determinados soava como uma anomalia a muitos povos.

• Os Nuer (sudão), por exemplo, consideravam suas negociações com os


mercadores árabes como sendo uma troca de presentes, pois na
perspectiva Nuer não existe uma relação entre mercadorias, mas sim
entre pessoas.

Edward Evan (E. E.) Evans-Pritchard


Crowborough, 1902 — Oxford, 1973
Os conceitos de economia pura adotados pelas sociedades industriais estão
longe de operacionalizar categorias que possam explicar as motivações das
transações comerciais das sociedades ditas primitivas

É apenas nas sociedades ocidentais modernas que o dinheiro e o


acúmulo de bens materiais assumem uma força transcendental e
torna-se um comportamento altamente desejável.

Num mundo que paulatinamente passou ao domínio dos Estados-


nação para fazerem dele o que bem entendem, esses povos
descobertos (ou dominados/invadidos) foram colonizados,
classificados e traumatizados culturalmente.

Aculturados seria o conceito técnico correto. Dessa maneira, a expansão da


sociedade industrial moderna se coloca como um processo evolucionário de
“sucesso”, quer dizer, é o processo pelo qual um grupo ascende, se amplia e
diversifica e, por conseguinte, provoca o solapamento dos tipos primitivos
(SAHLINS, Sociedades tribais, 1983).

Marshall Sahlins
Chicago,1930 -

• Existem dois conceitos parecidos, porém distintos entre si, que servem
muito bem ao propósito de caracterizar esse processo, especialmente
porque a história da construção dos impérios coloniais das potências
europeias está recheada de massacres metódicos contra as populações
nativas. São os conceitos de genocídio e etnocídio.

• O genocídio pressupõe a noção de raça e o desejo de extermínio físico


dessa mesma raça; já o etnocídio mata a cultura de um povo, ou seja,
aniquila suas maneiras de agir, pensar e sentir.

• Em suma, o genocídio assassina os povos em seu corpo, o etnocídio os


mata em seu espírito.

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