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A E V O L U Ç Ã O D E U M A CULTURA

Ao nascer membro da espécie humana, cada criança é portadora


de uma herança genética que apresenta muitos aspectos idiossincrásicos,
começando imediatamente a adquirir um repertório de formas de
comportamento sob as contingências de reforço a que se encontra exposta
como indivíduo. A maior parte destas contingências é criada por outras
pessoas. Constituem, com efeito, o que se denomina uma cultura, se bem
que o termo seja habitualmente definido de outras maneiras. Dois eminentes
antropólogos afirmaram, por exemplo, que «o núcleo essencial de uma
cultura64 consiste nas ideias tradicionais (isto é, historicamente extraídas
e seleccionadas) e particularmente nos valores que lhes estão associados.
Contudo, quem estuda culturas não vê ideias nem valores; vê, sim, como
as pessoas vivem, como criam os filhos, como colhem ou cultivam os
alimentos, como são os seus tipos de habitação e vestuário, como se
divertem, como agem entre si, quais são as suas formas de governo e
outros aspectos. Estuda, portanto os costumes, os comportamentos usuais,
de um povo. A fim de explicá-los, somos forçados a debruçar-nos sobre
as contingências que lhes dão origem.
Certas contingências fazem parte do ambiente físico, ainda que actuem
geralmente em combinação com contingências sociais, sendo as últimas
naturalmente postas em relevo por quem estuda uma cultura. As
contingências sociais (os tipos de comportamento que geram) são as «ideias»
de uma cultura, enquanto os reforçadores que emergem das contingências
são os seus «valores».
A pessoa não só se encontra exposta às contingências que constituem

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uma cultura como ainda contribui para a sua manutenção e, na medida


em que as contingências a induzem a fazê-lo, a cultura perpetua-se a
si mesma. Os reforçadores presentes numa dada cultura constituem matéria
de observação que não podemos contestar. O que determinado grupo de
indivíduos classifica de bom é um facto: constitui aquilo que certos membros
do grupo consideram reforçante em consequência da sua constituição
genética e das contingências naturais e sociais a que estiveram expostos.
Toda a cultura tem o seu próprio conjunto de «bens», logo aquilo que
se considera bom numa cultura pode não sê-lo noutra. Reconhecer tal
é assumir a posição do «relativismo cultural». O que é bom para o indígena
da ilha de Trobriand é bom para o indígena da ilha de Trobriand e daí
não passamos.
Os antropólogos têm frequentemente posto em relevo o relativismo
como uma alternativa tolerante para o zelo missionário de converter todas
as culturas num único conjunto de valores éticos, governamentais, religiosos
ou económicos.
Um dado conjunto de valores poderá explicar porque funciona uma
cultura, possivelmente sem apresentar muitas alterações, durante um longo
período de tempo; nenhuma cultura está, porém, em permanente equilíbrio.
As contingências mudam necessariamente. O ambiente físico sofre
modificações à medida que as pessoas se deslocam, o clima se altera,
os recursos naturais se esgotam, são aproveitados para outros fins ou
deixam de ter utilidade, e assim sucessivamente. As contingências sociais
também se modificam à medida que as proporções de um grupo ou as
suas relações com outros grupos se alteram, as instituções de controlo
se tornam mais ou menos poderosas ou competitivas entre si ou o controlo
exercido conduz a formas de contracontrolo como, por exemplo, a fuga
ou a revolta. Caso não se transmita adequadamente as contingências
características de uma dada cultura, não se mantém a tendência para
se ser reforçado por um determinado conjunto de valores e, por conseguinte,
poderá então estreitar-se ou alargar-se a margem de segurança com que
se enfrenta emergências. Em resumo, a cultura pode tornar-se mais forte
ou mais fraca e podemos prever se irá sobreviver ou perecer. A sobrevivência
de uma cultura emerge assim como um novo valor a tomar em consideração,
a adicionar aos «bens» pessoais e sociais.
O facto de uma cultura poder sobreviver ou perecer sugere uma
evolução, pelo que, naturalmente, se tem traçado com frequência um
paralelismo com a evolução da espécie. Tal paralelismo deve ser rodeado
de prudência. Uma cultura corresponde a uma espécie e descrevêmo-la

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A EVOLUÇÃO DE UMA CULTURA

enumerando muitas das suas práticas, tal como descrevemos uma espécie
através da enumeração das suas características anatómicas. Duas ou mais
culturas podem partilhar uma prática, do mesmo modo que duas ou mais
espécies podem partilhar uma característica anatómica. À semelhança das
características de uma dada espécie, as práticas de uma cultura são
veiculadas pelos seus membros, que as transmitem a outros. De uma maneira
geral, quanto maior for o número de indivíduos que veiculam uma espécie
ou uma cultura, tanto maiores serão as suas possibilidades de sobreviver.
Tal como uma espécie, uma cultura é seleccionada pela sua adaptação
a um dado ambiente: na medida em que uma cultura ajuda os seus membros
a prover às suas necessidades e a evitar os perigos, ela ajuda-os a sobreviver
e a transmitir a cultura. Os dois tipos de evolução estão intimamente
entrelaçados. Os mesmos indivíduos transmitem tanto uma cultura como
uma constituição genética, se bem que de maneiras muito diferentes e
durante períodos diferentes das suas vidas. A capacidade de sofrer as
modificações comportamentais que tornam possível uma cultura foi
adquirida durante uma evolução da espécie e, reciprocamente, a cultura
determina muitas das características biológicas transmitidas. Muitas culturas
actuais, por exemplo, possibilitam aos indivíduos (que de outro modo
não o conseguiriam) sobreviver e procriar. Nem todas as práticas de uma
cultura assim como nem todas as características de uma espécie são
adaptativas, já que determinadas práticas e características não-adaptativas
podem ser veiculadas por outras adaptativas. Deste modo, certas culturas
e espécies que são pouco adaptativas podem sobreviver durante muito
tempo.
A mutações genéticas correspondem novas práticas. Uma nova prática
pode enfraquecer uma cultura (por exemplo, conduzindo a um consumo
supérfluo de recursos ou debilitando a saúde dos seus membros) ou forta-
lecê-la (ajudando os seus membros, por exemplo, a utilizar os recursos
naturais de uma maneira mais eficaz ou a melhorar a sua saúde). À
semelhança de uma mutação, uma alteração da estrutura de um gene
não está relacionada com as contingências de selecção que afectam a
característica resultante, pelo que a origem de uma dada prática também
não está necessariamente relacionada com a seu valor de sobrevivência.
A alergia alimentar de um chefe influente poderá dar origem a uma lei
dietética, determinada idiossincrasia sexual a uma prática matrimonial,
as características de um terreno a uma estratégia militar (e as práticas
poderão ser ainda valiosas para a cultura por razões completamente
divorciadas entre si). Como é evidente, as origens de muitas práticas

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culturais remontam a meros acidentes. Como sofresse as incursões de


tribos que desciam das suas fortalezas naturais constituídas pelas colinas
circundantes, a primitiva Roma65, sita numa planície fértil, promulgou
leis relativas à propriedade que sobreviveram ao problema original. Ao
demarcar de novo as terras, após as cheias anuais do Nilo, os egípcios
desenvolveram a trigonometria, que provou ser vantajosa por muitas outras
razões.
O paralelismo entre as evoluções biológica e cultural perde-se quando
confrontamos os aspectos referentes à transmissão. Nada existe de
semelhante ao mecanismo cromossoma-gene na transmissão de uma prática
cultural. A evolução cultural é lamarckiana no sentido em que as práticas
adquiridas se transmitem. Para citar um exemplo já muito usado, a girafa
não estica o pescoço para alcançar alimentos que, de outro modo, se
encontram fora do seu alcance, transmitindo depois um pescoço mais
longo à sua prole; em vez disso, aquelas girafas nas quais a mutação
produziu pescoços mais compridos têm mais probabilidades de chegar
a alimentos disponíveis e, portanto, de transmitir a mutação. A cultura
que desenvolva uma dada prática que lhe permite alcançar fontes
alimentares (que de outro modo continuariam inacessíveis) pode, no entanto,
transmitir essa prática não só a novos membros como também a
contemporâneos ou a sobreviventes de uma geração precedente. E, o que
é mais importante, uma prática pode ainda ser transmitida a outras culturas
por «difusão» (como se os antílopes, apercebendo-se da utilidade de um
pescoço comprido nas girafas, viessem a ter pescoços mais compridos).
As espécies estão isoladas entre si pela intransmissibilidade das
características genéticas, mas não existe isolamento comparável entre as
culturas. Uma cultura é um conjunto de práticas, mas não um conjunto
que não seja susceptível de misturar-se com outros.
Somos levados a associar uma cultura a um grupo de indivíduos:
torna-se mais fácil ver as pessoas do que o seu comportamento, do mesmo
modo que é mais fácil observar o comportamento do que as contingências
que o produzem. (Também facilmente observáveis, e por isso frequentemente
invocados quando se define uma cultura, são a língua falada e os objectos
usados pela cultura, tais como utensílios, armas, vestuário e objectos de
arte.) Só na medida em que identificarmos uma dada cultura com os
indivíduos que a praticam podemos falar de um «membro de uma cultura»,
uma vez que não se pode ser membro de um conjunto de contingências
de reforço ou de um conjunto de artefactos (ou, ainda pela mesma razão,
de um «conjunto de ideias e dos valores que lhe estão associados»).

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A EVOLUÇÃO DE UMA CULTURA

Vários tipos de isolamento podem produzir uma cultura bem definida


se limitarem a transmissibilidade das práticas culturais. Sugere-se o
isolamento geográfico quando se fala de uma cultura «samoa», ou
características rácias que podem interferir na permuta de práticas por
parte de uma cultura «polinésica». Uma instituição ou sistema dominante
de controlo poderá conservar intacto um conjunto de práticas, Uma cultura
democrática, por exemplo, é um ambiente social caracterizado por
determinadas práticas governamentais e apoiado em compatíveis práticas
éticas, religiosas, económicas e educacionais. Uma cultura cristã,
muçulmana ou budista sugere um controlo religioso dominante; por sua
vez, uma cultura capitalista ou socialista implica um conjunto predominante
de práticas económicas, cada uma daquelas associada possivelmente a
práticas compatíveis de outras naturezas. Uma cultura definida por um
governo, religião ou sistema económico não exige necessariamente um
isolamento geográfico ou rácico.
Ainda que seja muito menos rigoroso o paralelismo traçado entre
as evoluções biológica e cultural no que toca à transmissibilidade, a noção
de evolução cultural continua a ter utilidade. Surgem práticas novas que
tendem a transmitir-se quando contribuem para a sobrevivência daqueles
que as adoptam. Com efeito, podemos estudar a evolução de uma cultura
de uma maneira mais precisa do que a evolução de uma espécie, uma
vez que as condições essenciais são observadas e não inferidas podem
muitas vezes ser ainda manipuladas directamente. Não obstante, tal como
vimos, só agora começámos a compreender o papel do ambiente; além
disso, raramente é fácil identificar o ambiente social que constitui uma
cultura, já que se encontra em mutação permanente, carece de substância
e confunde-se facilmente com as pessoas que o mantêm e por ele são
influenciadas.
Dado que uma cultura tende a identificar-se com as pessoas que
a praticam, tem-se usado o princípio da evolução para justificar a competição
entre culturas de acordo com a assim chamada «doutrina do darwinismo
social»66. Tem-se defendido guerras que opõem governos, religiões, sistemas
económicos, raças e classes com a justificação de que a sobrevivência
do mais apto é uma lei da natureza, de uma natureza dotada de «dentes
e garras sanguinários». Se o homem existe como espécie superior, porque
não havemos de aspirar a uma subespécie ou raça superior? Se a cultura
evoluiu por um processo idêntico, porque não antever uma cultura superior?
É certo que as pessoas se matam umas às outras, muitas vezes por práticas
que parecem definir culturas. Um dado governo ou forma de governo

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compete com outro(a), competição esta que se traduz principalmente nas


despesas militares. Paralelamente, os sistemas religiosos e económicos
recorrem a medidas de natureza militar. A «solução para o problema
judaico» por parte dos nazis constituiu uma luta competitiva de vida ou
de morte. E, numa competição deste tipo, são os fortes que parecem
sobreviver. Todavia, tal como o homem, nenhuma instituição governamental,
religiosa ou económica sobrevive por um período de tempo muito longo.
O que evolui são as práticas.
A competição com outras formas não constitui, quer na evolução
biológica quer na cultural, a única condição importante de selecção, pois
tanto as espécies como as culturas «competem», antes de mais nada, com
o ambiente físico. A maior parte das características anatómicas e fisiológicas
de uma espécie relaciona-se com a respiração, a alimentação, a manutenção
de uma temperatura adequada, a sobrevivência ao perigo, a luta contra
as infecções, a procriação, etc. Apenas uma pequena parte dessas
características diz respeito ao êxito na luta contra outros membros da
mesma espécie ou de outras espécies e a isso deve a sua sobrevivência.
Analogamente, a maior parte das práticas que compõe uma cultura diz
mais respeito à subsistência e à protecção do que à competição com outras
culturas, tendo sido seleccionadas por contingências de sobrevivência
nas quais o sucesso obtido na competição desempenhou papel de pouca
monta.
Uma cultura não é o produto de um «espírito colectivo» nem a
expressão de uma «vontade geral». Nenhuma sociedade começou com
um contrato social; nenhum sistema económico com um plano de permutas
ou salários; nenhuma estrutura familiar com uma perspectiva das vantagens
da coabitação. Uma cultura evolui quando novas práticas propiciam a
sobrevivência daqueles que as adoptam.
Quando se torna evidente que uma dada cultura é susceptível de
sobreviver ou perecer, pode acontecer que alguns dos seus membros
comecem a actuar com vista a promover a sua sobrevivência. Aos dois
valores que, como vimos, podem afectar quantos se encontram em posição
de utilizar uma tecnologia do comportamento - os «bens» pessoais, que
actuam como reforçadores em consequência da constituição genética
humana, e os «bens» dos outros, que são extraídos de reforçadores pessoais
- devemos agora acrescentar um terceiro: o bem de uma cultura. Mas
porque é ele eficaz? Por que motivo hão-de as pessoas do último quartel
do século XX importar-se com o que serão as pessoas do último quartel
do século XXI? Qual será a sua forma de governo? Como e porque

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(Rousseau chegou à mesma conclusão no tocante à educação: metade das


crianças submetidas às práticas educacionais punitivas do seu tempo não
viviam o suficiente para desfrutar dos supostos benefícios.) As honras
concedidas ao herói vivo sobrevivem-lhe sob a forma de monumentos.
Tal como o saber acumulado, a riqueza acumulada sobrevive àquele que
a acumula: certos homens ricos criam fundações que portam o seu nome,
enquanto a ciência e a erudição têm os seus heróis. A noção cristã da
vida depois da morte poderá ter tido a sua origem no reforço social daqueles
que em vida sofrem pela sua religião. O céu é pintado como uma colecção
de reforçadores positivos e o inferno como uma colecção de reforçadores
negativos, se bem que estejam ligados a acções praticadas antes da morte.
(A sobrevivência pessoal além-túmulo poderá constituir um esboço de
representação metafórica do conceito evolucionista do valor de
sobrevivência.) Como é ev/dente, o indivíduo não é directamente afectado
por tais coisas: apenas colhe benefícios dos reforçadores condicionados
usados por outros membros da sua cultura que lhe sobrevivem e são
directamente afectados.
Nada do que acabamos de debater explica aquilo a que poderíamos
chamar uma preocupação pura com a sobrevivência de uma cultura, mas
na realidade nem precisamos de uma explicação. Do mesmo modo que
não necessitamos de explicar a origem de uma dada mutação genética
a fim de justificar o seu efeito na selecção natural, também não precisamos
de explicar a origem de uma dada prática cultural a fim de demonstrar
a sua contribuição para a sobrevivência de uma cultura. Acontece apenas
que tem mais probabilidades de sobreviver aquela cultura que, por qualquer
razão, induza os seus membros a trabalhar para a sobrevivência dessa
cultura ou de algumas das suas práticas. A sobrevivência é, pois, o único
valor pelo qual se deve eventualmente julgar uma dada cultura e qualquer
prática que contribua para a sobrevivência tem, por definição, valor de
sobrevivência.
Caso se considere pouco satisfatória a afirmação de que qualquer
cultura que, por qualquer razão, induza os seus membros a trabalhar
para a sua sobrevivência apresenta mais probabilidades de sobreviver e
perpetuar tais práticas, devemos recordar-nos de que há muito pouco que
explicar. As culturas raramente geram um interesse puro pela sua
sobrevivência, um interesse totalmente liberto dos enfeites jingoístas,
aspectos raciais, localizações geográficas ou práticas oficializadas com
que as culturas tendem a ser identificadas.
Quando se põe em causa os bens dos outros, em especial os bens

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A EVOLUÇÃO DE UMA CULTURA

de instituições organizadas, não é fácil responder apontando vantagens


a usufruir a longo prazo. Assim, os cidadãos contestam o seu governo
quando se recusam a pagar impostos, a servir nas forças armadas ou
a participar em eleições, por exemplo, mas esse governo poderá responder
ao desafio fortalecendo as contingências que manipula ou levando o
comportamento em questão a ser influenciado por ganhos a longo prazo.
No entanto, como responderá esse mesmo governo à pergunta: «Porque
hei-de importar-me com a sobrevivência do meu governo (ou da minha
forma de governo) muito para além da minha morte?» Analogamente,
os fiéis lançam um repto a uma organização religiosa quando deixam
de ir à igreja, não contribuem para a sua subsistência ou não zelam
politicamente pelos seus interesses, mas a organização religiosa poderá
responder ao repto fortalecendo as contingências que controla ou apontando
para ganhos a longo prazo. Contudo, como responderá à pergunta: «Porque
hei-de contribuir para a sobrevivência a longo prazo da minha religião?»
As pessoas põem em causa um sistema económico quando, por exemplo,
não trabalham produtivamente, mas o sistema económico poderá reagir
tornando as contingências mais acutilantes ou lembrando vantagens a
longo prazo. Mas qual será a sua resposta à pergunta: «Porque hei-de
preocupar-me com a sobrevivência de determinado tipo de sistema
económico?» Quer parecer-nos que a única resposta honesta a tais perguntas
será a seguinte: «Não existe qualquer razão válida para que devamos
preocupar-nos; e, se a nossa cultura não nos convenceu de que existe,
então tanto pior para ela.»
Torna-se ainda mais difícil explicar qualquer acção que vise fortalecer
uma única cultura para toda a humanidade. Uma pax romana ou americana,
um mundo preparado para a democracia, o comunismo mundial ou uma
igreja «católica» inspiram o apoio de instituições poderosas, ao passo
que uma cultura mundial «pura» o não faz nem tem probabilidades de
emergir da competição bem sucedida entre organizações religiosas,
governamentais ou económicas. Apesar disso, podemos apresentar muitas
razões para que nos devamos preocupar com o bem de toda a humanidade.
Os grandes problemas que o mundo actual enfrenta são todos de carácter
global. Uma população excessiva, o esgotamento de certos recursos, a
poluição ambiental e a possibilidade de um holocausto nuclear constituem
as consequências «não-muito-remotas» de determinadas linhas de acção
actuais. Não basta, porém, chamar a atenção para as consequências: devemos
criar contingências nas quais essas consequências actuem de uma dada
maneira. Como poderão as culturas do mundo fazer com que tais

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possibilidades aterradoras afectem de algum modo o comportamento dos


seus membros?
Naturalmente, o processo da evolução cultural não terminaria se
existisse apenas uma cultura, do mesmo modo que a evolução biológica
não se deteria se houvesse apenas uma espécie de maior importância,
presumivelmente a humana. Transformar-se-iam algumas condições
importantes da selecção, enquanto outras seriam eliminadas, sem que
deixasse de verificar-se mutações sobre as quais a selecção exerceria a
sua acção, além de que continuariam a surgir novas práticas. Não haveria,
no entanto, razões para falarmos de uma cultura, pois seria evidente que
lidaríamos apenas com práticas, do mesmo modo que, em relação a uma
única espécie, nos referiríamos somente a características.
A evolução de uma cultura põe certas questões respeitantes aos
chamados «valores» a que se não deu ainda respostas cabais. Será
«progresso» a evolução de uma cultura? Qual é o seu objectivo ou meta?
Será essa meta um tipo de efeito muito diferente das consequências, reais
ou falsas, que induzem os indivíduos a agir para a sobrevivência da sua
cultura?
Pode parecer que uma análise estrutural se esquive a tais interrogações.
Se apenas focarmos a nossa atenção no que as pessoas fazem, somos
levados a pensar que a evolução de uma cultura se processa simplesmente
através de uma sequência de estádios e, mesmo que falte um dado estádio
no desenvolvimento de uma cultura, podemos ainda assim demonstrar
uma certa ordem característica. O estruturalista procura encontrar uma
explicação para o facto de um dado estádio suceder a outro dentro do
padrão da sequência. Tecnicamente falando, tenta encontrar razões para
uma variável dependente sem a relacionar com quaisquer variáveis
independentes. O facto evolução ocorrer no tempo sugere, no entanto,
que este poderá constituir uma variável independente útil. Como explicou
Leslie White, «podemos definir a evolução como uma sequência temporal
de formas: cada forma provém de outra. A cultura avança de um estádio
para outro. Neste processo, o tempo constitui um factor tão integral quanto
a mudança de forma»67.
É com frequência que falamos de «desenvolvimento» quando se trata
de transformações que ocorrem no tempo e denotam determinada orientação.
Os geólogos fazem remontar o desenvolvimento da terra através de várias
eras, enquanto os paleontólogos estudam a evolução das espécies. Os
psicólogos, por sua vez, acompanham o desenvolvimento do ajustamento
psicossexual, por exemplo. Podemos seguir o desenvolvimento de uma

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A EVOLUÇÃO DE UMA CULTURA

cultura através da análise dos materiais utilizados (da pedra ao bronze


e ao ferro), dos modos de obter alimentos (da colheita à caça, à pesca,
ao cultivo), da sua utilização do poder económico (do feudalismo ao
mercantilismo, ao industrialismo, ao socialismo) e assim sucessivamente.
Ainda que tais factos sejam relevantes, as transformações ocorrem,
não devido à passagem do tempo, mas em consequência do que acontece
à medida que o tempo passa. O período cretaico não surgiu num dado
estádio do desenvolvimento da terra como resultado de uma sequência
fixa pré-determinada, mas sim porque uma dada condição precedente da
terra levou a determinadas modificações. O casco do cavalo não se
desenvolveu em virtude da passagem do tempo, mas devido à selecção
de determinadas mutações que favoreceram a sobrevivência do cavalo
no ambiente em que vivia. As proporções do vocabulário de uma criança
ou as formas gramaticais que usa não variam consoante a idade, mas
sim de acordo com as contingências verbais predominantes na comunidade
a que esteve exposta. A criança adquire o «conceito de inércia» numa
certa idade devido apenas às contingências de reforço, sociais ou não,
que produziram o comportamento que se diz denotar a posse de tal conceito.
As contingências «evoluem», tanto quanto o comportamento por elas gerado.
Se os estádios de um dado desenvolvimento se sucedem numa ordem
fixa, é porque cada estádio cria as condições responsáveis pelo seguinte.
A criança precisa de saber andar antes de correr ou pular; tem de possuir
um vocabulário rudimentar para ser capaz de «articular estruturas grama­
ticais»; tem de possuir formas simples de comportamento antes de adquirir
aquele comportamento que se diz revelar a posse de «conceitos complexos».
Põe-se as mesmas questões em relação ao desenvolvimento de uma
cultura. As práticas de colher alimentos precederam naturalmente a
agricultura, não devido a determinado padrão essencial, mas sim porque
as pessoas precisam de subsistir de alguma maneira (colhendo alimentos,
por exemplo) enquanto não adquirem práticas agrícolas. A ordem necessária
presente no determinismo histórico de Kart M a r reside nas contingências
e a luta de classes constitui uma representação grosseira das maneiras
como os homens se controlam reciprocamente. A ascensão dos mercadores,
o declínio do feudalismo e o aparecimento posterior de uma era industrial
(a que sucederá possivelmente o socialismo ou um Estado-providência
(welfare state) dependem em larga medida de transformações ocorridas
nas contingências económicas de reforço.
Um «desenvolvimento» puro, que se satisfaça com padrões de
mudanças sequenciais de estrutura, perde a oportunidade de explicar o

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PARA ALEM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

comportamento em termos genéticos e ambientalmente evolutivos. Perde


igualmente a oportunidade de alterar a ordem por que se sucedem os
estádios de uma evolução ou ainda o ritmo com que o fazem. Num ambiente-
padrão, a criança pode adquirir conceitos numa ordem-padrão, mas tal
ordem é determinada por contingências que poderão ser alteradas. De
um modo idêntico, uma cultura pode desenvolver-se através de uma
sequência de estádios à medida que as consequências evoluem, mas está
ao nosso alcance criar uma ordem diferente de contingências. Não podemos
alterar a idade da terra ou de uma criança; no caso da criança, porém,
não precisamos de esperar pela passagem do tempo para modificar as
coisas que acontecem à medida que este passa.
O conceito de desenvolvimento emaranha-se nos chamados «valores»
quando encaramos como crescimento as mudanças que denotam uma
determinada orientação. Uma maçã em crescimento passa por uma sequência
de estádios, um dos quais será eventualmente o melhor. Rejeitamos as
maçãs verdes e podres; só as maduras são boas. Por analogia, falamos
de pessoas ou culturas amadurecidas. O lavrador trabalha para que as
suas searas amadureçam sem perigo, assim como os pais, professores
e terapeutas se esforçam por produzir uma pessoa amadurecida.
Consideramos multas vezes as transformações no sentido da maturidade
como acções que fazem parte de um «vir a ser». Se essa evolução for
interrompida, referimo-nos a um desenvolvimento bloqueado ou
interrompido, que procuramos remediar. Quando as transformações se
processam lentamente, falamos em atraso e procuramos acelerar o processo.
Todavia, tais valores, altamente apreciados, perdem o seu significado (ou
pior ainda) quando se atinge a maturidade. Ninguém anseia por «vir
a ser» ou tornar-se senil; a pessoa amadurecida ficaria muito satisfeita
se o seu desenvolvimento fosse bloqueado ou interrompido. A partir desse
ponto, não se importaria de se «atrasar».
Constitui erro supor que toda a transformação ou desenvolvimento
é crescimento. Não podemos afirmar que a superfície terrestre tenha atingido
(ou não) a maturidade, do mesmo modo que, tanto quanto sabemos, o
cavalo não alcançou ainda determinado estádio definitivo e presumivelmente
ideal no seu desenvolvimento evolucionário. Se é certo que a linguagem
da criança nos dá a impressão de desenvolver-se como um embrião68,
isso explica-se apenas porque temos negligenciado as contingências
ambientais. A criança selvagem não possui qualquer linguagem69, não
porque o seu isolamento tenha afectado qualquer processo de crescimento,
mas sim em consequência de não haver estado exposta a uma comunidade

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A EVOLUÇÃO DE UMA CULTURA

verbal. Não temos razões para classificar qualquer cultura de madura,


no sentido de que seja improvável qualquer crescimento ulterior ou de
que este assumiria necessariamente uma forma de deterioração.
Consideramos certas culturas como subdesenvolvidas ou imaturas, em
contraste com outras a que damos o nome de «desenvolvidas»; não passa,
no entanto, de uma forma grosseira de jingoísmo sugerir que um dado
governo, religião ou sistema económico atingiu a maturidade.
Ao encararmos tanto o desenvolvimento de um indivíduo como a
evolução de uma cultura, a principal objecção à metáfora do crescimento
reside no facto de esta pôr em relevo um estádio final que não possui
qualquer função. Afirmamos que um organismo cresce no sentido da
maturidade ou a fim de atingir a maturidade. Esta converte-se, por
conseguinte, numa meta e o progresso, em movimento na direcção de
uma dada meta. Meta é literalmente um ponto de chegada, o términus
de algo como, por exemplo, uma corrida pedestre. O único efeito que
produz na corrida é fazê-la terminar. Empregamos a palavra neste sentido
relativamente vazio quando dizemos que a meta da vida é a morte ou
que a meta da evolução é povoar a terra. A morte é, indubitavelmente,
o fim da vida, assim como um mundo povoado poderá constituir o fim
da evolução, mas estes estados finais nada têm a ver com os processos
pelos quais são atingidos. Não vivemos para morrer nem a evolução se
processa para povoar toda a terra.
Confunde-se facilmente a meta como termo de uma corrida com a
vitória e, portanto, com as razões que levaram alguém a participar na
corrida ou com o propósito de quem participou. Numa fase recuada dos
estudos da aprendizagem, os investigadores utilizavam labirintos e outros
instrumentos laboratoriais nos quais uma dada meta dava a impressão
de mostrar a posição de um reforçador em relação ao comportamento
de que resultava - o organismo movimentava-se em direcção a uma meta.
Contudo, a relação importante é temporal, não o persegue nem o ultrapassa.
Explicamos o desenvolvimento de determinada espécie e do comportamento
de um dado membro da espécie assinalando a acção selectiva por parte
das contingências de sobrevivência e reforço. Tanto a espécie como o
comportamento do indivíduo desenvolvem-se quando são modelados e
preservados pelos seus próprios efeitos sobre o mundo que os cerca.
É este o único papel a desempenhar pelo futuro.
Isto não quer, porém, dizer que não haja uma determinada orientação
na evolução. Desenvolveu-se muitos esforços no sentido de caracterizar
a evolução como uma transformação orientada - como um aumento

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incessante de complexidade estrutural, da susceptibilidade à estimulação


ou da utilização eficaz da energia, por exemplo. Existe ainda uma outra
possibilidade importante: ambos os tipos de evolução tornam os organismos
mais sensíveis às consequências das suas próprias acções. Presumimos
que os organismos que têm mais probabilidades de sofrer modificações
devido a certos tipos de consequências tenham estado em vantagem; por
outro lado, uma cultura submete o indivíduo ao controlo de consequências
remotas que não poderiam ter desempenhado qualquer papel na evolução
física da espécie. Um bem pessoal remoto toma-se eficaz quando a pessoa
é controlada para o bem dos outros e aquela cultura que induza alguns
dos seus membros a trabalhar para a sobrevivência da própria cultura
põe em jogo uma consequência ainda mais remota.
A tarefa do planeador cultural consiste em acelerar o desenvolvimento
de práticas que façam com que passem a actuar as consequências remotas
do comportamento. Voltemo-nos ora para alguns dos problemas que se
lhe deparam.
O ambiente social constitui aquilo a que damos o nome de cultura.
Dá forma e preserva o comportamento daqueles que nele vivem. Uma
dada cultura evolui à medida que surgem práticas novas, possivelmente
por motivos irrelevantes, e são seleccionadas pelo seu contributo para
o fortalecimento da cultura à medida que esta «compete» com o meio
físico e com outras culturas. Um passo de maior monta é o aparecimento
de práticas que induzem os membros de determinada cultura a trabalhar
pela sobrevivência desta. Tais práticas não podem fazer-se remontar a
«bens» pessoais, mesmo quando sejam usados para benefício alheio, uma
vez que a sobrevivência de uma cultura para além do tempo de vida
do indivíduo não pode servir como fonte de reforçadores condicionados.
Outras pessoas podem sobreviver àquelas que induzem a agir para seu
benefício e a cultura cuja sobrevivência está em jogo é muitas vezes
identificada com elas ou com as suas organizações; porém, a evolução
de uma cultura introduz outro tipo de bem ou valor. Aquela cultura que,
por qualquer razão, induza os seus membros a trabalhar pela sobrevivência
dela própria tem mais probabilidades de sobreviver. Trata-se, por
conseguinte, de uma questão relativa ao bem da cultura e não do indivíduo.
O planeamento de uma cultura promove esse bem através da aceleração
do processo evolucionário e, uma vez que uma ciência e uma tecnologia
do comportamento contribuem para um planeamento melhor, constituem
«mutações» importantes na evolução de uma cultura. Se podemos falar
de qualquer propósito ou orientação na evolução de uma dada cultura,

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A EVOLUÇÃO DE UMA CULTURA

esse aspecto dirá respeito aos meios de fazer com que as pessoas fiquem
cada vez mais submetidas ao controlo das consequências do seu próprio
comportamento.

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