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NARRATIVA E MEMÓRIA SOBRE A PALAVRA NA

HETERODISCURSIVIDADE

AS CRÔNICAS MARCIANAS: ANÁLISE DA NARRATIVA


HETERODISCURSIVA DOS PERSONAGENS DE “ENCONTRO NOTURNO”
1
Gabriel Vicente Alves Silva

Resumo

Este trabalho tem como objetivo analisar o conto “Encontro Noturno”, do livro As
Crônicas Marcianas (Ray Bradbury) em uma perspectiva bakhtiniana. Neste sentido,
analisar a narrativa do texto para explicitar eventos de memória futuras e passadas
(do conto) transmitidas pela palavra (diálogo) no heterodiscurso dos personagens da
obra. Logo, este trabalho incorpora uma análise sobre a relação de projeto de dizer
dos sujeitos leitores, sujeitos personagens de maneira intersubjetiva dada pela
construção composicional do livro no heterodiscurso no espaço-tempo (cronotopo)
dos sujeitos, mostrando assim o quanto o tempo pode “acontecer simultaneamente”
em sujeitos através da palavra. Serão incorporadas estas perspectivas para visualizar,
no livro, a maneira como teorias tão densas podem se discorrer à partir do conto de
ficção científica relativamente antigo, de forma lúdica e mais acessível para uma
leitura crítica da(s) realidade(s) interligadas.

Palavras-chave​: Personagens. Diálogo. As Crônicas Marcianas. Encontro Noturno.


Heterodiscurso.

Introdução

Crônicas Marcianas é um livro que reúne contos de Ficção Científica


norte-americanas sobre viagem espacial e migração de humanos à marte. Escrito por
Ray Bradbury, a escrita teve início em 1950 e editado e compilado pelo autor em 1977
após o último conto presente no livro ter sido escrito. O livro possui 26 contos, que
em sua época foram escritos para serem futurísticos, visto que o primeiro conto se
passa em 1999 e o último, em 2026. Cada história possui em suma Marte como
personagem fixo e o que se passa em sua superfície é contada a partir de datas e
visões de personagens e suas respectivas narrativas, como crônicas do planeta e a
relação que os humanos têm com a chegada a Marte.
O livro traz uma dinâmica de ligação dos contos, de alguma forma,
representando sempre as consequências dos atos responsáveis dos personagens em
espaço-tempo diferentes, em Marte-Terra e viceversa. E é nesse sentido que este
artigo irá seguir: a partir da narrativa e da memória através da palavra (diálogo), no

1
Graduando em Letras pela Universidade Federal de Lavras (UFLA).
E-mail:gabrielvicentevicente17@gmail.com
2
cronotopo (espaço-tempo) intersubjetivo de sujeito leitor e sujeito personagem para
identificar como a memória se discorre através de narrativas de cronotopos
diferentes, provocando assim o heterodiscurso. Neste sentido, é relevante a análise
do conto pois “(...) na visão plástico-pictural do homem é o vivenciamento das
fronteiras externas que o abarcam.” (BAKHTIN, 2011, p. 34).
Para tanto, será utilizado especialmente o conto “Encontro Noturno”, que
retrata a narrativa de um operário que ficou semanas trabalhando e resolve parar em
um posto para abastecer seu carro, em uma viagem de volta de uma festa de
reencontro com seus companheiros. A problemática central do conto é de que o
personagem Tomaz encontra um marciano nativo de outro tempo, e o diálogo de
quem está vivo e quem está morto e quem está no tempo “certo” começa em um ciclo
de heterodiscurso através da narrativa intersubjetiva. Nesse sentido, para que o leitor
se sinta contextualizado, será feita uma breve análise do cronotopo do autor e do
livro no contexto que foi publicado.

1 O contexto espaço-temporal da obra

A obra, como já descrito, foi publicada, editada e compilada no período de


1950 até 1977, sendo as seguintes publicações, apenas reimpressões. Assim, é
importante o leitor ter em mente que a obra é norte-americana, e que por isso ​Ray
Bradbury fala de uma visão particular perante acontecimentos que ocorriam na
época. Ray era um romancista americano, contista e ensaísta nascido em 22 de
agosto de 1920 em Waukegan, Illinois. Após concluir o Ensino Médio, dedicou-se a
escrever e ler. Se tornou em 1943 um escritor, após vendas e publicações em revistas
de suas histórias, incluindo ​The Martian Chronicles ​ou as Crônicas Marcianas em 1950.
3

E o que aconteceu de tão especial neste período de tempo, exotopicamente, ou


seja, perante a troca dialógica da sociedade e autor-sujeito? Antes de mais nada é
importante ressaltar que

A criação estética ou de pesquisa implica sempre um


movimento duplo: o de tentar enxergar com os olhos do outro e
o de retornar à sua exterioridade para fazer intervir seu próprio
olhar: sua posição singular e única num dado contexto e os
valores que ali afirma (AMORIM, 2006, pág. 102.)

Logo, no contexto estadunidense, dada a característica econômica e política do


país, o lugar exercia uma forte influência sobre o mundo. Há pouco mais de 20 anos,
antes da obra de Ray ser escrita, EUA viu-se em uma de suas maiores crises
financeiras (Crise de 1929), viu-se na Segunda Guerra Mundial há menos de 6 anos
antes da obra, e viu-se lucrando com o fim dela. A política de imigração começara a
ser pensada, pois diversas famílias de partes da Europa procuraram refúgio nas
terras da “liberdade”. O que resultou numa ideia conservadora anos depois com a
vinda da presidência de Nixon, a Guerra do Vietnã, contracultura e a xenofobia e

2
Do grego, crono: tempo (como o titã representado na mitologia, e topo: lugar. Bakhtin usa este conceito para
exercer um papel no romance e seus estudos em seu livro Teoria do Romance II: As formas do tempo e do
cronotopo.
3
Para mais informações. ​http://www.raybradbury.com/bio.html
intolerância com outros povos por parte de alguns políticos e pessoas do país, devida
ao movimento sócio-político com os acontecimentos da época. (GILBERT, 2017).
Com este breve resumo sobre alguns acontecimentos estadunidenses e
mundiais, é possível ter uma noção do quanto os Estados Unidos estavam cada vez
mais em voga no mundo, e a um passo da globalização. No entanto, além destes
fatos, um em específico pode ter surgido como influência de Ray para a escrita do
livro: a Corrida Espacial e a disputa tecnológica neste contexto entre URSS (União
das Repúblicas Socialistas Soviéticas) e EUA (Estados Unidos da América). Tendo em
mente que o atrito cultural e o compartilhamento de vivências entre os dois povos
era algo impensável, uma disputa cultural e ideológica se alastrava nas nações, de
um lado os EUA com a tecnologia espacial e o primeiro homem a pisar na lua e URSS
com Sputinik e Laika, o primeiro ser vivo a ir para o espaço.
A figura 1 retrata: Valentina Tereshkova, a primeira mulher a ir para o espaço.
Usada entre o povo da URSS, a foto foi de extrema importância na Corrida Espacial
para URSS, que até então, estava tentando unificar seu povo para uma ideologia de
que a URSS estava em vantagem no quesito político-tecnológico em comparação aos
EUA

Figura 1 - Fotografia de Valentina Tereshkova

Fonte: Fonte: Soviet Visuals. Disponível em:


https://www.facebook.com/sovietvisuals/photos/a.1161108403955402/25320705568591
73/?type=3&theater​ ​ ​Acesso em: 01//09/2019
A figura 2 mostra Neil Armstrong, o primeiro homem a pisar na lua. Esta foto
foi usada como propaganda do avanço dos EUA e perpetuada pelo mundo durante a
Corrida Espacial. A importância política desta foto mudou todo o cenário ideológico
mundial perante os EUA.

Figura 2 - Fotografia de Neil Armstrong

Fonte: NASA. Disponível em:


https://oglobo.globo.com/sociedade/homem-na-lua-50-anos/a-chegada-do-homem-lu
a-vista-em-realidade-aumentada-23806154​ ​ ​Acesso em: 03/09/2019

Com o lançamento soviético do Sputnik 1 em 1957, o primeiro satélite


artificial do mundo, os Estados Unidos levaram um susto que os
obrigou a entrar na corrida espacial. Um ano mais tarde, a própria
Nasa foi criada no clima de medo da Guerra Fria. Poucas semanas
depois de os soviéticos colocaram a primeira pessoa em órbita, os
Estados Unidos foram levados a criar o programa Apollo para a Lua.
Durante esse tempo, a União Soviética nos venceu em praticamente
todo cotejo importante de realização espacial: a primeira caminhada
no espaço, a caminhada mais longa no espaço, a primeira mulher no
espaço, o primeiro acoplamento no espaço, a primeira estação
espacial, o mais longo tempo registrado no espaço. Ao declarar que a
corrida era chegar até a Lua e nada mais, os Estados Unidos se
permitiram ignorar as competições perdidas ao longo do caminho
(TYSON, ​2019,​ p. 20).

É interessante notar que o autor, após a atividade da escrita, se torna outro


sujeito, pois não é mais um sujeito escritor e sim um sujeito leitor de uma obra que
um sujeito no passado escreveu e dialoga com ele através do texto, que possui
infinitos sentidos, visto que o sentido nunca é o mesmo. E por que mencionar estes
acontecimentos é de suma importância? Pois a arte é um meio possível de se
representar o exterior em diálogo com o interior.
Além disso, os conceitos principais deste artigo estão interligados com a
Teoria da Relatividade de Einstein, que por sua vez inspirou Mikhail Bakhtin a
escrever sobre o cronotopo em seu segundo livro sobre Teoria do Romance que por
sua vez conecta a influência americana sobre a soviética e que por sua vez liga
intersubjetivamente este artigo a escrever sob a égide de outro tempo e espaço em
um assunto que permeia todo o contexto global da literatura para um determinado
fim. Ou seja, saber as influências exercidas sobre os autores é saber da “(...)
possibilidade de afirmação volitivo-emocional da minha imagem a partir do outro e
para o outro;” (BAKHTIN, ​2015​, pág. 28). Sabendo disto, o leitor pode ter a ciência de
que a próxima parte do artigo não mais será dedicada ao contexto do mundo em que
Ray vivia, o próximo passo é analisar o mundo que Ray criou.

2 Encontro Noturno, a memória, o heterodiscurso e a narrativa

O romance é um heterodiscurso social artisticamente organizado, às


vezes uma diversidade de linguagens e uma dissonância individual.
A estratificação interna de uma língua nacional única em dialetos
sociais, modos de falar de grupos, jargões profissionais, as linguagens
dos gêneros (...) (BAKHTIN, ​2015​, p. 51).

Nessa perspectiva, falando diretamente sobre o conto em específico, Encontro


Noturno (do inglês Night Meeting), ele foi escrito em 1974, foi reimpresso em 1978 na
4
revista Weird Tales com o mesmo nome. Como já mencionado, as histórias à
medida que foram escritas periodicamente, foram reunidas e compiladas no Cronicas
Marcianas (BLOOM, 2010).
Assim, o conto (que antecede “Os Gafanhotos, que será exposto de forma
rápida alguns parágrafos abaixo) trata da história de Tomaz Gomez que é
apresentado como uma narrativa de um operário que trabalha em Marte por
semanas e tem um período de descanso. Em um desses períodos, ele tem a pretensão
de ir a uma festa de recepção de sua chegada e segue uma das rodovias de Marte. O
conto se passa em 2002, que é, logicamente, não representante de 2002 que o povo de
2019 conhece, mas sim o que Bradbury imaginava se as pessoas vivem em Marte.
Apenas observando o jeito com que o autor introduz o universo lúdico de alguma
forma representante de um determinado cronotopo, é possível notar que “O romance
como um todo verbalizado é um fenômeno pluriestilístico, heterodiscursivo,
heterovocal.” (BAKHTIN, 2​ 015,​ ​p. 62).
Tomaz, o protagonista, para o carro para abastecer e o primeiro encontro
ambíguo de tempos acontece: o homem com quem ele conversa tem 70 anos de
idade. Tomaz, mais jovem ouve as histórias que o homem tem para contar enquanto
abastece, e o autor dá a informação de uma visão sobre um homem que se cansou da
Terra e gosta de Marte por ser tudo estranho, e que por ter vivido em diversas partes
de Marte, conta a história de ruínas de nativos do planeta, já extintos. Logo depois de
uma viagem quase psicodélica mas definitivamente sensorial, Tomaz começa a se
perguntar qual o cheiro do tempo, a sua aparência e seu barulho. A produção de
sentido do personagem é caracterizada por um viés memorialístico, por conseguinte,
uma memória intersubjetiva que logo de faz humana.
4
Weird Tales foi uma revista norte-americana focada em contos de ficção científica e fantasia. Publicados em
volumes de pulp, ajudou a disseminar diversos autores que hoje são renomados, tais quais Ray Bradbury e H.P.
Lovecraft.
Havia um cheiro de tempo no ar. Ele sorriu e examinou essa fantasia
na mente. Era uma ideia. Qual seria o cheiro do Tempo? Cheirava a
poeira, a relógios e a pessoas. E se perguntasse qual seria o barulho
do tempo, era como água correndo em uma caverna escura, vozes
gritando, sujeita caindo pelas tampas das caixas vazias, e chuva
(BRADBURY, ​2006​, p. 137).

E se entendermos como metáfora o destino do personagem ser uma festa, é


possível acrescentar como a memória do futuro e passado se dialogam na metáfora
das formas do tempo descrita pelo personagem, através do autor, em um
(re)vivenciar na memória futura em uma “festa” de renovação de sentido para a festa
na narrativa. Ou seja, a memória futura de ir para a festa se torna passada à partir do
momento que ela muda o sentido, depois dos próximos acontecimentos do livro.
Nesse sentido, destaca o acontecimento em que “nos cronotopos atam-se e
desatam-se os nós do enredo.” (BAKHTIN, ​2018​, p. 226). Para tanto, o ponto chave
da história é quando há uma intertextualidade com o conto “Gafanhotos”, que
precede “Encontro Noturno”. Assim, o conto Gafanhotos fala sobre a migração de
humanos em Marte, com naves que pareciam estar em um enxame de gafanhotos. E,
neste sentido, o encontro de Tomaz e do nativo marciano acontece primeiro, pois
Tomaz avista um veículo que parece um inseto verde, como descrito por ele. Assim,
fica claro para o leitor, páginas depois, que não se trata de um humano, mas que
pode ser uma artimanha do autor para confundir e instigar a similaridade humana e
a memória do próprio leitor em um jogo de incertezas.
5
A chave da narrativa realmente tem sua virada, seu plot quando ambos
percebem que estão se vendo a partir da perspectiva de cada espaço e tempo, porém
misturadas. Ambos começam uma discussão sobre quem realmente está no tempo
“certo” e quem realmente está vivo e quem de fato é real. Uma das metáforas que
acompanham o trecho do livro, é quando o autor descreve o que se vê através dos
personagens:

Apontaram um para o outro, com as estrelas queimando em seus


membros como adagas, pedacinhos de gelo ee vagalumes, e então
começaram a se apalpar de novo, os dois sentindo intactos, quentes,
animados, estupefatos, surpresos, e o outro, ah sim, o outro li, irreal,
um prisma fantasmagórico emitindo a luz acumulada de mundos
distantes.” (BRADBURY, 2​ 006​, p. 141).

Cada um com sua narrativa, através da palavra, constroem uma


heterodiscursividade fixa em pontos de vista intersubjetivos, cada um com sua
produção de sentido, cada um com seus sentidos infinitos em um encontro de
passado e futuro. E neste ponto, é mais visível como a heterodiscursividade pode
funcionar:

o artista da prosa erige esse heterodiscurso social em torno do


objeto até atingir a imagem acabada, penetrada pela plenitude
dos ecos dialógicos, das ressonâncias literárias calculadas para
5
PLOT significa enredo. Termo cunhado do meio audiovisual mas usado aqui como forma de demonstrar virada
de enredo no sentido amplo.
todas as vozes e tons essenciais desse heterodiscurso
(BAKHTIN​, 2015​, p. 28).

No entanto, como a heterodiscursividade funciona ou pode vir a funcionar em


um plano temporal sem o plano espacial? É possível separar ambos? Estas discussões
serão feitas a seguir.

3 A(s) narrativa(s), o cronotopo e a palavra

Se os sentidos são infinitos, logo para cada instância ideológica há um sentido


a ser produzido infinitamente em uma corrente com elos que se fundem (BAKHTIN,
2011). Assim, uma das maneiras que a humanidade encontrou em representar esses
sentidos é a arte. Então, a narrativa sempre foi essencial nas ideias, inclusive sobre a
própria ideia de narrativa. No entanto, como representar o que é tempo? E é possível
pensar tempo sem espaço? A resposta para a segunda pergunta é não.
Especialmente falando no autor que trabalha com conceitos da física para
refletir sobre a literatura, Bakhtin diz que o cronotopo é “a interligação essencial das
relações de espaço e tempo como foram artisticamente assimiladas na literatura”
(BAKHTIN, 2018​, pág. 230. )​. ​No mais, o processo de achar algum tipo de resposta
sobre o que é tempo-espaço (obviamente nem sempre com esta denominação) vem
de séculos. Nas mitologias por exemplo, é possível notar o esforço humano para
definir questões como o tempo e para explicá-lo através das mais diversas formas de
arte. Assim, a grécia antiga poderia explicar o tempo a partir da narrativa de um titã
que foi denominado o destrutivo e devorador. Como representado na pintura de
Goya “Saturno devorando um filho”.
A figura 3 retrata Saturno devorando um filho, feita por Goya, representando
o tempo de maneira visceral, que come cada segundo como se tivesse uma fome
enlouquecedora

Figura 3 - Saturno devorando um filho


Fonte: Veja . Disponível em
https://veja.abril.com.br/blog/diario-de-um-escritor/saturno-devorando-a-um-de-seus-filhos/. Acesso
em: 07/08/2019

Ou com outras narrativas através das culturas, sociedades e crenças.


Independente da narrativa produzida para o tempo, o ponto é que são narrativas que
tentam explicar de alguma forma a origem ou existência de algo através da palavra,
verbal ou não verbal. No entanto, a física, utilizando de métodos científicos possui
outras narrativas:

Newton acreditavam no tempo absoluto. Ou seja, acreditavam que se


podia medir sem ambiguidade o intervalo de tempo entre dois
acontecimentos, e que esse tempo seria o mesmo para quem quer que
o medisse, desde que utilizasse um bom relógio. O tempo era
completamente separado e independente do espaço. Isto é o que a
maior parte das pessoas acharia ser uma opinião de senso comum
(HAWKING, 2​ 016, p. 20 )

Bakhtin se baseia na Teoria da Relatividade de Einstein, não por causa do


fundamento matemático, mas sim para uma perspectiva de que espaço e tempo não
se separam. “Uma consequência igualmente notável da relatividade é a maneira
como revolucionou as nossas concepções de espaço e tempo (...) a teoria da
relatividade acabou com a ideia do tempo absoluto” (HAWKING, 2016​, p. 23 ).
Neste sentido, entender que na literatura estas formas ideológicas podem ser
traduzidas artisticamente, é entender que o diálogo entre sujeito leitor e sujeito
personagem pode interagir através da palavra em cronotopos diferentes. Isto é
importante para uma leitura crítica do que é ser leitor sujeito, o que é entender a
própria razão e alma humana para novos níveis de autoidentificação através do
conto.
Dessa forma, identificar-se como sujeito nos mais intersubjetivos sentidos a
partir de uma narrativa que trata sobre o tempo, escrita por alguém em outro tempo
e espaço que ainda dialoga com o leitor e a sociedade. Para tanto, está atrelado ao
que foi dito anteriormente sobre memória, que através da memória futura e passada,
os tempos se fundem gerando novas produções de sentidos. No conto o tempo ganha
corporeidade e torna-se visível artisticamente, explicitando metalinguisticamente os
sinais de tempo no enredo (BAKHTIN, 2018).
Na verdade, de certa forma em uma perspectiva filosófica da linguagem, o
tempo está acontecendo simultaneamente. A noção de tempo é trazida ao presente
pela memória do passado, que ajuda a formular a memória futura através de um
passado constante, pois a cada momento que passa, cada segundo, o presente se
torna passado e uma nova memória futura é reciclada e produzida, fomentando
novos sentidos de projetos de dizeres. Assim, as memórias são produzidas em
cronotopos diferentes, simultâneos na dimensão da mente de um sujeito, quase como
uma quinta dimensão quadridimensional. Portanto, todo o processo é infinito, na
finitude da vida de um sujeito que se torna infinito na reencarnação da memória de
um sujeito com outros sujeitos, tornando os atos responsáveis, responsivos. Em
outras palavras, a memória do eu para o outro, em um acontecimento.
4 A palavra como acontecimento na narrativa

Um acontecimento é qualquer coisa que ocorre num determinado


ponto no espaço e num determinado momento. Pode, portanto, ser
especificado por quatro números ou coordenadas. Mais uma vez, a
escolha das coordenadas é arbitrária; podem ser; usadas quaisquer
três coordenadas espaciais bem definidas e qualquer medida de
tempo. Em relatividade, não há verdadeira distinção :, entre as
coordenadas de espaço e de tempo, tal como não existe diferença real
entre quaisquer duas coordenadas espaciais. Pode escolher-se um
novo conjunto de coordenadas em que, digamos, a primeira
coordenada de espaço seja uma combinação das antigas primeira e
segunda coordenadas de espaço (HAWKING, 2016​, p. 25 ).

Da mesma forma que a luz que se propaga a partir de um acontecimento que


forma um cone tridimensional no espaço-tempo quadridimensional (HAWKING,
2016), a memória se propaga através de sujeitos em cronotopos e narrativas
diferentes, interligadas. Os cones de luz do passado e do futuro de um acontecimento
dividem o espaço-tempo em três regiões, o futuro absoluto do acontecimento é a
região dentro do cone de luz do futuro. É o conjunto de todos os acontecimentos
suscetíveis de serem afetados por aquilo que acontece. (HAWKING, 2016).
Assim como pode se ver as estrelas como imagens do passado, as memórias
são e serão imagens de projetos de dizeres e produções de sentido. E qual o ponto de
explicar isto tudo? Que isso está interligado com todo nosso redor não só na
literatura, mas que na literatura podem se desenvolver reflexões que tiram da zona
de conforto o leitor de forma mais lúdica, catarticamente. E o que liga tudo, é a
palavra. A palavra se transformada em um objeto de diálogo, produz
heterodiscursos instintivamente, pois não há discurso repetido em acontecimentos.
Assim, através do conto, questionar através da palavra o que é de fato passado,
presente e futuro, cabe diretamente na proposta deste trabalho, até mesmo pelo ato
de produzir este trabalho e realizá-lo cientificamente em um plano composicional
específico, está sendo produzido pela palavra. Logo, da palavra sai os sentidos, os
heterodiscursos, as narrativas em cronotopos (acontecimentos) que se ligam de
alguma forma, pela memória.
As narrativas exotópicas do autor firmam metáforas representadas na troca
dialógica de palavras de uma específica sociedade e de sujeito autor, personagens
sujeitos, sujeitos leitores, todos através da palavra. Desta forma, fica segmentado de
quem para quem, em que época. E por que o plano composicional livro para
explicar? Isto pois,

Os livros permitem-nos viajar pelo tempo e extrair o conhecimento


dos nossos antepassados. As bibliotecas nos unem a revelações e
conhecimentos dolorosamente extraídos da Natureza, das maiores
mentes que já existiram, com os melhores professores, retiradas de
todo o planeta e de toda a nossa história, instruem-nos sem a fadiga e
nos inspiraram a dar nossa própria contribuição ao conhecimento
coletivo da espécie humana (SAGAN, 2017,​ p ​ ág. 282).
Neste sentido, enxergar a palavra como agente de um plano composicional
específico, como uma ferramenta usada para representar o interno sentido por um
sujeito para o externo, para outros sujeitos, é ter a noção de que aquilo produzirá
sentidos diversos e que a palavra nunca é a mesma, nunca será e nunca foi. A palavra
em um diálogo, principalmente em um diálogo entre personagens de distintos
tempos, como um leitor e um escritor, é um diálogo cronotópico, que produz
sentidos diferentes para algum discurso específico usado em um contexto espaço
temporal específico.
Assim, através da narrativa, a palavra se adequa como parte essencial de uma
representação dialógica artística: se torna palpável, gera catarse ou não, mas
independente da resposta, mesmo que um silencioso fechar de páginas depois de ler
o conto, isto é uma resposta direta ao sentido do corpo em um determinado
momento.
No caso do heterodiscurso, só é possível se concretizar por causa da memória
heterodiscursiva, a memória que é empregada em diálogos diferentes ou
divergentes, e até mesmo em um monólogo, no qual o sujeito está falando consigo
mesmo, logo tornando a monogamia conversadora, em um diálogo silencioso. Para
tanto, os atos em quaisquer acontecimentos são responsivos, dialogam com o tempo
e espaço em narrativas distantes a um ponto de vista de sujeitos que não ouvem, mas
escutam cada eco dos discursos já feitos em algum momento. Desde o primórdio do
universo até o mais banal ato de se levantar da cama, quase tudo, está em um
(hetero)discurso, de uma palavra. “Você fala com tanta certeza. Como é que pode
provar quem é do passado e quem é do futuro?” (BRADBURY​, 2016, ​pág. 145).

Reflexões Finais

Foi possível notar que ao entender o contexto de um autor e de uma obra, é


possível entender melhor detalhes desta obra. Isto pois, o texto é construído pelo
sujeito escritor em um determinado espaço-tempo, que após escrito, desloca sempre
de posição no cronotopo criando novos sentidos para a obra.
Neste sentido, é interessante salientar que entender a memória a partir do
heterodiscurso, funcionando em narrativas das mais diversas formas, só são
aplicadas em um determinado contexto cronotópico, para que assim os projetos de
dizeres e produções de sentido possam ecoar em um plano composicional de elos de
correntes que se fundem como discurso.
Para tanto, foi possível notar com a pesquisa que a literatura de contos de
ficção científica, não só exclusivamente as de Ray, está atrelada diretamente com o
mundo de seus séculos. O destaque a Ray Bradbury foi dado justamente pelo conto
que expõe de forma lúdica como o encontro de gerações temporais se dialogam.
Culturas “mortas” e vivas para cada sentido de cada sujeito que se alterna, no caso
do conto, os dois personagens no heterodiscurso temporal.
Contudo, nada dos itens pesquisados seriam devidamente interligados se não
fosse a chave da questão: a palavra. É pela palavra que cada elo da corrente pode se
manifestar, sendo a palavra uma metáfora ou em um discurso concreto, é possível
enxergar cada uma dasexotopoias exercidas por cada um dos sujeitos que participam
desta troca dialógica que é o ato de ler o livro. A palavra está atrelada tão
vigorosamente ao discurso, que sem ela é possível pensar que haja só o silêncio, no
entanto, o silêncio também é uma resposta, bem como se silenciar diante da
pós-leitura do conto, este silêncio se torna palavra em um sentido concreto, uma
resposta direta ao sentido empregado.

Referências

AMORIM, Marília. C ​ ronotopo e exotopia. In: B. Brait (Org.). Bakhtin: outros


conceitos chave.​ São Paulo: Contexto, 2006, página 102.
BAKHTIN, Mikhail. ​Estética da Criação Verbal. 6​ ed. São Paulo: WMF Editores,
2011, pág. 34 a pág. 226.
BAKHTIN, Mikhail. ​Teoria do Romance I: A estilística​. 1 ed. São Paulo: Editora 34,
2015, pág. 28 a pág. 62.
BAKHTIN​, ​Mikhail. T ​ eoria do Romance II: As formas do tempo e do Cronotopo​. 1
ed. São Paulo: Editora 34, 2018, pág 12, pág. 225 a 230.
BLOOM, Harold. B ​ loom’s Modern Critical View: Ray Bradbury. ​2 ed. Bloom’s
Literary Criticism. New York, 2010.
BRADBURY, Ray. ​As Crônicas Marcianas​. 1 ed. São Paulo: Globo S.A., 2006, pág.
130 a 145
GILBERT, Martin. ​A história do Século XX​. 1 ed. ​Rio de Janeiro: Editora Planeta do
Brasil., 2​ 017.
HAWKING, Stephen. ​Uma Breve História do Tempo​. 3 ed. São Paulo: Editora
Intrínseca., 2016, p
​ ág. 20 a 25.
SAGAN, Carl.​ COSMOS​. 1ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
TYSON, Neil DeGrasse. ​Crônicas espaciais.​ 1 ed. Rio de Janeiro: Planeta, 2019.

https://www.facebook.com/sovietvisuals/photos/a.1161108403955402/25320705568591
73/?type=3&theater
https://oglobo.globo.com/sociedade/homem-na-lua-50-anos/a-chegada-do-homem-lu
a-vista-em-realidade-aumentada-23806154
https://veja.abril.com.br/blog/diario-de-um-escritor/saturno-devorando-a-um-de-seu
s-filhos/
http://www.raybradbury.com/bio​.html

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