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de Fé
Aproximações entre Pascal e Kierkegaard
Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.5, n.1, Jul. 2017, p.93-124 93
ISSN: 2317-9570
JOSÉ DA CRUZ LOPES MARQUES
1 De fato, em suas Cartas inglesas(XXV), Voltaire fará uma severa crítica ao caráter impositivo e inexorável da
Aposta. Pascal negava a impossibilidade de o homem esquivar-se da Aposta. Aquele que não aposta na existência
de Deus, automaticamente, aposta na sua inexistência. Contrário a isso, Voltaire entende que o cético não aposta
nem a favor nem contra a existência de Deus.
2 Deleuze apresentará uma versão antropológica da Aposta pascaliana. No seu entender este argumento não
possui, em sua essência, uma ênfase teológico-apologética. Ou seja, não se aposta entre a existência e a inexistên-
cia de Deus como tradicionalmente se interpreta. O que Pascal desejava realmente mostrar era duas condições de
homens, um que acredita na existência e outro que acredita na inexistência de Deus.
3 Em seu clássico estudo sobre Pascal Le Dieu caché, Goldmann estabelece uma identidade controversa entre a
Aposta e a própria crença na existência de Deus.
4 Em sua obra Existe Dios?,no capítulo dedicado ao pensamento de Pascal, Hans Küng (1979) procura afastar a
conclusão apressada segundo a qual o cálculo de probabilidade torna a Aposta um argumento puramente mate-
mático ou racional.
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5 Em Deus: um delírio, a crítica de Dawkins direciona-se, sobretudo, para o caráter volitivo da crença em Deus.
Para ele, “acreditar não é uma coisa que se possa decidir, como se fosse uma questão política”. Não levar isso em
conta tornaria a Aposta um argumento para sustentar uma crença fingida em Deus.
6 Fragmento no original conforme a versão Pensées (1897) de León Brunschvicg): “Lettre pour porter à recher-
cher Dieu. Et puis le faire chercher chez les philosophes, pyrrhoniens et dogmatistes, qui travaillent celui qui les
recherche”.
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7 As três divisões do argumento apontadas por Gouhier são as seguintes: 1) Reflexões sobre o conhecimento
do Infinito; 2) O argumento da Aposta propriamente dito e 3) A atitude moral do homem como implicação da
Aposta.
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8 Em uma carta enviada à sua irmã Gilberte, parafraseando a Carta aos Romanos (1:20), Pascal lembra que “as
coisas corporais são apenas uma imagem das espirituais, e Deus representou as coisas invisíveis nas visíveis; mas
é preciso confessar que não se pode perceber essas sagradas características sem uma luz sobrenatural” (PASCAL
apud Gouhier, 2005, p. 227).
9 Vale lembrar que, em Pascal, o termo Coração não aponta apenas para uma dimensão volitiva, mas pos-
sui também um sentido epistemológico. Em uma expressiva passagem dos Pensamentos (Laf. 110; Bru 282), ele
afirma: “Conhecemos a verdade não apenas pela razão, mas também pelo coração. É desta maneira que conhece-
mos os primeiros princípios, e é em vão que o raciocínio, que não toma parte nisso, tenta combatê-los” (PASCAL,
2005, p. 38).
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Sim: mas é preciso apostar. Não é não ao ato de apostar em si. Nou-
coisa que dependa da vossa von- tros termos, aquele que não aposta
tade, já estamos metidos nisto. na existência de Deus, ainda que
Qual escolhereis então? Veja- prefira são assumir esse posiciona-
mos. Já que é preciso escolher mento claramente, já decidiu apos-
vejamos o que menos vos inte- tar na inexistência de Deus. Não
ressa. Tendes duas coisas a per- é, portanto, viável uma espécie
der: a verdade e o bem, e duas de suspensão do juízo nos mol-
coisas a empenhar: vossa razão des do ceticismo. Desse modo,
e vossa vontade, vosso conheci- Pascal assume claramente a incon-
mento e vossa beatitude, e vossa veniência de um ceticismo estrito
natureza tem que fugir de duas senso, posicionamento que enfren-
coisas: o erro e a miséria. Vossa tará a oposição ferrenha de Vol-
razão não se sentirá mais atin- taire, para quem não apostar que
gida por terdes escolhido uma Deus é e apostar que Deus não
coisa em vez de outra, já que é é são coisas completamente dis-
preciso necessariamente escolher. tintas. Nos termos do pensador
Eis um ponto liquidado. Mas, iluminista, “aquele que duvida e
vossa beatitude? Pesemos o ga- pede esclarecimentos seguramente
nho e a perda escolhendo a cruz, não aposta nem pro e nem contra”
que e Deus. Consideremos estes (VOLTAIRE, 1973, p. 47).
dois casos: se ganhardes, ganha- Já que, segundo o raciocínio
reis tudo; se perderdes, não per- pascaliano, escolher não apostar é
dereis nada. Apostai, pois, que algo fora de cogitação, resta ao in-
ele existe sem hesitar (PASCAL, terlocutor cético simplesmente es-
1984, Br. 233, Laf. 418) colher o objeto para o qual diri-
girá a sua Aposta. Para tanto, ele
Conforme mencionado acima, precisa calcular cuidadosamente a
Pascal inicia seu diálogo com o cé- fim de constatar qual das opções
tico eliminando o caráter voluntá- encerra maiores benefícios. Três
rio da Aposta. Para ele, ao ho- elementos inerentes a uma Aposta
mem não é dada a possibilidade de são trazidos à tona por Pascal: em
não apostar. Sua escolha abrange todo e qualquer jogo há sempre 1)
unicamente o objeto da Aposta e aquilo que empenhamos como ga-
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10 Trata-se de Johann Daniel Schumann (1714 – 1787), diretor do Liceu de Hannover. Schumann havia afir-
mado em seus Papeis de um anônimo referente à revelaçãoque a revelação judaico-cristã era a única que gozava de
provas evidentes, a saber, as profecias e os milagres e que resultavam convincentes para os teólogos (LESSING,
1990). Nota do tradutor Augustín Andreu.
11 Em nota explicativa da tradução brasileira das Migalhas filosóficas, Álvaro Valls (2011) destaca que Lessing
fora influenciado por Leibniz nesse ponto. Na distinção do filósofo racionalista, existiam verdades eternas ou ra-
cionais e verdades históricas ou contingentes. O cristianismo, obviamente, encontrava-se na primeira classe de
verdades mencionadas.
12 Claramente, a expressão “Demonstração em espírito e força” tem sua origem na declaração paulina em I Co.
2:4, onde se lê: “A minha palavra e a minha pregação não consistiram em linguagem persuasiva de sabedoria, mas
em demonstração do espírito e de poder”.
13 Pai alexandrino do terceiro século. A obra citada por Lessing é Contra Celso, um dos textos mais famosos do
apologista cristão. Orígenes escreveu esse texto a pedido de Ambrósio de Milão, a fim de refutar as acusações
feitas pelo filósofo romano Celso ao cristianismo na obra denominada Doutrina verdadeira. Em sua obra, o apolo-
gista alexandrino, dentre outros argumentos, empregara a prova dos milagres como fundamento da veracidade
da doutrina cristã.
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14 Figura empregada por Kierkegaard no texto pseudonímico Temor e tremorpara se contrapor ao Cavaleiro da
fé (Abraão). O Herói trágico é um modelo de ética, capaz de sacrificar o particular em prol do geral, mas, visto
carecer ainda de uma mediação racional, é incapaz de empreender o salto de fé.
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15 Esse termo aparece em muitas obras de Kierkegaard. Seu objetivo, ao usar tal expressão é, certamente, mar-
car a distinção entre o verdadeiro cristianismo e a cristandade estabelecida na Dinamarca. O crístico tem um ca-
ráter dinâmico, vívido, chamando à atenção para a relação entre a fé, a singularidade do indivíduo, diferente da
cristandade que se perde na frieza e superficialidade do sistema.
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ano. À luz desse texto, percebe-se sente, mas, por conta de seu dever
que o Cavaleiro abraça um fé para- absoluto para com Deus, o indiví-
doxal, uma fé separada do auxílio duo é incapaz de cumpri-lo plena-
e certeza da mediação racional. Se- mente. Tendo como referência Te-
gundo as palavras de Johannes de mor e tremor, a Suspensão ocorre
Silentio, “a fé não constitui um im- em virtude do dever absoluto que
pulso de ordem estética; é de outra o indivíduo possui para com Deus.
ordem muito mais elevada, justa- Este dever, pode levar à realiza-
mente porque pressupõe a resigna- ção daquilo que a moral proibiria.
ção. Não é o instinto imediato do Enquanto pai, Abraão possui um
coração, mas o paradoxo da vida” compromisso ético, uma obrigação
(KIERKEGAARD, 2009, p. 103). A moral em relação ao filho; deve
fé é paradoxal justamente porque protegê-lo de qualquer perigo. Nos
comporta um elemento que trans- termos kierkegaardianos, “a rela-
torna as capacidades da razão e ção que Abraão possui com Isa-
descortina os seus limites. Trata- que se exprime dizendo que o pai
se daquilo que Kierkegaard de- deve amar o filho” (KIERKEGA-
nomina Suspensão teleológica do ARD, 2009, p. 83). No entanto, e
ético16 . O conceito de Suspensão aí reside a fonte da angústia do pa-
teleológica aparece em muitos tex- triarca, a comissão divina obriga-o
tos kierkegaardianos, fato que evi- a colocar Isaque em perigo.
dencia a sua centralidade no pen-
samento do dinamarquês. No Pós- A Suspensão teleológica postula
Escrito, por exemplo, o filósofo de uma exigência superior ao compro-
Copenhague declara que a suspen- misso com a regra moral: o dever
são consiste no fato de que o indi- absoluto para com Deus. Ora, se o
víduo se encontra a si mesmo em dever é absoluto, a ética encontra-
um estado completamente oposto se rebaixada ao relativo, o que,
daquele que o ético requer (KIER- certamente, estaria fora de cogita-
KEGAARD, 2013). A todo mo- ção para Kant e Hegel (ALMEIDA;
mento, o ético encontra-se pre- VALLS, 2007). Há um manda-
mento divino para não matar, o
16 France Farago (2011) declara que Kierkegaard empresta de Pascal a ideia da suspensão teleológica da morali-
dade, considerando que o filósofo francês já havia afirmado que a verdadeira moral zomba da moral.
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uma presunção tão infinita quanto Deus. Isso porque, “a razão por
o seu objeto” (PASCAL, 2005, Laf. si mesma, nada pode determinar
199; Bru. 72). Ao lermos esta a esse respeito” (PASCAL, 2005, p.
severa denúncia do pensador jan- 159). Noutros termos, aposta-se
senista, quase que imediatamente, porque tanto a existência quanto
no remetemos à reclamação feita da inexistência não podem ser con-
por Kierkegaard em Temor e tremor cluídas a partir de um dedução
por meio do pseudônimo Johan- lógica. Parafraseando Mantovani
nes de Silentio. Nos seus termos, (2015), a Aposta coloca os limi-
“a filosofia não pode e nem deve tes epistemológicos da razão hu-
dar a fé, mas deve entender-se a si mana, demonstrando que ela não
mesma e saber o que tem para ofe- está em condições de dissipar o si-
recer, tem que entender que nada lêncio apavorante dos espaços in-
deve tirar e, menos ainda, espo- finitos. Os limites da razão, so-
liar os homens de uma coisa como bretudo, na relação entre o indi-
se nada fosse” (KIERKEGAARD, víduo e Deus, também são colo-
2009, p. 88). cados de modo evidente pelo fi-
A verdade é que tanto a Aposta lósofo dinamarquês. É neste sen-
pascalina como o Salto kierkega- tido que ele define a decisão de
ardiano são um claro diagnostico Abraão de sacrificar Isaque como o
dos limites da razão, a negação paradoxo do qual nenhum pensa-
expressa de que as certeza racio- mento pode apropriar-se. Nos ter-
nais possam abarcar toda a exis- mos de Kierkegaard (2009, p. 110)
tência. São, portanto, procedimen- “a fé começa precisamente onde o
tos que sinalizam a necessidade de pensamento acaba”17 . Por fim, do
aceitação do mistério. Neste sen- mesmo modo que a necessidade da
tido, o modo como Pascal princi- Aposta surge porque a existência
pia o argumento da Aposta é bas- divina não pode ser captada pelas
tante sugestivo. Apostamos ou na provas metafísicas, o Salto é a con-
existência ou na inexistência de fissão de que a fé não pode fundar-
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mais importante a ser destacado feito de tal forma que não posso
diz respeito ao estatuto próprio crer. Que vós quereis, pois, que
da Aposta e do Salto, sobretudo eu faça? – É verdade, mas apren-
na sua relação com a fé e com a dei pelos menos que vossa impo-
conversão. Em relação a Pascal, tência para crer vem de vossas
ainda que pudéssemos acatar a su- paixões. Pois a razão aí vos con-
gestão de Atalli (2003) segundo a duz, e, entretanto, vós não o po-
qual, de alguma forma, a Aposta deis (PASCAL, 2005, Laf. 418;
possa abrir caminho para fé ver- Bru. 233)
dadeira, ambas não são a mesma
coisa. Colocar-se do lado da exis- Como se vê, há em Pascal um
tência no jogo não é a mesma coisa abismo entre Aposta e a fé genuína.
que a conversão estrito senso. A fé Tal fato, colide com a compreensão
continua sendo uma dádiva divina kierkegaardiana de Salto. O Ca-
e a verdadeira conversão só ocorre valeiro que, na estrada silenciosa
quando Deus, graciosamente, in- e solitária rumo ao Moriá decidiu
clina o coração do pecador. Isso arriscar-se no Salto é o mesmo que
significa dizer que Deus age na aderiu ao Estádio religioso. Se a
vontade humana para levá-la à ca- rendição do apostador ainda não é
ridade (ADORNO, 2008) Noutros plena, o mesmo não pode ser dito
termos, o homem pode apostar por do saltador. Para recorrer à expres-
seus próprios esforços, mas a fé é são de Kierkegaard, ele entrou em
restrita à inciativa divina. Como uma relação absoluta com o abso-
nos lembra Pondé (2009, p. 55) luto, entregando-se a ele sem reser-
“a matemática da Aposta é insufici- vas.
ente para levar o descrente à fé”. A
distinção entre a Aposta e a fé pro- CONSIDERAÇÕES FINAIS
priamente dita é bastante evidente Determinados estudos compa-
no fragmento pascaliano. rativos entre dois autores correm
o risco de desagradar os estudio-
Sim, mas eu tenho as mãos sos de ambos pensadores em ques-
atadas e a boca muda, forçam- tão, sobretudo, por considerarem
me a apostar, e eu não estou li- a comparação artificial e, às ve-
vre, negam-me descanso, e eu sou zes, arbitrária. No caso de Pascal
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