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Da Aposta na Existência de Deus à Radicalidade do Salto

de Fé
Aproximações entre Pascal e Kierkegaard

On the Wager in the Existence of God to the Radicality of


Leap of Faith
Approaches between Pascal and Kierkegaard

José da Cruz Lopes Marques*

Resumo: Embora separados por cento e cinquenta anos Pascal e Ki-


erkegaard viveram em momentos de grande efervescência do pensa-
mento racionalista, o primeiro, diante do racionalismo cartesiano e o
segundo, no auge do idealismo hegeliano. Ao mesmo tempo, não obs-
tante, os dois filósofos foram críticos severos do sistema filosófico que
imperava em seu tempo. O presente artigo tem por finalidade apro-
ximar Pascal e Kierkegaard a partir dos conceitos de Aposta e Salto,
procurando mostrar elementos convergentes e divergentes entre esses
dois procedimentos.
Palavras chave: Aposta. Salto. Transcendência. Infinitude. .

Abstract: Although separated by one hundred and fifty years


Pascal and Kierkegaard lived in times of great ferment of rationalist
thought, the first before the Cartesian rationalism and the second at
the peak of Hegelian idealism. At the same time, however, the two
philosophers were severe critics of philosophical system that prevai-
led in his time. This article aims to approach Pascal and Kierkegaard
from the concepts Wager and Leap, trying to show convergent and
divergent elements between these two procedures.
Key words: Wager. Leap. Transcendence. Infinity.

Considerações Iniciais 1855) é um dado, no mínimo, inu-


sitado. Formados dentro da tradi-
A pouca atenção dada pelos estu-
ção cristã que a empregam como
diosos, sobretudo brasileiros, às re-
ponto de partida para suas catego-
lações entre Blaise Pascal (1623 –
rias filosóficas, a exemplo do pa-
1662) e Søren Kierkegaard (1813 –

* Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal do Ceará (UFC).

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radoxo teológico-antropológico, já contradas nas Migalhas filosóficas e


neste ponto, poderíamos apontar no Pós-escrito às Migalhas filosófi-
uma aproximação significativa en- cas, citações indiretas a exemplo
tre estes dois pensadores. De fato, do que ocorre em Estádios no ca-
esta ênfase dada pelo dois autores minho da vida e as citações diretas
às contradições da existência, levá- tal qual podem ser encontradas nos
los-á a empreenderem a elaboração Diários.
de uma psicologia humana. Ade- Como vimos acima, as possibi-
mais, Pascal e Kierkegaard, ainda lidades de aproximação entre Pas-
que separados por cerca de 150 cal e Kierkegaard são bastante va-
anos, viveram em um período mar- riadas. O presente artigo tem
cado pelo racionalismo filosófico por finalidade colocar os dois pen-
que tinha como pretensão desven- sadores frente a frente a partir
dar todos os mistérios, inclusive, da comparação de dois concei-
aqueles do âmbito da fé. Estes fi- tos fundamentais de seus respec-
lósofos empregaram o seu pensa- tivos pensamentos, a saber, o fa-
mento para desferir um ataque vi- moso argumento da Aposta de Pas-
goroso contra o racionalismo redu- cal e o Salto de fé kierkegaardi-
cionista de seus dias. De modo es- ano. A título de esclarecimento,
pecífico, a crítica feita pelo autor duas observações são pertinentes
dos Escritos sobre a graça à filoso- neste início de trabalho. Primei-
fia cartesiana será reeditada na po- ramente, não se pretende aqui re-
lêmica entre o pensador nórdico e alizar uma equiparação ingênua
o idealismo hegeliano. Não bas- e apressada dos conceitos supra-
tassem essas convergências, sabe- mencionados como se tais pensa-
se que Kierkegaard foi um assíduo dores estivessem dizendo rigoro-
leitor de Pascal, estando familia- samente a mesma coisa. Além
rizado, sobretudo, com os Pensa- disso, não será realizado aqui um
mentos e as Provinciais. Não deve estudo exaustivo destes concei-
causar estranheza, portanto, o fato tos, contemplando cada desdobra-
de o filósofo de Copenhague reto- mento crítico que a tradição fi-
mar Pascal em muitas oportunida- losófica nos legou seja do con-
des. As retomadas vão desde as ceito de Aposta seja do conceito de
simples alusões como aquelas en- Salto. Inicialmente, serão explici-
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tados em linhas gerais e separada- mim? (PASCAL, Pensamentos)


mente o sentido dessas categorias
e seu lugar no pensamento de Pas- O lugar que o fragmento Infini
cal e Kierkegaard. Posteriormente, Rien (Infinito nada) ocupa nos Pen-
estes elementos serão confrontados samentos e na filosofia pascaliana
a fim de serem verificadas conver- em geral é um ponto que suscita
gências e divergências entre am- acalorado debate entre os comenta-
bos. dores do pensador francês. É neste
fragmento que encontramos o fa-
1.É PRECISO JOGAR: A APOSTA moso argumento da Aposta de Pas-
PASCALIANA cal. Não bastasse o caráter frag-
mentário e inconcluso do projeto
Quando contemplo a pequena da Apologia da religião cristã, te-
duração da minha vida absor- mos que lidar com o desacordo en-
vida na eternidade precedente e tre as principais edições. Na edi-
seguinte, o pequeno espaço que ção de Lafuma, o texto encontra-
preencho e mesmo que vejo abis- se entre os Papeis não classificados,
mado na infinita imensidão dos já na edição Brunschvicg, ele com-
espaços que ignoro e me ignoram, preende uma parte de uma seção
apavoro-me e admiro-me por me maior denominada Da necessidade
ver aqui e não lá, pois não existe da Aposta. De qualquer modo, o
razão porque aqui e não lá, por- interesse que o arrazoado pascali-
que agora e não então. Quem me ano tem suscitado é evidente no
colocou aqui? Pela ordem e pela percurso da tradição filosófica pos-
intervenção de quem este lugar terior. Voltaire1 , Deleuze2 , Lucien
e este tempo foram destinados a Goldmann3 , Hans Küng4 e, mais

1 De fato, em suas Cartas inglesas(XXV), Voltaire fará uma severa crítica ao caráter impositivo e inexorável da
Aposta. Pascal negava a impossibilidade de o homem esquivar-se da Aposta. Aquele que não aposta na existência
de Deus, automaticamente, aposta na sua inexistência. Contrário a isso, Voltaire entende que o cético não aposta
nem a favor nem contra a existência de Deus.
2 Deleuze apresentará uma versão antropológica da Aposta pascaliana. No seu entender este argumento não
possui, em sua essência, uma ênfase teológico-apologética. Ou seja, não se aposta entre a existência e a inexistên-
cia de Deus como tradicionalmente se interpreta. O que Pascal desejava realmente mostrar era duas condições de
homens, um que acredita na existência e outro que acredita na inexistência de Deus.
3 Em seu clássico estudo sobre Pascal Le Dieu caché, Goldmann estabelece uma identidade controversa entre a
Aposta e a própria crença na existência de Deus.
4 Em sua obra Existe Dios?,no capítulo dedicado ao pensamento de Pascal, Hans Küng (1979) procura afastar a
conclusão apressada segundo a qual o cálculo de probabilidade torna a Aposta um argumento puramente mate-
mático ou racional.

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recentemente, Richard Dawkins5 ano não deve sugerir uma forma de


são apenas alguns exemplos mais racionalismo no procedimento da
significativos do modo como o ar- Aposta da parte do filósofo francês.
gumento da Aposta tem sido revi- Vale lembrar que, na mesma obra,
sitado com frequência. Gouhier (2005) faz questão de de-
fender que o argumento da Aposta
Como foi mencionado acima,
é apenas um comentário à propo-
o fragmento Infini Rien não co-
sição segundo a qual “não conhe-
meça com Aposta propriamente
cemos nem natureza nem a exis-
dita, não obstante, estas consi-
tência de Deus”. A rigor, a Aposta
derações iniciais são imprescindí-
não é uma prova racional da exis-
veis para determinar o lugar do
tência de Deus nos moldes dos ar-
argumento no pensamento pasca-
gumentos a posteriori tomistas ou
liano. Por esta razão, antes de
do argumento ontológico de An-
considerarmos os elementos cen-
selmo ou Descartes. Ainda que no
trais da Aposta, é mister que con-
fragmento 1846 da edição Bruns-
sideremos esse contexto imediato
chvicg Pascal nos esclareça que o
que envolve o argumento. Em
propósito do seu texto seja indu-
uma passagem de seus Commentai-
zir à procura de Deus entre os
res Gouhier (2005, p. 285) afirma
filósofos pirrônicos e dogmáticos,
que “a Aposta representa o que
está busca, ainda que dotada de
há de mais audaciosamente ‘ra-
certa razoabilidade, possui um es-
cionalista’ na apologética de Pas-
tatuto bastante distinto das pro-
cal”. Qualquer que seja o enten-
vas reivindicadas pela teologia na-
dimento desta afirmação, ele não
tural. De modo específico, o au-
pode apontar para um Pascal que
tor das Provinciais simplesmente
usa sorrateiramente o expediente
confere razoabilidade à opção que
do racionalismo na fala acerca de
aposta na existência divina. A ra-
Deus. Obviamente, esta declara-
zão está mais associada à escolha
ção do célebre comentador pascali-

5 Em Deus: um delírio, a crítica de Dawkins direciona-se, sobretudo, para o caráter volitivo da crença em Deus.
Para ele, “acreditar não é uma coisa que se possa decidir, como se fosse uma questão política”. Não levar isso em
conta tornaria a Aposta um argumento para sustentar uma crença fingida em Deus.
6 Fragmento no original conforme a versão Pensées (1897) de León Brunschvicg): “Lettre pour porter à recher-
cher Dieu. Et puis le faire chercher chez les philosophes, pyrrhoniens et dogmatistes, qui travaillent celui qui les
recherche”.

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que à existência propriamente dita. neste procedimento há o reconhe-


Na distinção precisa de Gouhier cimento por parte da própria ra-
(2005), a Aposta não é racional nos zão daquilo que ultrapassa a sua
termos da filosofia moderna, mas esfera epistemológica. De algum
razoável. Esta observação é funda- modo, apostar significar renunciar
mental a fim de que evitemos in- a certeza confortável das argumen-
terpretar a Aposta como um artifí- tações racionais. Aposta-se, nos
cio racionalista na apologética pas- termos de Mantovani 2015, p. 119)
caliana. Sabe-se que o polemista “porque as demonstrações metafí-
de Port-Royal foi um defensor ar- sicas da existência de Deus não são
doroso da dignidade da razão e do mais possíveis”.
pensamento. Com o mesmo fervor, A tese segundo a qual a Aposta
não obstante, ele a confrontou com pascaliana, longe de ser um ex-
seus limites. Em uma famosa pas- pediente racionalista, aponta para
sagem dos Pensamentos, Pascal sen- os limites do pensamento parece
tencia que “o último passo da razão coadunar-se com as observações in-
é reconhecer que há uma infini- trodutórias ao argumento no frag-
dade de coisas que a ultrapassam” mento Infini Rien. Conforme nos
(PASCAL, 2005, 74). Estritamente lembra Gouhier em sua análise
falando, pode-se afirmar que a ne- estrutural do argumento, Pascal
cessidade de apostar na existência principia as suas considerações fa-
de Deus se insere muito mais nos lando sobre o conhecimento do in-
limites da razão do que em sua dig- finito7 . Há, no entendimento do fi-
nidade ou capacidades. Em ou- lósofo francês, uma distância qua-
tros termos, só há espaço para a litativa entre o infinito (Deus) e
Aposta diante do malogro de pro- o finito (homem). Esta despro-
vas racionais nos moldes da teolo- porção obstrui por completo qual-
gia natural. É óbvio que há um ele- quer possibilidade deste conhecer
mento de razoabilidade na Aposta, por si mesmo Àquele. Em termos
mas é preciso também reconhe- pascalianos, “o finito se aniquila
cer, como o faz Russier (1949) que na presença do infinito e se torna

7 As três divisões do argumento apontadas por Gouhier são as seguintes: 1) Reflexões sobre o conhecimento
do Infinito; 2) O argumento da Aposta propriamente dito e 3) A atitude moral do homem como implicação da
Aposta.

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um puro nada” (PASCAL, 2005, p. vina deva ser categoricamente des-


158). A propósito, a própria an- cartada, do mesmo modo que não
títese Infinito Nada escolhida cui- negamos a existência dos núme-
dadosamente para nomear o frag- ros infinitos porque não sabemos
mento já parece sugerir a impossi- se eles são pares ou ímpares. Se
bilidade do Deus infinito ser apre- mesmo na geometria, há elementos
endido pelo esforço da finitude hu- que são tomados de forma axiomá-
mana. Numa expressão empres- tica para comprovar outras verda-
tada de Gouhier (2005, p. 252) des e proposições, a existência de
o título significa o nada do finito Deus não deve ser descartada a pri-
diante do Infinito. A verdade é ori, ainda que prescinda da razão.
que, embora não possamos negar a No entanto, esta realidade coloca a
existência de Deus, em termos ra- necessidade da fé, no entender de
cionais, desconhecemos por com- Pascal, o único instrumento apro-
pleto a sua natureza. Por meio da priado para conhecermos a exis-
luz natural, não apenas desconhe- tência de Deus.
cemos a natureza de Deus, mas so- Mesmo quando consideramos o
mos até mesmo incapazes de saber elemento estritamente matemático
se Ele existe. Pela via exclusiva da da Aposta – o cálculo de proba-
razão, tanto a existência quanto a bilidade – precisamos tomar cui-
inexistência de Deus são incertas. dado para não atribuir ao argu-
“Se há um Deus”, assevera Pascal mento um estatuto mais raciona-
(2005, Laf. 418; Bru 233), ele é in- lista do que aquele que seu autor
finitamente incompreensível, visto imaginara. Deve ser lembrado que
que, não tendo partes nem limites, “não é a razão geométrica ou ci-
não tem nenhum ponto de rela- entífica que avalia as alternativas,
ção conosco”8 . Tal impossibilidade mas o coração9 que avalia as con-
não implica que a existência di- sequências das ações” (FERREIRA,

8 Em uma carta enviada à sua irmã Gilberte, parafraseando a Carta aos Romanos (1:20), Pascal lembra que “as
coisas corporais são apenas uma imagem das espirituais, e Deus representou as coisas invisíveis nas visíveis; mas
é preciso confessar que não se pode perceber essas sagradas características sem uma luz sobrenatural” (PASCAL
apud Gouhier, 2005, p. 227).
9 Vale lembrar que, em Pascal, o termo Coração não aponta apenas para uma dimensão volitiva, mas pos-
sui também um sentido epistemológico. Em uma expressiva passagem dos Pensamentos (Laf. 110; Bru 282), ele
afirma: “Conhecemos a verdade não apenas pela razão, mas também pelo coração. É desta maneira que conhece-
mos os primeiros princípios, e é em vão que o raciocínio, que não toma parte nisso, tenta combatê-los” (PASCAL,
2005, p. 38).

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2012, p. 194). Tal ideia está acordo com o espírito da religião


de acordo com a compreensão de cristã. Uma vez que os cristãos
Hans Küng do raciocínio de Pas- professam uma fé que não pode
cal. Para o teólogo alemão, quando ser reduzida à razão, seria estra-
se trata da existência de Deus, não nho exigir da parte deles que fun-
se requer tanto um juízo da razão damentassem suas crenças e dog-
como uma decisão do homem in- mas em certezas racionais. Enfim,
teiro, decisão que não está provada interpretar o Pari pascaliano como
pela razão, mas pode justificar-se uma espécie de flerte com o raci-
ante ela. Ainda que possa soar onalismo ou como uma espécie de
estranho, há no argumento da indecisão em relação aos limites da
Aposta um elemento intrínseco à razão significa desconsiderar a es-
finitude: a incerteza que emerge sência do seu projeto apologético
dos limites da razão. Pierre Mag- como um todo, além de não le-
nard capta de modo apropriado var em conta o contexto imediato
essa dimensão da Aposta pascali- do argumento no fragmento Infini
ana: Rien.
Concentremo-nos a partir de
Afastemos de ver nesse texto um agora na Aposta propriamente
argumento que visaria o liber- dita. Para tanto é necessário que
tino matemático, aplicando o cál- retomemos textualmente o frag-
culo de probabilidades à questão mento dos Pensamentos no qual
da crença. O que se extrai des- Pascal constrói o seu arrazoado
sas páginas é a incerteza de todas tendo como cenário fictício uma es-
as apostas da existência humana, pécie de diálogo com o adversá-
a começar pela própria existên- rio cético. Procurando refutar a
cia de Deus, incerteza radical que ideia daqueles que tentavam de-
coloca contra a parede o coração e fender um postura de neutrali-
a razão, impondo ao homem a ne- dade em relação à existência di-
cessidade de libertar-se das pai- vina, o filósofo francês principia
xões (MAGNARD, 2013, p. 9) a sua conversa exatamente cha-
mando a atenção do seu interlocu-
Esta condição, nos lembra Pas- tor imaginário para a necessidade
cal (2005), está perfeitamente de da Aposta.
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Sim: mas é preciso apostar. Não é não ao ato de apostar em si. Nou-
coisa que dependa da vossa von- tros termos, aquele que não aposta
tade, já estamos metidos nisto. na existência de Deus, ainda que
Qual escolhereis então? Veja- prefira são assumir esse posiciona-
mos. Já que é preciso escolher mento claramente, já decidiu apos-
vejamos o que menos vos inte- tar na inexistência de Deus. Não
ressa. Tendes duas coisas a per- é, portanto, viável uma espécie
der: a verdade e o bem, e duas de suspensão do juízo nos mol-
coisas a empenhar: vossa razão des do ceticismo. Desse modo,
e vossa vontade, vosso conheci- Pascal assume claramente a incon-
mento e vossa beatitude, e vossa veniência de um ceticismo estrito
natureza tem que fugir de duas senso, posicionamento que enfren-
coisas: o erro e a miséria. Vossa tará a oposição ferrenha de Vol-
razão não se sentirá mais atin- taire, para quem não apostar que
gida por terdes escolhido uma Deus é e apostar que Deus não
coisa em vez de outra, já que é é são coisas completamente dis-
preciso necessariamente escolher. tintas. Nos termos do pensador
Eis um ponto liquidado. Mas, iluminista, “aquele que duvida e
vossa beatitude? Pesemos o ga- pede esclarecimentos seguramente
nho e a perda escolhendo a cruz, não aposta nem pro e nem contra”
que e Deus. Consideremos estes (VOLTAIRE, 1973, p. 47).
dois casos: se ganhardes, ganha- Já que, segundo o raciocínio
reis tudo; se perderdes, não per- pascaliano, escolher não apostar é
dereis nada. Apostai, pois, que algo fora de cogitação, resta ao in-
ele existe sem hesitar (PASCAL, terlocutor cético simplesmente es-
1984, Br. 233, Laf. 418) colher o objeto para o qual diri-
girá a sua Aposta. Para tanto, ele
Conforme mencionado acima, precisa calcular cuidadosamente a
Pascal inicia seu diálogo com o cé- fim de constatar qual das opções
tico eliminando o caráter voluntá- encerra maiores benefícios. Três
rio da Aposta. Para ele, ao ho- elementos inerentes a uma Aposta
mem não é dada a possibilidade de são trazidos à tona por Pascal: em
não apostar. Sua escolha abrange todo e qualquer jogo há sempre 1)
unicamente o objeto da Aposta e aquilo que empenhamos como ga-
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rantia de que estamos, de fato, ade- O adversário poderia, não


rindo à aposta 2) algo que pode ser obstante, questionar-se se não se-
perdido e 3) algo que pode ser ga- ria racionalmente arriscado apos-
nho. No jogo da vida, sempre que tar tudo na existência, uma vez que
apostamos na existência ou na ine- no jogo a possibilidade do erro é
xistência divinas, empenhamos a real. O crente e o cético empenham
nossa razão e nossa vontade. De sempre a sua finitude no exercí-
modo geral, expomos na Aposta a cio da Aposta e há para ambos
própria existência que, seja no seu tanto a possibilidade da danação
aspecto intelectivo ou volitivo tem quanto da beatitude eterna. Diante
como propósito a felicidade. Além deste cenário, Pascal defende que
disso, todo jogador corre o risco de há mais razoabilidade em apostar
perder a verdade e o bem, de per- na existência do que na inexistên-
der a própria existência, caso o ob- cia de Deus, uma vez que arrisca-
jeto no qual ele apostou suas fichas mos sempre a existência finita atra-
seja pura ficção. À luz do cerne ge- vessada pela contingência em prol
ral do argumento, pode-se afirmar de uma existência infinita. Em ter-
que o apostador tem duas coisas a mos de razoabilidade, se um joga-
ganhar. A mais óbvia diz respeito à dor não pode ser criticado por ar-
beatitude eterna. No entanto, o fi- riscar uma vida diante da possi-
lósofo jansenista admite uma pos- bilidade de ganhar três outras vi-
sibilidade de ganho já nesta vida das, seria mais razoável ainda ar-
para aquele que opta pela existên- riscar esta mesma vida diante da
cia de Deus, visto que ele será di- possibilidade de alcançar a eterni-
recionado ao cultivo de verdades dade. Não razoável, para o pen-
elevadas: “Ora, que mal vos ocor- sador francês, seria não empenhar-
rerá se tomardes este partido? Se- mos a vida finita, ainda que tivés-
reis fiel, honesto, humilde, reco- semos uma única chance de ganhar
nhecido, benfazejo, amigo, sincero, a eternidade. Mais ainda quando
verdadeiro... Na verdade, não es- as chances de ganho são pelo me-
tarei nos prazeres empestados, na nos iguais às chances de perda.
glória, nas delícias, mas não tereis Sob a ótica da Aposta, a digni-
acaso outros”? (PASCAL, 2005, dade da existência infinita justifi-
Laf. 418; Bru. 233). caria até mesmo o risco de sacrifi-

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car a razão e a finitude. Em ter- vadas;


mos pascalianos, “há uma possi- 3) Se o cético, ao apostar na exis-
bilidade de vida infinitamente fe- tência de Deus, estiver correto, terá
liz para ganhar, uma possibilidade um ganho finito, ou seja, apenas a
de ganho contra um número fi- existência atual que supostamente
nito de possibilidades de perdas e aproveitou em decorrência de sua
aquilo que estamos jogando é fi- descrença na realidade divina;
nito” (PASCAL, 2005, p. 161. Laf. 4) Se o cético, ao apostar
418; Bru. 233). Com isto o filósofo na existência de Deus, estiver er-
francês descontrói a pressuposição rado, terá uma perda infinita: a
do cético segundo a qual seria mais vida infinitamente feliz que pode-
razoável apostar na inexistência de ria desfrutar caso tivesse apostado
Deus. No final das contas, nem a na existência divina. No final das
opção do crente nem a do cético são contas, para Pascal, seguindo o es-
puramente racionais, uma vez que pírito da teologia cristã, o cético
eles decidem subjetivamente qual terá perdido tudo, não apenas a
opção acatar. Não obstante, o que vida eterna, mas até mesmo a exis-
aposta na existência, é mais razoá- tência finita.
vel do que aquele que abraça o ce- Em suma, por trás da Aposta na
ticismo. Até o presente momento, existência há um ganho infinito e
podemos sumarizar o percurso ar- uma perda finita, a Aposta na ine-
gumentativo pascaliano conforme xistência, por sua vez, encerra um
o modelo abaixo: ganho finito e uma perda infinita.
1) Se o crente, ao apostar na Neste ponto claramente, Pascal re-
existência de Deus, estiver correto, toma a doutrina da desproporção
terá um ganho infinito: uma vida existente entre a finitude e a infini-
infinitamente feliz com Deus; tude aludida na abertura do frag-
2) Se o crente, ao apostar na exis- mento Infini Rien. Em face dessa
tência de Deus estiver errado, terá desproporção, ao arriscar a sua fini-
apenas uma perda finita: a parte da tude é como se o homem, verdadei-
existência finita a qual dedicou à ramente, nada perdesse. A com-
crença em algo ilusório. Mesmo as- preensão de Pascal segundo a qual
sim, ele poderá ser lembrado como nada perdemos quando empenha-
alguém que cultivou virtudes ele- mos a nossa finitude na Aposta
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pode soar estranha ao leitor con- preciso reconhecer o caráter con-


temporâneo, uma vez que para o tingente e incerto da existência fi-
cético a existência finita é aquilo nita. A incerteza não é um in-
que ele possui de mais precioso. conveniente enfrentado apenas por
O pensador francês, não obstante, aquele que aposta na infinitude,
deve ser interpretado à luz das mas uma condição inerente à fini-
categorias cristãs que marcam o tude que precisa, a cada instante,
seu pensamento e que não causam assumir o risco das decisões exis-
estranheza ao contexto do século tenciais. Pascal apresenta esta con-
XVII. Segundo Mantovani (2015, tra argumentação no pensamento
p. 126), “ao afirmar que nada 234 da edição Brunschvicg.
perderemos, Pascal está a pressu-
por que nossa vida atual não pos- Se somente se devesse fazer al-
sui nenhum valor intrínseco – tese guma coisa com certeza, nada se
que, aliás, está em perfeita sin- deveria fazer pela religião, pois
tonia com sua consciência trágica ela não oferece certeza. Mas
segundo a qual é completamente quantas coisas se fazem na in-
desprovido de valor tudo aquilo certeza: viagens marítimas, ba-
que não é absoluto, tudo aquilo talhas! Digo, portanto, que não
que não é Deus”. Esta compre- se deveria fazer absolutamente
ensão, contudo, não era comparti- nada, porque nada é certo; e que
lhada pelo cético, mesmo no con- há mais certeza na religião do
texto do século XVII. O questiona- que em vermos o dia de amanhã
mento que o cético poderia fazer é (PASCAL, 1984, p. 97. Bru.
imaginado por Pascal em seu diá- 234, Laf. 419)
logo fictício. O homem não estaria
arriscando muito ao renunciar uma Ao cético, seria debalde apos-
finitude certa por uma infinitude tar na inexistência e buscar o refú-
incerta? Como resposta a esta ob- gio aparentemente seguro da vida
jeção o autor das Provinciais argu- presente, uma vez que, na prática,
menta que a religião perderia com- esta certeza é ilusória. A negação
pletamente a sua essência se esti- da infinitude sob o argumento de
vesse baseada unicamente em cer- sua natureza incerta seria para ele
tezas lógico-racionais. Ademais, é uma espécie de fuga, como vimos,
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uma opção bem menos razoável do Porque as notícias de profe-


que aquele que aposta na existên- cias cumpridas não são profecias
cia divina. Esta tese traz à tona um cumpridas, porque as notícias de
último questionamento que o Pari milagres não são milagres cum-
pascaliano suscita. Se a aposta na pridos. As profecias que se cum-
existência é realmente mais razoá- prem diante de meus olhos, os
vel do que a aposta na existência milagres que sucedem diante de
divina, por que motivos o cético, meus olhos, influem diretamente.
simplesmente, não se rende às evi- Mas as notícias de profecias e
dências de sua luz natural? Pascal milagres cumpridos tem de in-
faz questão de esclarecer que a pos- fluir mediante a algo que lhes tira
tura do cético não é fundamentada toda a força. (LESSING, Sobre
em uma conclusão lógico-racional, a demonstração em espírito e
mas em uma decisão pessoal. Aqui força).
Pascal faz ecoar a sua influência
do pensamento agostiniano, para o
Num primeiro momento, pa-
qual, em virtude de sua natureza
rece inusitado o fato de introdu-
corrompida, o homem é inclinado
zirmos o conceito de Salto de fé
a não crê. Em virtude dessa cor-
em Kierkegaard com uma citação
rupção originária o cético, ainda
de Lessing, filósofo iluminista do
que não tenha concluído, já deci-
século XVIII. A referência, con-
diu não considerar a realidade di-
tudo, não é fortuita. Os estudio-
vina. Tal fato justifica a exortação
sos do pensador dinamarquês es-
do pensador francês no final de seu
tão de acordo acerca da expressiva
argumento: “Trabalhai, então, não
influência do autor alemão sobre
para vos convencer pelo aumento
Kierkegaard. A propósito, o pró-
das provas de Deus, mas pela dimi-
prio conceito de Salto se insere na
nuição das vossas paixões” (PAS-
lista das influências devidas a Les-
CAL, 2005, p. 162. Laf. 418, Bru.
sing. Tal fato é reconhecido pelo
233). filósofo de Copenhague, de forma
indireta, em Temor e tremor e, dire-
2.SILÊNCIO E PARADOXO: O tamente, no Pós-escrito às Migalhas
SALTO DE FÉ KIERKEGAARDI- filosóficas. Tal informação obriga-
ANO nos a uma retomada do conceito
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DA APOSTA NA EXISTÊNCIA DE DEUS À RADICALIDADE DO SALTO DE FÉ

de Salto em Lessing que serviu de O argumento aludido por Da-


base para Kierkegaard. niel Schumann seria duramente
Em 1777, Lessing escrevera ao combatido pelo filósofo alemão
diretor Schumann10 um artigo de- no artigo supracitado. Oríge-
13
nominado Sobre a demonstração em nes , exemplificara Lessing (1990,
espírito e força (Über den Beweis p. 481), “dizia com razão pos-
des Geistes und der Kraft) no qual suir a religião cristã, nessa prova
negava que verdades contingentes em espírito e força, a prova autên-
ou históricas pudessem demons- tica, mais divina que qualquer ou-
trar as verdades racionais ou ne- tra que pudesse oferecer a dialé-
cessárias11 . À guisa de esclareci- tica grega. Porque, em sua época,
mento, o título do artigo fazia re- ainda não havia abandonado aos
ferência ao argumento empregado, que vivem segundo os preceitos de
desde os dias apostólicos, para de- Cristo a força de fazer coisas ma-
monstrar a veracidade da doutrina ravilhosas”. Em sua argumenta-
cristã. “O espírito”, explica De ção em prol da validade da reve-
Paula (2009, p. 26) “seria a luz lação judaico-cristã, Schumann ci-
para aquilo que se lê, a força seria a tara uma passagem do Contra Celso
prova material daquilo que se leu”. de Orígenes onde o apologista cris-
A demonstração em espírito e força tão afirmara que os milagres, ainda
repousava na ocorrência de mila- em evidência em seus dias, se cons-
gres e no cumprimento das pro- tituíam em uma prova infalível do
fecias bíblicas enquanto provas do cristianismo.
cristianismo12 . Para o autor alemão, relatos

10 Trata-se de Johann Daniel Schumann (1714 – 1787), diretor do Liceu de Hannover. Schumann havia afir-
mado em seus Papeis de um anônimo referente à revelaçãoque a revelação judaico-cristã era a única que gozava de
provas evidentes, a saber, as profecias e os milagres e que resultavam convincentes para os teólogos (LESSING,
1990). Nota do tradutor Augustín Andreu.
11 Em nota explicativa da tradução brasileira das Migalhas filosóficas, Álvaro Valls (2011) destaca que Lessing
fora influenciado por Leibniz nesse ponto. Na distinção do filósofo racionalista, existiam verdades eternas ou ra-
cionais e verdades históricas ou contingentes. O cristianismo, obviamente, encontrava-se na primeira classe de
verdades mencionadas.
12 Claramente, a expressão “Demonstração em espírito e força” tem sua origem na declaração paulina em I Co.
2:4, onde se lê: “A minha palavra e a minha pregação não consistiram em linguagem persuasiva de sabedoria, mas
em demonstração do espírito e de poder”.
13 Pai alexandrino do terceiro século. A obra citada por Lessing é Contra Celso, um dos textos mais famosos do
apologista cristão. Orígenes escreveu esse texto a pedido de Ambrósio de Milão, a fim de refutar as acusações
feitas pelo filósofo romano Celso ao cristianismo na obra denominada Doutrina verdadeira. Em sua obra, o apolo-
gista alexandrino, dentre outros argumentos, empregara a prova dos milagres como fundamento da veracidade
da doutrina cristã.

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acerca da ocorrência de milagres tos prodigiosos. Na verdade, co-


não possuem qualquer força e, menta Le Blanc (2003), na discus-
ainda que seja anunciado do modo são acerca das verdades eternas, o
mais comovente e razoável, não po- argumento da história não pode ser
dem levar alguém a crer em Cristo. invocado, tenha transcorrido dois
Ainda que Cristo tenha ressusci- mil anos ou apenas duas horas en-
tado conforme o relato dos Evange- tre o evento e seu relato. O que
lhos, que sinais e prodígios tenham conta é o ato pelo qual nos detemos
sido operado pelos primeiros dis- nesse pensamento para nos relacio-
cípulos, nada disso fornece uma narmos em subjetividade com essa
prova incontestável para a crença. verdade.
“Uma coisa são milagres que vejo Para Lessing, quando se trata
com meus próprios olhos e te- das verdades eternas do cristia-
nho ocasião de comprovar, e ou- nismo, o recurso da história é ine-
tra coisa são os milagres os quais, ficaz. Na ilustração do filósofo ale-
só pela história, sei que outras pes- mão, a crença que tenha existido
soas dizem haver visto e compro- um tal Alexandre que conquistou
vado” (LESSING, 1990, p. 480). A quase toda a Ásia não implica em
distância de mais de quinze sécu- nada de valor perene e cuja perda
los entre a suposta ocorrência do fosse irreparável. De modo simi-
milagre e a atualidade retiram da lar, o relato acerca da ressurreição
prova a sua força por completo. de Cristo não nos obriga a crer re-
Por conta desta distância, declara almente que Cristo era Deus (LES-
Lessing, “essa prova em espírito e SING, 1990). Há, portanto, um
força, já não tem agora nem es- abismo que separa o relato das con-
pírito nem força, senão que têm tingências históricas e as verdades
descido à categoria de testemu- eternas que não pode ser trans-
nho humano sobre o espírito e a posto pela suposta prova. Nos
força”. Se os milagres não pode- termos emblemáticos de Lessing
riam mais, no contexto do século (1990, p. 483), “um repugnante e
XVIII, provar a veracidade da reve- largo fosso que, por mais que ten-
lação cristã, seria para Lessing in- temos, não conseguimos saltá-lo”.
devido exigir que alguém cresse a A necessidade do salto, como se vê,
partir da mera notícia de tais fei- retira a pretensa força da prova.
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DA APOSTA NA EXISTÊNCIA DE DEUS À RADICALIDADE DO SALTO DE FÉ

Segundo o depoimento de Gou- nhague combate “a transição direta


vêa (2006) o Salto de fé kierkega- da confiabilidade histórica para a
ardiano é a releitura da “vala hor- decisão de uma felicidade eterna”
rível” entre a história e os concei- (KIERKEGAARD, 2013, p. 99).
tos racionais atribuída ao filósofo A fidelidade de Kierkegaard ao
alemão. Um exemplo claro dessa texto de Lessing vê-se de modo evi-
influência encontra-se na segunda dente no Pós-Escrito. Até mesmo
seção do Pós-Escrito, na qual o pen- os exemplos empregados pelo crí-
sador dinamarquês, na sua polê- tico alemão são retomados na dis-
mica contra a especulação dos filó- cussão. É o caso, por exemplo,
sofos sistemáticos, retoma as teses do inconveniente de alguém de-
pronunciadas por Lessing. Uma positar a sua confiança eterna em
das teses aludidas é precisamente uma crença fortuita e contingente
aquela encontrada no artigo Sobre a do tipo: a existência de um impera-
demonstração em espírito e força, re- dor chamado Alexandre que con-
ferido acima. Como seu antecessor, quistou quase toda a Ásia. Como
Kierkegaard (2013) também assu- seu antecessor, Kierkegaard asse-
mirá no Pós-Escrito que a transição vera que tal crença histórica, defi-
entre as verdades históricas con- nitivamente, não pode ser o fun-
tingentes e as verdades racionais damento para uma decisão eterna.
eternas só pode ser feita mediante No final das contas, o milagre por
um Salto. Em sua análise, o pen- si mesmo não é necessariamente o
sador dinamarquês retoma a tese fundamento da crença nem para o
de Lessing e relaciona-a ao questio- contemporâneo. A rigor, para Kier-
namento já apresentado nas Miga- kegaard (2013), a decisão de crer é
lhas filosóficas: “Pode-se construir sempre um Salto seja para o con-
uma verdade eterna sobre um co- temporâneo seja para aquele que
nhecimento histórico?” Usando o vem depois. É sempre por meio do
pensador alemão como referência, Salto que o indivíduo se lança em
a resposta de Kierkegaard a esse direção à verdade eterna.
questionamento é um categórico Retomando a figura antecipada
não. Seguindo a crítica esboçada por Lessing, Kierkegaard aproveita
no texto Sobre a demonstração em para criticar compreensões equivo-
espírito e força, o filósofo de Cope- cadas do Salto. Em primeiro lu-
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gar, como este movimento se con- mente defensor da ortodoxia, Ja-


figura no momento da decisão, es- cobi é um entusiasta que descreve
tar perto de transpor o fosso largo e o caráter exigente do Salto, mas,
horrível é uma atitude tão infrutí- ao mesmo tempo, quer levar o seu
fera quanto nunca ter desejado sal- ouvinte a saltar pela força da ora-
tar. Para empregar uma ilustra- tória. Conforme denunciado por
ção a partir de Temor e tremor, se Kierkegaard, Jacobi usava a sua
Abraão, ao avistar o Moriá, tivesse eloquência para levar seu apren-
desistido de sacrificar Isaac, não diz a realizar o Salto quando ele
seria o cavaleiro da fé, não passaria mesmo não tinha a coragem sufici-
de um herói trágico14 e de nada te- ente para realizá-lo. Nesse ponto,
ria adiantado a caminhada angus- a acidez da ironia do dinamarquês
tiante de três dias. Em outros ter- é evidente. Em uma atitude deso-
mos, a simples aproximação do fa- nesta, o eloquente pregador tem a
tídico monte não torna o patriarca pretensão de ensinar algo a alguém
diferente daquele que não deu um que ele mesmo ainda não apren-
único passo em sua direção. Ob- deu, precisamente porque não foi
viamente, Kierkegaard tem duras capaz de realizá-lo uma única vez.
palavras para os que estão na inde- Contra o Salto proposto por Jacobi,
cisão em relação ao Salto. “Ter es- Kierkegaard ressalta que o verda-
tado muito perto de fazer alguma deiro Salto de fé não se permite
coisa já tem seu aspecto cômico, ensinar ou comunicar diretamente,
mas ter estado muito próximo de justamente porque ele é um ato
dar o salto não significa absoluta- de isolamento. “Um Cavaleiro da
mente nada, justamente porque o fé, afirma o filósofo francês, não
salto é a categoria da decisão” (KI- pode de maneira alguma socorrer
ERKEGAARD, 2013, p. 103). outro. Nessas regiões não se pode
O pensador dinamarquês, ade- pensar em ir acompanhado” (KI-
mais, está atento para aqueles que ERKEGAARD, 2009, p. 78). Nou-
pretendem saltar nos moldes do tros termos, o Salto remete sem-
salto mortale de Jacobi. Suposta- pre à decisão do indivíduo singu-

14 Figura empregada por Kierkegaard no texto pseudonímico Temor e tremorpara se contrapor ao Cavaleiro da
fé (Abraão). O Herói trágico é um modelo de ética, capaz de sacrificar o particular em prol do geral, mas, visto
carecer ainda de uma mediação racional, é incapaz de empreender o salto de fé.

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DA APOSTA NA EXISTÊNCIA DE DEUS À RADICALIDADE DO SALTO DE FÉ

lar. A falha do empreendimento ARD, 2013, p. 105)


de Jacobi consiste em pressupor
que o Salto pode ser dado acompa- O conceito de Salto em Kier-
nhado quando esta decisão é pre- kegaard não se restringe ao Pós-
cisamente a expressão máxima do Escrito. Em Temor e tremor, texto
isolamento do homem diante de publicado em 1843, o pseudô-
Deus. Ele solapa a subjetividade nimo kierkegaardiano Johannes de
deste movimento tornando-o obje- Silentio já tipificara o Salto de
tivo pela força do discurso. Por fé por meio do patriarca bíblico
esta razão Kierkegaard tem pala- Abraão. Neste texto, o pensador
vras de recusa e ironia para o em- dinamarquês fala da seriedade do
preendimento jacobiano: Salto e do modo como o homem é
incapaz de realizá-lo por si mesmo.
Jacobi não aprendeu como se O homem, ironiza o pseudônimo,
disciplinar artisticamente a si pode realizar o salto de trampolim
mesmo para se contentar com, ao infinito tal qual um dançarino
em existindo, exprimir a ideia. de corda. A sublimidade e suti-
A pressão do isolamento que está leza dialética do salto de fé, não
posta especificamente no salto obstante, extrapola o mero movi-
não consegue coagir Jacobi, ele mento da resignação infinita (KI-
precisa divulgar algo. Transbor- ERKEGAARD, 2009). Obviamente
dante, ele sempre recai naquela em um gracejo, Kierkegaard de-
eloquência que, em vigor, subs- clara no texto de 1846 que, antes
tância e efervescência lírica, às de ter contato com o texto de Les-
vezes se equipara a de Shakespe- sing, ele já tomara conhecimento
are, mas que, contudo quer aju- de Temor e tremor, bem como da
dar os outros numa relação di- concepção de Salto trabalhada por
reta para com o orador ou, como Silentio. Nesta obra, assume o
in casu, quer ganhar para si o dinamarquês, o Salto já aparecia
consolo de que Lessing está de como a categoria por excelência
acordo com ele. (KIERKEGA- da decisão em relação ao crístico15 .

15 Esse termo aparece em muitas obras de Kierkegaard. Seu objetivo, ao usar tal expressão é, certamente, mar-
car a distinção entre o verdadeiro cristianismo e a cristandade estabelecida na Dinamarca. O crístico tem um ca-
ráter dinâmico, vívido, chamando à atenção para a relação entre a fé, a singularidade do indivíduo, diferente da
cristandade que se perde na frieza e superficialidade do sistema.

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Assim, o pensador alemão simples- todoxia cristã ultrapassavam a


mente confirmara a compreensão razão, não seria possível validá-
já encontrada no texto de 1843. las por considerações simples-
Ironias à parte, esta passagem do mente históricas, de qualquer
Pós-Escrito é, de fato, uma indica- modo intrinsecamente problemá-
ção da influência de Lessing já em ticas. Portanto, havia a neces-
Temor e tremor. Na verdade, sem- sidade de escolher entre, por um
pre de modo bem humorado, no lado, dar um salto qualitativo ou
último parágrafo de sua análise da categórico do tipo que derrotara
terceira tese de Lessing, Kierkega- o próprio Lessing e, por outro,
ard especula sobre a possibilidade descartar as doutrinas em ques-
de o próprio Silentio ter sido influ- tão em favor de alguma alterna-
enciado pelo pensador alemão em tiva que fosse aceitável do ponto
sua noção de Salto de fé (KIER- de vista da compreensão e da ra-
KEGAARD, 2013). Curiosamente, cionalidade humanas: não ha-
em uma nota explicativa do es- via meio termo. (GARDINER,
crito pseudonímico, o autor di- 2001, p. 78)
namarquês faz um elogio a Les-
sing, antecipando o elogio que se- Como expresso acima, Kier-
ria empregado por Johannes Cli- kegaard não está disposto a nego-
macus. Discutindo acerca do ca- ciar a cisão entre o Salto e o ato
ráter paradoxal da fé, o autor ale- de fé propriamente dito. O ver-
mão é elogiado pelo fato de, ape- dadeiro Cavaleiro da fé não se as-
sar de sua genialidade, não ter segura histórica e racionalmente
pretendido ir além daquilo que se para decidir-se pela fé, muito me-
pode compreender. O elogio é, ao nos, ele salta amparado pela força
mesmo tempo, uma crítica aguda da oratória. Ele apenas reconhece o
aos teólogos racionalistas e espe- mistério e, movido por uma firme
culativos que procuravam explicar convicção, lança-se em direção a
aquilo que não haviam compreen- ele. A propósito, como foi menci-
dido. Para recorrer a um comentá- onado acima, a figura do Cavaleiro
rio de Gardiner (2001, p. 78), da fé encontrada em Temor e tremor
é, certamente, aquela que melhor
As doutrinas dogmáticas da or- ilustra o Salto de fé kierkegaardi-
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ano. À luz desse texto, percebe-se sente, mas, por conta de seu dever
que o Cavaleiro abraça um fé para- absoluto para com Deus, o indiví-
doxal, uma fé separada do auxílio duo é incapaz de cumpri-lo plena-
e certeza da mediação racional. Se- mente. Tendo como referência Te-
gundo as palavras de Johannes de mor e tremor, a Suspensão ocorre
Silentio, “a fé não constitui um im- em virtude do dever absoluto que
pulso de ordem estética; é de outra o indivíduo possui para com Deus.
ordem muito mais elevada, justa- Este dever, pode levar à realiza-
mente porque pressupõe a resigna- ção daquilo que a moral proibiria.
ção. Não é o instinto imediato do Enquanto pai, Abraão possui um
coração, mas o paradoxo da vida” compromisso ético, uma obrigação
(KIERKEGAARD, 2009, p. 103). A moral em relação ao filho; deve
fé é paradoxal justamente porque protegê-lo de qualquer perigo. Nos
comporta um elemento que trans- termos kierkegaardianos, “a rela-
torna as capacidades da razão e ção que Abraão possui com Isa-
descortina os seus limites. Trata- que se exprime dizendo que o pai
se daquilo que Kierkegaard de- deve amar o filho” (KIERKEGA-
nomina Suspensão teleológica do ARD, 2009, p. 83). No entanto, e
ético16 . O conceito de Suspensão aí reside a fonte da angústia do pa-
teleológica aparece em muitos tex- triarca, a comissão divina obriga-o
tos kierkegaardianos, fato que evi- a colocar Isaque em perigo.
dencia a sua centralidade no pen-
samento do dinamarquês. No Pós- A Suspensão teleológica postula
Escrito, por exemplo, o filósofo de uma exigência superior ao compro-
Copenhague declara que a suspen- misso com a regra moral: o dever
são consiste no fato de que o indi- absoluto para com Deus. Ora, se o
víduo se encontra a si mesmo em dever é absoluto, a ética encontra-
um estado completamente oposto se rebaixada ao relativo, o que,
daquele que o ético requer (KIER- certamente, estaria fora de cogita-
KEGAARD, 2013). A todo mo- ção para Kant e Hegel (ALMEIDA;
mento, o ético encontra-se pre- VALLS, 2007). Há um manda-
mento divino para não matar, o

16 France Farago (2011) declara que Kierkegaard empresta de Pascal a ideia da suspensão teleológica da morali-
dade, considerando que o filósofo francês já havia afirmado que a verdadeira moral zomba da moral.

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que significa que o assassinato é aniquilado. Caio a cada instante


um ato detestável para Deus. Mas no paradoxo inaudito que é a sua
é o próprio Deus que exige essa substância de sua vida. A cada
violação da parte de Abraão. A momento me sinto rechaçado, e,
verdade é que o homem que opta apesar do seu apaixonado furor,
pela fé, comenta Le Blanc (2003), o pensamento não consegue pe-
pela relação absoluta com o Abso- netrar esse paradoxo nem pela es-
luto, responde à ordem divina cor- pessura de um cabelo. Para obter
rendo o risco de entrar em ruptura uma saída reteso todos os múscu-
com os outros homens e com a mo- los: instantaneamente sinto-me
ral. Do ponto de vista ético, a or- paralisado. (KIERKEGAARD,
dem dada por Deus ao patriarca 2009, p. 88)
não possui nenhuma justificativa,
ela significa uma violação da pró- A título de comparação, o
pria regra moral, mas como o in- ato do Herói trágico, ilustrado na
divíduo possui um valor absoluto história de Agamenon, é perfei-
para com Deus, ele precisa cum- tamente compreendido em termos
prir o mandamento divino, ainda racionais. Ele sacrifica a filha em
que isso signifique a suspensão de benefício da nação, o particular em
tal norma. Como entender que um prol do geral. Embora dramática,
ignominioso assassinato seja con- há uma justificativa ética para o ato
vertido em um louvável sacrifício é de Agamenon. Se falha em prote-
algo que ultrapassa a racionalidade ger a filha, o faz por uma responsa-
humana. Pela fé é possível notar bilidade muito mais elevada: o de-
uma distinção entre assassinato e ver de zelar pelo bem de seu povo.
sacrifício, mas, em termos racio- Tal justificativa não se aplica à his-
nais, não há como encontrar uma tória de Abraão. Do ponto de vista
explicação plausível para esse fato. racional, não há nada que torne o
A Suspensão parece absurda, e é seu ato menos ignóbil, uma com-
precisamente nisto que consiste o pleta loucura. O mesmo Deus que
paradoxo, como bem nos expressa lhe dera o filho e que proibia o
Silentio em seu pronunciamento: assassinato, pedia agora a Abraão
Mas quando me ponho a refletir que lhe sacrificasse Isaque. A razão
sobre Abraão, sinto-me como que não podia explicar isso, por isso, o
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DA APOSTA NA EXISTÊNCIA DE DEUS À RADICALIDADE DO SALTO DE FÉ

Salto de fé era necessário. o de encontrar uma equivalência


absoluta entre Pascal e Kierkega-
3. O ENCONTRO ENTRE O
ard a partir destes conceitos, mas
APOSTADOR E O SALTADOR
o de indicar os pontos em que a
Aposta e o Salto coincidem e, cer-
Fé é certeza na medida em que
tamente, os pontos que os distan-
ela se baseia na experiência do
ciam, tendo o cuidado, não obs-
sagrado. Mas, ao mesmo tempo,
tante, de não estereotipar Pascal
a fé é cheia de incerteza, um
como um racionalista disfarçado e
vez que o infinito, para o qual
Kierkegaard como um irraciona-
ela está orientada, é experimen-
lista empedernido. Nesta primeira
tado por um ser finito. Esse ele-
incursão concentrar-nos-emos na-
mento de insegurança na fé não
quilo que existe de convergente en-
pode ser anulado; nós precisamos
tre o argumento da Aposta e o Salto
aceitá-lo. E essa aceitação é um
de fé.
ato de coragem (TILLICH, Dinâ-
mica da fé). Inicialmente, através destas ca-
tegorias, Pascal e Kierkegaard, co-
Após a apresentação de uma vi- locam de modo muito transparente
são geral sobre o conceito pasca- os limites do conhecimento racio-
liano de Aposta e a noção kierke- nal. Como se sabe, os dois filósofos
gaardiana de Salto de fé tentare- viveram em um contexto marcado
mos, a partir de agora, estabelecer pelo racionalismo que reivindicava
um diálogo entre os dois pensado- para si a capacidade de desvendar
res a partir destas categorias. É até mesmo os mistérios da fé. Am-
preciso lembrar, como o faz André bos pensadores se insurgiram con-
Clair em seu estudo Pascal et Kier- tra o racionalismo reducionista de
kegaard face à face, que o filósofo seu tempo. Na asserção irônica
dinamarquês jamais citou o frag- de Pascal (2005, Laf. 182; Bru.
mento Infini Rien diretamente. No 272), “nada existe tão conforme à
entanto, a comparação, pelas ra- razão quanto desmentir a razão”.
zões já expostas neste trabalho, não E ainda: “É coisa estranha terem
deve ser considerada inoportuna. querido os homens compreender
Dito, isto, nosso objetivo, conforme os princípios das coisas e daí che-
foi frisado em princípio, não será gar ao conhecimento de tudo por
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uma presunção tão infinita quanto Deus. Isso porque, “a razão por
o seu objeto” (PASCAL, 2005, Laf. si mesma, nada pode determinar
199; Bru. 72). Ao lermos esta a esse respeito” (PASCAL, 2005, p.
severa denúncia do pensador jan- 159). Noutros termos, aposta-se
senista, quase que imediatamente, porque tanto a existência quanto
no remetemos à reclamação feita da inexistência não podem ser con-
por Kierkegaard em Temor e tremor cluídas a partir de um dedução
por meio do pseudônimo Johan- lógica. Parafraseando Mantovani
nes de Silentio. Nos seus termos, (2015), a Aposta coloca os limi-
“a filosofia não pode e nem deve tes epistemológicos da razão hu-
dar a fé, mas deve entender-se a si mana, demonstrando que ela não
mesma e saber o que tem para ofe- está em condições de dissipar o si-
recer, tem que entender que nada lêncio apavorante dos espaços in-
deve tirar e, menos ainda, espo- finitos. Os limites da razão, so-
liar os homens de uma coisa como bretudo, na relação entre o indi-
se nada fosse” (KIERKEGAARD, víduo e Deus, também são colo-
2009, p. 88). cados de modo evidente pelo fi-
A verdade é que tanto a Aposta lósofo dinamarquês. É neste sen-
pascalina como o Salto kierkega- tido que ele define a decisão de
ardiano são um claro diagnostico Abraão de sacrificar Isaque como o
dos limites da razão, a negação paradoxo do qual nenhum pensa-
expressa de que as certeza racio- mento pode apropriar-se. Nos ter-
nais possam abarcar toda a exis- mos de Kierkegaard (2009, p. 110)
tência. São, portanto, procedimen- “a fé começa precisamente onde o
tos que sinalizam a necessidade de pensamento acaba”17 . Por fim, do
aceitação do mistério. Neste sen- mesmo modo que a necessidade da
tido, o modo como Pascal princi- Aposta surge porque a existência
pia o argumento da Aposta é bas- divina não pode ser captada pelas
tante sugestivo. Apostamos ou na provas metafísicas, o Salto é a con-
existência ou na inexistência de fissão de que a fé não pode fundar-

17 O fracasso da razão em sua pretensão de descortinar os mistérios da fé é denunciado por Kierkegaard em


várias outras obras. Nas Migalhas filosóficas, por exemplo, ele assevera a impossibilidade da crença ser conheci-
mento, uma vez que a fé contém o absurdo de que o eterno seja histórico (KIERKEGAARD, 2011). Já em Doença
para morte, o pseudônimo Anticlimacus declara: “Não seria a fé a forma mais apropriada de perder a razão? Per-
der a razão para ganhar Deus é o próprio ato de crer” (KIERKEGAARD, 1979, p. 213).

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se em um saber histórico ou filo- brar a crítica feita por Pascal em


sófico, ambos denunciam as pre- Infini Rien àqueles que criticavam
tensões hegemônicas da razão, de- o cristianismo por não apresentar
monstram que o homem, por si justificação racional para todas as
mesmo, não está em condições de suas crenças.
descortinar por completo o misté-
rio da existência. Por fim, pode- Quem então recriminará os cris-
se dizer que há certa dose de ceti- tãos por não poderem explicar ra-
cismo nos dois procedimentos. cionalmente a sua crença? Eles
Falar de algo suprarracional em que professam uma religião que
contextos marcados por um racio- não pode ser reduzida à ra-
nalismo extremado parece um em- zão. Eles declaram ao expô-la
preendimento bastante arriscado. ao mundo que é uma estultice,
Há uma tendência de se pensar stultitiam, e depois vos queixais
tal instância como uma modali- de que eles não a provam. Se a
dade inferior de acesso à realidade provassem não manteriam a pa-
em comparação ao conhecimento lavra. É tendo falta de provas
lógico-racional, sempre conside- que eles não têm falta de sentido
rado de modo privilegiado. Tanto (PASCAL, 2005, p. 159. Laf.
Pascal quanto Kierkegaard tiveram 418; Bru. 233)
que se expor a este risco. Não obs-
tante, com a mesma intensidade Como se vê, Pascal rejeita ta-
que combateram o reducionismo citamente a ideia de que a religião
da fé à razão, tais pensadores de- seja menos verdadeira, menos im-
fenderam que a fé não deve ser portante por não apresentar provas
menosprezada por colocar-se para racionais para seus dogmas. Sua
além da razão e, às vezes, até con- legitimidade não depende das pro-
trária a ela. A fé não deve ser posta vas. Tais artifícios, na verdade,
em um patamar inferior por aca- desvirtuam a sua essência. O tom
tar o mistério que a razão tenta, de Kierkegaard neste ponto é se-
debalde, desvelar. Pode-se afirmar melhante. Em sua crítica à intro-
que a exaltação do elemento su- missão da filosofia na teologia, o
prarracional encontra-se tanto na pensador de Copenhague declara:
Aposta quanto no Salto. Basta lem- “De modo nenhum, penso que a fé
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seja algo de menor, bem pelo con- em relação ao segundo. Como


trário, a fé é o máximo, além de já foi mencionado, o argumento
que é desonesto, da parte da filo- pascaliano encontra-se justamente
sofia, oferecer outra coisa no lu- no fragmento sugestivamente de-
gar da fé, menosprezando-a” (KI- nominado Infinito Nada. A per-
ERKEGAARD, 2009, p. 88). O feição e grandeza inefáveis do Ser
ato de Abraão não se torna menos divino estampam uma completa
digno porque o patriarca prescinde desproporção entre este e o ho-
da mediação racional. Pelo contrá- mem finito. A propósito, Pascal
rio, é precisamente este elemento principia o fragmento justamente
que confere maior grandeza ao seu asseverando que, diante do Infi-
Salto. Para retomar mais uma vez nito, o homem é esvaziado de qual-
Temor e tremor, “este homem não quer dignidade intrínseca e torna-
era pensador, nem ímpeto algum se um puro nada. De algum modo,
sentia para ir além da fé. Parecia- apostar significa reconhecer que há
lhe que ser lembrado como pai da uma grandeza suprema a qual não
fé deveria ser a coisa mais magní- estamos em condições de compre-
fica, e que possuir a fé deveria ser ender, perdidos que estamos em
uma sorte invejável, mesmo que nossa miséria. Diante da magni-
ninguém disso soubesse” (KIER- tude de Deus, a atitude sábia do
KEGAARD, 2009, p. 56). É óbvio homem, enquanto puro nada, deve
que há divergências entre os estu- ser de render-se ao Ser divino. É
diosos sobre até que ponto Pascal e óbvio que a Aposta na existência
Kierkegaard privilegiam a instân- divina é, em alguma medida, uma
cia suprarracional, contudo, não há rendição. Trata-se do reconheci-
como negar que em ambos este ele- mento de que o nada deve se cons-
mento é indispensável ao homem tituir a partir da sua relação com
em sua relação com a transcendên- o infinito. De igual modo, no
cia. Salto encontramos a relativização
Em terceiro lugar, Aposta e de tudo o que é finito diante da
Salto realçam o modo como o fi- grandeza e dignidade do infinito.
nito se aniquila diante do infi- Na história de Abraão, o comando
nito e, consequentemente, a ne- divino relativiza tudo aquilo que
cessidade da entrega do primeiro concerne à esfera da finitude. O

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Cavaleiro possui um dever abso- presente. De alguma forma, apos-


luto para com Deus, dever que tar e crer são atitudes para esta
transtorna a própria norma ética e vida. É óbvio que há na Aposta
aniquila, em princípio, as aspira- e no Salto a vinculação com a in-
ções pessoais do indivíduo. Para finitude e não há como negar em
Kierkegaard, só há uma maneira de ambas certa expectativa do eterno.
relacionar-se adequadamente com No entanto, a esfera da existência
o absoluto. É preciso considerá-lo presente não pode ser descartada
como tal, o que significa necessa- em ambos os casos. Comecemos
riamente o rebaixamento da fini- com Pascal. Certamente, o apos-
tude. Tal fato pode ser percebido tador visa inicialmente a vida fu-
no fragmento abaixo: tura. Nos termos de Atalli (2003,
p. 269), ele “acredita que vale a
Pode também exprimir-se o pa- pena sacrificar a perseguição da
radoxo como sendo um dever felicidade terrena pela esperança
absoluto para com Deus; pois de eternidade”. Isso, contudo, não
nesta relação de dever, o singu- exclui a vida presente. Apostar
lar, na sua qualidade de singu- na existência significa manifestar
lar, relaciona-se de maneira ab- certa abertura para o conjunto de
soluta com o absoluto. Quanto a valores e princípios que são de-
este propósito afirma-se que é de- correntes da aceitação da existên-
ver amar a Deus, afirma-se, por- cia de um Ser supremo. É claro
tanto, uma coisa diferente do que que o apostador precisará do au-
foi dito anteriormente; pois que xílio divino para implementar a
se este dever é absoluto, o ético fi- conduta moral compatível à sua
cará, portanto, reduzido ao rela- crença, mas a Aposta é o primeiro
tivo (KIERKEGAARD, 2009, p. passo para que isso aconteça. A
130) dimensão presente do Pari pascali-
ano pode ser confirmada no modo
A Aposta pascaliana e o Salto como pensador francês tenta con-
kierkegaardiano admitem uma vencer o seu interlocutor cético que
quarta possibilidade de aproxima- receia em renunciar sua vida e pra-
ção. Há tanto em um quanto em zeres. Retomemos, neste sentido, o
outra implicações para o tempo fragmento 418 dos Pensamentos:

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Ora, que mal vos ocorrerá se triarca está disposto a sacrificar o


tomardes este partido? Sereis próprio filho, mas em virtude do
fiel, honesto, humilde, reconhe- absurdo, crê que Deus é capaz de
cido, benfazejo, amigo, sincero, devolvê-lo, ainda que fosse pre-
verdadeiro... Na verdade, não ciso ressuscitá-lo dentre os mor-
estarei nos prazeres empestados, tos. Estrito senso, a simples via-
na glória, nas delícias, mas não gem ao Moriá não faz de Abraão
tereis acaso outros? Digo-vos o Cavaleiro da fé, mesmo que, em
que já nesta vida ganhareis e um golpe fatal, ele banhasse com o
que, a cada passo que derdes sangue de Isaac o fatídico monte.
neste caminho, vereis tanta cer- Tivesse feito apenas isso, ele ainda
teza de ganho e nulidade da- seria mero Cavaleiro da resigna-
quilo que arriscais, que reco- ção. Estava apenas renunciando,
nhecereis no fim que apostas- mas era-lhe necessário receber; re-
tes por uma coisa certa, infinita, conhecia, a partir desse gesto, a im-
pela qual nada destes (PASCAL, possibilidade, mas era preciso acei-
2005, Laf. 418; Bru. 233) tar a possibilidade por força do
absurdo. Vale ressaltar que a fé
Se na Aposta de Pascal, o ele- de Abraão é para esta vida e não
mento presente fica apenas suben- para uma vida futura. A propó-
tendido, no Salto ele aparece com sito, a expressão “Abraão creu para
bastante clareza. É comum con- esta vida” é uma das mais repe-
fundir os dois tipos de cavaleiros tidas ao longo de Temor e tremor.
que aparecem em Temor e tremor: Recorrendo à análise de Chestov
o Cavaleiro da fé e o Cavaleiro da (1952, p. 88), o patriarca “não
resignação. O movimento da re- cria que algum dia seria feliz em
signação infinita é o movimento outro mundo. Não, teria que ser
da renúncia, do sacrifício, da en- aqui neste mundo. Deus poderia
trega completa, mas a fé é tam- dar-lhe outro Isaque, ou ressusci-
bém recebimento, dádiva, devolu- tar o filho degolado”. Como se vê,
ção. É precisamente esse duplo Aposta e Salto são procedimentos
movimento da fé que encontramos que, cada uma à sua maneira, lan-
em Abraão, o protótipo do Cava- çam o homem na finitude. A pri-
leiro da fé. Pela resignação, o pa- meira abre espaço para que o ho-

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mem possa acatar, na finitude, os ção. Mesmo assim, a questão da


valores decorrentes de sua aposta dimensão eterna da beatitude não
na infinitude; o segundo, permite pode ser suprimida do Salto. Não
que o homem receba de volta o nos esqueçamos a tese defendida
que de mais precioso resignou em pelo outro pseudônimo kierkegaar-
nome de Deus. diano Johannes Climacus tanto nas
Por fim, é preciso reconhe- Migalhas filosóficas quanto no Pós-
cer, como já o fez André Clair escrito que a necessidade do Salto
(2011) que Aposta e Salto pos- emerge justamente diante da im-
suem o mesmo telos: a felicidade, possibilidade de se fundamentar a
ainda que a natureza dessa feli- felicidade eterna em um saber his-
cidade possa parecer distinta em tórico. Em todo caso, não há como
alguns momentos. Pensa-se que negar que Aposta e Salto têm como
em Pascal, o alvo é a beatitude telos a felicidade.
eterna e, em Kierkegaard, a feli- Apesar dos vários pontos con-
cidade presente, visto que Silentio vergentes entre a Aposta e o Salto,
não cansa de repetir que “Abraão é preciso reconhecer que há di-
creu para esta vida”. Esta distin- vergências consideráveis entre es-
ção, entretanto, deve ser vista com tes dois conceitos. Primeiramente,
cuidado, a fim de evitar conclusões deve ser ressaltado que o Salto ki-
apressadas. Obviamente, precisa- erkegaardiano advoga a tese do ab-
mos reconhecer que, em Pascal, a surdo. Como já vimos, tanto Pascal
felicidade eterna enquanto telos da quanto Kierkegaard defenderam a
Aposta é bem mais evidente. Mais legitimidade de uma esfera suprar-
uma vez retomando o fragmento racional como forma de acesso à
Infini Rien, “há uma infinidade de existência. O autor de Doença para
vida infinitamente feliz a ganhar”. morte, não obstante, é bem mais ra-
Por outro lado, é evidente em Te- dical neste procedimento do que
mor e tremor que o patriarca bíblico o seu antecessor. Outra expres-
crê que receberá Isaque, a fonte são bastante repetida Temor e tre-
maior de sua alegria, ainda nesta mor nos diz que Abraão creu por
vida”. Do contrário, nos termos força do absurdo. Literalmente,
de Kierkegaard, Abraão não pas- “acreditava por força do absurdo,
saria de um Cavaleiro da resigna- pois não cabe aqui falar de raci-
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ocínio humano, e o absurdo re- realidade. Ao homem é concedida


sidia aliás no fato de Deus, que a capacidade unicamente de esco-
lhe exigia Isaque, haver de revo- lher em que apostar não de apostar
gar a imposição no momento se- ou escusar-se de apostar. Seguindo
guinte” (KIERKEGAARD, 2009, p. o raciocínio pascaliano, não apos-
90). Já a Aposta Pascaliana com- tar na existência de Deus é, auto-
porta um elemento considerável de maticamente, apostar na sua ine-
razoabilidade. Ainda que a exis- xistência. O Salto kierkegaardiano
tência de Deus não possa ser re- não elimina a instância da vontade.
duzida a uma prova racional, há No caso de Abraão, mesmo que
certa razoabilidade em apostar po- haja o mandamento divino e, como
sitivamente. Salientando o modo já vimos, haja certa imposição do
como os dois conceitos divergem infinito em relação ao finito, o pa-
neste ponto, Clair (2011, p. 5) nos triarca poderia escolher vários ca-
diz que “o Salto não pode ser an- minhos. Poderia, decididamente,
tecedido por uma construção ma- negar-se a sacrificar o filho de sua
temática. Não se pode calcular an- velhice porque isso, absurdamente,
teriormente o Salto”. Por esta ra- violava o sagrado vínculo paternal;
zão, conclui o comentarista fran- poderia ainda, em um ato de deses-
cês, ao olhos do Kierkegaard, a pero, sacrificar o filho ali mesmo
Aposta pascaliana seria ridícula. A e evitar a angustiante e aterradora
rigor, neste aspecto o argumento viagem de três dias ao Moriá; po-
de Pascal poderia até ser compa- deria, enfim, ter desistido no ca-
rado com o salto mortale de Jacobi, minho depois de considerar o peso
que se valia da força da oratória que seria viver em uma sociedade
para levar o seu interlocutor a sal- como o mais abjeto assassino e de
tar. Mas tal procedimento não se- ter sido o causador de sua própria
ria o verdadeiro Salto de fé. miséria. Para recorrer à compara-
Ademais, Aposta e Salto discre- ção de Kierkegaard (2009), o Ca-
pam no tocante ao seu caráter vo- valeiro da fé está sempre exposto à
luntário. No caso de Pascal, não tentação de retornar ao consolo do
há escolha, é preciso apostar. Todo geral e converter-se em um Herói
aquele que se insere no jogo da trágico barato.
existência não pode eximir-se desta Por fim, o ponto discordante
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mais importante a ser destacado feito de tal forma que não posso
diz respeito ao estatuto próprio crer. Que vós quereis, pois, que
da Aposta e do Salto, sobretudo eu faça? – É verdade, mas apren-
na sua relação com a fé e com a dei pelos menos que vossa impo-
conversão. Em relação a Pascal, tência para crer vem de vossas
ainda que pudéssemos acatar a su- paixões. Pois a razão aí vos con-
gestão de Atalli (2003) segundo a duz, e, entretanto, vós não o po-
qual, de alguma forma, a Aposta deis (PASCAL, 2005, Laf. 418;
possa abrir caminho para fé ver- Bru. 233)
dadeira, ambas não são a mesma
coisa. Colocar-se do lado da exis- Como se vê, há em Pascal um
tência no jogo não é a mesma coisa abismo entre Aposta e a fé genuína.
que a conversão estrito senso. A fé Tal fato, colide com a compreensão
continua sendo uma dádiva divina kierkegaardiana de Salto. O Ca-
e a verdadeira conversão só ocorre valeiro que, na estrada silenciosa
quando Deus, graciosamente, in- e solitária rumo ao Moriá decidiu
clina o coração do pecador. Isso arriscar-se no Salto é o mesmo que
significa dizer que Deus age na aderiu ao Estádio religioso. Se a
vontade humana para levá-la à ca- rendição do apostador ainda não é
ridade (ADORNO, 2008) Noutros plena, o mesmo não pode ser dito
termos, o homem pode apostar por do saltador. Para recorrer à expres-
seus próprios esforços, mas a fé é são de Kierkegaard, ele entrou em
restrita à inciativa divina. Como uma relação absoluta com o abso-
nos lembra Pondé (2009, p. 55) luto, entregando-se a ele sem reser-
“a matemática da Aposta é insufici- vas.
ente para levar o descrente à fé”. A
distinção entre a Aposta e a fé pro- CONSIDERAÇÕES FINAIS
priamente dita é bastante evidente Determinados estudos compa-
no fragmento pascaliano. rativos entre dois autores correm
o risco de desagradar os estudio-
Sim, mas eu tenho as mãos sos de ambos pensadores em ques-
atadas e a boca muda, forçam- tão, sobretudo, por considerarem
me a apostar, e eu não estou li- a comparação artificial e, às ve-
vre, negam-me descanso, e eu sou zes, arbitrária. No caso de Pascal
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e Kierkegaard pensamos que este apostar e saltar são apenas formas


risco é bastante atenuado. Os pon- distintas de denunciar os limites
tos convergentes listados no início da razão e acatar humildemente a
deste trabalho são diversos e sig- existência do mistério. Os dois filó-
nificativos. Obviamente, as cate- sofos demonstram o quão implau-
gorias de Aposta e Salto não estão sível afirmar que tudo aquilo que
entre as possibilidades favoritas da não pode ser entendido pela ra-
parte dos pesquisadores, no en- zão não deve existir. Além disso,
tanto, pensamos ser esta compara- quando a questão é a existência de
ção tanto viável quanto instigante. Deus, proclamam em tom enfático
Reconhecemos, não obstante, que a que apostadores e saltadores não
comparação não deixa de revelar o são menos dignos e confiáveis que
seu lado problemático. Isso pode lógicos dedutivos. Lembremo-nos
ser visto nas discrepâncias aponta- ainda que Aposta e Salto são for-
das entre os dois conceitos e, prin- mas de o finito relacionar-se com
cipalmente, no fato de Kierkegaard o infinito, de quem depende a sua
nunca ter citado o fragmento Infini beatitude eterna. Ainda que pos-
rien, no qual Pascal desenvolve a samos apontar divergências consi-
Aposta. Mesmo assim, reconhece- deráveis entre os dois conceitos – a
mos que este problema não invia- tese do absurdo atribuída ao Salto,
biliza a comparação. o caráter não voluntário da Aposta
Entendemos que a Aposta e o e a relação de ambos com a conver-
Salto cumprem um papel funda- são – não há como negar que estes
mental nas críticas que tanto Pas- oferecem uma importante possibi-
cal quanto Kierkegaard fizeram ao lidade de diálogo entre Pascal e Ki-
racionalismo reducionista de seu erkegaard.
tempo. Não há como negar que

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