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rhol Arthur C. Danto andy warhol A


t∏adução ve∏a pe∏eira

r C. Danto andy warhol Arthur C. Dan


prefácio 7
Agradecimentos 17

1 A vit∏ine da loja Bonwit Telle∏ 21


4 2 Pop, política e a sepa∏ação ent∏e a∏te e vida 47 5
3 A B∏illo Box 73
4 Imagens em movimento 103
5 A p∏imei∏a mo∏te 127
6 A Andy Wa∏hol Ente∏p∏ises 161
7 ∏eligião e expe∏iência comum 179

Bibliografia 195
Índice de nomes e obras 199
Prefácio

Para Barack e Michelle Obama, e o futuro Não tenho como escrever uma nova biografia de Andy
da arte norte-americana Warhol. Minhas aptidões se situam em outra área.
A sorte é que posso me basear em várias biografias
excelentes sobre o artista, já que meu livro segue,
grosso modo, uma ordem cronológica, e escritores
como Victor Bockris, David Bourdon e, mais recente-
mente, Steven Watson já construíram em conjunto
uma boa narrativa sobre a vida de Andy – sobre como
ele viveu e morreu. Além disso, esses escritores ti-
nham a vantagem de conhecê-lo pessoalmente e
muitos dos que o cercaram. Não tenho nenhuma con-
tribuição a dar nesse sentido. Como escritor, tenho
publicado essencialmente estudos filosóficos, inclu-
sive na área de filosofia da arte; e também, na quali-
dade de crítico de arte, escrevo para a revista The modo de viver dos norte-americanos – o estilo de
Nation, que, desde o número 1, de 4 de julho de 1865, vida que, na verdade, a arte de Warhol exaltava –,
sempre manteve em seu quadro de colaboradores um inclusive no que eles gostavam de comer e nas
crítico de arte. Entre essas duas áreas de atividade, há figuras que consideravam seus verdadeiros ícones,
uma estreita relação – assim como há uma conexão especialmente os personagens da cultura de massa,
entre elas e este livro. Minha filosofia da arte foi de- como o cinema e a música popular.
senvolvida em dois textos: em um artigo intitulado De certo modo, aos olhos do mundo, Warhol trans-
“The Art World” [“O mundo da arte”], publicado no cendeu os objetos que escolheu. Muitos intelectuais
Journal of Philosophy em 1964, e no livro A transfigu­ europeus interpretaram sua arte como uma crítica à
ração do lugar-comum, de 1981. Ambos foram escri- cultura de massa e aos produtos do capitalismo
tos em resposta aos acontecimentos que mudaram norte-americano, como as sopas Campbell. Vistos
significativamente a arte contemporânea durante a como críticos da cultura americana, Warhol e os ar-
8 década de 1960, principalmente em Nova York, entre
os quais as duas exposições de Andy Warhol realiza-
tistas pop em geral obtiveram dos europeus o reco-
nhecimento que lhes fora negado, ao menos de início,
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das na Stable Gallery, em 1962 e 1964. Os trabalhos pelo mundo da arte norte-americana, que havia,
apresentados nessas duas exposições, especial- finalmente, começado a aceitar o fato de que os Esta-
mente na segunda, pareceram-me exigir da filosofia dos Unidos tinham produzido pela primeira vez na
da arte uma abordagem radicalmente nova. Creio história uma arte de nível internacional, com as pin-
que a maioria dos estetas e filósofos da arte reco- turas da chamada Escola de Nova York – as grandes
nhece o mérito essencial dos meus textos no redire- telas expressionistas abstratas criadas durante e logo
cionamento da filosofia da arte para dar conta da após a Segunda Guerra Mundial. O repúdio dos artis-
imensa revolução artística que ocorreu na primeira tas pop a essas extraordinárias realizações estéticas e
metade dos anos 60, e na qual um artista, Andy sua preferência por pinturas aparentemente simpló-
Warhol, desempenhou um papel proeminente. Mas rias de latas de sopa ou do Pato Donald chocaram os
a arte que levou Warhol a assumir uma estatura círculos de arte dos Estados Unidos. Na opinião geral,
histórica tinha fortes ligações com sua potenciali- uma pintura de valor tinha de ser difícil – mas qual-
dade como ícone norte-americano. O que lhe per- quer pessoa familiarizada com a cultura americana
mitiu alcançar o status de ícone foi o conteúdo de podia compreender imediatamente a arte pop. Esti-
sua arte, que buscava inspiração diretamente no vesse ou não correta a interpretação dos europeus de
que a arte pop continha uma crítica da cultura dos abstração uma expressão dos valores políticos da de-
Estados Unidos, a verdade é que eles pelo menos per- mocracia. E como desde o regime hitlerista havia o
ceberam que havia algo mais na nova arte do que sentimento de que certo tipo de realismo kitsch
nossos olhos americanos podiam ver. De sua parte, expres­sava os valores do nacional-socialismo, a arte
Andy ansiava por apresentar-se aos europeus como figurativa tornou-se politicamente suspeita no pós-
tudo menos um artista fútil. Ele e sua marchande, -guerra. Já nos anos 60, quando parecia que a arte
Ileana Sonnabend, divergiram sobre a organização pop questionava os valores do expressionismo abs-
de uma mostra do artista na galeria parisiense da trato, o momento afigurou-se aos alemães como par-
qual ela era proprietária. Warhol queria batizar a ex- ticularmente libertador. Na Alemanha, a arte pop foi
posição de Morte na América, reunindo imagens de considerada importante porque dava a impressão de
batidas de carro, conflitos raciais e cadeiras elétricas, repudiar a abstração; e isso elevou a estatura de Wa-
impressas em serigrafia e pintadas em cores doces e rhol no continente. Para os alemães, ele não era só
10 suaves a partir de fotografias publicadas nos tabloi-
des populares. No fim, Sonnabend aceitou o conteúdo,
um crítico da produção capitalista, também era um
crítico da cultura de elite. O primeiro estudo sério
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mas não o título. A exposição acabou se chamando sobre Warhol publicado na Alemanha, escrito por
simplesmente Warhol. Foi uma mostra inegavelmente Rainer Crone, logo virou um best-seller. Mas demo-
séria, que atraiu o respeito dos europeus, e que não rou muito mais tempo para que Warhol fosse consi-
poderia ter sido montada nos Estados Unidos naquela derado um artista intelectualmente respeitável nos
época, janeiro de 1964. Estados Unidos. Em vez disso, ele se converteu em
O mundo da arte europeu do século xx era neces- ícone – tornou-se parte da cultura que celebrava,
sariamente mais complexo que seu equivalente uma estrela que amava cachorro-quente e Coca-Cola,
norte-americano, porque havia muito mais em jogo e idolatrava Marilyn Monroe e Elvis Presley.
no continente. Na Europa, a arte era altamente poli- Meu interesse pela arte pop, e especialmente por
tizada. O abstracionismo, por exemplo, foi consi­ Andy Warhol, tinha outro foco. Eu havia me mu-
derado politicamente inaceitável tanto sob o regime de dado para Nova York após a guerra, motivado por
Hitler quanto sob o de Stálin. E permaneceu inacei- um imenso entusiasmo pela arte da Escola de Nova
tável na Rússia soviética durante todo o período da York, na qual esperava fazer carreira como artista. Eu
Guerra Fria. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, era veterano de guerra e possuía uma bagagem edu-
por outro lado, os artistas alemães perceberam na cacional que decidira aplicar ao estudo da filosofia.
Embora tivesse feito algum sucesso como artista, a pela arte, sobretudo a arte contemporânea, eu não ti-
filosofia acabou se revelando mais interessante para nha nenhuma simpatia especial pela filosofia da arte.
mim. No princípio de 1960, eu era professor da Uni- A verdade é que eu não conseguia ver nenhum modo
versidade Colúmbia e estava em gozo de um período interessante de unir filosofia e arte. A exposição con-
sabático na Europa, onde pretendia escrever meu pri- sistia de centenas de objetos, que pareciam ser caixas
meiro livro. Foi na Biblioteca Americana de Paris que comuns de armazém, organizadamente empilhadas
vi pela primeira vez um trabalho da arte pop: uma em prateleiras, como se estivessem no depósito de
reprodução em preto e branco publicada na revista um supermercado. Entre esses objetos havia caixas
artnews. Seu título era O beijo, de Roy Lichtenstein, e da marca Brillo muito semelhantes aos objetos re-
parecia ter sido recortada da seção de quadrinhos de ais. Acho que a Brillo Box pode ser considerada um
um jornal americano. Basta dizer que fiquei pasmo. ícone americano, mas isso porque Andy Warhol a
Eu tinha certeza de que aquilo não era arte, mas no fez assim. É sua obra mais famosa e, na minha opi-
12 decorrer de minha temporada em Paris fui aos pou-
cos elaborando a ideia de que se aquilo era arte, qual-
nião, uma obra-prima, pelas razões que explicarei ao
longo deste livro. Como concepção visual de um pro-
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quer coisa podia ser arte. Tomei então a decisão de duto comercial é uma peça admirável. Por ironia, o
ver tudo o que pudesse da arte pop quando voltasse autor do projeto gráfico era um artista comercial que
aos Estados Unidos. tinha altas ambições no campo das belas-artes – na
Meu interesse em escrever uma autobiografia verdade, era um expressionista abstrato de Detroit,
não é maior do que o de fazer uma nova biografia de James Harvey. Mas o problema para mim não estava
Andy Warhol, mas acho necessário explicar a impor- na qualidade gráfica da caixa, e sim no que a fazia
tância que ele teve para mim, assim como esclarecer ser arte. A Brillo Box [Caixa Brilho] ajudou-me a
o leitor sobre a ênfase deste livro. Não se trata de um resolver um problema tão antigo quanto a própria
estudo de história da arte, nem de uma biografia de filosofia, isto é, como definir arte. Mais ainda, ela me
Warhol, mas de uma análise de enfoque filosófico so- ajudou a explicar, em primeiro lugar, por que esse é
bre o que faz de Warhol um artista tão fascinante. Ver um problema filosófico. É escusado dizer que uma
sua segunda exposição na Stable Gallery, em abril de definição adequada da arte deve abranger toda a arte
1962, foi para mim uma experiência transformadora. universal. É preciso explicar por que a Mona Lisa é
Fez com que eu me tornasse um filósofo da arte. Até arte, por que o Rigoletto é arte, por que Washington
aquele momento, por maior que fosse meu interesse atravessando o Delaware é arte. A definição tem de
explicar por que uma coisa, qualquer coisa, é arte. pouco tempo atrás, se dizia que as histórias em qua-
Naquele tempo, muita gente dizia que a Brillo Box drinhos corrompiam o espírito. No meu tempo de
não era arte. Claro que eu achei que estavam todos estudante em Paris, diziam que a Coca-Cola causava
errados: eu amei a Brillo Box. O que ela oferecia de câncer. Os Estados Unidos, para citar o título de uma
fascinante para a filosofia era ser um trabalho muito obra do exilado Henry Miller, eram “um pesadelo de
simples – uma mera caixa retangular com letras im- ar condicionado”. No século xix, o movimento Arts
pressas em todos os lados. Nada de mais complexo and Crafts1 condenou a manufatura industrial de mó-
em comparação com os exemplos da pintura expres- veis. Da mesma maneira, até 1960 a arte se opunha
sionista abstrata que conhecemos. implacavelmente à cultura popular. Mas, de repente,
Certamente, o que faz de Andy Warhol um ícone no início da década de 1960, alguns artistas de ver-
não é o fato de ser filosoficamente tão educativo, em- dade assumiram a posição oposta, passando a exaltar
bora este seja um aspecto importante de sua quali- a linguagem comum da arte comercial em pinturas
14 dade como artista. O que faz dele um ícone é que
seu tema sempre é alguma coisa que o americano
que copiavam suas cores chapadas e seus contornos
nítidos. O gosto e os valores das pessoas comuns tor-
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comum entende: tudo ou quase tudo que ele usou naram-se então inseparáveis da arte de vanguarda.
para fazer arte veio diretamente da vida cotidiana No meu modo de ver, essa arte mostrou o caminho
do americano médio. Qualquer pessoa habituada ao para levar ao confuso terreno da estética as luzes da
modo de viver dos norte-americanos pode descrever alta filosofia analítica. Sem Warhol eu jamais teria es-
uma caixa de supermercado, dizer onde encontrá-la crito A transfiguração do lugar-comum. Por isso, este
e para que serve. Assim como poderá dizer onde se livro é o reconhecimento de uma dívida.
acha uma lata de sopa Campbell, como prepará-la e Nunca me encontrei pessoalmente com Andy
quanto custa. Warhol, embora tivesse estado bem perto dele na
Claro que o universo banal dos objetos industriais inauguração de uma exposição de gravuras, Mitos,
foi menosprezado do ponto de vista estético pelos na Ronald Feldman Gallery, no Soho, enquanto ele
cultores do bom gosto. E o repertório de imagens autografava um prospecto da exposição para minha
banais dos outdoors, dos gibis, das revistas pulp, foi
considerado pelos mesmos árbitros do juízo estético
1 O Arts and Crafts (Artes e Ofícios) foi um movimento esté-
como irremediavelmente desprezível. O fast-food tico e social inglês que defendia o artesanato criativo como
hoje em dia polui o organismo humano tanto quanto, alternativa à mecanização e à produção em série. [n.t.]
mulher, Barbara Westman. De vez em quando, eu Agradecimentos
o via de relance numa festa ou numa exposição de
arte. Nossos estilos de vida eram muito diferentes.
A filosofia está tão afastada da vida da downtown
nova-iorquina que quando eu escrevi no artigo “The
Art World” [O mundo da arte] que “Andy Warhol,
o artista pop, expõe fac-símiles de caixas de Brillo,
empilhadas e arrumadas em prateleiras como se es-
tivessem no depósito de um supermercado”, tinha
quase certeza de que nenhum leitor do Journal of
Philosophy, onde o texto foi publicado em 1964, fa-
zia a menor ideia de quem eu estava falando. Poucos
16 filósofos se dispunham a visitar a Stable Gallery, a
Green Gallery ou mesmo a Jansen Gallery, que fa-
ziam exposições de artistas pop. Anos depois, quando
eu já me firmara como crítico de arte e filósofo, mi- Sou particularmente grato ao professor Bertrand Rougé
nha mulher e eu fomos ao leilão do espólio de Andy, da Universidade de Pau por suas críticas à minha
e nos deslumbramos com seu gosto refinado para interpretação da montagem da segunda exposição
o mobiliário art déco francês e para a arte em geral. de Andy Warhol na Stable Gallery de Manhattan, em
Nisso, como em tudo mais, ele estava adiante de seu abril de 1964, que foram publicadas no livro The Philo-
tempo, mesmo que não soubesse fazer nada melhor sophy of Arthur Danto, na série The Library of Living
com suas extraor­dinárias presas do que empilhá-las, Philosophers (The Open Court Press, 2009). Minha
como numa sala de tesouros, em sua casa no East Side interpretação atual dessa exposição deve muito à con-
de Nova York. vivência com as percepções de Rougé. As caracterís-
ticas das caixas devem ser explicadas pela aparência
que teriam quando empilhadas nas mercearias. Esse
reconhecimento deixa intacto o caráter ontológico da
explicação das diferenças entre as caixas verdadeiras
do Lebenswelt – o mundo da experiência cotidiana –
e o estilo um tanto futurista e graficamente progra- Uma nota sobre as referências bibliográficas
mado dos pacotes de Warhol. Em termos da história
da arte, elas são exemplos tardios da arte metafísica. Procurei neste livro alcançar um texto de fácil leitura,
Poucas retificações que devo a outras pessoas exigi- em linguagem agradável e com o mínimo de citações
ram de mim o mesmo nível de reconsideração: a maior bibliográficas.
parte foi aceita como dádivas generosas, tal como a
presteza a lerem meu estudo. Tenho uma dívida quase
inexprimível com David Carrier pela longa e minuciosa
correspondência que trocamos. Minha gratidão à ma-
ravilhosa colega Lydia Goehr é existencial. Um vasto
conhecimento do mundo da arte marcou a leitura que
Alison McDonald fez deste texto. Noel Carroll foi uma
18 fonte constante de saber filosófico e de compreensão da
arte. Richard Kuhns é o amigo indispensável de toda a
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vida. Jamais poderia escrever alguma coisa que tivesse
algum sentido sem recorrer à sua sabedoria e profundo
conhecimento do ser humano. Devo a Ti-Grace Atkin-
son as informações sobre a tortuosa personalidade de
Valerie Solanas e minha sensibilidade às profundas
questões do feminismo. E tenho imenso apreço pelo
fato de o grande pintor Sean Scully nunca ter permitido
que suas dúvidas quanto ao objeto deste livro empa-
nassem a certeza de sua amizade por mim. Finalmente,
este livro, como outros que escrevi, não teria existido
sem a perspicácia de Georges e Anne Borchardt.
E a Barbara Westman, minha esposa – pela beleza
de sua alma, pelo seu maravilhoso senso de humor,
seu olhar arguto, seu bom senso e pela dádiva aben-
çoada do seu amor.
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vit∏ine da loja bonwit telle∏ 1 a vit∏ine da


Na biografia Warhol, escrita por Victor Bockris, há
um capítulo intitulado “O nascimento de Andy
Warhol: 1959-61”. O título não se refere, é claro, ao
nascimento do menino Warhol, que ocorreu em

loja bonwit telle∏ 1 a vit∏ine da loja bon- 1928, em Pittsburgh, numa família de imigrantes ru-
tenos, mas a uma série de mudanças na identidade
de Andy – a brusca mudança de direção que o levou
à condição de ícone. Um dos trabalhos que ajudam a

wit telle∏ 1 a vit∏ine da loja bonwit telle∏ visualizar essa guinada é uma pintura de 1961, que
consiste numa versão muito ampliada de um simples
anúncio em preto e branco do tipo que aparece nas
colunas laterais e na contracapa dos jornais popula-

1 a vit∏ine da loja bonwit telle∏ res. Era um anúncio dos serviços de um cirurgião
plástico que mostrava dois perfis da mesma mulher,
antes e depois de uma operação de nariz. No perfil Reproduções da pintura, feitas prévia e posterior-
à esquerda, ela aparece com um grande nariz de mente à ocorrência de sua transformação em arte,
bruxa, e no da direita, com um lindo narizinho ar- têm exatamente a mesma aparência. Poderíamos até
rebitado como o de uma cheerleader ou de uma jo- dizer que a diferença é invisível. Parte da explicação
vem atriz de cinema – o nariz dos sonhos de uma do que levou Warhol à condição de ícone tem a ver
mulher de perfil adunco. Como as pessoas geral- com o fato de que, a princípio, quase ninguém re-
mente leem da esquerda para a direita, a justaposi- conhecia diferenças entre as duas imagens. Warhol
ção das duas imagens é uma óbvia comparação de não só reproduziu uma peça banal da arte comercial,
“antes e depois”. Aliás, Warhol batizou o trabalho de como tornou ao mesmo tempo invisível e monumental
Antes e depois, e pintou uma série deles em diferen- a distinção entre uma peça de arte banal e uma peça
tes versões. Era a materialização do tipo de sonho de arte culta. E isso significa que ele não mudou
que persegue as pessoas preocupadas em mudar apenas nosso modo de ver a arte, mas o modo de
22 sua aparência para se tornarem, aos seus próprios
olhos, mais atraentes. Substituir o antes pelo depois
compreendermos a arte. Quer dizer, entre 1959 e
1961, foram plantadas as sementes de uma revolu-
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parece-lhes o melhor caminho para a beleza ideal, ção visual, e mais, de uma revolução cultural.
e para a felicidade. O que sucedeu quando Andy Warhol se tornou
O período entre 1959 e 1961 constitui uma zona um ícone cultural não foi simplesmente o resultado
de transição biográfica entre duas fases da vida de de uma transição biográfica em que um artista co-
Warhol, uma zona de transfiguração. Warhol pas- mercial de sucesso converteu-se em um artista sério
sou de artista comercial bem-sucedido a membro de vanguarda. Foi uma transição social na medida
da vanguarda nova-iorquina – mudança que ele co- em que importantes indivíduos que monitoram as
biçou com uma paixão equivalente aos anseios da fronteiras da arte reconheceram que Warhol tinha
Moça de Nariz Grande pelo rosto da Miss de Nariz realizado um trabalho de relevo do ponto de vista
Arrebitado. A transformação era sublinhada pelas da configuração dessa fronteira. Toda mudança ar-
imagens da série Antes e depois como arte. Anterior- tística tem de ser reconhecida e aceita como tal pelo
mente a Warhol, a série não teria passado de mero que denomino, como de costume, mundo da arte da
clichê da arte comercial, e seu autor já teria sido época – determinados curadores, marchands, críti-
esquecido há muito tempo. Em 1961, em formato cos, colecionadores e, naturalmente, outros artistas.
muito ampliado, Antes e depois virou alta obra de arte. Sob esse aspecto, o mundo da arte do começo dos
anos 60 estava preparado para Andy Warhol. Ele se A transição de artista para ícone se deu muito
inscreveu em uma discussão em processo e contri- rapi­damente. Em 1965, por exemplo, a transforma-
buiu para a direção que essa discussão veio a tomar ção já estava completa. Em outubro desse ano, Andy
nos anos seguintes. Isso não foi suficiente, é claro, e sua superstar, Edie Sedgwick, compareceram à pri-
para fazer dele um ícone. Para tanto, precisava ha- meira retrospectiva do artista nos Estados Unidos,
ver uma cultura muito mais ampla que o mundo realizada no Institute of Contemporary Art, no cam-
da arte do princípio da década de 60, e o próprio pus da Universidade da Pensilvânia, na Filadélfia.
Warhol precisava ser associado a algo que ia muito Uma multidão de mais de 2 mil pessoas extasiadas, a
além dos limites da arte. Sem dúvida, o fato de ser maioria estudantes, já estava lá. Ninguém esperava
artista foi um fator decisivo para que virasse um uma multidão dessa ordem, e o curador, Sam Green,
ícone – mas quantos artistas, afinal de contas, dão resolveu retirar das paredes, por precaução, a maior
um passo além e se tornam ícones? Muito poucos. parte das pinturas. Por pouco as paredes da galeria
24 Só Warhol galgou a dimensão icônica em todo o
movimento pop que, coletivamente, mudou a arte
não ficaram inteiramente nuas. Mas a multidão não
tinha vindo exatamente para olhar as pinturas, e sim
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em meados dos anos 60. Roy Lichtenstein, Claes Ol- para ver Warhol e sua parceira. Começaram a entoar
denburg, Jim Dine, Tom Wesselman e James Rosen- o refrão: “Andy e Edie! Andy e Edie!”. Muito em-
quist eram os principais artistas pop, mas nenhum purra-empurra, gente se atropelando. A coisa tomou
deles se tornou ícone, a não ser para alguns setores uma dimensão semelhante ao problema de controle
específicos do mundo da arte, se tanto. Todos eram de multidões que se via nos shows de rock. Andy,
excelentes artistas. Mas Warhol é que haveria de ser Edie e seu grupo acabaram descobrindo um lugar se-
o artista da segunda metade do século xx. Ele se guro numa escadaria de ferro de onde, como políticos
tornou um artista para pessoas que sabiam muito nos palanques, acenavam para a multidão. Final-
pouco sobre arte. Warhol representava uma forma mente, abriram um buraco no teto e as celebridades
ideal de vida, que tocava o mundo delas em muitos puderam escapar a salvo para o andar de cima. Antes
pontos. Ele encarnava uma concepção de vida que de Warhol e Edie, esse tipo de comportamento de
abraçava os valores da era em que ainda vivemos. multidão era quase padrão para certos ídolos da mú-
Sob certos aspectos, Warhol criou uma imagem icô- sica popular, como os Beatles ou Frank Sinatra. Mas
nica do que a vida é. Nenhum outro artista chegou nunca se vira coisa igual em um evento de arte, onde
perto disso. a atmosfera institucional do museu impõe silêncio e
respeito. A mudança de comportamento não escapou tas abstratos. Tampouco esses atos se repetiram com
à observação de Warhol. “Pensar que isso ocorreu a arte minimalista, que tomou o lugar da pop como
num vernissage”, disse ele. “Mesmo num vernissage vanguarda predominante em meados dos anos 60. A
pop. Só que não estávamos apenas numa exposição reação do público em geral foi antes um largo bocejo.
de arte – a exposição éramos nós.” 1 Quanto aos artistas pop, a mudança artística foi per-
A história da arte moderna foi uma história de cebida como radical, o sentido da arte para a média
raiva e ressentimento. Desde o Salon des Refusés das pessoas havia se modificado, e muito disso se de-
de 1863, por ordem de Luís Napoleão, as pinturas via a Warhol. Pelo menos no caso de Andy, graças à
rejeitadas pela comissão de seleção ficavam expostas sua arte, ele começara a ascender à condição de ícone.
em um salão à parte, onde os espectadores podiam Voltemos, porém, ao “Nascimento de Andy Wa-
formar suas próprias opiniões. O Déjeuner sur l’herbe, rhol” e ao período em que ele fez Antes e depois.
de Manet, foi alvo de zombarias e manifestações de Ninguém poderia saber então que com a virada da
26 escárnio. Houve tumultos em Paris quando o Ubu rei,
de Alfred Jarry, foi apresentado pela primeira vez e
década, de 1950 para 1960, toda a cultura ocidental
entraria num período de convulsiva transformação.
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após a primeira execução da Sagração da primavera, Ninguém poderia ter antecipado a enorme mudança
de Stravinski. Vaias foram ouvidas nas salas onde de atitudes que estava por vir, especialmente na cul-
Matisse e os fauves expunham seus trabalhos no Sa- tura da juventude em 1968. Foi uma década em que
lon de 1905. Mas esses fatos não se repetiram com a uma após outra as fronteiras cederam e foram eli-
arte dos anos 60. Ao contrário, havia um sentimento, minadas. Logo no começo da década, rompeu-se
principalmente entre o público jovem, de que aquela a fronteira entre a arte culta e a arte popular, uma
era a sua arte, uma arte que fazia parte de sua cul- forma de superar a distância entre a arte e a vida.
tura. Já em 1965, todo mundo sabia, de maneira geral, Tenho uma teoria de que sempre que ocorre um
que tipo de arte Warhol estava fazendo. As multidões período de profunda mudança cultural, esta se re-
do ica criaram espontaneamente um evento que não vela antes de tudo na arte. A era do romantismo se
teria ocorrido com Lichtenstein ou Oldenburg, nem tornou visível primeiramente no arranjo dos jardins
com os pintores da geração anterior dos expressionis- ingleses, a ênfase no “natural” em vez do formal. Em
1964, os Beatles fizeram sua primeira visita aos Es-
1 David Bourdon, Warhol. Nova York: Harry N. Abrams, 1989, tados Unidos, usando cabelos compridos, como que
pp. 213-14. a testar as fronteiras entre os gêneros. Nesse mesmo
ano, as fronteiras raciais foram atacadas quando os civil. No fim da década, Warhol criou um espetá-
Freedom Riders2 viajaram pela primeira vez para o culo de variedades reunindo a banda de rock Vel-
sul dos Estados Unidos a fim de ajudar a defender vet Underground e outras atrações, no que batizou
os direitos civis dos negros. As rebeliões nos campi de The Exploding Plastic Inevitable. As palavras
universitários de 1968 puseram sob ataque as fron- “exploding” [explosivo] e “inevitable” [inevitável]
teiras entre gerações, e os jovens reivindicavam o di- captam de certa forma a volatilidade da mudança
reito de determinar seus currículos e de estudar as que assinalou os anos 60. Mas a transição de Andy
disciplinas que lhes interessavam, incluindo cursos Warhol de artista comercial para ícone da arte,
de estudos étnicos e de gênero, inexistentes na dé- ainda que inevitável, não foi explosiva. No começo,
cada anterior. Mas as reivindicações dos jovens es- foi uma espécie de tatear inseguro de uma arte que
tendiam-se muito além da instituição universitária, ainda não existia na realidade, e de uma identidade
alcançando a arena das grandes decisões políticas. que nem Warhol nem ninguém de seu círculo era
28 Em fins da década de 60, surgiu o feminismo radical,
que lutou contra as fronteiras tradicionais entre os
capaz de especificar. E a “discussão” que mencionei
acima, em que Warhol acabou conseguindo se ins-
29
sexos e exigia igualdade e autonomia para as mulhe- crever, ainda era imprecisa e mal definida. É isso
res. Em 1969, os violentos conflitos de Stonewall 3 que torna especialmente feliz a metáfora de Bockris.
atacaram as fronteiras entre heterossexuais e gays, O feto tateia às cegas na escuridão em direção a um
considerando-as despropositadas para a sociedade mundo que ainda não podia visualizar na cavidade
morna que até então constituía todo seu universo.
Em 1959 ou 1960 deve ter havido algum tipo de
2 Os Freedom Riders eram grupos de ativistas dos direitos ci- mudança interior em Warhol. Ele havia se mudado
vis nos Estados Unidos que viajavam de ônibus para estados
para Nova York depois de formar-se na escola de arte,
do Sul que mantinham leis de segregação racial com o obje-
tivo de testar uma decisão da Suprema Corte, que havia proi- e conseguira estabelecer-se como artista comercial,
bido a discriminação em restaurantes e terminais de ônibus obtendo imenso sucesso. Diz a canção que se você
interestaduais. [n.t.] consegue fazer sucesso em Nova York, pode fazê-lo
3 Os Stonewall riots foram uma série de violentos conflitos em qualquer lugar, mas Warhol pretendia fazer su-
entre policiais de Nova York e grupos de gays e transexuais
cesso em Nova York de maneira diferente, em um
que eclodiram na manhã de 28 de maio de 1969 e prolonga-
ram-se durante vários dias. Foi um marco decisivo no movi- nível diferente e a qualquer custo. Queria ser bem-
mento mundial pelos direitos dos homossexuais. [n.t.] -sucedido como um tipo diferente de artista. É difícil
imaginar que quisesse ser um pintor expressionista Não se pode negar que embora o expressionismo
abstrato, a tendência que dominava o mundo da arte abstrato estivesse perdendo fôlego por volta de 1962,
em Nova York naquele tempo. Conforme veremos, já existia desde o fim dos anos 50 uma repulsa a cer-
seus primeiros passos foram dados sob a proteção tos aspectos desse movimento como uma ortodoxia –
das cores de uma filosofia expressionista abstrata do uma reação contra o que os críticos hostis chamavam
pigmento. Mas o que se poderia chamar de filosofia de “paint cookery” [receituário de pintura]. Havia,
da arte expressionista abstrata não tinha e não podia por exemplo, a abstração hard-edged, que buscava for-
ter atrativo algum para Warhol. A ideia fundamental mas bem definidas e cores lisas e uniformes, na qual
do expressionismo abstrato era que o pintor mergu- o artista controlava as relações entre as formas e não
lhasse fundo em seu inconsciente e descobrisse meios aproveitava os acidentes da pincelada ou da tinta que
de traduzir o que Robert Motherwell chamou de “im- tornaram tão interessantes as superfícies expressio-
pulso criativo original” em marcas depositadas im- nistas abstratas. Mas não era assim, pode-se dizer, que
30 pulsivamente e com gestos largos sobre a superfície
da pintura ou do desenho. Quando Warhol declarou,
a arte queria avançar. A pintura hard-edge atacava o
que parecia ser o coração da pintura contemporânea,
31
com seu estilo aforístico, “Se você quer saber quem é isto é, a expressividade da tinta e a impulsividade com
Andy Warhol, apenas olhe para o meu rosto ou para que o pintor interagia com ela, o espírito de improvi-
a superfície do meu trabalho. Está tudo lá”, ele estava sação e liberdade que fizeram do expressionismo abs-
rejeitando essa concepção romântica da alma do ar- trato um movimento tão diferente de todos os outros
tista. Os expressionistas abstratos e os artistas pop na história da arte. Qualquer movimento que viesse
tinham concepções radicalmente opostas sobre o que substituí-lo tinha de conservar esses aspectos ou al-
os artistas faziam. O artista pop não tinha segredos guma coisa deles. Não é difícil entender por que os
íntimos. Se ele revelava alguma coisa aos espectado- pintores que se tornaram mestres do expressionismo
res, era algo que estes já conheciam ou pelo menos abstrato, como Mark Rothko, pensavam que o movi-
tinham ouvido falar. Por esse motivo, já existia um mento se prolongaria por um milênio – tanto tempo
elo natural entre o artista e o espectador, o que con- quanto prevaleceram pelo menos os paradigmas do
tribuiu, no caso de Warhol, para explicar como ele se Renascimento. A arte abstrata já se tornara uma opção
tornou um ícone. Ele sabia as mesmas coisas que seu em 1912, e a abstração da Escola de Nova York, com Ja-
público sabia e se comovia com as mesmas coisas que ckson Pollock e Willem de Kooning, em fins da década
comoviam o público. de 40. Nasceu e esgotou-se em menos de duas décadas.
A rebelião vitoriosa tinha de assumir outra forma siste basicamente numa cabra empalhada com um
além da abstração hard-edge, e havia começado com pneu de borracha em volta da barriga. Depois, ele es-
os artistas que foram modelos ideais para Warhol – palhou generosa quantidade de tinta sobre a cabeça e
Robert Rauschenberg e Jasper Johns, e, de forma outras partes do corpo do animal. A combine que leva
um pouco diferente, Cy Twombly. Johns, sobretudo, o título de Cama constitui-se de uma colcha e um tra-
dominava perfeitamente o manejo do pincel no es- vesseiro encaixados na estrutura de madeira de uma
tilo expressionista abstrato. Como pintor, era no mí- cama pendurada na parede, e, naturalmente, o artista
nimo tão bom quanto qualquer mestre da Escola de espalhou tanta tinta sobre os objetos de modo que
Nova York. Havia algo de delicioso em sua maneira ninguém se sentiria tentado a dormir ali. Era como se
de pintar. Mas o tema de Johns não era ele mesmo, a tinta pintada bastasse para transformar a realidade
mas as formas corriqueiras que os fenomenólogos em arte. Twombly era mais abstrato que seus amigos.
designam como Lebenswelt – o mundo da experi- Desenhava garatujas sobre a tela ou sobre o papel.
32 ência cotidiana: números, letras, mapas, alvos. De
certo modo, Johns procurou temas que todo mundo
Seus desenhos e pinturas eram gestuais desse ponto
de vista e em consonância com o espírito do expres-
33
reconhecesse, e se interessava especialmente pela sionismo abstrato. Eram primitivos no sentido de que
relação entre essas entidades e suas representações. a garatuja é o tipo de marca que as crianças reais fa-
Um número pintado é apenas um número, uma letra zem. A garatuja está para a escrita como o balbuciar
pintada é apenas uma letra. Uma bandeira pintada é está para a fala. Mas, sem dúvida alguma, eram reais;
uma bandeira. Se são lindamente pintados é irrele- despontam na superfície, mas não são nunca arbitrá-
vante. Johns descobriu uma maneira de transformar rias. Qualquer pessoa é capaz de reconhecê-las.
a realidade em arte, no sentido de que seus temas su- Esses artistas, especialmente Rauschenberg e Johns,
peraram a diferença entre representação e realidade. tiveram poderosa influência em Warhol. Havia ainda
Rauschenberg trabalhou desde o começo com obje- o fato de que eles eram amantes, como também foram
tos reais. Quando pintava um objeto real, fazia-o do
modo mais direto e literal – espalhava tinta sobre ele.
Sua famosa “combine”,4 entitulada Monograma, con- são às vezes pintados e noutras deixados em seu estado natu-
ral, procurando criar uma relação equívoca entre o pintado
e o elemento introduzido”. Cf. Luiz Fernando Marcondes,
4 A combine painting “é uma técnica de colagem em que obje- Dicionário de termos artísticos. Rio de Janeiro: Pinakotheke,
tos do cotidiano colocados sobre a superfície da composição 1998. [n.t.]
Rauschenberg e Twombly. O fato de serem gays inte- tipo de imagens que o interessavam como protoar-
ressou muito a Warhol, que tinha a mesma orienta- tista pop, mas era preciso despojá-las do luxo espa-
ção sexual. Todos eram muito masculinos e por isso lhafatoso de seus anúncios de sapato, e projetar uma
Warhol era muito tímido para aproximar-se deles. imagem mais realista, mostrando-o como de fato
Disse que se achava “bicha demais” para ser aceito apareceria numa propaganda simples, expurgado
por eles. O código de conduta dos gays masculinos de seu glamour e com o preço exibido ao lado. Os
estava mudando tanto que a maneira afeminada era sapatos deveriam ter alguma coisa da praticidade e
cada vez menos aceitável. O objetivo agora era ser o realismo dos anúncios de Antes e depois.
mais agressivamente masculino possível. Em meados A questão psicológica de fundo é o que explica por
dos anos 60, Warhol mudou completamente sua apa- que Warhol abandonou a estranha estética das suas
rência. Emagreceu, passou a usar jaquetas de couro primeiras ilustrações de livros e escolheu substituí-la
e calças jeans. Buscava ser aceito em dois mundos pela simples estética declaratória das representações
34 ao mesmo tempo, o mundo da arte e o mundo gay,
já que ambos começavam a evoluir. Não é fácil ca-
proletárias que começou a preferir. O tabloide barato
tornou-se para ele uma espécie de mina, e ele passou
35
racterizar em termos sexuais o tipo de arte a que se a pintar dois tipos de imagem: as das tiras de qua-
dedicou, mas a que fizera dele uma figura respeitável drinhos, como Dick Tracy e o Super-Homem, Popeye,
do mundo comercial da década de 1950 era marca- Nancy ou O Reizinho, e imagens extraídas da seção
damente afetada. Uma forma de arte quase folclórica, de anúncios, logotipos toscos e diretos em preto e
repleta de gatinhos e querubins, na qual sua assina- branco, sem ambiguidades e, eu diria, sem arte.
tura começava com uma linha interrompida recheada Os painéis com imagens de histórias em quadri-
de bombons em azul-claro e cor-de-rosa, amarelo e nhos são vistos atualmente como arquetípicos da
verde. As caixas de bombons muitas vezes continham arte pop. Contudo, há uma diferença entre as ima-
inscrições feitas à mão, com a bela caligrafia de sua gens usadas por Roy Lichtenstein, como a do Mickey
mãe – bem de acordo com a estética dos cartões de Mouse ou da Blondie, e as imagens mais complexas de
boas-festas das altas-rodas. Na verdade, era a estética Andy Warhol. Lichtenstein reproduz de modo quase
da arte comercial de Warhol, visível sobretudo nos mecânico as imagens das revistas de quadrinhos ou as
desenhos dos sapatos da marca I. Miller: escarpins tiras de jornais. Ele reproduz os meios de reprodução,
de salto alto com toques fetichistas. De certo modo, isto é, os pontos de retícula Ben-Day, de modo que,
fotografias de sapatos têm o conteúdo certo para o na realidade, obtêm-se cópias de imagens pintadas à
mão semelhantes às que aparecem, ou apareceriam, de marcar seu trabalho como atual. O que havia de
impressas nos jornais usando retícula. Boa parte das especial nesse trabalho era o esforço para fundir a
imagens de Lichtenstein provém de gibis de aventu- arte de massa com a arte culta – pintar o ultrafamiliar,
ras, em que pilotos atacam aviões inimigos e a palavra como Popeye e Nancy, aplicando a tinta à maneira, ou
“Zap!” aparece dentro da mesma moldura. Ou então, quase, dos expressionistas abstratos. Mais ou menos
os pensamentos de lindas garotas aparecem escritos como se ele estivesse pintando tiras cômicas expres-
dentro de balões ligados às figuras por pequenas bo- sionistas abstratas. Era uma estocada na síntese es-
lhas. As imagens de Warhol são diferentes em muitos tilística que não foi percebida pelos especialistas do
aspectos, principalmente porque as palavras são ate- mundo da arte, que achavam Warhol muito talentoso.
nuadas pela aplicação de uma fina camada de tinta, Um desses especialistas era, sem dúvida, Ivan
deixando parcialmente visíveis apenas fragmentos de Karp. Warhol costumava visitar com frequência a
palavras. E o espectador percebe muito bem a mate- Castelli, onde os artistas que ele mais admirava expu-
36 rialidade da tinta gotejada. Lichtenstein aplica a tinta
do mesmo modo que um desenhista de histórias em
nham seus trabalhos. A Castelli era a galeria em que
ele mais desejava expor. Numa dessas visitas, Warhol
37
quadrinhos, mantendo-a cuidadosamente dentro descobriu que não estava sozinho – outros estavam
dos limites da figura. Warhol aplica a tinta como os seguindo um caminho muito parecido com o que ele
expressionistas abstratos, gotejando-a. “Não se pode vinha tentando. Karp mostrou-lhe o trabalho de Roy
fazer uma pintura sem a tinta gotejada”, disse ele a Lichtenstein, que acabara de aderir à galeria. Warhol
Ivan Karp, diretor da Castelli Gallery. Foi isso que eu surpreendeu-se ao ver que outra pessoa estava pin-
quis dizer quando afirmei que Warhol usava a pintura tando ícones de quadrinhos e de anúncios publicitá-
gestual dos expressionistas abstratos como coloração rios. Lichtenstein havia pintado uma versão ampliada
protetora. Deixar a tinta gotejar não tinha relação de um desses ícones, em preto e branco: uma jovem de
com uma convicção íntima e pessoal. Não dizia res- maiô gritando e segurando uma bola de praia. A figura
peito àquele momento de transe em que o pintor mo- provinha do clichê da propaganda de um hotel de
vimenta o pincel livremente, sem se preocupar com a vera­neio em Catskills. Sem modificar a imagem – re-
limpeza e a ordem da pintura. Nessa época, o “drip” produzindo inclusive os pontos reticulados – Lichtens-
[a tinta gotejada] era considerado uma descoberta, tein simplesmente ampliou-a para o tamanho de um
um sinal de autenticidade. Não para Warhol. Para ele, quadro expressionista abstrato. Nessa época, para ser
era antes uma simulação, um maneirismo, uma forma significativa, uma pintura tinha de ser grande. Qual-
quer leitor do New York Post podia reconhecer a ima- exibia muitas marcas no estilo expressionista abstrato.
gem, mas certamente ficaria espantado de vê-la em Eu disse: “Qual é, Andy, o abstrato é uma porcaria, o
grandes dimensões pendurada na parede de alguém, outro é excelente. É a nossa sociedade, é o que somos,
e sem texto. Talvez parecesse ao espantado leitor uma é maravilhoso e despojado; você devia destruir o pri-
espécie de híbrido estético. Lichtenstein pintava para meiro e mostrar o segundo”.5
um público extremamente sofisticado. Qualquer pes-
soa que adquirisse o quadro perceberia que, apesar de A justaposição dos quadros parecia igual àquela do
pintado à mão, a imagem não tinha as pinceladas usu- Antes e depois. O que Warhol fez foi acrescentar os
ais dos expressionistas abstratos. Warhol disse a Ivan toques de pincel que ele julgava serem esperados para
Karp que vinha fazendo exatamente o mesmo tipo de uma pintura corresponder a “quem nós somos”. De
pintura e convidou-o a visitar seu ateliê. Karp gostou Antonio lhe fez ver que o caminho certo era o oposto
do que Warhol estava fazendo, mas criticou, com ra- do que Warhol pensava. Ele devia eliminar todos os
38 zão, a aplicação descuidada das tintas.
A resposta de Warhol a essa crítica é muito útil
arremedos de marcas expressionistas. Na verdade,
devia ter feito o que intuitivamente Lichtenstein jul-
39
para compreendermos como ele agiu para avançar em gara certo. Escrevi sobre esse episódio em um ensaio
seus planos. Na oportunidade, arrolou a ajuda de uma intitulado “The Abstract Expressionist Coca Cola Bot-
pessoa em cujo julgamento tinha plena confiança. Era tle” [A garrafa de Coca-Cola expressionista abstrata].
Emile de Antonio, cineasta documentarista, que fizera, A garrafa de Coca-Cola era, em si mesma, um ícone.
entre outros, Point of Order [Ponto de ordem] – um Se você quer pintá-la como um ícone, pinte-a como
filme que se baseava nas cenas filmadas dos interroga- ela é. Não precisa de enfeites.
tórios públicos de McCarthy em 1954. No verão de 1960, O caminho a seguir estava claro. Ele continha
De Antonio foi à casa de Warhol tomar uns drinks: ao mesmo tempo uma ordem e uma guinada. A or-
dem era: pinte o que somos. A guinada, a intuição
[Andy] pôs dois grandes quadros lado a lado. Normal- do que somos. Somos um tipo de gente que almeja
mente ele me mostrava seu trabalho de modo menos à felicidade prometida pela publicidade, fácil e ba-
formal, então entendi que se tratava de uma apresen- rata. Antes e depois é como um raio x da alma ame-
tação. Eram dois quadros de cerca de 1,80 m de altura ricana. Warhol começou a pintar os anúncios em
mostrando garrafas de Coca-Cola. Um deles era de
uma garrafa antiga de Coca em preto e branco. O outro 5 V. Bockris, op. cit., p. 98.
que nossas fraquezas e esperanças são retratadas. e branco: de uma tintura de cabelos; de como ficar
Suas imagens após a mudança eram convencionais, com braços fortes e ombros largos; da modificação da
familiares e anônimas, tiradas das contracapas dos forma do nariz, de próteses para rupturas e da Pepsi-
jornais populares, das páginas da frente dos tabloi- -Cola (“No Finer Drink” [ Não há bebida melhor]). Em
des sensacionalistas, das revistinhas policiais, dos 1960, a Pepsi-Cola havia dado início a uma campanha
fanzines, do junk mail, dos folhetos comerciais, dos publicitária em que se proclama ser a bebida “para
clichês prontos de publicidade descartável. Como os que pensam jovem”, como se fosse o elixir da ju-
se ele tivesse recebido uma ordem para conduzir o ventude que Ponce de León viera descobrir em Nova
pior da pintura mais reles até os locais reservados York. A vitrine da Bonwit Teller também incluiu Antes
para a arte culta. Não houve nenhuma revelação ou e depois, a publicidade da transformação do nariz que
confissão acerca do que talvez seja até hoje a mais nos dá vergonha no nariz com que sonhamos. As ou-
misteriosa transformação na história da criativi- tras pinturas tinham como tema o Super-Homem, o
40 dade artística. Mas isso não é tudo. Warhol saiu do
que um dos personagens de Henry James descreve
Reizinho (num cavalete) e Popeye. Os anúncios refle­
tem as preocupações pessoais de Warhol – a careca
41
como “um pequeno artista”, à margem da margem se formando, o nariz feio, a compleição física fran-
do mundo da arte, para tornar-se o artista que zina. Mas a localização das imagens originais – nas
definiu seu tempo. Isso poderia não ter acontecido seções de anúncios das contracapas do tabloide Na-
se o mundo não tivesse passado por uma mudança tional Enquirer e publicações similares de consumo
paralela por meio da qual o Warhol transformado de massa – atesta a universalidade dessas torturantes
veio à tona como o artista que esse mundo es- insatisfações e a inextinguível esperança humana de
tava esperando. soluções fáceis para obter saúde e felicidade, e como
A primeira exposição de Warhol após essa con- fazer com que “ele deseje você”. As pinturas são co-
versão ocorreu num espaço que pertencia de direito mentários, quase filosóficos, sobre as roupas leves de
ao Warhol dos sapatos e dos gatinhos: as vitrines da verão que vestem os manequins que as precederam.
grande loja de departamento Bonwit Teller na 57 th Mas a mensagem é suavizada pelas imagens dos per-
Street. Mas as pinturas, exibidas durante uma única sonagens dos gibis que todo mundo conhecia. Quem
semana em meados de abril de 1961, pertencem à poderia adivinhar, ao parar para ver a vitrine, que
sua nova fase. São cinco ao todo. Anúncio baseia-se Anúncio um dia ia chegar à Nationalgalerie de Berlim
numa montagem de propagandas de jornais em preto por intermédio do museu de Monchengladbach e do
Hamburger Bahnhof Museum für Gegenwart [Museu Só em 1962 tomei conhecimento da arte pop, quando
de Arte Contemporânea]? Se imagens tão pouco pro- vi uma ilustração publicada na revista artnews mos-
missoras podem se tornar belas-artes, há esperança trando o que me pareceu ser um painel baseado nas
para o restante de nós, igualmente pouco promissores! tirinhas de gibi de Steve Canyon: um piloto e sua
Anos depois, no princípio da década de 80, Warhol namorada beijando-se, com o título de O beijo. A
deu o Anúncio de presente ao dr. Marx, famoso colecio- maior parte do mundo da arte, que ainda estava às
nador alemão de arte contemporânea, por intermédio voltas com o expressionismo abstrato, certamente
de Heiner Bastien, um curador alemão que conside- não definiria tal imagem como arte. Lichtenstein
rava Andy um grande artista. Segundo Bastien, certamente veria arte nela, assim como Ivan Karp.
O mesmo pensariam De Antonio e Henry Geldzahler,
Ele foi generoso com Marx, porque mostrou todas as o jovem curador de arte moderna americana do Me-
suas antigas pinturas. No fim, até separou o Anúncio tropolitan Museum. E mais uns poucos marchands,
42 porque eu disse que seria maravilhoso ter essa primeira
obra na coleção. Creio que ainda não temos condições
alguns colecionadores, talvez.
O que a tornava arte, então? Warhol com cer-
43
de compreender a radicalidade do que Warhol fez. Ele teza seria incapaz de formular uma explicação. Ele
provavelmente fez um retrato de nosso presente, que tinha certa dificuldade de expressão, tropeçava nas
reflete mais sobre nossa época que qualquer outra arte. palavras, comia sílabas. A arte não podia estar na
É como se ele tivesse uma espécie de compreensão ins- diferença de tamanho entre os anúncios publicados
tintiva de para onde nossa civilização está indo.6 nos jornais e as imagens exibidas em grandes painéis
na vitrine da Bonwit Teller. Seria possível imaginar
O que quase ninguém que passasse em frente da vi- Antes e depois exibido no tamanho de um pôster
trine da Bonwit Teller em 1961 poderia ver é que o afixado em vagões do metrô ou na parede de um
espaço estava cheio de arte. As pessoas que estavam ônibus em Nova York, ou até em grandes e dramáti-
vendo roupas femininas junto a imagens comuns cos outdoors na Times Square. Um dos artistas pop,
de sua cultura arrumadas por um vitrinista cheio de James Rosenquist, de fato trabalhava para a empresa
imaginação, e provavelmente gay. Quem nessa data gráfica Artkraft-Strauss e pintava cartazes gigantes-
teria visto aquilo como arte? Eu, com certeza, não. cos espalhados pela cidade inteira. Minha opinião é
que todos os anúncios “apropriados” – esta palavra
6 Id. ibid., p. 435. não era usada na década de 60, e quando se tornou
uma forma de “apropriação” de imagens, como nos termos, a pergunta se tornou uma questão quase re-
anos 80, o significado era completamente diferente – ligiosa. Jesus é simultaneamente humano e divino.
têm algo em comum. Todos remetem aos “pequenos Nós sabemos o que é ser humano – é sangrar e sofrer,
contratempos humanos”, para usar o título de uma como Jesus, ou os consumidores a que se dirigem os
coletânea de contos de Grace Paley. Falam de barri- anúncios. Assim, qual a diferença entre um homem
gas flácidas, de dores nas pernas, de cicatrizes na pele, que é deus e um homem que não é? Como determi-
de cabelos crespos que se quer alisar ou de cabelos nar a diferença entre eles? Que Jesus era humano é
lisos que se quer ondular, e coisas semelhantes. Para a mensagem natural da circuncisão de Cristo. É o
tudo isso os anúncios oferecem uma solução. Mas, em primeiro sinal de sangue real escorrendo. Que ele é
conjunto, projetam uma imagem da condição hu- Deus é a intenção da mensagem que o halo em volta
mana, e é por isso que são arte. Os quadrinhos têm de sua cabeça anuncia – um símbolo que é lido como
outro significado. Seus personagens são ídolos ame- uma inegável marca da divindade.
44 ricanos, cujas virtudes estão além das nossas. A força
de Popeye faz dele o Hércules de nosso tempo. A sa-
45
bedoria de Nancy é superior à sua idade. E o Super-
-Homem, bem… é o Super-Homem, com as qualida-
des de um Bodhisattva, sempre atento aos clamores
do mundo. Também esses heróis prometem ajuda,
esperança. No fim das contas, a vitrine da Bonwit
Teller foi o showroom do mundo dos transeuntes. To-
dos entendiam as imagens porque elas projetavam o
mundo em que todos habitavam. O mundo projetado
pelos expressionistas abstratos era o mundo dos que
tinham feito suas pinturas.
Warhol não foi o primeiro a levantar a questão da
arte de forma radical. Ele redefiniu a formulação
da questão. A nova pergunta não era, “O que é arte?”,
mas “Qual a diferença entre duas coisas, exatamente
iguais, uma das quais é arte e a outra não?”. Nesses
2 pop, política2epop,
a sepa∏ação
política ent∏e a∏te ent∏e a∏te e vida 2 pop, política e a sepa∏açã
e a sepa∏ação
e vida 2 pop, política
ent∏e a∏tee a sepa∏ação política e a sepa∏ação ent∏e a∏te e vida 2 pop, polít
e vida 2 pop,ent∏e
a∏te e vida 2epop, política eent∏e
a sepa∏ação a sepa∏ação
a∏te e vida 2 pop, política e a sepa∏ação ent∏e a∏te e vida
ent∏e
46 a∏tepop, 2 pop,epolítica
e vidapolítica a sepa∏açãoe a ent∏e a∏te e vida 2 pop, política e a sepa∏ação
47 en

sepa∏ação ent∏e a∏te e vida 2 pop, política


Não há uma explicação evidente para o fato de, no
início da década de 60, vários artistas de Nova York e
arredores (a maioria deles mal se conhecia) terem co-
meçado a fazer arte, cada qual à sua maneira, usando

e a sepa∏ação ent∏e a∏te e vida 2 pop, imagens corriqueiras da cultura popular: tiras de his-
tórias em quadrinhos distribuídas por agências, logo-
tipos de produtos de consumo de massa, fotografias
publicitárias de celebridades, fotos de coisas que todo

política e a sepa∏ação ent∏e a∏te e vida 2 mundo conhecia nos Estados Unidos, como os ham-
búrgueres e a garrafa de Coca-Cola. Na primavera
de 1960, Warhol comprou na Castelli Gallery um
pequeno desenho de uma lâmpada elétrica feito por

pop, política e a sepa∏ação ent∏e a∏te e Jasper Johns. Quando lhe mostraram uma grande
tela de Lichtenstein reproduzindo o anúncio de um
hotel de veraneio em Catskill, Warhol surpreendeu- de Lichtenstein muito parecidos com os que Andy
-se ao ver que outro artista estava pintando clichês vinha fazendo, embora os dois não se conhecessem
de anúncios do tipo que ele ia exibir no ano seguinte ainda. Como diretor da Castelli, Karp procurava ar-
na vitrine da Bonwit Teller. Por acaso, Warhol era o tistas que estivessem fazendo exatamente esse tipo
quarto artista que Karp tinha visitado em poucos me- de arte – e certamente não teria se interessado por
ses que trabalhava com esse tipo de imagens. A exis- pinturas abstratas de Warhol. Karp conhecia uns dez
tência de um grupo de artistas brilhantes produzindo ou doze colecionadores interessados no mesmo tipo
pinturas novas sobre temas muito populares não de arte e poderia levá-los ao ateliê do artista. Warhol
chega a constituir um movimento, mas representava ainda não tinha uma galeria que o representasse, mas
uma manifestação visível de uma grande agitação fazia parte do mundo da arte – um complexo de mar-
cultural que mais cedo ou mais tarde transformaria chands, críticos, colecionadores e, naturalmente, ou-
toda a vida artística da cidade. “É um terremoto do tros artistas que consideravam o trabalho dele sério.
48 século xx”, pensou Karp com seus botões. “Eu senti
isso, sabia disso e estava atento.”
E esse complexo que se erguia em torno dos artistas
estava pronto para se tornar a instituição caracterís-
49
Desde que ficou claro que vários artistas se dedica- tica de meados da década de 1960, baseada num tipo
vam a projetos semelhantes, explicamos o fato dizendo de arte que a mídia divulgava e comentava. Quando
que havia alguma coisa no ar, e deixamos de lado as isso aconteceu, Warhol estava fadado a ser muito fa-
abordagens biográficas. No final deste capítulo, co- moso, ainda que boa parte da opinião da imprensa
mentarei as Latas de sopa Campbell, de Warhol, que lhe fosse desfavorável. Numa palavra, Warhol se tor-
muitos críticos afirmam ter relação com a biografia nou uma sensação.
dele – por exemplo, que ele tinha o hábito de con- A expressão “arte pop” foi usada pela primeira
sumi-las diariamente. Mas, na realidade, parece que vez em 1958 pelo crítico britânico Lawrence Alloway
para Warhol, pintar esse tema era mais um passo em para designar a cultura de massa dos Estados Uni-
direção ao seu desejo de ser um dos artistas de Cas- dos, especialmente os filmes de Hollywood. O argu-
telli, e expor em sua galeria, que havia se especiali- mento de Alloway era que esses filmes, assim como
zado num certo tipo de arte de vanguarda. Castelli os romances de ficção científica, eram obras sérias
havia assumido a representação de Rauschenberg e e mereciam ser estudadas como os filmes de arte, a
Jasper Johns, justamente os artistas que Warhol mais grande literatura e os produtos da cultura de elite
admirava. E começara também a vender trabalhos em geral. Mas por algum deslize, o termo passou a
designar exclusivamente pinturas – e esculturas – de enérgicas, ou com tinta gotejada e derramada sobre
objetos e imagens ligados à cultura comercial, ou grandes superfícies de tela, de maneira que aos es-
a objetos fácil e amplamente reconhecíveis, cujo uso pectadores restava pouco senão exclamar: “Uau!”.
ou significado não precisavam ser explicados. A pri- Não que houvesse muito o que falar diante da arte
meira exposição de Warhol na vitrine da Bonwit Teller pop, pois todo mundo sabia do que se tratava. A ques-
fez parte do movimento artístico que se iniciou no tão é o que tornava tão instigantes elementos tira-
ano seguinte. Personagens de histórias em quadri- dos da vida cotidiana, que interesse podia haver em
nhos – Nancy, Super-Homem, Popeye, o Reizinho, personagens de histórias em quadrinhos, em rótulos
Dick Tracy – penetraram na consciência artística de sopa ou em casquinhas de sorvete? Por que al-
dos norte-americanos no começo dos anos 60 mais guém se prestaria a pintar ou fazer retratos dessas
ou menos como a imagística das gravuras japonesas coisas? As pessoas já estavam tão familiarizadas com
penetrou na vanguarda artística francesa da década seu significado e retórica que a única pergunta que
50 de 1880, com a diferença de que, por mais populares
que fossem as gravuras no Japão, na França eram
pareciam fazer era em que sentido se poderia dizer
que aquilo era arte. Da perspectiva dos expressionis-
51
consideradas exóticas, enquanto as histórias em qua­ tas abstratos, somente veriam tais coisas como arte
drinhos americanas, com raras exceções, eram tidas aqueles delinquentes “burros mascadores de chicletes”,
por toda a parte como lixo, exceto no mundo da arte que um renomado crítico dissera estarem come-
que interessava a Warhol, que as tratava como ima- çando a povoar as galerias de arte, provavelmente
gens instigantes porque implicavam uma revolução excla­mando “Uau”, quando não estavam simples-
no gosto; com Warhol e Lichtenstein, as imagens mente assoviando por entre os dentes.
das histórias em quadrinhos entraram na esfera da Assim, não é raro encontrar quem explique a
arte culta. Foi por sua popularidade que elas se tor- arte pop como mera e previsível reação ao expres-
naram interessantes para os artistas pop, que, por sionismo abstrato. Mas uma reação poderia tomar
sua vez, deram um cunho político à sua promoção muitas formas. Os abstracionistas poderiam voltar à
como arte séria. pintura abstrata não gestual, como fizeram os cha-
Quanta diferença entre essa arte ousada e irre- mados abstracionistas hard-edged. Ou os pintores
verente e a pintura expressionista abstrata, na qual poderiam voltar às paisagens e naturezas-mortas.
os significados eram pessoais e enigmáticos, e se Contudo, havia algo de provocador, rebelde na arte
expressavam através dos pigmentos com pinceladas pop. Sim, é verdade, todo mundo sabia muito bem
quem eram Popeye e Mickey Mouse. Mas era preciso engraxar sapatos, pintada da maneira mais realista,
muita coragem para aceitar o retrato de um dos dois de modo que ninguém pudesse admirar o vigor das
como arte culta. No prefácio deste livro, falo sobre pinceladas – uma pintura que podia estar numa re-
meu espanto ao ver pela primeira vez, em 1962, uma vista como propaganda de uma marca de graxa de
reprodução em preto e branco de O beijo, de Roy sapatos. O que poderia significar isso? No mínimo
Lichtenstein, nas páginas da artnews, a mais impor- que o proprietário do quadro tinha, ele próprio, ul-
tante e respeitável revista de arte da época. Tive a trapassado uma fronteira, e fazia um statement sobre
impressão de que se tratava de uma pintura baseada a arte, e sobre ele mesmo.
nas tiras de Terry e os piratas ou de Steve Canyon; na Todos os períodos revolucionários começam ten-
realidade, a reprodução fora usada como ilustração tando forçar as fronteiras artísticas, depois se esten-
para uma crítica da primeira exposição individual dem às fronteiras sociais mais decisivas para a vida,
de Lichtenstein na Castelli Gallery. Achei o traba- até que, perto do fim do período, toda a sociedade se
52 lho muito inquietante, embora nos últimos tempos
eu já me tivesse convencido de que se aquilo era arte,
transforma; basta pensar no romantismo e na Re-
volução Francesa, ou na vanguarda russa de 1905 a
53
então qualquer coisa podia ser arte – qualquer coisa 1915, e no slogan de Aleksandr Ródtchenko, trazer “a
mesmo! Anos depois, ouvi Lichtenstein dizer que seu arte para a vida”. Rigorosamente falando, creio que
objetivo era transcender a distinção entre arte infe- a era do modernismo começou a dissolver-se com
rior e arte superior, introduzindo a pintura de uma o advento do movimento dadá em 1915, como uma
tira de quadrinhos numa galeria de arte. Havia algo reação de repulsa à Primeira Guerra Mundial. Co-
de revolucionário, um pouco do que Nietzsche deno- meçou na Suíça, que assumiu uma posição de neu-
minou de “transvalorização de valores” na atitude tralidade na guerra. A ideia predominante era que
de Lichtenstein, uma condenação à irrelevância de os artistas não estavam mais dispostos a produzir
tudo o que pertencia à ordem da apreciação da arte. arte para a fruição das classes dominantes na Eu-
Os artistas que fizeram essa súbita mudança de di- ropa, as quais eles responsabilizavam pelas mortes
reção não estavam simplesmente reagindo contra o de milhões de jovens e pela devastação das popula-
expressionismo abstrato, mas fazendo uma revolução ções civis. Os artistas dadaístas achavam impossível
no conceito de arte, forçando uma fronteira. Imagi- fazer outra coisa senão uma arte desrespeitosa das
nem que uma pessoa pendurasse na parede de sua classes patrocinadoras das artes em geral, e ridicula-
sala um quadro representando uma lata de cera de rizar a ideia do Grande Artista cujo trabalho enaltecia
e glorificava os poderosos. A obra emblemática do bia, frequentado principalmente por músicos de
movimento dadá foi o l.h.o.o.q. de Duchamp – le- vanguarda, como John Cage e Morton Feldman, e
tras que ele imprimiu na margem superior de um por artistas como Philip Guston e Agnes Martin; e o
cartão-postal da Mona Lisa, em cujo rosto havia curso de composição experimental, ministrado por
desenhado um bigode e um cavanhaque; as letras, Cage na New School for Social Research, que deu
pronunciadas em francês, formam uma frase um origem a um movimento musical e de arte radical
tanto obscena.1 Duchamp foi a figura central da ir- conhecido pelo nome de Fluxus, que se dedicou a
reverência provocadora que unificou a rebeldia dos “ultrapassar o hiato entre arte e vida”. O lema do
dadaístas e deflagrou o ataque contra as fronteiras grupo Fluxus retomou o projeto de Rodtchenko de
que definiam o modernismo. O ponto máximo da integrar a “arte na vida”; Robert Rauschenberg re-
estética modernista era político. Consistia em dois produziu essa ideia em suas declarações para o catá-
grandes Estados monolíticos, a Alemanha nazista logo da exposição de 1959, no Museum of Modern
54 e a Itália fascista, na regulamentação da vida e na
glorificação da guerra. A pintura expressionista abs-
Art de Nova York, Dezesseis americanos, onde escre-
veu: “A pintura se relaciona ao mesmo tempo com a
55
trata estava muito distante da visão política desses arte e com a vida. Procuro situar-me no espaço entre
Estados e de sua concepção do poder. Na verdade, ambas. Não existem temas insignificantes. Um par
era uma pintura que exaltava a privacidade pessoal, de meias não é menos apropriado para uma pintura
mas por sua escala e poder também enaltecia o es- que a madeira, pregos, terebintina, óleo e tecido”.
pírito de heroísmo, o alvo inicial da zombaria dos Rauschenberg devia ter usado a palavra “arte” em
dadaístas. O expressionismo abstrato foi a última vez de “pintura”. Com essa declaração ele se dava au-
grande manifestação artística do espírito modernista. torização para empregar qualquer coisa que quisesse
Na década de 50, algumas instituições nos Esta- a fim de produzir uma obra de arte. No começo dos
dos Unidos incentivaram determinado tipo de ino- anos 60, esse impulso inclusivo estendeu-se à dança.
vação artística: o Black Mountain College, onde Ro- Um movimento de dança podia consistir em sentar
bert Rauschenberg e Cy Twombly estudaram e onde numa cadeira, comer um sanduíche ou passar a
John Cage foi professor; o seminário zen-budista ferro uma camisa. A pergunta “O que é a dança?”
dirigido por D. T. Suzuki na Universidade de Colúm- juntou-se então a outras duas: “O que é a música?” e
“O que é a pintura?”. Onde e de que maneira devia
1 “Elle a chaud au cul ” [Ela tem fogo no rabo]. [n.t.] passar a linha que separa a arte da vida? Ao longo
dos anos 60, testar as fronteiras culturais se tornou de tornar-se rapidamente conhecido, se o trabalho do
o projeto central que definiu toda a década. artista atraísse as atenções da mídia.
A arte pop esteve presente na ruptura do espírito Pelo menos desde a exposição de 1913, conhecida
modernista e no despontar da era pós-moderna em como The Armory Show (onde a tela Nu descendo
que vivemos. Em dezembro de 1961, Claes Oldenburg uma escada, de Marcel Duchamp, surgiu como o
transformou uma loja do East Side de Manhattan exemplar paradigmático da arte de vanguarda), a
em ponto de venda de suas esculturas feitas de gesso, imprensa passou a dar atenção especial ao trabalho
telas de arame e tecido, pintadas com tinta esmalte de artistas muito talentosos. O que levou Warhol a
doméstica, com as quais criava representações gros- começar a pintar os anúncios e figuras de histórias
seiras de objetos do cotidiano – vestidos, malhas de em quadrinhos que expôs por um breve período na
ginástica, calcinhas, bolos, latas de refrigerante, tor- vitrine da Bonwit Teller é um dos mistérios mais se-
tas, hambúrgueres, pneus de automóveis. O lugar cretos de sua biografia. Mas não há mistério algum
56 lembrava mais um grande depósito de mercadorias
variadas que uma galeria de arte. Aliás, Oldenburg
quanto à sua decisão de pintar latas de sopa Camp-
bell. Warhol queria se tornar muito famoso, o mais
57
batizou-o de The Store [A loja] como se o local e as rápido possível, e tal desejo só poderia ser realizado
mercadorias formassem juntos uma obra de arte. se contasse com o apoio da mídia. Warhol foi um
Oldenburg era o dono do armazém e quem escrevia artista “pop” antes que o significado da palavra se
os preços dos objetos nas etiquetas. Todos os obje- generalizasse, mas em 1962 a palavra “pop” já dava
tos eram expostos na vitrine. As pessoas compravam o que falar.
arte da mesma maneira que compravam mantimen- Muitas histórias diferentes relatam como Warhol
tos numa mercearia ou miudezas num armarinho. teve a ideia de pintar latas de sopa, e uma delas pelo
O lugar era muito diferente, sem dúvida, das vitrines menos vale a pena examinar: a que fala de um encon-
elegantes da Bonwit Teller, onde, em abril do mesmo tro entre o artista e um designer de interiores, Muriel
ano, Warhol havia mostrado suas obras. Em certo Latow, a quem o pintor teria pedido uma ideia. Algu-
sentido, o ato de Oldenburg foi uma crítica institu- mas dessas histórias dizem que Warhol tinha o há-
cional do ambiente de preciosismo dos museus e bito de pedir ideias, e que, na maioria das vezes, suas
galerias de arte criados para refletir a preciosidade da ideias eram sugestões de outras pessoas. Em 1970,
arte que exibiam. E foi um modo de estreitar a sepa- numa conversa com Gerard Malanga, seu assistente
ração entre a arte e a vida. Mas também uma forma e companheiro inseparável, Warhol afirmou: “Minhas
ideias sempre vêm de outras pessoas. Às vezes, nem uma das variedades das sopas Campbell produzidas
modifico a ideia; outras vezes, não uso a ideia de ime- naquela época – como uma instalação de retratos de
diato, mas guardo-a na lembrança para usar mais pessoas notáveis. Warhol pôs em prática os ensina-
tarde. Adoro ideias”. Warhol disse a Latow que preci- mentos que recebera de Emile de Antonio: os quadros
sava de uma ideia “de grande impacto, diferente de não tinham nada de pictural, pareciam ter sido re-
Lichtenstein e Rosenquist, algo bem pessoal, que não produzidos por meios mecânicos, como na realidade
pareça que estou fazendo exatamente o que eles fa- foram, porque Warhol usou um processo de serigrafia
zem”. Latow respondeu-lhe que ele devia pintar al- para obter um efeito de absoluta uniformidade. De
guma coisa que “todo mundo vê todos os dias, que qualquer forma, o conjunto é rigorosamente fron-
todo mundo reconhece… como uma lata de sopa”. tal, como retratos bizantinos, e as quatro fileiras de
A própria maneira como Warhol formulou a pergunta oito quadros assemelhavam-se a uma iconóstase mo-
já eliminava muitas possibilidades. Ele não estava in- derna – uma parede de ícones como as que existiam
58 teressado em pintar uma abstração bonitinha e agra-
dável, ou Manhattan ao luar, ou uma mulher bonita
na igreja ortodoxa de Pittsburg onde a mãe de Wa-
rhol, Julia Warhola, costumava rezar quando ele era
59
lendo uma carta perto da janela. Tinha de ser algo criança. Poderíamos pensar também na arrumação
ligado à cultura comum que ainda não tivesse sido de fileiras de prateleiras de supermercados, uma es-
trabalhado por ninguém. Algo que as pessoas comen- tética que agradava muito a Warhol. Nenhum dos
tassem mesmo sem ter visto. Quantas pessoas viram outros artistas pop usava esse tipo de formato no qual
de perto o crânio com um diamante incrustado que a imagem se repete inúmeras vezes. Inclusive quando
Damien Hirst teria vendido por um milhão de dóla- ele, mais tarde, começou a fazer retratos, continuou a
res? Mas não ter visto a peça não impediu que se ima- usar um painel com o mesmo retrato, da mesma pes-
ginasse seu valor, quem poderia ter comprado a obra, soa, em cores diferentes. As Latas de sopa Campbell
qual o significado dela e por que alguém a faria. eram retratos, cada um contendo uma variedade de
Uma coisa é dizer ao artista que ele devia pintar sabor da sopa, identificada no rótulo. A repetição é
latas de sopa, outra é decidir como pintá-las. A de- um dos principais elementos do que se pode chamar
cisão de Warhol envolveu mais que a mera pintura de estética de Andy Warhol.
de uma lata de sopa. Ele construiu um painel com Quase tudo que ele fez nessa época tocava na
trinta e duas telas (50,8 x 40,6 cm cada), organizadas questão de pintura de gênero, fossem trinta e duas
em quatro fileiras de oito, cada tela representando pinturas ou uma instalação composta de trinta e
duas partes. Creio que ele pretendia que o conjunto ele já estava prestes a se tornar um ícone americano.
inteiro formasse uma única obra. Afinal, a serigrafia Pouco importava se a publicidade fosse favorável;
é uma técnica de impressão que lhe permitia impri- afinal, o mundo da arte vive da controvérsia. Warhol
mir e reimprimir quantas vezes quisesse. Mas o fato chamou a atenção de Eleanor Ward, proprietária da
é que ele só fez uma impressão de cada, o que indica Stable Gallery, localizada num antigo estábulo na 58th
que preferiu criar uma parede de latas de sopa for- Street oeste, perto da Seventh Avenue. Eleanor pediu a
mada de trinta e duas unidades singulares. No en- Emile de Antonio, conselheiro artístico de Warhol, que
tanto, quando o trabalho foi mostrado pela primeira a levasse ao ateliê de Andy. Lá chegando, fez uma pro-
vez na Ferus Gallery de Los Angeles, em 1962, os posta: se Warhol pintasse um retrato de sua nota da
quadros estavam organizados numa só fileira, colo- sorte, uma cédula de um dólar, ela patrocinaria uma
cados sobre uma estreita prateleira que contornava exposição do pintor em novembro daquele ano. (Além
toda a galeria. E, evidentemente, foram vendidos se- das latas de sopa, Muriel Latow havia sugerido que
60 paradamente por cem dólares cada. Mas o marchand,
Irving Blum, aos poucos percebeu que os quadros se
Warhol pintasse cédulas de dinheiro.) Ward tinha boa
intuição para a arte séria; Rauschenberg e Twombly
61
interligavam em “um conjunto”, como ele disse. A de- eram dois artistas de sua galeria. Ela também tinha or-
cisão de Blum agradou a Warhol, porque tinham sido ganizado exposições de Robert Motherwell e acabara
“concebidos como uma série”. Depois, Blum recom- de admitir Marisol e Robert Indiana em sua galeria.
prou as que tinha vendido e Warhol fixou o preço de Mais do que todos esses artistas, foram as Latas de
mil dólares para o que agora se reconhecia ser uma sopa Campbell de Warhol que suscitaram a questão
só obra. Blum mandou-lhe cem dólares por mês até da arte de maneira irreprimível.
acabar de pagar tudo. E todas as telas passaram a ser Para a maioria das pessoas, arte era algo espiri-
expostas como uma só unidade, uma matriz. tualmente rico, que cabia em molduras douradas
As Latas de sopa Campbell já eram famosas antes e ficava pendurado nas paredes dos museus ou das
que qualquer um dos visitantes do ateliê de Warhol mansões dos milionários. Em sua biografia de Warhol,
tivesse realmente visto o trabalho. A revista Time Victor Bockris entrevistou um dos primeiros amigos
descreveu-as na edição de maio de 1962. Mas a mídia do artista, Charles Lisanby, que recusou sem rodeios
tratou as obras como um evento cultural e não como o oferecimento de um dos retratos de Marilyn Mon-
um evento do mundo da arte – isto é, o que quer que roe. “Agora me diga, no fundo do seu coração, você
o mundo da arte estivesse pensando sobre Warhol, sabe que isso não é arte”, disse Lisanby a Warhol. “Ele
nunca iria admitir isso, mas eu sabia que ele sabia que Warhol pintou a sopa Campbell durante toda sua
não era arte”.2 É difícil saber, de fato, o que Warhol vida. Começou com as cem latas que mostrou em
pensava sobre essas questões, mas eu acho que ele sua primeira exposição na Stable Gallery. Depois, foram
sabia que tinha levado a arte para um novo lugar. Na as sopas Campbell em que as latas sofriam uma espé-
minha adolescência, eu costumava percorrer as salas cie de martírio – furadas com um abridor de latas,
do Detroit Institute of Art, onde havia reluzentes esmagadas ou esfoladas por terem seus rótulos rasga-
pinturas a óleo de santos, príncipes montados em dos. Estas últimas compartilham o espírito das várias
cavalos, damas vestidas com longas saias de cetim pinturas de catástrofes humanas às quais Warhol em
lendo cartas de amor. Impossível imaginar naquele breve se dedicaria – acidentes de carros, desastres de
tempo que a imagem fiel e chapada de uma lata de avião e coisas assim. Os formatos que ele inventou
sopa viesse a fazer-lhes companhia como obra de arte. para mostrar as latas lembram os formatos da pin-
Além do fato de ser um quadro pintado, a lata de sopa tura religiosa – corais, congregações, iconóstases,
62 parecia não ter nada em comum com o que qualquer
pessoa considerava arte. Sem dúvida, era um objeto
onde as latas eram entendidas como vasos para nossa
sopa diária. Encostada na parede do fundo do ateliê
63
que fazia parte da vida, mas não era uma peça que de Warhol, no dia em que ele saiu pela última vez
alguém pudesse reconhecer como arte. No mínimo, para ir ao hospital submeter-se à cirurgia que acabou
uma definição filosófica de arte teria de ser aplicável por matá-lo, em 1987, havia uma imagem de uma fu-
tanto à lata de sopa Campbell quanto aos santos de megante tigela de sopa Campbell. Estava ao lado de
El Greco, ou às belas mulheres de Terborch, ou aos um Jesus duplo, pertencente a uma das variações da
personagens da realeza de Velázquez. Para que uma Última Ceia que ele havia pintado alguns meses an-
definição de arte fizesse isso, teria de ser esvaziada tes de morrer. Sem dúvida, o conjunto satisfazia seu
de tudo que se aplicasse àquelas obras-primas mas pedido de que qualquer “ideia” que Latow lhe desse
não o fizesse à lata de sopa. De repente, a lata de sopa devia ser pessoal. O que ele admirava na cultura co-
Campbell invalidou, por ser insuficientemente geral, mercial eram a uniformidade e a previsibilidade da
todo o cânone da estética filosófica, e de um golpe comida de todos os dias. Uma lata de sopa de tomate
definiu sua época. Ela era, como disse De Antonio, Campbell é sempre igual a qualquer outra. Não im-
quem nós somos. porta quem você é, nunca poderá ter uma sopa melhor
que a do seu vizinho. Wittgenstein dizia que não ligava
2 V. Bockris, op. cit., p. 157. para o que comesse, desde que fosse sempre a mesma
coisa. A repetição de recipientes de comida fácil e ime- nismo e o começo de uma era totalmente nova, que
diatamente reconhecíveis – latas de sopa Campbell, a arte pop exemplificou. Mas o espírito pop era de-
garrafas de Coca-Cola – era um emblema da igualdade masiadamente norte-americano para ser facilmente
política. Não se tratava simplesmente de um recurso assimilado aos novos realistas, que, em essência, ex-
formal da pintura de vanguarda. pressavam valores europeus. O forte americanismo
Em novembro de 1962, foi inaugurada a expo- do movimento pop provavelmente se acentuou com
sição de Warhol na Stable Gallery, que havia então o fim da crise dos mísseis cubanos em 20 de novem-
se transferido para uma elegante mansão da East bro de 1962. A súbita retirada da ameaça à forma de
74th Street. Uma semana antes, três trabalhos dele vida que os artistas pop celebravam deve ter acres-
haviam sido mostrados numa exposição intitulada centado certa luminosidade a inocentes artefatos da
“Os novos realistas”, na Sidney Janis Gallery, na 57th cultura norte-americana como a sopa Campbell e a
Street, com a curadoria de um crítico francês, Pierre Coca-Cola. Eu me lembro de quando era bolsista da
64 Restany, ligado ao movimento Novo Realismo da
França. A exposição da Janis Gallery foi interpre-
Fullbright e assisti a uma palestra da escritora e jor-
nalista Janet Flanner, correspondente da revista The
65
tada por alguns como um esforço para assimilar a New Yorker na França, em que ela definiu o estômago
arte pop ao movimento europeu e, por outro lado, como o mais patriótico de nossos órgãos, porque às
como uma afirmação de que o expressionismo abs- vezes o desejo de certos alimentos impossíveis de en-
trato havia chegado ao fim, pois Sidney Janis havia contrar em Paris era incontrolável.
representado os mais importantes artistas expres- A primeira exposição de Warhol na Stable Gallery
sionistas. Abrir seu espaço para a arte pop e para os reuniu dezoito obras bastante heterogêneas: três tra-
“novos realistas” parecia ser uma traição aos valores balhos seriados de cem latas de sopa, cem garrafas
da Escola de Nova York e uma adesão à turma dos de Coca-Cola e cem notas de dólar, além de Elvis
“estúpidos delinquentes mascadores de chicletes”. vermelho – um painel com 36 cabeças de Elvis Pres-
Vários artistas mais antigos deixaram a galeria em ley. Havia duas pinturas sobre Marilyn Monroe, uma
protesto. Estabelecia-se então uma nítida divisão entre das quais consistia na repetição de cinquenta cabe-
dois períodos da produção artística de Nova York, e ças de Marilyn, que pode ser considerada pintura se-
mais, entre dois períodos da história da arte, ainda riada [serial painting], tal como se pode considerar
que isso fosse menos evidente naquele momento. uma pintura em serigrafia do jogador de beisebol
De fato, os anos 60 presenciaram o fim do moder- Roger Maris, lançando uma bola, repetidas vezes, na
frente de um receptor, uma memória recorrente. Ha- chendo de cores as áreas numeradas na tela, é um es-
via também Diagrama de dança, grande painel em forço patético de autoaperfeiçoamento pela aquisição
preto e branco, indicando onde pôr o pé direito e o de uma “façanha” que não supõe talento algum. Isso
esquerdo, junto com as linhas de conexão, para exe- tudo apenas sublinha a distância entre a vida do cida-
cutar um passo de dança; e Faça você mesmo (Flores), dão comum e a das celebridades, fazendo-o sentir-se
brilhante pintura do tipo com áreas numeradas para inferior. Mas nem as celebridades são tão felizes assim.
colorir. Não havia imagens tiradas de histórias em Marilyn Monroe suicidou-se no dia do encerramento
quadrinhos, como as que tinham sido incluídas na da exposição de Warhol na Ferus Gallery. Warhol pin-
exposição da Bonwit Teller, já que Warhol preferira tou a cabeça de Marilyn como a de uma santa sobre
deixar esse gênero de arte pop para Roy Lichtens- um campo de folhas douradas num ícone religioso.
tein. Finalmente, a exposição mostrou a primeira Santa Marilyn das Dores. Sua beleza era uma más-
obra da série de pinturas de catástrofes, 129 mor- cara. A habilidade de Warhol como artista comercial
66 rem. Um crítico que escrevesse sobre essa exposição
teria, sem dúvida, muita dificuldade para juntar tudo
mostrou-se útil quando ele começou a fazer retratos
de Marilyn Monroe. Ele traçou uma moldura em
67
isso num corpo coerente de obras. Mas a exposição torno da cabeça da atriz numa foto de divulgação do
deixou claro que havia muito mais em Warhol que o filme Torrentes de paixão e transpôs para a serigrafia.
pintor de latas de sopa. Isso transformou o rosto dela numa máscara que ele
Diagrama de dança e Faça você mesmo (Flores) reproduziu um sem-número de vezes. Ele próprio fez
relacionam-se com os anúncios granulados expos- 24 retratos de Marilyn, dos quais o mais espetacu-
tos na vitrine de Bonwit Teller, se pensarmos neles lar é o Díptico de Marilyn, incluído em sua primeira
como uma espécie de retrato do homem comum ou exposição na Stable Gallery. O trabalho merece uma
da mulher comum, com seus inventários de pequenos descrição especial.
achaques e dores, e com as imperfeições cosméticas As cores dos retratos são espalhafatosas: no ca-
que os tornavam, pelo menos na opinião deles, pouco belo, um amarelo-cromo, nos olhos uma sombra
atraentes e, por consequência, solitários e indig- verde amarelada, da cor do licor Chartreuse, e um
nos de serem amados. Aprender a dançar seria um batom vermelho untuoso. Eram dois grupos de 25
modo de combater a solidão: abraçamos o parceiro retratos de Marilyn, coloridos à esquerda, e outros
enquanto a música toca e podemos sentir o calor do tantos em preto e branco à direita. Os retratos colo-
outro. Aprender a pintar, comprando um kit e preen­ ridos são bem uniformes, ainda que sem a preocu-
pação de as cores ocuparem com exatidão as regiões tos antirracistas, suicídios, envenenamentos – as ca-
que preenchem. Nos retratos em branco e preto há tástrofes que vemos todos os dias nos noticiários no-
certa variação. Na segunda fileira da esquerda, a tinta turnos ou nos tabloides, e que logo esquecemos, como
preta parece acumular-se na tela, como se uma som- se mortes violentas só acontecessem com os outros,
bra caísse sobre o rosto da atriz. As feições vão empa- com gente que não conhecemos. Essas obras parecem
lidecendo até que no quadro de cima, do lado direito, ser ilustrações do epitáfio irônico de Marcel Du-
o rosto parece desaparecer do mundo à medida que champ: “D’ailleurs, c’est toujours les autres qui meu-
percorremos o díptico com o olhar – como uma re- rent” [Aliás, são sempre os outros que morrem].
presentação gráfica de Marilyn morrendo sem que o Como o batedor de beisebol que sonha todas as noi-
sorriso lhe deixe a face. Nesse sentido, os cinquenta tes com uma grande jogada, um strikeout, os desas-
rostos de Marilyn Monroe são muito diferentes da tres são repetidos e repetidos, numa mesma mol-
série de trinta e duas latas de sopa Campbell, sem- dura, para nos anestesiar do horror. Ninguém morre
68 pre uniformes e luminosas. Nestas, não há nenhuma
transformação interna. No Díptico de Marilyn há re-
duas vezes – “depois que houve a primeira, não há
segunda morte”, escreveu o poeta Dylan Thomas –
69
petição, mas é uma repetição transformadora, na qual embora Warhol tenha morrido, de fato, duas vezes.
foram preservados os acidentes do processo serigráfico Mas o que significa mostrar repetidamente a mesma
como os graves e agudos extremos de um solo de saxo- pessoa morrendo da mesma morte? Warhol usou
fone de John Coltrane. cores decorativas nessas serigrafias: lilás-claro, cor-
129 morrem é um trabalho anômalo. Trata-se da -de-rosa, laranja e verde-folha, como se quisesse fa-
foto­grafia de um desastre de avião publicada na pri- bricar papéis de parede. Às vezes, Warhol combinava
meira página do New York Mirror de 4 de junho de lado a lado uma pintura do gênero das catástrofes
1962. Henry Geldzahler, curador de arte contempo- com uma tela vazia toda da mesma cor. Isso criava
rânea do Metropolitan Museum, mostrou-a a Warhol um efeito mais impressionante que a catástrofe vista
dizendo: “Chega de vida. Está na hora de um pouco sozinha. Mas a combinação também estabelece um
de morte”. Ele queria que Warhol deixasse de lado a contraste, entre o mundo de desastres e devastações
celebração do consumo e tratasse de algo mais sério e o vazio – o mundo esvaziado de ocorrências, o
e profundo. Warhol dedicou boa parte do ano se- vazio em azul-claro.
guinte a fazer pinturas em serigrafia sobre morte e A exposição de 1962 na Stable Gallery foi um
desastre: batidas de carro, desastres de avião, protes- enorme sucesso, de crítica e de receita, embora os
preços de Warhol fossem excepcionalmente modes- competência pictórica, uma intuição segura para o
tos. Mas, de certa forma, Warhol foi arrastado junto vulgar (como na escolha das cores) e uma sensibili-
com seu trabalho, como se fosse inseparável dele, com dade para o que há de genuinamente humano e paté-
sua peruca, sua vista fraca, sua pele ruim, seus mús- tico em um dos mitos exemplares de nossa época. Isso
culos mal definidos. Quem tinha ideia da verdadeira me parece comovente.
aparência de homens como Lichtenstein, Oldenburg,
Wesselman ou Rosenquist, a não ser que os conhe- A tragédia do lugar-comum – “beauty falls from air,
cesse pessoalmente? Mas Andy se tornou tão reconhe- queens have died young and fair”3 – é tão verdade
cível quanto Charlie Chaplin ou Mickey Mouse. Ele em Nova York e Los Angeles nos anos 60 quanto foi
era uma pessoa pública. Depois da primeira exposição em Paris e na Lombardia no tempo do Renascimento.
na Stable Gallery, Warhol virou Andy, o artista pop – Diante do retrato de Marilyn, ninguém diria, “tão ba-
um ícone identificado com seu desconcertantemente rato, tão vazio”. Ao nos oferecer o mundo transfigurado
70 óbvio trabalho e com o mundo que todo americano
vivia. Foi ele quem agarrou esse mundo e o transfor-
em arte, Warhol ao mesmo tempo nos transfigurou e
transfigurou-se. Mesmo que as pinturas de Morte e de-
71
mou numa forma de arte que todos pensavam com- sastre não vendessem, mesmo que os dias da arte pop
preender. Boa parte da publicidade lhe era negativa, estivessem contados, os nossos começavam a ser a Era
mas abundante, e não tinha a menor importância o de Warhol. Uma era é definida por sua arte. A arte
que ela dizia. segundo Andy era radicalmente diferente da arte que
Um dos melhores críticos da época respondeu veio depois dele e através dele.
ao que essa negatividade deixava intocado. Michael
Fried, culto e sofisticado como poucos colunistas de
arte, entendeu as grandes verdades das exposições na
Stable Gallery:

Entre todos os pintores que hoje se dedicam à


iconografia popular – ou dela são escravos –, Andy
Warhol talvez seja o mais determinado e o mais es-
petacular. Em seu trabalho mais forte – que julgo ser 3 Em tradução livre, “A beleza desaba do ar, rainhas já morre-
os retratos de Marilyn Monroe –, Warhol mostra uma ram jovens e belas.” [n.e.]
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llo box 3 a b∏illo box  3 a b∏illo box  3 a b∏illo
O sucesso da sua primeira exposição na Stable Gallery
elevou Warhol a um patamar de celebridade que não
era compartilhado com outros artistas do movimento
pop. Na verdade, sua fama sobreviveu ao próprio

x 3 a b∏illo box  3 a b∏illo box  3 a b∏illo box movimento, que mais que um movimento artístico
foi um furor cultural, baseado na impetuosidade e
na inovação. A carreira artística de Warhol tomou
uma direção bem distinta dos seus colegas. Não foi

b∏illo box  3 a b∏illo box   3 a b∏illo box 3 a a carreira típica do “artista em seu ateliê”, dedicado à
criação de um conjunto de trabalhos destinado a ser
exposto regularmente numa galeria de arte, a cole­
cionar resenhas críticas e vender para importantes

llo box 3 a b∏illo box  3 a b∏illo box  3 a b∏illo colecionadores. Mais do que qualquer outro artista
de igual importância, Andy intuiu de tal forma as
grandes mudanças que caracterizaram os anos 60 e coincidiu com a mudança do seu centro de operações
contribuiu para modelar a época em que viveu, que de uma sede do corpo de bombeiros, nada funcional,
sua arte foi ao mesmo tempo parte integrante dessa para um novo espaço físico – uma antiga fábrica no
época e a transcendeu. Ele inventou, por assim dizer, número 231 da East 47 th Street, em Manhattan. O lu-
um estilo de vida inteiramente novo para um artista, gar, por sinal, passou a ser chamado de “The Factory”
um modo de viver que incluía música, moda, sexo, [A Fábrica]. Com o tempo, a Factory se tornou muito
uma linguagem própria, cinema, drogas e… arte. mais que um local de criação de arte. Passou a ser
Muito além disso, ele mudou o próprio conceito de também um lugar em que pessoas identificadas com
arte; seu trabalho inspirou uma transformação tão certo espírito dos anos 60 podiam levar a vida típica
profunda da filosofia da arte que se tornou impossí- da época. Parafraseando uma visão utópica projetada
vel pensar a arte como se fazia poucos anos antes de nos textos de Rabelais, a Factory virou uma espécie
Warhol aparecer. Pode-se dizer que ele foi motivo de de Abbey de Thélème, cujo lema era Fais ce que tu
74 uma profunda descontinuidade na história da arte ao
eliminar da concepção usual artística a maior parte
voudras, “Faça o que quiser”. Na abadia de Rabelais,
belos casais seguiam o caminho do amor sexual onde
75
do que todo mundo julgava pertencer à essência quer que este os levasse. As pessoas que conseguiam
dela. É preciso dizer que Picasso foi o artista mais entrar na Factory eram geralmente belas e desorien-
importante da primeira metade do século xx, por tadas, sem rumo, e, por isso, no melhor dos casos, o
ter revolucionado a pintura e a escultura de maneira máximo que tinham a apresentar era uma espécie
profunda e libertadora. Warhol revolucionou a arte de “piss glamour” [glamour ordinário] – usando o
como tal. Suas decisões foram sempre surpreenden- epíteto conferido a Edie Sedgwick, a superstar arque-
tes, e se não chegaram a popularizar tanto assim seu típica de Warhol. Muitas dessas pessoas acabaram
trabalho, hoje, olhando em perspectiva, essas deci- destruídas pelo ambiente de permissividade da Fac-
sões parecem harmonizar-se muito bem com o espí- tory, fosse pelo sexo ou pelas drogas. No centro de tudo
rito de sua época. É natural pensar em nossa época estava Warhol, pessoalmente nem um pouco bonito,
como a Era Warhol, na medida em que ele imprimiu um trabalhador compulsivo que ao mesmo tempo se
sua marca pessoal no que era permissível. dedicava à arte, dirigia o ateliê e usava os jovens de-
Essa nova configuração conceitual da arte come- sorientados que se agregavam à Factory como fontes
çou no início de 1964 com um conjunto de trabalhos de inspiração em troca da permissão de observá-los.
muito diferente de tudo o que ele tinha feito antes, e Na frente de Warhol, eles o chamavam de Andy, e, por
trás, chamavam-no de Drella – uma combinação de liares na vida cotidiana dos norte-americanos, que
Drácula com Cinderela, apelido que quase se tornou o as aproveitavam, depois de vazias, para guardar ou
seu nome oficial na Factory. despachar coisas, além de outras funções domésticas;
No entanto, a princípio, a Factory não se definia seus logotipos continua­vam, assim, a fazer publici-
somente pelo trabalho, mas por um tipo de labor dade dos produtos que embalavam, produtos estes
repetitivo, quase fabril, onde Andy e uns poucos as- que, por sua vez, eram elementos comuns na vida
sistentes produziam em grandes mas administráveis doméstica. Mas Warhol estava menos interessado
quantidades uma variedade de objetos tridimensio- em seu caráter cotidiano do que na estética de caixas
nais, que o artista chamava de esculturas, e que se fechadas, estocadas em pilhas nos depósitos dos su-
assemelhavam a produtos industriais – objetos que permercados, como os olhos as viam. Para usar as pa-
são normalmente produzidos para fins utilitários lavras de seu assistente, Gerard Malanga, ele “queria
por máquinas especialmente projetadas; objetos im­ ser completamente mecânico em seu trabalho, como
76 pessoais, fabricados mecanicamente, desprovidos
de toda aura estética. Quando pensamos em escul-
uma fábrica de embalagens imprime informações
em serigrafia nas caixas de papelão”.1 E para tanto
77
tura, lembramos de Michelangelo, Canova, Rodin, ele precisava menos de um ateliê que de uma fábrica.
Brancusi ou Noguchi, que criaram objetos únicos Daí o nome de seu local de trabalho.
de beleza e significado. Antes de Warhol, jamais Malanga é nossa fonte principal sobre a confecção
ocorreria a alguém criar, como escultura, uma coisa dessas caixas e sobre a ideia de Andy de organizar
semelhante a uma caixa de papelão para transporte a Factory segundo linhas industriais, um paradoxo
de mercadorias de consumo. Warhol não só fez exa- porque as pessoas que participavam da Factory eram
tamente isso como usou um processo que, de certo tudo menos robôs. “Andy estava fascinado pelas pra-
modo, parodiava a produção em massa. Sua escul- teleiras dos supermercados e pelo efeito repetitivo,
tura tinha a aparência de caixas, normalmente feitas maquinal, que criavam […] Ele queria reproduzir
de papelão corrugado, dentro das quais alimentos esse efeito, mas logo descobriu que a superfície de
em lata ou artigos de limpeza eram transportados papelão era impraticável.” Como o efeito em questão
desde as fábricas onde eram produzidos até os luga- é geralmente obtido pelo empilhamento de caixas de
res onde seriam vendidos aos consumidores, como
supermercados. Caixas de papelão com logotipos ou 1 Gerard Malanga, Archiving Andy Warhol. Nova York: Creation,
marcas impressas eram objetos extremamente fami- 2002, p. 34.
papelão em armazéns e depósitos, é difícil entender o da Primeira Guerra Mundial, tinham decidido em
que havia de errado com o papelão, que Warhol podia 1915, em protesto contra as classes que considera-
ter usado com muito menos esforço, simplesmente vam responsáveis pela Grande Guerra, pela recusa
comprando as embalagens dos fabricantes e tratando- a fazer uma arte bela, justamente numa época em
-as como ready-mades. É como se a realidade não que predominava o consenso de que a beleza era a
fosse mecânica o suficiente para se acomodar a ima- essência da arte. Foi esse o primeiro embate do an-
ginação de Warhol. É importante notar ainda que o tiesteticismo que se tornou uma corrente importante
trabalho era tão central em sua concepção da arte que da arte moderna. Se a arte não tinha de ser bela, o
a ideia de usar como arte algo que não resultasse do que era preciso para ser arte? Na minha opinião,
trabalho não teria interesse nenhum para ele. Warhol levou a questão do que é arte a um novo pa-
O dadaísta Marcel Duchamp, com quem Warhol tamar. Refletindo sobre a história do modernismo
é muitas vezes comparado, havia introduzido na arte como uma luta da arte para trazer à consciência o
78 o conceito de “ready-made” em uma série de traba-
lhos “criados” entre 1913 e 1917. Seu ready-made
entendimento do que ela, a arte, é, as “caixas de su-
permercado” de Andy Warhol estão entre as mais
79
mais famoso é o urinol que ele afirmou ter comprado importantes obras modernistas já feitas. Na verdade,
numa loja de material hidráulico – um vaso sanitário ele pôs fim ao modernismo mostrando como se deve
de louça branca fabricado pela empresa Mott Iron responder à pergunta sobre o que é a arte.
Works, que ele viu na vitrine de uma loja. Duchamp Numa exposição de Warhol realizada em 1968 no
acrescentou uma assinatura – de um tal R. Mutt, Moderna Museet de Estocolmo, ele encomendou ao
provavelmente um trocadilho como nome Mott do fabricante do Brillo quinhentas caixas de papelão,
fabricante –, uma data e fez história ao tentar que que foram usadas para criar a atmosfera de um depó-
fosse aceito numa exposição da Sociedade dos Artis- sito, mas as embalagens em si não eram obras de arte.
tas Independentes, que supostamente não tinha júri Em 1968, as caixas de supermercado, e especialmente
nem premiações. Na verdade, o objeto foi recusado as Brillo Box constituíam, junto com as pinturas da
pelo comitê organizador da mostra, que argumentou Lata de sopa Campbell, a obra icônica por excelência
que qualquer peça de arte seria aceita, o problema é de Warhol, de modo que toda retrospectiva genuína
que aquilo não era arte. De repente, a questão do que do artista tinha de incluir caixas de supermercado, no
é arte assumiu uma nova forma. Os dadaístas ori- ideal alguns exemplares da Brillo Box. Warhol tinha
ginais, que se estabeleceram em Zurique para fugir pedido ao curador da exposição, Pontus Hulten, que
fizesse uma encomenda especial de grande número neiros treinados em cortar e encaixar de acordo com
de caixas de Brillo para a mostra de Estocolmo, que especificações recebidas. O trabalho de marcenaria
ele pretendia doar ao Moderna Museet. O mesmo pe- não fazia parte do processo artístico, tal como não faz
dido foi feito para a mostra de 1970 no Pasadena Art parte da arte da pintura que o artista produza pesso-
Museum, na Califórnia. Mas por razões misteriosas, almente a tinta que vai usar. Malanga encontrou uma
Hulten não atendeu ao artista. Havia alguns exem- marcenaria na 70th Street leste e encomendou cente-
plares da Brillo Box de 1964, mas a maioria eram nas de caixas de madeira de vários tamanhos, que fo-
simples caixas de papelão, que não constituíam obras ram entregues num caminhão na porta da Factory no
de arte e não tinham valor algum. No entanto, em dia 28 de janeiro de 1964. Em meados da década de
1990, após a morte de Warhol, Hulten mandou fabri- 60, já se tornara comum recorrer a artesãos quando o
car cerca de 120 exemplares da Brillo Box, que então artista não possuía as habilidades técnicas necessárias
certificou como tendo sido feitas em 1968, e vendeu-as para criar os efeitos estéticos desejados. Donald Judd,
80 por muito dinheiro. Mas eram falsificações. Em com-
pensação, um artista que trabalhava com apropria-
o escultor minimalista, por exemplo, contratava os ser-
viços de uma oficina de usinagem para confeccionar as
81
ções, Mike Bidlo, também fez uma série de “caixas de caixas de metal que usava como esculturas, já que não
Brillo” na década de 1990, assinou-as com seu pró- conseguia fazer à mão as pontas e as quinas perfeitas
prio nome e intitulou Not Andy Warhol. As caixas de que são aspectos estéticos imprescindíveis das peças
Bidlo, como parte do movimento apropriacionista, de metal perfeitamente combinadas que compunham
são obras de arte de pleno direito, suscitam indaga- seus famosos “objetos específicos”. Na década de 90,
ções próprias, mas não são mais falsificadas que as Jeff Koons costumava encomendar suas peças a arte-
caixas de Warhol. Tratar desse assunto aqui, no en- sãos que trabalhavam com cerâmica ou metal, porque
tanto, é uma digressão inoportuna, de modo que re- sabia que não tinha habilidade manual para fazê-las
tomarei agora a análise das caixas de supermercado, sozinho. Ele não era artesão, era artista plástico. O ar-
de 1964, “feitas na Factory”. tista tinha as ideias, não havia razão alguma para que
Dado que as caixas de papelão usadas pelo fabri­ ele próprio tivesse de materializar essas ideias. A es-
cante Brillo – e por outras empresas cujas caixas foram cultura de Robert Therrien consiste em itens domés-
copiadas para a exposição de 1964 – não permitiam ticos corriqueiros fabricados numa escala de cerca de
obter o efeito visual que Warhol desejava, ele deci- 3,5 para um: enormes caçarolas, frigideiras, cadeiras
diu fazê-las de madeira, confeccionadas por marce- dobráveis, mesas de bridge de metal. Alguns traba-
lhos são pilhas de panelas ou pratos. Mesmo que ele acessório de encanamento – e mandar confeccionar
pudesse fazer esses objetos à mão, seria um desper- um objeto. Em ambos os casos, o objeto é produzido
dício de talento. Alguns artistas – Damien Hirst é o por outra pessoa e o artista recebe o crédito por se
primeiro nome que me vem à lembrança – mandam tratar de uma obra de arte. Por outro lado, nem todo
seus trabalhos para outros pintarem; com isso, uma objeto pode ser um ready-made. Em uma palestra
exposição de pinturas de Damien Hirst parece mais que proferiu no Museum of Modern Art em 1961,
uma exposição coletiva. Desde Duchamp – e certa- Duchamp afirmou: “A escolha desses ‘ready-mades’
mente depois de Cage – o acaso foi incorporado ao tra- nunca foi determinada pelo deleite estético. A esco-
balho artístico, de modo que é possível imaginar que lha baseou-se numa reação de indiferença visual e ao
um artista possa pegar o nome de um pintor numa mesmo tempo numa total ausência do bom ou mau
lista aleatória e depois exibir a pintura, qualquer que gosto […], na verdade, uma completa anestesia”.2 O
seja o estilo ou o conteúdo, como sendo dele próprio. projeto de Duchamp era polêmico, como sugere a
82 De qualquer modo, já não faz parte do conceito de
obra original que ela tenha sido confeccionada pelo ar-
palavra “gosto”. Na estética clássica, o gosto, e especial-
mente o bom gosto, desempenhava um papel crucial
83
tista que leva o crédito. Basta que ele tenha concebido por sua ligação com o prazer. E nos anos 50 e começo
a ideia. Fazendo uma pequena digressão: pelo que sei, dos 60, a arte remetia ao prazer visual – o que Du-
nenhuma outra pessoa levou o crédito pela ideia de champ desdenhava como “o retiniano”. Quando o crí-
fazer caixas de supermercado da mesma forma como tico Pierre Cabanne perguntou-lhe de onde vinha sua
fizeram, por exemplo, pela ideia de pintar latas de sopa atitude antirretiniana, Duchamp respondeu:
ou a série de pinturas Morte e desastre. A concretiza-
ção da ideia incluía a repetição e o efeito de ser produ- Da importância excessiva que se dá ao retiniano.
zida à máquina, dois aspectos centrais na estética de Desde Courbet existe a crença de que a pintura se di-
Warhol. E sua produção encaixava-se perfeitamente rige à retina. Era o erro de todo mundo. Os calafrios
com a noção de Warhol de querer ser uma máquina:
“Gosto de que as coisas sejam exatamente as mesmas,
repetidamente”. 2 Marcel Duchamp, “A Propos of ‘Readymades’” (conferência
no Museum of Modern Art, 1961), in K. Stiles e P. Selz (orgs.),
Não há grande diferença, sob certo ponto de vista,
Theories and Documents of Contemporary Art: A Sourcebook
entre escolher um ready-made – uma pá de varrer of Artists’ Writings. Berkeley: University of California Press,
neve, um pente de metal, um porta-garrafas ou um 1996, p. 21.
da retina! Antes, a pintura tinha outras funções: podia O que há de melhor neste país é que a América deu
ser religiosa, filosófica, moral […] Nosso país é com- início à tradição pela qual os consumidores ricos
pletamente retiniano […] Isso é absolutamente ridí- compram essencialmente a mesma coisa que os po-
culo. Tem de mudar.3 bres. Você está diante da televisão e vê um anúncio
da Coca-Cola, e sabe que o presidente dos Estados
Em certo sentido, Warhol foi um seguidor de Du- Unidos bebe Coca-Cola, Liz Taylor bebe Coca-Cola, e
champ. Quando ele pediu a um assistente, Nathan você também pode beber Coca-Cola. Uma Coca é uma
Gluck, que comprasse umas caixas de papelão num Coca, e não há dinheiro que possa conseguir-lhe uma
supermercado perto de sua casa, ficou decepcionado Coca-Cola melhor que aquela que o cara da esquina
quando Gluck voltou trazendo caixas com desenhos está bebendo. Todas as Coca-Colas são iguais e todas
elegantes. Ele queria uma coisa mais comum. Ma- as Coca-Colas são boas. Liz Taylor sabe disso, o presi-
langa intuiu suas necessidades: “As marcas escolhi- dente sabe disso, o cara da esquina sabe, e você sabe.4

84 das foram duas versões de Brillo, o ketchup da Heinz,


cereais Kellog’s e suco de maçã da Mott”. (Ele tinha A arte de Andy Warhol é, em certo sentido, uma
85
deixado de lado os pêssegos em calda Delmonte e a cele­bração da arte que todo americano conhece.
sopa de tomate Campbell.) Mas Warhol não era con- Suas caixas talvez tenham sido inspiradas na fa-
trário ao esteticismo da mesma forma que Duchamp. mosa canção de protesto, “Little Boxes”, escrita por
O que Duchamp estava procurando era libertar a arte Malvina Reynolds em 1962 e popularizada por Pete
da necessidade de agradar aos olhos. Estava interes- Seeger em 1963. A canção é uma sátira à prolife-
sado numa arte intelectual. Os motivos de Warhol ração de certos agrupamentos residenciais em que
eram mais políticos. Andy realmente celebrava a vida uma casa parecia igualzinha à outra. O McDonald’s
americana cotidiana. Ele realmente gostava do fato da é, com certeza, o protótipo da uniformidade univer-
comida americana ser sempre a mesma, e ter um sabor sal em matéria de alimentação, sempre escolhido
previsivelmente igual. onde quer que haja um protesto contra a globali-
zação. Mas, como sabemos, Andy gostava que tudo
fosse o mesmo. Achava que isso é o que havia de
3 Pierre Cabanne, Dialogues with Marcel Duchamp. Nova
York: Da Capo, 1971, p. 43 [ed. bras.: Marcel Duchamp: enge-
nheiro do tempo perdido, trad. Paulo José Amaral. São Paulo: 4 Kynaston McShine (org.), Andy Warhol: A Retrospective.
Perspectiva, 1987]. Nova York: Museum of Modern Art, 1989, p. 458.
notável nos Estados Unidos. Afinal de contas, ele sos objetos materiais sobre os quais a América se
cresceu na miséria, num bairro carente da cidade ergue hoje. É uma projeção de tudo que pode ser
de Pittsburgh. Certa vez, disse que cresceu “no pior comprado e vendido, dos símbolos práticos e imper-
lugar que já vi na vida”.5 As “caixinhas” pareciam manentes que nos sustentam.” E, numa entrevista
palácios em comparação à favela que ele conheceu sobre a arte pop, ele declarou:
quando criança em Pittsburgh. A comida quentinha,
saborosa, nutritiva dos supermercados era um luxo Os artistas pop fizeram imagens que qualquer um que
diário. Em comparação com a miséria opressiva em passeie pela Broadway é capaz de reconhecer num pis-
que ele cresceu, as portas contra tempestades e as car de olhos – gibis, mesas de piquenique, calças mas-
geladeiras que ele pintou eram a materialização do culinas, celebridades, cortinas de chuveiro, geladeiras,
calor e da satisfação, tal como os cobertores e a gor- garrafas de Coca-Cola –, todas as maravilhosas coisas
dura foram os antídotos contra o frio e a fome no modernas que os expressionistas abstratos fizeram

86 sistema simbólico de Joseph Beuys. A expressão “ti-


cky-tacky”6 pejorativamente aplicada às “caixinhas”
tanto esforço para não notar.7
87
pelos que protestavam contra a pobreza espiritual Mas quem, antes do artista pop, teria pensado em fa-
da vida nos subúrbios, denunciava o fato de que zer esculturas com caixas de supermercado?
aqueles que usavam a expressão tinham perdido de De todo modo, agora que compreendemos por
vista as necessidades fundamentais pelas quais as que as caixas tinham que ser feitas de madeira e
vítimas da fome e do frio dariam a vida. “Eu amo a montadas por marceneiros, vamos voltar à maneira
América”, disse Warhol certa vez, “e estes são alguns semifabril como foram construídas as caixas de su-
comentários sobre ela. Minha Storm Door [Porta permercado. Depois de entregues na Factory, Andy e
contra tempestades] de 1960 é um testemunho dos seus assistentes começavam a “árdua tarefa de forrar
produtos grosseiros e impessoais, e dos audacio- o chão com rolos e rolos de papel pardo e pôr cada
caixa dentro de um padrão semelhante a uma grade
de oito fileiras de comprimento”. Na realidade, a Fac-
5 Steven Watson, Factory-Made: Warhol and the Sixties. Nova tory estava sendo decorada de uma forma que a tor-
York: Phaidon, 2003, p. 5.
nava o mais diferente possível de uma manufatura.
6 Termo coloquial para material de construção de baixa quali-
dade usado em casas pré-fabricadas popularizado pela can-
ção de Reynolds. [n.t.] 7 K. McShine (org.), op. cit., p. 461.
Parede e tetos esta­vam sendo cobertos de papel de lugares, ou a tinta escorre e goteja. Mas Andy nunca
alumínio prateado ou de tinta prateada por Billy Li- descartou nada. Para ele, essas “imperfeições” faziam
nich, um morador boêmio da downtown, que teria parte do processo. Assim, as caixas feitas na Factory
um papel decisivo na determinação da demografia não passariam pelo exame de controle de qualidade
do que viria a ser chamado a Silver Factory [Fábrica de uma fábrica verdadeira. Elas pareciam, de certa
Prateada], na qual Linich era uma espécie de faz- forma, mecânicas demais, vistas à distância. Na opi-
-tudo e supervisor. Ao mesmo tempo, ele tinha de nião de Warhol, os acidentes faziam parte do processo,
trabalhar junto com Malanga na pintura das caixas e por isso ele não corrigia nada. E essas duas caracte-
com tinta acrílica branca ou marrom para ficar igual rísticas – a reprodução mecânica e a não correção dos
às cores originais das embalagens de papelão. Ma- eventuais defeitos – se tornaram parte integrante da
langa, um poeta, fora contratado logo cedo para aju- estética de Warhol, não importa o meio ou suporte
dar Andy nas serigrafias, no endereço do Hook and com que trabalhasse.
88 Ladder, o posto do corpo de bombeiros que servira de
ateliê temporário.
Leitores de Wittgenstein podem se surpreender,
como eu mesmo me espantei, com essa descrição do
89
Enquanto isso, as caixas de papelão eram achata- processo de criação das caixas de supermercado na Sil-
das e um técnico preparava os estênceis para a im- ver Factory e a descrição que o filósofo faz do “jogo de
pressão serigráfica. Depois de seca a primeira camada linguagem” em suas Investigações filosóficas. O “jogo
de tinta, Warhol e Malanga começavam a imprimir de linguagem” é uma situação altamente simplificada
a serigrafia nas caixas pintadas, criando répli­cas per- em que um pequeno número de objetos é associado a
feitas do que se via em embalagens de sucos de fruta um pequeno número de palavras. Wittgenstein des-
ou de enlatados, ou nas caixas mais célebres, das es- creve assim o jogo de linguagem:
ponjas de aço Brillo. Os “operários da Factory” traba-
lhavam em cada caixa separadamente e completavam A linguagem deve servir ao entendimento de um cons-
dois lados de determinado tipo de embalagem por dia. trutor A com um ajudante B. A constrói um edifício
O fundo ficava em branco, e sem assinatura. Malanga usando pedras de construção. Há: blocos, colunas,
diz que as caixas de supermercado eram “literalmente, lajes e vigas. B tem que lhe passar as pedras na sequ-
fotografias tridimensionais dos produtos originais”, ência em que A delas precisa. Para tal objetivo, eles se
o que explica por que pareciam tanto com os originais. utilizam de uma linguagem constituída das palavras:
É claro que a tela serigráfica acumula tinta em certos “bloco”, “coluna”, “laje” e “viga”. A grita essas palavras;
– B traz a pedra que aprendeu a trazer ao ouvir este de suas Brillo Box, mas uma pessoa pouco familia-
grito. – Conceba isto como uma linguagem totalmente rizada com a vanguarda artística em 1964 pensaria
primitiva.8 tratar-se de uma fotografia de um pálido funcionário
da loja entre as caixas que lhe cabia desempacotar.
A linha de montagem da Silver Factory incluía um A bem da verdade, uma pessoa pouco habituada à
artista – Warhol – e dois assistentes, Malanga e arte de vanguarda nessa época não veria arte naque-
Linich. Warhol grita “caixa” e um dos assistentes traz las caixas. Em termos ainda mais incisivos, pode-se
a caixa. Warhol grita “estêncil” e eles trazem o estên- dizer que seria impossível que as caixas de Warhol
cil e colocam-no em posição. Warhol depois grita fossem arte muito antes de 1964. O grande historia-
“rodo” etc. Ordens e obediência às ordens repetidas dor da arte Heinrich Wol±in disse que nem tudo é
em rápida sucessão permitiam criar uma quantidade possível em todas as épocas. A história da arte sem-
suficiente de caixas de supermercado para uma expo- pre está aberta a novas possibilidades, mas não teria
90 sição. Se essa descrição lança um pouco de luz na no-
ção um tanto enigmática de “jogo de linguagem” não
aberto a possibilidade de um objeto como uma caixa
de Brillo ser arte, digamos, em 1874, quando a pin-
91
posso garantir, mas as ressonâncias entre os dois es- tura impressionista era a vanguarda. Se um objeto
quemas me ocorreram durante um sonho enquanto desses existisse nessa época, é possível que um pintor
escrevia este livro, e, para o bem ou para o mal, não impressionista o tivesse pintado – mas não estaria
resisti à tentação de registrá-lo aqui. fazendo uma obra de arte. Ele teria pintado um ob-
A comparação nos leva à grande questão filosófica jeto com uma função qualquer, mas não seria arte.
suscitada pelas caixas de supermercado. As Brillo Os impressionistas fizeram enormes esforços para
Box da Factory, a despeito de eventuais acidentes no que suas pinturas fossem aceitas como arte em 1874.
processo de confecção, parecem exatamente iguais às Muitos viam em suas telas nada mais que trapos su-
embalagens de papelão que vemos nos depósitos de jos de tinta. Para tomar como arte as Brillo Box da
qualquer supermercado americano. Fred MacDarrah Factory seria preciso conhecer um pouco da histó-
tirou uma fotografia de Andy em pé em meio a pilhas ria da arte recente – saber alguma coisa sobre Mar-
cel Duchamp, por exemplo – e compreender o que
levaria alguém a mandar fazer centenas de objetos
8 Ludwig Wittgenstein, Philosophical Investigations. Oxford:
Blackwell, 1958, i, p. 2 [ed. bras.: Investigações filosóficas, exatamente iguais aos que podem ser vistos em qual-
trad. Marcos G. Montagnoli. Petrópolis: Vozes. 2008.] quer supermercado dos Estados Unidos. Por que as
caixas de Andy Warhol eram arte e suas contraparti- caixas que ele tinha projetado, enquanto as dele não
das reais, simples embalagens utilitárias, não tinham valiam nada. Mas Harvey, com certeza, não julgava
nenhuma pretensão ao status de arte? A indagação que suas caixas fossem arte. Elas eram reconhecida-
sobre a definição de arte fazia parte da filosofia desde mente arte comercial, e como tais, excelentes. Deve
o tempo de Platão. Mas Andy nos obrigou a repensar ser possível explicar por que todo mundo se lembra
a questão de modo inteiramente novo. O novo for- da caixa de Brillo, mas não, por exemplo, das caixas
mato da antiga questão era a seguinte: dados dois de suco de maçã da Mott. Não cabe a Warhol o mérito
objetos de aparência exatamente igual, como é pos- pela genialidade do projeto gráfico da Brillo Box; o
sível que um deles seja uma obra de arte e o outro, mérito é todo de Harvey, mas cabe a Warhol o crédito
apenas um objeto comum? Uma resposta poderia ser por transformar em arte o que não passava de um ob-
que as caixas de Andy eram feitas de madeira e as jeto absolutamente corriqueiro da vida cotidiana. Foi
caixas comuns de Brillo eram feitas de papelão corru- ele quem transformou em escultura o que ninguém
92 gado. Mas é óbvio que a diferença entre arte e reali-
dade não pode consistir da diferença entre madeira e
considerava arte. E repetiu o feito com caixas de de-
sign ainda mais anódinos que a embalagem de Brillo,
93
papelão! Afinal de contas, há muitas caixas feitas de como a caixa de cereais Kellogg’s. Cada uma das oito
madeira que servem, por exemplo, para transportar variedades de caixas era uma escultura, e não apenas
garrafas de vinho. Outra resposta poderia ser que as a Brillo Box.
caixas de Andy contêm muitos erros de impressão O escritor Edmund White escreveu que
ao passo que as embalagens comerciais de Brillo são
impecáveis. Mas, ainda que as caixas de Andy fossem Andy pegou uma a uma as definições da palavra arte
igualmente impecáveis, a diferença entre arte e reali- e as contestou. […] A arte revela o rastro da mão do
dade se manteria. artista: Andy recorreu à serigrafia. Uma obra de arte é
A verdade é que o autor do projeto gráfico da caixa um objeto único: Andy produziu múltiplos. Um pintor
de Brillo comercial também era artista – James Har- pinta: Andy fez filmes. Arte e trabalho comercial de
vey, pintor expressionista abstrato que trabalhava finalidade utilitária se distinguem: Andy especializou-
como designer de embalagens. Harvey ficou espan- -se em pintar latas de sopa Campbell e notas de dólar.
tado quando viu, durante a inauguração da exposição A pintura se contrapõe à fotografia: Andy reciclou fotos
das caixas de supermercado de Andy, que a Stable instantâneas. Uma obra de arte é o que um pintor
Gallery estava vendendo por centenas de dólares as assina, prova de sua escolha criativa, de suas intenções:
Andy assinava qualquer objeto. A arte é uma expres- Isso aponta, no mínimo, para uma nova era em que
são da personalidade do artista congruente com seu não se poderá distinguir as obras de arte das coisas
discurso: Andy mandou um sósia em seu lugar numa reais, pelo menos em princípio – o que chamei de
turnê de palestras.9 “O Fim da Arte”. Alguns críticos me perguntam por
que acho que Warhol pôs fim à história da arte da
Cabe notar que Andy não assinou as embalagens de maneira como a entendíamos antes – por que não
supermercado. De resto, White tem razão: Andy con- Duchamp com seus ready-mades? Ora, a verdade é
testou quase tudo o que os filósofos disseram sobre que Andy fazia suas caixas, enquanto Duchamp, de
a arte. E é muito fácil entender por que: nada que a maneira geral, não podia fazer seus ready-mades. Só
caixa de Brillo e a Brillo Box de Andy têm em comum que nem todo objeto pode ser um ready-made, já que
faz parte da definição de arte, pois elas são – ou pa- Duchamp os restringia a objetos indistinguíveis do
recem ser – absolutamente iguais. Em consequência, ponto de vista estético. Mas por que fazer essa restri-
94 o que faz de um objeto uma obra de arte deve ser
invisível a olho nu.
ção, a não ser que se tenha uma persistente aversão à
arte retiniana? Uma coisa deve ser dita a respeito das
95
Não vou me aprofundar aqui no que os filósofos Brillo Boxes: elas são muito bonitas. Minha esposa
denominam ontologia da obra de arte – o que é uma e eu temos uma há anos, e ainda nos maravilhamos
obra de arte –, quais as condições necessárias para com sua beleza. Por que teríamos de conviver com
que um objeto seja uma obra de arte. A esse res- objetos esteticamente desinteressantes em vez de coi-
peito, peço ao leitor que procure meus estudos sobre sas tão bonitas quanto a Brillo Box?
filosofia da arte. Em contraposição, os vários desafios A segunda e última exposição de Andy na Stable
de Andy às definições dos filósofos e outros pensa- Gallery foi inaugurada no dia 21 de abril de 1964.
dores sobre a arte são insignificantes se comparadas Havia caixas de supermercado empilhadas por todo o
às caixas de supermercado. Considerando que ele espaço da galeria, do chão ao teto. No salão da frente,
descobriu o exemplo de um objeto real e uma obra estavam as já famosas esculturas da Brillo Box, em
de arte, por que todas as coisas não podem ter um vermelho e azul sobre fundo branco. As caixas de ce-
homólogo que seja obra de arte de maneira que, reais Kellogg’s ficaram na sala dos fundos. A galeria
no fim, qualquer coisa possa ser uma obra de arte? ocupava o andar térreo de uma luxuosa residência na
74th Street, mais tarde incorporada ao Whitney Mu-
9 K. McShine (org.), op. cit., p. 441. seum, e serve atualmente de entrada lateral do museu.
O piso do saguão era de ladrilhos de mármore branco ceu pela primeira vez no Oxford English Dictionary
e preto, à direita havia uma elegante escadaria de cor- em 1969, mas certamente já era usada muito antes
rimão em latão polido. Entrava-se na galeria por uma disso. É inegável que a decisão de Warhol de fazer as
larga porta de mogno, que durante o curto período caixas de madeira já sugere o efeito que ele desejava
da exposição simulava a aparência utilitária de um obter ao apresentá-las cuidadosa e corretamente em-
depósito. O contraste entre a requintada entrada do pilhadas uma ao lado da outra, mas é difícil afirmar
prédio e o espaço da galeria sugeria o contraste entre que a segunda exposição na Stable Gallery mostrava
o sonho e a realidade – como se de repente fôssemos somente uma obra. A maioria dos estudos críticos e
transportados para um espaço utilitário rudimentar, filosóficos sobre a Brillo Box trata cada embalagem
radicalmente diferente da atmosfera aristocrática como uma obra individual devido à sua relação com
da Madison Avenue e da região nobre do leste de as caixas individuais dos supermercados. Ao mesmo
Manhattan. Adentrar a exposição era como vivenciar tempo, é possível imaginar que Andy mostrasse cai-
96 uma experiência surrealista. A instalação da mostra
era de Billy Linich e ficou em minha lembrança como
xas individuais em cima de pedestais, como se fossem
retratos de embalagens para transporte de Brillo, ou
97
uma espécie de selva, bem diferente da organização mesmo presas de algum modo à parede, ou arruma-
geométrica que Andy Warhol imaginara. O espec­ das em praleteiras. Mas Warhol não quis fazer nada
tador seguia por uma trilha determinada entre as disso – embora as víssemos expostas desse modo em
fileiras de caixas empilhadas, de modo que o salão museus e galerias de arte. A verdade é que ele que-
não estava abarrotado, embora a exposição fosse de ria causar uma forte impressão no espectador, em-
visita imprescindível para qualquer pessoa interes- pilhando as caixas no chão à maneira das pilhas de
sada em arte naquele tempo, e na noite do vernissage pneus de automóveis velhos que Allen Kaprow insta-
as filas de visitantes atravessassem as portas da gale- lou no pátio da Martha Jackson Gallery, pertinho da
ria e se prolongassem até as ruas. Mas isso se devia Stable Gallery. Kaprow usou a palavra “environment”
ao fato de que só havia espaço para um punhado de [ambiente] que se contrapõe à palavra “ensemble”
pessoas por vez dentro da exposição. A maior parte [conjunto de elementos com propriedades comuns]
dos estudos críticos e filosóficos sobre a Brillo Box que Louise Nevelson usou para identificar sua grande
tende a concentrar-se em caixas individuais, já que o exposição de 1958 na Nierendorf Gallery. Ela imagi-
contraste entre arte e realidade reside nelas. A pala- nou a galeria como uma gigantesca escultura ou um
vra “instalação”, como gênero distinto de arte, apare- “ensemble”. “Tudo deve estar bem encaixado, fluir sem
esforço, e eu também tenho de me encaixar”, explicou Brillo Box, os filósofos despertaram para a questão
a um repórter do New York Times. Nada poderia es- que delineei acima: o que constitui uma obra de arte,
tar mais distante do conceito de “ensemble” que uma especialmente a Brillo Box, que para muitos fins
galeria de arte repleta de caixas de supermercado! práticos parece ser um objeto corriqueiro de super-
A exposição foi um grande sucesso de crítica, mercado. Uma linha de pensamento, ainda muito
mas não chegou a ser um sucesso comercial. Mui- discutida, foi proposta pelo filósofo norte-americano,
tas caixas sobraram ao final. No começo de 1965, George Dickie, numa definição conhecida como “Teo-
um negociante de arte de Toronto tentou importar ria institucional da arte”. Para Dickie, obra de arte é
oitenta caixas para o Canadá, mas esbarrou em en- (1) um artefato e (2) o que o mundo da arte considera
traves da alfândega canadense. Na condição de es- ser “candidato à apreciação”. O caso do dr. Comfort
culturas, as caixas poderiam entrar no país sem ter demonstra que o mundo da arte não é homogêneo, e
de pagar taxas de importação, mas a alfândega ca- os diretores de museu certamente fazem parte dele.
98 nadense classificou-as como mercadorias e exigiu o
pagamento da tarifa de 4 mil dólares. Situação se-
Talvez seja melhor pensar o mundo da arte como
um eleitorado, e considerar como arte aquilo que a
99
melhante à do célebre caso do Pássaro no espaço, de maioria dos seus membros elege como tal. Sem dú-
Brancusi, que acabou nos tribunais quando a alfân- vida, há muito mais que um consenso na definição
dega dos Estados Unidos recusou-se a reconhecer a do que é arte. Essencialmente, é preciso haver razões
obra como arte, classificou-a na categoria de uten- para que algo seja arte. No grande diálogo do Euti-
sílios de cozinha e materiais hospitalares e exigiu o fro, Sócrates examina o argumento de que uma coisa
pagamento de uma tarifa. (A propósito, o preço da é santa se os deuses a amam. Eles a amam porque é
escultura de Brancusi em 1927 era 240 dólares, en- santa, pergunta Sócrates, ou ela é santa porque eles a
quanto as caixas de Warhol eram avaliadas em 250 amam? Se a amam porque é santa, pode-se descobrir
dólares.) O assunto foi comunicado ao dr. Charles quais são suas razões – e, portanto, podemos ser juí-
Comfort, diretor da National Gallery do Canadá, que zes do que é santo e do que não é. Se, por outro lado,
ao ver fotografias das caixas de supermercado con- é santa porque eles a amam, resta a questão de saber
cordou com a avaliação da alfândega. “Vi que não se por que isso deve nos interessar. A arte é assim. Na
tratava de esculturas”, declarou. cena de um filme usada por Ric Burns, uma mulher
O fiasco tinha um aspecto filosófico, e cômico. interroga o artista: “Andy, o porta-voz do governo
Nos anos 60, graças em boa parte a obras como a canadense disse que não é possível descrever sua arte
como escultura original. Você concorda?”. E Warhol achava que a série de trabalhos Morte e desastre não
res­ponde: “Sim”. “Por que você concorda?”, pergunta tinha mercado nos Estados Unidos. A primeira expo-
a repórter. “Bem, porque não é original”, diz Warhol. sição de Andy na Castelli Gallery reuniu pinturas de
“Então você imitou um artigo banal?”, indaga a mu- flores, e vendeu muito bem. Quem sugeriu a ideia da
lher. “Sim”, replica Warhol. A entrevistadora começa série das flores, mais uma vez, foi Henry Geldzahler,
a exasperar-se: “Por que você se deu ao trabalho de que disse a Warhol que ele havia esgotado o tema
fazer isso? Por que não criou uma coisa nova?”. “Por- da morte, a hora era de falar um pouco da vida. As
que é mais fácil de fazer”, respondeu Warhol. “Então pinturas de flores também foram exibidas em Paris,
o que você está fazendo é uma espécie de pegadinha na galeria dirigida por Ileana Sonnabend, onde o crí-
com o público”, diz ela. “Não. É só pra me ocupar.” tico norte-americano Peter Schjeldahl, que na época
Andy está de óculos escuros e fala o tempo todo de se dedicava à poesia, teve a oportunidade de vê-las.
um modo afetado que combina perfeitamente com o Schjeldahl se mudara para a França para fazer litera-
100 ar de burrice que ele costumava usar como uma es-
pécie de camuflagem. Ao lado dele, está o diretor da
tura, seguindo a trilha de tantos outros jovens artistas
que haviam dado as costas para sua cultura nacional.
101
Castelli Gallery, Ivan Karp, com um sorriso amarelo. Quando viu as flores de Warhol, ele compreendeu
Andy havia deixado a Stable Gallery. A Castelli era a que estava no país errado, como gosta de dizer, e logo
galeria certa para ele. Leo Castelli era o grande juiz começou a planejar seu regresso aos Estados Unidos,
do que era novo e relevante na arte dos anos 60. Era o onde a arte era real.
representante comercial dos heróis de Andy – Robert
Rauschenberg e Jasper Johns. Karp justificara sua
decisão inicial de não representar Warhol porque na
época achava que os trabalhos dele eram muito seme-
lhantes aos de Lichtenstein, mas agora que o artista
adotara a escultura havia lugar para ele. A Castelli era
a galeria dos sonhos de Andy desde que ele decidiu
se tornar artista. Eleanor Ward fora humilhada pelas
caixas de supermercado, e houve alguns conflitos en-
tre os dois em torno de questões financeiras. Além de
agir de maneira ambígua com relação às caixas, ela
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Uma das poucas obras de ficção que conheço basea-
das em Andy Warhol e a Factory – Who Killed Andrei
Warhol? [Quem matou Andrei Warhol?] – é um diá-
rio escrito por um jornalista soviético que chega aos

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Estados Unidos no começo de 1968 para cobrir o que
julga ser a revolução inevitável. Nessa época, Warhol
já tinha transferido a Factory da 47 th Street para um
prédio na Union Square, onde também funcionava a

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sede do Partido Comunista Americano. O atrapa-
lhado jornalista está convencido de que “Andrei” é
um artista proletário e seus trabalhos são o verda-
deiro realismo socialista. “Ele é realista socialista até

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a medula”, escreve no diário, “mas conseguiu trans-
por essa forma de arte para as condições capitalistas.
E, nesse processo, subverteu o capitalismo.” 1 Esse zadas pela Receita Federal nas contas da Factory.
prodigioso erro de interpretação não é muito dife- É por isso que nos Diários, que incluem relatos de
rente do que alguns críticos marxistas europeus suas conversas telefônicas cotidianas com sua fiel as-
escreviam sem parar sobre Warhol nos jornais de es- sistente Pat Hackett, Warhol faz questão de lembrá-
querda. Os mais moderados disseram que Warhol -la de obter recibos.
satirizava a cultura capitalista. De fato, os artistas do Se o jornalista soviético tivesse visitado a Silver
bloco soviético consideravam a arte pop absoluta- Factory no começo de 1964, teria visto Andy e seus
mente libertadora: a arte sots, como os pintores dis- colaboradores imitando operários a produzir caixas
sidentes soviéticos Komar e Melamid designavam de mercado em série, assim como Maria Antonieta
sua arte, era uma forma de ridicularizar a pintura e suas criadas brincavam de ordenhar vacas na pe-
soviética oficial, com suas imagens de nobres operá- quena e elegante Laiterie de la Reine [Leiteria da
rios e camponeses superando heroicamente suas cotas rainha] no castelo de Rambouillet (caso o jornalista
104 de trabalho. Mas, como vimos, a arte de Warhol era
enaltecedora e patriótica. Ele era um liberal, simpá-
soubesse dessa história). Pelo que sei, depois da se-
gunda exposição na Stable Gallery, Warhol nunca
105
tico aos democratas, que desejava – como declarou mais trabalhou em esculturas; a edição de 1970 da
certa vez a um de seus colaboradores – ser capaz de Brillo Box era pré-fabricada, assim como as Nuvens
ser republicano, mas não conseguia virar a casaca. prateadas que formaram, ao lado do papel de pa-
Em 1972, Warhol imprimiu um cartaz em serigrafia rede com a gravura de uma vaca, sua primeira mos-
mostrando Nixon com um rosto esverdeado assusta- tra na Castelli Gallery. Em 1965, Warhol decidiu
dor. Na margem inferior, ele escreveu a frase: “Vote “aposentar-se” da pintura. Seu ímpeto criador havia
em McGovern” – o adversário democrata de Nixon se voltado principalmente para o cinema e a televi-
nas eleições presidenciais daquele ano. Warhol doou são. A Silver Factory transformou-se num estúdio
a renda da comercialização do pôster ao Partido cinematográfico.
Democrata; o cartaz vendeu tanto que o artista se No início da década de 60, Warhol encantou-se
tornou o maior doador individual do partido. As com o florescente, embora um tanto primitivo, movi-
consequências foram as sucessivas auditorias reali- mento do “cinema underground” de Nova York. Seus
primeiros filmes registravam gente comum realizando
1 Alexander J. Motyl, Who Killed Andrei Warhol?. Santa Ana: atividades básicas da vida – comer, dormir, cortar o
Seven Locks, 2007, p. 49. cabelo, fumar, beber e fazer sexo. Esses temas podem
ser vistos como uma continuidade dos objetos de peculiar de trabalho artístico de Picasso, que consis-
suas antigas pinturas – latas de sopa, portas contra tia numa figura, geralmente um homem, a observar
tempestades, geladeiras, embalagens de mercado –, uma mulher dormindo. Steinberg refere-se a essas
o corriqueiro e cotidiano, o que todo mundo faz em figuras como sleepwatchers,2 ou seja, um tipo espe­
todos os lugares na maior parte do tempo. Tudo era cial de voyeur. “O artista deve ter sabido desde o
interessante, nada era mais interessante que qual- começo que o tema era antigo”, escreveu Steinberg.
quer outra coisa. O puro fascínio pelo que todos co- “Cenas de ninfas dormindo observadas por machos
nhecem bastava para justificar filmes de qualquer em vigília – relacionadas à visão e ao desejo – são
duração, em que nada de mais empolgante acontecia parte da grande tradição da arte, na Antiguidade
do que o registro do ato em um rolo de filme. Desde e, novamente, a partir do Renascimento.” 3 Não sei
o princípio, além disso, a Silver Factory tornara-se se fizeram gravuras underground mostrando um
uma espécie de “espaço cênico” – um lugar onde as amante gay a observar o sono do outro. Giorno fez
106 pessoas chegavam de repente e se integravam ao que
estava acontecendo. Um lugar sem dúvida muito
questão de dormir numa época em que a maioria
das pessoas, especialmente os usuários de anfeta-
107
mais aberto e livre que qualquer ateliê de arte da minas, tentava sobreviver com o mínimo de sono
época. Trabalhava-se, é claro, mas muitas outras possível. Mas a existência da tradição que Stein-
coisas aconteciam lá além de trabalho. A atividade berg assinalou sugere que observar o sono do outro
cinematográfica de Warhol já estava bem adiantada tem a ver, se não com o amor, certamente com sexo.
quando ele iniciou o projeto das caixas de supermer- Giorno publi­cou um relato bastante franco sobre os
cado, e não se pode negar que o glamour dos filmes bastidores do filme. Ele e Warhol eram namorados,
representava um forte atrativo para gente bonita e Giorno faz questão de explicar que os dois se ama-
especialmente talentosa. O primeiro filme de Andy, vam – Andy chegou até a apresentá-lo à sua mãe!
Sleep [Sono] foi um presente, por assim dizer, ao seu Mas a relação sexual entre eles era difícil porque
namorado da época, o poeta John Giorno. A ideia era
que o filme transformaria Giorno num astro do ci-
nema. Assim, desde o começo, fazer filmes teve para 2 Literalmente “observadores de sono”. [n.t.]
3 Leo Steinberg, Other Criteria: Confrontations with Twentieth-
Warhol o sentido de um ato de amor.
-Century Art. Oxford: Oxford University Press, 1972, p. 95
O historiador da arte Leo Steinberg escreveu [ed. bras.: Outros critérios: confrontos com a arte do século xx,
certa vez um interessante ensaio sobre um gênero trad. Célia Euvaldo. São Paulo: Cosac Naify, 2008].
Giorno achava Warhol fisicamente pouco atraente. decano do cinema underground dos anos 60 em Nova
“Acontece que ele era feio, ele sabia disso, e ninguém York. Mekas tinha publicado um still de uma cena do
quer comprometer sua própria reputação”.4 As mu- filme na revista Film Culture, e organizou uma pre-
lheres são menos exigentes nesses aspectos que os mière mundial “num velho cinema caindo aos peda-
gays masculinos, mas Giorno era bondoso, e eles ços, perto da prefeitura.”5 Rodando em câmera lenta,
acharam um jeito de contornar os obstáculos es- numa velocidade de dezesseis quadros por minuto, a
téticos. “Eu fazia porque ele queria muito. Ele era projeção de Sleep leva cinco horas e 26 minutos, de
patético, e eu o amava muito.” Enfim, Andy era um modo que a maioria das pessoas que assistiu ao filme
sleepwatcher. Giorno conta que, às vezes, ao acordar deve ter visto no máximo alguns fragmentos, de dife-
de um sono profundo depois de uma noite de be- rentes durações, com tomadas do corpo do persona-
bedeira, deparava-se com Andy olhando para ele. E, gem dormindo.
quando perguntava o que ele estava fazendo, Andy Nenhum dos filmes silenciosos de Warhol, cha-
108 respondia: “Assistindo você dormir!”.
Andy começou a filmar Sleep em agosto de 1963.
mados de “minimalistas”, contém muita coisa para
ver, nem mesmo Boquete, de 1964, que mostra o
109
A filmagem levou um mês, sobretudo porque ele não rosto de um belo e anônimo rapaz recebendo sexo oral
sabia usar a câmera Bolex, um tanto primitiva, que de alguém que está fora da tela. De modo que o título
havia comprado. Gastou milhares de rolos de filmes parece ser propaganda falsa ou pelo menos enganosa.
de quatro minutos, mas não sabia montá-los. No O filme era muito comprido, apesar do curto tempo
fim, Warhol, como de costume, resolveu “aproveitar que subsistiu, e quase provocou tumulto quando
tudo”. Ele tinha feito a mesma coisa com fotos tiradas foi exibido em 1966 na Universidade de Colúm­bia,
em cabines de foto automática, como se mostrar o junto com um show da banda de rock de Warhol,
mesmo rosto em muitas expressões o poupasse da Velvet Underground. A plateia de estudantes se
necessidade de escolher, e de certa forma, o permi- impacientou e começou a vaiar, assoviar e entoar o
tisse se apossar da pessoa inteira. Giorno descreveu refrão zombeteiro: “Ele não vai gozar nunca!”. “Nós
uma projeção especial de Sleep para Jonas Mekas, pensávamos que os estudantes seriam nossos alia-
dos”, me disse Gerard Malanga. Andy estava na plateia
preparando-se para dizer algumas palavras depois
4 John Giorno, “Andy Warhol’s Movie Sleep”, in You Got to Burn
to Shine: New and Selected Writings. Londres/ Nova York:
High Risk/ Serpent’s Tail, 1994, p. 132. 5 Id., ibid., p. 142.
da exibição, mas foi embora em silêncio quando a um soldado, justiça é “ajudar os amigos e prejudicar
algazarra começou. os inimigos”. Estabelecidas as definições, buscam-se
A obra-prima desse gênero de filme é, sem dúvida, as exceções, e, em seguida, maneiras de tapar os bura-
Empire, de 1964, que dura pouco mais de oito horas, cos abertos na definição pela existência das exceções.
com o mínimo de incidentes e um único ator – o pró- Meu interesse básico sempre foi a definição de arte, e
prio edifício do Empire State, filmado de uma janela foi por isso que a Brillo Box de Warhol me pareceu tão
do Rockefeller Center com uma filmadora Auricon –, importante. Nada que ela tivesse em comum com o
e mostra uma vista ininterrupta do prédio, rolo após objeto comercial, as prosaicas embalagens de Brillo
rolo, colados na ordem exata da exposição. Trata-se, a dos mercados, podia explicar o que a tornava arte, por
meu ver, de uma obra-prima filosófica quase tão pro- mais que fossem exatamente iguais. Em outras pala-
funda quanto a Brillo Box. Explico-me. Desde tempos vras, poderíamos perguntar de que é feita a essência
remotos, os filósofos têm se dedicado a analisar con- da arte, mas o desafio era explicar por que a caixa de
110 ceitos, o que significa que se ocupam da busca de de-
terminados tipos de definições. Os grandes diá­logos
Warhol era arte e seus similares não eram.
Suponhamos que alguém nos pergunte de que
111
escritos por Platão e protagonizados por seu herói, consiste a essência dos “retratos em movimento”
Sócrates, que tentam clarificar o signifi­cado de um [moving pictures].6 A resposta não pode estar no
conceito contestado, são exemplos da busca de fato de serem feitos de imagens, porque os stills de
definições que põe à prova ideias como as de justiça, Cindy Sherman, como seus primorosos Untitled
verdade, conhecimento, beleza, amizade e coragem. Film Stills [Stills cinematográficos sem título], tam-
Os diálogos nunca são travados com um intuito bém o são. Mas alguém poderia acrescentar: as ima-
lexicográfico, mas visam uma melhor compreensão do gens se movem. Ocorre que, na verdade, as imagens
uso da linguagem na formulação das distinções que no filme Empire não se movem nem um milímetro!
fazemos. Os interlocutores de Sócrates nos diálogos De fato, se projetarmos cenas de Empire em duas
geralmente formulam definições que refletem suas
posições na vida. Em A república, um ancião, Céfalo, 6 Moving pictures – literalmente, retratos em movimento –
define a justiça como “falar a verdade e cumprir as era a expressão popularmente usada nos Estados Unidos, na
época do cinematógrafo, final do século xix, para designar a
promessas” – exatamente o que, na opinião de um em-
projeção de uma série de instantâneos de objetos numa su-
presário, é suficiente para que o considerem um cessão rápida e intermitente de modo a produzir a ilusão de
homem honesto. Para o filho de Céfalo, Polimarco, cenas em movimento. [n.t.]
telas separadas, na primeira, o filme inteiro e, na nutos. O “roteiro” de Palmer, naturalmente, exigia
segunda, um still do mesmo filme, as imagens se- tomadas panorâmicas, mas, depois de enquadrado o
riam tão idênticas quanto a Brillo Box é igualzinha a edifício, Andy insistiu que não se fizesse nada além
uma caixa de esponjas Brillo! Lembro-me de um dia de trocar os rolos de filme. O herói era o edifício, não
em que estava assistindo a uma projeção de Empire a câmera. Nada devia acontecer no filme além do que
no Whitney Museum, e ouvi um homem perguntar acontecia no edifício. “Após o dramático primeiro rolo,
quando é que o filme ia começar. Só que o filme já no qual o sol se põe e subitamente os refletores exter-
estava rodando havia quinze minutos! Olhando com nos que iluminam o prédio são ligados, a única ação
muita atenção, até poderíamos ver bolhas e arra- é o ocasional pisca-pisca das luzes até que, no penúl-
nhões. Assim, pode-se dizer que num “retrato em timo rolo, os refletores são novamente desligados.” A
movimento” não é a imagem que se move, mas é autora desse relato é Callie Angell, principal estudiosa
uma tira de celuloide que se move. Warhol andava da produção cinematográfica de Warhol.7
112 em busca da essência das coisas, e raciocinou intuiti-
vamente, como Sócrates ou seus companheiros, pro-
Entre os filmes de Warhol, há cerca de trezentos
chamados Testes de câmera que ele começou a fazer
113
pondo definições e testando-as. Em Empire, Warhol em 1964; foram esses testes que lentamente muda-
mostrou que, num “retrato em movimento”, nada ram a demografia em seu estúdio The Factory. Andy
no retrato tem de se mover. Na verdade, somente convidava pessoas para fazerem o teste quando as
num retrato em movimento é que uma coisa pode re- achava interessantes ou atraentes o bastante. Muitos
almente ficar parada. Afinal, ninguém que olhe para se saíram bem no ambiente do estúdio e passaram a
uma foto do Empire State Building vai perguntar: ser frequentadores assíduos, alguns se integraram às
“Por que não está se movendo?”. equipes de apoio ou viraram atores, e alguns destes se
A despeito de sua duração épica, poucos frequen- tornaram “superstars”, designação que Andy copiou do
tadores da Factory participaram da filmagem de Em- cineasta de vanguarda Jack Smith. Mas isso não quer
pire: Warhol, Gerard Malanga, John Palmer – que deu dizer que Warhol não sabia contar uma história, como
a ideia de fazer um retrato do Empire State Building –, alegam certos críticos. Quando ele usava um conteúdo
Jonas Mekas e mais uma ou duas pessoas. Andy tinha narrativo, como em Cowboys Solitários, de 1967, por
alugado a câmera Auricon, um equipamento muito
mais desenvolvido que a Bolex, e usou rolos de filmes 7 Callie Angell, “Andy Warhol, Filmmaker”, in The Andy Warhol
que rodavam durante 35 minutos, não só quatro mi- Museum. Pittsburgh: The Museum, 1994, p. 126.
exemplo, começava com uma situação – um grupo de S&H Green Stamps,8 as Notas de dólar, a série Morte
caubóis numa fazenda que pertencia a uma mulher, e desastre. Nesse ano, durante a exposição de suas
interpretada por Viva. Os caubóis se entregam a jo- pinturas de Flores na Sonnabend Gallery, em Paris,
gos violentos, alguns de natureza sexual – beliscam os Warhol anunciou que ia “aposentar-se” da pintura:
mamilos uns dos outros ou ameaçam marcar um deles “Eu sabia que tinha de descobrir coisas novas e di-
a ferro quente. Em certo momento, há uma sugestão, ferentes”. Seu projeto era dedicar-se integralmente à
bastante convincente, de uma curra da personagem de realização de filmes. É claro que as gravuras e pintu-
Viva. Mas nesse momento começa a surgir uma espécie ras continuariam a ser produzidas, no mínimo como
de intimidade entre os rapazes, e há até uma cena de meio de obter recursos para financiar a atividade
amor entre “Ramona” – nome da personagem interpre- cinematográfica, mas os filmes, e mais tarde os ví-
tada por Viva – e um dos caubóis, que é uma tentativa deos, fizeram essas produções artísticas tradicionais
de demonstrar ternura, ainda que infrutífera. A cena parecerem limitadas: “Ninguém pode mostrar mais
114 em que eles se despem sob um caramanchão verde me
parece realmente muito bonita, e Viva, apesar de sua
nada com a pintura, pelo menos não como é possível
fazer no cinema”, declarou Warhol. Essa afirmação
115
ridícula diatribe contra usar calças, parece uma deusa parece um tanto irônica em face dos feitos lendários de
maneirista de Correggio. Quando perguntaram a Wa- Warhol como cineasta: filmes de duração incomum,
rhol o que ele achava do festival de seus filmes que de- com um nível próximo a zero de incidentes – retratos
via ocorrer no Whitney Museum nos anos 80, ele disse em movimento onde nada se move.
que seus filmes eram sempre muito mais comentados Esses filmes sem precedentes fortaleceram os ím-
que vistos. Mas as emoções reveladas pelo menos em petos vanguardistas de Warhol, mas não caracteriza-
Cowboys Solitários eram muito mais humanas e pro- vam inteiramente suas ambições como cineasta. Ele
fundas que os sentimentos estereotipados do caubói não se contentava em ficar na vanguarda da experi-
típico de Hollywood. O filme é mais que uma paródia mentação conceitual sobre os fundamentos da arte.
gay, como é descrito na literatura crítica. Aspirava ao tipo de glamour e ao êxito comercial im-
Em 1965, Warhol já tinha feito a maior parte dos
trabalhos em que se baseia sua fama – as Latas de
8 S&H Green Stamps eram cupons de desconto distribuídos aos
sopa Campbell, as Brillo Box, as pinturas Faça você
consumidores pelo comércio varejista, operados pela com­
mesmo (Flores), as Marilyn, as Jackie Kennedy, as panhia Sperry and Hutchinson desde o final do século xix,
Liz Taylor, as Mona Lisa; as litografias coloridas dos e muito populares nos anos 60. [n.t.]
plícito nos grandes sucessos de Hollywood, e pouco tenção de eliminar todo e qualquer vestígio da mão
a pouco a organização da produção na Factory foi ou do olhar do artista. Os vanguardistas de meados
reconfigurada para refletir as diferenças entre fazer dos anos 60 eram herdeiros de Marcel Duchamp,
imagens para exibição e vendas em galerias de arte – para quem a arte devia consistir “acima de tudo em
por um tempo, ele chegou a pensar em vender seus esquecer completamente a mão”. A imagem que co-
Testes de câmera como “retratos em movimento” – e nhecemos de Warhol focalizando uma câmera fixada
fazer filmes para distribuição em cinemas comerciais. sobre um tripé, e deixando-a rodar sem interrupção,
Por volta de 1966, quando o filme Garotas do Chelsea é emblemática de sua estética austera. Ele chegava
já rendera a Warhol um grande sucesso, a transfor- a se afastar da câmera, como vimos nos Testes de
mação da Factory já estava mais ou menos completa. câmera, deixando a pessoa se virar. Vincent Fremont,
Sem perder sua identidade boêmia, o estúdio se tor- o companheiro mais próximo de Warhol na tarefa
nara uma máquina admiravelmente eficiente de pro- de torná-lo um artista de tv, teria declarado que o
116 duzir filmes que certos públicos, pelo menos, estavam
dispostos a pagar para assistir.
desejo de Warhol era que a filmadora rodasse perma-
nentemente. Como se para ele o vídeo ideal fosse uma
117
Warhol começava a ser reconhecido como reali­ fita gerada por uma câmera de vigilância a registrar
zador de filmes – em 1964, ele recebeu o prêmio de indiscriminadamente qualquer coisa que passasse
cinema independente da revista Film Culture – e gra- pela frente das lentes. Warhol, famoso por declarar
ças a essa percepção um empresário resolveu empres- que gostava de coisas tediosas, parecia às vezes bus-
tar-lhe uma câmera portátil de vídeo, para que ele car uma arte totalmente mecânica da qual o artista
fizesse experiências. O que Warhol inventou não foi desa­parecesse em benefício do registro permanente
excepcionalmente diferente do que pessoas comuns de tudo o que acontecia no mundo exterior. Era a
estavam acostumadas a fazer em casa com sua câ- forma de arte perfeita para alguém que, como ele,
mera de vídeo – filmar amigos e parentes em diversas era fascinado pelo mundo da vida cotidiana, exata-
atividades. Warhol filmou alguns personagens para mente como ele é. Sua única tentativa de “escrever”
os quais a Factory se tornara quase um lar – Edie um romance – A: A Novel [A: Um romance] – foi
Sedgwick, Ondine, Billy Name. Em harmonia com o a transcrição do material gravado em fita magné-
espírito de vanguarda de seus antigos filmes, esses tica de 24 horas na vida de Ondine, de um humor
primeiros vídeos foram realizados no formato usual e um sarcasmo tão extraordinários que mereceu ser
da produção caseira, visto que compartilhavam da in- preservado. O “romance” deixa o leitor tão perplexo
quanto uma página do Finnegan’s Wake, de James levavam glamour ao estúdio, como Mick Jagger, David
Joyce. Mas a gravação não foi inventada. Os inciden- Bowie, Dennis Hopper, Yves Saint-Laurent, entre ou-
tes não são planejados. A prosa é sem graça. Parece tros. Callie Angell descreve esse ambiente como “uma
mais uma entrevista em que os “ahams” e “uhuns” são cena social extraordinária” em que “um número cada
mantidos. Qualquer tentativa de editar as falas seria vez maior de visitantes ligados a setores cada vez mais
uma violação das intenções do “autor”. Dificilmente numerosos de círculos da arte passavam para ver Wa-
serviria como programa de televisão comercialmente rhol, e, em muitos casos, aparecer nos filmes”.10 Como
ambicioso, como pretendia Warhol. Discutirei On- os primeiros filmes, Os diários da Factory não são
dine no próximo capítulo. editados ou dirigidos. Pessoas de maior ou menor in-
Em 1971, Warhol adquiriu um sistema de vídeo teresse eram filmadas fazendo nada de especial. “Nada
mais avançado – um Sony Portapack – e anunciou, se- de especial” é, por sinal, o título que Warhol sugeriu
gundo Bob Colacello, diretor da revista Interview, que para um de seus primeiros programas de televisão.
118 ia “entrar para o ramo da televisão”.9 Interpretaram
essa frase como significando que Warhol pretendia
A televisão definia cada vez mais as ambições ar-
tísticas de Warhol. “Meus filmes têm sido preparados
119
“usá-la como um meio de experimentar ideias para o para a televisão. A tv é tudo o que há de novo. Nada
cinema”. No entanto, ao longo dos anos 70, ele conti- de livros ou de cinema, só a televisão.” Os diários da
nuou a empregar o vídeo como sempre fizera – trans- Factory não parecem ser toda essa novi­dade no pa-
formando os frequentadores da Factory em objetos norama geral da obra do artista, mas, paralelamente
dos seus filmes e, em certo sentido, em “estrelas”. Entre à filmagem dos habitués do estúdio e de celebrida-
1971 e 1978, fez uma série de fitas de vídeo, intitula- des de fora, Warhol estava à procura de um formato
das Os diários da Factory, material não editado, ainda mais viável para a televisão além do que a câmera
dentro do espírito minimalista dos vídeos caseiros so- de vigilância podia proporcionar. Somente nos anos
bre pessoas que buscavam definir para si mesmas no- 80 é que seu trabalho começou a aproximar-se da
vas identidades no ambiente da Factory – os travestis qualidade profissional dos comerciais de tv, algo
Candy Darling e Jackie Curtis, Brigid Berlin, Lou Reed, que seus filmes jamais conseguiram. Os filmes de
Ultra Violet, Viva, bem como outros personagens que Warhol, mesmo os mais benfeitos, têm o inerradicá-
vel aspecto improvisado e desalinhado da vanguarda
9 Bob Colacello, Holy Terror: Andy Warhol Close Up. Nova
York: Harper Collins, 1990, p. 61. 10 C. Angell, op. cit., p. 128.
dos anos 60. Mas isso indica de certo modo que os dado para uma participação especial em The Love
programas de Warhol têm muito mais semelhança Boat,11 em 1985. O simples fato de que Andy Warhol
com a televisão comercial que suas obras artísticas apareceria na tela foi motivo para as pessoas presta-
mais conhecidas. Contudo, em alguns aspectos im- rem atenção no programa, esperando ver o que ele ia
portantes a televisão de Warhol é muito coerente dizer ou fazer. A maioria, porém, se sentiria mortal-
com sua obra anterior. mente entediada com filmes como Empire. Mas o fato
Só os espectadores mais dedicados se dispunham de que alguém tivesse feito um filme desses não era
a ficar sentados assistindo a toda a monótona proje- absolutamente tedioso. Poucos se interessam em con-
ção do Empire, de 1964. Se o filme fosse televisionado, templar uma lata de sopa. Mas o fato de um artista ter
o espectador comum talvez imaginasse que o canal pintado um objeto esteticamente tão pouco promissor
estava sofrendo problemas técnicos de transmis- era fascinante. Warhol sabia que era um objeto de fas-
são. Sair no meio de filmes maçantes envolve certo cinação. Mas ele deve ter tido um momento de com­
120 esforço físico, mas mudar de canal é muito simples
quando o programa aborrece. Não se pode esperar
preensão quando decidiu montar programas de tele-
visão em torno de si mesmo. Em suas primeiras
121
que o público de televisão goste de entediar-se. O canal experiências com vídeo, ele ficava de fora da ação,
preocupado com o sucesso comercial precisa prender como diretor. Mas sua televisão se tornou interessante
a atenção dos espectadores, que têm interesses in- quando ele passou a estar dentro da ação, como estrela.
constantes e nenhuma tolerância ao tédio. Ele precisa O problema restante era descobrir o que acrescentar
atrair públicos que conhecem pouco as vanguardas e à ação para dar mais interesse aos programas como
se interessam menos ainda por suas inquietações. entretenimento. A resposta óbvia era mostrar pessoas
Warhol compreendeu uma parte dessa verdade tão interessantes quanto ele. Tudo o que Warhol pre-
projetando sua própria imagem ao público no final da cisava fazer era cercar-se de celebridades que ele
década de 60. Mesmo hoje, ele é provavelmente o próprio estaria interessado em assistir quando não
único artista norte-americano cujo rosto todo mundo estivesse interessado em cultivar o tédio.
reconhece em nossa sociedade. Suas frases são ampla- Vincent Fremont conta que o amigo levou esse pro-
mente citadas, e pessoas muito pouco informadas so- jeto muito a sério. Em determinado momento, eles
bre a arte contemporânea são capazes de reconhecer
instantaneamente suas obras. Todos reconheceram 11 Série de televisão, famosa nas décadas de 1970 e 1980, em que
“o famoso artista Andy Warhol” quando ele foi convi- os episódios se passam durante um cruzeiro marítimo. [n.t.]
produziram o vídeo Fight [Briga], no qual Brigid moda, cheias de imagens dos belos e famosos, que nos
Berlin e Charles Rydell discutem. Brigas de casais são estimulam a ficar folheando as páginas para ver o que
comuns num certo gênero de sitcom, e é claro que foi está na página seguinte (e enquanto isso olhamos os
ideia de Warhol reduzir seu programa a esse único anúncios). Esse mundo é, para citar uma expressão
incidente. Depois, tentou combinar a briga com um de Shakespeare, um “cortejo insubstancial”, e, em-
jantar de que participariam convidados interessantes bora se possa compilar uma antologia dos momentos
– uma óbvia fusão, por assim dizer, de sitcom com um memoráveis de vários programas, é justamente por
talk show, ou programa de entrevistas. O resultado, na fazer parte desse “cortejo” que a fama é transitória
opinião de Bob Colacello, “ficou demasiado amorfo e (dura “quinze minutos”), logo o brilho cede lugar ao
amadorístico para ser viável”.12 Warhol chegou à con- novo objeto brilhante. As estrelas brilham e se extin-
clusão de que ele e seus companheiros teriam de voltar guem; há infinitos espetáculos, fascinantes de ver e
ao começo e realmente aprender como produzir para difíceis de lembrar. Mas Warhol, sempre presente,
122 a televisão de modo profissional. Até investiu na com-
pra de uma caríssima câmera de televisão. Em 1979,
dava continuidade à sua televisão.
Warhol morreu em 1987, deixando em aberto a
123
Warhol descobriu o formato que, com pequenas dife- pergunta de até onde sua Andy Warhol tv Produc-
renças, caracterizaria seus esforços televisivos durante tions poderia ter ido. É sempre difícil predizer a
toda a década seguinte, culminando com o programa trajetória criativa de um artista, quanto mais a de
Quinze minutos de Andy Warhol, exibido de 1985 a um artista de tamanha originalidade como Warhol;
1987. No programa, ele recebia celebridades que con- mas há certa coerência em sua obra, qualquer que
tavam ao público o que as havia tornado famosas. Ele tenha sido o meio com que ele trabalhou. Seu tema
concretizou assim sua fantasia de ser celebridade era a consciência comum de sua época – o mundo da
num mundo de celebridades – o mundo da moda, das vida cotidiana, como denominam os fenomenólogo
estrelas da arte, da música e da beleza, e dos lugares o mundo em que estamos em casa. Warhol mostra
onde elas brilhavam: as discotecas e os clubes notur- o que toda pessoa que faz parte deste mundo já sabe
nos que todo mundo desejava conhecer: o Mudd sem que lhe tenham de dizer o que está vendo. As ce-
Club, o Tunnel, o Studio 54. Warhol produziu progra- lebridades são um compo­nente importante de nossa
mas que continham algo do brilho das revistas de consciência comum, e por isso ele pintou Marilyn e
Liz e Jackie e Elvis. Ele os teria filmado caso tivessem
12 B. Colacello, op. cit., p. 145. ido à Factory, assim como filmou astros e estrelas que
por acaso passaram por lá. Todo mundo se interessa já estava longe do que fizera sozinho com uma câmera
pelas estrelas. Por isso seus programas de televisão Norelco 1 em 1965. Seus programas tinham alcançado
teriam interesse, bastando-lhe fazer pouco mais que um nível de qualidade que justificava que fossem in-
mostrá-los, incluindo, é claro, ele mesmo. Warhol seridos na grade de programação da mtv. Mas os re-
era obcecado pelo glamour, pela beleza, pelas festas, cursos de produção da Factory provavelmente eram
compras, e por sexo. Há um episódio memorável em demasiado limitados para ir muito mais longe que
que sua cabeça rola para longe do corpo (uma das isso, ou mesmo sustentar uma temporada inteira de
coisas que a pintura não pode mostrar). A cabeça sem programas. Para tal, era preciso mais dinheiro, tal-
corpo diz: “Divirta-se em todas as festas!” – frase que vez muito mais dinheiro. Só que essa exigência expôs
podia ser sua mensagem de despedida para o mundo. Warhol a um fator com que ele não contava ao selar
É inegável que ser produtor de tv e anfitrião de seu um acordo faustiano para fazer tv comercial: a inter-
próprio programa proporcionou-lhe acesso a todas ferência em suas decisões artísticas de pessoas sobre
124 essas coisas. Warhol parece ter conhecido de dentro
o que todo mundo gostaria de ver.
as quais ele não tinha nenhum controle.
Há uma esclarecedora passagem no livro de Cola-
125
Mas para fazer o tipo de programa que o grande cello, Holy Terror [Santo terror], memórias da vivên-
público realmente gostaria de ver era preciso muita cia do autor na Factory. Estava marcada uma reunião
tecnologia. E isso impôs certo limite à capacidade entre Warhol e Lorne Michaels, o “inventor” do Satur-
de expansão da atividade televisiva de Warhol. É in- day Night Live. Michaels estava muito animado com
teressante comparar a relação dos créditos de seus as perspectivas da tv de Warhol. Ofereceu financia­
primeiros vídeos com os do Quinze minutos de Andy mento para a elaboração do projeto e uma vaga na
Warhol. De início, havia apenas Warhol e Fremont. programação do horário nobre de sábado à noite.
Em 1979, quando os programas começaram a tomar “Eles poderiam fazer tudo o que quisessem. Ele os
uma feição mais profissional, Don Monroe entrou na protegeria das críticas dos chefões da rede às ideias
equipe como diretor. Já os créditos de Quinze minu- mais experimentais.” Warhol não disse uma só palavra,
tos de Andy Warhol, além de Warhol, Fremont e Mon- e Vincent Fremont logo percebeu que a oferta não iria
roe, mencionavam uma equipe inteira de produção: adiante. “Warhol não tolerava nenhuma forma de
gerente, coordenador e assistentes de produção, edi- paternalismo. Apesar da fachada passiva, ele fazia
tores, artistas gráficos, pesquisadores musicais, com- questão de estar no controle.” Sua “fachada passiva”
positores, assim como as estrelas convidadas. Warhol era uma forma de exercer controle. A Andy Warhol
5 a p∏imei∏a mo∏te 5 a p∏imei∏a mo∏te 5 a p∏imei∏a mo∏te 5 a p∏imei∏a
tv Productions tinha de ser essencialmente uma re-
alização de seu estúdio, a Factory. Só faria progra-
mas de tv enquanto não precisasse envolver mais
ninguém na integridade de sua arte. Nesse aspecto,

mo∏te 5 a p∏imei∏a mo∏te 5 a p∏imei∏a mo∏te 5 a p∏imei∏a mo∏te 5 a


a Factory, como estúdio de televisão, não era muito,
diferente da Factory como ateliê de arte ou cinema.
E é isso que faz da tv de Warhol tão singular e tão
completamente expressiva dele próprio. Ele foi o

p∏imei∏a mo∏te 5 a p∏imei∏a mo∏te 5 a p∏imei∏a mo∏te 5 a p∏imei∏a mo∏


mais longe que pôde na televisão comercial sem
abrir mão de sua autonomia. Os programas realiza-
dos por Warhol refletem duas ordens distintas de
imperativos: a ordem do entretenimento comercial
126 5 a p∏imei∏a mo∏te 5 a p∏imei∏a mo∏te 5 a p∏imei∏a mo∏te 5 a p∏imei∏a
e a ordem de um artista visceralmente independente,
que só prestava contas a si mesmo.
127
A história da vida na cidade de Nova York é a his-
tória dos seus imóveis que, por isso mesmo, são um
tema narrativo tão apaixonante quanto o amor: a
história de onde vivemos ou poderíamos ter vivido
é tão fascinante quanto o relato de como conhece-
mos a pessoa com quem vivemos – ou não vivemos
mais. Esse é o ponto de partida do primoroso livro
de contos de Tama Janowitz, Escravos de Nova York,
ironicamente narrado na primeira pessoa por uma
moradora de downtown, um pouco mais velha que
um desalentado pintor cujo nome fictício é Stash –
seu nome na vida real é Ronnie Cutrone, assistente
de ateliê de Andy Warhol entre 1972 e 1982 –, um
dos tantos tipos que parasitavam a Silver Factory
desde 1965. Considerando a dependência de Wa- fazer no final da década seguinte, quando Andy, na
rhol das ideias do grupo que o cercava, Cutrone de- condição de locatário, foi comunicado de que deve-
sempenhou um papel importante na última fase da ria desocupar o local porque o prédio da velha Sil-
carreira do artista. Se Stash for um bom retrato de ver Factory estava programado para ser demolido
Cutrone, a situação de Eleanor, “a escrava de Nova e substituído por um moderno edifício de aparta-
York”, não era nada fácil, não só porque o contrato mentos. Cobrir o ateliê de tinta prateada combinava
de locação do lugar onde moravam estava em nome com a cultura jovem dos seus frequentadores, com a
dele, como porque o amante era um mulherengo, música que ouviam, com o tipo de drogas que usa-
sempre de olho nas gatas. Na história, Eleanor está vam, com sua promiscuidade ou ansiedade sexual,
completamente quebrada – toda a sua “criatividade” inclusive com sua linguagem – para citar a máxima
consiste em inventar chapéus para freguesas do East de Wittgenstein de que imaginar uma linguagem
Village –, e ainda por cima ela vive sob a constante é imaginar uma forma de viver. O espaço “era um
128 ameaça de não ter onde morar, a não ser que conti-
nue a contar com a benevolência do volúvel Stash.
testemunho” intrinsecamente ligado à arte que lá se
fazia, especialmente os filmes underground. Pintar
129
Fossem ou não verdadeiras essas histórias de Nova a Factory de tinta prateada foi uma ideia de Billy
York nos anos 70, o fato é que elas continham uma Linich – apelidado de “Billy Name” –, que já havia
metáfora que todo nova-iorquino entendia. Se um usado essa cor para pintar seu apartamento quando
morador de Nova York, mulher ou homem, casado lhe deram anfetamina para tirá-lo de um estado de
ou solteiro, não fosse ele próprio titular de um con- torpor persistente que lhe roubara toda a energia.
trato de locação, tornava-se praticamente escravo do Foi Andy quem propôs a Billy, tempos depois, de
locatário com quem vivia. pintar seu novo ateliê com a mesma cor; e também
A história de uma locação comercial já é menos foi ele quem interpretou da seguinte maneira o que
dolorosa. Só que a “cultura” de um espaço comercial essa cor representava: “Era o momento perfeito para
depende mais do que faz o imóvel existir de verdade a cor prata. Prata era o futuro […] os astronautas
que de sua mera realidade arquitetônica. Pratear a vestiam roupas prateadas. E prata também era o
Silver Factory foi uma expressão material do espí- passado – a cor metálica das telas de cinema – das
rito da vida artística da Nova York de meados dos atrizes de Hollywood fotografadas em cenários pra-
anos 60, um espírito que não sobreviveu à mudança teados”. Prata era a cor do Surfista Prateado e das
que as Andy Warhol Enterprises foram obrigadas a louras platinadas da época do art déco.
Linich era o único que morava no estúdio – apos- tadores habituais da Silver Factory possuía o brilho
sara-se do banheiro, que também usava como câmara necessário para alcançar esse status. Quase todos
escura para revelar seus registros fotográficos da vida eram lindos e jovens de certo talento que lhes per-
na Factory. É significativo que, dos dois auxiliares mitia sonhar com o estrelato, gente recrutada para
mais próximos de Warhol, Malanga recebia um sa- a Factory por Malanga ou Linich, ou pelo próprio
lário, ainda que pequeno, e Name ganhava apenas Warhol, que identificava lampejos de talento nas
o necessário para cobrir despesas miúdas. Malanga baladas noturnas que frequentava.
era um homem maduro, assalariado, associado ao Billy Name fez uma aparição no especial de televi-
processo fotográfico da confecção de serigrafias e são de quatro horas produzido por Ric Burns e levado
à produção em série das caixas de mercado; as am- ao ar em 2006, no qual declara, às gargalhadas, que
bições de Billy Name, todavia, eram as de um eterno tinha sido responsável pela entrada da downtown na
adolescente que ainda morava com os pais, ajudava Silver Factory. Billy havia chegado a Nova York no
130 nas tarefas de casa e sobrevivia com uma mesada
para necessidades pessoais.
final dos anos 50 – um rapaz bonito, moreno e magro,
atraído pelas livrarias e por certo tipo de boemia gay
131
A maior parte dos que usavam a Silver Factory na qual fez amizades e procurou encontrar protetores.
como seu “clube” não morava lá. Ou moravam com Entrou para um grupo que se tornou conhecido pelo
os pais e iam passar o tempo na Silver Factory, ou nome de The Mole People,1 alcunha que eles também
eram ricos e levavam uma vida independente e usavam entre si – jovens de talento, usuários de anfe-
sofisticada. Mas todos acreditavam no tipo de vida tamina, admiradores de ópera, de estilo de vida bem
que a Silver Factory simbolizava, a vida de liber- anárquico, dotados de um humor rude e mordaz, de
dade com pitadas da permissividade que a boemia vida sexual livre e aberta, e uma dedicação a apron-
pregava. Muitos eram celebridades. Na primavera tar confusão. O “papa” do Mole People era Bob Olivo,
de 1965, um amigo de Andy promoveu uma festa conhecido na Factory pelo nome de Ondine; era um
para as pessoas mais bonitas da cidade, os Beau- inspirado monologuista e muito habilidoso na arte
tiful People à qual Judy Garland, Rudolf Nureiev,
Tennessee Williams e Montgomery Clift compa-
1 Mole People é o apelido dado aos numerosos sem-teto que
receram como convidados especiais. Nessa época,
vivem nos subterrâneos das grandes metrópoles, como Nova
Andy era, ele próprio, um dos Beautiful People – York, usando os túneis abandonados do metrô. A palavra
uma estrela e um ícone. Mas nenhum dos frequen- mole significa toupeira. [n.t.]
do lip-sync;2 de personalidade bizarra e extrema- ople, então eu me afastei até que, uma noite, Ronnie
mente original. me convidou para ficar doidona com eles. Ronnie era
Em suas memórias, Swimming Underground: My um sujeito bonito, que parecia ser careta mas era um
Years in the Warhol Factory [Nadando underground: homossexual completamente louco por anfetamina,
Meus anos na Factory], Mary Woronov faz um retrato cujo sobrenome era Vile [vil], caso alguém se confun-
de Ondine e dos Mole People: disse com seu jeitão simpático. Ele disse que durante
os últimos sete dias os Moles tinham se trancado num
Ondine era um furacão – fiquei eletrizada e assustada, apartamento da uptown, na região norte de Manhat-
apesar de saber que eu estava num parque de diver- tan, fazendo colares, e eu só pensava que eles deviam
sões. As salas envelheciam quando ele as deixava, e ter uma droga poderosa para manter aquele bando
depois de conversar com ele, não conseguia suportar todo enfiando continhas durante uma semana. Mas
uma conversa normal. Comecei a sair muito para es- a verdadeira razão pela qual eu entrei no táxi com o

132 tar perto dele, ia a bares gays, às festas mais malucas.


Eu era destemida, e era uma questão de tempo até que
Ronnie foi porque ele disse que o Ondine estaria lá.3
133
eu fosse apresentada ao círculo extremamente restrito Durante aquela noite, Woronov, uma atriz e escritora,
de pessoas que cercava Warhol na época da Silver Fac- com certa dose de sadismo e inquestionável coragem,
tory na 47 th Street: os Mole People. “Mole” porque só foi enfim capturada pela perpétua Noite de Walpurgis
eram vistos à noite usando óculos escuros, e tinham que era a realidade dos Moles. Finalmente, ela saiu
uma palidez que era provavelmente causada por anos da festa, e foi para casa. “Mas eu não era bem-vinda.
a fio vivendo em subterrâneos. “Mole” porque sabia-se Eu tinha mudado. Não havia sinais exteriores, mas
que eles estavam abrindo um fosso para uma insani- eu sabia. Não eram mais eles, éramos nós. As regras
dade da qual ninguém além desse círculo íntimo ti- deles eram as minhas, a insanidade deles era a minha
nha consciência. Alguns dos Great White Moles eram realidade, e o resto do mundo não importava. Eu era
Ondine, o Papa; Rotten Rita, o traficante; Orion, o uma Mole.”  4
bruxo; e, naturalmente, Billy Name, o protetor da
Factory […] Drella me avisou para evitar os Mole Pe-
3 Mary Woronov, Swimming Underground: My Years in the
Warhol Factory. Londres: High Risk/ Serpent’s Tail, 1995,
2 Sincronização do movimento dos lábios com a voz gravada. pp. 62-63.
[n.t.] 4 Id, ibid. p. 72.
Andy ficou tão fascinado com o estilo de humor de isto é, transmitir uma sensação do humor de Ondine.
Ondine que o perseguiu com um gravador durante Comparem o A com a voz de “lui” na obra magistral
24 horas na tentativa de guardar tudo o que ele dis- de Diderot, O sobri­nho de Rameau, que sabe que tem
sesse nesse intervalo de tempo. Pelo menos foi o que talento mas não é um gênio como o tio, embora nin-
admitiu. É possível identificar mediante um trabalho guém, muito menos o tio, pudesse imitar o estilo de
de investigação textual a verdadeira data, da mesma linguagem delirante do sobrinho, que Hegel trans-
forma que se descobriu que o dia 16 de junho de 1904 creve numa passagem da Fenomenologia do espírito:
é o Bloomsday, isto é, as verdadeiras 24 horas vivi-
das por Leopold Bloom, o herói de James Joyce. Mas Esse discurso é [como] a extravagância do músico
é claro que Joyce não escreveu o livro em 24 horas que “amontoava e misturava trinta árias, – italianas,
corridas. Warhol queria que o dele fosse “um livro francesas, trágicas, cômicas, − de todo tipo. Ora com
ruim”, assim como é de supor que quisesse que seus voz grave descia até às profundezas, ora esganiçando

134 filmes fossem “filmes ruins”, que suas pinturas fossem


“pinturas ruins”, conforme as críticas iniciais. Quando
falsetes rasgava a altura dos ares, adotando tons su-
cessivos: furioso, calmo, imperioso e brincalhão […]
135
recebeu a transcrição das fitas, elas estavam cheias uma mixórdia de sabedoria e loucura, uma mescla de
de erros e descontinuidades, mas, por coerência, ele sagacidade e baixeza, de ideias tanto corretas como
resolveu publicar como estava, dizendo: “Está fan- falsas: uma inversão completa de sentimento: tanto
tástico. Está ótimo!”. E de certa forma é fantástico descaramento completo, quanto total franqueza e
e ótimo: de fato, há uma recusa em distinguir o que verdade.” 5
as pessoas dizem dos ruídos ambientais que a grava-
ção pegou e que até foram transcritos. Como “Cha- A: A Novel só foi publicado em 1968. Mas, de certo
coalho, gorgolejo, tinido, retintim./ Clique, pausa, modo, ficamos com a impressão de que o espírito da
clique, campainha/ Discar, discar” – que é como o fracassada experiência de Warhol está na base da dia-
livro começa. Só que estes são nomes de ruídos, não tribe de Willem de Kooning (que confessou estar bê-
os ruídos em si, que poderíamos ouvir se escutásse- bado) numa festa em 1969: “Você é um assassino da
mos as fitas. O livro pode ser considerado literatura arte, é um assassino da beleza e é um assassino do riso.
de vanguarda (o enorme “A” no começo do livro visa
lembrar o leitor de uma peculiaridade tipográfica 5 Georg Wilhelm Friedrich Hegel, Fenomenologia do espírito.
do Ulisses). Mas não realiza o que Warhol pretendia, [1807] Petrópolis: Vozes, 1992, p. 55.
Detesto seu trabalho”.6 Mesmo que se considere A: A de vanguarda de Warhol, como Haircut [Corte de ca-
Novel uma demonstração filosófica de que a literatura belo], enquanto Billy Name cortava o cabelo de uma
de vanguarda, conforme praticada por um gravador pessoa no primeiro plano, não era glória suficiente
de cassete, seja impossível, ele conseguiu matar o riso. para alguém que tinha uma imagem tão grandiosa de
Afinal, Joyce não disse que Finnegan’s Wake foi es- si mesmo. No fundo, o mundo se resumia a ele.
crito para o riso da humanidade? E os vários biógra- Vendo-o dançar desvairadamente no balcão de um
fos de Warhol nos permitem ter uma boa percepção restaurante, um amigo levou-o para casa. Fred Herko
do humor de Ondine. Na página 190 de A: A Novel, tomou banho, depois atravessou uma janela aberta
temos uma amostra do talento de Ondine como con- no quinto andar de um prédio dançando ao som da
tador de histórias. Mas é uma agonia ler tudo. Um dos Missa da Coroação, de Mozart: afinal, ele voou. Há
episódios de Garotas do Chelsea acompanha Ondine um famoso comentário posterior de Andy Warhol,
em uma explosão de raiva que fez dele um superstar. em que ele diz que gostaria de ter filmado o salto para
136 Era impossível ser um Mole sem pagar um preço,
simplesmente porque era impossível sobreviver às
a morte de Fred Herko. A alma e a mente de Herko
tinham se engajado totalmente na ocupação que
137
custas das drogas sem pagar um preço. Principal- define um Mole, fazer colares. Todo mundo sabia que,
mente no caso da anfetamina, que dá ao usuário a na pauta de valores da Silver Factory, ele tinha feito a
sensação de não precisar comer ou dormir. O Beauti- escolha certa.
ful Freddy Herko, um dançarino, foi um exemplo das Um pouco mais velha e tão maníaca quanto um
tendências dos Moles: ele tinha um imenso senso da Mole, embora, talvez, velha demais para ser uma
própria grandeza, mas dotes limitados. Ondine des- Mole, era Dorothy Podber, que o grupo considerava
creve-o como “uma estrela total, que joga com o es- um gênio. “Tenho sido má a vida toda. Jogar sujo é
paço e o tempo, e com sua plateia, e joga com tudo o minha especialidade.” Warhol queria que ela atuasse
que diz respeito àquela coisa insignificante chamada em um filme. Em vez disso, Dorothy montou uma
vanguarda. Mas isso não bastava para Freddy Herko. espécie de happening, coroamento de sua vida que
Ele queria muito mais. Queria ser visto. Fred Herko durou até 2008, quando faleceu. Ela apareceu um
desejava voar”. Executar números de dança minima- dia na Silver Factory usando calças de couro e ócu-
mente coreografados no segundo plano de um filme los escuros, na companhia de seu cão dinamarquês.
Warhol estava dirigindo um filme e muito atarefado
6 V. Bockris, op. cit., p. 320. para falar com ela. Contam que Podber perguntou se
ela podia tirar algumas fotos, e Warhol concordou. Compreendi que era apenas uma questão de sorte
Ela então sacou uma pistola prateada da cintura e nada de terrível ter acontencido a nenhum de nós an-
atirou numa pilha de retratos de Marilyn Monroe, tes disso. Sempre fui fascinado por pessoas malucas
acertando bem no meio dos olhos. Warhol as exibiu porque eram tão criativas – simplesmente não conse-
depois como Shot Marilyns, mas Dorothy Podber guiam fazer as coisas de maneira normal. Geralmente
tornou-se persona non grata na Silver Factory desde não machucavam ninguém, só eram perturbados; mas
então. O episódio marcou a vida dela e foi citado com como saber agora quem é quem?7
destaque em seu obituário em 2008.
Valerie Solanas, que tentou matar Warhol, não A teórica feminista, Ti-Grace Atkinson, que na época
tinha a personalidade típica dos Moles. Sua loucura (3 de junho de 1968) era presidente da Organização
era de outra ordem. A nova Factory – que não era Nacional de Mulheres (now), estava convencida de
mais a Silver Factory, pois a decoração platinada já que nenhuma mulher era intrinsecamente louca.
138 era coisa do passado – pretendia alijar o tipo de pes-
soa exemplificada pelo grupo dos Moles. Em 1968,
Se uma mulher agia de modo louco, isso se devia a
algu­ma coisa que um homem lhe tinha feito. É a ver-
139
a administração tinha mudado. Era formada agora são feminista da explicação liberal do crime: que o ser
por Fred Hughes, que vendia os trabalhos de Warhol humano é induzido a se tornar criminoso por circuns-
por um preço mais próximo dos de mercado, e cui- tâncias econômicas externas. Anos depois, ela disse,
dava de arrumar encomendas de retratos a fim de ironicamente, que Valerie Solanas lhe tinha ensinado a
financiar os filmes de Andy, e por Paul Morrissey, pensar o oposto. Valerie era realmente louca de pedra.
que mais ou menos assumiu a direção dos filmes e Solanas era uma mulher instruída. Formou-se
lhes deu uma orientação mais narrativa, começando em psicologia pela Universidade de Maryland, onde
por My Hustler. Gerard Malanga caíra em desgraça, desenvolveu a opinião de que os homens têm um de-
e Billy Name estava cada vez mais marginalizado, feito genético, porque carecem de um cromossomo
não se sabendo muito bem qual era sua função na essencial. Ela foi, ou acreditava ter sido, molestada
Factory, agora que o prateado, real e simbolicamente, sexualmente pelo pai, que praticava sexo oral nela
pertenciam ao passado. Os dias do Mole People tinham quando ela era criança. Teve um filho quando estava
quase acabado, para lástima de Andy após a tenta- no ensino médio.
tiva de assassinato:
7 Id., ibid., p. 306.
Steven Watson, que escreveu Factory-Made: Warhol Valerie de fato atuou com notável humor, e certa vul-
and the Sixties [Feito na Factory: Warhol e os anos garidade. Isso, no entanto, não eliminou o ressenti-
60], obteve seu boletim escolar dessa época, que es- mento de Valerie, e ela insistiu nas exigências de que
tava cheio de elogios ao vigor e capacidade intelectual o roteiro, provavelmente perdido, lhe fosse devolvido.
de Solanas. Parece estranho, mas as ideias de Valerie No dia 3 de junho, ela tomou a decisão de punir Wa-
não eram muito diferentes das de Ti-Grace Atkinson: rhol. Esperou sua chegada à nova Factory, subiu no
os homens eram defeituosos, as mulheres não. Sola- elevador com ele, toda maquiada e vestindo um pe-
nas fundou uma sociedade chamada scum, um acrô- sado casaco de lã, com um revólver em cada bolso.
nimo de “Society for Cutting Up Men” [literalmente, É claro que o casaco pesado servia para disfarçar as
Associação para Destroçar os Homens].8 Em um ma- armas mais do que para chamar a atenção para si
nifesto que só foi divulgado depois que ela se tornou mesma, o que, aliás, acabou acontecendo. (Um sus-
celebridade, Solanas explica com base na genética peito de atentado a bomba no metrô de Londres foi
140 que a sociedade só poderia ser boa se os homens fos-
sem eliminados. (Essa não era, é claro, a posição de
morto exatamente por usar um casaco pesado demais
para a estação do ano!)
141
Atkinson.) Era lésbica e ganhava a vida posando com Na Factory, ninguém achava que Valerie metia
outras mulheres em cenas de sexo. medo, confirmando assim a opinião de Warhol de
A história de sua ligação com Andy Warhol já foi que, via de regra, gente maluca não fazia mal aos ou-
contada várias vezes. Em 1967, ela telefonou para tros. Na opinião de qualquer pessoa de bom senso,
Andy, oferecendo-lhe um roteiro para um filme in- Valerie era apenas uma chata. E ela não fez amea-
titulado Up Your Ass [No seu rabo], que se revelou, ças, não deu nenhum aviso, simplesmente puxou o
até mesmo para ele, sórdido demais. Na verdade, gatilho, errou o primeiro tiro, mas acertou duas balas
Warhol imaginou que ela fosse uma agente policial no corpo de Warhol quando ele buscou refúgio de-
tentando pegá-lo numa armadilha. Depois, parece baixo de sua mesa. Valerie atirou também em Mario
que ele acabou perdendo o roteiro. Solanas vivia im- Amayo, profissional da arte, que morava parte do ano
portunando Warhol com pedidos de dinheiro. Em em Londres, e hesitou se devia ou não atirar em Fred
resposta, ele ofereceu remunerá-la para representar Hughes. O elevador chegou e Hughes disse: “Aí está o
um papel em seu novo filme, Eu, um homem, no qual elevador. Vá embora!”. Valerie obedeceu, foi embora
deixando atrás de si um caos completo nos escritórios
8 “Scum” significa, em inglês, ralé ou escória. [n.t.] da Factory, e uma grande incerteza sobre se Warhol
conseguiria sobreviver. Ela se entregou às sete horas e pela grande retratista Alice Neel. Bob Kennedy foi
da noite a um guarda de trânsito. Disse que havia assassinado na mesma noite da denúncia de Vale-
atirado em Andy Warhol porque ele tinha controle rie, retirando o caso de Warhol das primeiras pá-
demais sobre a vida dela. ginas dos jornais. Foram os assassinatos – Martin
Na audiência de instrução e julgamento, Solanas Luther King tinha sido mortalmente ferido no dia 4
recebeu elogios de importantes líderes feministas de abril – que deram ao mundo a impressão de que
como Atkinson, que a qualificou de “proeminente tudo estava desmoronando em 1968. As mortes e as
defensora dos direitos das mulheres”. Atkinson rebeliões estudantis em Nova York e Paris ocorre-
provinha da aristocracia sulista e sabia se compor- ram em abril e maio.
tar nas altas-rodas. Betty Friedan achava que tinha Warhol passou boa parte de sua convalescença edi-
deixado em boas mãos a filial nova-iorquina da now tando o filme Cowboys Solitários. É uma ironia que
quando conseguiu elegê-la presidente. Atkinson era John Schlesinger – ganhador do Oscar por Perdidos
142 uma revolucionária feminista de maneiras elegantes.
Por isso, Friedan se surpreendeu ao ler no New York
na noite – tenha se apropriado de algumas ideias de
Warhol em seu filme, principalmente na romantização
143
Times que Atkinson, falando em nome da filial da do vigarista, inclusive a incorporação do que se pode-
organização, defendeu Solanas no tribunal. Valerie ria chamar de “festa à la Warhol” e o aproveitamento
nunca expressou arrependimento e chegou a pedir como atores de alguns dos frequentadores da Factory:
que Warhol lhe pagasse 20 mil dólares por seus es- Viva, por exemplo, fez o papel de uma cineasta under-
critos. Ela passou o resto da vida entrando e saindo ground; Morrissey criou uma paródia underground de
da prisão e de hospitais psiquiátricos, mas sempre Perdidos na noite em torno de um vigarista, e chamou
disse que faria tudo outra vez. o filme de tributo a John Ford. Em um momento cor-
Warhol estava morto – clinicamente morto – até dial, havia um diálogo entre o cinema underground
que foi ressuscitado por massagens. A bala que So- e o cinema de Hollywood, que no final tinha algum
lanas atirou não poderia ter sido mais danosa: o tiro significado para quem é do ramo, mas não levou a
entrou pelo lado direito do corpo de Andy, atraves- nada, mesmo porque o movimento do cinema under-
sou-lhe os pulmões, ricocheteou pela garganta, vesí- ground já estava em baixa.
cula, fígado, baço e intestinos, e deixou um enorme Não surpreende que tal experiência tenha dei-
buraco do lado esquerdo. Há imagens famosas mos- xado Warhol muito abalado. É verdade que temia
trando suas cicatrizes, tiradas por Richard Avedon topar com Valerie nas ruas. Ele afirmou de maneira
pungente que nunca tinha sentido medo antes, mas pondo que os leitores sabiam de quem o jornal estava
agora não tinha certeza de estar realmente vivo de- falando e quisessem comprar um exemplar para saber
pois de sobreviver à morte. “Não consigo dizer ‘alô’ detalhes. Isso não aconteceria com nenhum outro ar-
ou ‘tchau’ a uma pessoa. A vida é como um sonho.” 9 tista nos Estados Unidos. Os leitores do Post sabiam
Estava proibido de tomar Obitrol, um supressor de que ele era o sujeito que tinha pintado Latas de sopa
apetite que era um composto moderado de anfeta- Campbell. Para o público, mesmo que ele tivesse de-
mina. Se é possível tomar o abandono das drogas sistido da pintura, continuava a ser um pintor. O fato
nesse momento de sua vida como uma explicação, a de agora fazer filmes em vez de quadros queria di-
verdade é que muitos concordam que o atentado de zer que era um artista que fazia filmes. Warhol tinha
Valerie Solanas marcou uma mudança profunda em ampliado o conceito de artista para uma pessoa que
sua atividade artística. Warhol tornou-se uma pessoa não limitava seu produto a um meio em particular.
diferente depois de morrer, para definir a situação Não se diria uma coisa dessas sobre nenhum outro
144 de modo um tanto surrealista. Todavia, é impossível
afirmar que grau de importância um consumo leve
artista americano; ele reinventou o conceito de ar-
tista como uma pessoa dotada da liberdade de usar
145
de anfetaminas entre 1961 e 1968 teve para a arte qualquer meio de expressão que se lhe apresentasse.
de Warhol. Como todo mundo usava anfetaminas Até os artistas mais criativos levavam uma vida bem
naquela época, pode-se dizer que a Era de Warhol mais convencional que a dele. Warhol continuava
é a “Era da Anfetamina”? Não ajuda dizer que ele pensando que, pelo menos para ele, a pintura fazia
consumiu tão pouco e fez tantas coisas – ou talvez parte de uma fase encerrada de sua vida, sem que isso
sim. Billy Name tomava doses diluídas da droga e o significasse que ele tinha deixado de ser artista. Con-
que isso lhe fez de bom? Subtraindo as anfetaminas, tinuava a ser artista de outras maneiras – um artista
permanece a diferença entre Warhol, um gênio, e que não pintava mais. Isso não significava, porém,
Billy Name, um tolo. que ele estivesse satisfeito com a sua posição como
Vale a pena perguntar quantos outros artistas afirmou Leo Castelli referindo-se a Warhol. Apenas
norte-americanos teriam chegado às manchetes da significava que o sentimento de satisfação não fazia
mídia se tivessem levado um tiro. O New York Post parte de ser artista como ele o definia.
informou que “Andy Warhol luta pela vida”, pressu- Em 1970, Warhol considerou a ideia de organi-
zar uma exposição retrospectiva itinerante de suas
9 V. Bockris, op. cit., p. 311. obras, sob curadoria de John Coplans, do Pasadena
Art Museum. O trajeto deveria terminar no Whitney Tivemos aquela aula de desenho organizada por
Museum of Art na primavera de 1971. A retrospectiva Allan Hacklin. Cheguei atrasado. A aula tinha come-
devia excluir explicitamente o que Donna di Salvo de- çado por volta de nove ou dez horas da manhã, mas
signou de “Pop pintado à mão”, que incluía a obra da só pude chegar às onze. Entrei no ateliê, e estava todo
década anterior exibida na vitrine da loja Bonwit Tel- mundo nu. Verdade! Estava todo mundo nu. Metade
ler. Warhol queria que só fossem incluídas as séries, das pessoas estava coberta de tinta. Rolavam pelo
como as latas de sopa e as caixas de supermercado, chão sobre folhas de papel que haviam cortado de um
os retratos de ícones e as imagens de catástrofes e, rolo. As duas modelos estavam sentadas num canto,
finalmente, as pinturas de flores. Como se ele fosse, absolutamente imóveis, mortas de tédio. Os outros
afinal de contas, o que disse que desejava ser – uma jogavam tinta para todos os lados e tinham escalado
máquina, uma máquina que não produzisse obras o telhado e se atirado dentro de baldes de tinta. Um
singulares, mas exclusivamente séries. Se era assim, completo zoológico.10

146 o que fazer agora? De certo modo, Warhol parece


ter percebido que os anos 60 tinham acabado e que De fato, as escolas de arte dos Estados Unidos ti-
147
a nova década começava com uma espécie de vazio. nham parado de ensinar habilidades específicas.
Para ser justo, é preciso dizer que ninguém parecia O pressuposto era que cabia aos próprios alunos
saber o que fazer em seguida. A pintura estava em afirmar que gênero de artista desejavam ser. E de-
apuros, como as pessoas gostavam de dizer. Eric Fischl, viam aprender o que fosse necessário para concreti-
que em 1970 estudava na Cal Arts, recorda-se de que zar suas ideias de arte. A avaliação crítica do grupo
os professores olhavam para os alunos para ver aonde substituía os cursos de formação: o aluno defendia
a arte se dirigia e o que deveria ser. O desenho, por seu trabalho em andamento numa espécie de reu-
exemplo, era objeto de desdém, embora não se tivesse nião de conscientização. Qualquer coisa era aceita
clareza do que haveria de substituí-lo. Fischl descre- desde que o aluno a justificasse numa reunião de
veu da seguinte maneira a atmosfera da escola de arte avaliação – qualquer coisa exceto pinturas, que a
mais avançada da época: década impugnava tal como Warhol tinha feito em
1965, e que parecia não satisfazer às necessidades de
Era por volta de 1970, o pináculo das delirantes ideias uma nova geração de artistas formada, em maioria,
liberais sobre educação e autoaperfeiçoamento. Faça
suas próprias coisas. Nada de regras. Nada de história. 10 Donald Kuspit, Fischl. Nova York: Vintage, 1987, p. 33.
por mulheres para as quais a pintura se associava situação com ousadia, como lutadores nus no giná-
ao forte machismo criado pela cultura expressionista sio. A arte não tinha lugar na vida.
abstrata. A viúva de Jackson Pollock, Lee Krasner, A crescente presença das mulheres na arte depois
ela própria uma eminente figura daquele movimento, dos anos 70 não foi o único fator de complicação nes-
afirmou, no fim de sua carreira, segundo sua crítica, ses anos. Os vários grupos étnicos e raciais também
Anne Wagner: “Sou um produto dessa civilização e pressionaram para obter o reconhecimento de suas
pode-se dizer que toda essa cultura e civilização é expressões artísticas pelas instituições definidoras do
machista”. A confissão tem a forma lógica de um en- mundo da arte, especialmente os museus. O multicul-
timema: uma premissa maior e uma premissa menor, turalismo diversificou o currículo da história da arte
com uma con­clusão omitida, isto é, “Eu, apesar de e a programação das exposições de museus e galerias
mulher, sou machista”. Como se ela precisasse ser comerciais. O mundo da arte estava se transformando
machista para sobreviver como pintora. Nos anos de uma forma que dificilmente seria reconhecível nos
148 70, as mulheres absolutamente não se sentiam assim.
Importante exposição de artistas do sexo feminino,
anos 60, muito menos na década anterior, quando o
expressionismo abstrato reinava soberano. A questão
149
realizada em meados da década de 80, cujo subtítulo não estava numa ausência de lógica, mas na contesta-
era “Mulheres artistas entram no mainstream”, deixa ção ponto a ponto da lógica da arte e da compreensão
claro que o mainstream estava sendo reconstruído da arte conforme se ampliava cada vez mais o leque
de modo a adaptar-se melhor ao que se pensava ser do permissível. Em 1960, o grande crítico Clement
uma sensibilidade feminina. Na exposição de Lee Greenberg publicou um importante artigo intitulado
Krasner que Barbara Rose organizou no moma em “A pintura modernista”. Sua tese era que cada arte es-
meados dos anos 80, havia fotografias de suas pin- tava começando a interrogar o que era essencial no
turas no espaço doméstico, entre plantas e colchas meio que a define. Greenberg afirmou que a pintura
decorativas. Mas, no museu, as pinturas estavam nos estava se tornando cada vez mais pura, no sentido de
hediondos cubos brancos de suas implacáveis gale- ser cada vez mais fiel à sua essência. Mas na década
rias, como se uma exposição fosse uma arena e a arte de 70 ocorreu justamente o inverso. Uma espécie de
passasse por uma via crucis, um rito de passagem, “impureza” começou a dominar a produção artística.
que as pinturas tinham de ser capazes de resistir. E, quanto a isso, Warhol revelou-se extremamente
O curador de pintura, William Rubin, chegou a tirar avançado. Ele foi o primeiro artista contemporâneo a
as molduras dos quadros! Eles tinham de encarar a considerar o papel de parede como produto artístico
legítimo. Em suas Nuvens prateadas, ele foi o pri- -artes. Mas quando a sucessão de invenções revolu-
meiro a usar escultura inflável. Nada poderia ser mais cionárias de Duchamp, Warhol e Beuys mostrou que
heterogêneo que o espetáculo Exploding Plastic Ine- qualquer coisa podia ser arte, aos poucos foi se tor-
vitable, que juntou música, dança, cinema, tudo mis- nando claro que não havia razão alguma para excluir
turado e em altíssimos decibéis. A pintura parecia ser a pintura; no mundo pluralista atual, excluir pinturas
uma atividade inteiramente retrógrada para alguém de grandes exposições, como fez a Bienal do Whitney
que era o emblema da arte avançada. E, se Warhol Museum, não me parece ser mais que um capricho
voltasse a pintar, teria de ser alguma coisa com um da curadoria. As guerras contra a pintura acabaram,
sentido diferente do que a pintura havia significado e a questão que resta é saber por que foram tão furio­
até em sua obra incrivelmente heterogênea. sas. Warhol continuou a fazer filmes durante toda a
Uma vez que a maioria das pessoas pensa na pin- década de 70 e, em 1972, repentinamente voltou à
tura de cavalete quando pensa em arte, não deixa de pintura quando começou a série de retratos de Mao
150 ser curioso que esse gênero de pintura tenha sido
considerado obsoleto pelas vanguardas em boa parte
Tse-Tung, reproduzidos em grandes quantidades e
diversos tamanhos.
151
da era moderna. “A pintura esgotou-se”, declarou Em fevereiro de 1972, Mao Tse-Tung incentivou o
Duchamp aos colegas Ferdinand Léger e Constan- presidente Nixon a visitar a China, iniciativa que foi
tin Brancusi durante uma exposição aeronáutica considerada mundialmente um passo para a disten-
em Paris, em 1911, onde admiravam uma hélice de são da Guerra Fria. Somente uma pessoa com sólida
avião: “Você pode pintar uma coisa tão linda quanto reputação anticomunista teria ousado encetar essa
esta?”. Após a Revolução Russa, muitos pintores so- viagem, e Nixon tem o mérito por esse excepcional
viéticos indagaram sobre o papel que lhes caberia de- gesto de ousadia. Warhol pintou retratos dessas duas
sempenhar na nova sociedade, já que a pintura fora figuras históricas. Nixon aparece com a pele esverde-
considerada inadequada. Os muralistas mexicanos ada e dentes caninos, e na margem inferior pode-se
desaprovavam a pintura de cavelete e optaram pelos ler a frase: “Vote McGovern”. As pinturas de Mao, ao
enormes muros pintados com mensagens heroicas contrário, têm uma saudável afabilidade e se baseiam
dirigidas ao povo. No início da década de 80, impor- numa imagem conhecidíssima – o rosto usado no
tantes críticos do mundo da arte nova-iorquino pro- frontispício do Livro Vermelho das máximas do líder
clamaram a morte da pintura e da instituição em que chinês. Warhol modificou a imagem que serviu de
era basicamente reverenciada, os museus de belas- base, para dar a impressão de que Mao está usando
batom e sombra de olhos, como uma rainha raivosa, Entretanto, é impossível determinar se a intenção
me parece. Warhol foi muitas vezes retratado como era que os retratos de Mao o mostrassem usando real­
um travesti nas fotos de Chris Mako, e, numa inter- mente batom, ou se é apenas um maneirismo de
venção jocosa citada na biografia de Victor Bockris, Warhol nesse gênero de pintura. Minha impressão
disse que o batom para homens e mulheres é um dos é que ele efetivamente não entendia por que os ho-
direitos reclamados em seu filme A revolta das mu- mens não têm o direito de pintar o rosto para pare-
lheres, protagonizado por três importantes travestis cerem mais bonitos do que a natureza os fez, como
da Silver Factory: Holly Woodlawn, Candy Darling e as mulheres – e como ele mesmo reclamava o direito
Jackie Curtis. de fazer, usando maquiagem para sair.
Andy tinha uma concepção profunda da condição Assim como nas pinturas de Flores, Warhol fez re-
do travesti: tratos de Mao de todos os tamanhos e preços, de modo
que todo mundo podia comprar um quadro de Mao,
152 Entre outras coisas, as drag queens são arquivos ambu-
lantes da condição feminina da estrela de cinema ideal.
dentro dos limites dos seus recursos, inclusive os qua-
tro gigantescos Maos, de cerca de cinco por quatro me-
153
Sou fascinado por meninos que passam a vida inteira tros, tão impressionantes a ponto de causarem forte
tentando ser meninas completas, porque eles têm de tra- emoção num comício na Praça da Paz Celestial. No
balhar arduamente – o dobro do tempo – para se livrar momento em que escrevo este livro, o último dos retra-
de todos os reveladores sinais masculinos e trazer para tos gigantescos de Mao que se encontra em mãos de
si todos os sinais femininos. Não estou dizendo que isso particulares foi enviado a um leilão em Hong Kong,
não seja autodestrutivo e produza o resultado oposto ao onde se especula que possa render 120 milhões de dóla­
esperado, e não estou dizendo que esta talvez não seja res, superando o Desastre de carro verde, que foi arre-
a coisa mais absurda que um homem pode fazer com matado por 80 milhões de dólares em 2007. Mas Wa-
sua vida. O que estou dizendo é que é uma tarefa árdua rhol também fez retratos de Mao em dimensões
assemelhar-se ao oposto do modo como a natureza o fez, pequenas e médias, e estampou rolos de papel de pa-
e depois virar uma imitação do que não passou de uma rede com imagens repetidas do presidente da China. O
fantasia de mulher, desde o início.11 rosto de Mao não foi apenas transposto da serigrafia
para painéis: Warhol deu vida à superfície das telas
11 Andy Warhol e Pat Hackett, popism: The Warhol ’60s. San com pinceladas espontâneas para que parecessem arte
Diego: Harcourt Brace Jovanovich, 1990, pp. 317-18. pop – e eram – pintada à mão.
A transformação foi espantosa. Warhol conseguiu que ele e Malanga fizeram centenas de caixas de su-
desintoxicar uma das imagens políticas mais assus- permercado. Mas a riqueza e a diversidade de cores
tadoras da época. Antes de Warhol apropriar-se do e a irônica impulsividade das pinceladas eram uma
rosto do presidente Mao, pôr um retrato dele na pa- preparação para o estilo de retrato que viria a se tor-
rede não era apenas uma manifestação de atitude nar a marca de suas representações pictóricas das ce-
política – era fazer uma profissão de fé. Nenhuma lebridades, e daqueles que desejavam parecer-se com
instituição dos Estados Unidos ousaria enfrentar a celebridades. Há espaço para pesquisas sérias sobre
suspeita da subversão implícita ao pendurar um re- a evolução do gênero do retrato em Warhol, que por
trato do mais poderoso líder radical da China. Seria alguns anos sustentou financeiramente a Factory em
o mesmo que colocar um retrato de Karl Marx ou sua terceira e última fase, quando potenciais com-
de Josef Stálin. Warhol transformou aquela imagem pradores eram convidados a almoçar no restaurante
tão aterradora em algo inócuo e decorativo. Qualquer da Andy Warhol Enterprises, depois que a etapa de
154 um podia pendurar na parede um presidente Mao,
ou dez, sem medo de ofender a ninguém, ou de su-
estúdio cinematográfica chegou ao fim. A causa do
encerramento da produção de filmes foi a impossibi-
155
gerir que tivesse ideias perigosas e revolucionárias. lidade de Warhol e seus sócios receberem o dinheiro
Imaginemos um jovem estudante, empolgado com decorrente do surpreendente sucesso comercial de
as ideias dos Guardas Vermelhos da China, trazendo uma refilmagem abominável de Frankenstein, em
para casa um pôster do presidente Mao para pôr em 1973. Recentemente, comparei o estilo de retrato de
seu quarto, enquanto os pais lhe mostram um novo Warhol com o de Francesco Clemente, que também
Warhol – um retrato afável do presidente chinês so- pintava celebridades. Por mais que admire Warhol
bre a lareira, ao lado de uma das latas de sopa de como artista, não consigo imaginá-lo interessando-
Andy, numa sala de estar cujas paredes fossem co- -se pela interioridade, que é a razão de Clemente para
bertas de papel de parede verde e roxo com ilustração fazer o retrato de uma pessoa. Ele era um mestre e
de cabeças de vaca! Andy tinha um pequeno Mao na até certo ponto servo da reprodução mecânica, que
mesa de cabeceira em sua residência da 66th Street, estaria perdido, eu diria, sem a intermediação de
próximo à Madison Avenue. um instrumento de reprodução. Clemente, ao con-
Warhol criou cerca de 2 mil retratos de Mao Tse- trário, declarou: “Eu nunca pinto um retrato a par-
-Tung, devolvendo à Factory o ritmo de produção de tir da fotografia, porque a fotografia não me oferece
massa que distinguiu o ateliê no breve período em suficiente informação sobre o que a pessoa sente”.
Pode-se dizer que Warhol interpôs a câmera entre si gem da fotografia. As formas coloridas semiarbitrá-
e o modelo justamente porque só lhe interessava a rias que Warhol usa para marcar os traços essenciais
superfície. “Quando você senta durante uma hora e do rosto de um modelo também não correspondem
meia diante de alguém”, observou Clemente, “ele ou a nenhum recurso fotográfico, antes de tudo porque
ela revelam cerca de vinte faces. Então é uma busca não têm correspondência alguma com um elemento
louca por Qual Face? Qual delas é a tal?” Para ser real do rosto da pessoa. Isso explica a magnitude
franco, eu acho que Warhol responderia: “Todas elas”, dos retratos de Mao Tse-Tung. Será que eles nos di-
e se recusaria a escolher. Seus testes de câmera, suas zem alguma coisa que Warhol intuiu sobre o tirano?
séries de fotos geradas em máquinas automáticas Que ele pintava o cabelo ou usava batom para ficar
eram estratégias mecânicas para não fazer escolhas. mais fotogênico?
Mas Clemente, um homem que conhece o mundo, Essas perguntas não se aplicam à outra imagem
descobre meios de dar visualidade ao que sabe sobre que Warhol desintoxicou, o emblema comunista da
156 uma pessoa além do que seus olhos veem. Ele traduz
seu conhecimento em inflexões visuais, apresentando
foice e do martelo cruzados, um símbolo que qualquer
um pensaria vinte vezes antes de exibir na vitrine de
157
aspectos da pessoa que não podem ser fotografados. sua loja. Andy expôs as versões da Foice e martelo na
Poucos retratos na arte moderna se comparam ao seu Castelli Gallery em janeiro de 1977 e, posteriormente,
maravilhoso Princesa Gloria von Thurn und Taxis. na Daniel Templon Gallery, em Paris; todas as pintu-
A mulher de nome comprido nos olha, desafiadora, ras foram vendidas. No entanto, o emblema já era co-
com sua deslumbrante gargantilha de pedras precio- mum nos grafites de Paris, onde o Partido Comunista
sas agressivamente presa ao pescoço, os olhos arden- era forte, ao contrário de Nova York, onde era visto
tes acentuados pelos tons esverdeados e rosados que como um símbolo incendiário, uma ameaça assus-
Clemente usou para representar sua pele. O retrato é tadora para uma população que, no auge da Guerra
modulado pelas descobertas estilísticas independen- Fria, estava convencida de que o comunismo visava
tes de Schiele, Beckmann e Matisse, sem ser de modo destruir os valores dos norte-americanos e tudo o que
algum redutível a nenhum deles. Só essa pintura bas- eles defendiam. É verdade que, nos Estados Unidos, a
taria para reconhecer Clemente como um artista de exposição teve lugar no Soho e não em Omaha, mas
grande estatura e potência. Os recursos que ele uti- não se viram protestos nem manifestações agressivas.
liza para criar uma imagem verdadeira da princesa Dez anos antes, expor o símbolo comunista seria uma
Gloria não têm correspondência alguma na lingua- provocação tão grande quanto mostrar um Jesus de
plástico flutuando na urina do artista em Richmond, geiros para colaborar nesse esforço. Eu mesmo fui
Virginia. Na verdade, a exposição transcorreu como convidado a dar aulas sobre arte contemporânea em
qualquer outro evento no Soho daquela época. Andy Teerã, mas o retorno do aiatolá adiou a proposta por
tinha visto o símbolo comunista na Itália, onde o ar- tempo indeterminado. Alguns capitalistas italianos
tista pop era quase um herói da esquerda. Em 1975, ele eram comunistas – Gianni Agnelli até comprou uma
realizou uma mostra em Ferrara, reunindo uma série pintura da Foice e martelo na Daniel Templon Gallery.
de pinturas cujo tema eram travestis negros e hispâ- Nesse meio-tempo, no Soho, estavam todos encanta-
nicos, e os críticos ligados à esquerda elogiaram esses dos: Paulette Goddard pensou em mandar fazer um
trabalhos como uma denúncia “do cruel racismo do broche, se bem que uma coisa era mandar fazê-lo a
capitalismo americano”, que não deixa escolha aos ne- partir da pintura de Andy, outra muito diferente seria
gros pobres e hispânicos senão se prostituírem como ter uma comum e simples foice e martelo. O interes-
travestis. Na verdade, Senhoras e senhores, o título da sante é que esse emblema já estava morto e enterrado
158 série, glamorizou o tema, em conformidade com a cul-
tura do mundo do travesti; Warhol usou faixas de cor
nos Estados Unidos, ao contrário da suástica que até
hoje desperta ódio e arrepios pelos que o envergam.
159
como colagens – o que dificilmente bate com as inten- Isso não quer dizer, é claro, que o símbolo da foice e
ções políticas atribuídas à obra. Inda­gado por jornalis- do martelo tenha perdido força em outros lugares do
tas se era comunista, Warhol se fez de desentendido e mundo. Continua a ser tóxico na Coreia do Norte, por
perguntou a Colacello se ele era comunista. Colacello exemplo. Mas pelo menos no Soho, em 1977, era pos-
respondeu: “Bem, acabei de fazer um retrato de Willy sível mostrá-lo sem sofrer represálias. Saul Steinberg
Brandt e estou buscando desesperadamente uma en- disse que a Foice e martelo era a única pintura que ele
comenda para fazer o retrato de Imelda Marcos”. Ao invejava e gostaria de ter tido a ideia de desenhá-la
que Andy concluiu: “Eis minha resposta”. Na condição – uma espécie de “natureza-morta polí­tica”. De todo
de business artist, Andy não admitia a interferência modo, como se trata do caso raro de um tema que não
da política nos seus empreendimentos. Acusaram- lhe fora sugerido por ninguém, um símbolo univer-
-no de perseguir o xá do Irã na tentativa de obter dele salmente reconhecido e igualmente temido e odiado,
uma encomenda de trabalho, mas a verdade é que é preciso conceder a Andy o mérito de intuir que o
todo mundo naquele tempo estava correndo atrás do comunismo deixaria de ser um assunto inquietante.
dinheiro do xá, sabidamente envolvido na moderni- Doze anos depois, a queda do Muro de Berlim pôs fim
zação do país; e tinha convidado professores estran- à Guerra Fria.
6 a andy wa∏hol ente∏p∏ises 6 a andy wa∏hol ente∏p∏ises 6 a andy wa∏h
Já o painel com quatro retratos que Warhol inven-
tou tem uma explicação econômica. Um retrato ocu-
pando um só painel custa 25 mil dólares, e o preço vai
caindo a cada painel subsequente, de modo que o

ente∏p∏ises 6 a andy wa∏hol ente∏p∏ises 6 a andy wa∏hol ente∏p∏ises 6


quarto e último vale 5 mil dólares. Bom negócio, difí-
cil de resistir. Em última análise, nem todos os clien-
tes de Warhol eram celebridades, mas sim pessoas
que podiam pagar para ter seus retratos pintados

a andy wa∏hol ente∏p∏ises 6 a andy wa∏hol ente∏p∏ises 6 a andy wa∏hol


como se fossem famosos, e no painel completo de
quatro imagens. Conheci um de seus modelos, cujo
retrato ele me disse ter sido o último que Warhol pin-
tou. Ela contou que ele ficava o tempo todo comen-
160 ente∏p∏ises 6 a andy wa∏hol ente∏p∏ises 6 a andy wa∏hol ente∏p∏ises
tando sobre a pele dela. No mínimo, isso revela que
as preocupações de Warhol demonstradas na vitrine
de Bonwit Teller prolongaram-se durante toda sua
161 6
vida: o nariz de batata, a pele com marcas de acne e Não é raro dizerem que o ataque de Valerie Solanas
qualquer outra coisa que fizesse de sua aparência um foi um divisor de águas na vida de Warhol, que ele
tormento. No livro A filosofia de Andy Warhol: de A a se tornou um artista diferente depois de sofrer a vio-
B e de volta a A, ele escreveu: “Se alguém me pergun- lência que o deixou quase morto por um momento
tasse ‘qual é seu problema?’, eu teria de dizer: a pele”. e para sempre traumatizado. Realmente, há uma
dife­rença entre o tipo de trabalho que ele fez antes
de 1968 e o que começou a realizar após ter se recu-
perado e até sua morte. O primeiro período mudou
a história da arte de uma perspectiva filosófica, mas
dificilmente se poderia dizer o mesmo a respeito do
período posterior.
É difícil de validar fatos que não aconteceram,
mas poderiam ter acontecido. Não nos resta mais
que espe­cular sobre como seria a vida artística de
Andy caso Valerie tivesse sido uma pessoa menos De certo modo, até que Warhol tinha razão. A mu-
patologicamente ressentida e mais fácil de abran- dança da primeira para a segunda Factory fez uma
dar, logo ela que, apesar de uma personalidade per- diferença significativa na maneira de pensar a produ-
turbada, até então nunca tinha disparado um tiro. ção de arte, e portanto no tipo de arte feita lá. Essa
Pode-se tentar compreender como a vida e a arte dife­rença já estava institucionalizada no início de
de Warhol teriam evoluído se ponderarmos que 1968, meses antes de Solanas puxar o gatilho, em
o tiro fatídico de Valerie atingiu Warhol seis me- princípios de julho. Andy já se tornara um misto de
ses depois da segunda mudança da Factory para a artista e executivo e começava a pensar a arte como
Union Square West, 33, onde, desde o começo, ele um negócio; a segunda Factory foi de certa maneira
já trilhava um novo caminho. A mudança, portanto, emblemática disso, com sua aura profissional, suas
não foi simples troca de endereços; na verdade, mesas de tampo de vidro, suas imponentes máquinas
significou um recomeço. A decoração prateada da e seus telefones. Ele ainda se via como alguém que
162 primeira Factory desapareceu no novo estúdio, que
se parecia mais com um escritório comercial nova-
tinha abandonado a pintura para dedicar-se primor-
dialmente a fazer filmes. Seus advogados estavam
163
-iorquino do que com um lugar onde as pessoas ocupados em dar forma concreta à Andy Warhol
faziam e aconteciam. Fred Hughes, e Paul Morris- Enter­prises como uma entidade jurídica. As pinturas
sey procuraram introduzir um modelo de operação que viessem a ser feitas no futuro não seriam, do
mais eficiente e profissional. Morrissey tinha pouca ponto de vista legal, produtos do artista Andy Warhol,
paciência com o tipo de gente que havia dado o tom mas da Andy Warhol Enterprises, Inc., como quer que
da Silver Factory e tentou afastar os que lhe pare- isso funcionasse na prática.
ciam mais bizarros. Isso causou certa preocupação De certo modo, a agressão foi boa para os negó­cios
em Warhol: “Eu tinha medo de que sem aqueles de Warhol. Os preços de suas obras aumentaram, bem
doidos drogados falando besteiras e fazendo malu- como sua fama. A exposição retrospectiva de Pasa-
quices acabasse perdendo minha criatividade. Eles dena, magnificamente organizada e que definiu toda
tinham sido toda a minha inspiração desde 1964”.1 a sua obra, deixou clara a enorme contribuição de
E é claro que o novo regime não conseguiu manter Andy Warhol para a arte contemporânea. Assim,
Valerie longe das portas. algumas forças empurravam-no de volta ao mundo
da arte, onde ele já era uma estrela fundamental, se
1 D. Bourdon, op. cit., p. 313. bem que ele considerasse os trabalhos selecionados
para a exposição de Pasadena como partes de uma dinheiro é arte, trabalhar é arte, e o bom negócio é a
obra encerrada. Mas outras forças contrabalan- melhor arte.2
çavam esse impulso levando-o para uma direção
muito diferente. Penso que Warhol tinha atitudes Parece ser justamente isso que Warhol tinha em mente
distintas com relação às duas esferas de suas ati- quando se transferiu da Silver Factory para a Union
vidades. Os filmes não tinham mais nada a ver com Square Oeste. Ele até imaginou vender ações da Andy
o gênero underground. Eram produções mais caras, Warhol Enterprises em Wall Street. De modo que Vale-
que exigiam equipamentos e pessoal técnico muito di- rie Solanas provocou uma pane na suave concretização
ferentes da improvisação de uma câmera e um tripé, dos planos de Warhol quando ele mudou de endereço.
alguns refletores e quem estivesse passando por ali. Ocorre que os filmes dos anos 1970 não desperta-
Ele agora precisava da infraestrutura de Hollywood ram o mesmo interesse que os primeiros, e nem mesmo
ou da Cinecittà de Roma. O filme Cowboys Solitá- foram um sucesso financeiro. A “business art” dos
164 rios foi o último verdadeiro filme da Silver Factory,
e mesmo assim exigiu filmagens externas. Mas os
anos 70 e 80, por outro lado, era instável, às vezes
vendia muito, às vezes era um completo fracasso, em-
165
novos filmes permitiriam a Warhol levar o tipo de bora poucos trabalhos apresentassem a extraordiná-
vida que ambicionava para si – a de uma celebridade ria profundidade conceitual de sua produção da dé-
internacional entre as celebridades inter­nacionais –, cada de 60, quando Warhol elaborou as mudanças
uma diva entre divas. Naturalmente, esperava que que transfiguraram a história da arte. Até que ponto
os filmes lhe rendessem dinheiro. Por outro lado, ele isso se devia ao fato de ser business art é difícil de
talvez mesmo abandonasse a pintura se tivesse con- dizer. Os retratos de Mao, sem dúvida, foram feitos
dições financeiras de fazê-lo. Foi isso mais ou menos em 1972, assim como as pinturas da Foice e martelo
que ele quis dizer quando falou da business art no li- são de 1977. São trabalhos louváveis, até instigantes,
vro A filosofia de Andy Warhol: de A a B e de volta a mas não me parecem ser “business art”, ainda que os
A, de 1975: quadros de Mao tenham vendido bem, enquanto as

A business art é o passo que vem depois da Arte. Come-


2 Andy Warhol, The Philosophy of Andy Warhol: from A to B
cei como um artista comercial e quero terminar como
and Back Again. San Diego: Harcourt, Brace, Jovanovich,
um business artist [artista de negócios]. Ser bom nos 1975. [ed. bras. A filosofia de Andy Warhol: de A a B e de volta a
negócios é o mais fascinante tipo de arte […] ganhar A, trad. José Rubens Siqueira. Rio de Janeiro: Cobogó, 2008.]
serigrafias da Foice e martelo, “feitas por razões de ramo dos empreendimentos de Andy Warhol. Um des-
arte”, como Andy explicou a Ronnie Cutrone, vende- ses ramos era a revista Interview, que gerava receita
ram muito mal, pelo menos de início. de publicidade sob a coordenação de Bob Colacello.
Logo que Andy recuperou as forças, começou a Outro ramo era o do negócio dos retratos, dirigido por
levar uma vida intercontinental de esplendor e gla- Fred Hughes, que parecia pertencer à mesma classe
mour. Ele era muito mais aceito como artista na social daqueles que tinham dinheiro o suficiente para
Europa do que nos Estados Unidos. Na Europa, era encomendar seus retratos. Os escritórios da Broadway,
visto como uma figura importante – o artista das pin- 860, eram decorados com os valiosos objetos de art
turas de Morte e desastre, o autor do filme Empire –, déco que Andy localizava com seu olho clínico – ele
enquanto nos Estados Unidos ainda não era tratado havia inaugurado uma fase em que, todos os dias, pas-
com a seriedade que merecia, e ainda por cima era sava horas fazendo compras. Paul Morrissey tinha
criticado por não ter nada a dizer sobre a Guerra saído de cena por causa do sumiço da fortuna que se
166 do Vietnã. Em 1973, Warhol estava trabalhando na
Cinecittà, fazendo filmes de horror para Carlo Ponti,
esperava obter com os filmes feitos na Itália. A Andy
Warhol Enterprises estava toda mobilizada para pro-
167
frequentando festas e tornando-se amigo íntimo e duzir uma última imprudência cinematográfica, o
confidente de estrelas como Elizabeth Taylor. Por um filme Bad, feito sob medida para a onda punk que
breve período pareceu que ele acumularia dinheiro dominava a cultura jovem da época, com a qual o nome
suficiente com esses filmes para poder esquecer a e a figura de Warhol tinham sido associados. O ponto
“arte”. Mas, quando se tratava de negócios, Warhol não alto do filme é a cena em que uma mulher joga seu
se igualava aos italianos, e a Andy Warhol Enterpri- bebê pela janela – episódio que pelo código de ética do
ses não lucrou nada com seus filmes sobre Frankens- cinema era quase uma garantia de que o filme seria um
tein e Drácula. fracasso. Se, no caso dos dois filmes autorais que pro-
No outono de 1974, apesar do fracasso financeiro duziu, a Andy Warhol Enterprises não obteve lucros,
dos filmes realizados em Roma, a Andy Warhol Enter­ com Bad ela perdeu dinheiro. Por fim, havia o setor da
prises instalou-se numa terceira versão da Factory – business art, na qual Andy e Ronnie Cutrone traba-
um grupo de salas no elegante endereço da Broadway, lhavam em salas especialmente destinadas para seus
860, com um restaurante anexo que servia almoços negócios. Quanto à sua forma de vida e de trabalho,
grandiosos. Os malucos da velha Factory tinham sido Warhol era mais ou menos o mesmo que se poderia
substituídos por executivos, cada um ligado a um esperar, caso não tivesse levado o tiro.
Mas tudo isso deixa de lado as cicatrizes psicoló- de filosofia de vida de Andy Warhol. Ele representou
gicas provocadas pelo violento ataque de Valerie. E o mundo em que os americanos viviam como ima-
também não inclui as diferenças entre a década de 60 gens num espelho, para que todos pudessem ver a
e a de 70. Os anos 60 foram um decênio de movimen- si mesmos e a seu mundo refletidos. Era um mundo
tos artísticos: arte pop, minimalismo e arte conceitual bastante previsível por suas repetições, um dia igual
definiram o debate da época. Nos anos 1970, porém, ao outro, mas esse arranjo ordenado podia ser des-
não houve movimentos e nenhuma direção histórica. truído pelos acidentes e explosões que povoam nos-
“O que aconteceu nos anos 1970?” – perguntou Roy sos pesadelos: desastres e perigos imprevistos que
Lichtenstein quando a década terminou, sugerindo ocupam os noti­ciários da noite e depois são substi-
que a resposta era “Nada”. É um exagero; na verdade, tuídos – salvo para as vítimas imediatas – por outros
surgiram artistas, especialmente na fotografia, como horrores que os jornais do dia seguinte têm o prazer
Cindy Sherman, Nan Goldin e Robert Mapplethorpe. de nos mostrar, com seus corpos esmagados e vidas
168 Mas o pluralismo que dominou o mundo da arte ha-
via se instalado. Cada artista tinha de descobrir seu
dilaceradas. É um mundo de gente simples e comum
– nós –, com as imperfeições que nos atormentam e
169
próprio caminho. A conformação da história da arte explicam por que não somos amados como gostaría-
havia se modificado radicalmente, graças sobretudo mos de ser, e que também afligem as estrelas e cele-
ao trabalho de Andy Warhol nos anos 60, e, como bridades que tiram a própria vida, apesar de serem
todos os outros artistas, Andy estava só. invejadas por sua beleza, sucesso e felicidade. Andy
Antes de tornar-se um “artista de negócios”, Warhol também tinha um lado lascivo, certo voyeurismo tolo,
tinha um evidente interesse na fama, mas o dinheiro um desejo de ver e tirar fotografias do pênis, do ânus,
parecia ser secundário. Ele esperava que as pessoas do peito dos outros, e de fazer filmes em que as pes-
comprassem suas caixas de mercado, só que elas soas apalpam o corpo umas das outras, tentam se dar
não compraram. Esperava que as pinturas da série prazer reciprocamente e falham tantas vezes quanto
Morte e desastre vendessem bem, mas ninguém estava conseguem. Hollywood nos trata como crianças. Não
muito interessado nelas, pelo menos não nos Esta- nos oferece o que queremos ver. “Os filmes devem ser
dos Unidos, ou então as pessoas estavam somente lascivos. A lascívia faz parte da máquina”, disse Warhol
interessadas em vê-las, não em comprá-las. Vistas a um entrevistador.3 Tudo bem que um artista pinte
como um todo, as obras exibidas na retrospectiva de
Pasadena demons­travam o que se poderia chamar 3 D. Bowdon, op. cit., p. 327.
quadros fazendo xixi na tela preparada, e depois dê antigos trabalhos. Numa esplêndida série de gravu-
sorrisinhos maliciosos quando os espectadores, igno­ ras, encomendada pela Ronald Feldman Gallery, as
rando como tinham sido feitos, os admiram como imagens se inspiraram diretamente na cultura popu-
belas abstrações. Problema algum em desenhar geni- lar: uma estrela de cinema (talvez Elizabeth Taylor
tálias, desde que se diga às pessoas que pensem nelas como Cleópatra), o Super-Homem, Mickey Mouse e
como abstratas. À sua moda, Warhol fez pela socie- Papai Noel como forças do bem, Drácula e a Bruxa
dade americana o que Norman Rockwell havia feito Má do Oeste como forças das trevas, um Tio Sam am-
antes. Os Estados Unidos, especialmente Nova York, bíguo entre o bem e o mal, Tia Jemima4 como em-
tornaram-se o centro do mundo da arte. A arte norte- blema de nosso pão de cada dia, e, naturalmente, ele
-americana era admirada e imitada por toda a parte. próprio, como o Sombra, aquele que tudo vê e tudo
Mas o que havia nela de tão tipicamente americano? sabe. Warhol incluiu ainda o Howdy Doody, o boneco
Andy pintou selos promocionais de desconto da S&H sardento, bobão e lerdo, muito popular entre as
170 Green. Pintou notas de dólar americano de pequeno
valor. Pintou o que os americanos comem. As pessoas
crianças por causa de um programa infantil a que
elas assistiam na sala de suas casas de subúrbio, e can-
171
o viam como uma delas, mesmo quando ele dizia que tavam junto com ele e seu amigo mais velho, Buffalo
a business art era a melhor arte. Bob. Isso me fez lembrar que os jovens revolucioná-
Mas o que ele efetivamente produziu como “arte de rios de minha universidade tinham ido ver a apresen-
negócios” quase nunca parecia fazer parte desse qua- tação de Howdy Doody no campus, em plena rebelião,
dro. A business art consistia geralmente numa série e cantaram junto com ele e outro boneco as canções
de gravuras (e pinturas) feitas para ganhar dinheiro. que lhes lembravam a infância, quando ainda não
Quando Warhol pintou as latas de sopa, a maioria das carregavam nas costas a responsabilidade de lutar
pessoas achou que ninguém de bom senso ia comprá- por um mundo melhor. Típico de Andy Warhol foi
-las. Mas imagens agradáveis de atletas famosos, de perguntar, quando a equipe se preparava para tirar a
animais em extinção pareciam ser feitas sob medida fotografia de Howdy Doody que ele ia usar para sua
para as paredes da sala de espera de profissionais libe- gravura, se Howdy Doody tinha pênis. Segundo o relato
rais bem-sucedidos ou para o saguão dos hotéis de luxo.
A business art parecia ser feita para o bem dos negócios.
4 Marca popular de produtos matinais criada em 1893; nos
Ocasionalmente, Warhol, como artista de negó- Estados Unidos, a Tia Jemima é a versão feminina do Tio
cios, fez alguma coisa com a profundidade de seus Sam. [n.t.]
de Ronald Feldman, eles despiram Howdy Doody ali por que o símbolo do dólar não podia ter-se origi-
mesmo, no estúdio, e, como era de esperar, havia um nado de um monograma para o nome dos Estados
toco de madeira provando que o boneco era igual ao Unidos, mas só gostaria de acentuar que o símbolo do
restante de nós no que diz respeito às partes normais dólar poderia ser igualmente um dos mitos pátrios, o
do corpo humano que nos deixam excitados e atentos Tio Sam [Uncle Sam, (US)], por exemplo.
aos corpos dos outros. Mas ele não mostrou Howdy Mas os críticos acharam difícil entender aonde
Doody nu – isso não fazia parte do mito. Warhol queria chegar quando organizou uma expo­
Tivesse Warhol pintado um símbolo do dólar sição na Castelli Gallery, em 1981, com desenhos,
como outro mito, todo mundo teria percebido onde gravuras e pinturas de símbolos do dólar, que pro-
ele queria chegar. O dinheiro é uma preocupação de vavelmente pareceu demasiado literal para uma ex-
todos nós, e, à sua maneira, o símbolo do dólar repre- posição de business art. Os críticos torceram o nariz
sentado de maneira simples e sem retoques é tão em- para a exposição, mas os Símbolos do dólar eram
172 blemático dos Estados Unidos quanto a bandeira. Há
inclusive um livro escolar muito citado que fala sobre
maravilhosamente criativos. Warhol às vezes compi-
lava uma espécie de antologia de suas variações den-
173
a origem do símbolo do dólar: era um monograma tro de uma só moldura – vinte símbolos do dólar em
para os Estados Unidos com a letra U sobreposta a quatro fileiras, nenhum igual ao outro, alguns tão
um S. Isso explica as duas linhas verticais e os cor- grossos e feitos no impulso como os ideogramas chi-
tes necessários – mas não dá conta do constrangedor neses; outros curvos e elegantes como se tivessem
problema dos símbolos do dólar feitos de linhas sim- sido executados por um mestre da caligrafia itálica;
ples, e não explica de maneira convincente a perda alguns sem serifa e outros com terminações orna-
da base curva da letra U, que já devia ter desapare- mentais. Quase como se quisesse demonstrar que
cido quando o símbolo foi impresso pela primeira vez estava tão interessado nas possibilidades do símbolo
em 1797. A curva provavelmente desaparecera bem por si só quanto no que ele simbolizava. Como se
antes ainda, pois Jefferson usou o símbolo num me- estivesse experimentando formas gráficas para o
morando de 1784, no qual recomendou o dólar como símbolo do dólar e mostrando várias maneiras de
unidade monetária dos Estados Unidos. Não dá para desenhá-lo. As variações podiam ser infinitas. Havia
acreditar que o U pudesse ter perdido sua base em na exposição um clima de alegria, e, apesar disso,
tempos tão remotos quanto os da Independência do a crítica reagiu com severidade e azedume, como
país! Há importantes razões históricas para explicar se Warhol estivesse tomando liberdades com um
símbolo sagrado. A mostra foi um fracasso, crítica e dimensão pública – justamente o artista festejado da
financeiramente falando. Nenhuma pintura foi ven- alma americana, com a qual Warhol, na fase anterior à
dida. O fracasso do Símbolo do dólar foi tão grande business art, parecia ter atingido tanta harmonia. Algo
quanto o das pinturas de Morte e desastre nos anos que ele aparentemente perdeu ou reencontrou apenas
60. Creio que por serem percebidas como frívolas. de modo intermitente na década de 70. É por isso que
De certa maneira, tudo na exposição parecia a exposição de Feldman teve tanto sucesso – os sím-
refletir o fato de que a mostra era uma iniciativa bolos pertenciam a todo mundo. De certa forma, os
empresarial. Cutrone, responsável pela montagem, sinais gráficos do dólar são muito decorativos e en-
alternou os Símbolos do dólar com imagens de fa- graçados. Dariam figuras interessantes para luxuosas
cas e revólveres feitas por Warhol – a mesma arma cortinas de banheiro, ou papéis de parede, mas para
que, segundo ele, Solanas tinha usado para atingi-lo. um elemento que se aproxima de um símbolo nacional
Fred Hughes disse que o resultado parecia europeu eram excessivamente superficiais.
174 demais, que a exposição devia ter mostrado apenas
os desenhos de dólar. Ele estava certo, pois ninguém
Uma obra que dá a impressão de ser pessoal demais
para participar do espírito da business art é uma ins-
175
estava interessado nessa parte. Parece-me ser um talação de pinturas de sombras realizada por Warhol e
emblema demasiado carregado para que se pudesse Cutrone em 1978. Tal como a Foice e martelo, do ano
afirmar, como Emile de Antonio declarou a respeito anterior, é possível que as sombras tenham se origi-
da Coca-Cola, que era o que nós somos – mesmo que nado de igual desejo de fazer um trabalho com a pura
a Segunda Emenda seja um tema político em alta, e intenção de ser arte – algo que realmente tivesse um
apesar de o Saturday Night Special fazer parte do pa- significado –, assim como uma sombra supõe uma
norama cultural dos Estados Unidos. Qualquer um substância sem ser substancial em si mesma. Som-
pode entender por que Warhol pintou essa imagem bras são abstratas e ao mesmo tempo representacio-
ligada ao acontecimento mais traumático de sua vida. nais, embora o que representem seja uma questão
Mas, justamente por isso, me parece que o revólver essencial na interpretação de Warhol. Ademais, as
não se encaixa em sua visão do mundo. As pessoas se sombras desempenhavam um papel fundamental
sentiriam constrangidas diante de tal imagem. Seu nas explicações mitológicas da origem do desenho.
significado seria estranho ao que dá sentido à vida Diz-se que uma jovem de Corinto teria desenhado
dos norte-americanos, porque era autobiográfico de- as bordas da sombra de seu amante projetada na
mais, particular demais para um artista de tamanha parede pela luz do fogo, criando assim a silhueta do
perfil dele. As sombras de Warhol são mais abstratas. de De Kooning. Foi Cutrone quem teve a ideia de
São geradas por objetos sem identidade específica, pintar sombras de formas que não eram formas de
embora Bob Colacello afirme que são sombras de coisa alguma – e cujas semelhanças com alguma
pênis eretos – mais exatamente, pênis eretos não coisa eram pura coincidência, ao contrário do perfil
circuncidados, para explicar uma diferença na de um amante.
ponta. Essa história é, sem dúvida, coerente com a As pinturas de Sombras contêm, de fato, a apa-
irrefreável lascívia de Warhol, mas de certo modo rência um tanto misteriosa de paisagens abstratas na
incoerente com as prioridades estéticas do espaço penumbra, o que se poderia chamar de “cores de de-
que ele imaginara. Mas as sombras também podiam corador”: a cor arroxeada da berinjela, o azul forte de
ser de pepinos, berinjelas ou, como sugeriram, do Klein, o tom do açafrão. A Dia Foundation adquiriu
Empire State Building. Inclusive de rochas numa oitenta dessas pinturas, que se encontram atual­mente
paisagem desértica ou lunar. instaladas numa grande sala especial, formando um
176 A probabilidade de haver referências a objetos
identificáveis nessas sombras é, todavia, pequena.
ambiente único, penduradas lado a lado perto do
chão, na sede da fundação em Beacon, Nova York.
177
Andy queria fazer algumas pinturas abstratas, de Colocadas desse modo, as pinturas de Sombras de
acordo com as memórias de Cutrone, sobretudo por Warhol se harmonizam ao conhecido espírito da Dia,
sua proveniência de uma geração de artistas que que promovia uma arte de acentuada espiritualidade,
haviam resistido à abstração quando a concepção tal como o monumental painel Ao povo de Nova York,
geral era que a boa pintura devia ser abstrata, que de Blinky Palermo, composto de vários elementos nas
a era da abstração era uma revolução na arte, e re- cores da bandeira alemã. Ou então aos sentimentos
sistir à revolução era contraditório com a verdadeira que se imagina que a fundação deseje despertar com
tendência da história. Os artistas da minha geração, os trabalhos de Fred Sandbeck, Dan Flavin, Robert
como os da geração de Warhol, tinham certo sen- Ryman ou Donald Judd – um tipo de abstração de
timento de culpa em fazer arte figurativa. Jackson elevado misticismo que ergue o espírito ao plano da
Pollock censurou asperamente De Kooning pelo re- comunicação com forças superiores. Nada do que se
acionarismo de expor pinturas de mulheres em 1952, poderia associar a uma business art. Mas as Sombras
em sua histórica mostra na Janis Gallery. Cutrone tampouco são o que nos vem à lembrança quando
lembra-se de ter dito a Warhol que ele pertencia a falamos de uma arte warholiana. Não há nada de im-
uma geração posterior que não tinha as obsessões petuoso, atrevido nelas, nada que force limites como
7 religião e experiência comum 7 religião e experiência comum 7 religião e
se espera de Warhol. Na verdade, é tudo o que deseja
aquele que o respeita e admira como um artista sério,
mas sonha em vê-lo criar uma peça de arte de ele-
vada espiritualidade. Muito mais próximo do traba-

experiência comum 7 religião e experiência comum 7 religião e experiência


lho usual de Warhol é a sala cheia de serigrafias da
Última Ceia, baseadas numa reprodução em cores
barata, com Jesus múltiplos e etiquetas de preço que
ele pintou em seus últimos anos.

mum 7 religião e experiência comum 7 religião e experiência comum 7 reli


A arte produzida pela Andy Warhol Enterprises
consiste em retratos e principalmente as séries de
gravuras imaginadas como propostas comerciais,

e experiência comum 7 religião e experiência comum 7 religião e experiênc


imagens de atletas ou de animais em extinção. As
178 Sombras renderam 1,6 milhão de dólares – quase um
roubo se compararmos com a venda de todos os origi-
179
nais da Lata de sopa Campbell por mil dólares.
Andy Warhol tinha uma mentalidade naturalmente
filosófica. Muitos dos seus trabalhos mais importantes
são respostas a questões filosóficas ou soluções de
enigmas filosóficos. Muitos deixam de notar esse as-
pecto do seu trabalho, já que a filosofia não é muito
cultivada fora das universidades. Todavia, a filosofia
necessária para apreciar a admirável contribuição de
Warhol não existia até ele criar sua arte. Muito da es-
tética moderna é mais ou menos uma resposta aos
desafios que ele propôs, de modo que sob importantes
aspectos Warhol estava verdadeiramente fazendo
filosofia ao fazer a arte que o tornou famoso. Isso
significa que a maior parte da filosofia da arte anterior
a ele tem pouquíssimo valor para analisar suas obras.
Não foi escrita para dar conta de um trabalho como o carpinteiros, pescadores. É claro que um objeto tão
dele, pois esse trabalho não fora pensado antes que venerado, o Sacra Cáliz, como dizem na Espanha, está
ele o pensasse. Warhol demonstrou com a Brillo Box apoiado sobre uma base ornada de ouro, pérolas e es-
a possibilidade de duas coisas parecerem idênticas meraldas, mas por si mesmo é um objeto simples e
no aspecto exterior e, no entanto, serem não só dife­ sem mais atrativos, talhado na pedra. Na Última Ceia
rentes, mas essencialmente diferentes. É um fato verdadeira, o cálice provavelmente não se apoiava
importante para a filosofia, porque sugere que pode- numa base ornamentada e com pedras preciosas, por-
mos estar diante da arte sem nos apercebermos dela, que deve ter sido usado para todo tipo de alimento
devido à expectativa equivocada de que a arte deve servido numa ocasião tão extraordinária, deve ter sido
fazer uma imensa diferença visual. Quantos visitan- tocado pelos lábios ou mãos daquele que os partici-
tes da segunda exposição de Warhol na Stable Gallery pantes da ceia estavam convencidos de ser o messias.
não se perguntaram se por acaso teriam errado o O próprio Jesus era como aquele cálice, se for ver-
180 endereço e entrado num depósito de supermercado?
Quantos espectadores não entraram num cinema
dade que era Deus sob uma forma humana. Imagine-
mos que houvesse em Jerusalém um homem da
181
para assistir a Empire e pensaram estar vendo na mesma idade de Jesus, que se parecesse tanto com ele
tela uma cena parada do filme, que ainda não tinha que ambos fossem muitas vezes confundidos um com
começado? o outro, até mesmo por aqueles que o conheciam
Algo parecido com isso pode ser válido para deter­ bem. Não poderia haver diferença mais importante
minados objetos religiosos, que acreditamos ser com- que esta; afinal, confundir um deus com um mero
pletamente diferentes dos objetos comuns, embora ser humano é, toutes proportions gardées, como
disfarçados por sua trivialidade. Entre os quatro va- confun­dir uma obra de arte com uma mera coisa real
sos que são atualmente apresentados como o Santo – confundir uma coisa definida por seu significado
Graal, por exemplo, o que mais me convence de sua com uma coisa definida por seu uso. Imagine-se que
autenticidade é um cálice de aspecto banal, quase houvesse um aluno de um programa de crítica insti-
sem cor, que mais parece uma tigela de salada e que tucional cuja tese consistisse em substituir na vitrine
pode ser visto numa vitrine na catedral de Valencia, de um museu uma caixa comum de Brillo pela caixa de
na Espanha. O objeto realmente se parece com um Warhol – uma obra avaliada em 2 milhões de dólares
cálice que Jesus poderia ter usado à mesa, já que as na Christie’s trocada por mera caixa de papelão sem
pessoas cujas vidas ele influenciava eram simples – mais valor que o do material de que é feita!
As relíquias costumam ser apresentadas da sedentos de milagres. Afora os que testemunharam a
mesma maneira que o Sacra Cáliz de Valencia: um Transfiguração, para todos os demais Jesus era com-
fragmento de osso colocado num estojo ou invólucro pletamente humano.
dourado, decorado com pedras de valor inestimável A descrição da humanidade de Cristo feita por
e às vezes com imagens do santo ao qual se acredita um grande crítico de arte, Roger Fry, a partir de uma
que o osso tenha pertencido. É preciso acreditar sem pintura de Mantegna que hoje está em Berlim, me
provas que o fragmento de osso possui poderes es- parece extremamente sensível: “A face contraída, a
peciais, mas também é preciso que ele tenha a apa- carne crispada e vincada de uma criança recém-
rência de um simples despojo humano, e, além disso, -nascida […] todo o castigo, a humilhação, quase a
passe em todos os testes óbvios, como o de dna. Há condição de miséria que coexiste com ‘ser feito carne’
o sentimento de que o Graal possui poderes extraor- estão marcados”. Para pintar o Deus encarnado, o
dinários, dada a crença de que foi tocado pelo Deus artista cristão precisava pintar tão somente um ser
182 encarnado, mas a história que lhe é atribuída, se é
que ele ainda existe de fato, não deixou vestígios em
humano. Indicações estavam certamente presentes
na forma de auréolas que representavam o aspecto
183
sua superfície. Não se pode deduzir por nenhum si- divino. Todavia, essas indicações eram meros sím-
nal visível que Jesus tocou o cálice com seus lábios, bolos, da mesma maneira que as molduras douradas
nem que ele conteve o sangue de Cristo. Somente a simbolizavam a proteção de obras de arte. Sangrar
simplicidade do objeto atesta a possibilidade de que é uma prova da condição humana, mas não há ne-
estivesse presente na última refeição de Jesus junto nhuma prova simples da divindade.
com seus discípulos, onde pareceria ser uma tigela co- Aprofundei-me em determinados assuntos religio-
mum, talvez um pouco especial dado o caráter espe- sos em virtude de um pensamento de Hegel de que a
cial de quem a usou. Mas a prova de que Cristo era filosofia, a arte e a religião são “momentos” de Espí-
o Deus encarnado não consta do repertório forense. rito Absoluto. Cito esse pensamento porque ele sugere
A Transfiguração descrita nos Evangelhos sinóp- que a arte, a filosofia e a religião são formas através
ticos teve a intenção de mostrar a um grupo seleto das quais os homens representam o que significa a
de discípulos que Jesus transcendia ao meramente condição humana. Um dos aspectos que é particular
humano, por sua radiância, por exemplo. Todavia, o aos seres humanos é que a questão do que é a condi-
Segredo Messiânico tinha de ser preservado – Jesus ção humana nos ocorre de um modo que não ocorre
preferiu não ser seguido por grupos de aficionados aos animais. Nesse sentido, pode-se estabelecer pelo
menos uma analogia entre as obras de arte e os obje- as fezes ou o vômito, e a menstruação. Na minha opi-
tos religiosos, e tal analogia poderá ser uma forma de nião, Serrano procurou recuperar a maneira como
abordar o problema de saber se e de que modo a arte Jesus foi humilhado enquanto carregava a cruz para
de Warhol é religiosa. O que não se pode negar é o Gólgota. A efígie era de plástico, sem dúvida, mas
que ele era católico, sua mãe era inclusive muito pie- que diferença faz isso? O crucifixo não é um objeto de
dosa, eles oravam juntos, em casa e na igreja. Depois adoração, tal como a pessoa cruci­ficada? Quando
da morte da mãe, ele continuou a frequentar a missa. Barnett Newman, judeu, pintou as Estações da Cruz,
A bem da verdade, deve-se dizer que a maioria dos o fez de maneira muito abstrata e por assim dizer in-
frequentadores da Silver Factory nasceu e foi criada teriorizada. A obra trata da dor insuportável, do des-
no catolicismo, aí incluída grande parte dos Moles. A maio e da exalação do último suspiro. Mas não
crítica de arte Eleanor Heartney, também católica, es- ofende ninguém, o que o trabalho de Serrano certa-
creveu um minucioso estudo, Post-modern Heretics mente faz. Anos atrás, mencionei um dos poemas de
184 [Heréticos pós-modernos], em que descreve “A ima-
ginação católica na arte contemporânea”, que é o sub-
Yeats, “Crazy Jane”, a um membro da Maioria Moral,
quando ambos participávamos de uma mesa-redonda
185
título do livro. Grande parte do conteúdo da arte con- para discutir a Associação Nacional de Editores (nea)
temporânea nos Estados Unidos inclui aspectos do e o trabalho altamente erótico do fotógrafo Mapple-
corpo humano que supõem atitudes católicas, mas thorpe: “Love has pitched his mansion in the place of
que são ofensivas à moral conservadora católica. Um excrement” [O amor pôs sua morada junto ao lugar do
bom exemplo é o incendiário Piss Christ, de Andres excremento]. Ele me respondeu que este não era um
Serrano, fotografia de um pequeno crucifixo de plás- dos mais belos versos de Yeats e eu lhe pedi que ci-
tico submerso na urina do artista. A foto causou tasse outro mais bonito. “Crazy Jane” foi uma das
enorme confusão quando foi exibida em Richmond, mais inspiradas criações de Yeats para falar do corpo
no Virginia Museum of Art. Andres é católico, e não sexuado e da base física do amor humano.
é difícil entender sua intenção com esse trabalho: re- Warhol não gostava muito que tocassem seu corpo,
avivar o modo como Jesus foi “desprezado e rejei- principalmente as mulheres, segundo relato de Viva,
tado”, para citar o Messias de Haendel – escarnecido, mas não resta dúvida de que tinha uma alegre curiosi-
cuspido e açoitado. Urinar em alguém é um ato noto- dade a respeito do sexo e das partes sexuais do corpo,
riamente humilhante e degradante. A urina e a cus- e insistiu em mostrá-lo em seu trabalho artístico, so-
parada são fortemente carregadas de desprezo, como bretudo nos filmes. Se a explicação disso está em seu
catolicismo é difícil dizer. Todavia, não há distinção nardo da Vinci, que alguns consideram uma prova
mais nítida entre a arte dos anos 50 e anos 60 em da religiosidade de Andy Warhol. Como tantas vezes
Nova York do que a diferença entre a representação da ocorreu no trabalho de Andy, a ideia lhe foi sugerida
morte e do sexo nas duas décadas. Robert Motherwell, por outra pessoa, nesse caso por Alexandre Iolas, pro-
protestante, pintou duas grandes séries de telas abstra- prietário de uma galeria de arte em Milão. Warhol
tas com o título de Elegia para a república espanhola. era um dos cinco pintores escolhidos para realizar
Serrano mostrou cadáveres num necrotério. Os gran- pinturas baseadas na famosa Última Ceia. A ideia era
des quadros de De Kooning sobre o tema das Mulheres, que uma exposição de pinturas sobre esse tema fei-
de 1952, eram ousadamente misóginos, com seus seios tas por artistas contemporâneos despertaria grande
enormes e bocas desdentadas. Mapplethorpe fotogra- interesse, pois a galeria situava-se na mesma praça
fou pênis imensos ou punhos forçando orifícios anais. onde a obra-prima de Leonardo da Vinci estava pas-
O fato de a pintura ter cedido lugar para a fotografia sando por nova restauração, o que poderia estimular
186 nos anos 70 deve ter sido fundamental para o novo
tratamento do tema. Andy tentou expor desenhos de
os visitantes a desfrutar tanto da obra original
quanto das versões dos artistas da hora. Estudiosos
187
meninos nus na Tanger Gallery da 3rd Avenue, que os de Andy Warhol comentaram que ele havia achado
rejeitou de imediato, embora os desenhos de Warhol escuras demais as reproduções da Última Ceia dos
nunca tenham sido tão potentes quanto suas seri­ livros de arte, o que explicaria ele ter usado cópias
grafias. A abstração também pode ser uma forma de baratas da célebre pintura. Contudo, a relevância de
repressão, o que leva a ver na arte pop uma forma se tratar do famoso original está em que todo mundo
de libertação. Só que a revolução sexual dos anos 60 conhece a pintura de Leonardo da Vinci; isto é, o
manifestou-se tanto na arte quanto na vida, e nem quadro faz parte do acervo comum de conhecimen-
por isso os artistas cuja obra tinha conteúdo sexual tos que Warhol compartilhava com todos aqueles
eram católicos. Era uma mudança na cultura, antes que conheciam seu trabalho, conhecimentos que ele
de tudo. A maioria dos fatos que influíram na religio- tomou como sua missão artística elevar à consciên-
sidade de Warhol tinha a ver com sua biografia. Mas cia, mostrar-nos a vida interior que temos. A Última
nenhum deles prova que Warhol era especialmente Ceia de Leonardo da Vinci é uma das poucas pintu-
religioso na arte. ras que goza desse status – a lata de sopa de tomate
Vejamos suas últimas pinturas importantes do Campbell de Warhol é outra –, embora poucos dos
corpo humano, baseadas na Última Ceia, de Leo- que conhecem a obra célebre viram-na de fato em
Milão. Ela é conhecida por suas inúmeras reprodu- Jackie, Elvis, Jesus, radiantes de glamour e celebri-
ções. Mostrar a Última Ceia como lugar-comum é dade. Um mundo sombrio com seres radiantes, que
mostrá-la como aparece num cartão-postal, tal como nos redimem por sua presença entre nós, em cuja
Duchamp mostrou a Mona Lisa, ou então em um ca- companhia Warhol procurou insinuar sua própria
lendário ilustrado por obras-primas. Peçam às pessoas presença desajeitada, e nos transformar a todos em
para nomearem dez pinturas, e elas inevitavelmente estrelas. A missão dele era externar a interioridade
falarão da Última Ceia, não da Conversa de Matisse, do mundo que dividimos. A Última Ceia penetrou
muito menos da Última comunhão de São Jerônimo, em nossa consciência comum com a importância de
de Domenichino ou de uma das paisagens com a mon- sua mensagem. Assumindo-a como sua, ele também
tanha Sainte-Victoire de Cézanne. se tornou parte do que somos. E assumindo-a, ele
Andy deu à Última Ceia o tratamento que deu a nos mostra que ela é nossa, parte da vida, e não uma
muitos dos seus temas. Fez versões mostrando séries coisa que temos de viajar à Itália para ver – sob esse
188 de Últimas Ceias à maneira de suas séries de latas de
sopa ou de notas de dólar. Multiplicou Jesus como
aspecto é como o prato que muitas vezes considera-
mos ser o Graal, lugar-comum em vez de raridade,
189
multiplicou Marilyn ou Elvis. A repetição era um um prato igual a outros e não um objeto incrustado
sinal do significado. Preencheu-o com o logotipo de de joias e feito de metais preciosos. Ou como suas
produtos contemporâneos, como o sabonete Dove, primeiras gravuras, que se podiam comprar por uns
para representar o Espírito Santo, ou a coruja sá- poucos dólares do balcão da recepcionista da Castelli
bia de conhecida marca de batatas fritas, emblema Gallery, onde ficavam expostos em pilhas. Uma ge-
de sabedoria. Usou também o logotipo da General nuína obra de arte por cinco dólares, imaginem! Não
Electric para simbolizar a luz. Tudo isso provinha do admira que ele desenhasse etiquetas de preços em
mundo comercial que ele e nós conhecemos muito pinturas de obras-primas, a 6,99 dólares cada!
bem, embora deva se dizer, por justiça, que nenhum A pintura que alude mais claramente à ocultação
desses logotipos tinha significado religioso. O grande da verdade religiosa talvez seja a Camouflage Last
projeto artístico de Warhol começou com as imagens Supper [Última Ceia camuflada], de Warhol, onde
na vitrine da Bonwit Teller e desenvolveu-se em dois a mensagem visual da pintura é distorcida por uma
níveis – o nível dos medos e angústias e o nível das sobreposição de ruí­do visual. Ele começou a usar
belezas. O nível dos desastres de avião, suicídios, aci- camuflagem em 1986, mesmo ano em que fez as Últi-
dentes, execuções, e o nível de Marilyn, Liz Taylor, mas Ceias, e também a usou em seu autorretrato, no
qual esse recurso visual tem um significado muito pró- de vida Warhol tenha se tornado um artista religioso
ximo ao de Camouflage Last Supper: revela a oculta- com as pinturas da Última Ceia.
ção de sua própria verdade, que está toda na superfície. Creio que a guinada religiosa, se é que houve, ocor-
Numa frase famosa, ele havia declarado: “Se você quer reu muito mais cedo. Acho que, em algum momento
saber tudo sobre Andy Warhol, basta olhar a superfí- entre 1959 e 1961, o trabalho artístico de Andy Warhol
cie: de minhas pinturas, de meus filmes e de mim, e passou por uma mudança tão profunda que pode ser
lá estou eu. Não há nada por trás”. Inclusive, ele fez comparada a uma conversão religiosa – profunda
uma série de trabalhos que consistiam unicamente em demais, eu diria, para não ser uma conversão religiosa.
camuflagem, a qual, como padrão visual, já se tornara Antes, seu trabalho continha certo charme decadente,
tão comum e corriqueiro quanto a violência no mundo com seus querubins rechonchudos, ramalhetes de
moderno, ainda que raramente apresentado na arte – flores, borboletas cor-de-rosa e azul, gatinhos em
tão inusual, aliás, quanto as Brillo Boxes nas galerias cores adocicadas. Ele ganhara um bom dinheiro como
190 de arte em 1964. Alguns críticos entenderam as gravu-
ras de camuflagem como abstrações ready-made, mas
artista comercial, desenhando principalmente anún-
cios de sapatos com brincadeiras obscenas para se-
191
o que elas querem dizer é que seu objeto está comple- nhoras da alta sociedade. Tenho a impressão de que
tamente oculto. A camuflagem em retalhos tornou-se sua identidade religiosa veio à tona em abril de 1961,
um retrato da realidade política de nosso tempo, ter- na primeira exposição que apresentou, simbolica-
rível demais para se olhar diretamente. A inferência mente instalada num local onde estavam expostas
que se faz, ao vermos uma pessoa vestindo roupas de levíssimas peças de vestuário de verão para a mesma
camuflagem, de que se trata de um soldado baseia-se classe de mulheres às quais se destinavam os luxuosos
na verdade social de que as camuflagens são a marca sapatos que lhe haviam granjeado seu primeiro su-
visual do aspecto militar de nossa época. cesso como designer – as vitrines da Bonwit Teller,
Tenho a impressão de que a ocultação implícita uma das maiores e mais sofisticadas lojas de moda
na camuflagem tem relação com a ideia de que du- feminina da Fifth Avenue em Nova York. Já vimos
rante a Última Ceia foram feitas confidências. Que que Warhol cercou os manequins com ampliações
significado poderia ser mais secreto que o pão e o fotográficas da propaganda comercial que se vê nas
vinho são o corpo e o sangue de Cristo, e que ao par- contracapas de jornais populares impressos em papel
tilhá-los Jesus se tornou carne e sangue de quem os barato. As imagens de que ele se apropriou após a
partilhava? Mas eu não acho que nos últimos anos conversão eram corriqueiras, familiares e anônimas.
Geralmente faziam propaganda de tratamentos de a palavra Campbell’s bem desenhada. A imagem no
saúde, queda de cabelos, fortalecimento de braços e rótulo é a de um prato de louça produzido em massa,
ombros, correção do nariz, próteses para fraturas e de cuja borda mais que banal envolve a Rainha das So-
elixir do amor (“How to Make him want you” [Como pas como uma auréola. Acho comovente que as duas
fazer com que ele deseje você]) e Pepsi-Cola (“No finer imagens – a Lata de sopa Campbell e A Última Ceia
drink” [Não há bebiba melhor]). Esses anúncios pro- – assinalem o começo e o fim da carreira de Warhol,
jetam uma visão do ser humano como deficiente e pelo menos desde quando ele encontrou seu caminho
necessitado de ajuda. Uma mensagem que não era tão próprio. Mas não me parece menos comovente que
diferente da de Joseph Beuys, cujos símbolos eram a o rótulo faça eco ao prato na mesa que Jesus parece
gordura e o feltro, para transmitir aos que têm fome e estar fitando com seus olhos baixos, como se o prato
frio. Toda religião se baseia no sofrimento e em seu contivesse algum significado profundo. Imagino Wa-
lenitivo. No caso de Andy, era como se a mensagem rhol de pé, diante das duas pinturas, nos seus mo-
192 dos salvadores tivesse sido traduzida para a lingua-
gem universal da publicidade barata nos Estados Uni-
mentos finais no ateliê, contemplando os dois pratos
como se fossem cognatos do Graal.
193
dos. A exposição da Bonwit Teller é uma demonstra- É impossível dizer quais foram seus últimos pen-
ção do que provavelmente é até hoje a transformação samentos, mas gosto de pensar que deviam ter algo a
mais misteriosa da história da criatividade artística – ver com dois pratos, um vazio e o outro cheio, da sopa
o “antes e depois” de Warhol. de todos os dias, morna, quente, nutritiva, saborosa,
Numa fotografia do ateliê de Warhol tirada logo como a resposta a uma oração. Juntas, as duas pin-
após sua morte, há um grande quadro na parede ao turas testemunham sobre sua vocação como artista.
fundo com um retrato duplo de Jesus no centro da Úl- Ele é grato pelo pão de cada dia que pedimos na Ora-
tima Ceia, com os olhos baixos, e, à sua esquerda, ção do Senhor. Mas sofria dores terríveis por causa
dois discípulos, Tomé e Tiago, gesticulando anima- de pedras na vesícula, que ele sabia ter e temia ser
damente. A foto mostra muitos outros quadros en- obrigado a operar-se em breve. A viagem a Milão fora
costados nas paredes laterais. O único que vemos de uma agonia só. A segunda e última morte levou-o no
frente, porém, está à esquerda dessa última pintura. dia 22 de fevereiro de 1987, no New York Hospital.
Mostra um prato de sopa de frango com macarrão Morreu em paz e para surpresa de todos.
decorado com o conhecido rótulo vermelho e branco
da sopa Campbell, e sua conhecidíssima logomarca,
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140, 142
A Avedon, Richard 142
A Novel (Warhol) 117, 135-36
“Abstract Expressionist B
Coca Cola Bottle, The” Bad, filme (Warhol) 167
(Danto), 39 Bastien, Heiner 42
Anúncio (Warhol) 40, 41-42 Beatles, Os 25, 27
Agnelli, Gianni 159 Beckmann, Max 156
Alloway, Lawrence 49 Cama (Rauschenberg) 33
Amayo, Mario 141 Antes e depois (Warhol) 22, 27,
Andy Warhol Enterprises 163, 35, 39, 41, 43
165-67, 178 Berlin, Brigid 118, 122
Andy Warhol tv Productions Beuys, Josef 86, 151, 192
123, 126 Bidlo, Mike 80
Angell, Callie 113,119 Blow Job, filme (Warhol) 109
Blondie 35 Cowboys Solitários, filme E Frankenstein, filme (Warhol)
Blum, Irving 60 (Warhol), 143, 164 Elegia para a república espa­ 155, 166
Bockris, Victor 7, 21,29, 61, Crone, Rainer 11 nhola (Motherwell) 186 Freedom Riders 28, 28n
152, 39n, 42n, 62n Curtis, Jackie 118, 152 Empire, filme (Warhol) 110-12, Fremont, Vincent 117, 121,
Bourdon, David 7, 26n, 162n Cutrone, Ronnie 127-28, 166, 120-21, 166, 176, 180 124-25
Bowie, David 119 167, 174-77 Escravos de Nova York Fried, Michael 70
Brancusi, Constantin 76, (Janovich) 91-2 Friedan, Betty 142
98, 150 D Eu, um homem, filme Fry, Roger 183
Brandt, Willy 158 Diagrama de dança (Warhol) 140
Brillo Box(es) (Warhol) 13-14, (Warhol) 66 Eutifro (Sócrates) 99 G
79-80, 90-91, 93-99, 105, Diários da Factory, Os Exploding Plastic Inevitable, Garland, Judy 130
110-12, 114, 180, 190 (Warhol) 118-19 evento multimídia Garotas do Chelsea, filme
Buffalo Bob 171 Darling, Candy 118, 152 (Warhol) 29, 150 (Warhol), 136
Burns, Ric 99, 131 De Antonio, Emile 38-39, 43, Geldzahler, Henry 43, 68, 101
59, 61-62, 174 F Giorno, John 106, 107, 108
200 C
Cabanne, Pierre 83, 84n
Déjeuner sur I’herbe (Manet) 26
de Kooning, Willem 31, 135,
Faça você mesmo (Flores)
(Warhol) 66, 114
Gluck, Nathan 84
Goddard, Paulette 159
201
Cage John 54-55, 82 176, 186 Factory-Made: Warhol Green, Sam 25
Camouflage Last Supper Diários (Warhol) 105, 118-19 and the Sixties (Watson) Greenberg, Clement 149
(Warhol) 189-190 Dickie, George 99 86n, 140 Green Car Crash (Warhol) 153
Castelli Gallery 36-37, Dick Tracy 35, 50 Feldman, Morton 171-72, 175 Guston, Philip 55
47-48, 52, 100-01, 105, Diderot, Denis 135 Fenomenologia do espírito
157, 173, 189 Dine, Jim 24 (Hegel) 135, 135n H
Castelli, Leo 100, 145 di Salvo, Donna 146 Fight, vídeo (Warhol) 122 Hackett, Pat 105, 152n
Cézanne, Paul 188 Díptico de Marilyn (Warhol) filosofia de Andy Warhol: Hacklin, Allan 147
Clemente, Francesco 155-56 67-68 de A a B e de volta a A, A Haircut, filme (Warhol) 137
Clift, Montgomery 130 Domenichino (Domenico (Warhol), 160, 164, 165n Haendel, George Frideric 184
Colacello, Bob 118, 118n, 122, Zampieri), 188 Finnegan’s Wake (Joyce) Harvey, James 13, 92-93
122n, 125, 158, 167, 176 Pato Donald 9 117, 136 Heartney, Eleanor;
Coltrane, John 68 Drácula 76, 166, 171 Fischl, Eric 146, 147n Postmodern Heretics 184
Comfort, Charles,98-99 Duchamp, Marcel 54, 57, 69, Flanner, Janet 65 Hegel, Georg; Fenomenologia
conversa, A (Matisse) 188 78 82, 83, 84,91, 95, 117, Flavin, Dan 177 do espírito 135, 135n, 183
Coplans, John 145 150, 151, 188 Foice e martelo, pinturas Herko, Freddie 136-37
Correggio, Antonio da 114 l.h.o.o.q.,; Nu descendo uma (Warhol) 157, 159, 165, 175 Hirst, Damien 58, 82
Courbet, Gustave 84 escada 57 Ford, John 143 Hitler, Adolf 10
Holy Terror (Colacello) Komar, Vitali 104 Marcos, Imelda 158 Nevelson, Louise 97
29n, 125 Koons, Jeff 81 Maria Antonieta 105 Newman, Barnett 185
Hopper, Dennis 119 Krasner, Lee 148 Marilyn (Warhol) 71 Niagara, filme 67
Howdy Doody 171-72 Maris, Roger 65 Nietzsche, Friedrich 52
Hughes, Fred 138, 141, 162, L Marisol (Marisol Escobar) 61 Nixon, Richard 54, 151
167, 174 Ladies and Gentlemen Martin, Agnes 55 Not Andy Warhol (Bidlo) 80
Hulten, Pontus 80 (Warhol) 158 Matisse, Henri 26, 156, 188; Notas de dólar (Warhol) 115
Lata(s) de sopa Campbell, A conversa, Nu descendo uma escada
I (Warhol) 79, 178, 193 Mekas, Jonas 109, 112 (Duchamp) 57
Indiana, Robert 61 Latow, Muriel 57, 58, 61, 63 Melamid, Aleksandr 104 Nureiev, Rudolf 130
Iolas, Alexandre 187 l.h.o.o.q. (Duchamp) 54 Michaels, Lorne 125
Lichtenstein, Roy 12, 24, 26, Mickey Mouse 35, 52, 70, 171 O
J 35-39, 47, 49, 50, 52, 58, Miller, Henry 15 Oldenburg, Claes 24, 26, 56, 70
Jagger, Mick 119 66, 70, 100, 168 Mona Lisa (Leonardo da Vinci) Olivo, Bob (apelidado de
Janovich, Tama; Escravos de Linich, Billy (apelidado de 54, 114 Ondine) 116-18, 131-
202 Nova York, 127-28
Jarry, Alfred; Ubu rei 26
Billy Name) 88, 90, 96,
129-31
Mona Lisa (Duchamp) 188
Monograma (Rauschenberg)
33,134, 135, 136
Ondine. Ver Olivo, Bob.
203
Jefferson, Thomas 172 Lisanby, Charles 61 32 Orion, o bruxo 132
Jesus Cristo 45, 182-83, 190 “Little Boxes”, canção Monroe, Don 124
Johns, Jasper 32-33, (Reynolds) 85 Monroe, Marilyn 11, 61, 65, P
47-48, 100 Reizinho, O 35, 41, 50 67-68, 70, 138 Palermo, Blinky; To the People
Joyce, James 118, 134, 136; Luís Napoleão 26 Morrissey, Paul 138, 143, of New York City 177
Finnegan’s Wake (Joyce) 162, 167 Palmer, John 112-13
116, 138 M Motherwell, Robert 30, 61, 186 Pássaro no espaço (Brancusi) 98
Judd, Donald 81, 177 MacDarrah 90 Elegia para a república Perdidos na noite, filme 143
Mako, Chris 152 espanhola 186 Philosophy of Arthur Danto,
K Malanga, Gerard 57, 77, 81, 84, Mulheres em revolta, filme The 17
Kaprow, Allen 97 88, 90, 109, 112, 130-31, (Warhol) 152 Picasso, Pablo 74, 107
Karp, Ivan 36-38, 43, 138, 155 “pintura modernista, A” (artigo
48-49, 100 Manet, Édouard 26 N de Greenberg) 149
Kennedy, Bobby 143 Mantegna, Andrea 183 Name, Billy. Ver Linich, Billy Piss Christ (Serrano) 184
Kennedy, Jackie 114 Mao Tse-tung, retratos de (apelidado de Billy Name) Platão 92, 110
King, Martin Luther, Jr. 143 (Warhol) 151, 153, 154 Nancy, personagem de revista Podber, Dorothy 137-38
beijo, O (Lichtenstein) 12, Mao Tse-tung 151, 154, 157 de histórias em quadrinho Point of order, filme (De
43, 52 Mapplethorpe, Robert 168, 185 35, 37, 44, 50 Antonio) 38
Pollock, Jackson 31, 148, 176 Rubin, William 148 Super-Homem 35, 41, 44, Vile, Ronnie,133
Ponti, Carlo 166 Rydell, Charles 122 50, 171 Viva 114, 118, 143, 184-85
“Pop pintado à mão” 146 Ryman, Robert 177 Suzuki, D. T 54
Popeye 35, 37, 41, 44, 50, 52 Swimming Underground: My X
Postmodern Heretics S Years in the Warhol Factory Xá do Irã 158
(Heartney) 184 Sacra Cáliz 181, 182 (Woronov) 132, 133n
Presley, Elvis 11, 65, 123, Sagração da primavera, A W
188-89 (Stravinski) 26 T Ward, Eleanor 61, 100
Princesa Gloria Von Thum Saint-Laurent, Yves 119 Taylor, Elizabeth 85, 114, 166, Warhol (Bockris) 7, 21, 29,
und Taxis 156 Sandbeck, Fred 177 171, 188 39n, 42n, 61, 62n, 152
S&H Green Stamps (Warhol) Therrien, Robert 81 Warhola, Julia 59
Q 115, 115n Thomas, Dylan 69 Watson, Steve 7, 86n, 140
Quinze minutos de Andy Schiele, Egon 115 Tia Jemima 171 Wesselman, Tom 24, 70
Warhol, programa de tv Schjeldahl, Peter 101 Tio Sam 171, 171n, 173 White, Edmund 93-94
(Warhol) 122 Schlesinger, John 143 To the People of New York City Who Killed Andrei Warhol?
204 R
Sedgwick, Edie 25, 75, 116
Seeger, Pete 85
(Palermo) 177
transfiguração do lugar-
103
Williams, Tennessee 130
205
Rabelais, Francois 75 Serrano, Andres 184, 185, 186 comum, A(Danto) 8, 15 Wittgenstein, Ludwig 63, 89,
sobrinho de Rameau, O Sombras, pinturas Twombly, Cy 32, 33, 34, 54, 61 90, 129
(Diderot) 135 (Warhol) 177 Wolffin, Heinrich 91
Rauschenberg, Robert 32, 33, Sherman, Cindy 111, 168 U Woodlawn, Holly 152
34, 48, 54-55, 61, 100 Símbolo(s) do dólar (Warhol) Ubu rei (Jarry) 26 Woronov, Mary 132-33, 133n
Monograma, Elvis vermelho 173-74 Última comunhão de
(Warhol) 65 Sleep, filme (Warhol) 106, São Jerônimo, A
Reed, Lou 118 108-09 (Domenichino) 188
A república (Platão) 110, 186 Sócrates 99 110, 112 Última Ceia, A (Leonardo
Restany, Pierre 64 Solanas, Valerie 18, 138, da Vinci) 186-87
Reynolds, Malvina 85, 86n 140-44, 161, 163, 165, 174 Última(s) Ceia(s) (Warhol)
Rockwell, Norman 170 Sonnabend, Ileana 10, 101, 115 163, 178, 188, 189, 191,
Ródtchenko, Aleksandr 53, 55 Stálin, Josef 10, 154 192-93
Rose, Barbara 148 Steinberg, Leo106, 107 Ulisses (Joyce), 134
Rosenquist, James 24, 43, Steinberg, Saul 159
58, 70 Store, The (Oldenburg) 56 V
Rothko, Mark 31 Storm Door (Warhol) 86 Velvet Underground, The,
Rotten Rita 132 Stravinski, Igor 26 grupo de rock 29, 109
© Cosac Naify, 2012
© Yale University Press, 2009

Edição Cassiano Elek Machado e Luiza Mello Franco


Preparação Célia Euvaldo
Revisão Pedro Paulo Silva e Maria Fernanda Alvares
Projeto gráfico Paulo André Chagas
Produção Lilia Góes

Nesta edição, respeitou-se o novo


Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)


(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

Danto, Arthur C. [1924- ]


Andy Warhol: Arthur C. Danto
Título original: Andy Warhol
Tradução: Vera Pereira
São Paulo: Cosac Naify, 2012
208 pp.

isbn 978-85-405-0100-3

1. Arte e sociedade - Estados Unidos - História - Século 20


2. Artistas - Estados Unidos - Biografia
3. Warhol, Andy, 1928-1987 - Crítica e interpretação i. Título.

12-02750 cdd-700.92

Índices para catálogo sistemático:


1. Warhol, Andy: Artistas pop: Biografia 700.92

Este livro foi feito com o


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Vera Pereira por tornar este cosacnaify.com.br
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Fontes Miller e Knockout
Papel Eco Lenza 80 g/m2
Impressão Geográfica
Tiragem 2 000

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