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149-164
DESEMPENHO ESCOLAR E
VULNERABILIDADE SOCIAL
RESUMO
Este artigo discute a dinâmica do desenvolvimento e outros conceitos construídos pelo Enfoque Histórico-
-Cultural como categorias que permitem compreender de forma mais adequada o desempenho escolar de sujeitos
em situação de vulnerabilidade social. Demonstra a contribuição da Psicologia para construir, a partir de uma
perspectiva interdisciplinar e do pensamento complexo uma explicação mais abrangente do desenvolvimento
humano e das relações entre aprendizado e desenvolvimento humano. São apresentados fragmentos de ações
educativas realizadas com dois sujeitos em situação de risco social.
ABSTRACT
This article debates the dynamics of the development and other concepts built by the Historical-Cultural theory
as categories that make it possible to understand properly the scholar development of those ones who are
socially vulnerable. It demonstrates the contribution of psychology to create, based on an interdisciplinary and
on a complex thought perspectives, a wider explanation of the human development and the relations between
the human learning and development process. Parts of educational actions that have been conducted with two
students considered to be in social danger are presented here.
1. Doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.
Pesquisadora do programa de Mestrado em Ensino de Ciências e Matemática da Universidade Cruzeiro do Sul. Coordenadora do
Curso de Especialização em Psicopedagogia na mesma Universidade. E-mail: lcalejon@ig.com.br
INTRODUÇÃO criando um contingente de sujeitos em situação de
vulnerabilidade social. Muitos destes adolescentes
Os argumentos e idéias propostas neste artigo e adultos acabam em instituições de custódia, sejam
resultam da reflexão e experiências compartilhadas presídios ou instituições que abrigam menores em
com investigadores da Cátedra Vygotsky da conflito com a lei ou com conduta antissocial. O
Universidade de Havana, com alunos e professores sistema escolar acaba por constituir-se em uma
do Curso de Especialização em Psicopedagogia, forma de transmissão da desigualdade social que
com pesquisadores do Programa de Pós-Graduação pode ser analisado pela perspectiva de Bourdie
no Ensino de ciências e Matemática oferecidos pela da escola considerada como reprodução da ordem
Universidade Cruzeiro do Sul e com pesquisadores social. Patto (1990) examina a produção do fracasso
do Instituto Brasileiro da Diversidade (IBD). escolar no contexto brasileiro, analisando as raízes
O desempenho escolar de estudantes brasileiros históricas das concepções sobre o fracasso escolar
tem sido pouco satisfatório tanto em avaliações como um triunfo de uma visão de mundo e de um
nacionais quanto em avaliações internacionais. Os modo de organização social, política e econômica.
investimentos feitos pelo governo federal entre Neste artigo analisamos o desempenho escolar em
2004 e 2008, no Programa Brasil Alfabetizado, diferentes contextos de ensino/aprendizagem que
reduziu apenas de aproximadamente 11% a cerca de envolvem sujeitos em situação vulnerabilidade
10% os adolescentes de 15 anos que não conseguem social. A reflexão proposta está sustentada por
escrever um bilhete simples. Encontramos ainda diferentes referenciais teóricos que se articulam
dados pouco satisfatórios nas avaliações nacionais a partir do Enfoque Histórico-Cultural e das
de desempenho dos alunos do ensino fundamental concepções sobre aprendizagem, desenvolvimento
em relação à língua portuguesa, à matemática e humano propostas por este referencial, considerando
ciências. Em 2003 o INEP apontava que 54% das a dimensão integradora das explicações propostas
crianças da quarta série do Ensino Fundamental por este enfoque. Assim, o artigo apresenta
apresentam desempenho muito critico na leitura inicialmente uma análise sobre a dinâmica do
ou não sabem realizar cálculos simples com as desenvolvimento como uma categoria de análise do
quatro operações. Nas Universidades encontramos desempenho escolar e a situação de vulnerabilidade
o fenômeno do analfabetismo funcional. O social em que se encontram alguns adolescentes
cenário brasileiro é regido por fortes diferenças brasileiros. O artigo analisa resultados de um
sociais e de oportunidades que transformam a projeto pedagógico, na área da leitura e da escrita,
diversidade em desigualdade e injustiças sociais, demonstrando o lugar da afetividade e das vivências
processo educacional, podendo aceitar e lutando que se evadem da escola, ou repetem, configurando
pela igualdade de acesso. Resulta que: o cenário do fracasso escolar descrito por Patto
(1990) e analisado por outros pesquisadores que
As políticas públicas liberais dos anos 90 aos atuais
colocaram 97% das crianças brasileiras, em idade procuram compreender, de modo crítico, as queixas
escolar na escola, mas não conseguiram garantir escolares. Os portadores de necessidades educativas
qualidade para todas. Este é o limite do projeto especiais e aquelas crianças que se evadem da
liberal (FREITAS, 2009, p. 19). escola, ou repetem, configuram.
O aluno, principalmente nas camadas menos Para compreender este cenário, o sofrimento do
favorecidas economicamente e com menores índices aluno e do professor, assim como o desempenho
de escolarização, em geral, acaba sendo visualizado dos alunos em determinados contextos, assume-se
pelo fracasso escolar ou pelo ato de desobediência as explicações sobre a aprendizagem e o desen-
às regras instituídas e de agressão. Concordamos volvimento humano oferecidos pelo Enfoque
com Feitas (2009) que os estudantes na escola Histórico-Cultural.
não aprendem apenas os conteúdos das disciplinas
escolares, mas também vivenciam relações sociais e
A DINÂMICA DO DESENVOLVIMENTO
terminam desenvolvendo valores e atitudes. Resulta deste
COMO CATEGORIA DE ANÁLISE DO
argumento a pergunta freqüente: Que valores a escola
DESEMPENHO ESCOLAR DE CRIANÇAS E
deveria disponibilizar: competição, consumismo,
ADOLESCENTES EM SITUAÇÃO DE
individualismo, solidariedade, cooperação? RISCO SOCIAL
Assinala ainda o autor considerado que retirar
a vida da escola torna a mesma um lugar insalubre, O Enfoque Histórico-Cultural conceitua o
sem motivação que necessita constantemente da desenvolvimento psicológico como um processo
avaliação do comportamento dos alunos. Resulta complexo que tem sua fonte ou origem nas
deste contexto um processo de submissão do aluno condições e organização do contexto social e
ao autoritarismo do professor que, por sua vez, é cultural que influenciam o sujeito ao longo e sua
sustentado pela avaliação. Relações sociais de troca história, mas que se produz definitivamente no
introjetadas nos processos pedagógicos passam a sujeito como resultado do acúmulo da experiência
ser inseridas no interior da escola. O conhecimento pessoal a partir de suas vivências (BEATÓN,
perde seu valor de uso e transforma-se em 2005). Esta concepção do desenvolvimento
experiência de aprendizagem do valor de troca de humano oferece maiores recursos para
mercadoria. O conhecimento virou uma mercadoria compreender os processos de aprendizagem de
(FREITAS, 2009, p. 22). uma forma ampla e particularmente no caso
Santos (2001) analisa a busca de um caminho daqueles sujeitos que se encontram em situação
para o Brasil que acaba percorrendo círculos de risco social para seu desenvolvimento. Como
viciosos na medida em que faz da educação um demonstrou Vygotski, o desenvolvimento
processo de transmissão das desigualdades sociais, psicológico constitui-se em um processo dialético,
transformando a diversidade em desigualdade e complexo, caracterizado por uma periodicidade
injustiça social. O autor demonstra, ao descrever múltipla, pela desproporção no desenvolvimento
um Brasil de carne e osso, os processos de exclusão de distintas funções, por trans- formações
a que estão submetidos, principalmente negros e qualitativas e pelo entrecruzamento das condições
mulheres. Cabe ressaltar em concordância com internas e externas, assim como por um intrincado
o autor, a exclusão que sofrem os portadores de processo de superação de dificuldades e esforço de
necessidades educativas especiais e aquelas crianças adaptação.
Considerar a dinâmica complexa do desen-
volvimento como explicação para compreender
afetam o sujeito e apontam a necessidade de analisar produzido uma crítica sobre a cientificidade desta
o ambiente que afeta o sujeito não em seus valores disciplina.
absolutos, mas do modo como estes só vivenciados A diversidade de teorias explicativas para o
pelos sujeito. desenvolvimento humano, para a aprendizagem,
Considerando que o significado primário de para a personalidade é uma evidência no cenário
um movimento ou de um fato é dado pelo outro, atual da Psicologia e uma demonstração de que
o processo de internalização, as possibilidades a crise enfrentada pela psicologia no início da
de uso de instrumentos e signos, assim como a século XX e analisada por Vygotsky, não foi ainda
riqueza de conteúdos da realidade oferecidos aos superada. Tratar esta diversidade como natural e
sujeitos, podemos compreender os prejuízos no como uma resultante da complexidade do objeto de
desenvolvimento de adolescentes em situação de estudo da Psicologia significa assumir explicações
risco e vulnerabilidade social, como são as internas construídas a partir de dimensões particulares do
da unidade da Fundação Casa que participaram do objeto de estudo tomadas como gerais. Tratar das
projeto descrito neste artigo. Uma renda de até dois diferentes teorias da Psicologia, sem considerar
salários mínimos, pais desempregados, viver na rua, a dimensão histórica e os contextos em que elas
pais analfabetos e outras condições semelhantes foram produzidas também não ajuda a superar o
configuram um universo que não oferece ao sujeito ecletismo. Fariñas (2010) assinala a preocupação
muitas possibilidades de uso de instrumento e assumida por alguns teóricos da psicologia em
signos, assim como de outros conteúdos de cultura [...] não conseguir essa visão compreensivelmente
e vivências positivas. Este contexto também não humana que nos permite maior aproximação com o
oferece aos sujeitos relações interpessoais regidas homem real, concreto que não é mais do que uma
por uma valorização realista e afetuosa dos seus integridade organizada como organismo, indivíduo,
pessoa, cidadão,personalidade, sociedade, grupo (p. 50).
recursos. Conseqüentemente não podemos esperar
nestes adolescentes uma auto-estima realista, assim A proposição de uma nova concepção de
como o desenvolvimento adequado das funções desenvolvimento humano constitui-se em uma das
psíquicas superiores. alternativas sugeridas pela autora que considera que
Leon (2010), discutindo a interdisciplinaridade a Psicologia Social foi abordando paulatinamente
nas Ciências Sociais demonstra a contribuição que is problemas dos grupos, os preconceitos sociais,
a Psicologia pode oferecer desde a perspectiva a propaganda, mas sem integrar verdadeiramente
do pensamento complexo e dialético. Analisa o o desenvolvimento o desenvolvimento pessoal e a
ecletismo como um problema da Psicologia, assim evolução social em uma concepção sistêmica. Na
como a necessidade de sistematizar um novo academia, como demonstra a autora, a Psicologia
conceito de desenvolvimento humano, a relação Social, a Psicologia Educativa, a Psicologia do
entre subjetivação, criticidade e enraizamento Trabalho, entre outras, são estudadas como psico-
cultural. logias independentes, com conceitos intocáveis para
Na análise do ecletismo versus pensamento as demais.
dialético e complexo como um problema não só O paradoxo fundamental da educação e do
da Psicologia, mas das demais Ciências Sociais, desenvolvimento humano se expressa na contra-
a autora faz algumas considerações que merecem dição entre dependência e independência que o
destaque: a) que o pós-modernismo encarregou- sujeito pode resolver no seu processo de enrai-
-se de acentuar a diversidade e a pluralidade como zamento cultural. A essência desta contradição
condições naturais dos fenômenos estudados; b) a manifesta-se no modo como o sujeito produz sua
interpretação habitualmente diversa de um mesmo independência, considerada como auto-educação, a
fenômeno, ao longo da história da Psicologia tem
partir da dependência dos outros. Esse movimento Salientamos, neste relato, para a questão que
configura-se como atos de subjetivação, sendo que, desejamos enfocar, um fragmento do diálogo entre
nesta dinâmica de enraizamento cultural, o sujeito o aluno e a psicopedagoga, relacionado com a
constitui-se como pessoa. Este paradoxo expressa- atividade de leitura e o uso do dicionário. Em uma
-se por meio da reprodução criativa da cultura que atividade de leitura que pretendia aprender a usar o
constitui a essência da subjetivação (FARIÑAS, dicionário a psicopedagoga sugere que ele escolha
2010). A contradição independência/dependência uma palavra. A palavra escolhida foi intolerante. A
só pode ser resolvida satisfatoriamente em um psicopedagoga sugere e ajuda o aluno a procurar
contexto de coletividade conformado por uma no dicionário o significado da palavra intolerante,
interdependência responsável. pedindo que o mesmo leia o que está escrito. O
A assunção da categoria “dinâmica do desen- aluno lê com dificuldade. Depois da leitura, a
volvimento” resulta de assumir uma explicação do psicopedagoga pergunta ao aluno se ele entendeu
desenvolvimento capaz de abarcar a complexidade o que leu. O aluno tem um momento de hesitação
do processo. e permanece em silêncio.. A psicopedagoga faz
em voz alta a leitura do significado da palavra
intolerante Depois da leitura pergunta novamente
APRENDIZAGEM E DESEMPENHO o aluno se ele entendeu o significado da palavra
ESCOLAR EM CONTEXTOS DE intolerante. O aluno responde agora com mais
VULNERABILIDADE SOCIAL segurança e responde: Entendi, mas eu não sou isso.
A atividade com o dicionário foi organizada porque
As situações analisadas na seqüência deste o aluno relatava que seus colegas usavam o mesmo
artigo resultam da atuação de alunos do curso de e ele não usava porque não sabia, tinha vergonha de
especialização em Psicopedagogia, em contextos perguntar e não tinha dicionário em casa.
de ensino marcados pela vulnerabilidade social dos A situação vivida pelo aluno oferecia ao aluno a
estudantes. No primeiro caso, o sujeito era aluno possibilidade integrar a dimensão afetiva e cognitiva
do ensino fundamental de uma unidade escolar da na apreensão do significado da palavra e na re-
zona leste da cidade de São Paulo, atendido pela elaboração de sentimentos e vivências anteriores
psicopedagoga Edneusa Fontana. O segundo caso produzidas nas relações interpessoais. A identidade
analisa um programa de leitura desenvolvido na pessoal e a auto-estima do aluno são reorganizadas,
Fundação Casa em São Paulo. O relacionamento interpessoal oferecia ao aluno a
No primeiro caso, o projeto oferecido ini- oportunidade de articular a dimensão cognitiva e
cialmente à unidade escolar considerava as dimen- afetiva no ato de aprender o significado da palavra
sões relevantes para a compreensão do aprender: o expressa no dicionário e o sentido que ela adquiria
aluno, a família, os educadores e gestores. Uma série para expressar sua forma de existir.
de circunstâncias relacionadas, por um lado com o A leitura da palavra possibilitava a leitura da
clima e a dinâmica da unidade escolar e, por outro própria história de relacionamentos interpessoais
com a disponibilidade dos estagiários determinou que configuram seu contexto de subjetivação.
que a atenção ao aluno fosse a dimensão mis efetiva O segundo caso apresenta fragmento de
do projeto. um projeto de leitura e escrita desenvolvido na
Um dos alunos atendidos veste projeto, cursando Fundação Casa e apresentado, com mais detalhes
a sexta série, era considerado pelos professores no trabalho de conclusão de curso de especialização
como um aluno que não havia aprendido a ler. Um elaborado por Silmara Moreira, com o título
dos encontros entre o aluno e a psicopedagogo Afetividade e Aprendizagem de Adolescentes em
ocorreu no estacionamento da escola, por sugestão Situação de Vulnerabilidade Social.
do aluno, dado que não havia sala disponível.
tempo (afetivo, cognitivo, social, moral e físico), de exclusão social que atinge estes jovens, antes
entendendo também que o desenvolvimento implica mesmo de cometerem a infração.
numa relação e uma constante influencia recíproca Assim, promover uma ação socioeducativa
entre o sujeito e o meio em que vive; considerando requer, antes de tudo, que os profissionais
as inúmeras interações entre o educador – em sentido envolvidos no processo estabeleçam compromissos
amplo – o adolescente e a Instituição representando com o adolescente atendido e consigo próprios; que
o meio social e assumindo a responsabilidade de se aproximem de um estado maior de sentimentos
estabelecer e de manter os vínculos criados. que possibilite e viabilize a crença no outro, a
A proposta do plano pedagógico tem como confiança em suas potencialidades e na superação
premissa que é a partir da educação que se promovem de seus limites.
as condições objetivas para a compreensão da Todavia, atualmente o caminho da Fundação
realidade social, como meio de construção de Casa não é percorrido solitariamente, mas
uma pedagogia que visa oportunidades equitativas compartilhado com parceiros de outras políticas
e apoio para o atendimento às necessidades sociais básicas, na área publica ou privada,
apresentadas pelo adolescente. Ao posicionar a da sociedade civil organizada e seus órgãos
educação como eixo buscou-se construir um projeto representativos, das famílias dos adolescentes
pedagógico que garanta a articulação efetiva entre atendidos e dos órgãos do Sistema de Justiça.
a escolarização formal e as demais atividades Participar de programas comunitários e estimular a
pedagógicas (profissionalizante, arte e cultura e comunidade no sentido de obter a sua indispensável
esportiva) com a composição de currículo integrado. colaboração para o desenvolvimento de programas
Portanto as atividades propostas devem pos- de reintegração social e/ou cultural, educacional e
sibilitar à expressão da criatividade, o protagonismo profissional dos adolescentes; manter intercâmbio
juvenil, a construção da identidade, o resgate da com entidades que se dediquem às atividades que
auto-estima, a formação de vínculos relacionais de desenvolve, no âmbito particular e oficial são
pertencimento a grupos, além de oferecer condições alternativas para efetivar as parcerias.
para outras escolhas, de forma que viabilizem Portanto, o desafio é a realização de um
novos contextos re relações interpessoais,uma trabalho que possa integrar o adolescente infrator
inserção social digna e cidadã aos adolescentes que na sociedade, auxiliando inclusive na redução da
cumprem medida sócio-educativa. reincidência, oferecendo oportunidades para um
No trabalho educativo estão previstos momentos novo papel social, menos estigmatizado.
de reflexão que oportunizam ao adolescente De acordo com o Projeto de Reorganização
repensar criticamente seu percurso, suas escolhas, da Trajetória Escolar dos Adolescentes Internos
seus valores, suas relações, seus grupos de perten- na Fundação Casa (2005)3, os adolescentes
cimento, uma maior aproximação com a família e apresentam uma distorção idade/série na faixa de
a comunidade, de modo que diferentes alternativas 80%. São jovens com itinerários de vida escolar
possam ser consideradas, auxiliando a busca de interrompidos por problemas sociais constantes:
novos caminhos na trajetória de vida futura que, desagregação familiar, drogas, violência, falta de
ao mesmo tempo, o insiram positivamente na moradia etc. Muitos chegam a Fundação Casa com
sociedade.
3. O Projeto de Reorganização Escolar está especificado em
É preciso então que o educador compreenda a documento já editado para o Exame Nacional de Certificação
de Competências para Educação de Jovens e Adultos do
adolescência, enquanto período de transformações MEC/INEP. Este documento foi organizado e aprovado
e desenvolvimento e ao mesmo tempo é necessária por especialistas da educação e atende os pressupostos da
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional 9.394/96 e
a superação dos paradigmas, para que não seja as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Funda-
reforçado dentro da própria Instituição o processo mental e Médio.
O uso das fábulas como recurso no processo R. tem dezoito anos de idade; deu entrada na
de ensino e aprendizagem defende que a leitura Fundação Casa aos 14/07/08. Foi internada em
e a escrita não são atividades mecânicas e o função de ato infracional equiparado a tráfico de
educador precisa ter claro seus objetivos e sua entorpecentes. Nesta época já não mais residia com
intencionalidade Do Projeto, “Lendo, escrevendo, a família, estando amasiada com um jovem também
aprendendo com as Fábulas, transcrevendo para envolvido no tráfico de drogas.
realidade”, nasceu um livro produzido por alunas R. deu entrada na Fundação Casa sem nenhum
dedicadas e criativas do ensino fundamental (EJA) tipo de identificação, seus genitores foram
da Fundação CASA. assaltados quando era ainda muito criança e todos os
Dentro da proposta de atividades que mini- documentos foram perdidos, inclusive sua Certidão
mizassem as dificuldades de aprendizagem das de Nascimento. Desta data em diante a jovem
adolescentes participantes da alfabetização (EJA) nunca mais teve documento algum; em função da
este livro foi elaborado a partir inicialmente falta de documentos não conseguiu estudar e por
da leitura das fábulas de Esopo pelas alunas. essa razão chegou à medida socioeducativa de
Posteriormente as adolescentes transcreveram as internação apresentando analfabetismo funcional,
fábulas para o caderno; discutiram a compreensão ou seja, incapacidade de interpretar o que lê e de
de cada uma sobre o conteúdo de cada fábula; usar a leitura e a escrita em atividades cotidianas,
dramatizaram as histórias; ilustraram as fábulas impossibilitando seu desenvolvimento pessoal e
com desenhos que expressassem o conteúdo profissional. Apresentava grande dificuldade em
escrito; refletiram sobre os aspectos da realidade compreender o significado das palavras, expor
vivida por elas, por fim, transcreveram cada fábula idéias no papel por meio da escrita ou realizar
com aspectos de suas vivências, podendo refletir operações matemáticas mais elaboradas.
sobre propostas de mudança de atitudes para a R. aprendeu o pouco que sabe pela curiosidade
vida futura. e pela vontade de reconhecer o mundo através das
Foram observados: os cadernos e demais letras. Os genitores não deram importância para
exercícios das alunas; as práticas de leitura e escrita as questões relacionadas à educação dos filhos,
das educandas; o contexto das relações interpessoais deixando-os à margem da ação educativa. Neste
e a oralidade das alunas; a prática pedagógica sentido, R. por ser a filha mais velha, desde muito
tendo as fábulas como estratégia de intervenção, as cedo foi privada a escolarização para cuidar dos
relações afetivas professor-aluno e aluno-aluno. afazeres domésticos e dos cuidados com os irmãos
As jovens foram estimuladas a operar com mais novos.
idéias, analisá-las e discuti-las para que na troca e Para Vigotsky (1984) as vivências do sujeito
no diálogo com o outro, pudessem construir o seu são fundamentais para que este se estabeleça como
ponto de regulação para um pensar competente e sujeito lúcido e consciente, hábil para alterar o modo
comprometido com o conhecimento. em que vive. Nesta medida, o acesso a instrumentos
Deste modo, as relações interpessoais físicos ou simbólicos oferecidos como conteúdos
proporcionadas pelo Projeto a reflexão sobre o da cultura consiste em condições necessárias e
conteúdo das fábulas e sobre a relação entre este fundamentais para o desenvolvimento do sujeito.
conteúdo e as situações vividas e as vivencias Quando chegou à Fundação Casa a interna
relacionadas com as diferentes situações permitiram apresentava um ar pueril e embora tivesse envol-
as jovens uma construção e transformação confe- vimento no meio infracional, não impressionava
rindo novos significados e sentidos para a vida. como infratora, ao contrário apresentou-se como
O caso de R. pode ser tomado como exemplo uma jovem de fala mansa, bastante dócil e receptiva
dos resultados do projeto. às orientações. R. apresentava uma sensação
de vazio, de incapacidade, de insignificância, como ela reage; aprender o seu quadro de referência em
indicando uma auto-imagem distorcida, de auto- relação àquilo sobre que esta falando (p. 385).
-estima pouco realista. Rogers (2009) parte da premissa de que não há
No início da medida sócioeducativa R. aprendizagem sem vínculo afetivo, sem empatia,
apresentou inúmeras dificuldades no processo de entre quem ensina e quem aprende. Privilegia a
aprendizagem, não conseguia acompanhar o ritmo experiência subjetiva do sujeito, implicando que o
da classe, sentia vergonha em se expor diante do conhecimento que se tem do outro surge a partir da
grupo e nas atividades em que era necessário compreensão do seu quadro de referências.
a leitura; os comportamentos de esquiva eram A natureza das relações interpessoais que
inevitáveis. R. estabeleceu com a professora e com o grupo,
Entretanto, a partir do Projeto das Fábulas e da possibilitada pela sensibilidade e perspicácia da
relação estabelecida com a professora, R. começou professora, configuraram um novo contexto que
a se mostrar mais estimulada na realização de suas permitiu a R. a reelaboração de sua história pessoal,
tarefas, esforçando-se para acompanhar as aulas, assim como apropriar-se dos instrumentos da
procurando tirar suas dúvidas junto à professora. cultura como a leitura e a escrita.
R. pela primeira vez teve a oportunidade de O vínculo afetivo estabelecido com a professora
conviver de maneira consistente com algo que permitiu a R. entrar em contato com seus conteúdos
nunca teve, a possibilidade de estudar e se sentir positivos e está aprender, paulatinamente a
parte de um grupo em que conseguiu se reconhecer valorizá-los, de forma que pode agora integrar
e ser reconhecida como alguém capaz. A postura suas necessidades e ações com a aprendizagem
da professora perante as suas dificuldades criou de conteúdos que fazem a diferença para sua
um clima de confiança que favoreceu para que R. vida, além de ter se tornado capaz de escrever, ler,
pudesse sentir-se genuinamente aceita, compre- compreender o que está lendo e dessa forma se
endida e respeitada, sentimentos que ajudaram comunicar de maneira mais eficiente, sendo capaz
na superação de algumas de suas dificuldades. R. de enfrentar situações, sem sacrificar seus valores e
começou então a se enxergar de outra maneira; padrões de conduta.
neste momento do processo sua auto-imagem e Outro fator que contribuiu para as conquistas
sua auto-estima começaram a sofrer alterações de R. foi a atmosfera criada para a elaboração do
positivas. Projeto, permeada de prazer, acolhimento, alegria,
A escuta ativa, compreensiva e empática apa- companheirismo; prazerosamente o conteúdo foi
receu freqüentemente nos comportamentos da apresentado, as dificuldades percebidas e acolhidas
professora. Em muitos momentos durante as aulas como parte do processo, auxiliando-a, desta forma,
deixou as alunas se expressarem, utilizando a roda na superação das dificuldades.
da conversa, tentando conhecer a situação em Talvez a dimensão mais significativa deste
que as alunas se encontravam, ou melhor, tentava contexto para o resultado observado no projeto
compreender suas vivências, valorizando suas tenha sido o fato de ter atribuído a R. um papel
histórias. que lhe permitiu dar uma contribuição autêntica
De acordo com Rogers (2009) ouvir é admitir e bem definida ao Projeto, tendo recebido uma
uma atitude de atenção frente à pessoa do aluno, incumbência precisa que lhe possibilitou sentir-se
no entanto ouvir com compreensão significa que a inteiramente responsável e orgulhosa.
escuta vai além da simples percepção dos sons pelo Por outro lado, o educador precisa considerar a
sentido da audição. Ouvir exige uma sensibilidade história do sujeito, pois ela o identifica, o situa no
para escutar o não-dito, é procurar ver a idéia e a atitude mundo, tornando-o único, com suas experiências
expressa pela outra pessoa do seu ponto de vista, sentir vividas diariamente por meio de produções
culturais. Assim sendo, quando R. pôde reconhecer correspondente àquela estabelecida pelo contexto
e compartilhar sua história ganhou a sensação de social e cultural, e afinal encontrar um interlocutor
pertencimento e a possibilidade de ressignificar sua que pode ver além das aparências e construir
vida através da aprendizagem da leitura e da escrita, relações interpessoais respeitosas.
pois sua professora não lhe ensinou somente a ler, Como demonstra Vygotsky com os conceitos de
mas principalmente a atribuir sentido ao que se internalização e de imaginação criativa, o processo
descobre, descobrindo o mundo e compreendendo de constituição do sujeito recria as condições
a vida. estabelecidas pelas relações interpessoais e a
R. escolheu, para leitura, uma fábula que tratava fantasia busca, nos dados oferecidos pela realidade,
de uma gata que se apaixona por um belo rapaz, o material com o qual vai trabalhar. R. e o aluno
pedindo a Venus, deusa do amor, que a transformasse atendido na escola evidenciam um dos princípios
em uma bela moça. Atendendo seu pedido Venus importantes estabelecido pelo Enfoque Histórico-
transforma a gata em uma bela mulher por quem o -Cultural, ou seja, o sujeito constitui-se a partir
rapaz se apaixona e se casam. Algum tempo depois, do outro e recriando os conteúdos da cultura no
para testar a moça, Venus coloca um rato na sua contexto das relações interpessoais.
casa. A moça reage ao rato como se fosse uma gata.
Constatando que não havia mudança interior e, como
forma de castigo, Venus transforma novamente a
CONSIDERAÇÕES FINAIS
mulher em gata. A moral da fábula é: A aparência
pose ser mudada, mas não assegura a mudança da Os casos apresentados podem ser considerados
natureza. a partir de diferentes referenciais teóricos que
R. reescreve a fábula trazendo Antonio, um apresentam algumas convergências. O contexto
morador de rua, super-educado, mas sujo e mal das relações interpessoais, o vínculo afetivo que
vestido e por isso esnobado por todos não conseguia marca o lugar da afetividade no processo de ensino-
comunicar-se com ninguém que não fossem outros -aprendizagem e de desenvolvimento humano é
mendigos. Certo dia, parado por uma moça muito apontado por diferentes teóricos. O estabelecimento
bonita, reage dizendo: O que quer moça... vai me de um vínculo afetivo requer a consideração das
zoar... xingar... me chamar de desgraça ou coisa condições e recursos do outro. R. tinha no projeto
parecida? A moça responde: Não senhor, eu vim um lugar definido que lhe permitia ser responsável
para dizer que o senhor tem bom coração e sei que e orgulhoso, o aluno encontrou uma interlocutora
o senhor pode fazer a diferença. disposta a considerar seus recursos pessoais e suas
A moral da fábula de R. seria: As aparências vivências O educador considera a história do sujeito,
enganam, nunca julgue as pessoas apenas pela suas experiências e vivencias, permitindo que R.
aparência. reconheça e compartilhe sua história, ganhando
A moral da fábula reescrita por R. caminha a dimensão de pertença e responsabilidade. Na
em uma direção diferente da moral da fábula que fábula que R. reescreve o personagem ocupa
ela leu. R. constrói seus personagens e as relações o mesmo lugar que ela ocupou na vida: é um
entre eles, a partir de sua história pessoal, de suas morador de rua que ainda que super-educado não
vivências e dos significados e valores estabelecidos era respeitado e valorizado pelos “outros” que são
pelo contexto cultural em que está inserida: ser portadores de cultura. A moça valorizada (bonita
morador de rua,ser invisibilizado por sua aparência, e gentil) acreditava nos recursos dele e nas suas
ser maltratado por alguém que tem uma aparência possibilidades. O vínculo afetivo necessário para o
sucesso da aprendizagem corresponde a uma relação aponta para o lugar do “outro”, do desenvolvimento
interpessoal descrita no processo de internalização, real ou atual do sujeito, do desenvolvimento
uma relação interpessoal em que o outro atribui potencial, do papel da comunicação e da atividade.
significados, considera os recursos e a história do Escrever sobre estes conceitos parece ser mais fácil
sujeito e assinala de modo realista seus recursos, do que efetivamente considerá-los na organização
permitindo ampliar o domínio que o sujeito tem da ação educativa.
da leitura e da escrita. R. está dando um pequeno e
importante passo no seu processo de aprendizagem Recebido em: janeiro de 2011
Aceito em: março de 2011
e de desenvolvimento propiciado pelo projeto
descrito. O projeto apresentado resgata a dimensão
afetiva e articula a dimensão afetiva e cognitiva dos
processos de ensino e aprendizagem. REFERÊNCIAS
Ainda que teóricos como Rogers enfatizado BEATÓN G. A. La Persona en lo histórico-cultural. São Paulo:
LinearB, 2005
o papel da empatia, da congruência, da aceitação
FARIÑAS G. A Interdisciplinaridade nas Ciências Sociais: a
incondicional nas relações interpessoais e que contribuição da psicologia desde o pensamento complexo.
Pichon-Riviere tenha assinalado a diferença entre Tradução de Laura Marisa Carnielo Calejon. São Paulo:
Terceira Margem, 2010.
objeto interno e vínculo, encontramos nos conceitos
FREITAS L C. Avaliação educacional: caminhando pela
de internalização, vivência, imaginação criadora contramão. Petrópolis: Vozes Ltda., 2009.
funções psíquicas superiores, a possibilidade de PATTO M. H. S. A produção do fracasso escolar. São Paulo: A.
compreender, de modo mais claro como as condi- Queiroz, 1990.
ções materiais de vida, os conteúdos da cultura e ROGERS, C. R. Tornar-se pessoa. 6. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2009.
a natureza das relações interpessoais permitem
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