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A sociedade dividida e a natureza destruída

"Estamos em um carro gigante, acelerando na direção de uma parede de tijolos


e todo mundo fica discutindo sobre onde cada um vai sentar"
David Suzuki

O mundo vive uma grande crise climática e ambiental. O aquecimento global e a perda de
biodiversidade são evidências de ultrapassagem de duas fronteiras planetárias que podem
gerar um grande colapso ecológico global ainda no século XXI. Utilizando um verso de uma
canção de Marília Mendonça para refletir o atual “pacto suicida” da insustentabilidade
ambiental: “Ninguém vai sofrer sozinho. Todo mundo vai sofrer”.

O diagnóstico do imbróglio atual é simples: a humanidade ultrapassou a capacidade de


resiliência do Planeta e a Pegada Ecológica já está mais de 70% acima da Biocapacidade da
Terra. Como a economia é um subsistema da ecologia é preciso adaptar a primeira em relação
à segunda. A produção e o consumo humano não podem crescer infinitamente em uma Terra
finita.

Sabemos qual é a doença e sabemos qual é a receita. Se a humanidade ultrapassou a


capacidade de carga da Terra, o remédio indicado é a redução do peso das atividades
antrópicas e a diminuição da sobrecarga econômica sobre os ecossistemas. Comensais gulosos
precisam se adaptar ao tamanho do banquete. Se não é possível aumentar indefinidamente o
superávit de bens e serviços, a alternativa é reduzir o déficit ambiental.

A figura abaixo, da Global Footprint Network, mostra que a Pegada Ecológica estava em 20,9
bilhões de hectares globais (gha) em 2017, para uma Biocapacidade do Planeta de 12,1 gha. O
déficit estava em 73%. A solução é reduzir a Pegada Ecológica para a casa de 12 bilhões de gha,
pois, como bem lembrou Deborah Danowski “Não tem mais mundo pra todo mundo”.

Há 5 maneiras para reduzir a Pegada Ecológica global no curto e médio prazo: 1) diminuir a
produção de bens e serviços; 2) modificar o estilo de produção e consumo (fazendo uma
mudança na matriz energética, mudando a dieta alimentar, reduzindo o luxo e o lixo, etc.); 3)
avançar com a tecnologia e a eficiência produtiva; 4) reduzir as desigualdades sociais e
regionais; 5) reduzir o tamanho da população.

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A primeira alternativa requer o decrescimento do Produto Interno Bruto. Porém,
simplesmente diminuir a produção e a renda agregada significa empobrecer a nação. Assim, é
uma alternativa amplamente minoritária no pensamento mundial, pois existe a “doença” do
crescentismo e do desenvolvimentismo. Governantes, partidos políticos, empresários,
sindicados, associações de trabalhadores, igrejas e a sociedade civil em geral querem
aumentar a produção e o consumo. De modo geral, o empresário quer aumentar o lucro, o
trabalhador que aumentar o salário, o Estado quer aumentar os impostos e a nação quer
aumentar seu poder geoestratégico. Por tudo isto, a perspectiva de decrescimento econômico
é muito difícil de ser colocada em prática. Os países pobres, por exemplo, querem diminuir a
pobreza e reivindicam o direito ao desenvolvimento e a um alto padrão de vida.

A segunda alternativa requer mudanças tecnológicas e nas opções de consumo. A mudança da


matriz energética, por exemplo, é fundamental para sair dos combustíveis fósseis e avançar
nas energias renováveis, reduzindo as emissões de gases de efeito estufa (GEE). Esta transição
já está ocorrendo, mas em um ritmo muito lento, ainda mais que existem países, como a Índia,
que dependem muito da produção e uso do carvão mineral. Além disto, as grande empresas
de petróleo não querem abrir mão dos subsídios que recebem e nem abandonar as reservas
comprovadas de hidrocarbonetos. A mudança na dieta alimentar é uma outra necessidade,
mas muita gente não quer abandonar o consumo de carne e o produção de alimentos
orgânicos encontra resistência em termos de preço e de escala produtiva.

A terceira alternativa é talvez a menos discordante, pois os avanços tecnológicos que


produzem ganhos de eficiência permite produzir mais (gerar mais riqueza) e reduzir os
impactos negativos sobre o meio ambiente (menos degradação ambiental). O problema, como
mostrou o economista inglês William Jevons, é que o aumento da eficiência ao invés de
diminuir a o consumo de determinado bem, acaba por aumentar a demanda agregada. Isto é o
que se chama de “Paradoxo de Jevons”, que ocorre enquanto o mundo vai ficando mais
produtivo, mas a produção global não cai.

A quarta alternativa advém da possibilidade de haver menor crescimento e com a redução das
desigualdades. O crescimento do padrão de consumo dos países pobres, poderia ocorrer em
função do decrescimento do padrão de consumo dos países ricos. O mesmo poderia ocorrer
dentro de cada território nacional, com a adoção de uma melhor distribuição de renda. Isto
implica deixar os pobres um pouco mais ricos e os ricos um pouco mais pobres. Teoricamente
é uma proposta justa e que contribuiria para uma maior harmonia social, todavia, é muito
difícil de ser colocada em prática, especialmente numa situação de baixo crescimento
econômico ou de decrescimento da riqueza nacional ou global.

A quinta alternativa implica reduzir o volume das populações nacionais e global, o que
contraria a tendência dos últimos 12 mil anos, quando a população mundial cresceu 2 mil
vezes, passando de cerca de 4 milhões de habitantes no ano 10 mil antes da Era cristã para 8
bilhões de habitantes em 2023. A redução da população dos países ricos traria um alívio mais
rápido no grau impacto sobre o ambiente e a redução da população dos países pobres ajudaria
nas políticas de redução da pobreza.

Os países desenvolvidos possuíam uma população de 1,27 bilhão de habitantes e os países


mais pobres (“muito mentos desenvolvidos”) 1,1 bilhão de habitantes em 2020, conforme
mostra os gráficos abaixo. Segundo as projeções da Divisão de População da ONU os países
mais ricos vão ter um pequeno decrescimento populacional e devem chegar (na projeção
média) a 1,2 bilhão de habitantes em 2100, enquanto a população dos países mais pobres

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deve ter um grande crescimento e chegar a 3,1 bilhões de habitantes em 2100. Os países de
renda média possuem cerca de 6 bilhões de habitantes atualmente e devem chegar a 7 bilhões
no final do século. Devido à política de filho único e o envelhecimento populacional, a China
deve perder cerca de 400 milhões de habitantes entre 2020 e 2100. No total, a população
mundial deve chegar a 8 bilhões em 2023 e a cerca de 10 bilhões em 2100.

Os países ricos tendem a resistir ao decrescimento populacional porque isto implica um


aumento ainda maior da alta proporção do envelhecimento populacional, o que dificulta a
manutenção do elevado padrão de vida. Já os países pobres apresentam altas taxas de
crescimento populacional, o que fortalece a ideologia do engrandecimento nacional, embora
uma estrutura etária jovem e uma alta taxa de dependência demográfica dificulte a redução
das taxas de pobreza. Assim, por um motivo ou outro, há uma resistência à diminuição da
população. Além do mais, os países pobres dizem que o principal problema ambiental e
climático do mundo ocorre devido ao alto consumo dos ricos, enquanto os ricos reclamam do
alto crescimento populacional dos países pobres e da migração Sul-Norte.

Desta forma, as alternativas para evitar um colapso ambiental existem, mas são de difícil
aplicabilidade, pois há muitas divergências entre as nações e muita discordância internamente
em cada país. A confrontação interna e internacional tende a aumentar na medida em que os
danos ambientais vão impactando progressivamente toda a população mundial. Os mais
poderosos vão tentar socializar os prejuízos e privatizar os benefícios. O fato é que, com a crise
climática e ambiental, a discórdia tende a superar a harmonia e a tragédia dos comuns fica
mais evidente, pois a atmosfera virou uma grande lixeira da poluição gerada pela civilização.

A conjugação de crises – climática, ambiental, energética, insegurança alimentar, etc. –


funciona como uma panela de pressão que envolve quatro ingredientes: trabalhadores sem
emprego e renda, elites brigando pelo poder, governo em crise e disputas internacionais entre
potências em confronto. Os anos dourados de crescimento econômico, paz e prosperidade
tende a dar lugar a um ciclo de instabilidade, polarização e violência política. Como disse Beto
Guedes: "A lição sabemos de cor, só nos resta aprender”.

A COP26, em Glasgow, teve o mérito de reconhecer a gravidade dos problemas climáticos,


mas, ao mesmo tempo, mostrou como é difícil conciliar interesses e perspectivas tão
diferentes e como é dificultoso colocar em prática os ensinamentos da ciência. Em um mundo
fragmentado, polarizado, sem liderança e egoisticamente preocupado com os interesses

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particulares, é quase impossível que se constitua e se consolide uma vontade geral em
benefício do bem comum. A ação política requerida para levar à frente uma transição do
modelo econômico e social da magnitude que o momento exige necessita uma governança
forte e convergente capaz redirecionar um mundo tão desigual, injusto e insustentável em
termos ecológicos. Mesmo havendo consenso de que é preciso evitar a possibilidade de um
colapso ambiental falta união na hora de decidir o caminho a ser trilhado.

Assim, não é de estranhar que a procrastinação e a enrolação prevaleceram sobre as ações


concretas para deter a temperatura abaixo de 1,5º C acima do nível pré-industrial. Os países
precisavam iniciar a redução imediata da produção e consumo de combustíveis fósseis, mas
nada foi feito para reduzir os subsídios e eliminar no médio prazo a queima dos
hidrocarbonetos. A Índia, por exemplo, alegou necessitar de usinas de carvão mineral para
manter o crescimento econômico visando garantir o lucro dos empresários, a grandeza do
Estado e também para reduzir a pobreza, embora todos estes objetivos sejam incompatíveis
com os atuais níveis de poluição que são insuportáveis nos rios e nas grandes cidades indianas.
Por outro lado, os países ricos não garantiram as promessas de ampliar os recursos financeiros
para apoiar a mitigação e a adaptação dos países pobres. Foi falado em reduzir o
desmatamento, mas não imediatamente e o reflorestamento ainda faz parte de um cenário
distante. Por isto, a juventude denunciou que a tônica da Conferência de Glasgow foi o blá-blá-
blá e a maquiagem verde.

O desenvolvimento que começou com a Revolução Industrial e Energética ocorrida no final do


século XVIII tem seguido um caminho insustentável, já que a humanidade tem se enriquecido
de maneira desigual e injusta, enquanto o meio ambiente se empobrece com a degradação
dos ecossistemas. Ou seja, as desigualdades sociais são um barril de pólvora e a emergência
climática deixará o mundo cada vez mais quente. Não existe desenvolvimento verde, uma vez
que o verde está sendo desbotado e apagado. Desta forma, a aceleração do aquecimento
global tende a aumentar a discórdia social e a sociedade dividida não consegue reverter a
degradação ecológica. O trem está indo para o abismo, mas não existe consenso nem para
parar a máquina e nem para dar um cavalo-de-pau no veículo.

Como diz o ditado popular: “Em casa onde falta pão, todos brigam e ninguém tem razão”. Ao
invés da harmonia do tripé economia, sociedade e ambiente o que o mundo enfrenta é o
trilema do crescimento deseconômico, a sociedade dividida e o ambiente degradado. A crise
ambiental agrava a crise econômica e acirra as divisões da sociedade, dificultando as ações
para evitar o círculo vicioso de perdas e danos do colapso ecológico, que já se manifesta por
meio do aumento dos custos dos crescentes desastres ambientais. Portanto, não é uma tarefa
simples romper com todos estes impasses. E o tempo para remediar a situação está cada vez
mais curto.

Referência:
ALVES, JED. Economia Ecológica e dinâmica demográfica global e nacional: cenários para o
século XXI, Economia Ecológica, 24/06/2021
https://www.youtube.com/watch?v=baxzJkmgazE

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