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Resumo: O texto apresenta e discute o processo de apropriação dos conceitos científicos, a partir de uma
prática de letramento escolar com o gênero textual História em Quadrinhos, em jovens e adultos identificados
com deficiência intelectual. Nesse sentido, o conceito científico é formado quando mediado pelos signos, por
meios de diferentes interações, a partir de situações de ensino sistematizadas, tendo por suporte as teorias
histórico-cultural e de gêneros textuais como suportes epistemológicos. A pesquisa foi levada a efeito em
uma escola pública que atende especificamente jovens e adultos, possuindo turmas que para alunos
diagnosticados como deficientes intelectuais. Participaram da pesquisa quatro sujeitos que foram
acompanhados em situações de ensino e aprendizagem sobre o gênero textual escolhido. Identificaram-se,
incialmente, os conceitos que os sujeitos já possuíam, planejaram-se intervenções certas, que foram gravadas
e transcritas para análises. Após intervenção de um semestre letivo, constatou-se que os sujeitos apropriaram-
se dos conceitos científicos relacionados com o gênero História em Quadrinhos, melhorando o nível de
letramento, com apropriações adequadas.
Palavras-chave: Letramento. Conceitos científicos. Jovens e adultos. Deficiência intelectual.
Abstract: Current paper discusses the appropriation process of scientific concepts in the practice of school
literacy with the textual genre Cartoon or Comic Book by young people and adults with mental deficiency.
The scientific concept is formed when mediated by signs, through different interactions, as from situations of
systemized teaching. Historical-cultural and textual genre theories were the foregrounding epistemologies.
Research was performed in a public school that specifically attended young people and adults diagnosed with
intellectual disability. The four agents who participated in current research were followed up in teaching and
learning situations on the selected textual genre. Concepts that the subjects already knew were initially
identified and direct interventions were planned which were then recorded and transcribed for analys is. After
a semester intervention, results showed that the subjects appropriated the scientific concepts related to the
genre Cartoon, with an improvement in literacy through adequate appropriations
Keywords: Literacy. Scientific concepts. Young people and adults. Intellectual deficiency.
1
Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo. Professora Associada do Departamento de Teoria e Prática da Educa-
ção e do Programa de Pós-graduação em Educação.
2
Mestre em Educação pela Universidade Estadual de Maringá. vigcaetano@hotmail.com
3
Doutor em Letras pela Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho, campus de Assis. Professor Associado do Departa-
mento de Teoria Linguísticas e Literárias e do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Estadual de Maringá.
renilson@wnet.com.br
4
Os resultados estão expostos na página do Instituto
EDUCAÇÃO ESPECIAL E DEFICIÊNCIA
Nacional de Estudos e Pesquisas Anísio Teixeira. INTELECTUAL NA ESCOLA
Disponível em:<http://ideb.inep.gov.br/resultado/>.
Acesso em: 1 fev. 2016. No Brasil, a educação especial atualmente
5
Os resultados estão dispostos em Instituto Nacional atende as pessoas com deficiências, transtornos
de Estudos e Pesquisas Anísio Teixeira. disponível globais de desenvolvimento e altas habilidades e
em: <http://portal.inep.gov.br/internacional-novo- superdotação, conhecidas também como público
pisa-resultados>. Acesso em: 1 fev. 2016. alvo (BRASIL, 2011). Fazem parte dos programas
transmitida por meio de signos linguísticos na orienta que o ensino da língua materna deve ser
escola, em situações formais de aprendizagem. A efetivar por meio dos gêneros textuais6.
pessoa com deficiência intelectual tem pouca
experiência em relações sociais mais amplas, O estudo dos gêneros discursivos e os
portanto, poucos conceitos em fase de elaboração, modos como se articulam proporciona uma
por isso a escola deve criar e consolidar conceitos. visão ampla das possibilidades de uso da
A respeito disso Luria (1988) afirma que ess linguagem, incluindo-se aí o texto literário.
Em uma situação de ensino, a análise da
indivíduo, quando deixado por si mesmo, tem
origem de gêneros e tempos, no campo
maior dificuldade em abstrair e generalizar. artístico, permite abordar a criação das
A função da escola é mediar o estéticas que refletem, no texto, o contexto
conhecimento científico, sendo assim, precisa do campo de produção, as escolhas
oferecer situações formais de ensino e estilísticas, marcadas de acordo com as
aprendizagem. O processo de elaboração do lutas discursivas em jogo naquela
conceito científico é auxiliado pelos conceitos época/local, ou seja, o caráter intertextual e
espontâneos ou cotidianos. Nas palavras de intratextual (BRASIL, 2000, p. 8).
Vygotsky (1989, p. 80), “[...] os conceitos que os
alunos aprendem na escola e a relação com o Mas o que são os gêneros textuais? Para
outro objeto é mediado desde o princípio por Marcuschi (2005, p. 22-23), podem ser textos
outro conceito”. Dessa forma, o professor deve orais ou escritos “[...] que encontramos em nossa
preocupar-se com os conceitos que os alunos já vida diária e que apresentam características sócio-
possuem, que elaborou nas mais diferentes comunicativas definidas por conteúdos,
interações e aqueles que podem ser aprendidos em propriedades funcionais, estilo e composição
nível superior. À medida que sistematiza, o aluno característica”. Vale ressaltar que, em um gênero
estabelece a relação entre os conceitos cotidianos textual, haverá sempre o predomínio de uma
e os científicos. Na perspectiva histórico-cultural, tipologia textual, no entanto, poderão ser
o professor, a partir da avaliação, orienta e cria constituídos de outras também. Compreendem os
situações de aprendizagem que favoreçam a tipos textuais a narração, a descrição, a
elaboração de conceitos que sejam coerentes e argumentação, a exposição e a injunção, ou seja,
úteis à vida dos alunos. “[…] uma espécie de sequência teoricamente
O gênero textual História em Quadrinhos é definida pela ‘natureza linguística’ de sua
uma das formas de trabalho que pode contribuir composição, aspectos lexicais, sintáticos, tempos
para a formação de conceitos em alunos com verbais, relações lógicas” (MARCUSCHI, 2005 p.
deficiência intelectual. 22). Já a matéria em que esses textos se
apresentam para circulação social é denominada
GÊNEROS TEXTUAIS de suporte textual, tais como o livro, o jornal, a
revista, entre outros.
Para atender os dispositivos previstos na Dentre os gêneros textuais que circulam
Lei de Diretrizes e Bases da Educação (BRASIL, socialmente temos as Histórias em Quadrinho,
1996) algumas leis, notas técnicas, pareceres, que são consideradas formas críticas e bem
resoluções e documentos foram elaborados e, humoradas de expressão contemporânea e,
dentre eles, destacamos os Parâmetros portanto, segundo os Parâmetros Curriculares
Curriculares Nacionais para o Ensino Médio Nacionais para o Ensino Médio (BRASIL, 2000),
(BRASIL, 2000). O documento tem por objetivo como um gênero passível ser trabalhado na escola,
orientar quais competências e habilidades que
devem ser desenvolvidas e/ou aprofundadas 6
Teoricamente, há distinções já estabelecidas entre as
durante o processo de escolarização nas três séries nomenclaturas ‘gêneros textuais’ e ‘gêneros
finais da Educação Básica, para as disciplinas de discursivos’. Apesar de o documento empregar a
Língua Portuguesa, Língua Estrangeira Moderna, última, nesta pesquisa optamos por utilizar ‘gêneros
textuais’, por ser mais recorrente entre os professores
Educação Física, Artes e Informática. de Língua Portuguesa do Ensino Médio. Para elucidar
No que se refere ao trabalho com a Língua a questão, remete-se às discussões já realizadas no
Portuguesa, em específico, o documento também país por Rojo (2005); Meurer, Bonini, Motta-Roth
(2005); Dionisio, Machado, Bezerra (2010);
Karwosky, Gaydecza, Brito (2005).
com seus conceitos aferidos em avaliações interpretar, pois os alunos são instigados “[...] a
nacionais como Provinha Brasil, Prova Brasil e exercitar o seu pensamento, complementando em
Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), pois sua mente os momentos que não foram expressos
é comum que esse gênero apareça como um texto graficamente, dessa forma, desenvolvendo o
para avaliação. No entanto, a concepção de que a pensamento lógico” (BARBOSA et al., 2004, p.
História em Quadrinhos pode se constituir em um 24);
instrumento de ensino-aprendizagem é recente 7, f) apresenta ‘o carácter globalizador’,
pois “[...] tais publicações eram tratadas como devido a facilidade de compreensão de suas
literatura de prazer e, por isso, superficiais e com temáticas, sem que, necessariamente, se tenha
conteúdo aquém do esperado para a realidade do conhecimentos prévios sobre ela, “[…] estando aí,
aluno” (VERGUEIRO; RAMOS, 2009, p. 9). provavelmente, um dos motivos do sucesso dos
Barbosa et al. (2004) apresentam um quadrinhos japoneses, os mangás, no Ocidente”
conjunto de argumentos que respaldam o uso das (BARBOSA et al., 2004, p. 24).
Histórias em Quadrinhos em atividades escolares: As histórias em quadrinhos são um dos
a) a história em quadrinhos é um material instrumentos utilizados para o processo de
atrativo por sua composição e, por isso, pode desenvolvimento da leitura e da escrita e do
desenvolver o hábito da leitura, bem como letramento para que a escola se torne um local em
ampliar o vocabulário; que a escrita seja mais do que a aquisição da
b) a associação das linguagens verbal e não- tecnologia atual para comunicação impressa.
verbal amplia as possibilidades de apropriação dos Scribner & Cole (1981) enfatizam, nessa
conceitos, compondo, assim, uma interação entre perspectiva, que o letramento não enfoca
elas “[...] de uma forma que qualquer um dos exclusivamente a tecnologia de um sistema de
códigos, isoladamente, teria dificuldades para escrita e as suas consequências. Letramento é um
atingir” o leitor (BARBOSA et al., 2004, p. 22); conjunto de práticas socialmente organizadas que
c) podem estar presente em diferentes usam a escrita como um sistema de símbolos e
momentos para mediar vários conceitos que tecnologia para a sua produção e reprodução. Não
compõem o currículo devido a sua multiplicidade se refere somente ao saber ler e escrever, mas
de temas; aplicar o conhecimento de leitura e escrita para
d) por ser um gênero textual que circula um fim específico e em um contexto específico de
socialmente, sua apropriação pressupõem maior e uso. Para os autores é a “[...] natureza dessa
melhor mobilidade social. No entanto, é preciso prática, incluindo, evidentemente, os aspectos
dominar os recursos estilísticos que as compõem, tecnológicos, que determinará os tipos de
como, por exemplo, os balões, as expressões habilidades e consequências associadas ao
fisionômicas, as onomatopeias, os recursos de letramento” (SCRIBNER; COLE, 1981, p. 236).
movimentos, os diferentes planos utilizados e as Assim, para se constituir-se em habilidades certas,
variantes da língua padrão, que configuram sua os conceitos envoltos com o gênero textual
organização composicional típica e seu estilo de História em Quadrinhos foram trabalhados de
linguagem; forma sistematizada com os sujeitos da pesquisa.
e) o jogo interativo entre o visual e o verbal
apresenta o ‘caráter elíptico da linguagem’, MÉTODO
conduzindo ao exercício do pensar para
Para desenvolvermos a pesquisa,
7
“A mudança de concepção e valoração das histórias
submetemos a proposta à Comissão Permanente
em quadrinhos ganhou força com a LDB de 1996, de Ética em Pesquisas Para Seres Humanos
pois, em seu Art. 3, prevê a liberdade no processo de (COPEP) da Universidade Estadual de Maringá
ensino e de aprendizagem das diferentes formas de (UEM). Tendo sua aprovação sob o parecer nº
expressão cultural, bem como o Art. 37 que propõe 1.245.429.
para o Ensino Médio as ‘formas contemporâneas de
linguagem’. Essas Diretrizes se materializam no ano O estudo foi levado a efeito em uma escola
seguinte, com os Parâmetros Curriculares Nacionais que atende jovens e adultos na região Noroeste do
para os ensinos fundamental e médio, e, em 2006, estado do Paraná. A escola atende alunos do
com a inserção desses gêneros na lista de acervos do Ensino Fundamental e do Ensino Médio, na
Plano Nacional da Biblioteca Escolar (PNBE)”
(AUADA, 2015, p. 61).
modalidade exclusiva de Educação de Jovens e
Adultos. Dentre os alunos atendidos estão pessoas sujeitos em sala especial, junto aos pesquisadores,
adultas da educação especial. Para a educação para adequada conduta do método aplicado.
especial, a escola oferece, também, atendimento SUJEITOS DA PESQUISA
diferenciado a turmas distintas - ou - atendimento
na sala de recursos multifuncionais: os surdos, os Participaram da pesquisa quatro sujeitos
cegos, os deficientes físicos e os deficientes com diagnóstico de deficiência intelectual, que
intelectuais. Trata-se de uma escola pública, aceitaram compor o grupo e assinaram o termo de
mantido pelo governo estadual, em região consentimento livre esclarecido, juntamente com
próxima ao centro da cidade. Para a coleta dos seus responsáveis. O Quadro 1 apresenta as
registros, a escola possibilitou o deslocamento dos características dos sujeitos envolvidos.
Data de
Participantes Idade Sexo Etiologia Necessidades educacionais
nascimento
Traumatismo
Sujeito ‘4’ 21/05/1984 31 M Craneo-encefálico Intelectual
severo
Quadro 1 – Caracterização dos sujeitos da pesquisa
Fonte: Os pesquisadores.
diferentes instrumentos para mediar os conceitos muito de…, só de mim, a escola, Viviane da escola gosta de
pretendidos. mim. Fim.
Figura 2: Produção e apresentação final do Sujeito ‘1’
Ao término da intervenção, uma nova
Fonte: Acervo dos pesquisadores.
produção foi solicitada, a fim de verificar os
Ao analisarmos as produções do sujeito ‘1’,
conceitos científicos que foram sistematizados e
verificamos que, na produção inicial, ele não tinha
generalizados pelos participantes. Solicitamos que
o conhecimento de que as histórias eram
a produção fosse apresentada ao grupo de alunos
elaboradas por meio de uma sequência de
participantes. A atividade foi desenvolvida por
quadrinhos, demonstrando apenas a escrita de
todos com entusiasmo e dedicação, um ponto a ser
algo dentro de um quadrinho, sua refêrencia maior
destacado nessa condução sistematizada.
do que seja o gênero estudado. Contudo, o
A seguir, apresentamos, por meio de
conceito de narrativa em quadrinhos foi abstraído
materiais coletados durante a intervenção, as
e generalizado em sua produção final.
produções iniciais e finais de cada um dos
O processo de elaboração conceitual da
participantes, bem como algumas transcrições das
narrativa se mostrou mais amplo, pois também
filmagens da intervenção, mais precisamente o
utilizou-se do jogo interativo entre o visual e o
trecho onde cada participante explica as suas
verbal, sendo a materialização das falas das
produções. Essa opção de organização permite
personagens expressa corretamente por meio do
uma melhor visualização e, por conseguinte,
balão convencionados para a fala em tom normal.
discussão dos conceitos espontâneos apresentados
Além disso, no diálogo com os pesquisadores –
pelos participantes, bem como dos conceitos transcrito abaixo da figura, o sujeito expressa o
científicos elaborados com a intervenção.
que estava falando em sua produção, numa nítida
interação para definir os conteúdos, inclusive,
citando um dos pesquisadores com quem
demonstrou maior empatia. Ademais, a expressão
fisionômica de alegria do personagem desenhado
está condizente com o expresso pela linguagem
verbal, mostrando coerência entre os estilos de
linguagem requisitados pelo gênero.
Quanto ao conceito de narrativa, podemos
inferir que o participante está em processo de
elaboração e ampliação conceitual, pois
demostrou ter se apropriado dos conceitos de
O que eu escrevi aqui é sobre o cantor Cazuza (e começou a personagem e espaço adequados à sua
fazer a leitura do que havia escrito), é o cantor, no camarim. competência comunicativa. Os elementos tempo,
Estilo dele sempre música, nome Daniel, no papel meu
nascimento 1985. O Brasil de roquerou. Daniel é poesia, fala
clímax e desfecho não foram contemplados nesta
história, imagem, fato. Cazuza, o tempo não para. Essa produção, no entanto, não podemos afirmar que
música. esses conceitos não foram/não estão em processo
Figura 1: Produção e apresentação inicial do Sujeito ‘1’ de apropriação, uma vez que a agitação do sujeito
Fonte: Acervo dos pesquisadores. motivada pelo anúncio de término dos trabalhos
causou-lhe desconfortos, fato que pode ter
prejudicado a realização da atividade. Essa
afirmativa fica evidente quando o participante se
coloca como personagem da narrativa e afirma
que um dos pesquisadores gosta muito dele, só
dele. De modo que finda sua narrativa pedindo um
abraço.
Os conceitos de título, de autoria e de
marca de término dessas narrativas expressa pela
palavra ‘Fim’ também foram elaborados pelo
sujeito participante que os experiênciou em sua
Brasil no mundo real. As história que… porque a violência produção final.
do País, Brasil, mundo, cidade, alvorada. Bom, Viviane gosta
Conceitos da História em Quadrinhos Sujeito ‘1’ Sujeito ‘2’ Sujeito ‘3’ Sujeito ‘4’
Título (0) *** (1) *** (0) *** (0) ***
Autoria (0) *** (0) *** (0) *** (0) ***
Marca de terminalidade (‘FIM’) (0) *** (0) *** (0) *** (0) ***
Temática (**) *** (**) *** (**) *** (**) ***
Elementos da narrativa (0) ** (**) ** (***) *** (**) **
Sequência narrativa em quadrinhos (0) *** (1) *** (***) *** (0) ***
Expressões fisionômica em personagens (*) *** (**) *** (**) *** (*) ***
Balões de falas de personagens (0) *** (0) *** (*) *** (0) ***
Onomatopeia (**) *** (**) *** (**) *** (**) ***
Figuras cinéticas (0) *** ( 0) *** (0) *** (0) ***
Linguagem informal (0) *** (0) *** (**) *** (**) ***
Quadro 1: Conceitos apresentados pelos participantes antes da intervanção ( ) e após a intervenção: * conceito em pro-
cesso inicial de elaboração; ** conceito em processo final de elaboração; *** conceito apropriado
Fonte: Os autores.