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O ÚLTIMO MONÓLOGO DE NIETZSCHE*

NIETZSCHE’S LAST MONOLOGUE

Ataulpho da Costa Ribeiro** vendo uma filosofia superior do ateísmo, denunciei os filósofos
como semi-sacerdotes, como uma espécie de párocos de aldéia,
Em três de janeiro de 1889, em rápido delíquio, Nietzsche então afirmando que o teólogo protestante é o avô da filosofia
perde os seus sentidos, em plena praça pública de Turim. O fato alemã. ... Todos os que nascerem depois de nós pertencerão, em con-
revestiu-se de intensa dramaticidade e ocorreu quando o filósofo seqüência desse ato, a uma história maior.
se lançou ao pescoço de um cavalo procurando, com suas lágri- Todos nós, deicidas e niilistas, que vivemos em um mundo
mas, exclamações e gestos, protegê-lo das sevícias que então lhe impensável e difícil, desprovido de valores eternos, jungidos às
eram infligidas por seu proprietário. contingências das coisas, à natureza efêmera dos fenômenos,
Ao retornar à sua consciência, à consciência de si mesmo, de não temos onde aplacar a sede do espírito. Embora o pensamen-
si mesmo e dos objetos, em uma percepção semicrepuscular da to seja um deleite para quem possui uma vocação subjetiva
realidade feita de fragmentos que se esparsam, tributários de uma voltada à análise e consciência dos grandes temas da existência,
metamorfose psicótica que, pouco a pouco, vem destruindo-lhe o ele também enseja, em nível crítico, angústias dolorosas,
espírito, o pensador entretém-se consigo mesmo, em uma derra- desesperos noogênicos e profundos, jamais aliviados por uma
deira e dolorosa vez. Culminando esses tempestuosos dias que só certeza confortante.
precedem sua perda da razão, expressando-se em um introspecti- Toda a minha obra canta e celebra o triunfo de Dionisos, a
vo, pungente e quase inaudível solilóquio, nele rememorando os sua epifania, em hinos de louvor, de transcendência e fervor.
grandes episódios e vicissitudes de sua vida, em citações suas, gra- Todas as coisas foram batizadas na fonte da eternidade; ... é aos pés
fadas no texto, ele confidencia às suas evocações o seguinte e pos- do acaso que elas preferem dançar. ... O céu se rejubila, aclama e se
sível diálogo imaginário: transforma, todos cantam, o silêncio exclama e fala, todos se
1889... Três de janeiro... Depois de Cristo... transfiguram na exortação e retorno de Dionisos, deus da abun-
Por que não do ano I, por que não registrar o tempo con- dância e da saciedade, ... senhor das antíteses... Em toda a parte
soante uma nova cronologia, a iniciar-se em 30 de setembro de “tristaníssimos” e dolorosos acordes. Queres cantar, ó! minha
1889, quando termino meu livro O Anticristo, quando enuncio alma! Não cantes, silêncio, não cantes! O meu mundo se consu-
minha contra-avaliação dos valores, a primeira da História, quan- mou. ... Todos os deuses morreram; doravante queremos que viva o
do aclamo e celebro as exéquias do velho mundo, aquelas de um acima-do-homem, um tipo maior, simultaneamente poeta, decifra-
Deus morto até mesmo no coração dos crentes? Por que não três dor de enigmas e redentor do acaso. Perguntaram-me alhures, em
meses e três dias após o último dia do cristianismo? meu Zaratustra: Quem removerá de teus ombros o peso dessa
Por que depois do disangelho, por que depois da má nova, melancolia? Todos nós fomos chamados à alegria, dizia
por que antes do evangelho da aquiescência e da vontade? Hölderlin, o poeta de minha predileção.
Zaratustra, o mais ativo de todos os niilistas, o mais piedoso dos Sou o primeiro niilista completo da Europa, a primeira e mais
homens que não acredita em Deus, sucessor de divindades mortas, radical consciência da total e absoluta caoticidade do mundo
com suas canções, discursos e exortações, não é a boa nova, a adverso em que vivemos; fui dos primeiros pensadores a admitir
mensagem da consagração, o evangelho da terra, da anuência e da que não há verdades absolutas; um dos poucos a reconhecer que
vontade, o antípoda dos antigos valores, a antítese da noluntas, o a vida é uma anomalia no universo, assim como a consciência o é
intercessor da vida, removendo velhas e pesadas mortalhas? Eu só nas estruturas, economia e leis da existência. Em suas perspecti-
poderia acreditar em um Deus que soubesse dançar. ... Não é digno vas – eu o sei – o niilismo é ambíguo. No niilismo passivo, a von-
de ser recordado um dia transcorrido sem dança. tade e a inteligência abdicam de seus poderes virtuais; no niilismo
Talvez eu seja um novo messias, um apóstolo sem deus, a ativo, que constitui o eixo de minhas meditações mais profundas,
antítese da vontade niilista, um fragmento da fatalidade... Em pelo contrário, elas trabalham as niilidades da existência consoan-
todas as minhas obras, desde os meus mais distantes ensaios juve- te um propósito criador. Vontade de poder e niilismo, niilismo
nis, reconheci na morte de Deus o mais importante dos aconteci- passivo, excluem-se. Disse alhures que o homem prefere um quan-
mentos recentes, analisei e proclamei as suas conseqüências mais tum de poder a um plus de felicidade, acrescentando: Lieber kön-
profundas, imediatas e remotas, descortinando novas expectati- nen, nicht wissen, “ao saber prefiro o poder”. Deplorando nossas
vas, novos valores, outras perspectivas. Em todas elas, desenvol- perdas infinitas criei, em meu Ecce Homo, um longo e expressi-

* Capítulo de livro inédito intitulado “A Psicose de Nietzsche”. Endereço para correspondência:


** Psiquiatra, ensaísta em temas filosóficos, membro da Academia de Rua Califórnia 1000
Ciências de Minas Gerais. 30315-500 Belo Horizonte MG
Ataulpho.bhz@zaz.com.br

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O último monólogo de Nietzsche

vo substantivo composto: Das Seinen-Nutzen-nicht-mehr-finden- Aos 24 anos de idade, em 1869, fui nomeado professor de
können, “o não mais poder encontrar sua utilidade”. Minha filo- Filologia Clássica na Universidade de Basiléia. Dessa matriz nas-
sofia é uma escola de fidalgos, ... o homem nobre honra o poder. ceu a minha filosofia. Fui admitido sem concurso prévio, louvan-
Insurgindo-me contra as idéias tradicionais, aquelas da filosofia do-se no só mérito de meus trabalhos universitários. Os alunos
clássica, de suas especulações verbalistas, de seus pressupostos estimavam-me, como amigo e preceptor. Em 2 de janeiro de 1872
abstratos, eu sepultei nossa confiança na moral, na moral da publiquei meu primeiro livro, intitulado O Nascimento da
renúncia e da repressão, substituindo as antigas por novas tábuas Tragédia, esse centauro do espírito. Sobre ele escreveu-me Wagner:
de valores. Em minha última autobiografia, em seu conciso e des- Schöneres als Ihr Buch habe ich noch nicht gelesen. Meus discípu-
concertante texto, mostrei-me à História, contrapondo-me ao los, 22 dias depois, como escrevi a Rohde, logo após, no dia 28,
Crucificado: Ecce homo. ... Ecce homo, wie man wird, was man ist... queriam desfilar pelas ruas da cidade, à noite, portando tochas
Conheço o meu destino. ... Só o depois de amanhã me perten- acesas, em homenagem à minha pessoa. Declinei, naturalmente.
ce; alguns nascem póstumos. Através de meu filho Zaratustra, Nesse mesmo ano de 1869 ocorreu, em Basiléia, a IV
menosprezando o logos, a abstração fria e mortífera, proclamei o Internacional dos Trabalhadores. A rumorosa presença dos anar-
primado do pathos, a preeminência do ser, restabelecendo o rio e quistas, desses utopistas messiânicos, não despertou uma só
a inocência do devir, outrora amaldiçoados pela idiossincrasia dos observação de minha parte. Recordava Horácio: Odi profanum
filósofos. A natureza dolorosamente efêmera e agonística das coi- vulgus et arceo. ... Et arceo... Eu não me interesso pela questão ope-
sas, como não reconhecê-la? O homem não é um ser de razão, é rária porque o trabalhador é um entreato da história. Para mim, a
um ser de vontade, vivendo em um cruel cenário darwinista. Se a questão social é uma conseqüência da decadência, não a sua causa.
representação detém o devir, os sentidos o constatam. Deixai vir a Zaratustra feliz porque terminou a luta de classes, disse alhures...
mim o acaso, disse em meu Zaratustra, evocando e ressaltando o Hegel, por seus escotomas racionalistas, celebrando a História
poder potencial do homem. como triunfo da razão, foi incapaz de reconhecer que ela é um rio
Parmênides e Orfeu, mestres de Platão. Parmênides, o mais de sangue, que ela oscila como um pêndulo, entre poderes que
glacial e anti-helênico instante do pensamento grego. Platão, o oprimem e oprimidos que se revoltam.
anti-Heráclito... Sabe-se que Heráclito chorava, publicamente, Publiquei muitos livros, versos e canções, em todos eles
pelo infortúnio de estar vivo. Hybris, essa palavra perigosa, é a repudiando os antigos valores, aqueles que turvam e envenenam
pedra de toque de todo discípulo de Heráclito. ... Sócrates e Platão, as águas da existência – embora seja descendente de várias gera-
almas sombrias, tortuosas, protótipos de valores negativos, de ções de eclesiásticos cristãos. As minhas obras, todas elas, são gran-
parâmetros reativos, modelos de decadência. ... Sócrates era feio. des saturnais do espírito. Muitas vezes julgo-me seu único leitor:
Sócrates e Dionisos, a nova antítese. Em seus desvarios, ao procla- mihi ipsi scripsi. ... Sou o escritor do caos por excelência. Talvez
mar a hegemonia da razão, o homem perdeu infinitamente, abriu seja um terrorista da cultura. No caminho de minhas heresias, ao
rupturas em sua própria e mais íntima essência. Eu anuncio um longo de minhas contestações e recusas, colhi uma nova doutrina,
novo triunfo do paganismo; Deus morreu, morreu infinitamente, alhures anteriormente vislumbrada por reflexões de outros pen-
morreu até mesmo e sobretudo no coração daqueles que o vene- sadores, capaz de ensejar um novo destino; nessa nova perspecti-
ram, cujo incenso escamoteia uma confiança titubeante. Der neue va, desdobrando o pensamento de Darwin até suas últimas con-
und alte Glaube, a primeira fé e aquela que se propõe substituí- seqüências, antevi um porvir promissor, aquele de um homem
la... acima de si mesmo, que supera contingências, desacertos, humi-
Nasci em 15 de outubro de 1844, na pequenina e quase des- lhações e determinismos aleatórios, capaz de desfazer, como anti-
conhecida aldeia de Röcken, perto de Leipzig. Aos meus quatro Alexandre, o nó górdio da civilização. Posteriormente, perguntaria
anos de idade, em uma perda dolorosa, insubstituível, que tortu- a mim mesmo: Onde reedificaremos o Jardim de Epicuro, ... onde
rou-me ao longo de todos os meus dias, meu pai faleceu precoce- construir um claustro laico?
mente, aos seus 36 anos de existência. Pastor afeiçoado à música, Reiteradas vezes reconheci e proclamei que a história é a refu-
dele herdei esse privilégio e esse pendor. Aos meus olhos de tação experimental da pretendida ordem moral do universo. Que
criança, doravante perplexa, a vida então desdobrou toda a sua são as suas cansativas crônicas senão uma enfadonha e permanen-
crueldade injustificada, os desacertos que a estruturam, a total te sucessão de desvarios, de crimes e crueldades? Quem, hoje, não
ausência de uma finalidade racional nas coisas. Desde a infância, tem a boca, o coração e os olhos cheios de asco? Escrevi em meu
nunca me iludi quanto à Absurdität do mundo, ao primado do Zaratustra: A dor de Deus é maior. Estendei vossas mãos à dor de
absurdo. Nos horizontes de meu espírito, em seus confrontos, Deus, não à minha dor. Foi Ele quem criou o homem. ... Os espí-
recusas e questionamentos, entrementes, descortinaram-se novas ritos mais preocupados indagam: Como salvar o homem? Mas
estrelas, novos itinerários, todos eles repudiando a pesada heran- Zaratustra pergunta – e é o único e o primeiro a fazê-lo: Como supe-
ça cultural que me era imposta. Denominei a mim mesmo, poste- rar o homem? ... O que amo no homem é ser ele uma transição e
riormente, der Unzeitgemässe, um pensador inatual, consideran- um fim, uma expectativa, a possibilidade de um ser superior.
do todos os filósofos a má consciência de seu tempo. Desde então Zaratustra, o livro dos livros, ... o vestíbulo da minha filosofia,
abateu-se sobre o meu espírito uma profunda ... é um livro à parte. Ele não tem paralelo. Não há psicologia, não
e pungente Verlassenheit, um poderoso e plúmbeo sentimento há arte de escrever, antes de Zaratustra. Sua leitura apenas cursiva,
de derrelição, de desamparo inerme. Alhures eu escrevi: Punge, semântica, é fácil; ela, entretanto, sequer aflora o cerne de sua
punge de novo, punge crudelíssimo aguilhão, ... punge, oh mensagem. Vive-se antes, vive-se depois de Zaratustra. Em Ecce
Deus desconhecido! Homo, nessa última retrospectiva de minha vida, dediquei-lhe

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quinze páginas, contra apenas duas à Genealogia da Moral, qua- mais ricos dos nossos? Pelos forçados da riqueza, que aproveitam
tro à Aurora, oito à Humano, demasiado humano, sete à minha seus lucros em todas as varreduras, com olhos frios e concupiscen-
primeira contra-avaliação dos valores, que denominei O tes? Por essa chusma, cuja fetidez sobe até o céu? Por essa dourada
Nascimento da Tragédia. ... De que serve um livro que não nos e falsa populaça, cujos ascendentes eram gente de unhas compridas,
transporta além dos outros livros? Nessa obra eu vivo uma expe- aves carnívoras ou trapeiros, com mulheres complacentes, lascivas e
riência interior que não compartilho com ninguém. Outrossim, não esquecediças, pouco diferentes de rameiras? Plebe em cima, plebe
concedo a nenhuma pessoa, viva ou morta, o direito de falar em em baixo! Que significam, hoje, pobres e ricos?
meu nome. Afirmei alhures que um bom livro enriquece aqueles Quando contemplo os numerosos itinerários e desencontros
que lhe são hostis... Nesse poema filosófico, reordenando as inces- de minha vida, sua vertente introspectiva, seus hiatos e dissonân-
santes e adversas metamorfoses do mundo, suas dissonâncias, cias, seu âmago e dédalos, vejo-me inteiramente só, desnudo e
desencantos e privações, suas clivagens e perplexidades, o ser e o inerme, incapaz de reerguer as forças da vida, de refazer seu dina-
devir se conciliam, em intermináveis celebrações de louvor, de mismo, o elã que a soergue e vivifica, de surpreender e reconquis-
apoteoses, júbilo, ressonâncias e plenitude, recolhimento, fervor tar seus caminhos cotidianos e simples, aqueles de outrora, reple-
e introspecção. Suas efusões líricas, semi-místicas por suas visões tos de luz, de azul e de sonhos... Em minhas horas mais silencio-
interiores, por seu esplendor e vaticínios, por seus cânticos de sas, em minhas confidências mais subjetivas, mudas e solitárias,
expectativa, por seus prenúncios e colóquios, confidências e sub- sinto-me a encarnação viva do niilismo mais sombrio, da mais
jetividade, por suas continuadas ressurreições do ser, transbor- absoluta derrelição, como se fosse uma representação sem maté-
dam em uma interminável sofreguidão de milagres... De todo ria, uma vida desprovida de corpo, destruída por si mesma, por
escrito só me agrada aquele que o homem escreveu com o seu pró- um pensamento que se fez crítico, impiedoso e desumano, espe-
prio sangue. Escreva com sangue e aprenderás que o sangue é espí- lho de outros espelhos, todos destituídos de imagens representa-
rito. ... É preciso ter um caos dentro da alma para engendrar estre- tivas da ilusão que torna acreditável a vida...
las que dançam. Sua doutrina, que exorta a uma eticidade supe- Há sempre um pouco de razão na loucura. ... Serei porventura
rior, é o chanceler de uma nova História... Quem poderá ser indi- um adivinho, um sonhador, um ébrio, um interprete de sonhos, um
ferente à angústia de Zaratustra, ao grito de socorro que chega à sino da meia-noite, uma gota de orvalho, um perfume de eternida-
sua solidão, exortando à superação do homem? Lê-se em seu de? Não ouvis? Não percebeis? O meu mundo acaba de se consu-
texto: Se alguma vez a minha cólera profanou sepulturas, removeu mar; a meia-noite é também meio-dia, a dor é também uma alegria,
barreiras e precipitou velhas tábuas partidas em escarpadas profun- a maldição é também uma bênção, a noite é também um sol.
dezas; se alguma vez estive sentado, cheio de alegria, no sítio onde Alguma vez dissestes sim a uma alegria? Então dissestes sim a todas
jazem deuses antigos, abençoando e amando o mundo, ao lado dos as dores! ... Toda alegria quer eternidade, quer profunda eternida-
monumentos de seus antigos caluniadores; se alguma vez joguei os de.
dados com os deuses, na divina mesa da terra, ... como não hei de A enfermidade sempre foi a dolorosa sombra de meus dias,
estar anelante da eternidade, anelante do nupcial anel dos anéis, o dias de constante, solitário e penoso sofrimento; eu a suportei, ao
anel do eterno retorno? longo dos anos, como se fosse o último dos estóicos, alhures reco-
Por que o homem, já conhecendo suficientemente a realida- nhecendo e proclamando que ninguém carrega na alma um desti-
de hostil do universo, a natureza apenas imanente de seu ser e do no semelhante ao meu. Em 1865 conheci a obra de Schopenhauer,
mundo, o seu obscuro lugar na ordem natural das coisas, já dis- sua exaltação da vontade, seu repúdio à representação; consoan-
pondo de um grande domínio sobre as leis da matéria, ainda não te suas palavras, a consciência é um acidente da vontade. Nesta
decidiu por dominar o seu próprio destino? Por que os homens, data conheci Wagner, privei de sua amizade e confiança, então
saturados de técnica, de crimes, de alienação e tédio, se deixam compartilhando um só e mesmo ideal, visitando-o vinte e três
viver em uma civilização enervante e daninha, não se esforçando vezes em Tribschen, a Ilha dos Bem-aventurados, em Luzern, onde
por predeterminá-la consoante um desígnio inteligente, contra- sempre me era reservado um Denkenzimmer, um “cômodo para
pondo-a à natureza, desprovida de um propósito finalístico que a pensar”; a última em companhia de Lou Salomé, quando Wagner
consagre, inspire e redima? Sobre todas as coisas estende-se o céu já residia em Bayreuth. Depois, sobreveio um desentendimento
do acaso, à espera de um gesto redentor... O homem, será ele um recíproco. Ao enviar-me um exemplar de Parsifal, sua obra após-
erro de Deus? tata, aos meus olhos, curvando-se à poderosa influência catolisan-
Quando pela primeira estive com os homens, cometi a loucura te de sua mulher, Cosima, nela renegando nosso comum ideal de
do solitário, a grande loucura: fui para a praça pública, atormentan- uma regeneração da cultura, subscreveu a dedicatória como
do-me com as moscas do mercado, com seus discursos de vingan- membro do Oberkirchenrat, como Alto Conselheiro da Igreja...
ça e reivindicação. Na praça pública, entretanto, ninguém acredita Essa foi a perfídia, a ofensa mortal que ele me infligiu, alhures rui-
no grande homem. Em uma anotação imediatamente posterior a dosamente mal interpretada. Em nosso derradeiro encontro, no
dezembro de 1887, indaguei: Onde estão os bárbaros do século ano de 1876, em Sorrento, ele falou-me de suas profundas emo-
XX? Obviamente, eles só vão aparecer e se consolidar após enormes ções religiosas, enaltecendo-as... Como Dionisos me fala de manei-
crises socialistas. Disse em meu Zaratustra, na parábola intitulada ra diferente... Só alguns anos depois de nossa fervorosa convivên-
O Mendigo Voluntário, ao dirigir-lhe minhas palavras: Não serás cia compreendi que sua música está a quatro passos do hospital.
aquele que, envergonhado da riqueza e dos ricos, fugiu para junto Sua morte, a hora sagrada de sua morte, em Veneza. Meu bizetis-
dos pobres, a dar-lhes sua abundância e seu coração? Que foi que mo, hostil à sua obra, reverenciava Carmem como a antítese irô-
me impeliu para os mais pobres? Não foi a aversão que sentia pelos nica de suas músicas e pensamento; eu a assisti pela primeira vez

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O último monólogo de Nietzsche

em Gênova, no dia 26 de abril de 1881. No mesmo dia e mês de Tudo que é está condenado a deixar de ser. No mundo não há
1872, antes de deixar Tribschen, com destino a Bayreuth, Cosima repouso ou imobilidade. Às causas sucedem-se os efeitos inevitá-
pediu-me, à noite, que improvisasse ao piano... Lou Salomé, um veis, atuando como novas causas. Causa aequat effectus. No pas-
segundo e doloroso equívoco: Ao chamar alegria a seus torpes sado e no presente, como também no porvir, o ser se submete,
sonhos, envenenaram as palavras, observa Zaratustra. passivo como cariátide, ao perpétuo retorno periódico do tempo.
Cosima, Nietzsche e Wagner, Ariadne, Dionisos e Teseu... “Colocais nomes nas coisas como se elas subsistissem. Nunca nós
Quem sabe o que é Ariadne? ... Dionisos e Ariadne, o equilíbrio nos banhamos duas vezes nas águas de um mesmo rio”, dizia o
feliz de todas as coisas. Em um extrato de conversações fragmen- lacrimoso Heráclito; nem sequer uma vez, dirá um de seus discí-
tárias e imaginárias, entre Dionisos, Teseu e Ariadne, na ilha de pulos, porque as águas que banharão nossos pés não sãos as mes-
Naxos, idealizei um breve diálogo: Teseu tornou-se absurdo, diz mas que, depois, lavarão nossas cabeças. Em nenhum instante da
Ariadne, Teseu tornou-se virtuoso./Ciúme de Teseu pelo sonho de História a total inconsistência do mundo se despiu com menos
Ariadne./O herói, que admira a si mesmo, torna-se absur- pudor e totalmente a um pensador. Ninguém, como ele, sentiu
do./Lamento de Ariadne./Dionisos, sem ciúme, diz a Ariadne: O melhor a sombria infecundidade dos esforços humanos, a efême-
que amo em ti, como poderia amá-lo Teseu?/Último ato. Bodas de ra transitoriedade dos fenômenos. Quem não gostaria de ser cego
Dionisos e Ariadne./ ... Ariadne, diz-lhe Dionisos: tu és um labirin- para evitar a contemplação do eterno retorno?
to. Teseu se perdeu em ti, já não possui o fio que o possa salvar do Não há Deus, não, não há. O testemunho é de todos os dias,
Minotauro. ... O que amo em ti, como Teseu o poderia privilegiar? a evidência é de todas as horas, a evidência é para todos. O ateís-
Como ele poderia alegrar-se por não ter sido devorado pelo mo nunca foi um acontecimento em minha vida. ... Ele é o meu a
Minotauro? Aquilo que o destrói é pior que um Minotauro. Tu me priori... Os postulados da teologia são insustentáveis. O sofrimen-
lisonjeias, responde Ariadne, eu estou cansada da minha compai- to, em toda parte, protesta contra a realidade, exclama e denuncia.
xão. Todos os heróis devem morrer por mim. Este é o meu extremo A inteligência, não obstante o seu enorme poder potencial, é ape-
amor por Teseu: eu o faço perecer. nas um epifenômeno, um episódio marginal às transformações
Uma só e rápida palavra sobre a Alemanha. Sou o depreciador cósmicas, ao nascimento e morte dos astros. Ela também é prisio-
dos alemães por excelência... Eles não têm dedos para nuanças. Aos neira das grandes e ininterruptas metamorfoses da matéria. Não
meus olhos, ser um bom alemão significa desgermanizar-se. há um desígnio superior no coração das coisas. Hoje, conscientes
Quando o cristianismo agonizava, os alemães o salvaram, insti- dos desacertos que nos humilham, que desencantam e ferem,
tuindo a Reforma, sempre retardando a história. Não obstante, sabemos que jamais repousaremos em uma confiança infinita e
eles são os seus melhores destruidores. ... Nós, os alemães de ontem. generosa, ... que nunca mais haverá razão no decurso das coisas.
... Já não há filósofos na Alemanha. ... Em seu velho culto pela obs- Condenados ao mais cruel de todos os desamparos, todos somos
curidade, ... eles sempre lutaram contra a razão. ... Na verdade, o órfãos indefesos. O velho Jeová prepara-se para morrer... Não ouvis
espírito alemão ainda não perdeu sua nostalgia mística. ... O credo o badalar dos sinos? Ajoelhem-se! Eles carregam os sacramentos a
quia absurdum ainda está impresso na alma da Alemanha. ... A ger- um Deus que agoniza, diz Heine. Na alma do universo não há pro-
manidade, a Deustschheit; ... nenhum povo escreve pior que os ale- pósitos inteligentes, finalísticos, teleológicos. L’excuse de Dieu,
mães. Alemanha, “terra de poetas e pensadores”. Hoje, entretan- c’est qu’il n’existe pas, exclamava Stendhal.
to, quanta cerveja na inteligência alemã. ... Em Munique vivem os Meus olhos se turvam; minh’alma hesitante, oprimida e
meus antípodas. exausta, recua; minhas pernas, frágeis, vacilam, meus lábios se
Para mim, o tempo é circular, ele se curva sobre si mesmo: O calam, meus pés se arrastam, minhas mãos se fecham, meu cora-
universo alimenta-se de suas próprias dejeções. Todo efeito é causa ção se aflige. ... É noite, eleva-se a voz das fontes... Minha alma
de uma causa, toda causa é efeito de um efeito. Último efeito, também é uma fonte borbulhante. Sou luz, ah se fosse noite, como
causa da primeira causa. Causa, “estado modificativo das coisas”. sorveria nos seios da luz! Eu, porém, vivo de minha própria luz,
Periodicidade do ser, continuidade do vir-a-ser. Heráclito o absorvo em mim mesmo as chamas que de mim surgem. ... Entre dar
Obscuro, já o dizia: “No perpétuo fluir do universo, nada é e tudo e receber há um enorme abismo. ... Para onde foram as lágrimas dos
se transforma. A vida cede lugar à morte, o frio torna-se quente.. meus olhos? ... Há gelo em torno de mim, gelo que queima as
É a mesma coisa em nós estar vivo ou morto, desperto ou dormin- minhas mãos! ... É noite, ai!, por que hei de ser luz, luz e solidão? É
do, pois, em virtude da mutação isto passa a ser aquilo e aquilo noite; eleva-se mais a voz das fontes e minh’alma também é uma
volta a ser isto. Os mortos são imortais, porque morrem nos que fonte, uma fonte que se consome, que contempla e canta...
nascem.” Eu próprio faço parte das causas do eterno retorno das Dos vários textos que esbocei como epílogo do meu
coisas, da ciclogênese cósmica. Um dia eu regressarei com este sol, Zaratustra, ao qual se segue, imediatamente, meu livro Além do
com esta terra, com esta águia e com esta serpente; não para uma Bem e do Mal, prelúdio a uma filosofia do futuro, livro esse que
vida nova, para uma vida melhor ou análoga. Tornarei eternamen- contém a chave de mim mesmo, destaco alguns fragmentos daque-
te para esta mesma vida, igual em pontos grande e pequeno, a fim le que considero um dos mais expressivos: Um homem se mata,
de ensinar, outra vez, a eterna recorrência de todas as coisas, a fim outro se torna louco. /Um divino orgulho de poeta alenta
de repetir, mais uma vez, as palavras do grande meio-dia da terra e Zaratustra; tudo deve ser colocado sob a luz. No momento em que
dos homens, a fim de instruir os homens sobre o acima-do-homem... anuncia, simultaneamente, o acima-do-homem e o eterno retorno,
O ser absoluto é uma ilusão subjetiva, uma abstração equívo- ele cede à piedade. /Todos o renegam. É necessário – dizem – des-
ca. A única realidade constante é o vir-a-ser, a incessante meta- truir essa doutrina e assassinar Zaratustra. /No mundo, não há uma
morfose das coisas, o devir implacável, que nada consegue deter. só alma que me ame, murmura ele. Como poderei amar a vida?

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/Zaratustra morre de tristeza ao descobrir o sofrimento que é a sua 10. Nietzsche, Friedrich, Werke in vier Bänden, Schlechta,
obra. /Por amor, causei a dor maior; agora entrego-me à dor que Hanser, 1973.
causei. /Partem todos, e Zaratustra, ao ficar só, toca a serpente com
11. Nietzsche, Friedrich. Opere, vol. VIII, tomo III, Adelphi,
a mão; que me aconselha a minha sabedoria? A serpente morde-o,
a águia dilacera a serpente, o leão precipita-se sobre a águia. No Milão, 1974.
momento em que Zaratustra vê seus animais lutarem entre si, 12. Nietzsche, Friedrich. La mia vita, Adelphi, 1978.
morre. /Quinto ato: os louvores. /A liga dos fiéis que se sacrificam 13. Nietzsche devant ses contemporains, Bianquis, Rocher, 1959.
sobre o túmulo de Zaratustra. Tinham fugido. Agora, herdeiros de
14. Nietzsche nei ricordi e nelle testimonianze dei contempora-
sua alma, elevam-se à sua altura. / Cerimônia fúnebre; fomos nós
que o matamos. / Os louvores. / O grande meio-dia. / Meio dia e nei, ClaudioPozzoli, Biblioteca Universale Rizzoli, 1990.
eternidade. 15. Overbeck, Franz. Ricordi di Nietzsche. Il melangolo, 2000.
16. Peters, H. F. Nietzsche et sa soeur Elisabeth, Mercure de
Bibliografia consultada: France, 1978.
1. Andler, Charles. Nietzsche, sa vie et sa pensée, 3 volumes, 17. Podach, E. F. L'effondrement de Nietzsche, Gallimard, 1931.
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Casos Clin Psiquiatria 2001; 3(1,2):86-90 90

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