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Sistema endocanabinóide no desenvolvimento do sistema nervoso central

Paulo Rogério Morais

Desde as primeiras descrições do sistema endocanabinóide no final do século XX,


pesquisas com modernas técnicas farmacológicas, genéticas e comportamentais
sustentam a participação deste sistema em diversos fenômenos vitais para a relação do
organismo com o seu ambiente como, por exemplo, os processos de aprendizagem e
memória, emoção e ansiedade, recompensa, alimentação, nocicepção, motricidade, entre
outros. Ainda não está totalmente elucidado o papel do sistema endocanabinóide nos
processos fisiológicos normais, mas já são consistentes os achados que apontam sua
participação durante o desenvolvimento inicial do sistema nervoso.

Em seres humanos, o sistema nervoso começa a se desenvolver na terceira semana


de vida embrionária, quando podem ser identificadas as camadas germinativas do
embrião. O sistema nervoso é proveniente da camada embrionária mais externa, o
ectoderma, e o seu desenvolvimento obedece a uma complexa série de eventos que dirige
a expressão de genes específicos em subpopulações celulares bem definidas e em
momentos precisamente determinados. Ao longo de todo o desenvolvimento, a
maquinaria interna da célula (receptores, enzimas, etc) e o ambiente químico ao qual será
exposta serão fatores determinantes para o seu destino.

Na primeira etapa do desenvolvimento do sistema nervoso, a região média do


ectoderma se torna mais espessa e forma a placa neural, que se dobrará para formar as
estruturas mais precoces do sistema nervoso: o tubo neural (que dará origem às estruturas
do sistema nervoso central) e as cristas neurais (que darão origem às estruturas do sistema
nervoso periférico). Durante o período embrionário, o tubo neural e as cristas neurais
passam por mudanças estruturais bem delimitadas e os processos celulares envolvidos no
desenvolvimento do sistema nervoso podem ser divididos em cinco etapas:

1. Gênese das células nervosas (neurogênese e gliogênese): trata-se da criação


de novas células precursoras de tecido nervoso nas paredes internas do tubo
neural (zona germinativa)
2. Migração: as células precursoras recém-criadas na zona germinativa se
deslocam radialmente para a superfície externa do tubo neural;
3. Diferenciação morfofuncional: as células precursoras passam a adquirir
características morfológicas (axônios, dendritos, etc) e funcionais (síntese de
proteínas receptoras, canais iônicos, neurotransmissores, etc) típicas das
células nervosas;
4. Estabelecimento de conexões: ao longo da diferenciação morfológica, os
dendritos estabelecem pontos de quase contato (sinapses) com outras células
e os axônios passam a gerar potenciais elétricos. A partir das conexões
sinápticas as células nervosas passam a transmitir e receber mensagens por
meio das substâncias que sintetizam (neurotransmissores, neuromoduladores,
etc.);
5. Fenômenos regressivos: nas primeiras etapas do desenvolvimento neural
ocorre naturalmente a superprodução de neurônios, células gliais, axônios,
dendritos e sinapses. Os processos regressivos envolvem uma expressiva
morte celular programada, assim como a eliminação seletiva de axônios,
dendritos e sinapses. Este fenômeno possibilita o refinamento e precisão das
conexões neurais que permitem a complexa integração entre as diferentes
partes do sistema nervoso.

Desde o início do século XX se busca identificar os fatores químicos responsáveis


pela diferenciação celular em tecido neural e a identificação do sistema endocanabinóide
proporcionou avanço sem precedentes na compreensão dos mecanismos fisiológicos e
dos processos bioquímicos que determinam o que acontece para que uma célula tronco
(indiferenciada) se torne parte funcional do tecido nervoso ou sucumba em um processo
de morte programada. Embora seja um tema ainda pouco abordado nos cursos das
ciências biomédicas, o desenvolvimento do sistema nervoso é fortemente relacionado à
atividade do sistema endocanabinóide e os elementos que compõem este sistema
(receptores, ligantes endógenos e enzimas responsáveis pela síntese e degradação dos
ligantes) são detectados desde os primeiros estágios do desenvolvimento embrionário.
Além disso, as características moleculares e metabólicas observadas durante todo o
período pré e pós-natal sugerem que o sistema endocanabinóide tem importante papel no
neurodesenvolvimento e exerce atividade regulatória em diferentes etapas da formação
do sistema nervoso.

Estudos com animais mostram que o sistema canabinóide tem importante papel
na implantação do embrião no útero e que as concentrações dos ligantes endógenos dos
receptores canabinóides (AEA e 2-araquidonoilglicerol [2-AG]) variam substancialmente
durante o período de desenvolvimento pré-natal. A existência dos receptores
canabinóides em fases iniciais do desenvolvimento cerebral sugere o envolvimento do
sistema endocanabinóide em eventos específicos do desenvolvimento do sistema nervoso,
tais como proliferação e migração celular, alongamento axonal e, posteriormente,
sinaptogênese e mielogênese, durante os períodos pré e pós-natal.

Na primeira metade do desenvolvimento pré-natal, os níveis de AEA são baixos


no encéfalo e estes níveis aumentam gradualmente ao longo do período de
desenvolvimento perinatal, até que os níveis observados em adultos sejam atingidos. Da
mesma forma que se observa nos cérebros adultos, as concentrações de 2-AG excedem
as concentrações da AEA ao longo do desenvolvimento do cérebro. Os níveis fetais de 2-
AG são semelhantes aos observados em cérebros adultos, com um pico notavelmente
distinto no primeiro dia após o nascimento. Já foi detectada a enzima FAAH em células
da glia radial durante os períodos tardios da gestação e também no período pós-natal. Os
padrões de distribuição da FAAH, juntamente com o controle de processos ligados à
gênese de células nervosas sugerem o envolvimento do sistema endocanabinóide na
sinalização para diferenciação do progenitor neural. Também há evidências de que o
sistema endocanabinóide regula a sobrevivência e conectividade sináptica das células em
desenvolvimento no cérebro, além do bom equilíbrio entre a proliferação de células
progenitoras neurais e a morte programada – processos de fundamental importância para
a geração de quantidades adequadas de células neurais.

A distribuição dos receptores canabinóides no sistema nervoso em


desenvolvimento obedecem a um padrão de expressão que segue a diferenciação neuronal
no embrião desde os estágios iniciais. Se observa maior densidade de receptores CB1 no
cérebro em desenvolvimento do que no cérebro adulto e a distribuição destes receptores
é atípica no cérebro fetal e neonatal em comparação com o cérebro adulto.
De forma consistente com os achados acerca do papel dos endocanabinóides
durante o desenvolvimento precoce do sistema nervoso, a exposição pré e perinatal a
canabinoides exógenos pode modificar a maturação de outros sistemas de
neurotransmissores. Há evidências de que a ativação dos receptores canabinóides durante
períodos críticos do desenvolvimento do sistema nervoso pode ter impacto em outros
sistemas de neurotransmissão e resultar em alterações neurocomportamentais
clinicamente relevantes. O papel modulador do sistema endocanabinóide sobre outros
neurotransmissores envolvidos em uma ampla faixa de respostas comportamentais e
fenômenos mentais tornam este sistema um alvo altamente atrativo para o
desenvolvimento de agentes terapêuticos para muitos distúrbios do desenvolvimento do
sistema nervoso.

Mudanças no status legal da canabis e de seus derivados são fundamentais para a


realização de pesquisas que possibilitem a otimização do uso de agentes canabinóides
para o tratamento de graves distúrbios neurológicos e de transtornos psiquiátricos com
alto impacto sobre a qualidade de vida das pessoas e elevado custo social.

Bibliografia complementar:
Basavarajappa BS, Nixon RA, Arancio O. Endocannabinoid system: emerging role from neurodevelopment
to neurodegeneration. Mini Rev Med Chem. 9(4):448-62, 2009.
Ferreira FF et al. (2018). Brain-Derived Neurotrophic Factor (BDNF) Role in Cannabinoid-Mediated
Neurogenesis. Front Cell Neurosci. 12:441. doi: 10.3389/fncel.2018.00441.
Keimpema, E., Mackie, K., & Harkany, T. Molecular model of cannabis sensitivity in developing neuronal
circuits. Trends in Pharmacological Sciences, 32(9): 551–561, 2011
Lent, R. Neurociência da mente e do comportamento. Rio de Janeiro: Guanabara-Koogan, 2008.

Sites:
Animação do desenvolvimento do sistema nervoso: https://www.youtube.com/watch?v=XdN9i_ZWGho
Documentário “O cientista”: https://www.youtube.com/watch?v=SIi1k5LPTBA&t=989s

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