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Belo Horizonte
2010
Karime Gonçalves Cajazeiro
Belo Horizonte
2010
FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
CDU: 719(815.11)
À minha família.
AGRADECIMENTOS
Este estudo possui como tema o campo do patrimônio cultural e como objeto analítico, o
bairro Cidade Jardim, localizado na região centro-sul de Belo Horizonte e sujeito a ações
patrimonialistas em função de suas particularidades urbanísticas e arquitetônicas que
simbolizam um modo de vida peculiar na cidade. Desse modo, além da discussão sobre os
processos sócio-culturais que permearam a implantação e a ocupação do bairro, este estudo
volta-se para a apresentação do campo institucional de proteção ao patrimônio e das
representações presentes entre a população local em relação ao bairro e a seus bens culturais.
This study has as its theme the field of cultural heritage and as the analytic object, the
Cidade Jardim district, located in central-south region of Belo Horizonte and shares subject to
protective acts because of its urban and architectural features that symbolize a way of life
peculiar to the city. Thus, besides the discussion on the socio-cultural processes that
permeated the establishment and occupation of the neighborhood, this study turns to the
presentation of the institutional field of cultural heritage protection and the representations
present in the local population in relation to the neighborhood and its cultural objects.
1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................ 10
1 INTRODUÇÃO
Esta dissertação possui como tema o campo do patrimônio cultural e como objeto
analítico o bairro Cidade Jardim, localizado na região centro-sul de Belo Horizonte. Este
bairro foi identificado pelo poder público municipal como uma das áreas da cidade
merecedora de ações protecionistas que visam a manutenção das características que lhe
conferem singularidade no contexto belo-horizontino (PBH, 2004).
Projetado no final dos anos 1930, foi somente na década de 1940, durante a gestão de
Juscelino Kubitschek à frente da prefeitura de Belo Horizonte, que o bairro Cidade Jardim
seria lançado. A maioria das residências construídas no bairro entre os anos 1940 e 1960 foi
concebida a partir da adoção dos paradigmas e sintagmas1 do movimento moderno, fato que
ensejou a sua vinculação ao ideário de modernidade. Além da modernidade expressa pela
arquitetura, o bairro foi associado aos ideais progressistas de JK e representava, à época de
sua implantação, uma novidade na forma de morar, posto que sua concepção dotou a cidade
de uma solução urbanística até então inédita, derivada da concepção de cidades jardins
formulada por Ebenezer Howard no final do século XIX.
No que se refere aos aspectos sociológicos da ocupação do lugar, destaca-se que foi
possível verificar que na Cidade Jardim viveram pessoas de destaque no cenário empresarial
belo-horizontino e nacional, tais como banqueiros, industriais e construtores2. Esse dado se
torna elemento central para a compreensão do processo de ocupação do lugar, uma vez que o
bairro, lançado como “bairro burguês moderno” (CEDRO, 2002), é, atualmente, um bairro de
elite, para a qual se produziram, no Brasil, espaços residenciais exclusivos inspirados no
modelo de cidade jardim.
O bairro Cidade Jardim encontra-se protegido, atualmente, em dois âmbitos distintos,
um que se refere à sua definição como Área de Diretrizes Especiais – ADE Cidade Jardim e
outro que aponta para a proteção do lugar como Conjunto Urbano Bairro Cidade Jardim3. O
primeiro destes âmbitos se define no bojo da legislação urbanística municipal que,
pretendendo a proteção do patrimônio cultural, estabelece parâmetros diferenciados para a
1
Estes conceitos serão definidos adiante.
2
Estas informações foram obtidas a partir da análise do dossiê de proteção do Conjunto Urbano Bairro Cidade
Jardim (PBH, 2004).
3
Os procedimentos relativos à proteção da área como Conjunto Urbano Bairro Cidade Jardim ainda não foram
finalizados, como se verá adiante. Todavia, a área possui processo de proteção em andamento, encontrando-se,
portanto, sujeita ao acompanhamento do CDPCM/BH.
11
ocupação e uso do solo, tais como o coeficiente de aproveitamento (quanto se pode construir
em um lote) ou a taxa de permeabilidade (quanto de área vegetada ou permeável deve possuir
um lote). No ano de 2008, a ADE Cidade Jardim, já prevista na Lei de Parcelamento,
Ocupação e Uso do Solo desde 1996, foi regulamentada e, desse modo, foram detalhados os
parâmetros urbanísticos para a ocupação e instalação de usos no local. Além dos parâmetros
especiais, a regulamentação da ADE detalhou os argumentos que sustentam o controle urbano
diferenciado para esta área da cidade.
O segundo formato se processa no âmbito do Conselho Deliberativo do Patrimônio
Cultural do Município/CDPCM-BH e se refere, especialmente, ao tombamento dos imóveis e
à análise qualitativa das intervenções em edificações localizadas no perímetro de proteção.
A mancha de proteção relativa ao patrimônio cultural municipal para o bairro Cidade
Jardim (PBH, 2008a), a ADE Cidade Jardim, é delimitada pelas avenidas Raja Gabaglia,
Prudente de Morais (excluindo-se os lotes voltados para esta via), do Contorno e pelas ruas
César Campos, um trecho da Manoel Couto e da Perdigão Malheiros e, finalmente, pela rua
Teixeira Mendes, correspondendo à maior parte do núcleo que equivalia ao parcelamento
original do bairro Cidade Jardim (mapa 2). No entanto, essa demarcação não coincide com os
limites oficiais e populares4 identificados pela Prefeitura Municipal de Belo Horizonte (mapa
1).
O limite oficial do bairro Cidade Jardim incorpora parte da Vila São José e exclui o
terreno pertencente ao Ministério da Agricultura, voltado para a avenida Raja Gabaglia e rua
Josafá Belo. Já o limite popular incorpora a área de propriedade federal e os quarteirões que
margeiam a rua Teixeira Mendes, ao passo que exclui a Vila São José. Ao bairro oficial
correspondem as áreas cujo parcelamento encontra-se, oficialmente, definido como Cidade
Jardim, enquanto o limite popular engloba áreas que, ao longo do tempo, foram
simbolicamente incorporadas ao bairro5. No caso em tela, esta incorporação apresenta
conotações mercadológicas uma vez que o bairro Cidade Jardim é uma das áreas mais
valorizadas do município.
4
O limite e denominação oficiais de um bairro encontram-se definidos no projeto do seu parcelamento, aprovado
junto à Prefeitura de Belo Horizonte, ou seja, corresponde ao bairro oficialmente registrado na prefeitura. Já a
definição do limite ou da denominação popular considera a percepção subjetiva da população em relação à
delimitação e identidade dos lugares, podendo ou não ser coincidente com o limite oficial. Destaca-se que em 19
de janeiro de 2009, a administração municipal, por meio da Lei n.º 9691, oficializou a utilização dos limites
populares pelas entidades do poder público e concessionárias de serviço.
5
Esta incorporação corresponde às quadras localizadas ao sul do bairro, após a rua Teixeira Mendes.
12
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Importante destacar que o foco desta dissertação volta-se para a área de proteção ao
patrimônio cultural, ou seja, para a área inserida no perímetro da ADE Cidade Jardim.
Por essa perspectiva, destaca-se, inicialmente, que o campo da política de patrimônio
cultural, a partir dos anos 1980, introduziu novas questões e desafios a serem considerados
pelas ações preservacionistas, entre elas a questão da significação atribuída aos bens
patrimoniais pelos atores sujeitos às ações de patrimonialização. No âmbito da proteção de
edificações e espaços urbanos, ganha força o entendimento de que a proteção desses bens
deve considerar os processos sociais que informam a cidade, ou seja, deve incorporar a visão
14
dos habitantes em relação a seus bens, numa tentativa de perceber como eles utilizam e
valorizam os espaços do seu cotidiano. Nesses termos, o ponto central da dissertação pretende
capturar a ótica daqueles que utilizam os patrimônios protegidos, no caso específico, a
população local do bairro Cidade Jardim.
Desse modo, tendo em vista a classificação do bairro como patrimônio cultural do
município de Belo Horizonte (PBH, 2008a) e tomando como referência os argumentos
colocados pelo poder público para proteção da área, quais sejam, a vinculação a um modo de
vida particular (PBH, 2004), suas condições paisagísticas especiais e o conjunto arquitetônico
modernista nele existente (PBH, 2004; PBH, 2008a), esta dissertação pretende responder a
dois problemas de pesquisa: a. Como se desenvolveram os processos históricossociais ligados
à conformação do bairro Cidade Jardim que reverberaram na sua particularização
patrimonialista?, e b. Quais as representações presentes entre a população do bairro Cidade
Jardim sobre esse espaço urbano e os bens culturais nele existentes e quais as consequências
de tais representações para a preservação do bairro? Como parâmetros para a investigação são
propostos os aspectos de ressonância dos bens culturais identificados pelo poder público e do
valor de uso das edificações, bem como a análise dos elementos que denotariam um estilo de
vida de morar no Bairro Cidade Jardim.
Considerando os problemas de pesquisa colocados, esta dissertação encontra-se
dividida em três partes principais, cada qual correspondendo a um capítulo. A primeira delas
apresenta os conteúdos históricos e sócio-culturais do bairro Cidade Jardim, a partir de uma
análise que visa apreender os elementos que foram responsáveis por sua particularização e
patrimonialização no cenário belo-horizontino. Desse modo, além de abordar, sucintamente,
reflexões sobre o tema das cidades jardins, o primeiro capítulo apresenta os contornos do
lugar imaginado e do lugar efetivo.
Em relação ao lugar imaginado, a pesquisa volta-se para a análise relativa ao campo
das ideias urbanísticas, numa tentativa de apontar os ideais que motivaram a proposição de
um modo de morar até então inédito em Belo Horizonte. No que se refere ao lugar efetivo, o
estudo aborda os aspectos que dão concretude às especificidades do bairro, com enfoque em
dois pontos principais: no contexto político e cultural que permeia sua implantação,
notadamente imerso na busca pela modernidade local, e nos seus conteúdos urbanísticos,
arquitetônicos e sócio-culturais.
A segunda encontra-se direcionada para as ações de proteção ou para o campo
institucional de proteção ao patrimônio cultural. Partindo da contextualização da política de
15
A cidade jardim belo-horizontina foi projetada no final dos anos 1930 pelo engenheiro
sanitarista Lincoln Continentino e lançada nos anos 1940, durante a gestão de Juscelino
Kubitschek à frente da prefeitura. Esse período é marcado, tanto no contexto local quanto no
nacional, por um intenso movimento que pretendia lançar bases para alavancar o processo de
modernidade do país. Coube ao Estado, associado à burguesia industrial e econômica
emergente, criar as condições para esse processo.
No campo das ideias urbanísticas, Belo Horizonte, entre o final dos anos 1930 e
meados dos anos 1940, absorvia as premissas preconizadas pelos movimentos de arquitetura e
urbanismo internacionais. Assim é que a proposta de uma cidade jardim para o município irá
ser tomada como uma solução urbanística para as áreas residenciais. A nova cidade jardim
belo-horizontina se apresentou como uma novidade no contexto da cidade, posto que oferecia
soluções formais e de ocupação até então inéditas no município. Nesses termos, a condição
paisagística particular – ruas largas dotadas de consistente arborização, a intensidade da
utilização de jardins, a inexistência de muros no cercamento dos lotes e a grande distância
entre as edificações –, foi mesclada à novidade que a previsão de um bairro exclusivamente
residencial ofereceria.
A novidade se fazia presente também na arquitetura do bairro, uma vez que a maioria
das residências aí construídas entre os anos 1950 e 1960 foi concebida a partir da adoção dos
paradigmas e sintagmas6 do movimento moderno, fato que ensejou a sua vinculação ao
ideário de modernidade. Além da modernidade expressa pela arquitetura, o bairro foi
associado aos ideais modernistas de JK.
No contexto atual, o bairro foi classificado como patrimônio cultural do município de
Belo Horizonte (PBH, 2008a), proteção esta embasada em argumentos pautados em
6
Paradigmas e sintagmas são categorias utilizadas por Denise Bahia (1999) para analisar a casa modernista em
Belo Horizonte. Segundo essa autora, a utilização destes conceitos parte da premissa de que o modernismo é
uma linguagem, um conjunto de signos, e a partir desse entendimento, os objetos analisados, no caso as casas
representativas da arquitetura modernista, foram lidos com base em dois eixos principais: o paradigmático e o
sintagmático. Nesses termos, os paradigmas referem-se aos diferentes sistemas que compõem o edifício, entre
eles, implantação, partido e sistema construtivo, enquanto os sintagmas representam os diferentes tipos, as
diferentes soluções arquitetônicas que compõem os distintos sistemas. Por exemplo, o paradigma implantação
pode ser lido a partir dos sintagmas com recuo frontal ou sem recuo frontal; o paradigma partido pode ser
considerado a partir dos sintagmas linear ou em “L”; o paradigma sistema construtivo pode ser dos tipos
massivo, esqueleto, misto (BAHIA, 1999).
18
formulação de urbe pautada no planejamento das formas, das funções, dos meios financeiros e
administrativos, assim como na consolidação de um processo que favorecesse as massas e
controlasse a migração proveniente do campo em direção à cidade industrializada, constituiu
uma tendência de orientação da atuação de urbanistas no século XX.
O modelo de cidade jardim, formulado pelo estenógrafo inglês Ebenezer Howard no
final do século XIX e princípio do século XX, consiste em uma proposta de reforma social do
modo de vida em cidades, que se processaria a partir da implantação de um sistema auto-
suficiente de base cooperativa (BONFATO, 2008). Suas ideias, assim que foram lançadas,
alcançaram circulação mundial7, fato que certamente influenciou a produção de diversos
'derivados'8 do modelo howardiano. Tais derivados, como será exposto adiante, guardam entre
si semelhanças na solução formal, com desenho urbano condizente com as condições do
terreno natural, utilização de farta arborização e ajardinamento, tal como efetivado nas duas
primeiras cidades jardins, Letchworth e Welvyn, ambas implantadas na Inglaterra nas
primeiras décadas do século XX.
No entanto, como pensara Howard, a proposta cidade jardim ideal não se restringiria a
aspectos meramente formais ou exclusivamente nominais. Sua formulação original
intencionava a transformação do modo de vida em cidades, ou seja, se almejava a criação de
um ambiente urbano distinto daquele que caracterizava as cidades industriais no século XIX.
As concepções relacionadas ao tema das cidades jardins foram expostas, pela primeira
vez, em 1898, quando Howard publicou o livro Tomorrow: A Paceful Path to Real Reform,
posteriormente reeditado como Gardens Cities of Tomorrow, em 1902. Suas “cidades jardins
do amanhã” objetivavam a construção de localidades auto-suficientes, capazes de propiciar a
seus moradores os benefícios da vida na cidade mesclados às qualidades inerentes à vida no
campo. Em outros termos, as cidades jardins, segundo as aspirações howardianas, deveriam
constituir-se na ‘pedra fundamental de uma forma superior e melhor de vida industrial em
todo o país ”(HOWARD, 1996, p. 185). No seu entendimento, uma solução alternativa para a
vida nas cidades industriais se fazia necessária, uma vez que era “deplorável que pessoas
[continuassem] afluindo às cidades já superpovoadas, esvaziando ainda mais os distritos
rurais” (HOWARD, 1996, p.105).
Antes de pensar em soluções formais definitivas para a nova urbe - estas deveriam ser
7
Menezes (2009) aponta que a repercussão positiva da obra de Howard contribuiu para que o movimento das
cidades jardim se tornasse internacional, influenciando movimentos urbanísticos em vários países: França,
Alemanha, Finlândia, Polônia, Áustria, Hungria, Bélgica, Japão, Egito, Estados Unidos e Brasil.
8
Bonfato (2008) utiliza o termo 'derivados' para se referir às experiências urbanísticas que foram inspiradas na
20
atribuídas a planejadores que a partir da análise dos diversos tipos de terrenos estariam livres
para conceber a solução espacial de cada uma das cidades jardim -, Howard se ocupou em
analisar e propor reformulações nos sistemas sociais subjacentes ao novo modo de vida
demandado pela Revolução Industrial.
Em termos ideológicos, a proposta de cidade jardim de Howard concilia duas
perspectivas defendidas por reformadores no princípio do século XX. A primeira, de cunho
socialista, acredita que o processo de produção e distribuição de riquezas, realizado de modo
mais equitativo, deve ser atribuído à comunidade, ao passo que a segunda, própria dos
individualistas, afirma a necessidade veemente de incrementar a produção.9 Howard
empreende uma síntese conciliadora entre ambas as visões e, embasando-se nelas, ancora a
cidade jardim nos seguintes princípios: a) na organização do fluxo migratório das cidades
congestionadas para distritos rurais espaçados, que seriam adquiridos antecipadamente e
mantidos com receitas provenientes do arrendamento das propriedades b) na experimentação
do modelo em pequena escala, evitando-se o ímpeto de adotá-lo no âmbito nacional; c) na
criação de condições monetárias para que os migrantes se estabelecessem, evitando ou
minimizando a cobrança de taxas, objetivo que seria atingido pelo recolhimento de taxas dos
membros já estabelecidos e a posterior transferência delas para a execução das obras públicas
que o fluxo migratório demandasse e, finalmente, d) o desenvolvimento da cidade jardim
deveria resguardar, em abundância, “os dons gratuitos da natureza – ar puro, luz do sol,
espaços arejados, e áreas de lazer – empregando de tal forma os recursos da ciência moderna
que a arte possa suplementar a natureza e que a vida possa tornar-se um permanente gozo e
deleite” (HOWARD, 1996, p.176).
A cidade jardim, como se observa na figura, seria composta por um núcleo central
urbano com 30.000 habitantes, em área de 400 hectares, e 2.000 habitantes na porção
destinada à produção agrícola, ocupando uma área de 2.020 hectares que circundaria o núcleo
central. Apresentaria, ainda, além de um parque central, áreas destinadas à ocupação
industrial, localizadas no anel externo da cidade, ao comércio, que seria desenvolvido no
Palácio de Cristal, e à moradia, com cada casa ocupando um lote único e independente. O
território da nova urbe seria dividido em seis setores, cada um delimitado por boulevard
arborizado, assim como as demais vias da cidade, com 36 metros de largura, que partem de
um parque central e conduzem ao perímetro externo. Este é circundado por uma ferrovia, que
configura o meio de acesso ao ambiente rural. Outros anéis viários, dotados de arborização e
dispostos em volta do parque central, concêntricos a ele, complementariam o sistema.
Sitte10, que advoga a favor do retorno da beleza nas intervenções em meio urbano. No
entanto, Howard, segundo Bonfato (2008), jamais recomendara um desenho urbano para as
novas cidades jardins. Nos diagramas da sua proposta, constava que o desenho urbano a ser
adotado deveria considerar a adaptação aos diversos tipos de terreno, e caberia à criatividade
de cada um dos planejadores a criação da forma urbana final da nova cidade.
Desse modo, Parker e Unwin se valeram dos recursos urbanísticos defendidos por
Sitte, especialmente no uso de ruas sinuosas em áreas mais tranqüilas, notadamente as
residenciais, como se observa na figura 2. Bonfato (2008) observa que os urbanistas
vinculados ao movimento pela cidade jardim incorporaram as concepções estéticas de Sitte,
numa atitude de reafirmação dos princípios do pitoresco oriundos da tradição paisagística
inglesa11. Em suas palavras sobre o imbricamento das perspectivas sittianas e howadianas na
10
As opções formais de Paker e Unwin, de acordo com Bonfato (2008), apresentam influência das concepções
de Camillo Sitte, que em sua obra referencial para o urbanismo, intitulada Construção das Cidades Segundo seus
Princípios Artísticos, publicada em 1889, advoga a favor da preocupação com a estética nas intervenções
urbanísticas, requisitando a volta da beleza às cidades. A eliminação desta, segundo o entendimento sittiano,
decorria dos processos intrínsecos ao funcionamento da era industrial, quando “o racionalismo retilíneo do
capital se sobrepunha ao belo e ao charme da sinuosidade e do apelo artístico ao desenho urbano” (BONFATO,
2008, p. 131).
11
Tais princípios se referem à valorização da natureza, porém tratada de modo domesticado, vinculada ao urbano
24
13
Sobre as experiências urbanísticas brasileiras inspiradas no modelo das cidades jardins, consultar LEME,
Maria Cristina da Silva (org.).Urbanismo no Brasil 1895-1965. São Paulo: Nobel, 1999.
27
14
Paula(2008) coloca que somente após 1940 que a condição de bairro elitista se configurou. O entendimento da
autora se pauta em dois pontos principais. Em primeiro lugar, no fato de que, inicialmente, os lotes no bairro
Jardim América foram adquiridos por meio de financiamentos, que incluíam, às vezes, a construção da
edificação, modo de aquisição que não é próprio das classes abastadas. Em segundo lugar, a autora se pauta no
estudo de Silvia Woff sobre a tipologia das residências e a forma de morar em São Paulo, do qual se conclui que
as primeiras casas construídas no bairro não eram destinadas à moradia da elite e sim da classe média.
28
15
Bonfato(2008), ao estudar as realizações do engenheiro Macedo Vieira em São Paulo aponta aproximadamente
30 loteamentos que foram denominados de bairros jardins. Tais loteamentos encontram-se distribuídos no
entorno da área central da cidade. O engenheiro projetou, ainda, outros bairros jardins nas cidades do Rio de
Janeiro, Campinas, Atibaia e Campos do Jordão.
29
mas acrescia-se à solução meramente formalista da cidade jardim a preocupação com a oferta
de moradia aos trabalhadores da indústria. Trata-se da Vila do Instituto de Aposentadoria e
Previdência da Indústria/IAPI, cuja construção, executada no período compreendido entre a
década de 1940 e o ano de 1952, foi destinada à moradia operária, contando com 2446
unidades. A área escolhida para implantação da Vila se localizava em ponto afastado do
centro, no bairro Passo da Areia, ao norte da cidade e no então novo eixo de expansão da
atividade industrial. Como princípios formais próprios ao modelo das cidades jardins foram
adotados a organicidade do traçado urbanístico e o uso intensivo de áreas verdes integradas às
edificações. Este empreendimento foi gerido pelo IAPI, que concedia aos moradores o direito
de uso das unidades habitacionais enquanto conservava em seu poder a propriedade das
residências (LEME, 1999).
Em Salvador, também se verifica a tendência de incorporação de determinados
princípios howardianos ao planejamento da cidade. Assim, na década de 1940, o Escritório do
Plano de Urbanismo da Cidade de Salvador elabora um modelo urbano que prevê a
implantação de bairros satélites ligados à área central por vias expressas (tal como
diagramado por Howard para a interligação entre metrópole e cidades jardins), a localização
dos edifícios públicos administrativos no centro e as indústrias na periferia, criando várias
avenidas arborizadas e um cinturão verde. A motivação para a utilização de determinadas
formulações howardianas em Salvador pode ser buscada em uma conferência realizada na
cidade no ano de 1935, cujo tema era As Cidades Jardins como único meio de impedir que os
trabalhadores rurais se fixem nas cidades tentaculares, proferida pelo engenheiro Milton
Oliveira da Rocha na Semana de Urbanismo (BIENAL INTERNACIONAL DE
ARQUITETURA, 1997). Milton da Rocha, além de aludir diretamente ao modelo de cidade
jardim como meio para impedir a fixação de trabalhadores rurais em cidades, critica a
apropriação do modelo nos bairros paulistanos do Jardim América e Jardim Europa,
afirmando que eles “não representam absolutamente o ideal socializante e confortável de
Ebenezer: (...) são simplesmente os princípios do urbanismo aplicados a um recanto da
cidade” (in BIENAL INTERNACIONAL DE ARQUITETURA, 1997). Em que pesem as
intenções totalizantes de Rocha, as soluções urbanísticas influenciadas por Howard não se
concretizaram plenamente, com Salvador exibindo o modelo urbano proposto na década de
1940 apenas parcialmente.
No Rio de Janeiro, a apropriação dos aspectos formais das cidades jardins é
influenciada por Alfred Agache, urbanista francês que elaborou um plano entre os anos de
30
1928 e 1930 que previa amplas reformas para a cidade. Entretanto o plano foi apenas
pontualmente realizado, dado o arquivamento da proposta pelo governo Vargas. Agache
indicou Howard como sua fonte de inspiração e, a partir de então, alguns bairros cariocas
foram nominalmente adjetivados, a exemplo do bairro Jardim Laranjeiras, beneficiado com
um Decreto-Lei em 1937 que proibiu a destinação da área a outras atividades que não a
residencial (BIENAL INTERNACIONAL DE ARQUITETURA, 1997). Outras localidades,
como as ilhas do Governador e Paquetá, dentro do plano de Alfred Agache para a cidade em
1930, foram inspiradas formalmente nas propostas de Howard.
O indicativo de apropriação dos princípios formais das cidades jardins inglesas foi
percebido, ainda, na construção de duas cidades no estado do Paraná – Maringá e Cianorte.
Empreendidas pela Companhia de Melhoramentos do Norte do Paraná, empresa de capital
britânico, ambas as cidades apresentam padrão urbanístico diferenciado em relação ao padrão
executado no país até então. Nesses termos, cada qual possui a paisagem urbana marcada pela
arborização, iniciada com um cinturão de chácaras ao redor das cidades e que se consolidou
com maior intensidade que em outras cidades brasileiras (PAULA, 2004).Tanto Maringá
quanto Cianorte foram concebidas pelo engenheiro civil Jorge Macedo Vieira16, que projetou,
ainda, vários loteamentos, muitos deles denominados de bairros jardins. Macedo Vieira
iniciou sua carreira profissional como estagiário da Cia City, ao lado do arquiteto Barry Paker,
fato que sugere a motivação da adoção dos elementos característicos do modelo de cidade
jardim em seus projetos.
Transpondo o foco da discussão para o objeto deste estudo, Belo Horizonte apresenta
também uma intervenção urbanística inspirada no modelo howardiano. Trata-se do bairro
Cidade Jardim, localizado na região centro-sul da cidade. Esse empreendimento, lançado pelo
poder público municipal durante a gestão de Juscelino Kubitschek à frente da prefeitura, é
produto de um plano urbanístico idealizado pelo engenheiro Lincoln Continentino na gestão
do prefeito José Osvaldo de Araújo, entre 1938 e 1940. Esse plano estabelecia um conjunto de
diretrizes que previam intervenções na cidade, porém sem alterações substanciais em sua
estrutura. Entre os objetivos do plano, destaca-se o que pretendia que os bairros adquirissem o
16
Bonfato (2008), ao analisar a obra de Macedo Vieira, destaca que o trabalho deste engenheiro civil pode ser
subdividido em duas frentes de atuação principais. A primeira relaciona-se à implantação de loteamentos nos
arredores da área central de São Paulo, bem como em outras localidades, como Rio de Janeiro, Atibaia e Campos
do Jordão. A segunda refere-se à implantação de cidades novas, frente iniciada com o projeto para a Estância
Hidromineral de Águas de São Pedro (SP) em 1936. Outras cidades por ele projetadas foram Maringá (PR), em
1947, a Cidade Balneária do Pontal do Sul, em 1951, e Cianote (PR), em 1955. Macedo atuou também em obras
pontuais, tais como projetos para construção de pontes e canalização de córregos.
31
17
A notícia de lançamento do bairro, veiculada na imprensa em 24 de dezembro de 1944, já não faz referência à
denominação Fazenda Velha, constando apenas o atual nome do bairro, Cidade Jardim.
32
urbanas em Belo Horizonte. Formado pela Escola Livre de Engenharia de Belo Horizonte,
Continentino dedicou-se à realização de um curso de especialização em engenharia sanitária
na Universidade de Harvard, entre 1927 e 1929.
Após retornar dos Estados Unidos, ele conciliou sua carreira acadêmica com a técnica.
Além da cátedra na Escola de Engenharia desde 1932, atuou no âmbito da administração
pública estadual – chefia da Inspetoria de Engenharia Sanitária da Diretoria de Saúde Pública
do Estado de Minas Gerais, entre 1928 e 1936, e direção do Serviço de Saneamento e
Urbanismo da Secretaria de Viação e Obras, no período de 1936 a 1941. Em âmbito
municipal, foi consultor técnico da Prefeitura de Belo Horizonte de 1938 a 1940 e de 1950 a
1956. Continentino teve, ainda, uma rápida passagem pelo governo federal, em 1937,
oportunidade em que se dedicou à consultoria no Ministério da Educação e Saúde (FJP, 1996).
A dupla atuação de Lincoln Continentino, em duas esferas distintas, quais sejam a
pública e a acadêmica, constitui a exemplificação belo-horizontina de um processo verificado
em outras localidades brasileiras. Bonfato (2008), ao contextualizar o campo profissional dos
engenheiros no início do século XX, afirma que o quadro de docentes das escolas de
engenharia era formado por profissionais que trabalhavam também na esfera pública. Esse
fato fez-se relevante na medida em que possibilitou a ampliação do campo de discussão sobre
as novas perspectivas sobre o urbanismo, viabilizando a circulação de tais ideias também no
meio governamental.
A propagação das ideias próprias do campo do pensamento urbanístico nas primeiras
décadas do século XX decorre de um cenário no qual a intensa circulação de profissionais
empreendeu uma vasta esfera de intercâmbio de formulações e modelos de intervenções
urbanas (BONFATO, 2008). Assim, além da possível influência da primeira experiência
urbana brasileira de planejamento inspirado nas cidades jardins, o bairro Jardim América,
construído em 1910, especula-se que Continentino tenha também tido contato com o modelo
howardiano durante a sua estadia nos Estados Unidos.
No cenário norte-americano, as ideias de Ebenezer Howard adquiriram notoriedade
quando o movimento City Beautiful, voltado para o embelezamento das cidades, chega ao fim
no princípio dos anos 1900. Com o fim desse movimento, emergiu uma nova perspectiva que
aderiu a princípios de intervenção urbana que defendiam a promoção da democracia política e
a justiça social. Alguns dos pensadores adeptos a esses princípios sintonizavam-se também
com os ideais de reforma do modo de vida em cidades postulados por Howard. Essa
aproximação com a proposta howardiana motivou o empreendimento de algumas novas
33
cidades jardins nos Estados Unidos, até o final dos anos 1930 (BIENAL INTERNACIONAL
DE ARQUITETURA, 1997).
Nesse contexto, a passagem de Continentino pelos Estados Unidos certamente o
colocou em contato com as discussões sobre as novas perspectivas em voga no campo do
urbanismo e, quando retorna ao Brasil, ele apresenta-se “marcado pela concepção de
urbanismo e saneamento vigente nos Estados Unidos [...]” (FJP, 1996, p.2)
Já em 1933, ou seja, quatro anos após seu retorno da América do Norte, Continentino,
em uma conferência realizada no Rotary Clube de Belo Horizonte, cujo tema era a
administração municipal, defende a adoção do modelo de cidade jardim para as áreas
residenciais belo-horizontinas. No tópico intitulado Alguns princípios básicos de urbanismo
que devem ser observados na execução dos planos de melhoramentos e expansão das
cidades, ele coloca que os distritos residenciais deveriam ser constituídos por cidades
celulares de vida autônoma (CONTINENTINO, s.r.d.). Destaca-se que a intenção de auto-
suficiência das cidades jardins constitui um dos pontos centrais do modelo das cidades
jardins. Entretanto, Continentino não expressa, nesse documento, como se daria a almejada
independência.
Além da definição das proporções das diversas funções nas cidades jardins celulares,
propostas de forma autônoma, consta na conferência proferida por Continentino a
preocupação com o aproveitamento das condições naturais do terreno, tanto no que se refere à
implantação do arruamento quanto à construção de parques naturais e de recreio em locais
inóspitos à ocupação, como áreas com relevo acidentado ou áreas sujeitas à inundação
(CONTINENTINO, s.r.d.).
Continentino se ocupa também do traçado das vias e da necessidade de arborização
delas, prevendo que as ruas secundárias poderiam apresentar trechos em curva, como meio de
estabelecer um obstáculo ao tráfego de automóveis. Propõe, ainda, a implantação de cul de
sacs e, em relação ao tratamento da paisagem e das edificações, defende que “deve-se reduzir
ao mínimo o uso antiquado e colonial de muros confinantes [e que] a arborização para climas
tropicais deve ser abundante. As árvores existentes devem ser poupadas ao máximo possível,
bem como as florestas e matas circunvizinhas à cidade” (CONTINENTINO, s.r.d., p. 324)
As proposições formais de Continentino são coincidentes com as soluções que
aderiram ao conceito de cidade jardim: utilização de intensa arborização, vias sinuosas, cul de
sacs e preocupação com a adaptação do plano urbanístico às condições morfológicas do
terreno são algumas das características que se fazem presentes nos derivados adjetivados com
34
o termo jardins.
Além de considerações de caráter geral sobre o tema do urbanismo, Continentino
elabora, no ano de 1935, um documento em que apresenta à Comissão Técnica Consultiva de
Belo Horizonte as justificativas e alguns esboços a serem considerados no Plano de
Urbanismo de Belo Horizonte. Sua proposta era a de que, naquele momento, fossem
realizados estudos que subsidiassem o desenvolvimento de um plano de expansão racional da
capital.
Já no princípio da década de 1940, em sua conferência realizada no 1o. Congresso
Brasileiro de Urbanismo, Continentino expõe o conteúdo do referido plano de expansão, ou
do Plano de Urbanismo de Belo Horizonte. Tratado como plano diretor da cidade, o estudo,
na ocasião ainda em execução, segundo a perspectiva de Lincoln Continentino, produzia
resultados concretos: “na administração do atual prefeito, dr. Juscelino Kubitschek, estão em
construção os prolongamentos de quatro avenidas radiais: Afonso Pena, Amazonas, Tocantins
[atual Assis Chateaubriand] e Pedro I” (CONTINENTINO, 1941, p. 41).
Além de intervenções no sistema viário18, o citado plano previa soluções para o
sistema de transporte – incluindo a construção de uma estação de ônibus interurbanos, de uma
estação central e do projeto de unificação das vias férreas19 –, para a construção de um novo
aeroporto, para o saneamento – sistema de esgoto, águas pluviais, abastecimento de água,
limpeza pública e serviços de mercado, entreposto de leite, matadouro e cemitérios – e para
produção de energia elétrica. Tratava-se, ainda, da questão do planejamento da ocupação do
território: subdivisão de terrenos e cidades jardins; zoneamento e código de edificações;
centro cívico e universitário; sistema de parques e jardins. No documento produzido para o 1°
Congresso de Urbanismo, cada um dos citados temas foi tratado em item específico que, além
de um breve diagnóstico da situação, trazia também a solução pensada por Continentino para
o problema.
18
Para os problemas inerentes ao sistema viário, Continentino havia desenvolvido o Plano das Grandes Avenidas
ou Artérias de Tráfego, que consistia na ligação entre a zona urbana com a suburbana e cidades vizinhas, posto
que ele diagnosticou deficiências no sistema viário da área suburbana e sua ligação com a área urbana. A
proposta consistia na implantação de um sistema de artérias rádio-concêntricas, distantes entre si cerca de 1 km.
Seria feito, ainda, o prolongamento de algumas vias radiais da cidade e o projeto de uma segunda via periférica,
envolvendo a avenida do Contorno. Esta segunda via seria designada de Circuito de Turismo
(CONTINENTINO, 1941).
19
Trata-se da proposta de locação das linhas que servem ao uso industrial afastadas do centro urbano, mas
interligadas, preferencialmente, através de linhas subterrâneas com as estações de passageiros, implantadas na
área central da cidade. Continentino se ocupou em definir, especificamente, os pontos de intervenção no sistema
de transporte, como por exemplo, a construção de um túnel de 120 metros que atravessaria a praça da Lagoinha e
outro de 240 metros que atravessaria as ruas Contagem, atual Padre Eustáquio, e Conquista, ambas no bairro
Carlos Prates (CONTINENTINO, 1941).
35
caráter de cidade celular, tão independente quanto possível do centro urbano, dotada
de igreja, comércio local e escola primária, colocada no meio de um playground,
evitando viagens longas e inúteis dos seus moradores, que, para satisfação das suas
necessidades fundamentais da vida, não precisam se afastar da periferia de seu
bairro residencial (CONTINENTINO, 1941, p. 51).
Além de aspectos gerais sobre os espaços urbanos inspirados nas cidades jardins e a
definição de que estes deveriam ser adotados no tratamento do espaço urbano - na ordenação
das zonas residenciais e no aumento da área de parques e da arborização, Continentino
definiu, especificamente no Plano de Urbanismo de Belo Horizonte, a proposta de um novo
bairro jardim para a Belo Horizonte, o Cidade Jardim Fazenda Velha, atual Cidade Jardim20
(figura 1). Sua proposta destinava-se à construção de “uma cidade jardim provida de um
parque local, atravessado pelo córrego do Leitão, correspondente a 15% de sua área e
envolvendo a sede da Fazenda Velha [atual Museu Abílio Barreto], único prédio remanescente
do Arraial de Curral d'El Rey” (CONTINENTINO, 1941, p. 51). Os lotes foram concebidos
com grandes dimensões – 1000m2 de área mínima e frente mínima de 25 metros –, e as
20
Continentino não trata da Pampulha em um item específico, mas se refere a ela da seguinte maneira: “a atual
administração está executando na Pampulha um bairro residencial de primeira ordem, adotando uma
regulamentação de construções previamente estabelecida e aplicável às cidades jardins” (CONTINENTINO,
1941, p. 53).
36
edificações, que seriam construídas com consideráveis afastamentos umas das outras e da via
pública, estariam visíveis a partir da rua, uma vez que foi vedada a construção de muros no
cercamento dos terrenos.
21
A planta de parcelamento refere-se às demarcações legais de quarteirões, lotes e espaços públicos.
38
pela população que nele se estabelece e pelos processos e dinâmicas histórico-sociais da vida
citadina (RIBEIRO, 2008). Nesses termos, são os processos sociais subjacentes à ocupação do
lugar é que darão consistência e conteúdo à nova localidade, aproximando, ou não, o lugar
efetivo do lugar imaginado.
Por essa perspectiva, convém destacar que o bairro Cidade Jardim, no decorrer do seu
processo de desenvolvimento, foi dotado de conteúdos urbanísticos e sociológicos recorrentes
na maioria dos derivados brasileiros do modelo howardiano. No lugar, ocupado pela classe
alta belo-horizontina, foram construídas suntuosas residências, dispostas em meio a amplos
terrenos ajardinados e a uma paisagem urbana marcada pela intensa arborização, pelo
ajardinamento dos passeios, pelo constante diálogo visual entre o espaço público e o privado,
possibilitado pelos fechamentos frontais em gradil ou elementos transparentes. As nuances
sócio-culturais que induziram este tipo de ocupação constituem o tema da próxima seção
deste capítulo.
22
A implantação de colônias agrícolas na cidade de Belo Horizonte é decorrente de um contexto no qual o
governo mineiro tinha a intenção de estabelecer zonas agrícolas ocupadas, preferencialmente, por imigrantes
europeus, “pessoas que através do seu trabalho e de seus costumes pudessem se converter em exemplos para as
populações locais e contribuir para o progresso do estado” (AGUIAR, 2006, p.280). Visava, ainda, à atração dos
operários que haviam contribuído com a construção da nova capital. Para mais informações sobre as colônias
agrícolas de Belo Horizonte consultar AGUIAR, Tito Flávio Rodrigues. Vastos Subúrbios da Nova Capital:
formação do espaço urbano da primeira periferia da capital. UFMG, Tese de Doutorado, 2006.
40
condução desse processo pelo Estado. Tal arranjo se fez fortemente presente no país,
notadamente durante o período correspondente ao Estado Novo (1937-1945), sob o governo
de Getúlio Vargas. Foi em um intervalo desse período – 1941 a 1945 – que Juscelino
Kubitschek assumiu a prefeitura de Belo Horizonte, a convite de Benedito Valadares23, então
interventor do Estado de Minas Gerais.
Marcelo Cedro (2002), em sua análise sobre o governo de JK na prefeitura de Belo
Horizonte, identifica diversos pontos de convergência entre o discurso juscelinista e o
proferido pelos ideólogos do Estado Novo. Nesse sentido, o discurso positivista-organicista
do Estado Novo fora absorvido por JK para se referir à cidade: esta, segundo seu
entendimento, encontrava-se doente, tal como apregoava Getúlio Vargas em relação ao estado
que encontrou o Brasil, sendo necessário, enquanto prefeito, sua atuação como médico
(CEDRO, 2002). No plano nacional, os discursos elaborados professavam que a enfermidade
da sociedade brasileira encontrava-se associada à preguiça e ao conformismo do povo
brasileiro bem como ao atraso representado pelo antigo regime oligárquico. No plano local,
Belo Horizonte, segundo o discurso modernizante, padecia de condições que pudessem inseri-
la no rol das cidades modernas.
A inserção no rol das cidades modernas foi tomada, então, como principal objetivo da
administração juscelinista. Assim, é por meio da atuação da administração municipal, em sua
busca pela inserção do ‘novo’ no cenário belo-horizontino, que irão se processar mudanças
nos modos de vida na cidade. A construção da Pampulha, a criação de novos bairros
residenciais, a instituição das escolas de arquitetura e de artes, a promoção da Exposição de
Arte Moderna de 1944 certamente são acontecimentos que contribuíram com a promoção da
alteração dos hábitos de vida da sociedade belo-horizontina (CEDRO, 2002).
A modernidade era sentida, ainda, nas obras que imprimiam a modernização no espaço
urbano por meio da abertura e remodelamento de vias, da utilização de novas linguagens
arquitetônicas, da realização de obras de infraestrutura tais como saneamento e canalização do
leito de rios. Pari passu a esse processo, Belo Horizonte assistiu a um movimento de
segregação espacial coordenado pelo poder público.
Thaïs Pimentel (1993) aponta que as reformas e construções empreendidas durante a
gestão juscelinista foram realizadas com o objetivo de se estabelecer um maior controle da
23
Segundo Cedro (2002), o convite feito por Benedito Valadares a JK não foi aceito imediatamente, uma vez que
este havia prometido que não ingressaria mais na política face à sua decepção com o episódio em que o Estado
Novo dissolveu o congresso. Ainda de acordo com esse autor, antes que Kubitscheck tivesse tido tempo para se
decidir sobre o convite, sua nomeação foi publicada.
45
24
Há relatos constantes nos arquivos do Programa de História Oral da UFMG – Área Temática: História das
Elites que revelam que Juscelino Kubitscheck estivera presente em reunião organizada pela Sociedade Mineira
de Engenheiros em que Lincoln Continentino apresentou seu Plano de Urbanismo para Belo Horizonte. De
acordo com tais relatos, havia a expectativa de engenheiros civis e empreiteiros de que fossem retomados em
Belo Horizonte os investimentos na realização de obras, assim como acontecera na primeira gestão de Otacílio
Negrão de Lima (1935 a 1938). A partir dessa expectativa, a Sociedade Mineira de Engenheiros convida
Juscelino para assistir a uma palestra de Continentino sobre o tema do urbanismo em Belo Horizonte,
oportunidade em que JK absorve as colocações do palestrante e as transforma em sua proposta para a
administração da cidade.
46
25
Além desses moradores, uma pesquisa realizada a partir de informações arquivadas na Diretoria de Patrimônio
Cultural da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, constantes no dossiê de tombamento do Conjunto Urbano
Bairro Cidade Jardim, revela que outros importantes nomes da elite mineira moraram no bairro. Eram
banqueiros, empresários do setor de comércio automotivo e da indústria de mineração, diretores de
multinacionais e hospitais.
26
Segundo Pimentel (1993) assim que se elegeu governador de Minas Gerais, JK providenciou a instalação de
uma concorrência pública para a execução de seu plano de construção de estradas. A vitória de Ajax Rabelo na
concorrência para construção das estradas decorre da intermediação de interesses de Ajax a pedido do
governador, de modo a torná-lo apto a participar da concorrência por meio de sua associação a outros atores que
possuíam garantia bancária e o equipamento rodoviário necessário. Efetivada a associação, “Ajax Rabelo pôde
participar da concorrência, vencê-la e se enriquecer” (PIMENTEL, 1993, p.95).
48
27
A casa da rua Manoel Couto n.º 420 foi protegida por tombamento pelo Conselho Deliberativo do Patrimônio
Cultural do Município em 2005.
49
28
No livro de Termo de Venda de Lotes em Hasta Pública – 1928 a 1946, constante no acervo do Arquivo
Público da Cidade de Belo Horizonte, é possível verificar que, em um primeiro momento, um considerável
número de funcionários adquiriu lotes no bairro Cidade Jardim: entre as 18 vendas registradas no período entre
julho e dezembro de 1946, 12 eram aquisições realizadas por funcionários.
29
Entres, apenas o Colégio dos Jesuítas – atual Loyola – e o São Paulo foram implantados. Já o Colégio Sion,
atual Santa Dorotéia, foi construído no bairro Sion.
30
A construção da “Casa das Domésticas” no bairro Cidade Jardim não se efetivou uma vez que há um Decreto
Municipal datado de 07 de novembro de 1956 que autoriza a Casa das Domésticas a alienar os lotes adquiridos
da prefeitura no bairro Cidade Jardim. O dinheiro obtido nesta operação de venda estava vinculado à aquisição e
reforma de um edifício na rua dos Timbiras, n.° 1228. Posteriormente, em 25 de janeiro de 1961, a Casa das
Domésticas foi declarada como instituição de utilidade pública pelo então presidente do Brasil, Juscelino
50
Lourdes (figura 4), local em que não havia regulamentos especiais, nota-se, neste último e em
especial na região destacada, um maior adensamento do lugar, ou seja, um maior número de
edificações em um mesmo quarteirão, além de maior proximidade entre os edifícios e entre
estes e a via pública. Posteriormente, no ano de 1951, a Lei n.º 39, de 30 de julho de 1948, foi
revogada no que se referia ao bairro Sion32, permanecendo, entretanto, em vigor para o bairro
Cidade Jardim.
32
As exigências constantes na Lei 39/1948, em relação ao bairro Sion, foram restabelecidas em 1970, por meio
da Lei n.° 1849, de 26 de agosto de 1970. Em 1993, a Lei 39/1948 foi definitivamente revogada.
52
FIGURA 7 – Vista aérea do bairro de Lourdes, nas imediações da Praça da Assembléia, na década de 1960.
Fonte: APCBH/Coleção José Goes.
Todavia, apesar de todas as novidades pensadas para a nova cidade de Belo Horizonte
(ESTADO DE MINAS, 24 de dezembro de 1944), os registros documentais existentes
evidenciam que, durante a década de 1940, o local não havia ainda se efetivado como um
novo centro residencial. A lentidão na execução das obras de terraplanagem do bairro somada
ao fato de que, nesse mesmo período, o vizinho bairro de Lourdes se afirmava como um novo
e aristocrático local de moradia das classes abastadas (PBH, 1997), certamente concorreram
para a lenta ocupação da Cidade Jardim. A análise constante no Inventário do Patrimônio
Cultural Urbano do Bairro Cidade Jardim/IPUC Cidade Jardim (CASTRIOTA & PEREIRA,
1999) revela que a efetiva ocupação do lugar se deu entre os anos 1950 e 1960. Nesse estudo
foi realizado o levantamento da datação da época de construção das edificações33. Verificou-
33
Não foram encontrados dados cadastrais de 15,64% dos imóveis do bairro Cidade Jardim, embora o estudo
53
se que apenas 7% das edificações do bairro (19 unidades) foram construídas na década de
1940, em sua maioria nas ruas Bernardo Mascarenhas, Conde Linhares e Eduardo Porto,
sendo que, segundo o referido estudo, a quase totalidade dessas edificações não apresentam os
estilemas da arquitetura moderna. Na década de 1950, 39% das edificações do bairro (112
unidades) são construídas e, no período posterior, década de 1960, são erguidas 22% das
edificações (63 unidades) (CASTRIOTA & PEREIRA, 1999). Esse diagnóstico é reforçado
pela fotografia apresentada abaixo (figura 5), datada do final da década de 1940 e tomada a
partir das imediações da rua Bernardo Mascarenhas. Nota-se que, à exceção do prédio do
Colégio Loyola, as demais edificações apresentam estilo arquitetônico de inspiração eclética.
aponte que o aspecto arquitetônico de tais edificações remetam à década de 1950. A delimitação da área de
abrangência do referido estudo, além da área inserida no perímetro da ADE Cidade Jardim, incorporou a face de
quadra do bairro voltada para a avenida Prudente de Morais e a face da rua Teixeira Mendes oposta ao limite da
54
s.r.p.). A opção pela arquitetura moderna na maioria das residências da Cidade Jardim pode
ser explicada a partir de sua inserção no contexto brasileiro vinculado à modernização pelo
alto, ou seja, a partir da atuação do Estado na condução do processo de modernização do país.
No cenário brasileiro, o governo de Getúlio Vargas utilizou a arquitetura moderna como a
linguagem estética para algumas de suas realizações estatais.
Nesses termos, a afirmação do modernismo arquitetônico enquanto uma nova
linguagem, no contexto brasileiro, relaciona-se, de acordo com Cavalcanti (2006), à primazia
dos arquitetos modernos em três frentes de atuação iniciadas com o Estado Novo e por ele
conduzida: o domínio sobre o passado por meio da política de proteção ao patrimônio
cultural, a conquista de um mercado estatal na construção dos prédios públicos34 e a
elaboração de projetos para a habitação popular. Cavalcanti (2006) destaca que “a conquista
de um mercado estatal era absolutamente fundamental em um país no qual as elites e as
empresas privadas apenas adotavam um estilo depois que ele tivesse sido experimentado e
aprovado em obras públicas” (CAVALCANTI, 2001). Em outros termos, além do domínio
sobre o passado, os modernos possuíam domínio sobre o presente e o futuro no campo
arquitetônico, fato que, de acordo com as colocações de Cavalcanti (2006), certamente
influenciou a adoção do modernismo enquanto paradigma estético da modernidade do final
dos anos 1930 ao início dos anos 1960.
Outro fator que certamente serviu à aceitação da linguagem modernista se liga à ampla
divulgação desse estilo empreendida por periódicos durante as décadas de 1950 e 1960. Lara
(2001), em sua análise sobre a utilização da linguagem modernista pela classe média
brasileira, observa que durante a década de 1950 foi recorrente a divulgação da arquitetura
modernista em publicações dirigidas tanto para o público especializado, como arquitetos e
engenheiros, quanto para os setores médios e altos da população brasileira. A partir da análise
de cinco periódicos veiculados entre os anos de 1950 e 1959 – Arquitetura e Engenharia,
Módulo, Casa e Jardim, Manchete e o Cruzeiro35 -, Lara (2001) observa que a arquitetura
moderna foi abordada em reportagens de todas as revistas analisadas. Todavia, Lara (2001)
coloca que houve variações de abordagem.
Entre as revistas pesquisadas, duas delas serão aqui consideradas, tendo em vista que
são revistas de variedades, direcionadas ao público não especializado e que, portanto, não
tratam especificamente do tema da arquitetura: O Cruzeiro e Manchete. Assim, entre as
revistas direcionadas para o público geral, a revista mais conservadora, O Cruzeiro36,
demonstra, em princípio dos anos 1950, um tom crítico em relação às mudanças no modo de
vida urbano, mas contribui com a divulgação do modernismo na medida em que veicula
reportagens sobre a Pampulha e a falta de zelo com seu conjunto arquitetônico37, sobre Oscar
Niemeyer e seus prêmios e realizações internacionais, assim como representações da
arquitetura moderna em anúncios sobre mobiliário e materiais de construção.
Outra revista dirigida para o público não especializado era a Manchete38, que, ao
contrário do periódico O Cruzeiro, segundo Lara (2001), talvez se identificasse mais com a
classe média emergente. Nesse veículo, a arquitetura moderna era representada com
entusiasmo, como demonstrou a reportagem publicada em dezembro de 1962, intitulada
“Brasil: poder mundial arquitetônico”. Na referida matéria, foram apresentadas fotografias de
importantes realizações arquitetônicas modernistas brasileiras, como a Pampulha (Oscar
Niemeyer, 1942), o Ministério da Educação e Saúde (Lúcio Costa e equipe, 1937), o Hospital
Sulamérica (Oscar Niemeyer, 1947), além de casas particulares, sendo o foco da reportagem
voltado para a repercussão do modernismo brasileiro na Europa e nos Estados Unidos (Lara,
2001). Lara (2001) coloca, ainda, em relação à Manchete, que “de 1952 até o fim da década,
quase todo o assunto da revista semanal teve pelo menos uma nota sobre os novos edifícios,
as competições ou exibições da arquitetura moderna”39 (LARA, 2001, p. 131).
Interessante observar que a arquitetura moderna representada nos periódicos pode ser
tomada como um dos elementos que simbolizaria o “moderno modo de vida”. Isso porque a
pesquisa realizada por Lara (2001) aponta que
36
Segundo Lara (2001), O Cruzeiro pode ser identificada com a UDN, que primeiramente fez oposição à Vargas
e posteriormente à Juscelino Kubitschek, ambos os políticos associados ao processo de modernização do Brasil.
37
De acordo com Lara (2001), em maio de 1954, doze anos após a inauguração da Pampulha, foi veiculada na
revista matéria que criticava o fato de os edifícios do lugar não passarem por manutenção adequada.
38
Lara (2001) observa que a Manchete sempre foi simpática a Kubitschek, e seu proprietário, Adolpho Bloch,
era amigo próximo de JK.
39
No original: “from 1952 until the end of the decade, almost every issue of the weekly magazine had at least a
note about new buildings, competitions and exhibitions of modern architecture” (LARA, 2001, p.131).
56
40
No original: “a plethora of advertisements usede modern architecture to sell practically everything, from cars
to lottery to telephone lines, but mainly furniture and construction materials. Different from O Cruzeiro, the ads
in Manchete not only display modern architecture but they also have modern layouts, modern color and people
dressed in modern clothing. The Word ‘modern’ is very frequent in advertisements. To ‘modernize yourself’, to
be ‘forever modern’, ‘originality and modernism’, ‘functional and modern’ are a few among the many variations
of the Word modern in advertisements”(LARA, 2001, p. 133).
57
A Casa do Baile também cumpriria o mesmo papel, porém sem o glamour existente no
Cassino.
Desse modo, a novidade presente tanto na arquitetura moderna, da qual o complexo
arquitetônico da Pampulha é exemplar, quanto nos novos meios de sociabilidade que eram
oferecidos à sociedade belo-horizontina, certamente serviu de motivação para que os feitos
juscelinistas e a modernidade por eles representada fossem absorvidos por parcela da
população, produzindo, na mesma, o anseio de se integrar a eles, ainda que simbolicamente. A
opção pela estética modernista na arquitetura é um meio para a realização dessa vinculação
simbólica. Por outro lado, morar no bairro Cidade Jardim, na medida em que ele é
efusivamente atrelado à imagem do prefeito, também pode ser tomado como símbolo de
alinhamento com a modernidade. De fato, essa imagem conserva-se na atualidade, quando a
Cidade Jardim é associada à representação de um “reduto da modernidade” (ESTADO DE
MINAS, 27 de julho de 2003) ou ainda, como sendo portadora de uma “alma moderna”
(ESTADO DE MINAS, 22 de dezembro de 2000).
Tomando, então, a arquitetura como objeto analítico, a partir de um recorte que
considera os bens modernistas identificados pelo poder público para proteção por
tombamento no bairro Cidade Jardim (PBH, 2004), constata-se que 85 % desses bens (32
unidades) apresentam a incorporação de todos os sintagmas e paradigmas preconizados pelo
movimento moderno na arquitetura, ou seja, se apresentam como exemplares cuja
incorporação da nova linguagem estética, no que se refere à concepção do edifício, se deu por
completo. Os outros 15% (06 unidades) são apontados como exemplares nos quais a
incorporação do modernismo foi acompanhada de uma ação tradicionalista, formal ou
estética, na solução do edifício. Destaca-se que a significativa quantidade de imóveis
modernistas em um único bairro fez com que ele passasse a ser considerado como “um
verdadeiro reduto do patrimônio modernista da cidade. Depois da Pampulha, o bairro Cidade
Jardim é o ponto mais expressivo da arquitetura moderna em Belo Horizonte” (ESTADO DE
MINAS, 22 de dezembro de 2000).
Todavia, o bairro exibe, conjuntamente com os representantes do modernismo
arquitetônico, algumas edificações representativas do ecletismo tardio41. Para Castriota &
41
O IPUC Cidade Jardim procedeu a divisão estilística dos bens em “Moderno” e “Outros Estilos”. Os
exemplares vinculados às concepções tradicionalistas estariam inseridos nesta segunda classificação. Em outro
estudo, elaborado para fins da regulamentação da ADE Cidade Jardim (PBH, CASTRIOTA & PEREIRA, 2000),
é possível aferir, pelo mapa de “Estilos Arquitetônicos”, que 64 edificações são representantes do estilo moderno
enquanto 39 edificações se vinculam aos estilos tradicionais, incluindo-se aí a Sede do Museu Histórico Abílio
Barreto – representante da arquitetura colonial e edifícios vinculados ao art decó e ao ecletismo tardio. Se
58
Pereira (1999), constata-se, por meio da arquitetura tradicional presente no bairro, que parte
da sociedade belo-horizontina mantinha-se imageticamente vinculada aos antigos padrões
estéticos próprios do ecletismo – estilo em voga na capital durante seus primeiros anos até a
década de 1920. Tal vinculação poderia ser explicada ainda, de acordo com os citados autores,
pela crescente influência dos Estados Unidos sobre os países da América do Sul: “sendo o
neoclássico o estilo norte-americano por excelência e sendo a burguesia brasileira alimentada
por suas revistas e filmes, explica-se facilmente uma releitura da decoração eclética feita pela
fatia conservadora [...]. Mantendo-se alienada dos novos paladares, levantava padrões
reduzidos das mansões cinematográficas do alto continente” (CASTRIOTA & PEREIRA,
1999, s.r.p.).
Por essa perspectiva, mesmo quando expressa elementos estéticos vinculados ao
ecletismo, a arquitetura no bairro tende à modernidade, pois, como já explicitado em outro
ponto desta dissertação, o processo da modernidade brasileira se processa a partir da
importação de tendências estrangeiras. Desse modo, se por um lado essas edificações
constituem exemplos de prática arquitetônica ainda referenciada em estilemas tradicionais,
por outro ângulo, sob o ponto de vista simbólico, também se inserem no cenário da
modernidade local, na medida em que foram inspiradas em modelos internacionais,
particularmente o norte-americano. Há que se considerar, ainda, que embora tais edificações
ainda exibam tratamento estético tradicionalista, a concepção em planta já apresenta, em
alguns casos, os avanços presentes na arquitetura modernista, tais como a setorização
funcional dos ambientes.
O quadro estilístico do bairro é composto também pela única edificação colonial que
restou do extinto vilarejo de Curral Del Rei, a antiga sede da Fazendo do Leitão e atual Museu
Histórico Abílio Barreto. Outras referências estilísticas distintas do movimento moderno
podem ser verificadas no ‘proto-moderno’ representado pelos edifícios do Conjunto do
Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Bancários /IAPB42, construídos nas ruas Bernardo
tomarmos como dado comparativo os bens identificados pelo poder público para proteção por tombamento,
verifica-se que 64% desses bens (38 unidades) são representantes do movimento moderno enquanto os 36%
restantes (22 unidades) são exemplares dos estilos tradicionalistas.
42
Segundo o dossiê de tombamento do IAPB (PBH, 2005c), entre o final dos anos 1930 e início dos anos 1950,
o Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Bancários adotou medidas que visavam à facilitação da aquisição de
casa própria por seus associados, dentre elas, a construção de moradias vendidas de modo facilitado. Ainda
segundo este documento, o primeiro empreendimento do instituto foi construído no bairro Santo Antônio, a Vila
Inneco, formada por diversas casas erguidas próximas à margem do córrego do Leitão que, ocupadas
inicialmente na modalidade de aluguel, foram posteriormente vendidas a seus ocupantes em 1951. O segundo
empreendimento, datado dos anos 1950, foi a construção dos prédios residenciais na Cidade Jardim, o Conjunto
Habitacional IAPB, em um terreno localizado na esquina das rua Bernardo Mascarenhas e Carvalho de Almeida.
59
Mascarenhas e Carvalho de Almeida, e no estilo art dèco percebido nas soluções utilizadas no
Colégio São Paulo, cujo projeto fora elaborado por Mário Berti, filho do arquiteto Rafaello
Berti, autor de inúmeros edifícios art dèco em Belo Horizonte, tais como a Santa Casa de
Misericórdia e o Colégio Santo Agostinho (CASTRIOTA & PEREIRA, 1999 s.r.p.). Soma-se
a esse quadro o conjunto edificado existente no Ministério da Agricultura, de vinculação
estilística neocolonial, mas que, dado o isolamento do terreno desse ministério, não apresenta
diálogo com o restante do bairro.
Apesar do significante número de edifícios construídos no bairro entre as décadas de
1940 a 1960, fontes documentais revelam que a Cidade Jardim teria permanecido, de fato,
sem os efeitos da modernidade até meados dos anos 1970, quando a modernização é
notadamente sentida no meio urbano por meio da canalização do córrego do Leitão e
implantação da avenida Prudente de Morais.
O relatório do prefeito Otacílio Negrão de Lima, datado de 1949, aponta que nesse ano
foram finalizados os serviços de terraplenagem do bairro. Apesar da conclusão dos serviços
de terraplenagem, durante os anos 1950, segundo depoimentos de moradores, a paisagem do
lugar encontrava-se marcada por “mansões luxuosas, carros modernos, ruas sem calçamento e
cabritos pastando” (ESTADO DE MINAS, 31 de outubro de 1990), sendo que nessa mesma
época, durante períodos chuvosos, problemas advindos das enchentes decorrentes do
transbordamento do córrego do Leitão assolavam o local. Segundo outra moradora, “o
córrego enchia e se transformava numa lagoa” (JORNAL DE CASA, 18 de dezembro de
1977). Além do alagamento que atingia o bairro, as chuvas provocavam a suspensão do
fornecimento de água (ESTADO DE MINAS, 20 de junho de 1971), levando a
municipalidade a criar um serviço “Reclame Água”: “Os moradores da Cidade Jardim,
Funcionários, Santo Agostinho e Carmo devem reclamar pelo tel. 35-4822 se não estão
recebendo água normalmente [...]” (ESTADO DE MINAS, 07 de agosto de 1971). A
iluminação pública de extensa porção do bairro foi realizada no ano de 1954 (ESTADO DE
MINAS, 02 de fevereiro de 1954) e, durante toda a década correspondente, o bairro Cidade
Jardim permanecera como “um bairro de terra batida” (ESTADO DE MINAS, 31 de outubro
de 1990).
Assim como as unidades da Vila Inneco, os imóveis foram inicialmente cedidos na forma do pagamento de
aluguel e depois vendidos a seus moradores.
60
FIGURA 9 – Execução de serviços de infraestrutura no bairro Cidade Jardim, no final da década de 1940,
apresentando ao fundo, a antiga sede da Fazenda do Leitão, atual Museu Histórico Abílio Barreto.
Fonte: APCBH/Relatório de Prefeitos -1949.
Assim, apesar de ter sido anunciado como um ícone da modernidade percebe-se que, à
exceção do casario representativo da nova arquitetura - a modernista -, e do trânsito de
modernos veículos pelo lugar, de fato, os efeitos da modernização, no que se refere ao
tratamento dos espaços públicos e dos aspectos infraestruturais, se fizeram sentir lentamente,
apenas durante as décadas de 1950 e 1960. Vislumbra-se, assim, que no processo inicial de
ocupação do bairro Cidade Jardim a modernidade era sentida sem a presença da modernização
efetiva.
Transpondo o foco da discussão para o cenário atual, alguns pontos merecem destaque.
Primeiro, em relação à paisagem do lugar, nota-se que o bairro manteve os principais aspectos
definidos na época de sua implantação, ou seja, a despeito das profundas transformações
paisagísticas ocorridas em outros lugares da cidade, a Cidade Jardim preserva sua
configuração inicial: passeios e quintais ajardinados, consistente arborização dos espaços
públicos, predominância de edificações residenciais horizontais, dispostas em terrenos de
61
grandes dimensões e com consideráveis afastamentos umas das outras (figuras 7 a 12).
Acrescente-se a essa ambiência o significativo número de imóveis que ainda preservam suas
características arquitetônicas originais. Entre esses, o dossiê de proteção do bairro Cidade
Jardim indica a proteção por tombamento de 58 edificações, sendo 38 representativas do
modernismo e 20 dos estilemas tradicionais (PBH, 2004).
FIGURA 14 - Aspectos urbanísticos: jardim frontal de FIGURA 15 - Aspectos urbanísticos: jardim frontal
uma das casas localizada na rua Conde de Linhares. do IAPB.
Foto: Karime Gonçalves Foto: Karime Gonçalves
43
Na edificação da figura 13, que mantém o uso residencial, houve substituição dos materiais de acabamento das
fachadas e alteração nos fechamentos frontais. Na edificação representada na figura 14, reformada para abrigar o
uso de serviço, houve substituição dos materiais de acabamento das fachadas e alteração nos fechamentos
frontais.
63
para a percepção dos valores atribuídos aos edifícios por aqueles que deles se apropriam.
Nesses termos, acredita-se que edifícios com boa manutenção e com características estilísticas
originais sem alterações apresentam preponderância do valor afetivo pautado na memória,
condição que incentiva a manutenção das características físicas dos imóveis como forma de
resguardar os meios materiais que expressam os modos de vida de outras épocas. Por outro
lado, a tendência à realização de intervenções com substituição de parâmetros estéticos e
formais evidencia o arrefecimento do valor afetivo ancorado na memória, situação esta em
que os edifícios encontram-se sujeitos à realização de intervenções demandadas pelos novos
modos de vida – como a execução de muros para garantir sensação de segurança e
privacidade, ou pelos novos gostos vigentes – como a atualização arquitetônica operada pela
utilização de vidros verdes e pintura branca, por exemplo.
Em consulta aos arquivos da Diretoria de Patrimônio Cultural, verifica-se que esse é o
caso de uma proposta de modificação submetida à apreciação do CDPCM/BH, referente a um
imóvel na época em processo de tombamento e atualmente tombado. Nesse caso, havia a
intenção dos moradores de realizar a atualização arquitetônica da edificação, com parâmetros
intervencionistas que pretendiam a substituição dos materiais de acabamento originais –
cobogós e pastilhas 2X2 cm brancas, azuis e amarelas -, a alteração dos vãos e a modificação
de toda a divisão interna da residência. No lugar dos materiais externos originais, verifica-se,
por meio da simulação apresentada, que seria adotada a estética branca e os novos vãos
receberiam vedação com vidros azuis. Essas intervenções foram realizadas sem a aprovação
do CDPCM/BH, que considerou que as obras realizadas fizeram com que “a leitura global da
edificação fosse modificada e o seu estilo modernista parcialmente descaracterizado” (PBH,
2005a, p. 79).
Uma vez descritos os conteúdos paisagísticos presentes na Cidade Jardim, faz-se
necessário apresentar algumas considerações sobre as sociabilidades verificadas no lugar a
partir da observação em campo. Essa empreitada permitiu apreender as formas de relação do
bairro com a cidade, caracterizada pela existência de dois níveis distintos de relacionamento44.
O primeiro deles é percebido na condição de isolamento do bairro, marcado pela
44
O IPUC Cidade Jardim (CASTRIOTA & PEREIRA, 1999) identificou três níveis de interface do bairro com a
cidade: o espaço da passagem, o espaço da cidade e o espaço do bairro. O primeiro se refere à apropriação da
Cidade Jardim como área de articulação viária com outros bairros, atribuindo a determinadas vias locais a função
de articulação de fluxos externos: avenidas do Contorno, Raja Gabaglia e rua Josafá Belo. O segundo nível,
relativo ao espaço da cidade, é conformado pelos lugares que oferecem a possibilidade de um maior fluxo de
pessoas externas ao bairro, como o Museu Histórico Abílio Barreto e os Colégios Loyola e São Paulo. Já o
espaço do bairro se refere à ambiência em que predomina a ocupação residencial.
65
preponderância do uso residencial que, apesar de permeável visualmente por meio dos gradis,
não oferece possibilidade de diálogo com aqueles que transitam pelo espaço público. Essa
condição é verificada especialmente na parte oeste do bairro, nas quadras localizadas entre a
rua Conde de Linhares e a avenida Raja Gabaglia. Nessa porção, à exceção de alguns pontos
específicos de atração de pessoas como os colégios Loyola e São Paulo, o quê se verifica é
existência de uma ambiência notadamente residencial e sem maior circulação de pessoas pelo
espaço público, fazendo com que a ela seja atrelada a imagem de isolamento em relação ao
restante da cidade. É o bairro fechado em si mesmo, condição essa já presente no bairro em
outras épocas, como se depreende da fala de um padre local: “'este bairro é sossegado, bairro
chique, de alta sociedade. Movimento só dos colégios” (JORNAL DE CASA, 18 de dezembro
de 1977. Ele acrescenta ainda que “as casas são todas fechadas, não se vê os moradores […] e
é muito difícil você ser recebido se não for conhecido” (JORNAL DE CASA, 18 de dezembro
de 1977).
Já o segundo nível de relacionamento bairro/cidade é verificado na porção leste da
Cidade Jardim, que inclui a rua Conde Linhares e a porção delimitada por ela e pela avenida
Prudente de Morais. Nessa área verifica-se uma maior intensidade de fruição dos espaços
públicos, ocasionada principalmente pela existência de alguns equipamentos e usos atratores
de pessoas. O Museu Histórico Abílio Barreto, com sua programação cultural, e a Igreja Santo
Inácio de Loyola figuram como equipamentos capazes de atrair pessoas residentes na
comunidade e fora dela. O Museu Histórico Abílio Barreto, além de seu acervo, apresenta
atrações semanais que possibilitam a interface do bairro com o restante da cidade: “há muito
espaço para a criançada se divertir, fico de olho para não perder nada” (ESTADO DE MINAS,
21 de junho de 2008), comenta uma frequentadora, enquanto outra relata que “sempre que há
um evento no Museu Histórico, trago meus netos, que moram na Pampulha” (ESTADO DE
MINAS, 21 de junho de 2008).
Acrescente-se ao cenário dessa segunda porção a maior concentração de usos não
residenciais (CASTRIOTA & PEREIRA, 1999), situação esta que contribui com abertura
desse trecho do bairro. Além de abrigar uma unidade do Tribunal Regional Eleitoral, aí se
localizam atividades como lojas de roupa, escritórios de advocacia, spa, unidade da
Beneficência da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte/BEPREM, a sede do Clube
Nacional, entre outras.
Essa distinção espacial presente na Cidade Jardim fez-se presente na fala de moradores
do bairro. Nesse sentido, é evidente uma distinção entre a “parte de cima”, delimitada pela rua
66
2.4.3 Estilo de vida de morar no bairro Cidade Jardim: o período entre 1940 e 1970
O tema dos estilos de vida remete à questão da identidade e, por conseguinte, ao tema
da diferença. Pautando-se, então, nas diversas nuances que problematizam a diferença,
entendida sob uma perspectiva relacional, é que o tema estilo de vida se apresenta aos estudos
próprios das ciências sociais.
Segundo Waizbort (2000), o termo estilo de vida foi cunhado por Georg Simmel, que
no início do século XX dedicou ao tema o capítulo intitulado 'estilo de vida', em Philosophie
des Geldes. Ainda segundo Waizbort, a utilização do termo constitui uma inovação
terminológica e analítica de Simmel, que ao conduzir a discussão pautada na questão do estilo
apontou para o universo da estética. Para Simmel, o estilo de vida constitui um fenômeno
histórico, é um retrato de um determinado momento dentro de um processo mais amplo, que é
o processo da cultura. Segundo sua concepção, a multiplicidade de opções de consumo ou de
vertentes estilísticas é produto da objetivação das esferas da vida e do alargamento de
conhecimento histórico, constituindo, portanto, uma característica do estilo de vida inerente à
modernidade.
Já Pierre Bourdieu conduz a discussão sobre estilo de vida para o campo da identidade
das classes sociais. Nesses termos, suas formulações são fundamentalmente embasadas no
entendimento de que os objetos culturais constituem um meio para distinção entre as classes
num determinado espaço social. De acordo com esse autor, a diferenciação entre as classes a
partir dos estilos de vida é possibilitada por um trabalho de construção e observação a partir
do qual é possível identificar conjuntos de indivíduos relativamente homogêneos que são
caracterizados pelos conjuntos de suas propriedades. Ou seja, tais grupos são identificados a
partir de “sistemas de diferenças” (BOURDIEU, 2007).
67
Bourdieu (2007) considera que os distintos estilos de vida são determinados a partir da
manifestação dos diferentes sistemas de disposições. Esses são influenciados pelo habitus e
pela vivência do habitus e, conseqüentemente, pela disposição estética das classes. Suas
colocações tomam como pressuposto o fato de que os bens culturais, ou manifestações dos
diferentes sistemas de disposições, constituem o meio pelo qual se revelam os sistemas de
diferenças, determinados tanto pelo capital cultural quanto pelo capital econômico dos
indivíduos. Em outro termos, a teoria de Bourdieu aponta para a existência de objetos ou
elementos que são capazes de demarcar a diferenciação, ou para usar a conceituação
bourdieriana, a distinção entre os grupos sociais.
Anthony Giddens define estilo de vida como “(...) um conjunto mais ou menos
integrado de práticas que um indivíduo abraça, não só porque essas práticas preenchem
necessidades utilitárias, mas porque dão forma material a uma narrativa particular de auto-
identidade”(GIDDENS, 2002, p. 79).
Assim, o estilo de vida pressupõe uma atitude de escolha frente a diferentes
possibilidade de consumo. Além do exercício de escolha, um estilo de vida será permeado
pela rotinização das opções de vestir, comer, lugares a freqüentar, etc. Em suma, estar inserido
em determinado estilo de vida significa mais do que agir; se relaciona diretamente com quem
se quer ser, atitude que revela a intenção de autoconstrução da identidade.
De modo resumido, enquanto para Simmel havia o estabelecimento de um estilo de
vida mais amplo, com as diferenças eletivas representando um fenômeno integrante de um
mesmo momento histórico, qual seja o que caracteriza o estilo de vida da modernidade,
Bourdieu trata das diferenciações em um mesmo espaço temporal, no qual as diferenças
configuram as manifestações dos sistemas de disposições que irão determinar o
posicionamento dos atores no espaço social. Ou seja, para Bourdieu, os estilos de vida
representam a materialização dos sistemas de diferenças.
Giddens tece considerações que aproximam suas formulações das construções de
Bourdieu. Um primeiro ponto aproximativo diz respeito à associação entre estilo de vida e
construção da identidade, sendo que no caso de Bourdieu é clara a conotação de identidade de
classes pautada na adoção de determinada disposição estética, ao passo que a discussão de
Giddens é mais focalizada no plano da escolha individual. Um segundo ponto de aproximação
das formulações diz respeito ao entendimento de que as opções colocadas à disposição para
consumo, elemento orientador da definição de um estilo de vida, não são acessíveis a todos da
mesma maneira, sendo influenciadas pelas circunstâncias econômicas ou de visibilidade das
68
45
As obras realizadas na gestão de JK davam grande visibilidade à sua intenção progressista. Entre as realizações
de JK voltadas para a modernização da cidade destaca-se a construção da Pampulha, a abertura das avenidas
Amazonas, da antiga Pampulha - atual Antônio Carlos - , Silviano Brandão, Pedro II, entre outras, a implantação
do bairro Cidade Jardim, a viabilização do IAPI.
46
A primeira hasta pública para venda de lotes no bairro Cidade Jardim foi realizada no dia 28 de dezembro de
1944, correspondendo aos lotes do quarteirão conformado pelas ruas Eduardo Porto, Josafá Belo, Conde
Linhares e avenida do Contorno. No entanto, a implantação do loteamento se efetiva em meados dos anos 1950,
como indica do Relatório de Prefeitos referente ao ano de 1949. (PBH, 1949)
70
1970, o bairro ficou conhecido como o bairro dos colunáveis e morar nesse lugar passou a ser
porta de entrada para a alta sociedade e para os sofisticados eventos que ocorriam nas
residências do bairro (PBH, 2005a). Os jornais da época noticiavam, nas colunas sociais, as
recepções, suas minúcias decorativas e os convidados, a exemplo da passagem que se segue:
A exemplo dessa reunião, vários outros acontecimentos sociais foram veiculados nos
anos 1970. A análise das ‘colunas sociais’ da época revela que a imprensa belo-horizontina,
em especial o jornal Estado de Minas, noticiava as particularidades dos diversos tipos de
eventos realizados nas casas do bairro. De jantar oferecido em “honra do diretor da
Volkswagen”(ESTADO DE MINAS, 13 de outubro de 1971) à recepção em homenagem a
dirigente de empresa Alemã, com direito a “mini-concerto do Ars Nova” e apresentação de
cada número em português e alemão (ESTADO DE MINAS, 06 de abril de 1971), os eventos
eram descritos a partir dos símbolos distintivos que expressavam. A comida, a decoração, as
vestes dos convidados eram apresentadas como sinônimo de bom gosto e requinte.
Desse modo, considerando o período compreendido entre os anos 1940 e 1970, é
possível traçar os contornos do 'estilo de vida de morar na Cidade Jardim' da referida
temporalidade. Vislumbra-se que o bairro Cidade Jardim se vinculou, desde o início, a um
estilo de vida que se pretendia especial, primeiramente marcado pelas possibilidades
paisagísticas e exclusivas que o espaço oferecia e, num segundo momento, pela associação a
um modo de vida refinado, representado simbolicamente por meio dos eventos noticiados na
imprensa. Nesses termos, um modo de morar diferenciado foi tomado como meio para a
distinção, materializando no espaço urbano a diferenciação inerente ao espaço social. As três
dimensões subjacentes ao modo de morar, quais sejam a física, a relativa às representações
72
47
A Constituição Federal Brasileira de 1988, em seu artigo 216, definiu que:
“Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados
individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes
formadores da sociedade brasileira, nas quais se incluem: I – as formas de expressão; II – os modos de criar,
fazer e viver; III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV – as obras, objetos, documentos,
edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V – os conjuntos urbanos e sítios de
valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico” (BRASIL, 1988).
75
48
O Decreto Lei 25/37 (BRASIL, 1937) criou o órgão estatal de proteção do patrimônio histórico e artístico
brasileiro e estabeleceu as normas para sua salvaguarda. Ressalta-se que na formulação final do documento,
prevaleceu entendimento de que deveriam ser protegidos os bens de natureza material, de excepcional valor
histórico ou artístico e que constituíssem em referência à memória da nação.
76
49
De acordo com Choay (2001), a ampliação tipológica se refere à valorização de tipologias arquitetônicas
diversificadas, extrapolando o campo da arquitetura monumental e incorporando, por exemplo, bens vinculados
ao cotidiano das comunidades. Já a ampliação geográfica é representada pelo engajamento de outros continentes,
além do europeu, na defesa do patrimônio cultural, e a ampliação cronológica é decorrente da inclusão de obras
contemporâneas na lista de bens protegidos, abrindo possibilidade para que seja dispensado o valor de
antiguidade na proteção de um bem.
77
50
Convém considerar, todavia, que o entorno de bens culturais tombados a nível federal já era objeto de gestão,
uma vez que o Decreto-Lei 25/37 prevê a salvaguarda das condições de visibilidade dos bens tombados, “o que
envolve questões volumétricas, tipológicas, materiais, de cor, ritmo, etc. A manutenção da visibilidade [dos bens]
é o ponto de partida para a manutenção das características do conjunto” (BRASILEIRO, 2001, p. 121).
51
Segundo Simão (2001), durante a década de 1990, alguns grandes centros urbanos brasileiros empreenderam
seus “projeto-cidade” (Borja e Castells apud Simão, 2001), se referindo às ações de planejamento urbano, entre
elas os Planos Diretores, instituídas a partir do processo de redemocratização do país e da promulgação da
Constituição de 1988.
78
52
Mesmo antes da existência de leis municipais para salvaguarda do patrimônio, Belo Horizonte já possuía bens
tombados a nível federal: a casa da Fazenda do Leitão, atual sede do Museu Histórico Abílio Barreto, tombada
em 1951, a Igreja de São Francisco de Assis, protegida em 1947, o Lavatório da antiga Matriz de Boa Viagem no
antigo Curral d’El Rei, proteção realizada em 1960. A proteção de todo o Conjunto Arquitetônico e Paisagístico
79
efetivou. Na esfera municipal, esse fato motivou a aprovação da Lei n.° 3802, de 06 de julho
de 1984, que institui o instrumento de tombamento para os bens culturais de Belo Horizonte
cujo interesse de preservação seja reconhecido. Fato é que a criação da Lei 3802/84 constituiu
um marco decisivo para a consolidação da política no âmbito municipal, tendo em vista que,
além do instrumento do tombamento, essa legislação criou o Conselho Deliberativo do
Patrimônio Cultural do Município/CDPCM-BH, órgão que a partir de então possui a
atribuição de deliberar sobre os rumos da política de proteção ao patrimônio da cidade.
Posteriormente à criação do CDPCM/BH, foi instituído, na estrutura organizacional da
Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, o Serviço de Bens Culturais, transformado em
Departamento de Memória e Patrimônio Cultural, Gerência de Patrimônio Histórico Urbano e
atual Diretoria de Patrimônio Cultural (ARROYO, 2006), órgão municipal responsável pelo
apoio técnico ao CDPCM/BH e pela gestão da política patrimonialista na cidade.
Todavia, apesar de ter sido criado em 1984, o instrumento do tombamento só passou a
ser utilizado nos anos 1990, primeiro com a Lei Orgânica e depois com as primeiras ações
realizadas pelo CDPCM-BH53. Desse modo, em 1994 foram protegidos pelo CDPCM-BH,
pioneiramente, onze conjuntos urbanos localizados no centro da cidade, dentro do perímetro
da avenida do Contorno, tomando como pressuposto para essa proteção argumentos que
privilegiavam a noção de ambiência e de paisagem cultural em contraposição aos valores até
então consolidados no campo da política de patrimônio, como a unicidade e a
excepcionalidade dos bens (ANDRADE & ARROYO, 2009). Além da mancha de proteção de
cada um dos conjuntos urbanos, foi definido o tombamento de vários imóveis, a partir de
então eleitos como bens culturais. Estes são “dos mais variados usos, como residências, casas
comerciais, instituições públicas, centros culturais, museus, praças, passeios públicos, áreas
verdes e de lazer” (ARROYO, 2006, p.10), expressando também variedade no que se refere
ao ato criador de cada um desses bens, ou seja, a “pluralidade [dos bens protegidos] também
se expressa nas opções construtivas que podem abranger desde detalhados projetos
arquitetônicos que acompanham estilos de época, como também edificações erigidas a partir
do desejo e referências de seus proprietários” (ARROYO, 2006, p.10).
A orientação de proteção de bens dentro da perspectiva de conjuntos urbanos foi
corroborada pelo Plano Diretor da cidade – Lei n.° 7165/96, que sem seu artigo 15 definiu:
Legenda
Conjuntos Urbanos
ADEs de Interesse Cultural :
leis municipais n.ºs 7166/96;
8137/2000; 9037/05; 9563/08
ADE de Proteção da
Paisagem
Área de Tombamento da
Serra do Curral
Área de Entorno da Serra do
Curral
Avenida do Contorno
Lagoinha
ADE Cidade
Jardim
Legenda
Conjunto Urbano
ADE de Interesse Cultural
Imóveis Tombados
Avenida do Contorno
Especiais/ADEs. Estas foram primeiramente definidas no Plano Diretor da Cidade – Lei n.°
7165/96 como áreas que em função de suas características demandariam a adoção de
parâmetros urbanísticos diferenciados, nos seguintes termos:
55
A cidade foi subdivida e classificada em 11 zonas diferenciadas, a saber: Zona de Preservação Ambiental –
ZPAM, Zona de Proteção – ZP, Zona de Adensamento Restrito – ZAR, Zona de Adensamento Preferencial –
ZAP, Zona Central – ZC, esta subdividida em Zona Central de Belo Horizonte – ZCBH-, Zona do Hipercentro –
ZIP-, e Zona Central de Venda Nova – ZCVN-, Zona Adensada – ZA, Zona de Especial Interesse Social – ZEIS
(Vilas, favelas e áreas destinadas à implantação de conjuntos habitacionais e Zona de Grandes Equipamentos –
ZE (destinadas a equipamentos de grande porte) (PBH, 1996B).
85
QUADRO 2 – Resumo do aparato legal, em âmbito municipal, para proteção ao patrimônio cultural.
Lei 7165/96 - Plano
Diretor: estabelece as
Lei Orgânica do diretrizes de proteção ao
Município: incorpora a patrimônio cultural
visão culturalista de municipal; cria as Áreas
patrimônio presente no de Diretrizes
texto da Constituição Especiais/ADEs, que
Federal de 1988; entre outros objetivos,
estabelece a tarefa do podem servir à
poder público municipal preservação do
de proteger seu patrimônio cultural;
patrimônio cultural e Lei 7166/96 - especifica e
realiza a proteção por delimita as ADEs, entre
tombamento de alguns elas as Áreas de
bens. Diretrizes Especiais de
Interesse Cultural.
De acordo com a legislação urbanística municipal (PBH, 1996), as ADEs são áreas
que exigem a implementação de políticas específicas, de caráter permanente ou não. Essa
necessidade se ancora no fato dessas áreas apresentarem características cuja manutenção é
desejada ou potencialidades cujo incentivo é almejado. Com o intuito de manter
características especiais ou incentivar potencialidades, a legislação urbanística lança mão de
parâmetros diferenciados que podem possuir natureza urbanística (como coeficiente de
aproveitamento e afastamentos diferenciados), fiscais (relacionados, por exemplo, à isenção
tributária) e/ou de funcionamento de atividades (de incentivo ou restrição a determinados
usos), de acordo com as especificidades identificadas em cada área. Esses parâmetros se
86
sobrepõem aos do zoneamento e sobre eles preponderam, ou seja, não podem ser mais
permissivos do que aqueles previstos no zoneamento.
No caso da proteção ao patrimônio cultural, Arroyo (2004) coloca que a
regulamentação das ADEs de interesse cultural pode ser tomada como um caminho para a
solução de um dos principais desafios da conciliação entre as políticas de patrimônio histórico
e planejamento urbano: “o equilíbrio entre potencialidades construtivas e a proteção de áreas
referenciais da cidade, inibindo a especulação imobiliária e valorizando, em relação ao
mercado imobiliário, a preservação de ambiências de caráter simbólico” (Arroyo, 2004, p.
32).
A Lei 71666/96 definiu a delimitação de 18 ADEs, sendo que desas, 5 possuem foco
na proteção cultural ou paisagística. A ADE da Serra estabelece limite de altura de 15 metros
para as edificações em parte do bairro Serra; a ADE da Bacia da Pampulha possui foco
direcionado para a preservação ambiental da Lagoa da Pampulha; a ADE Residencial
Central almeja manter a predominância do uso residencial em parte da área central; a ADE
Vale do Arrudas destina-se ao incentivo a projetos de reurbanização ao longo do leito do rio
Arrudas, em função das suas condições de degradação e subutilização; a ADE do Estoril é
destinada ao uso residencial unifamiliar; as ADEs do Mangabeiras, do Belvedere, do
Belvedere III e São Bento são destinadas ao uso exclusivamente residencial; a ADE da
Savassi possui foco na adoção de incentivos e normas destinadas à revitalização da área; a
ADE Hospitalar visa ao controle da especialização de usos da área da saúde e adequação dos
já existentes; a ADE de Interesse Ambiental é constituída por áreas que possuem interesse
de preservação ambiental; a ADE Venda Nova56 se volta para o desenvolvimento de
atividades econômicas ligadas ao setor têxtil. Já as demais áreas de diretrizes especiais,
destinam-se à proteção de características relacionadas ao patrimônio cultural ou da paisagem
urbana: ADE Cidade Jardim volta-se para a preservação paisagística, cultural e histórica;
ADE de Santa Tereza, destinada à manutenção do uso predominantemente residencial, em
função de suas características de ocupação histórico-cultural; a ADE Lagoinha, com foco na
proteção do patrimônio cultural e da paisagem urbana, na revitalização de áreas degradadas
ou estagnadas e no incremento ao desenvolvimento econômico; a ADE da Pampulha,
direcionada para a manutenção do uso residencial horizontal e das suas condições
56
De acordo com informações obtidas na Diretoria de Patrimônio Cultural, a ADE Venda Nova, ainda não
regulamentada, foi objeto de estudos pela equipe da PBH. Tais estudos, que objetivavam subsidiar a
regulamentação dessa ADE, apontavam para a inclusão da ADE Venda Nova no rol das ADEs de interesse
cultural.
87
paisagísticas; e por fim, a ADE Trevo, destinada à preservação da paisagem nas proximidades
da lagoa da Pampulha.
Entre as ADEs de caráter cultural, a primeira a ser regulamentada foi a de Santa
Tereza, por meio da Lei n.° 8137/00, que “Altera as Leis n.ºs 7.165 e 7.166, Ambas de 27 de
Agosto de 1996 e dá Outras Providências” (PBH, 2000). Importante colocar que essa área de
proteção cultural definiu-se a partir da mobilização popular em prol da manutenção da
ambiência do bairro, que se organizou temendo que a mudança da lei de uso e ocupação do
solo afetasse a qualidade de vida na área. Nesses termos, em meados de 1996, surgiu o
movimento Salve Santa Tereza, que além de moradores locais agregou representantes de
outros setores como a igreja católica, o Instituto de Arquitetos do Brasil e a Ordem dos
Advogados do Brasil (SOUZA et al, 2009). O pleito do movimento ancorou-se no
entendimento de que os elementos que tornavam o bairro particular, que faziam com que ele
se diferenciasse no contexto da cidade, deveriam ser mantidos. Entre tais elementos,
figuravam a preservação de quintais e áreas verdes e a defesa do patrimônio histórico, cultural
e arquitetônico do bairro, reconhecido pelo movimento como um lugar tradicional e
acolhedor, que é ponto de encontro cultural e que possui um jeito de cidade do interior
(SOUZA et al, 2009).
Desse modo, os argumentos que subsidiaram a definição dos parâmetros da ADE
Santa Tereza se pautaram no entendimento de que, em função da ocupação histórico-cultural e
das características ambientais do lugar, o uso residencial deveria ser protegido e mantido.
Além do incentivo ao uso residencial, a lei que regulamentou a ADE estabeleceu mecanismos
de controle da verticalização da área, ao limitar a 15 metros a altura de novas edificações
(equivalente a edifícios com 5 pavimentos), a exceção de lotes lindeiros a algumas vias do
bairro e a bens com interesse de preservação, para os quais foi fixado o limite de 9 metros de
altura (que equivale a edifícios com 3 pavimentos) 57.
Destaca-se que embora o texto dessa ADE faça referência à ocupação histórico-
cultural e à paisagem como elementos de motivação para o estabelecimento de parâmetros
diferenciados, não há explicitação de quais componentes da ocupação histórico-cultural e da
paisagem deveriam ser preservados.
Essa indefinição já não é verificada no caso da segunda ADE de interesse cultural
57
Uma pesquisa intitulada Bairros históricos de Belo Horizonte: patrimônio cultural e modos de vida, em curso
nos anos de 2009 e 2010, financiada pela FAPEMIG e realizada pelo Programa de Pós-graduação em Ciências
Sociais da PUC Minas, em parceria com a Diretoria de Patrimônio Cultural da PBH, possui, dentre os objetivos
de estudo, avaliar a eficácia do instrumento de ADE na preservação do patrimônio Cultural do bairro de Santa
88
regulamentada, a ADE Pampulha. Prevista no texto da Lei 7166/96 como área que deveria ser
objeto de definição de normas especiais, visando à preservação da paisagem e da cobertura
vegetal, à manutenção dos altos índices de permeabilidade do solo, à existência de locais
reservados aos usos não residenciais e ao estabelecimento dos mecanismos necessários à
existência desses usos, ao controle de bota-fora e à efetivação de um programa de educação
ambiental (PBH, 1996B). Em 2005, esses objetivos nortearam a elaboração do texto da Lei
n.° 9037, de 14 de janeiro de 2005, que, entre outros, estabelecia os parâmetros especiais para
a ADE Pampulha. Importante colocar que essa legislação não se restringe apenas à área de
proteção da paisagem imediata à lagoa da Pampulha, mas incorpora também as áreas cuja
ocupação interferem visualmente na paisagem da lagoa, o bairro Trevo, e aquelas cuja
ocupação interfere diretamente em suas condições ambientais – a bacia da Pampulha. Essa
legislação definiu que:
Tereza.
89
58
O Inventário da Arquitetura Moderna em Belo Horizonte constitui um estudo elaborado em 2003 pela
Diretoria de Patrimônio Cultural, em parceria com a pesquisadora Denise Bahia, que trata da arquitetura
modernista em Belo Horizonte, com destaque para os imóveis existentes no bairro São Luiz e Cidade Jardim.
59 Art. 88 – A ADE da Lagoinha, em função de sua localização estratégica e da importância cultural e econômica
da região, é destinada:
I – à proteção do patrimônio cultural e da paisagem urbana;
II – à revitalização de áreas degradadas ou estagnadas;
III – ao incremento do desenvolvimento econômico.
§ 1º - No que se refere ao incremento das atividades econômicas na ADE da Lagoinha, devem ser adotadas
políticas que contemplem:
I - a permanência das atividades econômicas existentes na área;
II - o estímulo à implantação de novas atividades compatíveis com as lá existentes;
III – a implantação de incubadoras de empresas e de equipamentos indutores similares, visando a modernizar os
processos produtivos.
§ 2º - A permanência e a implantação das atividades econômicas referidas no parágrafo anterior podem ser
estimuladas por incentivos fiscais.
§ 3º - Os projetos de reurbanização necessários para as áreas degradadas ou subutilizadas podem ser feitos por
meio de operações urbanas (PBH, 1996B).
90
3.3.1 O bairro Cidade Jardim e os parâmetros especiais para a ocupação e o uso do solo
Em relação à primeira ação, qual seja a derivada das definições contidas na Lei de
Parcelamento, Ocupação e Uso do Solo de Belo Horizonte – Lei 7166/96 (PBH, 1996),
destaca-se que estabeleceu-se um perímetro de proteção para o bairro Cidade Jardim, por
meio da criação da Área de Diretrizes Especiais Cidade Jardim /ADE Cidade Jardim, cuja
regulamentação deveria ocorrer a partir de lei específica. Os parâmetros definidos pela Lei
7166/96 reforçaram a manutenção das características principais do bairro que foram
determinadas pela primeira legislação de controle da ocupação do lugar, Lei n.° 39, de 30 de
julho de 1948, com exceção para a possibilidade de destinação do uso diferente do residencial
para as edificações localizadas nas vias de maior circulação de veículos, as avenidas Raja
Gabaglia e do Contorno.
A ADE Cidade Jardim foi regulamentada pela Lei 9.563/08 (PBH, 2008a) e, de modo
geral, foram mantidos os parâmetros de ocupação que conferem especificidade paisagística ao
lugar, mas foi permitida certa flexibilização do uso residencial no bairro. Essa legislação
definiu, em seu artigo 1º, parágrafo único, que a “ADE Cidade Jardim constitui área sujeita a
políticas específicas de preservação paisagística, cultural e histórica que visam a reforçar sua
identidade e sua referência no Município [...]” (PBH, 2008a). Apresenta, ainda, quatro
objetivos que são especificamente visados: a manutenção da tipologia de ocupação original60,
a preservação do estilo arquitetônico modernista, a preservação do alto índice de cobertura
vegetal e a compatibilização entre a tipologia de ocupação existente no bairro e o alto índice
de cobertura vegetal com o uso do solo, cuja flexibilização encontra-se prevista na legislação
de regulamentação. Destaca-se, ainda, que a demanda pela compatibilização, nos termos da
60
A tipologia de ocupação original é caracterizada pela existência de grandes afastamentos entre as edificações,
pelo uso de jardins nos espaços externos, pela horizontalidade das edificações e pela manutenção de suas
visibilidades a partir da rua.
91
lei, busca o controle da poluição sonora e atmosférica, a restrição de usos que demandem
carga e descarga, além da imposição de dificuldades ao aumento do fluxo de tráfego de
veículos (PBH, 2008a).
No que tange ao desestímulo à substituição de edificações, a Lei 9563/08 criou
mecanismos de controle da ocupação, fazendo com que se mantivessem os mesmos padrões
atualmente praticados. Nesses termos, fixou o limite de altura para novas edificações em 9
metros, restringiu parâmetros como taxa de ocupação (possibilidade de ocupação de no
máximo 40% da área do terreno com a edificação), coeficiente de aproveitamento (limitação
de área construída a 80% em relação à área do terreno), além da cota mínima de terreno por
unidade habitacional de1000 m2 ou igual à área do terreno no caso de lotes com área menor
que esta medida, o que equivale, no caso do bairro Cidade Jardim que possui lotes com área
aproximada de 1000 m2, à possibilidade de construção de apenas uma residência em cada lote.
Os afastamentos generosos entre as edificações foram mantidos, estipulados em 3
metros no mínimo entre a edificação e as divisas e, no caso do afastamento em relação à via
pública, foi estabelecido o mínimo de 10 metros, à exceção dos lotes de esquina, para os quais
vale o afastamento frontal mínimo de 5 metros. Esses afastamentos frontais devem, nos
termos da lei, ser obrigatoriamente ajardinados, com ressalva para a possibilidade de
impermeabilizar 25% da área de afastamento para o acesso de veículos e construção de
guaritas.
A manutenção das condições da paisagem do bairro é incentivada, ainda, pela
limitação da utilização do piso intertravado61 para composição de áreas permeáveis, fixada em
no máximo 10% da área permeável mínima exigida, pela obrigatoriedade de existência de
faixa ajardinada no passeio e pela proibição de supressão de espécies arbóreas sem
autorização da prefeitura, com a ressalva de que quando esta é autorizada, o plantio de uma
nova espécie no mesmo terreno deve ser realizado. A visibilidade das casas do bairro
encontra-se resguardada, legalmente, pela imposição da proibição de utilização de elementos
como muros com altura superior a 80 cm nos fechamentos frontais dos lotes. Estes devem ser
realizados com elementos vazados ou transparentes, tais como gradis ou vidro.
O controle da poluição visual também é objeto de definição de parâmetros especiais.
Nesse caso, mediante licenciamento municipal, é possível a instalação de dispositivos de
61
O piso intertravado - peça feita em concreto que, vazada ao centro, permite o plantio de grama - , normalmente
é utilizado em áreas onde se deseja locar estacionamento de veículos, ao mesmo tempo em que possibilita a
contagem da área revestida com este piso no percentual de área permeável. A legislação urbanística belo-
horizontina considera 80% da área coberta com blocos intertravados no cálculo da área permeável. Por exemplo,
92
comunicação visual no bairro Cidade Jardim; ressalta-se que uma das etapas do processo de
licenciamento pressupõe a aprovação pelo órgão municipal de preservação do patrimônio.
Todavia, os engenhos publicitários não poderão comprometer a paisagem local ou obstruir a
visão de elementos arquitetônicos característicos das edificações. Devem atender, ainda, a
deliberação do CDPCM/BH que trata das normas para a instalação de engenhos publicitários
em áreas de proteção62.
Já o objetivo de permanência da tipologia residencial característica do bairro é
abordado no item da lei de regulamentação que trata das intervenções nos imóveis existentes.
Nele são especificados os elementos cuja manutenção é obrigatória no caso de submissão de
projetos de reforma para aprovação: fachadas e vãos, volumetria, rampas, escadas e demais
acessos externos, jardins e quintais, cabendo, todavia, recurso ao Conselho Municipal de
Política Urbana no caso de imóveis sem proteção cultural específica em que o proprietário
não concorde com a manutenção dessas características. A legislação ressalva, ainda, que os
imóveis existentes no perímetro da ADE não poderão ter área permeável inferior a 30%, nem
tampouco as vagas de estacionamento existentes nos imóveis poderão servir a outras
finalidades, salvo serem transformadas em áreas ajardinadas.
Em outros termos, a legislação urbanística impôs a todas as edificações existentes no
perímetro da ADE restrições semelhantes às do tombamento, ou seja, determina a manutenção
das características formais dos imóveis. Há que se refletir que, se por um lado, essa medida
cria mecanismos para a manutenção da tipologia residencial original, por outro, impõe a
proprietários de imóveis sem tombamento restrições que, ao mesmo tempo, não possuem
medidas compensatórias. Para os imóveis tombados, há a previsão, por exemplo, da isenção
de IPTU, no caso de bens culturais que se encontram em bom estado de conservação,
incentivo não extensível aos imóveis sem proteção.
No que se refere à questão do uso do solo, a regulamentação da ADE definiu que a
flexibilização do uso residencial só é possível no caso de edificações existentes na data da
publicação da lei. Em outros termos, novas edificações não poderiam abrigar uso diverso do
residencial. Para os imóveis lindeiros às avenidas Raja Gabaglia e do Contorno, que
circundam o bairro, são permitidos os usos previstos para as vias arteriais, ou seja, essa
determinação segue a lógica genérica da legislação urbanística. Para outras vias localizadas
uma área com 100 m2 revestida entre piso contabilizará 80 m2 para efeito de cálculo da área permeável.
62
O CDPCM-BH, por meio da Deliberação n.° 109/2004, estabeleceu normas para a instalação de engenhos
publicitários, de antenas de telecomunicação e de intervenção em calçadas de imóveis localizados em áreas
protegidas.
93
63
Os seguintes usos, de acordo com cada um dos seis grupos, são possíveis nestas vias: A. Serviços de uso
coletivo: associação cultural, biblioteca, estabelecimento de cultura artística, centro de documentação, centro de
pesquisa, locais para exposição, associação de moradores do bairro, asilo e casa de convivência, representação de
organismos internacionais e representação diplomática; B.Comércio: livraria, adega, antiquário, artesanato,
objeto de arte e adornos, artigos de vestuário; C. Serviços: instituições de crédito, seguro, capitalização,
comércio e administração de valores imobiliários, comércio e administração de imóveis, serviços de alojamento
e alimentação (restaurantes, albergues e pensões), serviços domiciliares (chaveiros, lavanderias self-service,
locação de artigos para festas, etc.), serviços pessoais (agência de casamento, centro de estética, confecções e
reparação de artigos de vestuário sob medida, escola de mergulho, estúdios fotográficos, locação de filmes,
estúdios de gravação etc.), serviços técnico-profissionais (agências de publicidade, consultórios, escritórios,
laboratório fotográficos, serviços de informática, serviços de decoração, etc.) e serviços auxiliares de indústria e
comércio (confecção de carimbos, locação de equipamentos de pequeno porte, serviços de vigilância, etc.).
Incluiu-se ainda, um sétimo grupo denominado “outros serviços”, que possibilita a instalação de administradoras
de cartões e de consórcio, agências de intercâmbio cultural e turismo, administradoras de locação, compra e
venda de telefones, empresas de gravação, lapidação e vitrificação de jóias e pequenos objetos, além de sede
administrativa de empresas.
94
64
Entre as medidas mitigadoras previstas pelo art. 97 da Lei n.° 8137/2000, destacam-se medidas para minimizar
impactos causados pelo aumento do fluxo de veículos, implantação de sistema de alarme e segurança, medidas
de prevenção e combate a incêndio, controle da poluição do ar, adoção de mecanismos de pré-tratamento de
efluentes gerados, etc.
96
65
O dossiê de tombamento do Conjunto Urbano Bairro Cidade Jardim entrou na pauta da reunião do Conselho
Deliberativo do Patrimônio Cultural do Município de 16 de março de 2004 e o adiamento de sua análise se deu
em função da apresentação dos estudos para regulamentação da ADE Cidade Jardim, em fase de conclusão,
conforme informações da ata da reunião do CDPCM/BH de 16 de março de 2004, publicada no Diário Oficial do
Município em 19 de maio de 2004. Na ocasião, segundo informações obtidas na DIPC, havia a expectativa do
CDPCM-BH de que a proteção da Cidade Jardim por meio do instrumento da ADE poderia minimizar os
possíveis conflitos com o tombamento do conjunto.
97
QUADRO 3 – Propostas analisadas pela DIPC e pelo CDPCM-BH no perímetro da ADE Cidade Jardim.
IMÓVEL USO ORIGINAL/NOVO DESCRIÇÃO DAS MODIFICAÇÕES CUJA APROVAÇÃO ANÁLISE REALIZADA PELA DIPC OU PELO CDPCM/BH66
USO FOI SOLICITADA
A1 Residencial / Modificações no primeiro pavimento, visando A proposta foi integralmente aprovada pelo
Misto: ao atendimento do novo uso, com CDPCM-BH em setembro de 2007. Após a
Modificação para reformulação na disposição e dimensão de aprovação pelo CDPCM-BH, outro pedido foi
adaptação a novo uso alguns ambientes, que passariam a novas encaminhado, desta vez solicitando substituição das
– salão de beleza funções; acréscimo de área no subsolo para janelas originais em madeira por outras metálicas
atender ao uso residencial: construção de área quadriculadas e substituição do gradil por vidro.
de lazer, não visível ao nível da rua; execução Este pedido não foi aprovado pela DIPC, pois,
de novo fechamento frontal, em muro com contrariava a proposta já analisada pelo CDPCM-
altura de 1 m e restante em gradil. BH
A2 Residencial / Obra iniciada sem aprovação e embargada pela Em setembro de 2009, o projeto não foi aprovado
Serviço: PBH. Modificações realizadas no fechamento pelo CDPCM-BH, que solicitou a recuperação do
Modificação para frontal que, todavia, garantiram a visibilidade pátio interno e a elaboração de um projeto de
adaptação a novo uso do bem. O projeto contemplava a reversão de restauração do bem cultural. Por outro lado,
– escritório de algumas intervenções descaracterizantes, mas permitiu que no futuro projeto de intervenção, a área
advocacia mantinha alterações realizadas na disposição de um pilotis existente na porção posterior pudesse
dos ambientes, como o fechamento do pátio ser fechada com material translúcido e utilizada
interno para abrigar um auditório. como auditório.
A3 Residencial / Não detalhado, mas a proposta revela a Somente as alterações internas foram aprovadas pela
Residencial: intenção de adaptar internamente o imóvel aos DIPC em janeiro/2004. A proposta de substituição
Modificação internas novos modos de vida - com a construção, por de materiais, da escada e a alteração do fechamento
e acréscimo de área exemplo, de uma suíte máster -, e de modificá- frontal foram submetidos à apreciação do CDPCM-
para construção de lo esteticamente pela substituição dos BH.
uma suíte máster. materiais de acabamento originais, do O CDPCM/BH deliberou pela aprovação da
fechamento frontal e da escada de acesso. proposta em março de 2004 após adequação do
projeto pelos interessados no que se refere à
manutenção dos revestimentos externos originais.
Foram autorizadas a modificação no fechamento
frontal, mantendo, todavia, a permeabilidade visual
e a alteração na escada frontal de acesso.
IMÓVEL USO ORIGINAL/NOVO DESCRIÇÃO DAS MODIFICAÇÕES CUJA APROVAÇÃO ANÁLISE REALIZADA PELA DIPC OU PELO CDPCM/BH
USO FOI SOLICITADA
A4 Residencial / Primeira proposta avaliada pelo CDPCM- Na primeira análise, realizada em setembro de 2008,
Institucional BH: previa a demolição de todas as alvenarias foi reprovada a proposta inicial. Na ocasião, o
internas da edificação para transformá-lo em CDPCM-BH estabeleceu diretrizes para um novo
66
Quando as propostas não demandam a alteração de características arquitetônicas significativas do bem cultural
tombado ou em processo de tombamento, ou quando a mesma é prevista em imóvel sem interesse para a
preservação, a proposta é analisada somente pela Diretoria de Patrimônio Cultural. Por outro lado, quando as
intervenções pretendem promover significativas modificações nos imóveis, há a necessidade de avaliação dos
projetos pelo CDPCM-BH.
98
A5 Residencial / Sem aprovação do CDPCM-BH foram O CDPCM-BH na ocasião da análise das obras
Residencial realizadas obras para substituição dos irregulares, em junho de 2005, deliberou pelo
materiais de acabamento originais tombamento do bem e pela necessidade de
característicos do modernismo arquitetônico, elaboração de projeto de restauração que
alteração dos vãos, modificação de toda a contemplasse a restituição dos elementos originais.
divisão interna e substituição do fechamento
frontal por muro em alvenaria.
B1 Residencial / Modificações no agenciamento interno. Aprovada pela atual DIPC em março de 1996.
Residencial
B2 Residencial / Previsão de diversas modificações internas. Aprovada pela atual DIPC em agosto de 1995.
Serviço
B3 Residencial / Foi pleiteada a regularização das diversas Aprovada em junho/2006 pela atual DIPC com a
Residencial intervenções realizadas ao longo dos 50 anos ressalva de que outras possíveis propostas que
de construção da edificação. Segundo os pretendam alterar as características arquitetônicas da
interessados, tratava-se de “pequenas edificação devem ser precedidas da aprovação de
modificações funcionais e estéticas”. Registro Documental*.
B4 Residencial / Solicitação de modificação do fechamento Trata-se de edificação listada como Registro
Residencial frontal em função de segurança e “maior Documental*. A primeira proposta não foi aprovada
imponência”, segundo as palavras do arquiteto pois, segundo parecer da DIPC, “altera a leitura da
que realizou o projeto. cãs e interfere na ambiência do conjunto urbano”.
Uma segunda proposta é apresentada e aprovada em
agosto de 2006, uma vez que a mesma não
configuraria descaracterização do corpo principal da
casa.
B5 Residencial / Modificação nos materiais externos de Trata-se de edificação inicialmente indicada para
Serviço acabamento e em todo agenciamento interno tombamento, mas que em novembro de 2004 foi
do edifício para atender a novo uso. listada para Registro Documental pelo CDPCM-BH.
Na ocasião, o conselho aprovou as intervenções
propostas.
B6 Residencial/ Funcionamento inadequado das esquadrias Aprovada pela DIPC em agosto/2008: autorização
Institucional originais concedida caso não fosse possível recuperar as
esquadrias originais, deveria ser executada outras
com mesmo desenho.
propostas revela que a adaptação das edificações a novos modos de vida normalmente vem
acompanhada de soluções formais e estéticas que podem, potencialmente, modificar as
características arquitetônicas dos bens, competindo, portanto, com as intenções
preservacionistas de manutenção dos elementos de caracterização estilística dos imóveis e de
composição da ambiência particular da Cidade Jardim.
Essa tendência se fez presente nas propostas de reforma de duas casas com interesse
para preservação, no quadro 3 identificadas como A3 e A5. Em A3, pleiteava-se inicialmente,
além da alteração no fechamento frontal, em que a permeabilidade visual existente cederia
lugar a um muro branco ornamentado por arbustos de pequeno porte, a substituição dos
materiais de acabamento da fachada, a alteração na escada de acesso principal e modificações
internas, que incluíam a construção de uma suíte master. Após diversas análises, o projeto foi
aprovado pelo CDPCM-BH, contudo com modificações em relação à proposta inicial.
Permitiram-se, dessa maneira, as alterações na parte interna e no desenho da escada, mas foi
decidido que deveria ser mantida a permeabilidade visual possibilitada pelo fechamento
frontal e os materiais de acabamento característicos do estilo modernista da edificação.
Já em A5, a reforma realizada sem a aprovação do CDPCM-BH promoveu a
substituição dos materiais de acabamento externos, característicos do estilo modernista, por
outros que pretendiam “atualizar” a residência. Nesse caso, foi adotada a “estética branca”,
com vedação em vidros azuis, intervenções estas que segundo a análise da conselheira relatora
do processo modificaram a leitura global da edificação e descaracterizaram o estilo
modernista parcialmente (PBH, 2005a).
No caso de adaptações a novos usos, nota-se, pelas propostas analisadas, uma menor
tendência em modificar as características estéticas dos edifícios, mas, por outro lado, há a
intenção de significativas alterações na destinação e, em alguns casos, na disposição interna
dos ambientes, como verificado em A1, A2 e A4.
Além da análise de projetos de intervenções em imóveis pertencentes ao perímetro da
ADE Cidade Jardim, é tarefa do CDPCM-BH se pronunciar sobre a proteção de bens culturais
no bairro. Até dezembro de 2009, no perímetro da ADE foram contabilizados 5 imóveis
tombados - 4 com tipologia residencial unifamiliar, as casas das ruas Manoel Couto n.º 420,
Raja Gabaglia n.º 285, Sinval de Sá n.° 422 e Olímpio de Assis n.° 77 -, e um residencial
multifamiliar, o IAPB formado por quatro prédios. Há, ainda, 53 edificações em processo de
tombamento, sendo que do total de imóveis tombados ou com interesse para preservação, 38
são característicos da vertente modernista e 20 são representantes de estilemas tradicionais.
100
Entre os bens tombados, dois deles foram inseridos na agenda de discussão do CDPCM-BH
em função da realização de obras irregulares, denunciadas à PBH (PBH, 2005a; PBH, 2009).
Já os edifícios do IAPB foram objeto de abaixoassinado de seus moradores que pleitearam seu
tombamento (PBH, 2005c).
Em relação ao prédio que abriga o Museu Histórico Abílio Barreto, convém relatar
que embora ele não se encontre protegido a nível municipal, seu tombamento foi realizado a
nível federal em 1951, no contexto de uma política de patrimônio que reverenciava as obras
representativas do passado colonial brasileiro.
MAPA 5 - Bairro Cidade Jardim: estilo dos imóveis com interesse para tombamento.
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Estilo Modernista
Estilemas Tradicionais
Estilo Colonial
Sem estilo definido
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Legenda
Bem cultural tombado
Bem cultural em processo de
tombamento
Fonte: DIPC/FMC. Elaborado por DIPC/FMC. Adaptado pela autora.
Por fim, convém traçar um resumo das ações preservacionistas instituídas para o
bairro Cidade Jardim e aquela que instituiu parâmetros diferenciados para a ocupação do
lugar. Assim, é possível esquematizar as ações de gestão urbana que vigoraram ou que se
encontram em vigor para o bairro Cidade Jardim da seguinte maneira:
102
Legislação Lei LEI N.º 39 DE 30 DE LEI 7166 DE 27 DE LEI 9563 DE 30 DE MAIO DE 2008
Urbanística JULHO DE 1948 AGOSTO DE 1996 (em vigor)
Define os critérios (revogada) (em vigor)
para o parcelamento,
a construção e a Definição Estabelece as normas Estabelece os Regulamenta a Área de Diretrizes
instalação de específica para construção em regulamentos para Especiais Cidade Jardim – ADE Cidade
atividades no espaço bairros residenciais parcelamento, ocupação e Jardim; Destaca-se que esta última lei
urbano. No caso das uso do Solo de Belo revoga as disposições das legislações
Áreas de Diretrizes Horizonte. anteriores que são contrárias ao texto da
Especiais, prevê o regulamentação.
estabelecimento de
Determinações 1. Os parâmetros 1. Definiu a Área de 1. Determina que as obras de reforma
critérios mais
estabelecidos por esta Diretrizes Especiais do devem manter as características externas
restritivos com o
legislação previam a bairro Cidade Jardim – das edificações cabendo, no entanto,
intuito de incentivar
construção de ADE Cidade Jardim, que recurso ao Conselho de Política Urbana –
ou manter condições
residências deveria ser objeto de COMPUR;
ambientais ou
unifamiliares e com no regulamentação. 2. Determina que a supressão de árvores
culturais especiais.
máximo três 2. Estabeleceu que o só é possível mediante reposição dentro
pavimentos. 2. As bairro seria destinado ao do mesmo lote onde ocorreram as
porções frontais dos uso residencial supressões. 3. Mantém a exigência de:
lotes deveriam ser unifamiliar, com exceção a) espaçamento entre as edificações, b)
destinadas a jardins. das avenidas Raja construção de uma única edificação
3. O fechamento frontal Gabaglia e do Contorno. dentro do lote e c) ajardinamento da
deveria ser feito por 3. Manteve a exigência de: porção frontal.
cercas vivas ou gradis. a) espaçamento entre as 3. Estabelece uma altura máxima de
edificações e entre estas e 9,0metros para as novas edificações.
a via pública; b) 4. Determinados usos passam a ser
construção de apenas um permitidos em todo o perímetro do
edifício em cada lote. bairro.
Deliberações do 1. O CDPCM/BH delibera, a partir das análises qualitativas elaboradas pela equipe técnica da DIPC, sobre os
Conselho projetos de intervenção nas edificações tombadas ou indicadas para tombamento no estudo do Conjunto Urbano
Deliberativo do Bairro Cidade Jardim;
Patrimônio Cultural 2. Delibera, ainda, sobre o tombamento das edificações indicadas para proteção no estudo do Conjunto Urbano
do Bairro Cidade Jardim.
Município/CDPCM-
BH
Monitoramento da 1. Acompanhamento e análise de processos de intervenção em edificações, tombadas ou indicadas para tombamento,
Diretoria de bem como daquelas que não possuem interesse cultural específico.
Patrimônio 2. Encaminhamento dos projetos de intervenção que demandam alterações significativas em bens tombados ou
cultural/DIPC indicados para tombamento para a análise do CDPCM/BH.
3. Elaboração dos dossiês de tombamento das edificações, incluindo a proposição de critérios de intervenções nas
edificações protegidas.
COMPUR Instância de recurso no caso de manifestação negativa do executivo municipal na aprovação de projetos de reforma.
Um dos critérios a ser considerado nas avaliações do COMPUR se refere à consideração da importância da
edificação no conjunto urbanístico da área, o que pressupõe a manifestação prévia do CDPCM-BH.
Destaca-se que essas ações foram importantes para a manutenção das características
da ambiência local. Contudo, a efetiva preservação da Cidade Jardim depende também do
modo como a população local interpreta este espaço diferenciado da cidade. Sendo assim, a
análise das representações e expectativas presentes entre a população local no que se refere ao
bairro e seus bens culturais constitui o tema do próximo capítulo.
103
67
Para Gonçalves (2007), estabelece-se um discurso quando alguém profere um enunciado, em um espaço social
e temporal determinado, dirigido à outra pessoa ou outro grupo social que o responderá. O autor cita, por
exemplo, o gênero de discurso do palácio, no qual se incluiriam dos discursos de posse, de inauguração, de
encontros científicos, sala de aula, elogios fúnebres, ou seja, os enunciados construídos numa situação social
caracterizada pela formalidade das ações. Outro gênero a que ele se refere é o do discurso da praça pública,
associado ao cotidiano, tais como o anúncio do camelô, os xingamentos, ofensas proferidas em brigas de ruas,
conversas de botequim, etc.
104
Uma vez selecionada a lista de imóveis a partir dos critérios citados no quadro 5 uma
68
O estudo relativo à proteção do Conjunto Urbano Bairro Cidade Jardim, elaborado pelo órgão municipal de
proteção ao patrimônio cultural, aponta a lista das edificações a serem protegidas por tombamento. Estas
possuem processos de tombamento em curso, cuja conclusão depende do encaminhamento desses processos para
a manifestação do Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural do Município – CDPCM/BH.
105
pesquisa foi realizada na lista telefônica disponível na internet, por meio da qual foi possível
identificar tanto os responsáveis pelas edificações, quanto os usos atuais. Então, a partir de
contato telefônico, as entrevistas foram agendadas, não havendo, por parte da maioria dos
selecionados, objeções ou condicionamentos especiais para as suas realizações. Apenas em
dois contatos telefônicos houve negativa em conceder entrevista.
Vale registrar, todavia, que o critério pautado na existência de uma ação direta da
política de patrimônio sobre o imóvel do entrevistado não se mostrou, durante as entrevistas,
como item revelador de diferentes posicionamentos. Isso porque, exceto em dois casos, não
houve manifestação de conhecimento, por parte dos entrevistados, sobre a incidência ou não
de algum grau de proteção específico sobre os imóveis dos quais são proprietários.
Assim, foram entrevistados 4 representantes dos primeiros moradores do bairro, 2
moradores de segunda geração, 2 proprietários de estabelecimentos de serviço no local e 4
representantes do grupo de herdeiros, totalizando 12 entrevistas qualitativas, conforme anexo
4. O perfil etário dos entrevistados oscilou entre 48 e 88 anos.
Convém destacar, ainda em relação aos aspectos metodológicos, que apesar do cuidado
na diversificação do perfil dos entrevistados, trata-se de uma pesquisa qualitativa que possui a
intenção de abordar representações, relativas ao campo do patrimônio, existentes entre a
população local. Desse modo, a pesquisa foi realizada com a ciência de que os resultados aqui
expostos não são produto de uma amostra construída a partir de critérios estatísticos e que,
portanto, sejam representativos “da população” do bairro Cidade Jardim; tão somente
expressam “parte” das representações presentes entre a população local no que se refere às
categorias investigativas elencadas, quais sejam, a ambiência, a ressonância e o valor de uso.
Para fim de organização do capítulo, a análise das entrevistas encontra-se dividida em
dois itens. O primeiro deles trata da ótica da população local, abarcando moradores da
primeira e da segunda geração e os proprietários de estabelecimentos no local. Já o segundo
item apresenta as expectativas da segunda geração, com foco privilegiado nos ex-
moradores/futuros herdeiros, ou seja, naqueles que não mais residindo no local, mantêm laços
diretos com os pais que ainda moram no bairro.
106
4.1 As representações sobre o bairro Cidade Jardim sob a ótica da população local
Outro item que apareceu, em alguns relatos, com conotação negativa se refere à
segurança, mas, nesse caso, ela foi tratada como uma condição geral “de todo lugar”, e não
apenas do bairro Cidade Jardim, como na fala: “é razoável; não é 100% porque em lugar
nenhum é, mas é razoável” (M, 86 anos, dona de casa). Em apenas uma entrevista, a questão
da segurança foi associada a causas pontuais, decorrentes das condições do próprio bairro.
Nesse caso, houve a associação entre a insegurança e o fato da Cidade Jardim ter se tornado
um corredor de passagem para outros bairros da cidade e, outrora, ao colégio Imaco, que
durante algum tempo funcionou no prédio da antiga Escola de Odontologia, na praça Godoy
Bethônico. De acordo com a perspectiva entre entrevistado,
uso decorrente das necessidades cotidianas, ora sendo definido como “satisfatórios”, ora
sendo associado à dificuldade de acesso a pé às atividades básicas de suporte ao uso
residencial: “[...]vai comprar pão, tem que ir de carro. Nada a pé” (M, 80 anos, dona de casa),
e ainda, “aqui pertinho não tem supermercado e é uma ladeira tremenda” (A., 86 anos,
agrônomo aposentado), revelando certo desconforto em relação à dificuldade de acesso às
atividades comerciais de suporte à vida cotidiana.
Já a investigação sobre os laços de sociabilidade revelou que as relações de
vizinhança, na maioria dos casos, não se processam com muita intensidade, estando restritas
aos eventos associados à igreja do local, a Santo Inácio de Loyola, localizada na rua Bernardo
Mascarenhas, próxima à praça Godoy Bethônico. Grupo de oração, que acontece no salão do
Colégio São Paulo e bingos, palestras e jogos que ocorrem no salão paroquial da igreja foram
citados como eventos que contam com a participação de moradores do bairro. Outro evento
que conta com a participação dos mesmos é a festa junina que ocorre há cinco anos no bairro.
Esse evento é organizado por ex-moradores, em sua maioria filhos daqueles que
primeiramente ocuparam o lugar, ou seja, a segunda geração de moradores. De acordo com
uma das entrevistadas, “a nossa geração, todo mundo mora fora, e então na época de festa
junina você encontra todo mundo aqui” (A., 67 anos, pedagoga).
As falas evidenciaram que os moradores se conhecem, mas não é comum o hábito de
frequência aos lares. Um dos entrevistados revelou que “não há uma convivência muito
grande de vizinho; quando a gente se encontra é em um evento religioso” (E., 75 anos,
arquiteto). Em outra fala, percebe-se a atribuição da pouca convivência entre vizinhos à
modernidade, que impõe ritmos de vida diferenciados entre as pessoas:
por um dos entrevistados. De acordo com a percepção de J.A. (49 anos, advogado), há, ainda,
estreitas relações de vizinhança entre os “tradicionais”, por ele caracterizados como aqueles
moradores que adquiriram um lote e construíram a casa na Cidade Jardim. Ele relata que era
comum seu pai, falecido recentemente, freqüentar a casa de vizinhos para jogar tênis e ouvir
música clássica. Mas ele já não verifica a mesma intensidade no caso daqueles que
compraram a casa dos “tradicionais”. Entre estes e os novos moradores, ele não percebe
intensidade nas relações de vizinhança.
Em relação ao passado, as entrevistas evidenciam posicionamentos diferentes no que
se refere às relações de vizinhança, ora pendendo para a inexistência de laços estreitos, ora
destacando a convivência cotidiana da juventude no bairro. Uma das entrevistadas que foi
morar no bairro com a família na década de 1970 (S, 48 anos, engenheira) conta que, antes de
se transferir para a Cidade Jardim, morava em Lourdes e lá havia o hábito de se encontrar
com vizinhos, brincar na rua. Depois que se mudou, afirma que deixou de ter essas relações
de vizinhança, as brincadeiras se extinguiram, restando apenas as idas ao colégio.
Já outras duas entrevistadas, irmãs que são ex-moradoras de um dos imóveis lindeiros
à praça Godoy Bethônico, relatam que “tínhamos amigos, os vizinhos eram todos da mesma
idade.Todos da rua eram da mesma idade” (A, 67 anos, pedagoga), enquanto sua irmã
descreve a praça como um antigo local de sociabilidade: “a gente quando mocinha, nesta
idade de 15, 14 anos, a gente freqüentava a praça [...]. A gente andava em turma. E aqui
antigamente era a Faculdade de Odontologia e Farmácia, então tinha coisa de estudante. Tinha
um ambiente de estudante [...] Então, aqui tinha muito jovem...[a pracinha era] ponto de
arrumar namorado e tudo” (ML, 66 anos, psicanalista).
Desse modo, a partir das entrevistas realizadas, é possível perceber que na Cidade
Jardim há relações de vizinhança, todavia, no cenário atual, essas se encontram vinculadas,
prioritariamente, a eventos sociais locais. A exceção a esse cenário é verificada no caso dos
moradores de primeira geração, entre os quais, segundo um entrevistado, é comum a
freqüência entre os lares. Há que se ressaltar que as possíveis causas para o arrefecimento das
relações sociais cotidianas entre vizinhos são dadas pelo ritmo de vida atual, segundo as
afirmações de um dos entrevistados (A., 85 anos, médico), ou pelo considerável número de
idosos habitando o bairro, fato que dificultaria a locomoção e, consequentemente, a realização
de visitas, de acordo com a percepção de outro entrevistado (A., 51 anos, construtor).
Outro aspecto ligado à definição de um estilo de vida particularizado se refere aos
elementos, identificados pelos moradores, que conferem ao lugar o sentimento de alteridade
112
em relação ao restante da cidade. Uma primeira tentativa de captar esse sentimento foi
realizada através do questionamento sobre os motivos que levaram essas pessoas a morarem
ou a instalarem suas atividades no bairro. Uma segunda pergunta tentou apreender quais os
elementos que diferenciavam o bairro Cidade Jardim de outros bairros da cidade.
Apenas um dos entrevistados (J, médico, 88 anos) declarou que não houve motivação
especial na escolha da Cidade Jardim69. Afora essa declaração, todas as outras falas revelaram
conotações especiais: “status”, “morar bem”, “proximidade com o centro”, “localização
fantástica”, “lotes grandes”, “facilidade de estacionamento”, “público classe A”, “referência
de bairro de qualidade” foram expressões utilizadas para qualificar os motivos de escolha do
bairro, ou seja, as expressões associadas ao bairro revelam adjetivos que conferem ao local
uma condição especial, de alteridade, em relação a outros bairros.
Um dos entrevistados revelou que: “eu escolhi pelo status do bairro, a proximidade
aos colégios e o acesso a todos os serviços da Savassi, do Colégio Loyola e do centro” (E., 75
anos, arquiteto), fala que sintetiza a maior parte dos relatos sobre a escolha desta área da
cidade. Outra entrevistada revela sua predileção por áreas em que se possa “morar bem”, com
a diferenciação de que na Cidade Jardim havia a possibilidade de habitar uma casa: “Eu
morava em Lourdes, então já morava bem. [...] Eu queria um ponto na região central e por ser
casa também” (S, 48 anos, engenheira). As possibilidades de tranqüilidade e de espaços
generosos oferecidas pelo bairro também apareceram, nos relatos, como fator de atração: “A
gente morava na rua São Paulo no bairro de Lourdes e já estava ficando movimentado demais,
não podia parar carro, a garagem também era pequena, cabia um carro só” (M, 80 anos, dona
de casa).
A condição especial, presente nas características urbanísticas do bairro Cidade Jardim
que foram definidas em seu planejamento, depreende-se, pelas falas, se constituiu em um dos
principais fatores de atração de moradores. Já a concentração de moradores de classe alta
serviu de incentivo para que, recentemente, serviços voltados para esse grupo social lá se
instalassem, como se percebe no relato de um comerciante, proprietário de um salão de beleza
no local, em relação aos motivos que o levaram ao bairro: “facilidade de estacionamento e
espaço, a casa é grande. E também o tipo de morador que mora aqui, é meu público, o
morador de classe ‘A’” (L, 70 anos, comerciante).
O segundo questionamento, que tentou mensurar as representações sobre as
69
Ele procurava imóveis pela cidade e entre eles já havia visto duas casas construídas no bairro, quando, no final
da década de 1960, gostou de um lote vago existente ao lado de uma delas e então procurou o proprietário para
113
particularidades da Cidade Jardim em relação a outros bairros da cidade, revelou que tais
representações encontram-se associadas, na maioria dos relatos, às condições próprias da
ambiência do lugar e à condição central do bairro70. Nesses termos, foram utilizados adjetivos
como “conforto”, “privilegio”, “regalia”, todos eles decorrentes das características físicas do
lugar. Além desses adjetivos, houve reconhecimento de que o bairro oferece “grandes
acomodações”, em referência ao tamanho das casas do bairro.
Um dos relatos expôs que “a gente que mora aqui é privilegiado, primeiro porque
moro numa casa que tem um espaço legal e é em uma região central” (S, 48 anos,
engenheira). Outro morador revelou que
o bairro é bem sossegado, bem tranqüilo e bem perto de tudo. Então eu considero
uma regalia você ter 1000 m2 de área aqui, de terreno dentro da cidade praticamente,
é como se fosse uma chacrinha dentro da cidade. Então, é um privilegio muito
grande morar na Cidade Jardim. Porque nas outras áreas o terreno é bem menor, no
máximo 600metros ou até menos, em outros lugares o lote, quem mora em casa
mora num lote de 400 metros, 300 metros quadrados. Aqui você tem um lote de
1000 metros quadrados, bem separado um do outro, casa grande e perto da cidade.
(A., 86 anos, agrônomo aposentado).
Avenida do Contorno
FIGURA 23 - Vista aérea do bairro Cidade Jardim, com destaque para a avenida do Contorno.
Fonte: Google Earth.
Segundo Choay (2001), Alois Riegl, historiador da arte vienense, foi o primeiro teórico
a desenvolver um trabalho crítico sobre os bens patrimoniais a partir dos valores de que foram
investidos ao longo da história. De acordo com as colocações riegelianas, há duas categorias
116
71
O valor artístico se refere ao potencial que o objeto possui de ser acessível à sensibilidade do observador,
produzindo um efeito relativo, referente às obras antigas ainda acessíveis à sensibilidade moderna, ou de
novidade, ligada à aparência fresca e intacta da obra. Já o valor de uso se relaciona às condições práticas de
utilização de determinado bem patrimonial.
117
Aqui você tinha rua sossegada, tranqüila, agora vão estacionar carro de um lado e do
outro, você não tem mais jeito de parar. Vem uma pessoa na sua casa e não pode
mais parar, porque vai ficar cheio. O quarteirão de baixo já está quase todo cheio,
porque tem casa alugada para isso. E aqui não tinha. Esta parte toda por aqui, agora
já tem (M, 80 anos, dona de casa).
72
Nota-se um significativo número de escritórios de advocacia instalados no bairro, assim como outras
atividades como salões de beleza, spas, imobiliária direcionada ao mercado de luxo, etc.
118
uma casa muito bem feita [...], tudo é perfeito” (M, 80 anos, dona de casa) foram utilizadas
para qualificar o local de moradia e, em nenhum dos casos, houve manifestação de interesse
na mudança para outro imóvel dentro do bairro.
Vale registrar, no entanto, que em um dos casos houve manifestação de interesse de
substituição da moradia horizontal pela moradia vertical. Ou seja, o morador, de segunda
geração, intenciona continuar morando na Cidade Jardim, mas almeja que no futuro haja a
possibilidade de construir no lugar de sua casa um prédio: “algumas pessoas já descobriram a
Cidade Jardim pra morar em casa mesmo, mas esperando uma verticalização, porque o sonho
é este, é que meu filho more aqui também, então, moremos todos aqui num prédio. Você tem
um campo em volta que dá uma valorização diferente; não é um troço agarrado no outro”
(L.A., 49 anos, médico). Ou seja, o entrevistado, ao imaginar prédios em meio a casas,
acredita que as condições que conferem alteridade à Cidade Jardim seriam mantidas, pois
seriam resguardados os generosos afastamentos entre os edifícios, assim como seus conteúdos
sociais de distinção (BOURDIEU, 2007). Todavia, o entrevistado não esclarece, ou tece
comentários, acerca dos impactos que, certamente, o adensamento e a verticalização do bairro
provocariam na paisagem e na ambiência local, esta última também citada na maioria das
entrevistas como um dos elementos responsáveis pela particularização do bairro no contexto
belo-horizontino.
Considerando ainda os moradores entrevistados, mas selecionando apenas aqueles que
são proprietários de imóveis que possuem indicação para proteção - dois73 casos -, a situação
se repete, ou seja, esses expressam os valores positivos que decorrerem de sua concepção
arquitetônica. O primeiro caso se refere a uma edificação projetada pelo arquiteto Sylvio de
Vasconcellos (PBH, 2004), importante nome no cenário arquitetônico mineiro, autor de
diversas obras em estilo moderno. Os proprietários desse imóvel expressaram os elementos
que, associados ao valor de uso da edificação, lhe conferiam afetividade e que motivaram a
escolha da moradia:
Esta casa agradou [...]. É uma casa moderna, agradou. Nós vimos outras casas, mas
73
Um terceiro entrevistado, que atualmente mantém um estabelecimento na Cidade Jardim, foi proprietário, até
o ano de 2008, de uma casa modernista listada para tombamento. Em relação a essa edificação, relatou que
nunca realizou nenhuma modificação e que a edificação, durante muito tempo, foi visitada por pessoas
interessadas em contratar o mesmo arquiteto que a projetara. Segundo ele, esta casa abriga, atualmente, o
escritório de uma construtora que ao adquirir o edifício, o elogiou por ter mantido o aspecto original da
residência. Todavia, ao visitar a edificação, constatei que com a instalação do escritório foram realizadas
intervenções que descaracterizaram parcialmente o estilo modernista.
119
não agradaram não. [Agradou] no estilo da casa, esta questão de ter tudo aqui, a
parte principal ser aqui, na frente não tem nada. Não tem varanda, não tem nada pra
frente, toda para os fundos [...]. Está reservada, voltada para os fundos. Eu acho
muito bem bolada. (A., 86 anos, agrônomo aposentado).
Já a outra moradora dessa residência acrescenta que “ela é excelente, a divisão dela é
excelente. É bem construída, é muito boa. E tem muito espaço” (M, 80 anos, dona de casa). A
segunda edificação, também característica do movimento moderno na arquitetura, não passou
por intervenções nem na disposição dos ambientes74 nem em seus materiais de revestimento.
Seu proprietário, por diversas vezes durante a entrevista, ressaltou o quanto a casa lhe
agradava e que mesmo ela sendo grande para a moradia de apenas três pessoas (ele, sua
esposa e um neto) a considera adequada, pois, quando seus filhos, noras e demais netos vêm
visitá-lo, “a casa se torna pequena” (J, 88 anos, médico aposentado).
Desse modo, percebe-se que no caso das casas indicadas para proteção e que abrigam
ainda a primeira geração de moradores, não há conflito entre o valor de uso conferido aos
bens e à suas características arquitetônicas e estilísticas. Em todos os casos analisados, a
utilização dos edifícios, mesmo com modificações nos modos de vida decorrente, por
exemplo, da diminuição do número de membros da família, não demandou a alteração
significativa das características físicas das residências. Ao contrário, estas foram valoradas de
modo positivo75.
Já entre os imóveis pertencentes a moradores de segunda geração - dois casos -, foram
constatou-se a realização de intervenções nos ambientes internos. S. (48 anos, engenheira)
relata em relação à sua casa que ela “era antiga e quando entrei, eu reformei, mas a divisão é a
mesma praticamente. Substitui materiais elétrico, hidráulico e revestimento e construí um
muro na frente que não tinha; ele era de vidro e dava pra frente, então fiz o muro por questão
de privacidade e segurança”. Outro morador, também de segunda geração e que também
possui um consultório no mesmo imóvel, relata que no imóvel de sua propriedade o gradil foi
substituído por um muro e que houve a construção de um anexo que hoje abriga seu
consultório.
Essa tendência de mudanças nos imóveis, para uma das entrevistadas, é reflexo do
ingresso de novos proprietários na Cidade Jardim: “eu acho que muitas casas foram e estão
74
A casa, além dos revestimentos externos característicos do movimento modernista como partilhas cerâmicas e
azulejos decorados, apresenta a divisão dos ambientes também característica do estilo, com pátio interno para o
qual se volta o setor social.
75
Vale registrar que nestes casos, trata-se de proprietários com idade superior a 80 anos e que residem há mais de
120
sendo vendidas. Estão chegando pessoas mais novas, vindo para morar mesmo, reformando as
casas[...]. Mas muitas estão virando para serviço” (S. 48 anos, engenheira). Essas reformas,
segundo seu ponto de vista, “quando muda o estilo eu não gosto não, mas quando conserva só
e dá uma melhorada fica até legal, porque tem que renovar” (S., 48 anos, engenheira).
Outro entrevistado, ex-morador do bairro (J.A., advogado, 49 anos), identifica um
movimento de reforma das casas sempre que novos moradores chegam ao bairro. Para ele,
isso é reflexo do fato de que as casas antigas já não atendem mais às demandas do público A.
Ele acredita que quem vai morar na Cidade Jardim sempre vai modificar as edificações para
atualizá-las. Essas mudanças, em sua opinião, são para adaptar as casas às condições da vida
moderna da classe A, citando como exemplo de novas demandas desta classe o home theatre,
o cabeamento para internet, o maior número de sanitários, etc.. De acordo com sua percepção,
quando os novos moradores compram imóveis na Cidade Jardim sempre reformam a casa
inteira, “fazem praticamente outra casa” (J.A., 49 anos, advogado).
Já entre os entrevistados que são proprietários de estabelecimentos de serviços no local
- dois entrevistados -, não foi percebida afetividade em relação à edificação por eles ocupada.
Apesar disso, em um dos casos, houve a manifestação do entendimento de que “o espaço da
casa é bom” (L, 70 anos, comerciante), avaliação esta que motivou a escolha do imóvel para
instalar sua atividade. Essa casa, também representativa do movimento modernista,
necessitaria, segundo seu proprietário, de intervenções que pudessem modificar seu estilo
moderno: “eu gostaria de tirar a telha de amianto e colocar a de barro, fazê-la ficar mais
mineira” (L, 70 anos, comerciante). Outras alterações seriam motivadas, de acordo com a fala
do entrevistado, pela necessidade de definição de uma imagem comercial, alterando, assim, o
fechamento frontal, as fachadas e acrescentando uma rotatória junto ao acesso principal. Esta,
segundo seu entendimento, tornaria o estabelecimento “mais chique”, ao possibilitar que seus
clientes parem, literalmente, na porta do estabelecimento. Nesse caso, são notadas duas
variáveis, decorrentes do valor de uso, que se contrapõem à manutenção do estilo original,
uma de ordem estética e outra de ordem prática. A primeira intenciona adequar o estilo ao
gosto do proprietário, uma vez que este entende que a arquitetura moderna “não tem nada a
ver com a gente”, com a expressão “a gente” se referindo a seu entendimento sobre o que
seria a “mineiridade”. A segunda pretende transformar a feição residencial da edificação, por
meio da adoção de soluções que confiram a ela certo ar comercial.
Quanto ao aspecto de ressonância, destaca-se que ela se refere ao poder que os objetos
76
Os prédios do IAPB - Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Bancários -, localizados na Cidade Jardim,
conformam um conjunto habitacional construído na década de 1950 para abrigar os bancários e seus familiares.
122
Em 2005, os edifícios do IAPB foram protegidos por tombamento pelo Conselho Deliberativo do Patrimônio
Cultural do Município – CDPCM/BH. Esse conjunto localiza-se próximo a outras edificações do IAPB
construídas no bairro Santo Antônio, do outro lado da avenida Prudente de Morais.
123
ocorrer quando incidirem sobre bens que são vinculados à memória oficial, à história oficial
da cidade, “como as secretarias”, por exemplo, ou que se destaquem por sua relevância
arquitetônica:
Por outro lado, o mesmo entrevistado demonstrou, em seus relatos, que os bens
culturais existentes na Cidade Jardim possuem, para ele, ressonância, na medida em que
remetem a imagens, simbolizam as forças culturais da qual emergiram e das quais eles são,
para o expectador, representantes (GONÇALVES, 2005). Em relação ao prédio do Museu
Histórico Abílio Barreto, o entrevistado revela que o prédio o faz lembrar a “Belo Horizonte
antiga”, de quando no bairro ainda não existiam casas, e mais, “eu tenho, assim, uma imagem
de uma Minas Gerais de fazenda, de coisa assim bem mineira” (L, 70 anos, comerciante). Já
as casas representativas dos estilemas tradicionais, que ele associou à representação de “bom
gosto”, o lembrou da “Belo Horizonte poderosa”, com influência, em suas palavras,
americana e européia. Para ele, “estas valem a pena serem tombadas, estas valem a pena” (L,
70 anos, comerciante), revelando a existência de um critério qualificador da proteção pautado
na imponência dos edifícios. Já em relação às casas representativas do movimento moderno, o
entrevistado ponderou que não gostava do estilo por não considerá-lo, de acordo com suas
palavras, “culturalmente” adequado. Essa inadequação, segundo ele, se processaria tendo em
vista que ele gosta “de casa que se pareça casa e o moderno tem muito vidro” (L, 70 anos,
comerciante). Em sua opinião, esse tipo de arquitetura “não tem nada a ver com a gente por
causa do clima, do nosso passado de fazenda. É cultural mesmo” (L, 70 anos, comerciante).
O segundo critério qualificador da proteção identificado se relaciona à condição de
destaque de determinado bem em relação à paisagem em que se insere. Quando estimulada a
observar as casas representativas dos estilemas tradicionais e do movimento modernista, uma
entrevistada reconhece os imóveis pelo bairro e elege os de sua preferência, todos
representativos da arquitetura tradicional. Apontando para um dos imóveis selecionados e que
se encontra tombado, a entrevistada se questiona sobre a pertinência da proteção, uma vez que
em suas palavras, “ele não possui nada de diferente”. Nesse caso, mesmo considerando que
125
todas as casas selecionadas são “ótimas” e que a Cidade Jardim “é um bairro de casas
bonitas”(M, 80 anos, dona de casa), a adjetivação pautada no gosto (“são casas bonitas”) não
é capaz de justificar o tombamento, pois essa adjetivação não é suficiente para destacar o bem
cultural protegido no contexto do bairro, uma vez que ele é um “bairro que não possui uma
casa que seja feia” (M, 80 anos, dona de casa). Já em relação ao prédio do Museu Abílio
Barreto, a entrevistada se refere a ele como um “marco da cidade”, que segundo sua memória
já era referencial quando a área ainda era desocupada, pois recorda que o antigo casarão já
marcava o “local mais longe que existia” (M, 80 anos, dona de casa).
Identificou-se, ainda, outro critério qualificador da proteção, este associado à
manutenção do estado original e à antiguidade do bem cultural. Na fala de uma das
entrevistadas, “as casas que ainda não foram mexidas, que conservam seus estilos dos anos
1960, são maravilhosas [...] eu acho que realmente devem ser tombadas mesmo, mas há
muitas que já não têm estilo nenhum, são de outra época” (S, 48 anos, engenheira).
Analisando as imagens das casas representativas dos estilemas tradicionais e modernistas, a
entrevistada defende o tombamento dos bens “porque são diferentes de hoje, são das décadas
antigas” (S, 48 anos, engenheira). Em sua opinião, todas as casas que simbolizam “estilos
diferentes de época devem ser tombadas e não deixar mudar nada” (S, 48 anos, engenheira).
Analisando a percepção dessa entrevistada, é possível inferir que há a inclinação em
representar as edificações antigas, ainda em estado original, como “elementos simbólicos de
uma época”, associação que as tornariam merecedoras da proteção por tombamento.
Por fim, e ainda no que se refere à ressonância dos bens culturais, convém mencionar
a associação entre a arquitetura modernista e o bairro Cidade Jardim. Um dos entrevistados,
de segunda geração, quando instigado a falar sobre as residências modernistas, observa que,
para ele, a “Cidade Jardim é mais este estilo [o modernista], a casa do meu pai também tem
este estilo. Eu acho que é mais característico do bairro. O estilo Brasília” (A., 51 anos,
construtor). E acrescenta, em relação aos estilemas tradicionais: “Este daqui eu acho, pelo
menos para a minha imagem, eu acho que lembra menos a Cidade Jardim” (A., 51 anos,
construtor). Já outro entrevistado, também de segunda geração, identifica a arquitetura
modernista, além da associação à imagem de Juscelino Kubitschek, como o “marcador” de
uma época, o que não aconteceria com os estilemas tradicionais. Em suas palavras, “estas
modernistas, elas marcam uma época. Estas aqui não tem época não....[as tradicionais].
Porque você chega ali em qualquer condomínio você tem casas com colunata... eu não gosto
não” (L.A., 49 anos, médico).
126
Cidade Jardim é o fato de que no bairro não podem ser construídos prédios, o fato de a Cidade
Jardim ser um bairro só de casas. O generoso tamanho dos lotes e a distância entre as
edificações também foram lembrados como elementos de diferenciação do lugar. Destaca-se
que ao se recordar dos motivos que levaram sua família a optar pelo bairro, foi relatado que a
Cidade Jardim “era um bairro novo, bem traçado e moderno” (M.L., 66 anos, psicanalista).
Naquilo que se refere às expectativas com o futuro do bairro, ambas se manifestaram
positivamente acerca da diversificação de usos possibilitada recentemente pela legislação
urbanística. Essa permissão facilitaria, segundo elas, a venda do imóvel que herdarão, solução
que vislumbram em relação à casa da mãe, uma vez que não intencionam voltar a morar na
Cidade Jardim. A inclinação a priorizar o valor de troca também se evidencia quando elas se
manifestam contrariamente às ações de tombamento no bairro, por considerarem que quando
ele se efetiva o proprietário “fica com um elefante branco nas mãos, sem ter o que fazer com
aquele imóvel” (M.L., 66 anos, psicanalista). Esse posicionamento, além de revelar
distanciamento em relação a valores afetivos, denota que as entrevistadas consideram que a
ação protecionista inviabilizaria outras finalidades para edificação, no caso específico, de
destinação para comercialização, já que não pretendem morar novamente na casa77.
Já outro entrevistado revela um tom menos saudosista nas representações sobre o
passado do bairro, ao passo que mantém o mesmo tom cético em relação à possibilidade de
retorno ao lugar. Ele relata que “hoje eu não penso [em voltar a morar no bairro Cidade
Jardim] porque a casa é uma casa muito grande para a realidade atual. E os meus negócios
estão mais para a área do Sion, Belvedere. Então, eu privilegio a proximidade com o trabalho,
com os negócios e também porque a casa é muito grande” (A., 51 anos, construtor). Esse
entrevistado enfatiza, ainda, que as casas do bairro possuem um padrão construtivo “mais
antigo” e, desse modo, “a tendência é a de que boa parte delas sofram reforma para adequar
aos novos tempos, sem mudar muito, mas, por exemplo, tem a questão de banheiros, tem
poucos banheiros, cozinha. Então a tendência é que haja reformas” (A., 51 anos, construtor).
Para exemplificar essa tendência, o construtor cita o caso da casa dos pais: “é uma casa que
hoje o andar de cima tem quatro quartos, tem só um banheiro social e o banheiro da suíte. Eu
como construtor, normalmente a gente faz duas ou três suítes. Hoje a população de classe
média e classe mais alta exige que se tenham mais banheiros” (A., 51 anos, construtor).
77
Registra-se, todavia, que entre os imóveis protegidos por tombamento ou listados para proteção na Cidade
Jardim, há edificações que passaram por intervenções para adaptação ao uso não residencial que foram
aprovadas pelo CDPCM-BH, como a casa da rua Olímpio de Assis, n.º 195 (que atualmente abriga um salão de
beleza) e a da avenida Raja Gabaglia n.° 285, cujo projeto de modificação prevê a implantação de um centro
129
Mesmo considerando que as casas são fruto de “projetos antigos”, o entrevistado não
deixa de revelar valores positivos decorrentes dessa antiguidade. Além de observar que apesar
das reformas internas as casas do bairro possuem seus estilos conservados, o entrevistado
revela que a arquitetura modernista da Cidade Jardim é, para ele, elemento característico do
lugar (A., 51 anos, construtor). Já os estilemas tradicionais lembram menos, para ele, a Cidade
Jardim.
Em que pese a percepção de que as casas do bairro necessitam de reformas para a
adaptação aos modos de vida atuais, esse entrevistado apresenta expectativa em relação ao
futuro que possui um tom conciliador entre as particularidades urbanísticas e arquitetônicas
presentes na Cidade Jardim e as novas demandas oriundas, por exemplo, da flexibilização de
uso.
O tom conciliador presente em suas percepções é revelado quando o construtor é
instigado a se posicionar em relação às restrições constantes na legislação urbanística para o
bairro, especialmente em relação à obrigatoriedade de manutenção das fachadas e da
proibição de substituição de jardins frontais por vagas de estacionamento. Tais restrições,
segundo seu ponto de vista, são positivas, mas “quando você vai alugar o pessoal pede mais
vagas, então, você não pode mexer, são só duas, três vagas, você tem que parar na rua e isso
desvaloriza. Se pudesse fazer um meio termo, melhorar, sem mexer na arquitetura externa,
mas aumentar um pouquinho a área, abrir um pouquinho para quatro, seis, oito carros [...]”
(A., 51 anos, construtor).
No que se refere às expectativas em relação à ocupação futura do bairro, o
entrevistado se manifesta contrariamente à verticalização do lugar: “acho que deveria
permanecer desse jeito. Ali é o pulmão da região toda, de Lourdes, então, se verticalizar vai
perder, a cidade perde” (A., 51 anos, construtor). Mas a horizontalidade do lugar só será
mantida, de acordo com suas expectativas, a partir da mescla do uso residencial e do não
residencial, mas não um uso não residencial qualquer. A tendência é, para ele, a de que se
instale no local um “comércio selecionado”. Especialmente em relação à casa de seus pais, os
planos são de aluguel e não de venda, o que revela uma inclinação à manutenção de vínculo
com o bairro, ainda que este vínculo apresente caráter baseado primordialmente no valor de
troca do imóvel78.
cultural.
78
Vale lembrar que a preponderância do valor de troca é incentivada pelos altos valores de comercialização dos
imóveis no bairro: uma pesquisa em site de imóveis, realizada em fevereiro de 2010, indica valores entre
R$1.800.000,00 e R$5.300.000,00 para venda de casas na Cidade Jardim.
130
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para encerrar as discussões deste estudo, faz-se necessário tecer algumas observações
sobre o bairro Cidade Jardim, sua ambiência, seus processos sócio-culturais de ocupação e
sobre as representações presentes entre a população local sobre este lugar, com o intuito de
traçar um quadro geral acerca dos assuntos discutidos.
Todavia, o tom deste quadro geral não possuirá caráter conclusivo ou apresentará um
tom prescritivo. Antes de tudo, essas considerações finais apresentarão um caráter
exploratório, reflexo das tendências futuras insinuadas no decorrer da pesquisa. Faz-se
importante registrar, ainda, que a Cidade Jardim passa por um processo de mudança no que se
refere aos usos permitidos no local, processo este que interfere diretamente no valor de troca
dos imóveis e que foi legalizado por meio da regulamentação da ADE Cidade Jardim, no ano
de 2008. Em função disso, acredita-se que as percepções da população local, exploradas ao
longo deste trabalho, também se encontram sujeitas a modificações.
Há que se registrar, ainda, a divergência de opiniões registradas entre os entrevistados
que são moradores de primeira geração e aqueles que são futuros herdeiros. Por essa
perspectiva, insinua-se também um cenário em mutação, uma vez que, nos próximos anos, há
a tendência de transferência da propriedade dos imóveis da Cidade Jardim para seus
herdeiros.
Posto isso, destaca-se que ao se questionar sobre as representações presentes entre
população local em relação à Cidade Jardim, não se buscou obter uma resposta unívoca para
esse questionamento. Pelo contrário, a intenção era a de captar os diferentes pontos de tensão
que possivelmente permeariam a proteção de um lugar nobre em Belo Horizonte. A
explanação dessas múltiplas vozes pode servir de subsídios para a compreensão de como os
processos sociais tenderão a moldar, ou pelo menos a pressionar o desenvolvimento de uma
área sujeita a diferentes mecanismos de proteção do seu patrimônio.
*****
Um bairro para a elite. Assim a Cidade Jardim foi lançada, no bojo de um projeto
governamental local que pretendia colocar Belo Horizonte nos rumos da modernização. Desse
modo, junto com outros empreendimentos de vulto criados na cidade durante as décadas de
1940 e 1950, tais como a construção da Pampulha e a abertura de novas avenidas, o
lançamento e a posterior implantação do bairro Cidade Jardim representaram,
132
para a ocupação do lugar e parâmetros de controle para o uso não residencial no local.
Permanecem as incertezas no que se refere aos aspectos da ambiência que são moldados pelo
uso não residencial, tais como o tráfego de veículos, a substituição de jardins para
estacionamentos, ou mesmo a eliminação do caráter residencial do lugar, ou em outros
termos, do estilo de vida de morar na Cidade Jardim.
135
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PBH. Lei n.° 39 de 30 de julho de 1948: estabelece normas para construção em bairros
residenciais. Belo Horizonte, 1948.
PBH. Lei n.° 220 de 24 de julho de 1951: exclui o bairro Sion das exigências da Lei n.° 39
de 30 de julho de 1948 e modifica o art. 6° da mesma lei. Belo Horizonte, 1951.
PBH. Lei n.°1849 de 26 de agosto de 1970: restabelece normas de construção da Lei n.°
39 de 30 de julho de 1948. Belo Horizonte, 1970.
140
PBH. Lei n.° 6370 de 12 de agosto de 1993: revoga leis e decretos que menciona. Belo
Horizonte, 1946.
PBH. Lei n.º 7165 de 27 de agosto de 1996: institui o Plano Diretor do município de Belo
Horizonte. Belo Horizonte, 1996a.
PBH. Lei n.º 7166/96 de 27 de agosto de 1996: estabelece normas para parcelamento,
ocupação e uso do solo urbano do município. Belo Horizonte, 1996b.
PBH. Lei n.º 8137/2000: altera as Leis n.ºs 7.165 e 7.166, ambas de 27 de agosto de 1996 e
dá outras providências. Belo Horizonte, 2000.
(Coord.). Rua Manoel Couto n.º 420: dossiê de tombamento. Belo Horizonte, 2005b.
PBH. Lei n.º 9563 de 30 de maio de 2008: dispõe sobre a regulamentação da Área de
Diretrizes Especiais da Cidade Jardim, instituída pela Lei n.° 7166/96. Belo Horizonte,
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SANTOS, Carlos Nelson F. dos. “Preservar não é tombar; renovar não é por tudo abaixo”. In:
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Paulo: Hucitec, 1996.
WAIZBORT, Leopoldo. As Aventuras de Georg Simmel. São Paulo: Editora 34, 2000.
143
2 Roteiro de entrevista - Tipo B - positivo, como sabe como são esses encontros?
25 – Qual a expectativa do sr(a) em relação ao
Proprietários de estabelecimentos futuro do bairro?
26 – Na década de 1970 havia a imagem da Cidade
Jardim como o “Bairro dos Colunáveis”.Você acha
I – Identificação do entrevistado que esta imagem permanece?
1 – Nome: 27 – Você associa alguma outra imagem ao bairro?
2 – Idade:
3 – Profissão: III - Campo do patrimônio cultural
4 – Qual bairro em que mora:
Empregados IIIA - Ressonância dos bens culturais
5 - Quantas pessoas trabalham aqui? 28- E como o sr(a) descreveria as edificações
6 – Qual sua relação com o dono do existentes no bairro a partir de seus aspectos
estabelecimento? físicos?
7 – Este imóvel já abrigou outra atividade? 29 - Em sua opinião, entre estas edificações, há
8 – Esse imóvel é: ( ) Próprio alguma que se destaque?
( ) Alugado 30 - Se fosse para escolher outra casa/edificação no
( ) Cedido bairro para trabalhar, qual o sr(a) escolheria? Qual
II Modos de Vida o motivo desta escolha?
9 - Quando instalou sua atividade no bairro? 31 - Qual a imagem que vem à sua mente quando o
10– Qual o motivo que levou o sr(a) a vir trabalhar sr(a) pensa:
no bairro Cidade Jardim? a. no prédio do Museu Histórico Abílio Barreto
11 -E como o sr(a) descreveria o bairro quando b. nos edifícios do IAPB
instalou sua atividade aqui? c. mostrar foto de casa representativa dos estilemas
12- E qual o motivo de escolha desta casa? A tradicionais
arquitetura influenciou esta escolha? d. mostrar foto de casa representativa da arquitetura
13 – Para o sr(a), o que significa “trabalhar no moderna
bairro Cidade Jardim”; possui algum significado 32 – Para o sr(a) quais os elementos que mais
especial? caracterizam o bairro (lugares, pessoas ou práticas
14 - o sr(a) gosta de trabalhar no bairro? E nesta sociais)?
edificação?
15 o sr(a) já pensou em instalar sua atividade em IIIB. Valor de uso dos bens culturais
outro bairro? 33 – O sr(a) percebe modificações nas edificações
16– Se o sr(a) tivesse que instalá-la em outro bairro, do bairro?
qual bairro seria este? 34 - Caso positivo, como o sr(a) avalia essas
17 – E desta edificação, já pensou em se mudar? modificações?
Por quê? 35 –Em relação à sua casa, você gosta da
18 - Para o sr(a) o quê diferencia este bairro em arquitetura da casa? Por quê?
relação aos outros bairros da cidade? 36 – A casa em que o sr(a) trabalha atende ao seu
19 – E em relação a outros bairros que possuem o negócio? Em quais aspectos atende e em quais não
mesmo padrão de ocupação, como o São Luiz, na atende?
Pampulha, e o Mangabeiras? 37 – O sr(a) já realizou alguma ou pretende realizar
20- Como o sr(a) descreveria, em uma frase, o alguma modificação nesta edificação?
bairro em relação à: 38 - Caso positivo, o que o sr(a) modificou ou
a. segurança pretende modificar?
b. infraestrutura 39- O que o sr(a) não alteraria de modo algum
c. trânsito nesta edificação? Por quê?
d. edificações 40 – O sr(a) já pensou em vender ou alugar esta
e. espaços públicos edificação? ( ) sim ( ) não Por quê?
f. comércio e serviços
g. festas e eventos IIIC – Política de Patrimônio Cultural
21- Como o sr(a) percebe as relações de vizinhança 41 – Para o sr(a) o quê é patrimônio histórico-
no bairro? cultural?
22- O sr(a) identifica mudanças nessas relações? 42 - Em sua opinião, Belo Horizonte possui
Quais? patrimônio histórico-cultural? Quais?
23- Quais os lugares que o sr(a) freqüenta no bairro 43 - O sr.(a) conhece alguma medida da política de
e porque os freqüenta? patrimônio da cidade de Belo Horizonte?
24- O sr(a) possui conhecimento de locais de
encontro dos moradores no bairro? Em caso 49–Se sim, qual a sua opinião sobre esta políticas?
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4 Entrevistas realizadas