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12 DE FEVEREIRO DE 2021.

Evocação
Não existem servidores. Pelo menos não como não existe a maioria das coisas da
magia, que são muitas vezes símbolos, ideias, estados de consciência. Mas não é
só nesse sentido, o conceito de servidores no Brasil é algo original, com uma
existência demarcada. Na magia do caos, este termo veio importado da tradução do
sistema de um magista inglês chamado Tommie Kelly, que é chamado 40 Servants, ou
40 Servidores. No caso, poderia ter-se traduzido servos, com um substantivo mais
claro da função de servidão dessas entidades, mas aqui foram chamados
servidores, o que acaba podendo ter outros sentidos interpretados.
Servidor no Brasil é alguém que trabalha para o governo, ganha seu espaço por
meio de concurso e, de certa forma, é livre e não corre risco de demissão, nem é
exatamente um empregado como na dinâmica privada. Essa noção pode
inconscientemente ter influenciado com que a maioria das pessoas tratassem os
servidores como algo independente, algo com poder próprio, com uma existência
própria, como um microcosmo tão complexo como o ser humano. Mas de longe não é.

O Liber Null é o livro que descreve a base teórica, prática e filosófica do que
define a magia do caos, tanto como sistema quanto como metasistema. Após a
introdução, ele explica que a magia sempre teve algumas descrições dualistas,
mão direita e esquerda, caminho das luz e das sombras, mas basicamente a ideia é
que a magia em si pode ser seguida por dois vieses principais, “pelo tom ético
do intento, pelas qualidades moralistas dos efeitos, em alta ou baixa”, mas para
simplificar e definir de forma mais “temperamental”, ele descreve como o caminho
Lux e o caminho Nox, sendo Lux mais na direção da aquisição de conhecimento e um
sentimento geral de fé no universo, enquanto Nox, ocupa-se da aquisição de poder
e reflete uma fé básica em si mesmo. Dentro do Liber Lux, existem 7 conceitos
considerados o currículo do adepto, e uma dessas 7 técnicas é a Evocação, que
consiste basicamente na “arte de lidar com seres ou entidades mágicos através de
vários atos que criam-nos ou contatam-nos e permitem que sejam conjurados ou
comandados por meio de pactos e exorcismo.”
Não há um único trecho no Liber Null ou na explicação da evocação que descreve
uma atitude subserviente, de culto, admiração ou submissão. Os termos sempre são
imperativos, “lidar”, “criar”, “contatar”, “conjurar”, “comandar”, “exorcizar”.
Você não exorciza seu deus após orar para ele, assim como não ora para um
“servidor. A Evocação é descrita como possível em 3 métodos, o de criação de
entidades, o de uso de grimórios de outros magistas e o de descoberta por meios
clarividentes. No Brasil convencionou-se a utilizar apenas uma das formas, e de
maneira completamente diferente do sistema descrito no Liber Null para a
realização de evocações. Para Carroll, a Gnose é obrigatória tanto na criação
quanto no uso de servidores.

“Em segundo lugar, a vontade e a percepção são focados tão atentamente quanto
for possível (através de algum método gnóstico) nos sigilos ou características
do elemental, para que esses tomem uma porção da força vital do magista e
comecem a levar uma existência autônoma. No caso de seres pré-existentes, essa
operação serve para conectar a entidade à vontade do magista.”

A evocação consiste em pactos, exorcismos, comandos, regras impostas pelo


magista e custos a serem cobrados da entidade. O nome antigo utilizado na época
de Austin Osman Spare, de onde se tirou a técnica caoísta de evocação, era
espírito familiar, já pelos membros da IoT era mais comumente chamados de
elementais artificiais. O Tommie Kelly, um caoísta com método próprio,
desenvolveu sua cadeia de entidades chamando-os de “servos astrais”. De toda
forma, o tratamento sempre foi nesse sentido, de autoridade mágica, não se
subserviência. Inclusive na literatura ensina-se técnicas de tortura de sigilo
para obrigar a entidade caso ela se recuse, isso não é um procedimento a ser
utilizado com um semideus ou um santo venerado, certo?!

O sistema de agradecimentos à essas entidades, descrita na literatura caoísta,


incluindo o Tommie Kelly, tem origem e inspiração no sistema de agradecimento
aos daemons na magia goética, que consistia em produzir entalhes com os sigilos,
em materiais físicos, preferencialmente moedas e metais, para que a entidade
ancorasse sua presença na Terra e de alguma forma durasse mais que nós. Não é
uma busca por culto ou fortalecimento de sua popularidade, isso nunca foi um
objetivo nem uma questão fulcral no trabalho de evocação, até porque a magia
sempre foi algo majoritamente underground, oculto e marginal. Na visão moderna,
o caoísmo ensina a agradecer colando o sigilo pela cidade, produzindo alguma
arte que corresponda à natureza daquela energia ou fazendo alguma atividade
combinada. Agradecimentos em posts de grupos de Facebook definitivamente não são
uma forma que foi recomendada em nenhuma tradição caoísta estabelecida, e
pessoalmente, considero a forma mais pobre e ingrata de devolução energética à
uma entidade que resolve algo importante e objetivo em sua vida.
Magia do caos surgiu como uma filosofia ligada às mudanças culturais que foram
muito potentes nos anos 60 e 70. As perspectivas mágicas, incluem percepções
telêmicas sobre a transição planetária para o novo Aeon, e também o sistema
mágico Zos Kia, de Austin Osman Spare, um ex-aluno de Aleister Crowley e
considerado um dos precursores do Surrealismo por sua criação da escrita e
desenho automáticos, anos antes disso ser uma prática comum dessa corrente
artística. O Zos Kia trabalha em síntese, com a busca de um ideal magístico e
artístico, processos, práticas e técnicas que pudessem elevar ao máximo o
potencial artístico e sublevar a alma do artista à uma apoteose. Isso inclui a
busca por manipulação do inconsciente profundo, ativando atavismos por meio de
técnicas como a sigilização, e o domínio e manipulação de entidades e seres
sobrenaturais por meio da evocação, o alcance da percepção expandida e profunda
e o contato com o Kia, ou essência, por meio da Gnose sexual e postura de morte,
ou seja, magia do caos diz respeito também à ser um sistema mágico artístico, e
não só prático num sentido materialista.
A criação de sigilos e servidores passa por técnicas pictórias em sua maioria
por terem sido criadas por um artista plástico, talvez se descobertas por um
músico fossem em sua maioria técnicas que envolvessem instrumentos ou resultados
sonoros, e não somente visuais. E isso é levado em consideração no Liber Null e
no Livro dos Resultados de Ray Sherwin, um dos fundadores da IoT, que descreve
que sigilos podem ser criados com mantras, movimentos corporais e quaisquer
simbolizações que sejam possíveis pra mascarar o desejo e lança-lo no
inconsciente burlando o censor psíquico.

O tratamento com servidores no Brasil tem a ver com o ambiente cultural que há
aqui, e o estabelecimento da cultura e do uso dessas entidades se confundiu
sincreticamente com a tradição católica, neopentecostal e umbandista, que ensina
a tratar entidades com reverência, com culto ou com submissão, assim como acaba
incentivando uma cultura de fast food bem típica da espiritualidade BR. Mas isso
não é uma deslegitimação nem uma invalidação da experiência que se estabeleceu
aqui, a questão é só que já se tornou outra coisa, uma nova natureza de prática
mágica e um novo tipo de trabalho evocativo, com base caoísta mas não sendo
exatamente o caoísmo tradicional e estabelecido.
O problema dessa prática é a armadilha da inércia e do conformismo, de as
pessoas se focarem só nessa visão e nesse tratamento com servidores, ao invés de
ampliar o leque e perceber a infinidade de possibilidades. Servidores são
análogos à sigilos, porque são símbolos e também são desejos codificados para
agir no inconsciente e na realidade. Mas enquanto sigilo pode ser qualquer
objetivo direto, servidores podem trabalhar livremente no astral, fazer coisas
com intencionalidade e criatividade, e buscar resultados que talvez sua mente
diretamente não fosse capaz. Isso pode ser feito tanto com a criação de uma
entidade antropomórfica com características humanas, quanto um animal, ou ser
mitológico, pode ser um constructo, um mineral, um objeto inanimado ou um
conceito abstrato. Pode existir para sempre ou ter validade, pode funcionar da
maneira que o magista definir. Mas tudo é equivalente ao estado de gnose que
cria as entidades, elas não ganham tanto poder com culto e uso público quanto
ela já sai em sua criação e concepção pelo estado de gnose. É na gnose que se
define a amplitude do poder da entidade, o que ocorre depois pode variar muito.

“Um dos primeiros resultados que colhi das minhas observações foi que os
espíritos, nada mais sendo do que as almas dos homens, não possuíam nem a plena
sabedoria, nem a ciência integral; que o saber de que dispunham se circunscrevia
ao grau, que haviam alcançado, de adiantamento, e que a opinião deles só tinha o
valor de uma opinião pessoal.” (KARDEC, 1998b, p.328)
Gnose é o estado de consciência expandida, chave para os poderes mágicos e para
manipulação direta do magista. A fé é um processo igualmente mágico, mas que
implica na utilização da devoção e da crença como motor do poder mágico, pela fé
se extrai externamente o poder, enquanto a Gnose é o poder utilizado diretamente
da essência do magista. Essa é a diferença do usuário de magia, de simpatia, o
fiel, do magista, o manipulador de realidades, o mestre do próprio destino.
Servidores públicos são basicamente um sistema de fé, de religiosidade
artificial, que é legítima mas não é a emancipação da qual o Caoísmo se fundou,
nem a prática que equivale à evolução do controle sobre a realidade e sobre as
manifestações do Caos. É válido, mas é limitado, quer que se reconheça ou não.
Evocação pode ser feita para entrar em contato com inúmeros tipos de entidades,
não só servidores, como também entidades já estabelecidas no inconsciente
coletivo de forma independente, mesmo figuras famosas que simbolizem egrégoras
inteiras. Tal conceito foi desenvolvido pelo quadrinista e roteirista
mundialmente famoso, Grant Morrison, responsável pela obra Os Invisíveis, que
inspirou o Matrix e é recheado de referências à magia do caos, e seu texto Pop
Magick, de 18 páginas, é um marco na definição dos conceitos de evocação como
algo mais livre do que a magia cerimonial ensina.
Quaisquer métodos que sofistiquem um ritual e tragam o máximo de imersão e
elementos que levam à mente à atmosfera da entidade ou energia ali acessada,
ajudam a produzir resultados. Isso pode servir desde rituais feitos para
contatar o deus da guerra Ares, até o deus da guerra Kratos, para adquirir a
sabedoria de Salomão, ou a de Gandhi. A evocação é livre no contato do que quer
que se busque contatar, mas dentro dos procedimentos que a técnica ensina.

A literatura sobre evocação é vasta. O livro "Renascer da Magia" de Kenneth


Grant relata vários exemplos de evocações feitas por Austin Osman Spare, algumas
com resultados físicos de manifestação espectral, que causaram loucura nos
espectadores. Também há o livro Autodefesa Psíquica da Dion Fortune com alguns
relatos de entidades que saíram do controle por distúrbios emocionais e
psicológicos de pessoas envolvidas com ocultismo. Assim como a teoria das tulpas
tibetanas e várias outras doutrinas. Servidores em geral são tratados muito mais
com cuidado e segurança do que com carinho e afeto, são entidades prontas para
nos levar à psicose e à loucura, se forem deixadas completamente sem controle.
Portanto, a magia de evocação é mais ampla que a prática com servidores que se
desenvolveu no Brasil, inclusive é diferente em vários outros aspectos, o que
não deslegitima a experiência nacional, só amplifica no sentido de prover um
novo modo de trabalhar as entidades, mas com o risco da homogeneização dos
conceitos caoístas e uma superficialização de toda amplitude da proposta
filosófica do sistema. Magia do caos é sobre arte, liberdade e emancipação, além
de ser sobre outras coisas também, mas é principalmente sobre isso. Usá-la só
para fins materialistas e cotidianos é legítimo, mas não te faz caoísta nem
utilizador da magia do caos, só de seus produtos e derivados.

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Publicado por:
João Paulo Balbino da Silva
Escritor, caoísta, produtor de conteúdo.

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