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P. V.

Kopnin

A Dialética como Lógica


e Teoria do Conhecimento

Tradução de

PAULO BEZERRA

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Título do original russo:

DIALEKTIKA KAK LÓGUll<A 1 TEORIYA POZNÂNIYA

Capa:

DO UN �

Diagramação:

LÉA CAULLIRAUX

Revisão:

UMBERTO F. PINTO
e REGINA BEZERRA

Dire:tos para a língua portugues:i adquiridos pela

EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASLEIRA S. A.,


Rua Muniz Barreto, 91-93
RIO DE JANEIRO - RJ,

que se reserva a propriedade desta tradução.

1978

Impresso no Brasil

Printed in Brazil
Sumário

Do INSTITUTO DE FILOSOFIA DA ACADEMIA DE CIÊNCIAS DA


URSS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ... . . . . . . . . . . . . 1
.
I' ÁVEL VASSÍLYEVl'l'CH KOPNIN (1922-1971) . . . . . . . . . . . . 7

INTRODUÇÃO 19

('.APÍTULO J

;\ CONCEPÇÃO MARXISTA-LENINISTA DA DIALÉTICA COMO


LÓGICA E TEORIA DO CONHECIMENTO . . . . . . . . . . . • 45
1 . Coincidência entre dialética, lógica e teoria do co-
nhecimento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45
2. Separação da on tol ogi a , gnosiologia, lógica e an-
tropologia filosófica na dialética marxista 55
3 . Dialética e lógica formal : duas diferentes ciências
do pensamento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 65

CAPÍTULO II

DIALÉTICA; MÉTODO DO PENSAMENTO TEÓRICO-CIENTÍFICO 91

1. O conceito de método . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 91
2. As inter-relações do método filosófico com os mé-
todos especiais de conhecimento . . . . . . . . . . . . . . 96
3. Leis e categorias : conteí1do do método dialético
marxista . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 103
4. Desenvolvimento do conhecimento como mudança
do conteúdo das categorias e seu sistema . . . . . . . . l 09

CAPÍTULO III

0 PENSAMENTO: ÜBJETO DA LÓGICA DIALÉTICA . . • . . • • • . • 12 l

1. O movimento como reflexo subjetivo e objetivo . . 12 l


2. A natureza social do pensamento : o material e o
ideal, o físico e o psíquico . . . . . . . . . . . . . . . . . . 128
3. A importância do chamado pensamento automático 1 34
4. O racional e o não-racional, o racional e o judica-
tivo, o intuitivo e o discursivo . . . . . . . . . . . . . . . 140
5. Pensamento e experiência : o sensorial e o racional,
o empírico e o teórico, o abstrato e o concreto . . 1 50
6. A verdade objetiva d o pensamento : o absolut_o e
o relativo, o teórico e o prático . . .. . . . . . . . . . . 164
7. As contradições no pensamento e as suas fontes 172
CAPÍTULO IV

A DIALÉTICA DAS FORMAS DE PENSAMENTO • . . . • . • • • • • • 183

1 . O histórico e o lógico. O conceito de forma de


pensamento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 183
2. A inter-relação das formas de pensamento . . . . . . 188
3. Conceito, juízo e dedução : formas do movimento
do pensamento no sentido da verdade . . . . . . . . . 1 97

CAPÍTULO V

A DIALÉTICA E O PROCESSO DE INVESTIGAÇÃO CIENTÍFICA 222

1 . A investigação científica como objeto de análise


lógica . .. . . . .. . . . .. . .. . . . . . .... . .... .. . . ..
. 222
2. Por onde começar? Do problema à teoria . . . . . . 228
3. Hipótese : forma de desenvolvimento da ciência . . 239
4 . Hipótese e verdade. Probabilidade e autenticidade 246
5. Fatores lógicos e extralógicos de formação e desen-
volvimento de uma hipótese . . . . . . . . . . . . . . . . . 263
6. Verificação e demonstração da hipótese e da teoria 282

CAPÍTULO VI
FUNDAMENTOS Lómco-GNOSIOLÓGICOS DA R EALIZAÇÃO PRÁ-
TICA DO CONHECIMENTO . . . ... . . .. . . . . . . .
• . • • • . • • 299

1. O conhecimento científico, sua linguagem e suas


peculiaridades . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. 299
2. A idéia como forma suprema de convergência do
pensamento com o objeto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3 09
3. Formas de realização da idéia . . . . . . . . . . . . . . . 321
4. O lugar da idéia na dialética do sujeito e do objeto 333
5. !"f� ios subjetivos de objetivação e realização da
_ . . . . . . . . .. . . . .. . ... . ... .. . . .. . . . . .....
1de1a 345
de Filosofia da
Do Instituto
Academia. de Ciências da URSS

Ü Instituto de Filosofia da Academia de Ciências da URSS


resolveu editar em dois volumes as obras filosóficas escolhidas do
seu falecido diretor Pável Vassílyevitch Kopnin, notável filósofo
soviético, doutor em ciências filosóficas, membro correspondente da
Academia de Ci ências da URSS e membro efetivo da Academia de
Ciências da Ucrânia. Apesar de su a vida breve, Kopnin conseguiu
criar muitas obras de extraordinário interesse sobre filosofia marxista.
Foi sobretudo fecundo seu último decênio de vida ( 1960-1970) ,
durante o qual ele escreveu as suas principais obras .
·O interesse principal de Kopnin esteve voltado para os problemas
atuais da dialética como lógica e metodologia do conhecimento cien­
tífico, da lógica e metodologi a da ciência. Em torno dessa orientação
filosófico-científica enquanto núcleo central, concentraram-se outros
estudos relativos principalmente aos problemas teórico-cognitivos da
ciência moderna, focalizados igualmente das posições da dial é tica
como lógica e teoria do conhecimento do materialismo. Por isto todo
o círculo de suas obras pode ser englobado numa problemática geral
sob.a denominação de" Análise filosófica do conhecimento científico " .
Segundo o ,plano do Instituto de Filosofia da A. C. da URSS,
as obras filosóficas escolhid as de P . V. Kopnin serão constituídas

1
por três livros interiormente relacionados entre s i e centrados na
referida problemática. Os dois primeiros são constituídos por esta
edição em dois volumes, publicada pela editora acadêmica "N aúka".
O terceiro livro, Problemas da lógica e metodologia da ciêincia, deverá
sair em edição separada, a ser publicada pela editora " Misl".
O primeiro dos dois volumes compreende a monografia reelabo­
rada pelo próprio autor, que em 1969 foi publicada por esta mesm a
editora, em comemoração do centenário de nascimento de Lênin, sob
o título de As idéias filosóficas de V. 1. Lênin e a lógica. Na ,prepa­
ração da 21J. edição dessa monografia ( e simultaneamente para a sua
edição em línguas estrangeiras pela Editora Progresso ) , o autor fez
sérias mudanças e ampliou o seu conteúdo, supondo, por este moti­
vo, dar-lhe um novo título : Dialética. Lógica. Ciência. Considerando
que esse título é mais adequado ao segundo livro dos dois primeiros
volumes, que engloba artigos filosóficos escolhidos de Kopnin, a
redação deu ao primeiro volume um título diferente, que corresponde
ao seu conteúdo ampliado : Dialética coma lógica e teoria do conhe­
cimento. Este ela tomou de empr é stimo ao novo título do primeiro
capítulo da monografia, dado pelo próprio autor.
Ao pre,parar este livro para uma nova edição, Kopnin introduziu
nele mudanças substanciais, levando em conta os pareceres recebidos
e as d iscussões realizadas. O autor retirou vários problemas cuja
formulação e solução provocaram crítica especialmente forte, acres­
centando, ao mesmo tempo, partes em que se discutem o estado
atu al e as perspectivas de desenvolvimento da metodologia marxista
da ciência. Quase todas as partes do livro sofreram mudanças. Como
resultado, o livro ficou mais completo e ganhou coerência lógica.
Agora o livro focaliza as questões de princípio da lógica dialé ti­
ca marxista : sua estrutura, a possibilidade de construção de um
sistem a de categorias da dialética materialista e os princípios d�ssa
construção, a inter-relação entre a lógica dialética e a formal, o lugar
da lógica dialética no sistema da metodologia das ciências. O autor
faz uma análise minuciosa de problemas da teoria da dialética marxis­
ta como o abstrato e o concreto, o lógico e o histórico, o empírico
e o teórico, juízo e razão, etc. Uma parte especial do livro focaliza
o papel da dial é tica marxista no processo do conhecimento científico .
O primeiro livro, no qual os problemas da lógica dial ética são
estudados no nível moderno, não é apenas o último livro escrito por
Kopnin como um de seus trabalhos fundamentais. Neste livro o autor
faz um balanço de seu trabalho no campo da dialé tica marxista
enquanto metodologi a da ciência .

2
O segundo livro, como já dissemos, é constituído por artigos
escolhidos de Kopnin sobre filosofia, publicados principalmente pela
revista Voprósi Filosójii, de cuja redação ele foi membro durante
muitos anos, bem como em diversas coletâneas e trabalhos de grupo.
O último artigo " A lógica da ciência e as vias do seu desenvolvi­
mento" já foi publicado após a morte do autor .
Ante a redação da edição em dois volumes colocavam-se duas
possibilidades : a primeira era colocar todos os artigos escolhidos de
Kopnin numa sucessão cronológica de publicação ; a segunda, agrupá­
los tematicamente, dividindo-os em várias partes. Para satisfazer os
i nteresses dos leitores, adotou-se a segunda variante. Os artigos foram
distribuídos em seis partes, sendo que alguns artigos pequenos, de
temática semelhante, foram unificados num artigo maior.
A primeira parte do segundo livro compreende artigos referen­
tes à etapa leninista no desenvolvimento da filosofia marxista : o
materialismo dialético. Os artigos da segunda parte focalizam questões
da gnosiologia e lógica do conhecimento científico, os problemas da
lógica dialética, relacionados com a ciência contemporânea . A
terceira parte engloba artigos unificados na temática pensamento e
linguagem. Aqui novamente se focalizam, se bem que em outro ângu­
lo de visão, os problemas da lógica dialética em sua relação com a
análise dos processos do pensamento científico e da linguagem da
ciência.
A quarta parte é constituída de artigos referentes às questões
metodológicas da história da filosofia em sua conexão com a atuali­
dade, bem como relativos ao problema do objeto da filosofia sobre
o qual se realizaram e continuam se realizando discussões entre os
filósofos soviéticos.
A quinta parte é a mais heterogênea pelo conteúdo. Engloba os
problemas que constituem o ponto de junção entre a filosofia, as
ciências naturais, a técnica e a sociedade (o homem ) . Era justamente
nessa linha que ultimamente se desenvolviam os interesses científicos
de Kopnin, especialmente no que se refere à necessidade de uma
análise marxista multilateral da revolução técnico-científica que se
desenvolve na sociedade moderna.
O fato de o congresso internacional de filosofia que se reuniu
em Varna (Bulgária) em 1973 ter escolhido como tema "O homem.
A ciência. A técnica" se constituiu em motivo imediato que levou
Kopnin a escrever uma série de artigos. Membro do Comitê Executi­
vo da Federação Internacional de Filosofia e, deste modo, um dos or­
ganizadores do programa do congresso, contribuiu ativamente para que
a filosofia marxista fosse representada no congresso de modo condig-

3
no e atual . Por este motivo, no simpósio ordinário soviético-tcheco-es­
lovaco, realizado no outono de 1970 em Esmolenitsa (Tcheco-Eslo­
váq uia ) , ele propôs q ue se preparasse e se publicasse até o congresso
um trabalho coletivo sob o tema " O homem . A ciência. A técnica",
que se apresentasse como experiência de análise marxista da revolução
técnico-científica. Essa proposta foi calorosamente apoiada e aprovad a
por un ani m idade pelos participantes do simpósio . Decidiu-se realizar
uma pesquisa em três aspectos: 1 ) técnico-científico-natural, 2) social
e 3 ) filosófico. O próprio Kopnin a ssum iu a responsab il idade de
diri gir a elaboração do último aspecto ( o filosófico ) . N aquele m omen­
to ele sugeriu muitas idéias interessantes, que i ndicavam sua intenção
de mostrar a originalidade do estilo e a e strutura do pen samen to
científico e humano dos nossos dias, no qual se processam profundos
avanços e mudanç as sob o i m pacto direto e imediato da revol ução
técnico-científica. Tudo isto foi pensado e expresso por Kopnin alguns
meses antes da sua morte; porém, pelo maior dos infortúnios, ele
mesmo não p§de participar da realização desse plano. Na quin.ta
parte do segu ndo livro há apenas alusões ao enorme trabalho que
Kopnin tencionava realizar num futuro pró x imo e que foi tão impie- ·

dosamente frustrado pela morte preco ce.


Por último, a sexta p arte tem caráter um ta nto espe cial. :B con sti­
tuída apenas de um volumoso artigo, que analisa as concepções
lógicas do lógico de Kaza n , N. A. V a ssílyev . Essa parte tem c omo
título " Da história da lógica na Rússia" e é um de seus primeiros
trabalhos como professor da Universidade de T omsk ( 1950) .
· O terceiro livro, organicamente cont íguo aos dois referidos
volumes, intitula-se Problemas da !Ó'gica e metodologia da ciência,
e está planej ado para publicação pela editora " Misl" e engloba duas
pequenas monografias de P. V. Kopnin, publicadas em Kíev pela "Nau­
ikova Dumka", editora de Academia de Ciências da Ucrânia, cons­
tituindo hoje uma raridade bibliográfica. Elas focalizam de diferen­
tes aspectos o principal círculo de questões lógicas e metodológic as
do conhecimento científico moderno, que sempre constituiu o centro
da atenção de Kopnin.
A redaç ã o dos três livros publicado s pelas editoras " Naúka " e
" Misl " considerou que sua tarefa é agrupar, d e maneira tematica­
mente correta, a matéria variada e de conteúdo bastante rlca, que
representa a herança filosófica publi cada de Kopnin. Procurou, na
medida do possível e mediante cortes, abolir as repetiçõ es que se
observam ( isto se refere principalmente ao segundo livro da edição
em dois v olumes ) , evitando ao mesmo tempo grandes modificações
do texto . No entanto algumas repetições inevitáveis, se não textuais

4
ao menos semãnttcas, não puderam ser abolidas , embora não dificul­
tem a leitura de artigos isolados, escritos pelo autor de maneira
sempre brilh an t e por forma e interessante por conteúdo.
Além disso, visando à unificação da estrutura das partes do
segundo livro da edição em dois volumes, a redação dividiu em
parágrafos e deu título a alguns artigos grandes não subdivididos pelo
autor .
Publicam-se neste livro um ensaio biográfico-científico "Pável
Vassílyevitch Kopni n '', escrito por D. P. Gorsky e V. A. Léktorsky,
e uma " B i ografia dos trabalhos científicos de P. V. Kopnin'', com­
posta pelos colaboradores do gabinete científico do Instituto de Filo­
sofia da Academia de Ciências da Ucrânia, bem como por Z. V.
Bakhtina, colaboradora científica do Instituto de Filosofia da Acade­
mia de Ciências da URSS.
A redação dos três livros coube ao colegiado redator formado
por B. M . Kédrov (presidente), os doutores em ciências filosóficas
V. M. Boguslavsky, D . P. Gorsky, P. V. Tavaniets e V. A. Léktorsky,
candidato a doutor em ciências filosóficas .
Pável Vassílyevitch Kopnin
(1922-1971)

PÁVEL VASSÍLYEVITCH KoPNIN nasceu em 1922 na aldeia de


Gjel , região de Mascou, numa família camponesa. Após concluir
seus estudos secundários em 193 9, ingressou na faculdade de filoso­
fia do Instituto Moscovita de Filosofia e Literatura. Nos primeiros
anos de faculdade já revela uma apaixonante atração pelas ciências
f'ilosóficas, que mais tarde se converte num amor grande e sólido
pela especialidade escolhida e não o trai durante toda a sua vida
breve .porém notável .
O trabalho intenso e fecundo de P. V. Kopni n no campo da
filosofi a foi interrompido em 1941 com o início da Grande Guerra
Pátria. Em 1943 ele recomeça as suas aulas na faculdade de filosofia
da Universidade de Mascou (MGU ) , sem deixar de servir ao exército.
Conclui sua formação filosófica na Universidade de Mascou
( 1947) e no mestrado do Instituto de Pedagogia de Mascou . Sob a
orientação do professor B . A. Fokht, escreve sua tese de candidato
a doutor sob o título "A luta entre o materialismo e o idealismo

no desenvolvimento da doutrina da essência do juízo " , tese que defen­

deu com sucesso em 1 947. Depois de trabalhar como auxiliar de


ensino e em seguida como titular da cadeira de filosofia na Academia
de Ciências Sociais do CC do PCUS, Kopnin é enviado a trabalhar

.7
em Tomsk, onde chefia a cátedra de filosofi a da Unvcrsidade ele
Tomsk. Nesse período de atividade, concentra seus interesses cientí­
ficos em torno dos problemas filosóficos da lógica formal e suas
aplicações, da teoria do conhecimento do materialismo dialé tico, o
que pode ser visto pelos seguinte s trabalhos publicados entre 1947
e 1958 : "A colocação l ógico-formal e dialética de um problema",
" Algumas questões da teori a do silogism o ", "A es t r utu ra e a essê nci a
de um juízo'' , "As concepções lógicas de N. A. Vassílycv", "A
classificação dos juízos ", "As leis elementares da lógica e a sua
importância'' , " V. I. Lênin sobre a capacidade d o reflexo como p ro ­
priedade da matéria" e outros. Em 195 1 publica cm co-autoria com
o professor I. N. óssipov sua primeira monografi a : Q11estc1es funda­
mentais da teoria do diagnóstico ( Moscou , Medgiz ) .
Nesta monografia tenta-se analisar uma série de pro ble m a s da
metodologia da ciência, tomando-se como exemplo a medicina, estu­
dando-se n ão só o papel metodológico de vários procedimentos lógico­
formais ( métodos de construção de hipóteses diagnósticas, o lugar
da analogia no processo di agnóstico, a estrutura lógica das deduções
n a colocação do diagnóstico formal de uma doença, os métodos do
diagnóstico provável e fidedigno, etc . ) como m ostrando o importan­
tíssimo papel da lógica dialética no processo do pens a m ento cientí­
fico ( a análise da inter-relação, e v ol u ç ã o e caráter contraditório dos
sintomas, o estabeleciment o da verdade objetiva no processo do
diagnóstico, etc.). Esta monografia teve muita repercussão na impren­
sa tanto entre os médicos como entre os filósofos. A participação de
Kopnin neste trabalho significou para ele a passagem à pesquisa
de um círculo m ais amplo de problemas : as questões da lógica dialé­
t: c a , da metodologia da ciênci a .
Em Tomsk, Kopnin começa a escrever a sua tese de doutorado :
As fornras de pensamento e seu papel no conhecimento. Este trabalho
é concluído no Instituto de Filosofia da Academ i a de Ciências da
URSS e defendido com êxito em 1955 no Conselho de Ciência do
mesmo instituto. A tese de doutorado de Kopn in se constitui não só
numa interessante e original investigação científica dos problemas
fundamentais da teoria do conhecimento da f i lo so fia materialista e
da lógica di _alética. Nela se esboça a problemática que se converterá
na medula de todas as grandes publicações posteriores do seu autor.
Após a defesa da tese de doutoramento, Kopnin dirige por algum
tempo a cátedra de filosofi a da Academia de Ci�ncias da URSS,
passando em seguida a chefiar o setor de materialismo dialético do
Instituto de Filosofia da mesma academia.

8
De 1954 a 1957 seus interesses científicos se concentram intei­
ramente em torno dos problemas da teoria do conhecimento, da
lógica dialética e da metodologia das ciências. Isto pade ser testemu­
nhado por uma série de artigos por ele publicados : "A hipótese
como forma de evolução da ciên cia ", " O lugar e a importância da
hipótese no conhecimento " , "O experimento e seu papel no conheci­
mento'', "As formas de pensamento e sua inter-relação no conhe­
cimento'', "O abstrato e o concreto'', "A unidade entre a dial ética, a
l óg i c a e a teoria do conhecimento", etc.
Em 1 958 muda-se para Kíev, onde passa a dirigir inicialmente
a cadeira de filosofia no Instituto Politécnico local, chefiando em
seguida a cadeira de materialismo dialético e histórico na Universi­
dade de Kíev. De 1962 a 1968 é diretor do Instituto de Filosofia
da Academia de Ciências da URSS. E m 1 967 é eleito acadêmico,
membro da Academia de Ciências da Ucrânia.
O período vivido em Kíev é extremamente fecundo na atividade
científica de P. V. Kopnin. Nesse decênio publica os seguintes estu­
dos em forma de monografia : Dialética como lógica ( Universidade
de Kíev, 1961 ), Hipótese e conhecimento na realidade ( Kíev, Gospo­
l it i zd a t URSS, 1962), A idéia como forma de pensamento (Univer­
sidade de Kíev, 1 963 ), Introdução à gnosiologia marxista (Kiev,
Naúkova Dumka, 1966), Fundamentos lógicos da ciência*
(Kiev, 1968).
Algumas idéias fundamentais comuns unificam o estudo dos
m ais diversos problemas do materialismo dialético, estudo realizado
por Kopnin com sentido variado, inclusive naqueles trabalhos que
versam sobre problemas especiais da ciência . Essas idéias podem s e r
formuladas da seguinte maneira. Só tendo por base mostrar n a gnosio­
Jogia e metodologia marxista o seu núcleo que pode se r interpretado
como lógica dialética é possível a aplicação coerente do princípio
Jeninista do reflexo em relação ao conhecimento científico ; só nesta
hase é possível explicar as relações complexas e contraditórias entre
o conhecimento científico e a realidade ; só nesta base é possível
explicar as verdadeiras relações entre a filosofia e as ciências especí­
ficas (inclusive as lógicas dialética e formal ) , o estabelecimento de
vias e condições de obtenção do conhecimento verdadeiro.
Em todas as suas obras Kopnin defende a tese da eficiência e
produtividade da metodologia marxista-leninista, da lógica dialética

* Publicado no Brasil pela Editora Civillização Brasileita (N. do T.).

9
que, segundo a profunda conv1cçao do autor, é o mais importante
componente de uma concepção filosófica do mundo. Entendida como
lógica dialética, a dialética é dotada de imensas potencial idades
metodo lógicas e heurísticas. A lógica dialética não surge para subs­
tituir a lógica formal ; ambas estudam o processo de pensamento e
conhecimento em aspectos diverso s de posições diferentes .
A colocação leninista da questão da coincidência entre a dialé­
tica, a lógica e a teoria do conhecimento na filosofia marxista é um
dos problemas a que Kopnin dá maior atenção em sua obra. Para
ele, essa idéia leninista não é uma frase lançada ao acaso mas uma
das idéias mais importantes no marxismo. A novidade de princípio
da colocação leninista do problema consiste em que ela parte da
existência de uma ciência filosófica - a dialética materialista - que
exerce, simultaneamente, as funções de ontologia, gnosiologia e lógi­
ca, sem ser nenhuma das três na concepção anterior; na filosofia
marx ista não há partes in dependentes com leis diferentes mas uma
ciência com as mesmas leis, que são as leis do ser e do conhecimento
( pensamento ) . Ao estudar o ser, descobrindo as leis do mundo obje­
tivo, a filosofia marxista mostra a importância metodológica dessas
leis, seu papel no conhecimento e na atividade p rática e vice-vers a ;
a o estudar o processo do pensamento e as leis do seu movimento, o
m aterialismo dialético revela o conteúdo das leis e das formas do
pensamento (o que elas refletem e como refletem no mundo
objetivo.
A análise da tese leninista sobre a coincidência entre a dialética,
a lógica e a teoria do conhecimento na filosofia marxista é ponto
de partida para todo o ciclo de estudos de Kopnin no campo da
metodologia e da lógica da ciência. Neste sentido seus trabalhos se
caracterizam pela colocação dos novos problemas complexos cuj a
importância é determinada pelo estado da ciência moderna, da filoso­
fia e da prática social.
Neste sentido podemos apontar, por exemplo, a sua elaboração
original do problema dos níveis empírico e teórico de pensamento
em sua atitude face aos momentos sensorial e racional da atividade
cognitiva (Dialética como lógica, Introdução à g n osio logia marxista),
a análise da inter-relação entre representação e criação (Introdução
à gnosialogia marxista, Fundamentos lógicos da ciência), o estudo
do problema do chamado pensamento mecânico e, em termos mais
a mplos, do problema da relação entre o homem e a técnica em face
d o desenvolvimento da cibernética (Dialética como lógica, Introdu­
ção à gnosiologia ma rxista ), a análise minuciosa da hipótese - seu
papel no desep.volvimento do conhecimento científico, sua estrutura

10
interna, sua inter-relação com a teoria ( "Hipótese e conhecimento
da realidade", seu estudo pioneiro, em nossa literatura filosófica, das
vias e do papel desempenhado no sistema da investigação científica
por uma formação tão específica como a idéia (A idéia como forma
de pensamento). P. V. Kopnin foi o primeiro a colocar na filosofia
soviética o :problema da necessidade de estudar a s formas de realiza­
ção prática do conhecimento (Introdução à gnosiologia marxista) e
neste sentido propôs uma série de idéias fecundas. Constituem grande
interesse científico as suas considerações sobre o papel das catego­
ri as da dialética materialista no processo de investigação científica.
Kopnin se interessava e, pode-se dizer, se preocupava p rofunda­
m ente com a questão da influência da revolução técnico-científica
sobre a estrutura lógica do pensamento científico atual . Achava que
a revolução na ciência, como parte da revolução técnico-científica
geral , é acompanh ada da mudança da rede de categoi'ias da ciência.
Neste sentido, ressaltava, não se pode enriquecer as categorias filosó­
ficas simplesmente in cluindo entre elas os conceitos gerais da ciência
moderna.
Enfatizava Kopnin que a construção do sistema de categorias
da dialética materialista não se reduz à formulação dos ,:pr incípios e
à simples distribu ição das categorias em colunas sob a forma de um
quadro qual q uer mas implica no desenvolvimento, sob. forma sintéti­
ca, do próprio conteúdo do materialismo dialético, o que subentende
a consideração das peculiaridades do conhecimento científico moder­
no. Por isto o sistema de categorias da lógica dialética m arxista não
·
pode ser uma simples adaptação da Ciência da lógica, de Hegel.
Kopnin sempre enfatizou a grande importância ·da lógica dialé­
tica para a metodologia do conhecimento científico . No entanto
entendia perfei tamente q ue a elucidação das leis gerais. da mudança
e da evolução do conhecimento científico não esgota toda a proble­
mática da metodologia da ciência. Não é por acaso que cabe antes
de tudo a ele o mérito de haver desenvolvido na URSS duas novas
correntes filosóficas no estudo do conhecimento científico: a lógica
da investigação científica, que tem por fim mostrar as leis sinctôni­
cas do conhecimento aplicando a este o dispositivo da lógica simbó­
lica, e a lógica das investigações sistêmico-estruturais. Neste sentido
indicava que tanto a dialética como a lógica formal representam os
d ois métodos básicos de análise do conhecimento Científico, que
" ambas são sistemas lógicos : tanto a dialética como a lógica formal
funcionam produtivamente " . "A ciência necessita quer de regras
rigorosas de dedução, quer de sistemas de categorias que sirvam de

11
base à i m ag ina ç ã o pr odu t i v a, à a ti vid ade criadora do pensamento no
dom ínio dos novos objetos da realidade" (p . 80).
A lógica da ciência, salientava Kopnin, n ão é alguma ciência
isolada mas u ma fo rm a or i gin al de integraç ão do conhecimento em
torno de um objeto que é a ciê nci a. " A qui se obtém a unidade do
co nhe ci m en to não mediante a criação de um m ét odo uno de i n ve s ti·
gação desse objeto (aqui, em verdade, há dois m é todo s : a dia lé t i c a
e a lógica formal ) mas incorpor ando os resultados obtidos a u m
só objeto: o conhecimento científico e seu s diversos aspectos (Op.
cit. p. 259). Ass im , na lógica moderna da ciência (ou metodologia
Ia ci ência) , devemos d istinguir vários níveis, camadas e aspectos
diversos da investigação, uns de car á ter filosófico de pri nc ípi o (a
dialética materialista) e outros c om s i gnific ad o de análise espe c ial­
mente científica (a lógica f orm al contemporânea). Neste sentido,
Ko pn i n enf atiz av a q u e as catego r ia s da dialética e os cálculos da
lógica formal deserflpenham papéis d ifer en tes na lógica da ciência.
"A d ial é ti ca como m é todo de análise do c onhe cimento científico
determina também o lugar dos meios l óg ico -f o rm ais na análise da
ciência" (Op. cit.).
Ao que parece, a concepção da estru tura co m pl ex a e d o status
da metodologia m od e rna da ciência, defendida por Kop n in em s eu s
trabalhos, é a qu e cm maior m ed i d a corresponde ao atual estado de
coisas nesse campo do co nh e cime nt o que se desenvolve com cele·
ridade.
Como se sabe, o desenvolvimento das ciências fundamentais,
seu caráter abstrato e " ultr apass a n t e " levantaram acentuadamente a
questão do seu caráter não-contraditório (em termos fo rm a is). Vár io s
f ilós ofos de m onst raram, nes te sentido, que a aplicação d o p r i n cípi o
formal de identidade está relacionada com a negação das c ontrad i­
ções dialéticas. Kopnin faz uma crítica convincente desse ponto de
vista, mostrando que as c ontr a diçõ e s formais e as dialéticas são
c ont rad i ções diferentes . � pre ciso eliminar as p r imeiras , enquanto as
segund a s são inevitavelmente determ inadas por contradições obj et i­
vas, pelo processo de d es en volvim en to do próprio co n h e c imen to. "�
ne cess á ri o distinguir rigorosamente as d iv ergê n c i a s entre os co nc e i t os
que são reflexo das contradições obj etiv as no movimento das coisas,
con tr adições que surgem sob o movimento do conceito no sentido
da apreensão da essência do obj eto , e as contradiç õe s lóg ica s que
surgem como resultado d a infração das leis d a l ó g i ca formal, não
refletem a d ialét ic a do m ovimen to do mundo obje t i v o e são trazidas
pelo sujei to. A prá t ica é o critério que p er m i te distinguir as co n tra­
di ç õe s d i alé ti c as obj et i v as das subjetivas, que não refletem as con-

12
tradições nos objetos. Só à base da atividade prática o homem esta­
belece o caráter das contradições no pensamento, elimina umas que
não levam à obtenção da verdade obj etiva e desenvolve outras em
que se expressa a dialética objetiva " (Dialética como lógica, p. 213) .
:E: sabido que vários filósofos soviéticos fizeram em seu tempo
uma "ursada" às ciências biológica, cibernética, lógica matemática,
etc., com suas concepções falsas das posições da filosofia naturalista,
o que nas condições atuais de gigantesco progresso dos conhecimen­
tos e estreita especialização significa, em essência, um pronunciamen­
to de posições da ignorância.
Kopnin critica severamente as tentativas de ressuscitar em nos­
sos dias a filosofia naturalista. Mostra que em determinada etapa
histórica do conhecimento a humanidade deve à filosofia n aturalista
muitas idéias fecundas no campo da filosofia e das c:ências naturais
(como, por exemplo, as idéias filosófico-naturalistas e ontológicas de
Leibniz anteciparam em certo sentido muitas idéias da ciência moder­
na ) . No entanto, à medida que evoluíam as ciências naturais, a
filosofia naturalista se torn ava cada vez mais reacionária com seus
métodos e idéias puramente especulativos. Kopnin distingue a espe­
culação filosófico-naturalista da especulação atual, que é " um meio
de penetração na essência das coisas que não se baseia imediatamente
na experiência e na dedução lógica rigorosa" ( Op . cit . , p. 31) ,
especulação que tem função puramente heurística e cuj o êxito de
aplicação é garantido por alta qualificação especial. O tempo da
filosofia naturalista j á passou : hoje ela cede lugar à união da filoso­
fia com as ciências naturais. Essa união é fecunda para as ciências
naturais, pois a filosofia lhes fornece o s métodos lógicos gerais de
generalização e interpretação dos dados científicos capazes de prote­
gê-las con tra a penetração do idealismo e da metafísica ; já o estudo
das ciências especiais pelos filósofos cria a base para o desenvolvi­
mento do materialismo dialético .
De 1968 até a sua morte, em 197 1, Kopnin foi diretor d o Insti­
tuto de Filosofia da Academia de C i ências da URSS, da qual foi
ainda membro correspondente a partir de 1970.
O último período de atividade de Kopnin é dedicado, por um
lado, ao balanço dos problemas da lógica dialética, da metodologia
da ciência por ele elaborados e, por outro, à colocação de uma
série de questões novas, ditadas pela evolução da filosofia, ciência,
prática social e ideológica . Vem à luz sua enriquecedora monografia
As idéia.s filosóficas de V. 1. Lênin e a lógica (Moscou, 1969 ) , publi­
ca-se uma sfrie de artigos fundamentais na Voprósi Filosófii ( Ques-

13
tões de Filosofia), Priroda, Pravda, em publicações da Academia de
Ciências da URSS.
Entre os problemas que nesse período merecem atenção especial
de Kopnin, situa-se a questão da especificidade da inve st ig ação filo­
sófica, do objeto da filosofia marxista-leninista e seu lugar no sis­
tema das ciências atuais .
É sabido que da filosofia germinam permanentemente os cam­
pos do conhecimento que foram os primeiros a lhe assegurar a ligação
com as ciências e a prática social. É verdade que enquanto compen­
sação pelo rompimento com ciências como a psicologia e a lógica
formal, que alimentaram a árvore filosófica com generalizações refe­
rentes aos mecanismos cognitivos do homem, a filosofia recebeu os
"problemas filosóficos da física'', os "problemas filosóficos da quí­
mica", os "problemas filosóficos da cibernética", os "problemas
filosóficos da biônica", etc. Mas isto não retira a questão de quais os
problemas que devem ser denominados filosóficos .

.A incompreensão do objeto da filosofia, do papel desta no


desenvolvimento de c:ências especiais levou a que, entre os· livros
sobre filosofia, surgissem, por um lado, livros sobre problemas filosó­
ficos das ciências especiais em que é difícil encontrar questões filosófi­
cas por mais minucioso que seja o estudo destas e, p o r outro, livros
"puramente filosóficos ", dissociados da prática c ien tífi ca e s o c ial
contemporânea.
A questão da especificidade da investigação filo s óf i c a é sobre­
tudo aguda nas condições atuais, quando se descobre que parte dos
problemas da lógica e da metodologia da ciência começa a ser
resolvida por meios especialmente científicos. Essa circunstância é
alvo de especulações do positivismo, que afirma ser a filosofia suphm­
tada por uma soma de ciências especiais que resolvem quer os
problemas da estrutura da realidade, quer os problemas da metodo-
logia científica. .
Em seus trabalhos, Kopni n demonstrou a importante tese segun­
do a qual, afora a teoria do conhecimento e a dialética entendida
como lógica dialética (o que constitui o fundamento da metodologia
do conhecimento científico), a filosofia enquanto forma de consciên­
cia social compreende todo um espectro de relações entre o homem
social e a realidade que o cerca, rel ações essas que se manifestam
na apreciação da filosofia pelo homem, nos idea i s sociais.
Kopnin enfatizava que na fi l o s ofia soviética não se pode opor
a concepção de mundo ao método; entre eles não há contradição.
A concepção de mundo determina também o nosso método: com o
mesmo grau de precisão e profundidade com que a co n cepção de

14
mundo reflete as leis objetivas, é preciso, profundo e perfeito o
método do conhecimento científico. Tão universal como as leis apre­
endidas é o método de conhecimento nelas baseado. "As novas teses
filosóficas - escreveu ele - surgem corno resultado da generaliza­
ção das conquistas das ciências naturais e sociais. Se a filosofia se
desliga da prática do desenvolvimento do conhecimento científico, a
concepção de mundo deixa de ser um método eficiente de conheci­
mento" (Op. cit., p. 59) .
Ao discutir a questão da especificidade do conhecimento filosó­
fico, Kopnin expôs muitas considerações interessantes e argutas acer­
ca da natureza das abstrações filosóficas, das :peculiaridades <los
problemas filosóficos, dos métodos de raciocínio na filosofia científi­
ca, em suma, expôs considerações sobre aqueles problemas que
ganham agudeza cada vez maior face à relação de reciprocidade
entre a filosofia e as ciências especiais, que assume maior complexi­
dade à medida que avança a revolução técnico-científica. E temos de
admitir que esses problemas vão atrair cada vez mais a atenção dos
marxistas. Cabe observar que nem tudo é indiscutível nas concepções
kopninianas da especificidade dos conhecimentos' filosóficos e do
objeto da filosofia marxista-leninista. Algumas teses que ele formu­
lou sobre essa problemática, sobretudo em seu livro As idéias de
V. 1. Lênin e a lógica, não são inteiramente precisas e demonstráveis,
fato que foi observado no processo de discussão dessa obra. P. V.
Kopnin tinha consciência d e que muitos esforços ainda teriam de ser
empreendidos para se chegar a uma solução autenticamente científica
da problemática relacionada com a concepção da especificidade do
conhecimento filosófico. De boa vontade levava em conta todas as
críticas sensatas, procurava corrigir os erros nas formulações, reexa­
minava toda essa grande e complexa problemática.
Reconhecendo a existência de alguns desperdícios na discussão
do problema da especificidade do conhecimento filosófico nas últimas
obras de Kopnin, não podemos omitir a observação de que essa
questão muito importante para a filosofia foi por ele levantada, com
profundidade, criatividade e com vistas à solução de tarefas de
importância prática (o objeto de estudo dos futuros filósofos, o estilo
dos trabalhos científicos em filosofia, etc.). Ultimamente ele escrevia
um livro sobre a especificidade do conhecimento filosófico, em que
se propunha levar em conta os resultados da discussão desse proble­

ma na filosofia soviética dos últimos anos. A morte precoce o impe­

diu de realizar esse plano.

15
P. V. Kopnin revelou suas habilidades de organizador cm toda
a sua plenitude quando chefiou o Instituto de Filosofia da Academia
de Ciências da Ucrânia e, posteriormente, o Instituto de Filosofia da
Academia de Ciências da URSS. Sob sua orientação e com sua par­
ticipação direta, vários grupos criaram muitos trabalhos sobre pro­
blemas atuais da filosofia marxista-leninista (Os problemas do pen­
samento na ciência moderna, Moscou, 1964; A lógica da pesquisa
científica, Moscou, 1965 ) .
P. V. Kopnin é um dos autores do livro Fundamentos da filoso­
fia marxista (editado em 1 9 5 8 e 1971). Foi membro da redação da
Enciclopédia de Filosofia, das revistas Voprósi Filosáfii e Fi/osófskie
Naúki (Ciências Filosóficas) .
Muito foi feito por P. V. Kopnin na organização dos grupos
científicos, nos quais os filósofos da URSS e de outros países socia­
listas trabalham conjuntamente na elaboração dos problemas mais
complexos e atuais da filosofia marxista.
Ele soube representar condignamente a nossa filosofia no exte­
rior, enfatizando sua grande força vital, seu caráter progressista e
seu potencial de perspectivas, fazendo uma rigorosa crítica científica
dos nossos inimigos ideológicos. Participou dos trabalhos de muitos
congressos e simpósios internacionais. A partir de 1963, foi mem­
bro do Comitê Executivo da Federação Internacional das Sociedades
Filosóficas.
Kopnin foi um pedagogo de talento, que deu frande atenção à
educação dos estudantes e dos jovens cientistas. Suas conferências
sobre diversas partes e questões da filosofia marxista-leninista sem­
pre alcançavam êxito certo. Nos últimos anos foi professor da
Universidade de Moscou, da qual fora aluno.
Os méritos de Pável Vassílyevitch Kopnin no desenvolvimento
e orbanização da ciência filosófica foram altamente apreciados pelo
PCUS e o Governo soviético: ele foi condecorado com as ordens
da Bandeira Vermelha do Trabalho, Honra ao Mérito e várias
medalhas.
Pável Vassílyevitch gozava de grande prestígio nos meios filosó­
ficos. Era homem de forte individualidade criadora. Uma extraordi­
nária energia, clareza de objetivos e princípios se coadunavam nele
com uma grande simpatia e bondade, humor e um enorme otimismo
de vida.
Como dirigente de um grande e complexo setor de trabalho
científico, ele não apenas conhecia bem o seu assunto como o amava

16
infinitamente. E esse amor era a fonte de sua imensa energia, das
iniciativas criadoras, coragem e bravura que manifestou na luta pela
materialização da linha do nosso partido e suas orientações voltadas
para o desenvolvimento da filosofia. P. V. Kopnin foi um cientista de
verdade e um lutador apaixonado .pela causa do socialismo.

17
Introdução

"Não é a psicologia, não é a feno­


menologia do espírito mas a lógi­
ca = problema da verdade" 1 •

VIAS E MEIOS DE ANÁLISE FILOSÓFICA


DO CONHECIMENTO

Nos últimos tempos vem crescendo intensamente o interesse


pela ciência e sua análise filosófica. Isto não é obra do acaso. No
período do desenvolvimento intensivo da revolução técnico-científica,
é justamente para a ciência que muitas pessoas voltam os seus olha­
res. O que é que o processo científico traz : capacidade infinita do
homem para dominar as leis da natureza e do ser social, o aumento
das suas potencialidades ou, quem sabe, uma ameaça real à existên­
cia do homem na Terra?
Ninguém duvida de que a ciência é c ap a z de servir ao homem ,
mas, ao mesmo tempo, de que é um fato o uso dos seus resultados
cm detrimento da humanidade. Daí um grande problema social : orien­
tar a revolução técnico-científica em benefício do desenvolvimento
da civilização, aprender a dirigir o movimento do :pensamento cientí­
fico segundo os interesses do homem. Para tanto é necessário un i r

1 V. I. Lênin. Obras completas, t. 29, p. 1 5 6.

19
a revoluç ão técnico-científica c om a transformação do m u nd o segun­
do princípi os socialistas, caminho que foi indicado por Marx e, em
novas condições, por Lê n in.
Quando apreendemos os resultados da revol ução técnico-cientí­
fica, surge uma série de questões mais particulares, não tanto " huma­
nas" quanto profissionais, relacionadas com a organização e a
direção ex ercida s p el a ciência na sociedade, co m a org an izaç ã o de
pes qui s as científicas e a previsão do desenvolvimento de p r ocesso s
sociais e da próp ria ciência, etc. Por este motivo, a ciência tomou-se
objeto de atenta análise cie n t íf i ca empree nd era m s e novas tenta ti v as
, -

de criar uma ciência especial da ciência - a metaciência.


Não vamos discutir a legitimidade de semelhante colocação do
problema, embora achemos que uma coisa é indiscutível : a análise
da ciência e de todos os seus aspectos é uma necessidade premen­
te da época .
Em que se pensa qu an do se p ro n unc ia a palavra " ciê nc i a ? "

Em uns ela suscita a noção de pessoas e instituições dedicadas à


atividade científica ; em outros, de gastos financeiros da sociedade
moderna com o desenvolvimento da ciência. Os filósofos que se dedi­
cam à teoria do conhecimento e à lógica subentendem por " ciência",
antes de tudo, um sistema de conhecimento humano com objeto
determinado e método de conhecimento. Neste aspecto o estudo da
ciência é característico do en foqu e filosófico , ou melhor, lógico­
gnosiológico . Es te enfoque é provavel mente o mais antigo, pois a
filosofia marcou seu início p ar t indo da autoconsciência do homem,
da colocação do problema d a relação do pensamento e do conheci ­
mento humano com a realidade fora dele existente.
Ainda na Antigüidade, o conhecimento passou a ser objeto de
reflexão filosófica. Nos limites do estudo filosófico da natureza e da
estrutura do conhecimento, s urge a lógica como doutrina do mundo
objetivo cognoscível do pensamento.
Muito tempo se passou de Aristóteles até hoje, modificou-se
substanci almente o conhecimento, sua l ógi c a e l in guag em. A revolu­
ção que no limite dos dois últimos séculos começou na ciência, antes
de tudo nas ciências naturais, levantou a questão do estudo das
pe culi arid ades do conhecimento, g eradas :por essa r evol uç ão. Em
t ermos breves, essas novas peculiaridades podem ser formuladas d a
seguinte maneira:
1 . Mudou a concepção do valor e do papel da imagem eviden­
te na ciência, passaram-se a apli c ar cada v ez mais na ciência os
si stem as de linguagem artificial cujo estudo, em regra, não é de
caráter evi den t e.

20
2 . Houve uma reavali ação do p apel da experiência e do pensa­
mento teórico no movimento no sentido de novos resultados : aumen­
taram acentuadamente as possibilidades de obter:.. s e um novo conteúdo
do conhecimento científico mediante a movimentação do pensamento
na superfície d a investigação puramente teórica ( sob a condição de
coadunação da teori a com os d ados experimentai s ) .
3. Tornaram-se u m fato a matematização e a formalização do
"
conhecimento . Mas existe p aralelamente outra tendência : a de tomar
consciência da importância do momento intuitivo enquanto meio
necessário de movimentação no sentido de novas construções teóricas .
4 . O revestimento do tecido da ciência com conceitos n ão-des­
tinados imediatamente ao objeto estudado m as ao próprio conheci­
mento sobre ele, a criação de metateorias e me taciências .
5 . O empenho no sentido de criar teorias fundamentais quo
sintetizem o conhecimento extraído de diversos campos da ciência.
A isto está relacionado o surgimento de novos métodos, importantes
para a apreensão dos objetos i ntegrantes do campo de visão de diver­
sas ciências.
6. A tendência ao desmembramento do obj eto estudado em
estruturas e relações mais simples combinada com a análise sistêmica.
Essas mudanças levantaram uma infinidade de questões lógicas,
entre elas a questão do próprio conceito de " lógico " . Existe atual­
mente um grande número de lógicos, que tende a aumentar. Mas
apesar disto pode-se fazer uma definição genérica de lógica . :f: o
estudo da estrutura, d os meios de demonstração, do surgimento e
evolução de uma teoria científica. Sej am quais forem as lógicas, elas
estão forçosamente relacionadas com a solução dos problemas vin­
culados ao estudo desses campos .
A lógica n ã o deve estudar algum pens amento correto, conhecido
de antemão, mas o movimento do conhecimento humano no sentido
da verdade, desmembrando deste formas e leis em cuj a observânci a
o pensamento atinge a verdade obj etiva. E uma vez que o conheci­
mento aumenta sem cessar, mudando quantitativa e qu alitativamente,
o campo do lógico se enriquece com um n ovo conteúdo, incorpo­
rando n ovos elementos, transformando-se e reorganizando-se i nterior­
mente.
Sabe-se que o conhecimento científico é complexo e multilateral .
Mas será que tudo nele serve de objeto de análise lógica? Alguns
estudiosos supõem que a análise tógica está relacionada com apenas
u m aspecto do conhecimento : a estrutura da conclusão, cuja essência
está na passagem de um conhecimento dado, conhecido, a outro

21
seguinte, com uma n ecessidade lógica ou probabilidade de determi­
n ado grau.
Não se pode negar a importância desse aspecto para o conhe­
cimento científico. A análise detalhada do conhecimento dedutivo foi
sempre tarefa da lógica, e n este c aminho ela obteve grandes êxitos.
No entanto nosso conhecimento não se desenvolve apenas por meio
d a dedução lógic a ; a evolução da ciência compreende o lançamento
de novas teses com b ase n a general ização d a experiência .p rática,
na extrapolação dos princípios teóricos anteriores, ou sej a , compre­
ende métodos de desenvolvimento do conhecimento que não se redu­
zem à simples dedução lógica.
Na história d a filosofia e da lógica, é antiga a tradição de
ampliar o campo da análise lógica às custas do estudo das leis a
formas do movimento do pensamento n o sentido de novos resultados,
independentemente do meio pelo qual possamos atingi-lo : por meio
d a dedução de um conhecimento antecipadamente obtido segundo
regras conhecidas ou por alguns caminhos novos.
No século XIX, o positivismo chamou atenção para o movi­
m ento do pensamento da experiência à generalização, apresentando­
se com herdeiro das tradições d a corrente que n a nova filosofia
partiu de F. B acon e d a filosofia empírica dos séculos XVII e XVIII
em geral. Desenvolvendo a doutrina da indução, os lógicos positivis­
tas tinham pretensões de ser os defensores do novo, de combater
a rotina na lógica.
Nos meios científicos naturalistas daqueles idos, a doutri n a
lógica de John Stuart Mill era considerada u m meio de combate à
especulação estéril, que mantinha uma atitude de desprezo face às
ciências experimentais .
Seria incorreto n egar inteiramente, na h istória, a importânci a
das concepções lógicas de Stu art Mill , embora seja igualmente i n ad­
missível superestimar o seu papel, porquanto o principal nelas não
é tanto a n ovidade do conteúdo lógico quanto o empenho de ser u m a
lógica vinculada à s ciências naturais em desenvolvimento . S e focali­
zarmos o problema em questão de m aneira rigoros a, devemos assina­
lar que a doutrina dos métodos lógicos de investigação das causas
dos fenômenos surgiu , e m linhas gerais , antes do positivismo. John
Stuart Mill apenas generalizou e sistematizou o s resultados do pensa­
mento dos seu s antecessores e enfatizou a atenção nesse setor da
lógica.
No centro d a atenção d e Ernest Mach enquanto representante
da fase seguinte do positivismo estão os problemas da lógica da
pesquisa científica. E não se pode dizer que neste campo ele não

22
e x pôs qu aisquer idéias e teses que fixam os aspectos reais do processo
de investigação científica.
Em fins do século XIX e começo do século XX, período em
que começa a revolução na física, fazia-se necessária uma séria
a n álise lógico-gnosiológica do conhecimento que englobasse diversos
aspectos do movimento do conhecimento da experiência à generali­
zação, impunha-se uma elaboração dos princípios lógicos de aprec:a­
ção das teorias científicas em surgimento.
Com base numa gnosiologia idealista subjetiva e num empirismo
estreito, Mach faz em suas obras uma análise dos conceitos filosófi­
cos e naturalistas, de diversos métodos de investigação: do experi­
mento, da comparação, analogia, dedução, indução, fantasia, etc . ,
mostrando o papel destes elementos no movimento que se processa
da �xperiência às generalizações teóricas.
O psicologismo de Mach serve de fundamentação da gnosiolo­
g ia idealista subjetiva ; o enfoque puramente psicológico lhe permite
p roclam ar as sensações como sendo a última realidade física com a
qual a ciência opera. Por outras palavras, em Mach o psicologismo
se apresenta como me: o de fundamentação de uma concepção filosó­
fica inconsistente, que foi profunda e multilateralmente criticada na
obra clássica de Lênin, Materialismo e empiriocriticismo . Ao mesmo
tempo, mediante a concepção psicologista do processo de invest:ga­
ção científica, Mach ampliou o círculo de problemas da lógica da
ciência em comparação com a lógica formal tradicional.
Para pretender o papel de lógica da ciência do século XX, o
n copositivism o não podia permanecer no nível do todo-indutivismo
de Stuart Mill ou do psicologismo de Mach, embora nunca tenha
rompido seus laços com essas correntes.
Para o neopositivismo, um dos problemas centrais na lógica da
c :ência é a questão da fundamentação empírica do conhecimento.
Como é sabido, o conhecimento sempre se apóia na experiência,
m as ao mesmo tempo a ciência real opera com princípios e leis
d istanciados da experiência. Diante d i sto, os neopositivistas se propu­
seram à tarefa de: separar alguns elementos básicos ( enunciados e
termos) que podem ser incorporados ao " dado sensori al imediato "
e considerá-los base empírica do conhecimento ; elaborar um méto­
do de redução de todos os outros enunciado s e termos da ciência a
esses termos basilares e, deste modo, encontrar um meio de verifica­
ção experimental de todo s os enunciados da ciência.
A h istória do neopositivismo mostra que esses esforços foram
! n ú teis. Esse fracasso é extremamente ilustrativo ; não é uma prova

23
de que o conhecimento não tem base empírica mas de que o problem a
da inter-relação dos níveis empírico e teórico do conhecimento não ·

pode se r resolvido pelo método proposto !Pelo neopositivismo . :e


j ustamente aqui que se manifesta as deficiências da filosofia positi­
vista, a estreiteza d a redução da filosofia à análise lógico-formal da
lingu agem d a ciência . A passagem do nível e mpírico ao teórico não
é uma simples transferênci a de conhecimento da linguagem cotidiana
para a científica mas uma mudança de conteúdo e form a do conhe­
cimento .
Assim, vemos que paralelamente à el aboração intensiva do dis­
positivo d a l ógica formal contemporânea, relativa à teoria da demons­
tração dedutiva, entre fins do século XIX e meados do XX o pensa­
mento lógico bateu-se com o problem a d o m ovimento do conhecimento
da experiênci a à teoria,. embora essa questão fosse amiúd e focalizad a
de posições filosóficas inconsistentes por pri ncípio.
Desenvolvendo-se no terreno da filosofia positivista, a lógica da
ciência n ã o podia responder às quesfües radicais que a ciênci a coloca­
va diante da lógica e da filosofia . Neste sentido são característicos
os pronunci amentos de alguns neopositivistas no XIV Congresso
Intern acional de Filosofia de Viena ( setembro de 1 968 ) . Em seu
relatório "A Filosofi a e as ciências n aturais " , A. Ayer continuo u a
considerar que " . . . o próprio con ceito de linguagem , estrutura dos
sistemas s i mbólicos e sua atitude em face daquilo qu e estes devem
expressar converteu-se em questão central das i nvestigações filosófi­
cas " 2 • A . Ayer mantém as posições anteriores d o neopositivismo
quando afirma que se " . . . a filosofia devesse dar algum a contribui­
ção de valor para o desenvolvimento do conhecimento, teria de ser
identificada com a lógica da ciên c i a " ª. Mas não podemos deixar de
perceber certas falhas na posição de Ayer e de todo o positivismo em
geral. Hoj e os positivistas já não têm aquela segurança que antes
lhes era própria. P ara Ayer, a afirmação " a filosofia é a lógi c a da
ciênci a " j á é u m tanto dogmática. Agor a o s positivistas lógicos não
são contra falar de alguns problemas tradicionalmente denominados
o ntológicos ou metafísicas, problemas que antes eles evitavam cuida­
dosamente e cortavam com a " navalha de Okkama " como divaga­
ções sobre essências supérflu as. Ayer situa os problemas que se im­
põem à filosofi a em decorrência das ciências n aturais não n a lógica

2 A. Ayer. "Philosophy and scientific method " - A kten des XI V Inter­


nationalen Ko11gresses für Philosoplzie. Bd. 1, Wien, 1968, S . 5 3 6.
8 lb .

24
mas na metodologia da ciência . Eles " . . . consistem antes na cons­
trução de pri ncípios gerais que na explicação de teorias científicas
isoladas ou concepções que nelas se verifiquem"4• Mas como se sabe,
esses princípios gerais pressupõem a formulação de conceitos como
"espaço", "tempo", "causa", "realidade" , etc. , dotados de conteúdo
relacionado com o mundo objetivo, a n atureza dos seus fenômenos e
relações e não simplesmente ao conhecimento humano e sua lin­
guagem.
O filósofo W. K. Mundle, de País de Gales, apresentou ao
congresso um relatório, " A Filosofia lingüística ingles a " , em que
cr itica em forma j ocosa as deficiências d a filosofia originári a das
idéias de Wittgenstein, que reduz aquela à análise e descrição do
uso d a linguagem : " N a certa já é hora d e os filósofos britânicos
retomarem a tradição d e 2. 500 anos e voltarem à teori a do conheci­
mento e à metafísica " 5 •
Infelizmente esse r elatório não esclarece de que teoria do conhe­
cimento e de que metafísica se fala no caso dado. É verdade que
a filosofia deve pensar no Universo e no lugar que o homem ocupa
nel e . Mas existem d iferentes teorias d o conhecimento e metafísicas .
Mundle apresenta a seguinte característica da sua metafísica : " É
evidente que a metafísica não deve ser dogmática, deve ser especula­
tiva. É evidente qu e ela não deve ser u m sistema todo-abrangente,
de vez que uma teoria pode explicar alguma coisa caso não explique
tudo . É evidente que ela n ão pode ser útil s e é a prion, posto que
todo o obj etivo d e uma teoria é explicar os fatos, aquilo que hoje
s abemos sobre o Universo e sobre nós mesmos . Isto, não há dúvida,
implica num empenho em conhecer objetos diferentes da gramática
inglesa " 6 •
Partindo do que acaba de ser exposto, é quase impossível
entender o que efetivamente vem a ser a metafísica como teori a geral
do ser, que Mundle contrapõe à filosofi a lingüística, que exclui do
seu campo toda essa probl emática. Ocorre que, ao caracter izar a
sua metafísica, Mundle repete outros filósofos burgueses tentando
contornar o problema fundamental d a filosofia . Neste caso, a metafí­
sica que se recria será antes uma ontologi a especulativa, que se
m antém pudicamente nas posições do idealismo e de uma ciência

4 Ib . , p . 5 3 7 .
6 W. K. M undle. A nglo-linguistic philosophy. ln : op. cit., p. 3 5 8 .
-

6 A kten des XI V lnternationalen Kongresses /ür Philosophie, B d . 1, S.


359.

25
distanciada do método. Essa metafísica é tão vulnerável qu anto . a
f ilosofia lingüística; elas são dois extremos que a concepção burguesa
do mundo não pode superar. É bastante s intomático o empenho dos
filósofos burgueses em ultrapassar os limites do positivismo e da
filosofi a lingüístic a : esse empenho é um testemunho da falência do
positivismo .
Mas, em certo sentido, os pensadores burgueses c irculam num
círcu lo vicioso cri ado por eles mesmo s ; eles são incapazes de s altar
para outra órbita, podendo apenas passar periodicamente d a metafí­
sica especul ativa ao seu antípoda sob a forma de positivismo e da
f ilosofia lingüística e v ice-versa . Seria incorreto considerar que todos
os filósofos burgueses atuais partilharam e continuam partilhando a
concepção positivista do objeto e d as tarefas da lógica . É evidente
que também hoj e as concepções do positivismo lógico são ampla­
mente difundidas n os países capitalistas, mas ali existem outras cor­
rentes filosóficas, como por exemplo o existencialismo e o neoto­
mismo, que formam notóri a oposição ao positivismo, especialmente
na concepção da problemática lógica.
Hoj e, quando fraqnejam as posições do neop ositivismo e conti­
nu a por ser resgatada a letra de câmbio por ele emitid a para a
solução de todos os problemas filosóficos pelos métodos exatos da
lógica formal, procuram-se com esforço redobrado, n a filosofia
burguesa , meios .para preencher O ' vazio formado. Em primeiro lugar,
o pos itivismo muda a sua form a, renegando as promessas anteriores
e propondo-se a tarefas mais modestas . Em segundo, a problemática
lógica passou a atrair cada vez mais a atenção de outras correntes da
filosofi a burguesa contemporânea , especialmente do neotomismo e do
existencialismo . Neste s entido muda também a concepção da h istória
da lógica. O neopositivismo partia das tradições da filosofia empírica
in gles a, enquanto pensadores burgueses isolados procuram atualmen­
te apoiar-se n a tradição filosófica que vem de Platão, Aristóteles,
Descartes à filosofia clássica alem ã e seus seguidores d a segund a
metade do século XIX e pri ncípio do século XX.
Sabemos que esse empenho em l evantar e resolver problemas
l ógicos surtiu efeito . Por si só, a tentativa de enfatizar o importante
s ignificado dessa trad ição e u sar as idéias de pensadores como Des­
cartes, Kant e Hegel para a solução de problemas da lógica e assim
livrar-se d a u nilateralid ade da lógica p ositivista não pode suscitar
objeções . Mas tudo depende de como entender as idéias l ó g icas e
em que sentido desenvolvê-las .
Uma vez que . o positivismo lógico não tem razão, não s i gnifica­
ria isto que a verdade talvez esteja do lado d a lógica proposta, por

26
exemplo, pelo neotomi smo existenciarzante? Absol u t ame nte. A expe­
riência tem mostrado que essa lógic a é igual mente estéril para resol­
ver o problem a d a fonte d a objetividade e substancialidade d o conhe­
ci mento . O máximo que ela pode fazer é retornar ao apriorismo
modernizado d e Kant o u algo seme l hante . E se o neopositivismo
considerava a lógi c a produto suplementar da análise d a linguagem da
ciência modern a , já o existencialismo, por exemplo, abstrai inteira­
mente o processo d e desenvolvimento do conhecimento científico
moderno, imergindo inteiramente nos problemas metafísicas d a lógica,
o que, em essência, isola das tarefas e n ecessidades da lógica contem­
porânea as reflexões existencialistas .
Muitos criadores da ciência moderna enfatizam que os con ceitos
e princípios fund amentais da ciênci a surgem como resultado d a ativi­
dade cri adora da razão humana, o u seja, uma atividade que n ão cabe
nos limites d a análise lógico-formal . Vej amos o que diz Einstein a
esse respeito : " P ara aplicar o seu método, o teórico necessita ter
como fundamento algumas hipóteses gerais, os chamados princípios,
partindo dos quais ele pode extrair os efeito s . Assim, sua atividade
se divide em duas etapas. E m primeiro lugar, é-lhe necessário encon­
trar esses princípios , e m segundo, desenvolver os efeitos decorrentes
desses princípio s . Para cumprir a segund a tarefa, ele está solidamente
preparado desde a escol a . Por consegui n te, se para um determin ado
campo, vale dizer, um conjunto de inter-relações, a primeira tarefa
estiver solucionada, então os efeitos não se farão esperar. Bem d ife­
rente é o tipo da primeira das mencionadas tarefas, o u s ej a , o
estabelecimento de princípios capazes de servir de base para a dedu­
ção. Aqui n ão h á um método que se possa aprender e aplicar siste­
m aticamente para a obtenção d o obj etivo. O estudioso deve antes
descobrir na natureza princípios gerais formulados com precisão, que
reflitam certos princípios gerais do conjunto da multiplicidade de
fatos experimentalmente estabelecidos " 7 •
Surge a questão : será que n ã o pode mesmo h aver qualquer
método de estabeleci mento de princípios e conceitos gerais básicos d a
c ! ên cia? A atividade criadora do cientista é evidentemente l iv r e ; m a s
l i vre em q u e sentido? Dependerá d e certas l e i s o u segue mesmo
determin adas leis? Será que para desenvolver o conhecimento é sufi­
ciente apenas a lógica form al , mesmo que esta forneça as regras
m a : s perfeitas e diversas para extrai r possíveis efeitos de princípios
jú estabelecidos e ofereça meios d e processamento lógico de dados

A . E:nstein. Fí.l ica e realidade, Moscou, 1 965, pp. 5-6.

27
experimentais? Se a lógica se detém ante a criação científica como
algo em princípio alógico e n ão-suscetível de análise racional , ela
deixa forçosamente uma brecha para o intuitivismo.
Pergunta-se, a seguir, se não existe alguma fonte lógica d e recur­
sos que contribua para o movimento do pensamento n o sentido de
novos conceitos fundamentai s .
Antes de responder a e s s a pergunta, recorramos m a i s uma vez
a Einstein e sua teori a da relatividade . H. Reichenbach escreve :
" Qu ando certa vez perguntei ao professor Einstein como ele desco­
briu a sua teoria da relatividade, ele respondeu que a havia descober­
to porque estava claramente convencido da harmonia do Un iverso .
J;: inconteste que sua teoria dá a prova m ais conveniente da utilidade
de semelhante convicção. Mas a crença - acrescenta Reichenbach
- não é filosofia " 8 •
Eis uma obesrvação característica, que mostra a ori ginalidade
do significado dos conceitos de filosofia no pensamento científico.
Consideremos fato que a idéia da harmonia do Universo desempe­
nhou um papel efetivamente imenso na evolução do próprio E instein
no sentido dos seus resultados teóricos . Mas será esse exemplo capaz
de convencer aqueles céticos que afirmam que a filosofia, especial­
mente a d i alética, nunca aj udou a nenhum cientista em seus desco­
brimentos? Levantemos a seguinte questão : quantas pessoas conven­
cidas da harmonia do Universo, talvez m ais que Einstein, n ão fize­
ram qualquer descobrimento teórico? Certamente seu número é bem
maior do que o daqueles que em seu pensamento tiveram a ajuda
desse conceito .
O indivíduo acostumado a pensar de modo rígido e convincente,
exigirá que mostremos incontinenti as regras d a evolução do pensa­
mento do reconhecimento da harmonia do Universo à teoria geral
e particular d a relatividade de Einstei n . Ora, se é que exi stem tais
regras, estão elas ocultas n a cabeça do próprio criador dessa teoria
e foram com ele para o outro mundo . Mas se é que Einstein conce­
beu todo o processo de reflexões que o levou à teoria da relatividade,
elas não podiam caber nos esquemas da lógica formal, de vez que
não h á e nem pode haver uma via algorítm ica rigorosamente demons­
trada de evolução do pensamento do conceito de h armonia d o Uni-

8 H. Reichenbach. "The Philosophical of the Theory of Relativity", in


A. Einstein. Plzilosoph er-Scientist, vol. 1. New York, 1 959, p. 292. '

28
verso à teoria da relatividade. Além do mais, seria bastante embara­
çoso para Einstein fazer uma definição rigorosa e univalente do
conceito de "harmonia do Universo" .
É justamente por interpretar-se freqüentemente o dispositivo
lógico apenas como meio pelo qual o pensamento se movimenta de
um ou vários enunciados a outros seguindo as regras da dedução
l ógica que, às vezes, certas pessoas duvidam d e que a dialética m ate­
ri alista tenha o seu sistema lógico. Em realidade, porém , não há
fundamentos para tal dúvida. Ocorre precisamente que as categorias
filosóficas do materialismo dialético não exercem influência sobre o
desenvolvimento do conhecimento científico da maneira como o faz
o dispositivo lógico-formal. Po r isso elas s ã o necessárias e dão ao
pensamento aquilo que não pode dar a mais perfeita dedução lógico­
formal , ou sej a, elas podem servir de base para uma ativid ade sinté­
tica do pensamento, d irigir-lhe o movimento não de símbolo a símbo­
lo mas de um conceito a outro que apreende o obj eto de modo mais
profundo e multilateral .
Ao avançar no sentido de novos resultados, o pensamento sem­
pre segue os princípios da lógica formal mas sem se limitar a eles,
pois deve chegar a um conceito com o qual a ciência antes não
operava. Sozinha, a lógica formal do pensamento nunca chegará a
semelhante conceito . Deve apoiar-se em conceitos substanciais, que
podem empurrá-la a novos conceitos.
Surge uma questão : se o pen samento é absolutamente livre n a
escolha do conceito a que deve aspirar, então onde e s t á o limite
entre a liberdade criadora do pensamento e o arbítrio? Após liber­
t armos o pensamento dos " grilhões " e do " despotismo " da dedução
lógi co-formal, após reconhecermos a l egitimidade d a apreensão i ntui­
ti va do obj eto pel o pensamento, não devemos, ao mesmo tempo,
deixar o movimento do pensamento à mercê do destino, pois neste
caso ele poder i a enveredar pelo caminho do misticismo, da fantasia
estéril e simplesmente da confusão . Por isso o pensamento necessita
sempre de algum apoio em seu movimento . E esse apoio lógico é
cri ado precisamente p ela experiência antecedente do conhecimento,
que é a que se fixa nas categorias d a dialética materialista .
Será que criando as categorias e dirigindo o movimento do
pensamento em consonância com o conteúdo destas a filosofia não
restringe a l iberdade do pensamento? Para responder a esta questão,
é preciso esclarecer o que se subentende por " liberdade d o pensa­
mento " . Imaginemos um quadro ideal : d e repente a humanidade se
l i berta de todos os conceitos de que dispõe, de todas as formas e leis
l ógicas. ( Para o irracionalista, trata-se de uma condição inatingível

29
porém desej ável . ) E já que o pensamento estaria desprovido dos
conceitos e do dispositivo lógico que o impulsionariam por al g u m
caminho, a humanidade estaria inteiramente livre em seu p e n samen­
t o . Por mais paradoxal que seja, p o r ém, p arece que justamen te por
i s to ela não cons e g ui ria nenhum av anço real.
Os conceitos criados e, de u m modo geral, o disposit;vo lógico
limitam indiscutivelmente a liberdade do pensamento, que, em seu
movimento, coaduna-se de uma forma ou de outra com aquele s . Em
realid a d e , porém, essa restrição da liberdade favorece o pensamento,
poi s o pri nc i pal aqui não é a liberdade pela liberdade mas uma
Lberdade que leve a u m resultado obj etivo-verdadeiro, à cri ação de
n ovos conceitos científicos .
Quando se discutem categorias d a filosofia, deve-se avaliar o
seu pape l no pens amento n ão com base em quais e quantas orienta­
ções elas admitem na evolução do pensament o . Sabe-se, por exemplo,
que quanto menos categorias tem a filosofia e quanto menos subs­
tanciais elas são , tanto maio r é a liberdade d e escolha qu e elas
admitem. Mas isto não lhes aumenta o papel Ao contrário, o cien­
.

tista preferi r á basear-se naquel as categori as que mais diretamente,


sem o infinito excesso de possibi l i d a des , levem a resultados i ncógni­
tos, i . e., a novos conceitos.
O disposi tivo lógico-formal estabelece normas ri go rosas e univa­
l entes de transição de um conhecimento a outro no cálculo lógico .
Além do mais, esse dispositivo é necessário e para certos fins essa
precisão e rigorosidade são até extrem amente ind i spensáve i s Mas .

a evolução do pensamento pressupõe meios ló g : cos que, por um lado,


orientem o pensamento p ara uma determinada direção e , por o utro ,

permitam a liberdade de criação em certos limites . Como já dissemos,


é essa função que desempenham as c ategorias d a dialética materia­
lista. Com seu próprio conteúdo elas determinam o movimento do
pensamento . Por exemplo, para a categoria d e determinismo todos os
fenômenos são casualmente condicionados, e neste sentido ela dirige
o pensamento para a descoberta das causas dos fenômenos, admitin­
d o, porém, o reconhecimento da variedade infinita de formas de
relação causal. O movimento do pensamento não pode estancar por
ser determinado por categori as ; antes ao contrário : em muitos casos
o obstáculo ao movimento do pensamento se deve ju stamente à
ausên c i a de categorias que, na situação científica que se criou, deter­
minem hoj e uma via pos s ível para a evolução d o pensamento, um
m e io de síntese dos conceitos e dos dados d a experiênci a .

Talvez não se trate de qu e a especulação teria perdido todo


significado em nossa época mas do seu lu ga r e p apel no sistema do

30
conhecimento científico atu al , que se baseia no experimento acabado
e num dispositivo lógico e matemático avançado. O pensamento
teórico materialista dialético de hoje, evidentemente, difere qualitati­
vamente da especulação que antecede a filosofia, mas ele continua
sendo uma especulação, um meio de :penetração n a essência das
coisas , não se reduzindo inteiramente à experiência ou a uma dedu­
ção lógica rigorosa. Responder em que formas se apresenta a esoe­
culação n a ciência modern a, de que modo essa especulação está
relacionada com a experiência e a dedução lógica e quais o s critérios
da especulação científic a n aquilo que a difere das fantasias estéreis,
etc . , é questão de i nteresse indiscutível tanto p ara a lógica e a gnosio­
logia como para outras ciências .
A criação de d : s positivos lógico e matemático acabados repre­
senta um indiscutível progresso do conhecimento mas como todo
dispositivo, mina em certo sentido o pens amento, m antendo-o em
certos limites, impedindo alguma coisa, reprimindo a especulação
humana que procura ultrapassar o s limites e padrões vigentes . Por
i sso o pensamento humano sempre carece de novos conceitos que
lhe ampliem as possibilidades . É verdade que ao ultrapassar os limi­
tes dos conceitos e esquemas vigentes, o pensamento torna a cair
nos mesmos, pois cria novos conceitos, novo disposi tivo ; o pensa­
mento criador também é determinado por catego rias, m as por cate­
gorias que permitem uma grande escolha na solução e n ão dirigem o
pensamento de maneira rígida mas certa com certa liberdade. É nisto,
em p articular, que vemos o papel das categorias da dialética mate­
r i alista no conhecimento científico moderno, j u stamente por serem
eia:s um instrumento d a especulação criadora livre, que orienta a
solução dos problemas pel a via do método científico.
H. Reichenbach supõe que a ciência contemporânea i mpôs u m a
derrota demolidora a o sistema filosófico d e Kant e, c o m ele , à filoso­
fi a em geral . " Desde os tempos d e Kant, a h istóri a d a filosofia vem
mostrando uma crescente divergência entre os sistemas filosóficos e a
fil osofia da ciência" º . Segundo Reichenbach, o momento caracterís­
tico da evolução do pensamento filosófico dos últimos tempos, que
se processa sob a influência da ciência, particul armente das teorias de
Einstei n , é a recus a dos filósofos à opinião relativa à existência dos
enunci ados sintéticos necessários , da síntese do pens amento e da
sensibilidade .

e H. Reichenbach. "The Philosophical of the Theory of Relativity", in


A . Ei11stei11. Philosopher-Scientist, vol. 1, p. 307.

31
Sabe-se que, segund o Kant, o c o nhe cim e n t o se forma como
resultado da síntese do pensamento e da sensibilidade ou, segundo
Reichenbach, d a fusão de dois componentes : do espírito e d a observa­
ção. Se a ciência seguisse o caminho de K a n t , acha Reichenbach, cul­
min aria em sua autodestruição . "O que mais tarde aconteceu na teoria
de Einstein constitui uma prova de que é i mpo ssív el o conhecimento
nos limites dos princípios kantianos. Para um kantiano, esse resulta­
do pod er i a significar apenas a destruição da ciênci a. Felizmente, o
cientista não era kantiano e ao invés de abandonar a tentativa de
construção d o conhecimento procurou os meios para a mudança dos
chamados princípios apriorísticos " 1<> .
Assim, ao i nvés da s í n t e s e kantiana do pensamento e da sensi­
bilidade, o empirismo contemporâneo - proclamado método da
ciência, sobretudo d a física matemática - reconhece como fontes
do conhecimento apenas a per ce pção sensori al e os princípios analíti­
cos d a lógi ca . O momento indutivo, forçosamente próprio da física
das hipót ese s m atemáticas, também pode ser reduzido a esses momen­
tos se gun d o os neopositivistas.
Surge a pergunta : o que é que h á d e novo neste caso? Segundo
" Kant, o conhecimento se form a de dois momentos : o p e n s a m en to
e a sensibilidade. Os posi t i vist as ló g i c o s também reconhecem dois
momentos no conhecimento : os prin c íp i o s da d e d u ção e as ipercep­
ções sensoriais . Mas a essênci a d a questão está n a m ane i ra como se
concebe o pensamento e o seu papel n a síntese. Os princípios do
pensamento , as ca teg orias e i déias são substanciais para Kant e a
filo sofia que, tendo abandonado as d eficiê ncia s da so lução kantiana
do problema em seu conjunto, assimilou ao mesmo tempo as con­
quistas positivas do pensamento kanti ano, sobretudo a filosof:a de
Hegel e Marx. Esses princípios, categorias e idéias não são regras
analíticas de op eração com símbolos m a s formas de apreensão da
realidade e criação prática do mu nd o m a t e r i al d o s ob j e t os . Mas,
s egundo Reichenbach, é p rec isam en t e essa a concepção do pensamento
aceitável para o e mp i r i sm o modern o .
P a r a Reichenbach p os i t ivi s t a , os p ri ncípios analíticos da lógica
são apenas regras de operação com s in a i s , as q uais não têm q ual q uer
relação com o mundo material ; por isso ele acha que não se verifica
qualquer síntese desses princípios com a e x p er iê n cia , realizando-se

10 H. Reichenbach. A. Ei"nstein, Philosopher-Scientis, vol. 1, p. 309.

32
apenas, na base dessas regras, uma combinação dos resultados d a
experiência. O processo de pensamento n ã o p assa d e operações analí­
t icas com sinai s .
Retomemos agora a q uestão levantada p o r Reichenbach : evolui
ou não a ciência moderna pelo caminho de Kant? A resposta a esta
questão não pode se r univalente. Num sentido não evolui mas em
outro evolui . É verdade que ela aplicou um golpe demolidor ao aprio­
rismo de Kant e n ão cabe aos marxistas l amentar tal fato . Estamos
de acordo com Reichenbach em q ue "os princípios sintéticos do co­
n hecimento, considerados a priori por Kant, foram reconhecidos a
posteriori, verificáveis somente através da experiência e vigentes n o
sentido estreito d a s hipóteses empíricas " 1 1 •
A ciência moderna, especialmente a física teórica, realmente
i ntroduziu sérias modificações nos conceitos de espaço, tempo, causa­
l idade, etc. Mas significaria isto q ue a física passou a prescindir
i nteiramente d e certas sentenças substanci ais, que desempenham as
funções de categorias no process o da atividade sintética d o pensa­
mento? Ora, Einstein , q ue Reichenbach toma como exemplo, partia
j ustamente dessas sentenças ; estava convencido da necessidade de um
certo número de conceitos assentados em conteúdo rico ( e não só
de regras an alíticas da lógica ) . Supunha que esses conceitos devem
ser modificados m as são indispensáveis em cad a etapa de desenvol­
v i mento da ciênci a ; disto o grande físico não tinha dúvida.
Sej a como por, Einstein seguiu em certo sentido o caminho de
Kant por q ue, paralel amente aos dados da experiência e às regras
de dedução lógica, reconhecia a existência d e certos conceitos bási­
cos de cujo conteúdo objetivo estava certo. Para Reichenbach é cô­
modo omitir tal fato.
O desenvolvimento da lógica é possível somente por meio de
s u a aproximação cada vez maio r às necessidades da ciência. Aprimo­
rar a lógica dialética como método do conhecimento teórico-cientí­
fico moderno, como teoria do conhecimento é impossível sem um
estudo atento do processo de evoluç ão d o conhecimento humano, d a
análise do conhecimento científico . Qual q uer corrente de estudo
da lógica modern a pode merecer atenção somente se não visar apenas
a fins próprios mas satisfazer a certas n ecessidades n o desenvolvimen­

to do conhecimento científico.
A história da filosofia mostra que o método filosófico de cada
é poca surge como resultado da apreensão do quadro científico do

11 H. Reichenb.ach, A. Einstein. Philosopher-Scientist, vol. 1, p. 307.

33
mundo, cri ado para atender às necessidades d as ações teóricas e
p r áticas do homem . O Organon de Aristóteles, os m étodos de conhe­
cimento de Descartes e B acon e a dialética hegelian a surg ira m todos
à base de um q u a d r o generalizado do mundo, criado pela ciência da
época. Assim , por exemplo, n a ciênci a dos séculos XVII-XVI II
dominou a concepção mecan icista do mundo, o q ue deixou vestíg ios
t ambém no método de conhecimento . De vez que o mundo está
cons t r u íd o segundo as leis da mecânica, consideravam os filósofos
e cientistas daquela época, a chave para o seu conhecimento pod e ser
a m atemática, o estabelecimento de ri g oro s as relações qu antitativas
entre os fenômenos estu dados na experiência . As deficiências orgâni ­
cas d es se método se devem às li m i t a ç ões do quadro cien t ífico do
mundo daquele período . Quando al guma teo ri a isolada ou s : stema
desses fenômeno s ( ciência particular ) substitui todo o quadro cientí­
fico gene r ali z ado d o mund o , é e n tão que surge o método metafís ico
de conhecimento com tod a a sua unilateralidade.
A dialética materialista en q uanto método filosófico, diferente­
mente dos s i stemas filosóficos ante c ed e ntes , n ão constrói um quadro
universal do mundo. Atualmente são as próprias ci ê n cias, a inter - re l a­
ção e ntre elas qu e criam semelhante qua d ro do mundo. No entanto
a expe riênci a con j un t a d o con h e ci m e nto e da a ti vi dad e prátic a se
constitui n a base em que a dialética cria as suas categorias. No siste­
ma de categori a s apreendem-se não só os resul t ados do conh e c :ment o
e da prá tic a m as tam b é m as suas tarefas, razfo pela qual a dialéti c a
materi alista é um método d o co nheci mento científico .
As categorias do materialismo di alético não só cor r espondem
aos dados d a ciência como ainda antecipam novos resultados, abrem
amplas pos s ibiEd ades para a criação científica e lhe indica m rumos
p r om is sores. A f il osofia que apenas f i x a antecipadamente aquilo que
outras ciências alcançaram é supérflu a e inútil, não pode desempe ­
nhar a função de método universal de conhecimento. A f on t e da
capacidade q u e têm as categ o ria s filosóficas para antecipar os futuros
resultados da ciência e assi m ultrapassar, de certo modo, os limites
dos resultados imediatos d a ciência de sua époc a radica no f a to de
que essa s categorias f i lo s ó ficas surgem e se desenvolvem com base
n a generalização de toda a experiência do conheci mento e da recons­
trução prática do mundo, de que nelas se re al iza a s í n tese (e não
uma simples soma ) do conhecimento der iv a d o dos ma: s diversos
campos da ciênc i a . É ess a s í n te se que g era novas idéias, à base das
quais surge u m novo e n fo qu e dos fenômenos da realidade. Lênin
escreveu : " A continuação da causa de H e ge l e Marx deve consis t i r

34
na elaboração dialética da h istória do pensamento humano, da ciên­
c : a e da técnica " 1 2 •
O que é que significa elaboração dialética da h istória da ciência
e da técnica, q u a i s são os seus resultados? Houve época em que
o s dados da história d a ciência e d a técnica eram vistos, principal­
mente, como s imples material q u e confirma a veracidade das leis
e categorias do m aterialismo dialético . É evidente que a dialética é
con firmada pela march a do desenvolvimento histórico do conheci­
mento. No entanto, a elaboração fil osófica dos resultados da histó­
ri a da ciência e da técnica tem como obj etivo fundamental a desco­
berta dos fatos que confirmam a dialética materialista bem como
das tendênci as d a evolução do conhecimento científico, que colocam
a questão do desenvolvimento das categorias filosóficas .
Lên i n iniciou a i nterpretação dos resultados da revolução moder­
na n as ciências n aturais, propondo-se a tarefa de enriquecer as cate­
gorias do materialismo d ialético com u m conteúdo novo. Mas seri a
i ncorreto pensar que el e esgotou a questão . Lênin nem podia fazer
tal coisa pelo simples fato de que muitas descobertas da c :ência
ou estavam em fase d e realização durante a sua vida ( como a teoria
<l a relatividade, por exemplo) ou ocorreram depo i s de sua morte ( a
mecânica dos quanta, a física nuclear, a teoria das partículas ele­
mentares, a penetração no mundo da matéria hereditária, a ciber­
nética, etc . ) .
Essas e outras descobertas colossais mudaram radicalmente as
n ossas concepções sobre a natureza. Alguns cient; stas ocidentais con­
sideram que as conquistas modernas d a física n ão cabem nos limites
<las categorias d o materialismo d ialético . Werner Heisenberg assim
escreve sobre a interpretação dos resultados d a mecânica quântica
pel os físi cos afetos às posições do m aterialismo dialético : " . . . Como
é d ifícil m eter idéi as novas num velho sistema de conceitos de uma
fi l osofia antecedente ou, empregand o uma expressão antiga, como é
d i fícil encher odres velhos de vinho nov o . Essas tentativas são sem­
p re desagradáveis porque obrigam a s e fazerem repetidos remendos
nos furos inevitáveis dos velhos odres ao invés de experimentar-se
o prazer do novo vinho. Do ponto de vista do bom s enso, não se

pode esperar qu e os pensadores que criaram o m ateri alismo d i alético


há mais d e cem anos pudessem prever a evolução da teoria dos
quanta. A s concepções que eles tinham da m atéria e d a realidade

1 :! V. 1. Lênin, Obras completas, t. 29, p. 1 3 1 .

35
não podem ser adaptadas aos resultados da noss a requintada teoria
experimental de h oj e " 1 3 •
Heisenberg se equivoca profundamente ao considerar que as
categorias do m aterialismo dialético não fun cionam na física moder­
na. A experiênci a mostra que, na concepção do problema da corre­
lação entre sujeito e objeto no processo de conhecimento, alguns
físicos teóricos da atualidade, por exemplo, só agora chegam a um
ponto já conhecido pelo m arxismo há mais de cem anos. Consideram
uma revelação da nova física a tese segundo a qual o objeto é apreen­
dido subjetivamente, sob a forma de prática sensório-material do
homem, prátic a essa que compreende a experiência das observações
fís icas e das pesquisas experimentais. Mas a idéi a de que o homem
apreen de o objeto à medida q ue atua sobre ele e o modifica com seus
instrumentos, incluindo instrumentos físicos, já está contida nas Teses
sobre Feuerbach, de K. M arx, e constitui o ponto de p artida da con­
c epção de mundo do m aterialismo dialético .
No entanto seria profundamente errôneo conceber a questão de
modo como se as categorias da dialética materialista previssem todos
os possíveis descobrimentos da ciência, como se por seu conteúdo
elas fossem capazes d e sempre dirigir com êxito o desenvolvimento
da ciência. Se assim fosse, elas não seriam categorias da ciência mas
certos instrumentos mágicos de alguma força sobrenatural . As desco­
bertas atuais da ciência exigem o aperfeiçoamento das c ategorias, o
lançamento de novas categorias q ue generalizem a prática do conhe­
cimento e transformação do mundo . Para que as categoria s do m ate­
rialismo dialético possam continuar servindo de pontos de referência
do conhecimento científico, devem mudar incessantemente o s e u con­
teúdo, desenvolver-se. Queremos ressaltar em especial este particular,
pois as categorias d a filosofia, como o s conceitos científicos em
geral, não s ão abandonadas como "odres velhos" no processo de
evolução da ciência m as se desenvolvem.
Surge uma questão : será que o dispositivo categorial do m ateria­
lismo di alético corresponde ao nível atual do conhecimento científico,
será ele suficiente p ara interpretar a s teorias científicas que surgem ,
será que contribui para p romovê-las e fundamentá-las? A resposta
aqui, evidentemente, não será unívoca . Por um lado, a experiência
do conhecimento mostra que o processo do pensamento científico
moderno ocorre justamente dentro das categorias d o materialismo

13 W. Heisenberg. Física e filosofia. Moscou, 1 963 , p. 1 1 2.

36
dialético e não em outro si stema filosófico qualquer. Por outro l ado,
não se pode omitir tampouco a idéia freqüentemente repetida nos
últimos tempos, segundo a qual a física estari a no l imiar d a criação
de uma n ova teori a fundamental . É bem verdade que para essa
teoria ainda falta alguma idéia insólita ou, segundo Niels Bohr,
" louc a " . . .
Em q ue consiste o "insólito" dessa idéia? Não está excluíada a
possibilidade de qu e ela, além de não caber nos limites das concep­
ções físicas existentes, ainda venha ultrapassar os limites do sistema
categorial existente n o pensamento científico, ou melhor, nela o
movimento do pensamento será dirigido por uma categoria que ainda
não existe na filosofi a . Neste caso, para a formulação dessa idéia
far-se-á necessária outra linguagem tanto física quanto filosófica .
U m descobrimento fundamental n a ciência muda o tipo d e pensa­
mento, o seu s istema de categori as, introduzindo novas categorias
no cotidiano d a ciência . Mas o que deve fazer a filosofia após o
lançamento de uma n ova teoria : contemplá-la e fixar antecipad amen­
te essas novas categorias ou , estudando a experiência do conheci­
mento e as tendências do seu desenvolvimento, tentar contribui r para
o surgimento dessas categorias, tirar alguns antolhos do pensamento
e deste modo ajudar o movimento da ciência?
Não h á dúvida de que o segundo caminho é mais preferível
para a filosofia . É justamente por isso que se devem aplaudir as
tentativas de lançamento e fund amentação de novas categorias filosó­
ficas à base do estudo d a experi8ncia do conhecimento científico
moderno, dos seus resultados e das tendências de sua evolução . No
entanto, analisando essas tentativas pode-se descobri r também o seu
lado fraco . Não raro o problema se limita a que o filósofo descobre
alguns conceitos já correntes na ciência ( por exemplo, modelo, sime­
tria, estrutura, etc . ) e em seguida demonstra a sua universalidade, a
n ecessidade dos mesmos para o pensamento científico em geral.
E s s e caminho dá, como é notório, resultados frutíferos, contri­
bui para o enriqu ecimento consciente da rede de categorias do pensa­
mento com novos conceitos mas nem de longe é suficiente . É apenas
um caminho que contribu i para promover à qual idade de categoria
filosófica apenas o conceito com o qual a ciência já opera. A física,
por exemplo, pensava através de conceitos como simetria, assimetria
e estrutur a bem antes d e que os filósofos passassem a demonstrar
que se tratava de categorias da dialética . Ao que p arece, o caráter
insólito d a idéia nova que os físicos p rocuram atualmente não deve
consistir em que essa idéia venh a simplesmente corresponder a essa s
categorias já existentes . Se os filósofos elaborassem u m a categoria

37
que fosse nova para a prática de pensamento dos físicos, abrisi;e
novos horizontes para a atividade cognitiva, ela talvez impulsionasse ·
o pensamento dos físicos para novos caminhos a que estão sempre
relacionados o surgimento e a consolidação de uma teoria fundamen­
tal na ciência.
Assim, em seu desenvolvimento, o pensamento deve realizar uma
espécie de salto para outra ó/rbita, com outras categorias . Aqui
surgem várias questões : 1 ) que categorias são essas? 2) de onde
podem surgir e qual a sua relação com a realidade objetiva e a
experiência antecedente do conhecimento?
É muito sedutor imaginar essa categoria sob a forma de novas
construções da filosofia naturalista. Mas esse caminho levaria forço­
samente a filosofia a um conflito com a ciência moderna, que dispen­
sa inteiramente construções dessa natureza, substituindo-as por con­
ceitos científicos exatos e rigorosos.
Houve, evidentemente, diferentes sistemas de filosofia naturalis­
ta, segundo o nível histórico de desenvolvimento do conhecimento.
No entanto, apesar de todas essas diferenças, existiu alguma afinida­
dade que posteriormente se inseriu no conceito de "filosofia n atura­
lista " . Essa afinidade consistia no seguinte :
1 . Todos os filósofos naturalistas construíam sistemas acaba­
dos da natureza, que pretendiam a verdade absoluta. O sistema, em
termos gerl:!_is, alé mde não impedir o desenvolvimento do conheci­
mento científico, é-lhe simplesmente imprescindível . No entanto, o
que é necessário não é um sistema fechado mas aberto, capaz de
incorporar o novo conhecimento e inclusive mudar, converter-se em
outro sistema sob a influência do desenvolvimento do conhecimento .
A filosofia naturalista representava outro sistema, rígido e em certa
medida despótico em relação ao conhecimento que não se ajustava
aos seus limites . Daí o esquematismo dos sistemas da filosofi a
naturalista.
2. O empenho em construir a qualquer custo um sistema aca­
bado da natureza dispondo de um restrito materi al científico-natural
concreto e, pode-se às vezes até dizer, parco, sem dispo r de conheci­
mento das leis reais da natureza redundava em que a filosofia n atura­
lista " substituía as relações reais que aind a desconhecia entre os
fenômenos por relações ideais, fantásticas e colocava fantasias no
lugar dos fatos inexistentes, preenchendo as lacunas rea:s apenas na

38
i maginaçâo"14• Conseqüentemente, a filosofia naturalista era uma
miscelânea de conhecimentos e desconhecimentos, verdades e equívo­
cos. É evidente que momentos de i lusão há em todo conhecimento
científico, mas na filosofia naturalista a ilusão não era um momento
mas um elemento independente, aplicado como tributo à construção
de um s istema todo-abrangente. Por isso a filosofia naturalista era
corroída por contradições internas : por um lado, era uma forma
de conhecimento real dos fenômenos da natureza e, po r outro, impli­
cava elementos de superstições astrológicas, magia, alquimia, etc. A
heterogeneidade dos sistemas de filosofia naturalista se constituiu
numa das causas da desintegração desses sistemas, condicionando
ainda o duplo caráter da influência dos mesmos sobre o processo de
desenvolvimento do conhecimento.
A humanidade deve à filosofia naturalista muitas idéi as fecundas
quer no campo da filosofia, quer no campo das ciências naturais.
Foi no seu seio que surgiram e durante muito tempo se desenvolveu
a teoria materialista e as teorias da estrutura atômica da substância,
da origem dos planetas do sistema solar, etc., que influenciaram toda
a marcha posterior do :pensamento científico.
Ao mesmo tempo, a filosofia naturalista retardou o desenvolvi­
mento das ciência s naturais empíricas, foi fonte de especulações
idealistas com os descobrimentos da ciência, convergindo com a teleo­
l ogia na obra de muitos dos seus representantes. Tudo isso explica o
fato de o desenvolvimento positivo, quer da filosofia, quer das ciên­
cias naturais, ter-se operado fora da filosofia naturalista, a partir de
meados do século XIX. A filosofia adquiriu o seu obj eto e o seu
método, e as ciências naturais atingiram um nível de m aturidade que,
com o auxílio dos fatos e leis estabelecidas, pôde, já por si mesmas,
"oferecer em forma bastante sistemática um quadro geral da nature­
z a como um todo conexo"15• Deste modo, " . . . soou a hora final
da filosofia naturalista . Qualquer tentativa de ressuscitá-la não seria
a penas inútil, seria wn passa atrás " 1 6 • Isto não significa, evidente­
mente, que as filosofias naturalistas tenham desaparecido inteiramen­
te ; elas se mantêm até hoje, mas o movimento do conhecimento
tanto na filosofia como nos campos concretos da c:ência já não é
determinado por esses sistemas de significado retrógrado.

�" K. Marx e F. Engels. Obras, t. 2 1 , p. 304.


u Ib.
10 K. Marx e F. Engels. Obras, t. 2 1 , p. 3 04.

39
A fatal idade h i stórica da fil o s of i a n aturalista é bem p a t en te a d a
pelo seu método lógi co . E l a desempenhava as funções d e lógica do
conhecimento científico de sua época, subentend i a certo método d e
movimento do conhecimento científico, o método de detectação de no­
vos resultados . Esse método também n ão e ra homogêne o , impli ­
cava momentos tanto metafísicas como d i al é tico s , m a s p o r s e u fund a­
mento a filosofia n atural ista era m etafísica. Usava como d i sp osi t iv o
lógico a silogística aristotélica. Foram j u stamente os filósofos natura­
l istas que dera m às l e i s d a lógica formal sentido absoluto, conver­
tendo-as em princípios do pensamento metafísico.
A principal dificuldade que s e imp õ e à lógica da filosofi a natu­
r a lis ta é a obtenção de pri nc íp i os mais gerais. A ló g i c a indutiva dos
séculos XVII-XVIII ainda dava os seus primeiros passos e além
disso nem todos os filósofos naturalitsas a adotavam . Por isso ,. a
especulação, as conjeturas geniais e a n t ec i p aç õ e s acorriam em aj uda .
Em certos sentidos, os resultados d a especulação filosófica
n aturalista impressionam até o pensamento científico atual . Entre­
tanto, apesar de tod a a força da especulação e da dedução lógica,
o método lóg:co d a filosofia natural ista tinha falhas essenci a i s .
Faltava-lhe antes de t u d o um m e i o de processamento dos dados
empíricos da ciên cia, do movi mento da e xperiência à generalização,
m otivo pelo q ual a especul ação fi l osófica n atural ista n ão estava livre
d a fantasia estéri l , e n quanto a dedução carecia de sólidos fundamen­
t o s sob a forma de princípios demonstrados e fatos da ciênc i a auten­
ticamente estabelecido s . Além d i s s o , nem a ded ução nem a especu l a­
ção na filosofia n atural ista tinham bom instrumental : a d e duçã o
tinha um d i s posi t i v o l ógico-formal desenvolvido, que dava rigoro s i ­
dade à demonstração ; a e specul aç ão d ispunha das c atego r i as d o
pensamento i nd ispe n sáv e is , q ue re v elav am a fundo as leis dos fenô­
menos e processos da realidade obj etiv a .
Por i s so a filosofia n at u r al i s t a estava historicamente condenada.
C o m o surgimento de um sistem a desenvolvido de conhecimento
científico, mudou a i n ter-relação entre a filosofia e as ciências da
n atu re z a e d a sociedade . As relações entre a filosofia materialista
dialética d o marx i smo e outros campos da ciência s e baseiam n u m a
e s t rei t a aliança entre elas . A filosofi a marxis t a n ã o impõe qualque r
" esquemática mundial " , não dita às ciências n at u ra i s ou sociais a
m anei ra de resolver esse ou a que le p r o bl ema concreto mas e lab or a
de modo profundo e m ul t i latera l um método e uma teoria do conhe­
cimento, os meios de movimento d a ciênci a no sentido de n o v o s
resultados. As categorias da dialética materialista diferem basica­
m e nte das c o n struçõ e s da filosofia n a turalista ; surgem como resul-

40
lado da síntese do conh ecimento oriundo de diversos campos d a
c u lt u r a espiritual do homem .
Lançar categori as filosóficas não é uma questão apenas comple­
xa como arriscad a : aqu i podemos encontrar até o labirinto da espe­
cul ação que desviará das necessidades reais do desenvolvimento do
conhecimento científico. Aqui, corno dizia Lênin, devemos nos afastar
para acertar com m ais precisão. Afastar-se é fácil , acertar é que é
difícil. Temendo de certo modo afastar-se d a ciência na filosofi a ,
sobretudo d a s ciências naturais, alguns filósofos tiram habitualmente
das ciê n cias n a turais algum conceito, transferem-no para a l i ngu agem
da filosofi a e d epois " enriquecem " esta ciência com a idéia tomada
de empréstimo a ela mesma . Outros, ao contrário , seguem apenas
a lógica do movimento dos p rópr i os conceito s filosóficos, v ão nessa

direção o mais longe possível , sem atentar para a marcha real do


,
conheci mento em diversos campos da ciência e assim ficam pairando
sobre el a de tal maneira que acabam acertando no " n ada " .
M a s nós não perdemos a esperança d e que os filósofos m arxis­
tas, seguindo a r ica tradição, a experiênci a de Marx, Engel s e Lênin,
continuem de modo coerente o movimento pelo único caminho fe cu n ­
do, ou sej a , pelo cam inho de uma apreensão do processo de desen­
volvimento que :permita ao filósofo colocar-se, em certo sentido,
acima dos resul tados atuais d a ciência e , n as categorias filosóficas,
captar as necessidades e aspirações da ciência, contribuindo para
o n asc; mento de novas idéi as n o conhecimento científico. Por esse
c a mi nh o a filosofi a , por u m l ado, enriquecer-se-á com novas idéias
e categori as e, por outro lado, servirá de método seguro de evolução

do p e nsa m e n to e m t od as as outras ciências .


No e nt a n to a ênfase do papel decisivo da dialética m ateri alista
para a compreensão do conhecimento c ientífico moderno n ão implica,
absol utamente, na depreciação de outros métodos, sobretudo dos recur­
sos da lógica formal co n t em porâne a na análise do conhecimento cien­
tífico e s u a estrutura. Como a e xp eriê n cia tem demonstrado, a aplica­
ção do dispositivo variado da lógica formal contemporânea à análise
do con h ecimento científico pode ser muito prod u tiva tanto no plano
teórico como n o prático. Hoje nenhuma ciência pode prescindir da
a p li c a ção do dispositivo da l ó g i c a formal , caso deseje resolver os
se u s problemas a nível atual ; sem ele é impossível descrever até o
processo de avanço d a ciência no sentido de novos resultados. Outro
assunto é se o dispositivo lógico-formal pode descrever o conteúdo
m a i s i mpo rtante no processo de criação científica, no processo de
l a nçamento de novas idéias.

41
A cnaçao científica, cujo resultad o é o surgi mento de n o vas
teorias, leis e fatos de importânci a fundamental , é um processo
bastante complexo . Desvendar os mistérios do cérebro humano e
dominar o processo de cri ação científica é uma das questões atu ais
que ora se levanta com intens idade especial e de cuj a soluç ão depen­
de o progresso da c:ência.
Que encontra o homem d iante de s i , quando tenta descobrir e
entender o processo de investigação científica que leva ao lançamen­
to de novas idéias? Antes de tudo a complexidade e o caráter multi­
l ateral desse processo.
Na história da filosofia, há muito vem-se tentando descrever o
processo de criação científica nos conceitos da lógica e inclusive
i nventar, criar uma lógica especial dos descobrimentos cien tíficos.
No entanto nenhuma lógica é capaz de descrever em toda a sua
plenitude o ip rocesso de criação científica, de vez que a própria
lógica surge à base d e certa experiência do conhecimento e cada
descobrimento científico de uma época significa a mudanç a també m
da lógica do pensamento humano. Pode-se reproduzir o caminho
l ógico do pensamento desse ou daquele i ndivíduo , caminho que levou
ao descobrimento cient ífico, entretanto isto n ão nos garante q ue a
retomada desse caminho n o s remeta a novas descobertas.
Descrever nos conceitos da lógica todo o processo de desenvol­
v i m ento de novas leis etc. , é impossível sobretudo porque o processo
criativo compreende como elemento componente um ato de atividade
cognitiva do homem como a intuição .
A lóg:ca da ciência n ão pode desenvolver-se de maneira fecun­
d a sem uma análise dos campos isolados do conhecimento ci entífico
e das teorias e métodos fundamentais que constituem esses campos .
Da análise Jógico-gnosiológica de teorias científicas fundamentais
como a teoria da relatividade, a mecânica dos quanta, surgiu a dou­
trin a d a hipótese matemática como forma lógica em que se processa
o movimento da ciência no sentido de n ovos resultados, a doutrina do
pri ncípio de correspondência cuj o significado va i h oj e mu1to além
dos limites da física dos quanta etc. Ultimamente vem atraindo gran­
d e atenção o método de modelação como um dos métodos d a ciên­
cia moderna. Sua análise lógico-gnosiológica é importante n ão só
para a teoria e a prática d a modelação em campos p articulares da
ciência mas também para o desenvolvimento da dialética materialista
enquanto lógica. O mesmo podemos dizer de outros métodos e teorias
científicas fu ndamentais .

42
Assim, a lógica da ciência se constitu i de uma série de momen­
tos inter-relacionados e sua elaboração pode e deve processar-se em
diversos sentidos e conduzir a diferentes resultados : 1 ) ao enrique­
cimento do dispositivo categorial da filosofia científica, 2) ao desen­
volvimento dos recursos da 1 6 gica formal com as su as linguagens
artificiais, 3 ) a uma profunda interpretação e ao domínio do próprio
processo de avanço d o conhecimento, incluindo a criação científica,
4 ) à apreensão d o s fundamentos lógicos , da organização e estrutura
de campos isolados da ciência. Por último, todas essas pesquisas
estão voltadas para o domínio das leis do desenvolvimento da ciência
enquanto sistema de conhecimento e do emprego mais eficiente dos
seus resultados na prática humana de criação de um mundo de
objetos e rel ações condizentes com os objetivos do homem.
O fundamento filosófico da análise lógica do conhecimento
científico moderno é constituído pela dialética materialista, que se
'
apresenta corno lógica e teoria marxista do conhecimento .

43
I

A Concepção Marxis ta-Leninista da


Dialé tica co mo Lógica e Teoria do
Conhecimento

" S e Marx n ã o desprezou a 'Lógica' ( com


maiúscula ) , desprezou a lógica d'O Capital, e
isto deveri a ser aproveit ado com exclusivida­
de na questão d ada . Em O Capital, aplica-se
à mesma ciência a lógica, a dialética e a teoria
do conhecimento [não se necessita de três
pal avras : são a mesma coisa] do m aterialis­
mo, que tomou de empréstimo tudo de valio­
so que havia em Hegel e fez esse valioso
evoluir" 1 •

1 . COINCIDÊNCIA ENTRE DIALÉTICA, LÓGICA


E TEORIA DO CONHECIME NTO

Na rica herança filosófica leninista, um dos lugares cent r ais


c abe ao desenvolvimento da idéia d a identidade entre a di alética ,
a lógica e a teoria do conhecimento. Essa idéia tem i mportância
de princípio para compreender a essência da filosofia marxista e sua
r e l ação com outras ciências.
A idéia da identidade entre a dialética, a lógica e a teoria do
conhecimento é de caráter universal e não particular, tem importân ­
cia essencial na solução de q ual q uer problema da filosofia marxista.

1 V. I. Lênin. Obras comp letas, t. 29, p. 30 1 .

45
O caráter universal dessa idéia se deve a que ela determ i n a a
essên ci a e as p articularid ades específicas da dialética materialista
n aquilo que a diferenci a da filosofia n aturalista, do em piri smo gros­
seiro e do método puramente lógico-especulativo de estudo dos fenô­
menos da realidade. É des n ecessár i o dizer que só com base n essa
teoria é possível uma solução fecunda dos problemas lógicos pelo
marxismo.
·
N a fundamentação e no desenvolvimento de sua concepção do
objeto e do conteúdo d a dialética materialista Lênin se baseou antes
de tudo na herança filosófica de Marx e E n gels . Em suas obras
econômicas, Introdução à crítica da economia política, O Capital, K .
Marx levanta o problema da elaboração da dialética como método
do pensamento científico, d e todos os aspectos da dialética. Em parti­
cular, no item "O método da economia política" ( cf. Crítica da eco­
nomia política ) , a atenção prin ci pal se fixa na unidade entre o abstra­
to e o concreto, o ló gi co e o histórico n o pensamento teórico­
científico . Aqui Marx enfatiza com intensidade espec i al a importân­
cia da dialética como método de penetração n a essência do fenômeno,
método de análise d a realidade e sua reprodução na lógica dos
conceitos .
Marx aplicou praticamente esse método no O Capital à apren­
·
são dos fenômenos da vida econômica d a sociedade cap i t alista.
Lênin considerava o O Capital de Marx u m protótipo d e c onhe­
cimento científico dos m ais complexos fenômenos . Considerava uni­
versal o método de estudo dos fenômenos e exposição dos resultados
do conhecimento ali apl i c a d o . "No O Capital de Marx - escreve ele
- analisa-se a pr i nc íp io a relação m ai s s i mples , habitual, fundamen­
tal , a mais maciça, mais ordinária d a sociedade burguesa ( mercan­
til ) milhões de vezes observada : a troca de mercadori as . Nesse
simplíss i mo fenômeno ( nessa 'célula' da s oc i edade burguesa ) a
anális e revel a todas as contradições ( os respectivos embriões de
todas as contradições ) da sociedade contemporânea. A exposição
s e guinte nos mostra o desenvolvimento ( quer o aum e n to, quer o
movimento ) dessas contra d i ç ões e dessa socieda d e , na � * de suas
partes isoladas, do seu princípio ao seu fim .
E s s e deve s e r o método d e exposição ( estudo respective ) d a
dialética em geral ( posto que , em Marx, a dialética da sociedade
burguesa é a p e n a s um caso particular de dialética ) " 2•

* - na soma. Redação .
2 V. 1. Lênin. Obras completas, t. 29, p. 3 1 8.

46
Na solução do problema levantado, Lênin parte igualmente das
teses de Engels sobre a dialética m aterialista como ciência "das
leis gerais do movimento tanto do mundo exterior como do pensa­
mento human o " 3 , p artindo especialmente d a i déia de Engels segundo
a qual a dialética não é uma filosofia situad a acima das outras
ciências .
Na base de que método devia desenvolver-se o conhecimento
c i entífico? Como desenvolver a ciência? Essa ques tão era de suma
importância para Engels, que a analisou no Anti-Dhüring e outras
obras. Foi j ustamente Engels q ue formulou a tese marxista sobre a
essência da lógica dialética, seus problemas fundamenta:s, a relação
da dialética com a lógica formal .
Ao el aborar a dialética como lógica e teor i a do conhecimento,
Lênin recorre à herança filosófica do passado, analisa a colocação
e a solução do problema n a filosofia de Aristóteles, Kant, Hegel ,
dos grandes materialistas do passado . Antes de tudo ele estu d a atenta­
mente o método de Hegel, particularmente a A ciência da lógica, com
a finalidade de revelar todos os aspectos racionais desse método e
desenvolvê-los à luz das novas conquistas da ciência e das necessi­
dades da luta prática d o proletariado; atenta para a idéia d e Hegel
sobre a coincidência entre a dialética, a lógica e a teoria do conheci­
mento, atentando principalmente para a sua aplicação m aterialista
feita por Marx à análise econômica.
A idéia da coincidência entre a dialética, a lógica e a teoria do
conhecimento não é uma frase lançada ao acaso mas a idéia central
e sumamente importante do s Cadernos filosóficos de Lênin, à qual
ele volta a recorrer repetidas vezes 4 e aplica d e modo coerente à
interpretação de todos os problemas. A tese da coincidência entre
a dialética, a lógica e a teoria do conhecimento é o resultado n atural
do desenvolvimento de toda a história da filosofia .
Antes de Aristóteles, a filosofia não se desmembrava e m ontolo­
gia ( doutrina do ser ) , gnosiologia ( doutrina do conhecimento ) e
lógica ( ciência das lei s e formas do pensamento ) , pois para tanto
a i n d a não estava suficientemente desenvolvida. Na filosofia de Aris­
tóteles , apenas se vislumbrou essa divisão, mas no período helenís-

.s K. Marx e F. Engels. Obras, t. 2 1 , p. 302.


4 "Em tal concepção - escreve Lênin nos Cadernos filos6ficos - a lógica
coincide c om a teoria do conhedmento. Em linhas gerais é uma questão mu ito
i m portante" ( Obras completas, t. 29, p. 1 5 6 ) .

47
tico de desenvolvimento da filosofia grega já começou, por um lado,
o processo de germin ação d a filosofi a do seio de ciências p articula­
res e, por outro, de separação de partes especiais sob a forma d e
ontologia , gnosiologi a e lógica no s e l o d a p rópria filosofia . Em p arti­
cular, definiu-se entre os estóicos o obj eto d a lógica formal, que em
Aristóteles ainda se fundia com a s u a metafísica ( ontologia ) . O
momento da virad a foi o século XVII e a primeira metade do século
XIX, quando, por um lado, separaram-se d a filosofia todos os setores
princ:pais do conhecimento científico moderno e, por outro, o isola­
mento de campos especiais dentro da p rópria filosofi a foi levado até
a separação dos mesmos, que caracteriza especialmente as concep­
ções de Kant.
O isolamento entre a ontologia, a lógica e a gnosiologia , que
Kant transformou em separação, teve ao mesmo tempo importância
positiva para a evolução segui nte d a filosof : a . Kant mostrou antes de
tudo a inconsistênci a e inclusive a i mpossibilidade d a m etafísica ou
ontolog i a, que em seu significado anterior chegou à autonegaç�o .
Sob a forma d a ontologia de Wolff, com doutrina de Deus, do mundo
e da alma, a filosofia, evidentemente, não era mais possível e n a
segunda metade do século XVIII j á se afigurava u m anacronismo.
Kant entendeu a questão e nisto está o seu m érito . Ele entendi a a
importância e a necessidade da problemática teórico-cognitiva para
o contínu o desenvolvimento da filosofi a .
A evolução d a filosofi a como teor i a e método d o conhecimento
é uma necessidade histórica, assegura à filosofi a uma ligação vivifi­
cante com diversos campos d a ciênci a . As ciências n aturais e outros
campos científicos n ão necessitam da metafísica ( ou ontologi a d ;sso­
ciada d a anál ise d o conhecimento ) , que trata de essências sobrena­
turais, das leis gerais do ser, obtidas fora da dependência da genera­
l ização do processo de conh ecimento em desenvolvimento, não n eces­
sitam da filosofi a n aturalista, que constrói por via especulativa um
sistema da n aturez a ; elas necessitam d e uma teoria do conhecimento
que arme as ciências naturais e outras ciências com um método de
conhecimento científico, de u m a teori a que aj ude os cientistas a pen­
s ar corretamente, elaborar racionalmente os fatos e construir teorias .
Apesar disso, p orém , a filosofi a apresentad a por Kant como
teoria do conh ecimento está muito longe de ser uma ciência autên tica.
N este caso desempenhou papel fatal o método metafísico kantiano.
A teoria do conhecimento de K a n t é isolada do estudo das leis e
form as do próprio ser, fechada n a i nvestigação e crít:ca d as faculda­
des cognitivas do homem. A deficiência orgânica do kantismo está
na redução da teoria do conhecimento ao simples estudo das formas

48
d a atividade subjetiva do homem. A teoria do conhecimento de Kant
nfto s e dest ina à g ene ral iz aç ã o dos resultados do processo de conheci­
mento com o fim de elucidar o conteúdo objet ivo do saber, de
revelar as leis obj etivas do desenvolvimento dos fenômenos da
realidade.
Depois de Kant, a evolução da fil o sofi a seguiu a linha da unifi­
cação da teoria do conhecimento com a lógica e a ontologia. Uma
certa etapa n a formação dessa concepção da filosofia f o i desempe­
n h ada p el a filosofi a de H e ge l quem empreendeu a ten t at i v a de supe­
,

rar, em b as e idealista, o abismo entre as leis e forma s do pensa­

mento e as leis do mundo objetivo . Hegel foi um dos primeiros a


entender que o de s envolv i m e n to contínuo e fecundo da filosofia era
possível somente se esta viesse a f i x a r as leis do ser, que são, ao
mesmo tempo, as leis do desenvolvimento do pensamento : "A ló g : c a ,
por isto, coincide com a metafisica, com a ciênci a das coisas concebí­
veis nas idéias . . . " 5 - escreveu ele .
Ao superar o abismo entre a lógica e a doutrina do ser, Hegel
abandonou a falsa concepção das formas do pensamento c o m o pura­
mente subjeti v a s , mostrando o conteúdo objetivo das mesmas . Os
méritos de Hegel na el aboração do princípio da identidade entre as
leis do s er e as leis do pensamento foram devidamente avaliados
pelos fundadores do marxismo-leninismo. " Hegel demonstrou re al ­
merite que as formas lógicas e leis não são um simples invólucro m as
o reflexo do mundo objetivo. Em termos mais exatos, não demonstrou
mas vaticinou genialmente " º ·
Mas Hegel partia de uma identidade, inte rp r e t ad a de modo
i dealista, entre o pensamento e o s e r ; daí a sua concepção, de turpa da
em termos i de a l i s t a s e simplificada d a relação das leis e formas do
pensamento com as leis da própria realidade obj etiva . Para ele, as
t e : s do pensamento são, s imultaneamente, a s leis da r e al i d ade ob j et i­
v a , p orqu ant o o pensamento é a base de tudo e todo o p ro ce s so de
desenvolvimento não é m ai s que a apr ee ns ão do pensamento por si
mesmo, i s to é, o autoconhecimento.
Assim, ao invés de uma s olu ç ão r e al d o complexo problema da
rel ação das leis do pensamento com a s l e i s do ser, Hegel su prime
i nteiramente essa questão, tornando-a inexistente, uma vez que é o
pensamento que constitui a própria realidade, o próprio s er : " Seria

a Hegel. O bras, t. 1, Moscou-Leningrado, 1 9 3 0, p. 52.


a V. 1. Lênin. Obras completas, t. 29, p. 1 62.

49
detuPp ação conceber que inicialmente os objetos formam o coúteúdo
das nossas concepções e que já em seguida incorpora-se a nossa
atividade subjetiva, que mediante . . . urna operação de abstração e
unificação daquilo que é comum aos objetos forma os conceitos des­
tes . O conceito, ao contrário, é verdadeiramente primário e as coisas
são aquilo que são graças à atividade do conceito que as antecede
e nelas se manifesta " 7 - escreve Hegel.
À medida que o conceito é a p rópria realidade, a lógica em
Hegel engloba tud o ; em lógica se converte toda a filosofia.
Conseqüentemente, se antes de Hegel a ontologia procurava
essências imóveis, eternas, abstraindo o processo de conhecimento ,
a gnosiologia estudava as capacidades cognitivas do espírito humano
independentemente das leis objetivas e a lógica descrevia as formas
subjetivas de pensamento, abstraindo o conteúdo destas. Hegel, com
base n a identidade entre o pensamento e o ser, interpretada de modo
idealista, uniu esses três campos, dissolvendo na lógica a ontologia
( ou metafísica) e a gnosiologia. Para ele as leis do mundo objetivo
( natureza ) são as mesmas leis da lógica, só que isto ocorre no rein'o
do outro ser d a idéia - n a natureza : " . . . segundo Hegel, . tudo
o que ocorria e tudo o que ainda ocorre no mundo é idêntico àquilo
que ocorre no seu próprio pensamento " 8 escreveu K. Marx.
-

A base para a correta solução do problema da relação das leis


do pensamento com as leis do mundo objetivo é o reconhecimen­
to do princípio do reflexo, o descobrimento da dialética da inter-re­
lação entre o pensamento e o ser, a compreensão do lugar da prática
na teoria do conhecimento, ou melhor, o reconhecimento do fato de
ser a atividade prático-sensorial a base imediata do surgimento de
todas as faculdades intelectuais, inclusive do próprio pensamento .
A filosofia marxista superou o divórcio entre a ontologia e a
gnosiologia à base materialista dialética da teoria do reflexo e da
concepção da dialética do sujeito e do objeto no processo da atividade
prática do homem, destinada à criação de um novo mundo de objetos
e relações . Os filósofos do passado desmembravam sujeito e objeto
até isolá-los um do outro ou os unifi cavam com coexistentes : existem
o subjetivo e o objetivo, o pensamento humano e a realidade exterior
a ele ; a filosofia estuda ambos.

1 Hegel. Obras, t. 1, p. 270.


s K. Marx e F. Engels. Obras, t. 4, p. 1 3 2.

50
A dialética m aterialista não se detém na delimitação do homem
e da realidade objetiva, do sujeito e do objeto . É notório que sem
uma separação desses elementos nenhum a filosofia é possível, pois
a própria colocação do problema fundamental da relação da consciên­

cia humana com o ser ambiente pressupõe uma delimitação e ntre o


homem e a realidade objetiva que se encontra fora dele. Mas se a
filosofia fica na divisão de todo o existente em sujeito e objeto e
postula a existência destes com as suas leis especiais, específicas de
movimento, ela, como se vê no exemplo de Kant, não pode ir além do
agnosticismo. Lênin observou essas falhas do kantismo ao escrever :
" . . . em Kant · o conhecimento isol a ( divide ) natureza e homem;
unifica-os n a prática . . . " º·
O marxismo rel aciona sujeito e objeto na base real em que eles
são unificados na história ; a dialética subj etiva é o mesmo movimento
objetivo, só que sob uma forma de sua existência diferente da n ature­
za. Demais, subentende-se por dialética subjetiva não só o movimento
do pensamento m as também a atividade histórica do homem em seu
conjunto, incluindo o processo de pensamento . O sujeito é irredutível
à simple s consciência, logo, sua dialética não se limita à atividade do
pensamento humano.
Na atividade prática dos homens verifica-se uma coincidência
mais plena de suj eito e objeto, a atividade humana se processa e é
dirigida por leis objetivas . O momento da dialética geral do suj eito
e do objeto vem a ser a relação das leis e formas do pl:ms am ento
com a realidade objetiva que fora dele se encontra.
A evolução do nosso pensamento é apenas o r eflexo d a dialética
objetiva, as leis do pensamento são o reflexo das leis da natureza.
As posições da concepção do conhecimento como reflexo fo ram
assumidas também pelos materialistas franceses, mas eles não podiam
resolver cientificamente o problema da correlação entre as leis do
pensamento e as leis da n atureza. Por si só, o princípio do reflexo
garante apenas u m a solução abstrato-materialista do problema em
foco : a natureza é primária, o pensamento enquanto reflexo da n atu­
reza é secundário, derivado. No entanto isto é insu ficiente para uma
solução profunda e multilateral do problema da relação das leis do
pensamento com as leis do ser. Assim, por exemplo, se entendermos
metafisicamente o próprio reflexo, como ocorria no velho m aterialis­
mo, então aspectos e momentos importantes do pensamento como a

9 V. 1. Lênin. O bras completas, t. 29, p. 83.

51
sua atividade, seu c a r át er criador, o p r oce s s o de seu movimento e
evolução, a e s pecific i dade do próprio conhecimento e a compl exidade
da sua a tit u de em face do mundo objetivo ficar ã o fora do campo da
visão, o pró p rio materialismo será prejudicial, incapaz de swperar
p lenam e nt e o idealismo, n o qu a l esses m om e nt o s são colocados em
p r i meiro plano e absolutizados . Por isso seria n ecessário a plic a r
à própria concep çã o de reflexo os princípi os da dialética : e st en d e r a
dialéti ca ao campo do conhecimento. Lênin escreveu : " Na t eo ri a do
conhecimento, como em todos os outros ca m p o s da ciência, deve-se
raciocinar dialeticamente, i . e . , não supor que o nosso conhecime n t o
é acabado e imutável mas entender de que modo o conhecimento
s u rge do desconhecimento, de que modo o conhecimento impreciso e
inco mple to se torna mais com pl eto e mais preciso " 1 0 •
O reflexo da natureza n a consciência do homem não é algum
estado ancilosado, não é uma cópia m orta d a realidade mas u m pro­
ce s so de aprofundamento n a essência das coi s as.
A compreensão da dialética do processo de reflexo perm i t e
conhecer m a i s a fundo a u n i dad e entre as leis do pensamento e as
leis do ser.
A concord â n c i a , a co i n c idê n c i a entre as leis do p en s amento e as
leis d o ser não s i gnifica que entre elas não haj a q u alq uer d if er e n ç a .
Elas são unidas por conteúdo m as dife re n tes pela fo rm a de sua exi s­
tência. "As leis da lógica são re fl e x os do obj e tivo no subj etivo da
consciência do hom e m " 1 1 - escreveu Lênin .
A e l u c ida çã o do papel da prática no reflexo da re al i dad e desem­
'}Jenh a um imenso papel na compreen s ã o da relação das leis do p e ns a ­
mento com as leis do ser. A filo s ofi a que anteced eu o m arxismo não
podia responder a uma questão le vant a da por ela mesma : como e em
que ba s e o c o r r e a relaç ão entre o pensamen to e a natureza. Ela
s im p lesmen t e considerava que a natureza se encon tr a de u m l ad o e o
p ens amento do outro. O marxismo dem o n s t ro u que a base ma is essen­
c i al e próxima do p e n s am en to humano é a mudança da natureza pelo
h omem : a prática. A i nco rpora ç ão da p r át i c a à teoria do conheci­
mento é a maior co n qui st a do pen s am ento filosófico. A obj etivid a de
do conteúdo do n o s s o pens amento, a coincidência das lei s do pensa­
m en t o com as leis do ser é obt ida e v e r i f icad a pel a a ção prática do
hom e m sobre a n at ur ez a .

to V. 1 . Lênin. Obras completas, t. 1 8, p . 1 02.


n V. 1 . Lênin. Obras completas, t . 29, p . 1 65 .

52
A coincidência entre as leis do pensamento e as leis do ser
servem de base à coincidência entre a dialética, a lógica e a teoria
do conhecimento . " Após retomarmos o ponto de vista materialista,
vimos mais uma vez nos conceitos humanos a representação das
coisas reais ao invés de ver nas coisas reais a representação desses
ou daqueles graus do conceito absoluto. Isto reduzia a di alética à
ciência das leis gerais do movimento quer do mundo exterior, quer
do pensamento humano : duas séries d e leis que em essência são
idênticas mas por sua expressão s ão diferentes só à m edida que o
cérebro humano pode aplicá-las conscientemente, na n atureza -
e até hoje o mais das vezes na história humana -, abrem cami­
nho inconscientemente, sob a forma de necessidade exterior, entre
uma série infinita de aparentes casualidades. Assim a dialética dos
conceitos se convertia por si mesma em simples reflexo consciente
do movimento dialético do mundo real" 12 - escreveu F. Engels.
Essa idéia de Engels foi posteriormente fundamentada e desen­
volvida nos trabalhos filosóficos de Lênin, que afirma francamente
que a dialética é ao mesmo tempo a teor; a do conhecimento e a
lógica do marxismo . No ensaio Karl Marx, por exemplo, Lênin for­
mula a seguinte tese : " A dialética, n a concepção de Marx e também
segundo Hegel, incorpora aquilo a que hoje se chama teoria do
conhecimento, gnosiologi a , que deve cons iderar seu objeto d e modo
igualmente histórico, estudan d o e generalizando o desenvolv:mento do
conhecimento, a transformação do desconhecimento em conheci­
mento"13 .
Uma vez apreendidas, as leis do mundo objetivo se convertem
em leis também do pensamento, e todas as leis do pensamento são
leis representadas do mundo objetivo; revel ando as l e is de desenvol­
vimento do próprio objeto, apreendemos também as leis de desen­
volvimento do conhecimento e vice-versa, mediante o estudo do conhe­
cimento e sua l eis descobrem-se as leis do mundo objetivo. :S justa­
mente por isso que a dialética revela as leis do movimento dos obj etos
e processos, converte-se ainda em método, em lógica do avanço do
pensamento no sentido do descobrimento da natureza objetiva do ob­
j eto, dirige o processo de pensamento segundo leis objetivas visan­
do a que o pensamento coincida em conteúdo com a realidade obje­
tiva que fora dele se encontra e , após concretizar..JSe em ter.mos
práticos, leve ao surgimento de um novo mundo de obj etos e relações .

12 K. Marx e F. Engels. Obras, t. 2 1 , pp. 3 0 1 -3 0 2 .


13 V. J. Lênin. Obras completas, t. 2 6 , pp. 54-5 5.

53
Por este motivo, ao ler Hegel, Lênin destaca a seguinte idéi a : " A
lógica não é a doutrin a das formas exteriores d e pensamento mas das
leis de desenvolvimento 'de todas as coisas materiais, naturais e espi­
rituais', isto é, do desenvolvimento de todo o conteúdo concreto do
mundo e do seu conhecimento, isto é, é o resultado, a soma, a conclu­
são da história do conhecimento do mundo" 14 •
Em certo sentido, a filosofia e qualque r outra ciência eram
consideradas lógica por Lênin : " Qualquer ciência é lógica aplicada " 1 5 •
Isto não significa, evidentemente, que toda ciência tenha como objeto
de estudo o pensamento, suas leis e formas. Não, a ciência é lógica
à medida que apreende as leis do movimento dos objetos e proces s os
sob formas de pensamento, cri a um certo método de concepção do
seu objeto ; com base nas teorias científicas, criam-se métodos espe­
ciais de apreensão de determinados objetos e neste sentido toda ciên­
cia é lógica aplicada a um objeto específico.
Enquanto lógica, a d i alética materialista se distingue de qual­
quer outra ciência pelo fato de tomar como base o conhecimento das
leis de desenvolvimento de qualquer objeto, do objeto em geral, e
criar um método universal de movi mento do pensamento no sentido
da verdade, elaborar ip roblemas lógicos que se apresentam ante cada
ciência ( ciência cm geral ) no processo de apreensão da verdade, ao
passo que qualquer outra ciência concretiza e aplica essa lógica
ao conhecimento do seu objeto específico .
Deste modo, Lênin não reduzia a dialética m aterialista à lógica
enquanto simples doutrina das leis e formas do pensamento . Ao
contrário, seguindo o caminho de Hegel e Marx, ampliou o próprio
conceito de lógica a um p on t o em que todo o conteúdo da filosofia
marxista enquanto concepção de mundo e método de pensamento
teórico-científico se apresenta ante todas as demais ciências como
método, lógica do movimento do conhecimento no sentido da verdade
objetiva . Demais, ela assim se apresenta s ó à medida que descobre
as leis e formas do desenvolvimento de todo objeto, da coisa em
geral .
A identidade entre a dialética, a lógica e a teoria d o conheci­
mento, identidade baseada na coincidência de conteúdo entre as leis
do ser e do pensamento, não deve ser interpretad a como estado
ancilosado. A dialética desconhece inteiramente semelhante identida-

1<l V. 1. Lênin. Obras completas, t. 29, p. 84.


15 lb., p. 1 8 3 .

54
d e . Como todo o real e não como o lógico-abstrato, essa identidade
é um processo.
Como j á dissemos, esse processo de coincidênci a entre a dialéti­
c a , a lógica e a teor i a do conhecimento é, em pri m ei r o lugar, o
resul tado do desenvolvimento histórico da filosofia; esse proces­
s o ainda n ão se consumou, bem como a divisão daquelas três ciências

a i nda não foi superada em definitivo. Foram estabelecidos os princí­


pios científicos da coincidência entre elas, mas para que essa coinci­
dência se tome cada vez mais plena é indispensável uma contínua
el aboração de todos os problemas da filosofia à base desses princípios.
Por i sto o marxismo in augurou um novo período n o desenvolvimento
da filosofia, quando a coincidência entre a dialética, a lógica e a teoria
do c onh e cim e n t o realmente se torna c a d a vez mais plena em todos os
sentidos. Posteriormente, essa identidade é focalizada como processo
também em outro plano. Uma vez apreendidas, as leis da realidade
' obj etiva são aplicadas consc i entemente n o processo de pensamento.
Por conseguinte, entre o conhecimento das leis obj etivas e su a trans­
formação em leis de funcionamento do conhecimento humano há
uma espéc: e de intervalo temporal . O pensamento não segue outras
lei s exceto aquelas que existem n a realidade objetiva, mas o sujeito
deve interpreta r estas últimas do ponto de vista do modo de su a trans­
form ação em leis e formas do pensamento . É i s t o que constitu i o
p ro c e s s o relacionado com a transformação da verdade obj etiva em
regras do pensamento.

2. SEPARAÇÃO DA ONTOLOGIA, GNOSIOLOGIA, L ÓG I C A E


A N T R O P O L OGIA FILOS Ó FICA NA DIAL É TICA MARXISTA

A dialética materialista pôs term o à velha ontologia, gnosiologia,


p redominantemente i dealista , que conduzia ao agnosticismo, e à lógi­
ca que servia de b ase ao método metafísico de pensamento. Mas não
es taria ela se decompondo em ontologia materialista d i aléti ca, gnosio­
logia ou lógica? Por outro l ado, há alguns filósofos que falam atual­
m ente da necessidade de criação de uma antropologia filosófica mar­
x i sta como disciplina científica independente.
J á que essa questão foi levantada na filosofia, merece exame
m ais pormenorizado .
Enquanto doutrin a filosófica dos princípios e form as universais
do ser, a ontologi a é ainda chamada metafisica na filosofia burgue­
s a . Na filosofi a marxista, entende-se por metafísica um determin ado

55
método de conhecimento, que foi i neren te à ciência dos séculos XVII
e XVIII . A especificidade desse método é a abso lu tização de aspec­
tos isol a d o s do mundo objetivo. Sua aplicação dava resultados positi­
vos no período em que a ciência se dedicava pri n cipalmente a colher,
descrever e clas sifica r fatos, em que ela ainda não havia passado a
um estudo e interpretação profundos dos complexos processos d a
natureza e da v�da social. Essa sign i f ic açã o do ter m o " metafísica "
vem de Heg el .

Mas em m e a dos do século XIX já se descobre que o método


metafísico paralisa o desenvolvimento da ciênci a e que os resultados
desta podem ser explicados somente à base de uma teoria filosófica
m ai s p ro fu n d a, que é a di al ét ica m at e r ial is ta.
A relação do m a t er ialis m o dialético com a metafísica como
método de conhecimento foi esclarecida na literatura filosófica de
modo bastante pleno e minucioso. A dial é t ic a supera as l i m i t a çõ es do
mé t od o metafísico, embora conserve sob forma transformada alguns
dos seus momentos positivos. O movimento da filosofia desde o
método metafísico ao dialético se situa nos l imites gerais do desen­
v olvi men to do conhecimento científico desde uma teoria de campo
de apl i c a çã o bastante l imitado a u m a teoria de ab ra n gên ci a conside­
ravelmente mais am p l a na qual a prime ira teoria se apresenta apenas
,

como um caso pa r ti cu l a r extr e m o .


,

Contudo o termo " metafísica" tem o u tro signüicado, mais


antigo, com o qual é a t é hoje empregado na literatura filosófica
predomJnantemente não-marxista . Entende-se por metafísica a parte
da filosofia que se dedica à elaboração dos pri ncí pi os , dos conceitos
gerais ap l i cáve i s geralmente ao s e r . A concepção do objeto da metafí­
sica apresenta os mais diversos m a t i zes nas diferentes correntes d a
filosofia contemporânea, m a s entre t od a s elas é comum a afirmação
segundo a qual a metafísica é a doutrina do ser ou é o ser em geral,
subentendendo-se por este tu do o que existe de um modo ou de outro.
Encontramos e ss a espécie de metafísica em correntes da filoso fia ora
em moda com o neotomismo, que co m pre e nd e duas metafísicas : a
geral ( a redução dos princípios a p l i ca d os a todo o existente : a Deus
e ao mundo criado ) ou a particular ou apl ic a d a ( estende-se somente
ao mundo criado ) e o existencialismo, onde por metafísica ou ontolo­
gia fundamental se subentende a elucidação do sentido e da essência
do ser ; para os existencialistas, é fund am ent al o problema do ser do
homem, uma vez que só se p o de saber o que é o mund o , o q u e é a
. ·

realidade quando se sabe o que é o homem e em que consiste o


sentido do seu ser. Mas os existencialistas entendem essa questão de
form a deturpada, falsa .

56
Quanto ao positivismo, sobretudo o lógico, ele aponta as suas
fl echas contra essa metafísica. Mas os enfoques da superação crítica
da metafísica no m aterialismo dialético e no positivismo s ão diame­
tralmente oposto s . O positivismo simplesmente rejeita essa m etafísica ,
proclamando pseudoproblemas toda s as questões relacionadas com a
doutrin a do ser. Além disso, deixa esses problemas com a religião ,
reconhecendo nest a o direito de existência . Por isso, ao se colocar
contra a metafísica, o positivismo não consegue superá-la ; ao contrá­
rio, ele mesmo lhe dá fundamento p ara existir.
Às vezes coloca-se o dilema : ou a metafísica, que s e p r opõe
a exp licação universal do mundo, extrai o seu conhecimento de fontes
outras que não são as dos d iversos campos da ciência moderna, ou
o positivismo n as suas m ais diferentes versões, que rejeita o pr ob l ema
do ser e suas leis u niversais . E a alguns pode parecer que não há
s aíd a para a situa ç ão criada.
No entanto a dialética materialista é justamente a filosofia que
rejeita igualmente a escolástica da metafísica especulativa e o positi­
vism o . Além disso , não é p or acaso que de sde os tempos do machis­
m o os positivistas têm criticado severamente e continuam criticando
o materialismo dialético pelo seu " dogmatismo " e sua " m etafísica " ,
pelo seu " reconhecimento " da exi stência das " coisas em s i " inde­
pendentemente da consciência, pelo seu empenho em re velar em seus
conceitos e categori as as leis m ais gerais do m ovimento do mund o
obj eti v o Enqu anto i sso, os partidários da metafísica, como os neoto­
.

m istas , por exempl o, ac u sam os fundadores do materialismo dialéti­


co, sobretudo F. E n gel s, de enfoque " positivista" da concepção do
objeto e das tarefas da filosofia. Neste sentido se baseiam nas famosas
palavras de Engel s, segundo as quais a ciência j á não necessita da
filosofia como tal.
Surge uma questão : o que é então a di alética? A doutrina das
leis un iversais do ser ( aquilo a que se chama metafísic a ) ou um
método científico universal de pens amento, aplicável em todos os
campos do conhecimento científico ( aquilo qu e o pos i tivismo pre­
tende ) ? Sob semelhante colocação d o problema é provável que ela
não s ej a nem uma coisa nem outra.
Em realidade, a especificidade do m aterialismo dialético consis­
te j ustamente em que ele, partindo d a idéia da coincidência entre a
dialética, a lógica e a teoria do conhecimento, coloca a questão do
objeto d a filosofia d e modo inteiramente oposto ao da metafísica e
do positivismo, não divorcia o método de pensamento das leis do
m ovime n to dos fenômenos do mundo obj etivo. O estudo dos fenô­
menos d a realid ade obj etiva e das leis do movimento dos mesmos

57
sempre foi e continua sendo tarefa da fil osofia . E neste caso o ma te­
rialismo dialético não é exceção ; dá continuidade à tradição lançada
ainda pelos filósofos antigos. Mas, neste caso, em que ele se distingue
d a metafísica enquanto filosofia que o antecedeu e da filosof:a não­
marxista contemporânea? Qu ais os traços pecul iares do seu enfoque
do estudo dessa realidade?
Antes de tudo, o material ismo d ialético não concebe a apreensão
das leis da realidade objetiva fora da generalização dos resultados
dos diversos campos da ciência . Hoj e e s tá claro para todos que
chegou o fim da filosofia q ue extrai seu conhecimento dos princí­
pios u niversa i s do ser, evitando os d ados das ciências da n atureza e
da sociedade. A deficiência das construções metafísicas do neotomis­
mo e do existencialismo consiste, ademais, em que elas estão divor­
ciadas dos resultados do conhecimento científico e aspiram à metafí­
sica, e ncontrando-se, em essênci a , à margem d as ciências . Além do
mais, a " ontologia fundamental " de Heidegger, por exemplo, está
francamente ori entada contra a concepção científica da realidade,
contrapondo a filosofia às ciências concretas .
Atualmente alguns filósofos se pronunciam a favor d a cri ação
de uma ontologia m arxista, científica, com duas variantes : 1 ) a
doutrina do ser cm geral e 2) a doutrina do ser do homem n a
sociedade ( o ntologia d o s e r social ) .
Na on tologia da primeira variante supõe-se a possibilidade de
d escobrir as formas mais gerais, as propriedades e relações d as coisas
que n ão podem ser apreendidas por nenhuma ciência parfcul �r qa
n atureza ou d a sociedade. Na segunda variante coloca-se essa mesma
tarefa relativamente à atividade h umana, especialmente à prática ; a
doutrina da prática cria uma ontologia histórico-materi alista que vai
das formas mais s: mples do ser às m ais complexas, chegando à ob j e ­
tivação da cultura human a .
At é o momento ess as tentativas n ão foram coroad as de êxito.
Achamos que tamp ou co o serão no futuro , porquanto a i déia da
construção d e qualquer ontologi a marxista como ciênci a independente
ou parte isolad a desta está condenada ao fracasso p or contrad izer
um dos princípios fundamentais que servem de base à filosofia marxis­
ta-leni n i sta : a coincidência entre a di alétic a, a lógica e a teori a do
conhecimento . Mesmo que essas modificações d a ontologia ou meta­
física venham a ser construídas à b as e da generalização dos d ados
das ciênci a s n aturais ou sociais, não se con verterão numa doutrina
autêntica d o s er ( da natureza ou d a sociedade ) , de vez que a ontolo­
gia, em quaisquer variantes, apresenta como objeto de estudo o ser
ou o existente em geral t al como ele é, ou melhor, subentende a

58
cn açao de uma " teori a universal do ser " . Certa vez, criticando o
machista S . Su vó ro v , Lênin se referiu de modo inequívoco as tenta­
tivas de construção de semelhantes teorias : "Ora vej a . A 'teoria
u niversal d o ser' foi novamente descoberta por S . Su vó rov depois
de ter sido muitas vezes descoberta nas mais diversas fo rmas por
i n úmeros representantes da escolástica filosófica. Parabéns aos ma­
chistas russos pela nova 'teoria universal d o ser' ! Esperemos q ue
eles dediquem inteiramente seu próximo trabalho coletivo à funda­
m entação e ao desenvolvim ento desse grande descobrimento ! " 1 0
O posi tivismo, ao que se sabe, suprime não só a questão do s e r
em geral mas também sua prÓlpria relação c o m o pensamento . O
materialismo d i alético considera que as divagações sobre o ser em
geral, o existente como tal são abstratas e que a f;Josofia começa
justamente no momento em que se coloca o problema da relação do
ser com o pensamento .
A p rimeira definição do ser como sendo o existente, a qual
encerra ao menos alguma concreticidade e vai além d e uma t a u tologi a ,

leva implícita a contr aposição do ser ao pensamento ; o ser existe


fora e i ndependentemente d o fato de nós o concebermos . A s tentati­
vas da filosofia n o sentido de criar u m a doutrina do ser sem colocar
o problema da relação deste com o pensamento ou suprimir o pro­
blema do ser em geral nunca d eram resultados positivos para o
d e senvol vimento da ciência e a atividade prática de transformação
d a realidade. Algun s campos da ciênci a podem, evidentemente, colo­
car o proble m a das formas e tipos concretos do s.er ( obj etos, pro­
cessos ) sem colocar esp ecialmente a questão da relação entre eles e o
conhec; mento, porquanto isto não se insere no obj eto de uma dada
ciência e esta recebe essa q uestão resolvida pel a filosofia tanto p a r a
as formas concretas do ser ( átomo, célula, etc. ) como para o ser e m
todas as s u a s vari adas formas .
Sabe-se, pel a h istória da filosofia, que escolas filos ó ficas e
p e n s ado r e s isolados resolviam no passado muitos problemas do ser,
sem colocar com p recisão o problema d a sua relação co m o pensa­
mento. A fi losofia germinou como doutri n a do s er primário . Mas
i s s o foi no período em que ela era a única form a de conhecimento
científico do mundo. Desde então muita coisa mudou . Da ciênci a
chamada filosofia separaram-se campos especiais do saber ; uma parte
do se u conteúdo, que era constituída predom inan temente pelas refle-

16 V. I. Lênin. O bras completas, t. 1 8 , p. 3 5 5.

59
xões meta f ís i ca s especulativas do se r em geral, p e r de u seu significado
por n ão encontrar afirmação no desenvolvimento da ciência e margi­
n al i zo u - se do campo de v isão científica, enquanto a outra p arte era
reapreci ada e desenvolvida, constituindo a base da doutrina filosófica
científica do ser. No processo d es s a reapreciação se inseri a o exame
do ser e todas a s c ategorias que o e x pre s sam , através do p r ob lem a
fundamental da filosofia : a relação do pensame n to com o ser .
Todas as categorias do materialismo di alét ico, começ a ndo p el a
m atér i a , impl icam a solução do p r o b lema da relação do pensamento
com o ser. O conceito de matér i a é a p r i meira d efinição concreta
do ser.
Algu n s filósofos, inclusive entre os p artidários do materialismo
d i alético, su p õem ser possível definir a matéria e v itando a solução
do problema de sua relação com a consciência , vale d i zer, de fi n i r a
m atéri a como t al , como certa substância . S i m, a matéria é u m a real i ­
dade obj etiva que existe por si só, i nd ependente m ente da consciência,
e nisto está a sua definiç ã o primeira, essencial , sem a qual é impossí­
vel avançar na d o u t r i n a da matéria.
Mas o conceito de m atéri a no m ateri al ismo d i al é tico não é
idênt ico ao de sub s tâ n cia , como era ela entendida em diversos siste­
mas metafísi cas . A matéria não é uma essência m aterial jac e n te na
base de t od as as cois a s ; é todos os fenômenos , c o is a s e processos que
ex istem fora e indepen dentemente da c o n s c ;ê n c i a do homem. Fora
d a relaç ã o do ser com o pens amento, o c o n ce i to de m atéria carece
de sentido.
A filoso fi a marxista não col oca o prob le m a do ser s oci al em
ge r al , fora de sua rel açã o com a consciência social , mas o probl e m a
d a r e l a çã o do ser com a consciência, e eis q u e tudo se torna subita­
m ente claro, ser e consciência se contrapõem e, cons e q ü en t e mente ,
define-se o conceito filosófico de ser .
E u ma vez qu e na fi lo sofia marxista não pode haver o conceito
de ser fora d e sua relação com a consciência, a qu i , por conseguinte,
n ão pod e h aver tampouco uma ciência isolad a do ser em ger al
( ontologia ) que não resolva simultaneamente os pro b l e ma s gn osioló­
gicos . M a s neste sen tido ela também não é gn osiolo g ia, pois não
focaliza as formas e leis do con h ecime n to fora d e sua relação com
as formas e leis do s e r . A relação do pensamento com o ser é o
ponto de p a rtid a de todas as categorias f ilosóficas do materialismo
di alético, ponto que d e sem pe n h a simultaneamente a fu nç ã o quer de
o nto l ogia, q u er de gn o s iologi a , não de maneira como se existis s e m
isoladamente sistemas de categor i as ontológicas e gnosiológicas, mas
de forma a que tod as a s ca tego r i as do m ateriali smo dialético sej a m

60
ao mesmo tempo o n t o l ó g i c a s (no sentido de que têm conteúdos toma­
dos ao mun do o bj et i vo, ao ser ) e g nos i oló g i c a s ( d e vez que nelas se
resolve o pro b l e ma da relação do pensamento com o ser e elas
mesmas são um degrau no movimento do conhecimento ) .
O materialismo di alético não se contenta com uma di v i s ã o racio­
n al entre as leis do ser e as leis do pensamento ; une-as racionalmente,
l e va- a s à identidade, à coincidência, que compreende t ambém cer t as
diferenças enquanto momento. Note-se que, para a f i l os ofi a , é justa­
mente a co i n ci dê n ci a dessas leis que adquire i mp o r tâ n ci a de p ri ncíp i o .
Tomando como ponto de p ar t id a as leis do pensamento e as
lei s do ser, o materialismo dialético supera o agnosticismo. O p e nsa ­
mento ati n ge a verdade o bjet iv a , coincide por conteúdo com o obj eto
q u e fora dele se e n co n t ra porque ele mesmo se movimenta segun d o
as leis do objeto.

Qu ando os c rít i c o s da f il o s ofi a marxista-leninista c h a ma m aten­


ção para o fato de que o materialismo d i aléti ê o é a ci ê n c ia das leis
e formas universais do ser, discernem nele apenas um t ip o e sp ec i a l

de metafísica ou . ont o log i a ; quando abordam a tese segundo a qual


a dialética m aterialista é a doutrina do pensamento e de suas formas

e leis universais, concebem-na apenas como lógica, algo próximo do


p o s i t i vis m o contemporâneo. E re sul ta que o materialismo d i alét ic o
reúne duas filosofias diferentes : a metafísica e a l ógi ca . Na realid ade,
porém, o materialismo é i rr e d ut ível a q u al que r das duas separada­
m e n te ou à soma delas . Aqui l o a que é c o m u m chamar-se metafísica
con v er te- s e em lógica, e nquan to que esta se torna doutrin a não só
do pe ns a m e n to como da s formas d o p r ópri o ser, que se r efl e t e m
n a s leis e categorias do pensamen to. O mundo o bj e t i v o e as suas leis

i n t eressam ao homem não por si me s m o s mas enquanto meio de


s a t i sfação de determ i n adas necessidades sociai s . Aqui nos apr o x i ma ­
m o s d a peculi aridade segu i n t e do ma teri a l i s m o di alético.

O ser existe obj etiv amente. Mas de que modo f o c al i z á-lo : como
objeto de c o n te m p laçã o ou objeto da at i v id a d e m aterial , prática sen­
sori al d o homem? A metafísica ou o n t olo gia, exclui , em regra, a
a t ividade p r á ti ca do homem d a o b o rd a g e m do ser, p r o c u r a nd o apre­
ender e s t e último em forma pura. O materialismo dialético aborda o
s e r e suas formas p a rt i n d o das necessidades da a ti v i d a d e transforma­
dora do homem.
Alguns filó s o fo s ocidentais falam de uma suposta i n co mpat ibi l i ­
dade do m ateri a l i s m o di alético com a concepção do h o m em lançada
por Marx, e pretens amente em favor da evolução desta recusam a
d e n o m i n ação de " m a te r i al i sm o dialético " e todo o seu conteúdo.

61
Nem Engels nem Lênin, entretanto, nunca consideraram ser
tarefa d a filosofia apenas o estudo do objeto e do homem como
tais ; eles também partilharam e desenvolveram a tese de Marx sobre
a mudança do mundo e do homem.

Todas as acusações ao materialismo dialético no sentido de que


ele i gnorari a o homem e a prática humana, razão pela qual seri a
ne c es s á r io substituí-lo por uma certa " filosofia humanista ", carecem
de fundamento. No materialismo di alético não há essa ontologia que
considera o ser apenas como tal, fora d a prática humana. Quem
pretender construir semelhante ontologia estará equ iparando-a fatal­
mente à metafísica de Wolff.
O materi alismo dialético procura apreender o ser n ão ape n as en­
quanto existência mas como conveniência, como ele convém ser
enqu anto r e s ultado da atividade prática do homem . O existente é
apreendido por meio do conveniente, mas este mesmo se baseia no
conh ecimento da realidade objetiva, das leis do seu movimento.
O materialismo dialético não exclui o objetivo do homem da
a b o rd a g e m do ser mas não o dissoci a d as leis objetivas de evolução'·

do próprio ser. Em sua atividade prática, o homem parte do mundo


obj etivo, que é o seu objeto. Ao concretizar os seus planos , a prática
humana deve partir justamente do mundo obj etivo, de vez que s im­
plesmente não dispõe de qu alquer outra coisa.
A filosofia marxista autêntica não é uma atividade catártica
desenvolvida no reino das " essências :puras " mas em uma realidad e
complexa e amiúde fei a e desagradável .
f: inconteste que o problema do homem é um dos mais impor­
tantes na filosofia marxista . Mas como levantá-lo e resolvê-lo?
Alguns autores supõem que o marxismo deva possuir uma ciência
especial - a antropologia filos6fica que, alegam, resolveria esse
-

problema. Demais, concebe-se a criação dessa " antropologia mar­


xista " segundo as receitas da mesma antropologia de antes e que
.
hoje " floresce " na filosofia burguesa.
Marx e Engels se defrontaram com a antropologia filosófica de
Ludwig Feuerbach e lhe superaram as deficiências . Este levan­
t ava o problema do homem em sua filosofia em forma extremamente
abs trata, e aqueles mostraram o exemplo de Hegel, que não tinha
uma antropologia filosófica especial mas colocava o problema do
homem com mais profundidade e plenitude do que Feuerbach. "Com­
parado a Hegel, ele é igualmente superficial até onde se examin a

62
a contradição entre o bem e o mal " 1 7 - escreve E n gels sobre
Feuerbach.
A filosofia ant ropológica implica uma insuficiência substan­
c i al : a ab ordagem do homem sob forma abstrata, divorciado da sua
verdadeira evolução histó rica . E tão lo g o a filosofi a começa a an ali­
sar o homem desse último aspecto, deixa de ser antropolo gi a filosóf i­
ca no sentido anterior. Não se podem opor ao homem as leis univer­
sais, uma vez que estas são abordadas na medida em que são dadas
na prá tica do homem, sobretudo nas diversas formas do conheci­
mento científico, ao mesmo tempo em que o conhecimento das mes­
mas é igualmente imprescindível para compreender o homem, os
princípios da sua atividade pr ática e teó r i ca . Conseqüentemente, a
antropolo gi a fi l os ófic a que al gu m as pessoas sugerem como parte
" independente " da filosofia marxi s t a em nada difere da ontologia
em sua segunda va r iante ( ontolog i a do ser soci al ) e partilha todos os
seus vícios .
A d e bi l i dade de muitas das ch amadas teorias humanísticas con­
siste j ustam ent e em q ue, nas suas divagações sobre a hu m an iz a ç ão da
sociedade, elas se distanciam tanto da realidade que as suas constru­
ções perm anecem para sempre meros sonhos metafísicas. Nos concei­
tos e catego ri as do mater i al i s mo dialético, a realidade objetiva está
representada do p ont o de vista dos objetivos da atividade p rá t i c a do
homem numa eta p a determinada da s u a evol uçã o . E qu ando se
baseiam n as leis obj et i vas in terpretadas, esses objetivos não i m ped e m
o conhecimento do ser e s u as formas tais qua i s e x i ste m na realidad e
e servem de premissa dessa apreensão . Ademais, os objetivos hu m a­
nos s ã o os objetivos da sociedade e não de um i n di víd uo isolado,
são determinados pelo conhecimento das leis do desenvolvimento da
s ociedade . Por isso a filo s o f i a marxista tem como obj eto o estudo
das leis do desenvolvimento da sociedade. Pode surgir uma pergun­
ta : por que a filosofia, cujo objeto são as leis e formas universais
do ser, tem de estudar o particular : as formas e Ie:s do desenvolvi­
mento social? Ora, isto faz parte do o bj e to da sociologia. Al i á s é
a ssi m mesmo que se interpreta a questão em alguns sistema s filosó­
ficos : isola-se o estudo das leis e formas do ser do estudo das leis
do ser social.
O ser histórico do hom e m é estudado p elo materialismo histó­
rico, que, junto com a di alé tica materi alista, forma um todo único

i; K. Marx e F. Engels. Obras, t. 2 1 , p. 296.

63
i ndivisível. Começando pelo problema fund amental da filosofia e
terminando na teoria da verdade, nenhum problema do materialismo
dialético se resolve sem a concepção materialista da história. A com­
preensão das leis do desenvolvimento da sociedade é indispensável
para a fundamentação da tese sobre a consciência enquanto proprie­
d ade da matéria e produto do desenvolvimento social, sobre a prática
como fundamento e critério da verdade, etc. Sem o conhecimento das
ie;s do desenvolvimento da sociedade é impossível criar uma concep­
ção dialética do desenvolvimento. Afirma-se com certa freqüência
que
- as leis da dialética, sobretudo a lei da unidade e luta dos contrá­
r ios, seriam antropomórficas, tomadas à sociedade humana e transfe­
ridas para o desenvolvimento dos fenômenos da natureza viva e inani­
mada .
Trata-se de um equívoco : o material ismo dialético não tran s fere
as leis da natureza para a sociedad e o u vice-versa, as leis da socie­
d ade para a n a ture z a. Por exemplo, nem a lei da conservação da
energia, que atua na natureza, nem a lei da mudança das formações
econômico-sociais, que atua n a sociedade, são convertidas pelo mate­
rialismo dialético em princípios universais de todo ser, embora essas
leis sej am importantes para fundamentar a concepção materialista
d i alética do mundo.
To m a n d o por base a generalização d e toda a experiência do
conhecimento e da prática, o m aterialismo d i al é t ic o estabelece as leis
universais do desenvolvimento, m as o conhecimento das leis do desen­
volvimento social assu me, n es t e caso, significado especial por ser a
so c i edad e a forma mais elevada e m adura de desenvolvimento e o
conhecimento do su per:or o ponto de partida para a compreensão
do inferior . Além disso, o conhecimento das leis da sociedade é pre­
missa indispensável de descoberta das leis universais do desenvolvi­
mento, que atuam quer na natureza, quer na sociedade .
Se para i nte rp r e t a r as leis do desenvolvimento é necessário exa­
minar a sua form a superior - a sociedade, então esta deve se(
tomada na forma mais madura : a sociedade atual nas tendências
principais do seu desenvolvimento. Para o marxismo, essa sociedade
é a comunista. :f: p r eci so levar em conta esse fator, pois , entre aqueles
que aparentemente procuram desenvolver honestamente a filosofia
marxista, há pessoas q ue insistem na i d é i a de que se deve focalizar a
natureza do ponto de vista das necessidades do homem e sua prática
sem deixar claro de que homem e de que práti c a se trata, divagando
sobre o homem e a prática em geral. Seguindo esse caminho, pode-se
perder de v i s t a a especificidade da filosofia marxista.

64
A dialética materialista reflete, deste modo, as leis do movi­
mento dos objetos e p ro cessos do mundo objetivo, incluindo o homem
e sua sociedade, que atuam como p r i n cípi os e formas da atividade
s u bj eti va dos homens, inclusive a atividade do pensamento. E neste
sentido a dialética marxista d es emp enha, em nova base filosófica, as
funções quer d e o n tolo gi a, quer de gnos iologi a , lógica e antropolo­
gi a fi lo s ófi c a, sem reduzir-se a qualquer uma delas separadamente ou
à soma de todas.

3 . DIALÉTICA E LÓGICA FORMAL : DUAS DIFERENTES


CIÊNCIAS DO PENSAMENTO

O fim da filosofia anterior, que se dividia em ontologia, gnosio­


l ogia, lógica e, p o s t e r io r me nte , antropologia, não implicava no
d e sapar e ciment o da filosofia em geral e sua substituição por ciências
i soladas. Surgia a nova filosofia do materialismo dialético, q ue se ba­
sei a no conhecimento positivo do mundo e, neste sentido, já não se
opõe à c iên ci a mas se torna ela mesma uma forma de co nh e cim e nto
científico do mundo . Como negação da n eg aç ã o, o materialismo dia­
lético atual, como escreveu Engels, " não é uma simples r e st auraç ã o
do velho materialismo, uma vez que aos fundamentos imutáveis deste
aquele incorpora, ainda, todo o conteúdo id eoló gi co de dois mil
anos de evolução da filosofia e das ciências naturais, bem como esses
m esmos dois mil anos de história . . . Assim, a filosofia e s tá aqui
'o bliterada', i . e . , sup e rad a e co n s e rvada simultaneamente', supe­
'

rada pela forma e conservada pelo conteúdo real " 1 8 •


Note-se bem, a filosofia " está superada por forma " mas " con­
servada pelo conteúdo real " . Isolada do e n fo qu e científico da reali­
d ade, a v elha forma de fi l osofia é coisa do passado e hoje já não se
necessita de uma filosofia que estej a acima das outras ciências ;
embora ela ainda s e mantenha n o mundo burguês de hoje, h i s to r i ca­
mente já não é real, perd eu a razão de ser. Seu lugar foi ocupado
por uma filosofia nova enquanto forma de conhecimento p ositivo ,

substancial do mundo . Essa con cep ç ã o de mu nd o não só mantém seu


si gnificado como ganh a horizontes para o seu desenvolv imento. Tudo
o que na filosofia anterior tinha relação com o processo de obten­
ção desse conheci mento, naturalmente se manteve nela. Deve-se

is K. Marx e F. Engels. Obras, t. 20, p . 1 42.

65
ressaltar, porém, q ue nem todo o conhecimento real q ue se verificava
na filosofia anterior se insere na filosofia materialista dialética. Se
antes a filosofi a reunia todo o conhecimento sobre o mundo, agora
muito do que nela havia passou a integrar campos especiais, isolan­
do-se da filosofia ao converter-se em ciências isoladas, particulares.
" Tão logo se coloca ante cada ciência isolada a exigência de esclare­
cer o seu lugar na conexão universal das cois as e dos conhecimentos
das coisas, qualquer ciência isolada, relativa a essa conexão univer­
sal, se torna supérflua. E então, de toda a filosofia anterior, a doutri­
na do pensamento e suas formas - a lógica formal e a dialética -

é a que ainda conserva existência independente. Todo o restante


faz parte da ciência positiva da natureza e da história"10 - escre­
veu Engels .
Essa tese de Engels é submetida às m a is d iversas interpreta­
ções, entre as quais a mais difundida é a afirmação segundo a qual
Engels limita a filosofi a a uma simples doutrina do pensamento .
Além da lógica formal e da dialética, alega-se . n ada mais há nem
pode haver n a filosofia . A realidade objetiva é objeto apenas de
ciênci as isoladas da natureza e da história.
Não há dúvida de que a interpretação, segundo a qual Engels '
d iferiria dos positivistas apenas pelo fato de a doutrina filosófica
do ;pensamento não limitar a lógica formal m as reconhecer também
a dialética, n ão corresponde ao espírito da concepção que Engel s
tinha da filosofia, concepção que penetra todas as su as obras .
Antes de tudo, Engels não limita a própria dialé tica à doutri na
do pensamento . Ao definir a d i alética ele sempre ressaltava que e l a
é a ciência das leis mai s gerais de todo movimento e não apenas do
movimento do pensamento, a ciência das lei s mais gerais d a natureza ,
da sociedade e do pensamento humano e não apenas deste. Além
disso, Engels nunca limitou a filosofia do marxismo à dialética, ch a­
ma n do lh e freqüentemente de materialismo contemporâneo, que, " cm
-

essência, é dialético . . . " 2 0 • Por último, em Engels o materialismo


dialético é inseparável do histórico, da concepção materialista da
história, graças à qual " foi encontrado o caminho para a explicação
da consciência dos homens partindo do seu ser ao invés da expli ca­
ção anterior do seu ser partindo da sua consciênci a " 2 1 •

10 K. M a rx e F. Engels. Obras, t. 20, p. 2 5 .


20 Ib.
21 lbid., p. 26.

66
Na filosofia anterior, ao que se sabe, também havia algumas
i déias positivas de s i gnificado racional em todos os seus aspectos.
Ao enfatizar o papel do velho materialismo, Engels vê neste uma
verdade filosófica permanente ; os filósofos do passado focaI:zaram
também element o s isolados da concepção materialista da história.
Na f il o sofia anterior for m o u-se uma doutrina i ndependente acerca do
pensamento sob o aspecto de l ógi c a formal e dialética. Aqui assume
cl areza especi al o resultado positivo do movimento do pensamento
filo sófico, pois, graças aos esforços de muitos, antes de tudo Aristó­
teles e Hegel, a análise do pensamento cognitivo e suas c ategorias deu
u m grande passo adiante 2 2 •
Ao r eiterar a id éia de que " só quando as ciências naturais e a
ciên c ia histórica absorverem a dialéti c a , só então t o dos os trastes
da filosofia - salvo a doutrina pura do pensamento - se tornarão
supérfluos, desapa r ecerão da ciência positiva" 213 , F. Engel s nem de
longe se propõe a minimizar os resultados do pensamento filosófico
anterior, a reduzir a própria fil o sofia à doutrina do pensamento puro,
etc. Não, por " trastes f i l osóf i cos " ele não subentendia c erto s resulta­
dos concretos do conheci mento da n atureza e da sociedade, obtidos
pelos filósofos do :passado, sobretudo os mater ial i stas , mas antes de
tudo o método de f i l o so f a r dissociado da ciência, a construção espe­
cul ativa, naturalista de sistemas da natureza ( bem como da filosofia
da história, do dire:to ) que em realidade caducou e foi substituída
pela ciência positiva.
Que signifi c a a tese : a filosofia anterior é substituída pela
"ciência positiva"? O positivismo, como é sabido, c ontrapõe à fi lo­
sofia as ciências positivas, subentendendo por estas as ciências na­
turais e a socio l o gi a concreta . g assim que alguns interpretam o
pensamento de Engels : a filosofia chega ao fim, restam a doutrina
do pensamento ( a lógica formal e a dialética ) e ciên cias n aturais
e humanas isoladas . Em realidade, porém, o pensamento de Engels é

i nteiramente diferente : o lugar da filosofia anterior, q ue embora


apresentasse certos resultados positivos estava saturada de méto­
d o não-científico, é ocupado pela ciência positiva da natureza e da
história. Esta última possui uma infinid a de de diferentes campos,

22 " • • • O estudo das formas do pensamento, das categorias lógicas é uma


t a refa nobre e indispensável , e, depois de Aristóteles, só Hegel se propôs a
u m a solução sistemática dessa taref.a" ( K. Marx e F. Engels. Obras, t. 20,

p . 5 55) .
23 lbid .

67
entre os quais se situa a própria filosofia com seu objeto específico
e método .
Por outras palavras, a substitu:ção da filosofia anterior pela
ciência implica não só na afirmação de setores isolados das ciên­
cias naturais e humanas como na transformação da própria filoso­
fia em "ciência positiva da natureza e da história" . Pelo método
·
de apreensão da realidade, a filosofia em nada deve diferir de outras
ciências, devendo romper definitivamente com o misticismo e a es­
peculação estéril. Neste caso a filosofia realmente não difere em
nada das demais ciências, enquanto em outro ela tem tarefas e fun­
ções específicas que não só a distinguem entre outras ciências como
ainda a colocam em posição especial em face da ciência em geral .
A filosofia marxista, materialista dialética, é uma concepção de
mundo "que deve firmar-se por si mesma e revelar-se não numa
certa ciência das ciências mas nas ciências reais"2 1 E nessas ciências
• .

reais que ela se manifesta enquanto método, enquanto lógica da


evolução do conhecimento no sentido de novos resultados objetivos
verdadeiros .
A lógica surgi u e se desenvolveu como análise do pensamento
diferentes métodos de estudo do pensamento. Qual foi, em linha.s
gerais, o caminho histórico de formação desses métodos e quais os
seus traços característicos?
A lógica surgiu e se desenvolveu como análise do pensamento
cognitivo, sua estrutura e as leis do seu funcionamento. Nas obras
dos budistas indianos, dos filósofos naturalistas gregos pré-socráti­
cos, nos fragmentos de Demócrito e nas divagações dos sofistas, nos
dialógos de Platão, etc . , já se manifestam elementos de análise ló­
gica. Considera-se habitualmente que o primeiro sistematizador e
fundador da lógica como ciência foi Aristóteles, q ue resumiu e ge­
neralizou criticamente todas as tentativas anteriores de investigação
no campo do pensamento. Em seus trabalhos foram, pela primeira
vez, resumidos em um todo e sistematizados aqueles conhecimentos
que posteriormente se destacaram para a lógica, embora em suas
obras não se possa encontrar q ual q uer separação precisa da proble­
mática lógica nem o próprio termo "lógica". Os comentadores mais
tardios da filosofia de Aristóteles destacaram sob o título de "ló­
gica aristotélica" as partes da sua doutrina relativa às categorias e
leis do pensamento, partes essas que se referem principalmente à
análise do pensamento do ângulo do seu conteúdo formal : a des-

24 K. M arx e F. Engels. Obras, t. 20, p. 1 42.

68
crição da estrutura e dos tipos de demonstração. Mas a isto não se
limita a l ógica de Aristóteles, que fez uma interpretação filosófica
das formas de pensamento, mostrou a relação entre estas e o ser,
levantou o p r ob lema da lógica como método de conhecimento .

Nos estudos de Aristóteles, a abordagem das catego ri as, for­


mas e leis do pensamento se entrelaça permanentemente e se mescla
com raciocínios de c a r á ter cosmológico, físico, psicológico e lin­
güís tico Constituem interesse indiscutível as idéias lógicas p or ele
.

expressas na Metafísica, onde se analisam as espécies princip ais de


ser que se manifestam nas categorias. Aristóteles se referiu a to d as
as categorias principais : matéria, conteúdo, forma, p o s sibilida d e ,

re al i dade, qual i dad e quantidade, movimento, espaço e tempo, etc.


,

O centro foi ocupado pela c ategoria de essência, q ue ele examinou


mais plenamente. A análise das categorias conduziu espontanea­
mente o estag i rita à compreensão da inter-relação entre elas, as mu­
danças e a transitoriedade.
A lógica aristotélica não é integral e acabada. IÉ um conj unto
dos diversos aspectos da análise lógica que concebe o pensamento.
Por isso, várias das suas camadas serviram p osteriormen te de obje­
to de sucessiva elaboração, definições e generalizações. O s estóicos,
que introduziram o próprio termo "lógica", elaboraram a teoria da
conclusão, completando a silogística de Aristóteles e dando-lhe nova
formali z ação Em essência, eles deram início à lógica dos enunci a­
.

dos. Neste sentido caminhou o pensamento lógico da Idade Média


c u rop é i a .

Mas na Idade Moderna o centro da atenção já é ocupado por


outro aspecto da lógica de Aristóteles : o processo do movimento
do pensamento no sentido de um novo conhecimento. O interesse
por esse aspecto morre ra com os escolastas. A lógica de Aristóteles
se baseava numa p r á ti ca científica bastante limitada, antes de tu­
do nas demonstrações com as quais operava a m atemáti ca ascendente,
nas conjeturas científicas, debates e discussões. No mundo antigo
havia apenas embriões de c i ências naturais, as quais, en quanto ramo
independente do saber, começam entre os séculos XV e XVI, épo ca
da desin tegraç ã o das relações feudais e afirmação das relações bur­
guesas. As exigên cias do desenvolvimento das ciências naturais, es­
pecialmente da ci ê ncia experimental, colocaram a lógica ante a ne­
cessidade de elaborar um método de obtenção de um novo conheci­
mento, formação de novos conceitos, de uma teoria da ciência. Por
este motivo a lógica se vol tou para o estudo das formas de evolu­
ção do pensamento no sentido da verdade .

69
Baseada n a concepção dogmática de Aristóteles, a lógica es­
colástica resultou imprestável para semelhante tarefa. A isto se deve
a decidida oposição que lhe opuseram os maiores representantes da
filosofia da Idade Moderna, q ue de uma forma ou de outra estavam
l igados à evolução das ciências naturais e dos embriões das ciên­
cias sociais. "A lógica hoje aplicada serve antes ao fortalecimento
e manutenção dos erros q ue têm seu fundamento nos conceitos geral­
mente aceitas do que ao descobrimento da verdade. Por isso é
mais prejudicial que útil"25, escreveu F . Bacon. ldéias análogas
foram expressas por Descartes : " . . . Na lógica, os seus silogismos
e a maior parte dos seus preceitos ajudam antes a explicar a outros
a q uilo q ue é de nosso conhecimento ou, como na arte de Lully, a
tecer considerações ineptas da q uilo que não se sabe ao invés de
estudá-10"26• E John Locke acrescenta : "O silogismo, n a melhor
das hipóteses, é apenas a arte de lutar com o pouco conhecimento
que temos sem lhe acrescentar n ada"27 •
Nesse período coloca-se intensamente a tarefa da criação de
uma lógica nova, q ue corresponda às necessidades da prática do
pensamento, sobretudo da elaboração teórica dos dados da experi­
ência. Variava entre diversos pensadores a concepção dessa lógica
nova, não-aristotélica. Bacon vê o futuro da lógica na elaboração
de uma teoria da ascensão da experiência à generalização. Critica o
silogismo en q uanto método de formação de conceitos e neste sen­
tido discerne a sua esterilidade. A experiência e a indução são o
método seguro de formação de conceitos. O lado forte das teorias
lógicas de Bacon está na ênfase dada ao papel da experiência, da
observação, do experimento. Ele converte o empírico na premissa
primeira e principal da dedução. O sensualismo materialista serve
de base teórico-cognitiva à sua lógica. No entanto há na lógica de
Bacon a marca da metafísica . Demais, ele considera estagnadas,
i mutáveis as formas dos fenômenos q ue são descobertos pela in­
dução ; no próprio processo de conclusão indutiva destaca unilate­
ralmente o p apel da análise, do desmembramento da natureza em
elementos particulares isolados. Bacon subestimava o papel da de­
dução, da hipótese e da generalização ; reduzia a prática à obser­
vação e ao experimento .

2s F. Bacon. O novo orga11011. Moscou, 1 9 3 8 , p. 3 5 ,. e d . em i'usso.


, '
20 Rene Descartes. Obras escolh idas. M oscou, 1 9 50, p. 27 1 , e d . em ru.o so.
21 J . Locke. Obras filosóficas escolhidas em dois volum es. Moscou, 1 9 60,
t. 1 , p. 657, ed. em russo.

70
A doutrina de Bacon enri q ueceu a lógica em dois sentidos :
e m primeiro lugar, com um estudo mais profundo e completo d a es­
trutura e dos tipos de conclusão indutiva e, em segundo, com a co­
l ocação do problema da ampliação do objeto e das tarefas da ló­
gica, da necessidade de a lógica estudar o método de obtenção do
conhecimento novo. Segundo ele, a lógica não pode se limitar
ao estudo da estrutura e dos tipos de dedução, mas deve indicar ao
pensamento um caminho inteiramente novo, ainda não-estudado
pelos antigos. Bacon considera q ue o seu Organon é lógica e além
disso uma lógica nova, um novo organon, uma metodologia da
ciência e das descobertas científicas .
A via posterior de desenvolvimento da lógica teria outra con­
cepção em Descartes, q ue generalizou a experiência de evolução do
pensamento na m atemática e na mecânica. Para ele, a tarefa do refor­
mador da lógica consiste não só em suprimir nela os extratos esco­
lásticos prejudiciais e desnecessários como também acrescentar algo
q ue conduza ao descobrimento de verdades autênticas e novas. Des­
cartes colocava o problema de um método de conhecimento q ue ul­
trapassava os limites da q uilo que a lógica anterior dava. A obser­
vância das regras do silogismo, a dedução lógica mais impecável
não poder ser garan tia da veracidade do nosso pensamento. Des­
·

cartes formulou as regras do método de obtenção do novo conhe­


ci mento, que têm a incumbência de substituir a infinita multiplici­
dade de regras existentes na lógica . Ele constru iu o seu método
partindo do reconheci mento do papel decisivo da intuição e da de­
dução. A experiência e a indução desempenham papel apenas se­
cundário .
Até então ( séculos XVII-XVIII) constituíra-se na filosofia a ló­
g ica formal tradicional ou clássica, cujas peculiaridades consistem
n o seguinte :
1 . Ela consti tuía parte orgânica da filosofia, era uma teoria
original e método de conhecimento . Suas leis serviam de base ao
método metafísico de pensamento, à sua fundamentação teórica. Seu
conteúdo propriamente lógico era constituído pelas regras e formas
das deduções .
As formas de estudo de um juízo procedente de outros, a orga­
n ização e a estrutura do conhecimento formado eram estudados
pela lógica formal tradicional com base em determinadas leis : a
identidade, a inadmissibilidade da contradição l6gica, do terceiro ex­
cluído e do fundamen to suficiente . Essas leis determinam a relação
necessária e essencial que existe entre as idéias q ue se formaram
nesse ou naquele juízo . Assim, a lei da identülade exige univalên-

71
eia de emprego dos termos na dedução . N a mesma dedução, o
mesmo termo deve ser empregado num único sen tido . Se na dedu­
ção os termos não são unívocos, não pode haver tampouco rel ação
entre as premissas na dedução, logo, não pode haver nem a pró­
pria dedução .
A lei da inadmissibilidade da contradição encerra com o seu
conteúdo a seguinte afirmação : se do sistema de juízos q ue formam
a dedução "algum juízo A é verdadeiro", então nesse mesmo siste­
ma não pode ser verdadeiro o juízo contrário ao juízo A, ou seja,
num certo sistema de juízos q ue formam uma dedução, não pode
ser simultaneamente verdadeiro o juízo A e o juízo n ão-A q ue a
ele se opõe .
Essa lei não se refere ao conteúdo concreto dos juízos, n ão
resolve o problema de q ual dos juízos que se opõem é o verda­
deiro . En q uanto forma de estudo de um entre outros juízos, a
dedução pode existir e funcion ar normalmente sob a condição de
que não se considerem verdadeiros os juízos que se contradizem um
ao outro .
Segundo a lei do terceiro excluído, dois juízos em que um con­
tradiz o outro não podem ser verdadeiros e falsos ad mesmo tem­
po ; se um deles é falso o outro é verdadeiro e vice-versa .
A lei do fundamento suficiente afirma que a veracidade de todo
juízo deve ser suficientemente fundamentada .
Com base nessas leis, a lógica formal clássica estudava as
relações entre os juízos no sistema de q ualq uer dedução, revelando
as formas e regras de estudo de u m entre outros juízos antes cons­
tituídos. Nela os conceitos e juízos são considerados somente n a
medida e no aspecto q ue é necessário para a compreensão d o estudo
dos juízos .
Ao estudar as leis do estudo de um entre diversos juízos, a ló­
gica tradicional já estabelecia o chamado critério lógico ou formal
de veracidade dos juízos, q ue, embora evidentemente necessário, é
insuficiente. Esse ou a q uele juízo, segundo todas as leis da lógica ,
pode ser estudado entre outros juízos ( q ual q uer sistema pode ser
logicamente n ão-contraditório ) e não ser ao mesmo tempo objeti ­

vamente verdadeiro, não corresponder à realidade. A sucessão e coe­


rência lógico-formal é apenas uma das condições necessárias mas
nunca suficientes de obtenção do conhecimento objetivo-verdadeiro
dos fenômenos do nosso mundo e das leis do desep.volvime�to dos
mesmos . \

2. A lógica clássica não era puramente formal ; as leis e for­


mas do pensamento ela considerava ao mesmo tempo princípios do

72
ser, en q uanto materialistas e idealistas enten diam o próprio ser de
modo diferente. Diante disto, a lógica formal foi, desde os seus
primórdios, um campo de intensa luta entre o materialismo e o
idealismo. Na análise da estrutura d a demonstração, da dedução ,
el a tomava como elemento primário não o juízo ( proposição ) m a s
o conceito ( termo ) , extraindo das relações reais as relações for­
m ai s entre os termos.
Contudo, ao analisar as formas do pensamento, a lógica clássica
acentua sua atenção no conteúdo formal, ou seja, ela não dá
prioridade ao q ue essa forma de pensamento reflete e a maneira
como o faz . Nas formas de pensamento, el a estuda o conteú­
do q ue permita extrair u m novo juízo dos juízos existentes. Por
exemplo, de q ual q uer juízo geral da form a: "Todo A é B" pode-se
extrair o juízo "C é B", caso seja estabelecido que C é o obj eto dos re­
feridos juízos; isto está relacionado com o conteúdo formal dos
juízos e das suas relações . O conteúdo formal é material , represen­
ta o reflexo das leis objetivas, das leis mais gerais e mais simples
porém não está imediatamente ligado às propriedades concretas de
q uak1uer objeto determinado, refletido nesse ou na q uele juízo con­
creto .
O conteúdo formal é extremamente amplo, reflete as proprie­
dades e relações mais gerais, inerentes a todos os fenômenos do
mundo material e por isso se encontram fora da dependência do con­
teúdo concreto dos juízos . Se as regras da dedução estão relaeio­
nadas com o conteúdo concreto, então será mais estreito o campo de
aplicação dessas regras .
Assim, o conteúdo objetivo fixado nas formas do pensamen to
s e torna formal caso sirva de base às regras e formas de estud o

de um entre vários juízos .


Por último, desde os primórdios do seu surgimento, a lógica
passou a usar a simbólica para indicar as relações formais, mas
n a lógica clássica a simbólica não aparecia como método de so­
l ução dos problemas lógicos ; sua aplicação era restrita e de caráter
puramente secun dário .
A filosofia do século XVIII tinha consciência precisa de que
o termo "lógica" dissimulava de fato duas disciplinas científicas de
objetos diversos. Kant foi um dos primeiros a aludir textualmente
à q uestão esboçando antes de tudo o objeto da lógica geral ou lógica
formal, corno depois passou a chamar-se. Desde os tempos de Aris­
tóteles essa lógica não deu "um passo atrás, se não considerarmos
melhori a a construção de algumas sutilezas desnecessárias e a ex­
posição mais cl ara, relacion ada antes com a elegância do que com

73
a autenticidade da ciência. É notável, ainda, o fato de até hoje ela
não ter conseguido dar um passo adiante e, ao que tudo indica, pa­
recer uma ciência perfeitamente acabada e concluída"28 •
Para Kant, a lógica geral " é a ciência que expõe minuciosa­
mente e demonstra rigorosamente apenas as regras formais de todo
pensamento . . . " 2 9 • As teses de Kant sobre a lógica geral apresen­
tam um duplo caráter. Por um lado, Kant foi o fundador do aprio­
rismo e do formalismo em lógica. É justamente com ele que começa
a interpretação das formas do pensamento como formas puras, q ue
guardam absoluta independência de q ual quer conteúdo material e
surgiram independentemente da experiência. Nem em Aristóteles
e nem mesmo em Descartes e Leibniz as formas do pensamento fo­
ram "isentas" de q ual quer conteúdo material : ao contrário, eles
expressaram a essência do pensamento. Kant rompeu com essa tra­
dição e deu in ício à interpretação formalista das formas lógicas.
Por outro lado, a tese de Kant sobre o objeto da lógica geral e
do campo de sua aplicação desempei;ihou papel positivo, já que
antes dele o objeto da lógica formal, em verdade, não fora rigoro­
samente definido, fato que n ão contribuiu para o progresso da lógi­
c a formal nem para a formação de uma nova lógica. Esboçando
rigorosamente os l imites do obj eto da lógica ge!"al , Kant colocou
diante da filosofia a tarefa de criar uma lógica basicamente nova,
cuj a necessidade era ditada pelo fato de a observância mais cuida­
dosa das regras for m a i s do "acordo do conhecimento consigo mes­
mo" poder conduzir à verdade com a mesma facilidade que con­
duziria ao eq uívoco ou simplesmente à tolice, de vez que a lógica
geral não contém nem pode conter q uais quer prescrições para a ca­
pacidade de um juízo .
Daí Kant conclui sobre a necessidade de criar uma lógica ba­
sicamente nova, q ue trate especialmente dos princípios e regras d a
aplicação apriorística do juízo, d o pensamento e m geral ou das
condições de aplicação das regras da l ó gica à solução das tarefas do
pensamento teórico .
Tornou-se um fato, no século XIX, a existência de duas ló­
gicas com diferentes métodos, que se desenvolveram n ão só inde­
pendentemente uma da outra como ainda em certo antagonismo .
O progresso na lógica formal , a começar pelo século XIX, está
vinculado à formação e ao desenvolvimento da lógica matemática,

29 l. Kant. Obras, t. 3, 1 964, p. 82, ed. em russo.


20 Ibid., p. 83 .

74
cuja idéia já fora lançada por Leibniz, q ue formulara apenas alguns
princípios da área da lógica matemática q ue posteriormente passou
a chamar-se álgebra da lógica. Suas idéias se reduziam ao seguinte :

todos os conceitos, assim como os enunciados, devem ser necessa­


riamente reduzidos a alguns conceitos e enunciados básicos, desig­
n ando-os com sinais ou símbolos correspondentes. Desse pequeno
número de conceitos, podem-se construir ou extrair todos os outros,
concebendo-os sob a forma de combinação de símbolos . Esta com­
binação e a dedução dos enunciados se baseiam nas regras univer­
sais q ue se formulam por meio da introdução de símbolos em ana ­
logia com as regras algébricas de cálculo. As idéias de Leibniz era m
modernas demais para o século XVII, cuj a ciência ainda não estava
preparada para elas. E só bem mais tarde, no século XIX, os ló­
gicos chegaram por conta própria a elas, independentemente de
Leibniz, e passaram a aplicá-las .
A aproximação da lógica formal com a matemática é o resul­
tado natural da evolução de ambas. O objeto da lógica formal tem
muita afinidade com o objeto da matemática : ambas estão relacio­
nadas com o reflexo de relações extremamente gerais que se ex­
pressam em abstrações de longo alcance, cuja ligação com o mundo
objtivo é de caráter bastante complexo e mediato ; as relações estu­
dadas pela lógica formal são semelhantes às relações estudadas pela
matemática, são permanentes, podem ser desmembradas em elemen­
tos discretos relativamente homogêneos, suscetíveis de análise quan­
titativa .
Com base n a afinidade entre os objetos dessas duas ciências,
surgiu com absoluta naturalidade a idéia de aplicar o método de
uma delas à solução de tarefas da outra. A lógica matemática sur­
giu e se desenvolveu inicialmente como aplicação do método mate­
mático à solução d e problemas lógicos, posteriormente, como apli­
cação da lógica à solução de q uestões que se colocavam diante da
matemáti ca. Diante disto, podem-se destacar duas etapas na fo r­
mação da lógica matemática .
A primeira etapa está vinculada à aplicação da simbólica mate­
mática à solução de problemas lógicos. Está relacionada com a
atividade de pensadores como George Boole ( 1 8 1 5- 1 864 ) , Charles
Sanders Peirce ( 1 839- 1 9 1 4 ) , Ernest Schrõder ( 1 84 1 - 1 902 ) , P . S .
Poretsky ( 1 846- 1 907 ) . As exigências do desenvolvimento da lógi­
ca formal suscitaram a necessidade de calcular as formas mais sim­
ples e mais gerais de relações existentes entre os elementos nas dedu­
ções e juízos, em sua formalização. A aplicação da simbólica matemá­
tica e dos métodos de computação contribuiu indiscutivelmente para

75
a solução desse probl ema. No entanto a ampla introdução desses
métodos e d a correspondente simbólica para expressar as relações ló­
gicas ainda n ão traria à lógica formal nada basicamente n ovo por
con teúdo . Por si só, a simbólica matemática não pode mudar a
essência do pensamento lógico .
A segund a etapa no desenvolvimento da lógica matemática está
relacionada com a aplicação da lógica formal à solução de proble­
mas matemáticos. O desenvolvimento da matemática em fins do sé­
cul o XIX e começo do século XX exigia a solução dos problemas
puramente lógicos, não-resolvidos pela lógica formal nem se quer na
exposição simbólica. O dispositivo lógico da lógica formal foi in­
suficiente para a solução de muitas q uestões relacionadas com os
problemas da fundamentação da matemática, da teoria das multipli­
cidades, da elucidação da essência, da estrutura das demonstrações
m atemáticas, da relação q ue nelas existe entre os conceitos .
Assim se formou a lógica matemática (simbólicq ) , etapa atual
do desenvolvimento da lógica formal. Formamos uma noção mais
precisa do conteúdo da lógica formal contemporânea após tomar­
mos conhecimento do seu método de estudo do conhecimento en­
q uanto processo lógico . Esse método consiste n a transformação do
conhecimento num modelo ideal construído sobre os princípios
do cálculo formal, numa linguagem artificialmente criada .
A . Church assim descreve o método de construção do sistema"'
lógico : "O vocabulário . . . de uma língua se consegue inscrevendo
os símbolos unos q ue serão empregados . Estes se denominam sím­
bolos básicos da língua e devem subentender-se como sendo indivi­
síveis . . . A sucessão linear final dos símbolos básicos se d en omina
fórmula. De acordo com determinadas regras, destacam-se do con­
junto de todas as fórmulas as fórmulas corretamente construídas . . .
Depois disto algumas dentre o número de fórmulas corretamente
construídas são declaradas axiomas. E, por último, estabelecem-se
as regras ( básicas ) da conclusão ( ou regras de a çõ es ou regras de
transformações ) pelas q uais, das respectivas fórmulas corretamente
construídas, como de premissas, uma certa fórmula corretamen­
te co ns t ruída se extrai diretamente ou diretamente se segue como con­
clusão"ªº· De modo idêntico estão construídos todos os cálculos ló­
gico-formais existentes e similarmente construirão novos. Mudam ape-

ao A . Churc h . In trocl11çtío à /ógicti matem âtica, t. l, Moscou, 1 9 60,


p. 49, ed. e m russo.
'•\.
76
n as os sinais, as regras de formação de proposições destes, os axio­
mas básicos e as regras de passagem de umas proposições a outras.

Esse modelo ideal de construção do conhecimento, por outras


pal avras, a linguagem artificial formalizada é, no verdadeiro sentido,
um cânon do pensamento, q ue serve de método de análise do conhe­
cimento real . f: como se nós aplicássemos esse modelo aos resulta­
d o s do conhecimento real e tentássemos assimilar este do ponto
de vista da q uele e fazer construções segundo el e. A a ná l ise lógica
do conhecimento teórico com base no referido método deu grandes
resul tados tanto para o desenvolvimento do conhecimen to teórico
como para a prática, sobretudo para a solução dos problemas da
t ransmissão das funções do pensamento humano à máquina. A ci­
bernética seria impossível sem a criação de um método de análise
d o conhecimento com base em linguagens artificialmente formal i­
zadas .
Com o auxílio desse método, pode-se anal isar o conhecimento
existente e reconstruí-lo devidamente, expressá-lo, na medida do
possível , num sistema rigorosa m ente formalizado. Ele contribui tam­
bém pã ra a obtenção de um novo conhecimento, uma vez que a
an álise dada pode descobrir alguns elementos e elos em falta, in­
dispensáveis para a construção de um sistema teórico formalizado e
orientar o pensamento humano no sentido da procura dos mesmos.
Por isso não se pode considerar correta a concepção segundo a qual
o método da lógica formal em nada contribui para a evolução do

conhecimento n o sentido de novos resul tados. Esse método, eviden­


temente, é antes de tudo um método de construção e demonstração
do conhecimento teórico, mas em certos limites pode ter também
sign ificado heurístico. "Até a lógica formal constitui, antes de tudo,
u m método de busca de novos resultados, de transição do desconhe­

c i d o a o conhecido . . . " :n-escreveu Engels. Seria incorreto pensar


que a lógica formal tradicional criou um método de obtenção do
novo conhecimento en q uanto que a lógica contemporânea, mais
acabada, perdeu essa capacidade .
Como q ual q uer outro, o método de construção de sistemas for­
malizados tem os seus limites. Na matemática e em outros campos
d o conhecimento, por exemplo, os sistemas teóricos se formalizam
de acordo com o modelo do conhecimento na forma como este é
concebido pela lógica formal . Mas a axiomatização dos sistemas da fí-

31 K. Marx e F . Engels. Obras, t . 20, p. 1 3 8.

77
sica teórica já encontra certas dificuldades. E se essa axiomatização
é possível, não será na forma preconizada pelo método da lógica
formal contemporânea. :E: claro que não excluímos a possibilidadde
nem mesmo a necessidade de um grande trabalho no sentido da
construção de sistemas formalizados em diversos campos da ciência
contemporânea, até a criação de algoritmos pelos quais possam as
máquinas funcionar .
Mas será que pode a lógica se limitar ao trabalho de construção
de cânones acabados do pensamento, ou seja, a criar linguagens for­
malizadas para a análise de áreas concretas do conhecimento teó­
rico moderno?
Há uma questão mais genérica que não carece de fundamento :
será que a lógica estuda o pensamento em geral? J an Lukasiewcz,
por exemplo, escreveu : "No entanto não é verdade que a lógica
seja a ciência das leis do pensamento. Investigar como nós realmente
pensamos ou devemos pensar, não é objeto da lógica. A primeira
questão pertence à psicologia, a segunda se refere ao campo da
arte prática, à semelhança da mnemônica. A lógica não tem menor
relação com o pensamento do que a matemática"32• A resposta a
essa questão deve ser focalizada, indubitavelmente, com mais pre­
cisão do que o fez Lukasiewicz. O método moderno de análise ló­
gico-formal, ou, como a denomina A . Church, análise lógica, tem
por objeto a linguagem. E aqui concordamos com a afirmaçãr, de
Lukasiewicz : "A lógica formal contemporânea tende à maior pre­
cisão possível. Esse objetivo pode ser alcançado somente com o
auxílio de uma linguagem precisa, construída de símbolos estáveis,
visivelmente perceptíveis. Semelhante linguagem é indispensável a
toda ciência. As nossas idéias próprias, não-formalizadas em pala­
vras, são para nós mesmos quase ininteligíveis : n ão-expressas, as
idéias de outras pessoas só podem ser acessíveis ao vidente. Para ser
assimilada e reconhecida, toda verdade científica deve ser materiali­
zada numa forma exterior inteligível para cada um. Todas essas
afirmações constituem verdade indiscutível. A lógica formal contem­
porânea, por conseguinte, dá enorme atenção à precisão da lingua­
gem. O que se chama formalismo é o efeito dessa tendência"ªª .

ª� J. Lu kasiewicz. A silogística aristotélica do ponto de vista da lógica


formal c o1 1 t emporâ11ea. Moscou, 1 959, p. 4 8 , ed. em russo.
3J J bi d . , p. 5 2 .

78
\
Se Lukasiewicz reconhecia tudo isso como verdade indiscutível,
n ão se compreende porque ele negava à lógica o estudo do pensa­
mento. Ora, a linguagem é urna forma de ser do conhecimento. Ao
estudá-la, procurando dar-lhe a maior precisão e rigor, estamos ope­
rando com um aspecto determinado do pensamento, com a sua aná­
lise. A lógica formal estuda o conhecimento, o pensamento, por­
quanto este, numa forma ou noutra, sempre atua corno linguagem
vinculada a símbolos e à operação com estes. Mas este é apenas
um aspecto do pensamento e sua análise lógica .
Atualmente, os trabalhos de lógica matemática amordam não
raramente os problemas da matemática, enquanto se aplica o dis­
positivo da lógica justamente à solução de tarefas matemáticas, ra­
zão pela qual se deve concordar com aqueles autores que, para
evitar a ambigüidade vinculada ao uso do termo "lógica matemáti­
ca", sugerem para a lógica formal contemporânea algum outro ter­
mo : "lógica formal teórica' ou "lógica simbólica'' , etc .
Alguns autores supõem que a lógica matemática ( simbólica )
n ão é o único dispositivo lógico formal possível .
Podemos supor que aceitamos que o dispositivo lógico-formal
não se esgote com a lógica matemática no referido volume e venha a
completar-se, mas isto não significa que a complementação se dê
à custa da incorporação do conteúdo da lógica formal tradicional .
Nas condições atuais, a lógica formal só pode desenvolver-se me­
diante a criação de sistemas de sinais. A lógica tradicional, enquanto
disciplina científica especial da lógica, perdeu o seu sentido, de
vez que a lógica matemática, precisamente como lógica formal, re­
solveu as suas tarefas com mais plenitude, precisão e profundidade.
Ela pode manter o seu significado pedagógico como propedêutica
no estudo da lógica e da filosofia; mas todas as tentativas de gal­
vanizá-la enquanto teoria lógica moderna estão condenadas ao fra­
casso .
Diferentemente da lógica tradicional , a lógica formal contem­
porânea deixou essencialmente de ser parte da filosofia; perdeu o
seu significado de base do método filosófico de obtenção da verdade ,
suas leis não podem ser método universal de conhecimento dos
fenômenos e de sua transformação na prática.
Nas condições do conhecimento científico avançado de hoje,
a lógica formal se converteu em campo isolado da ciência, que,
como resultados dos seus êxitos, separou-se ultimamente da filo­
sofia assim como desta se desmembraram em seu tempo outras
ciências (naturais e sociais ) . O objeto da lógica formal se tornou
extremamente especial, e neste sentido ela em nada difere de outras

79
c1encias ( da psicologia, lingüística, matemática, etc. ) . O fato de a
lógica formal estudar um aspecto qualquer, relacionado com o pen­
samento, por si só ainda não pode servir de argumento a favor
de que ela se incorpore ao objeto da filosofia como parte com­
ponente. A lógica formal estuda apenas um aspecto especial do
pensamento e por isso não pode pretender a condição de método
universal de conhecimento. A filosofia marxista estuda o pensamento
e sua leis com a finalidade de descobrir as leis gerais do desenvol­
vimento dos fenômenos do mundo exterior, bem como para revelar
a s leis do desenvolvimento do próprio conhecimento, esclarecer a
relaç.ão deste com os fenômenos da realidade objetiva .
A filosofia marxista mantém com a lógica formal a mesma re­
i ação que mantém com outros campos do conhecimento científico
( matemática, física, biologia, psicologia, lingüística, etc. ) . Negar a
lógica formal seria tão absurdo quanto negar a matemática, a lin­
gi.iística, etc . Além disso, a filosofia marxista pressupõe a exis­
tência da lógica formal, cujos resultados a interessam n a mesma
medida que os resultados de todas as outras ciências especiais. É
claro que a lógica formal usa as categorias elaboradas pela filoso­
fia. Assim, por exemplo, deve partir de uma concepção científica
da verdade, do seu critério, da essência do pensamento e sua for­
ma, da correta solução materialista dialética do problema fundamental
da filosofia, etc. Com seu método e baseada em suas leis, ;. própria
lógica formal não resolve nem pode resolver esses problemas ; seu
objeto é outro. Mas outras ciências especiais necessitam, na mes­
ma medida, da solução dos problemas filosóficos. A física moderna,
por exemplo, sente a necessidade de uma visão dialético-materialista
do mudo assim como a lógica formal. A filosofia fornece à física
moderna os conceitos científicos de matéria, movimento, espaço,
tempo, etc. Deste modo, a filosofia marxista é necessária à lógica for­
mal na mesma medida em que é necessária a outras ciências .
Alguns representantes da lógica formal constroem as suas teo­
rias com base nas categorias da filosofia idealista, desenvolvem a
doutrina da construção da demonstração à base da gnosiologia po­
sitivista ou de outra gnosiologia idealista. Isto, evidentemente, não
causa nem pode causar à lógica formal um grande dano na mesma
proporção em que o idealismo influencia prejudicialmente a física,
matemática, biologia, etc. Por isso a lógica formal foi e continua
sendo palco de uma intensa luta entre o materialismo e o idealismo.
E uma das tarefas mais importantes dos lógicos materialistas é a
crítica científica dos fundamentos idealistas dos trabalhos dos ló­
gicos formais burgueses .

80
)

A diferença de outras c1encias espec1a1s, a lógica formal é a


c1ue se encontra mais próxima da filosofia seja pela sua origem ( co­
meçou a desmembrar-se da filosofia há relativamente pouco tempo ) ,
seja pelo conteúdo : as leis e formas desta lógica têm um campo
bastante amplo de aplicação ; devem ser sempre e em toda parte
observadas independentemente do conteúdo do nosso pensamento, em­
bora, por si mesma, a observância das leis da lógica formal ainda
n ão garanta a autenticidade objetiva do pensamento. Mas as leis
e formas da lógica formal não podem servir de base ao método fi­

l osófico e à teoria do conhecimento, porquanto abstrai o desen­


vol vimento quer dos fenômenos do mundo exterior, quer do pensa­
mento. E quando o método de qualquer ciência especial ( mecânica,
matemática, física, biologia) se converte em método filosófico do
conhecimento, então esse mesmo método se torna unilateral , me­
tafísico .
Até agora falamos da lógica formal como um dos métodos de
estudo do pensamento. Detenhamo-nos em outro método lógico : a
dialética .
Desde a Antiguidade, a dialética assumiu duas formas diferen­
tes : a da arte de operar com conceitos (Platão ) e a da assimilação
teórica da própria realidade, principalmente a natureza (Heráclito ) .
Esses dois princípios na dialética pareciam absolutamente heterogê­
neos : a dialética ou ensina a pensar ( arte de operar com conceitos ) ,
ou permite uma compreensão, uma assimilação do próprio mundo,
da n atureza de sua coisas . ' Esses dois sistemas de conhecimento
por muito tempo se opuseram um ao outro como o lógico ao onto­
lógico. Com o passar do tempo, entretanto, a evolução da filosofia
conduziu à idéia da coincidência entre eles. Além das outras tarefas
que tem, a dialética visa ainda a criar e aperfeiçoar um dispositivo
para o pensamento teórico-científico gue conduza à verdade obje­
tiva. Mas esse dispositivo é aqui constituído pelo sistema de con­
ceitos cujo conteúdo é tomado ao mundo objetivo .
As formas e leis do pensamento que a dialética como lógica
estuda não são mais que formas e leis do movimento do mundo ma­
terial, incorporado ao processo conjunto de trabalho e inserido
no campo da atividade humana. O traço peculiar da atividade do
homem e do seu pensamento consiste justamente na universalidade,
i . e . , no fato de o homem social ser capaz de transformar qualquer
objeto da natureza em objeto e condição da sua atividade vital e
n ão estar atrelado às condições biológicas limitadas da vida da es­
pécie, como ocorre com o animal. Com isto o homem demonstra a
sua universalidade em geral e a universalidade do seu pensamento

81
em particular, de vez que o pensamento nada mais é que a capa­
cidade desenvolvida de atuar conscientemente com qualquer objeto
segundo a forma própria e a medida deste, com base na imagem
que com veracidade objetiva o reflete .
As leis e formas do pensamento, sistematizadas pela lógica, são
apenas leis e formas do mundo que o homem aprende, da natureza
e da sociedade, formas e leis do mundo representado e representá­
vel na consciência. A diferença entre as leis "ontológicas", e as "ló­
gicas" consiste unicamente em que, na natureza, e predominante­
mente, ainda, na sociedade, essas leis se concretizam por via in­
consciente, sob a forma de necessidade exterior que abre caminho
através do caos das aparentes casualidades, ao passo que o ser pen­
sante tem capacidade para atuar por via consciente de acordo com
elas, ou seja, livremente.
De ponto de vista do materialismo dialético, a dialética do de­
senvolvimento da natureza e da sociedade é justamente a lógica do
pensamento combinado com a realidade .
A força da dialética enquanto lógica está em sua capacidade
de relacionar a objetividade do conteúdo dos conceitos e teorias da
ciência com a sua mutabilidade, ihstabilidade. Além disso, a dia­
lética demonstra que fora do desenvolvimento é impossível a oQten­
ção da verdade objetiva. A ciência contemporânea necessita de urna
lógica que revele as leis do conhecimento enquanto processo de co­
nhecimento do objeto pelo pensamento .
Lênin formulou da seguinte maneira as exigências básicas da
lógica dialética : "Para conhecer realmente o objeto, é preciso abran­
gê-lo, estudar todos os seus aspectos, todas as relações e 'mediações' .
Nunca conseguiremos isto plenamente, mas a exigência de multila­
teralidade nos prevenirá contra erros e necrose. Isto, em primeirn
lugar. Em segundo, a lógica dialética exige que se tome o objeto
em seu desenvolvimento, 'automovimento' ( como Hegel às vezes
dizia ) , em mudança . . . Em terceiro lugar, toda a prática humana
deve incorporar-se à plena 'definição' do objeto q uer como crité­
rio da verdade, quer como determinante prático da relação entre o
objeto e aquilo de que o homem necessita. Em quarto lugar, a lógi­
ca dialética ensina gue 'não há verdade abstrata, que a verdade é
sempre concreta' . . . "ª-!.

34 V. J. Lênin. Obras comp ll'tas, t. 42, p. 290.

82
A dial ética não é um cânon qualquer, uma instância verificada
do conhecimento obtido mas um organon, meio e método de trans­
formação do conhecimento real por meio da análise crítica do ma­
terial factual concreto, um método ( modo ) de análise concreta do
o bjeto real, dos fatos reais. Contudo, a lógica dialética desempenha
certa função também no processo de demonstração das teorias. A
demonstração da verdade, bem como a sua descoberta, se realiza
segundo as leis inerentes ao mundo objetivo. A demonstração da
verdade é indissolúvel e momento subordinado do processo de sua
ob tenção. Para demonstrar a veracidade de qualquer construção
t eórica, é necessário mostrar o camii:iJ10 pelo qual o nosso pen­
samento chegou a ela, analisar o material factual, as leis e formas
de sua elaboração, o método de construção de uma teoria. O pro­
cesso de obtenção da verdade não pode ser representado sob uma
forma em que ela seria inicialmente descoberta e depois demons­
t rada. O processo de sua descoberta compreende a sua demonstra­
ção e vice-versa : a demonstração de uma teoria se apresenta ao
mesmo tempo com seu desenvolvimento, complemento, concretização.
S falsa a afirmação segundo a g_ual o experimento seria um
simples instrumento da demonstração da veracidade de uma teoria
ou apenas um meio de revelação de novos fenômenos, de constru­
ção de novas hipóteses. Todo descobrimento científico implica a
unidade da descoberta - do novo e da demonstração ou refutação de
alguma construção teórica já existente. Ao lançarmos alguma cons­
trução teórica nova, rejeitamos simultaneamente algo velho e de­
monstramos algo novo . O processo de demonstração não tem qual­
c1uer outro objetivo sen ão o do estabelecimento da verdade objetiva
e, ao contrário, o conhecimento desta comprende tanto o momento
quanto a demonstração . Assim, · em O imperialismo como fase supe­
rior do capitalismo, Lêni n demonstra certas teses que caracterizam
a ess ência do imperialismo. Prova da veracidade dessas teses é o

caminho real da pes quisa leninista de novos fenômenos caracterís­


t i cos do imperialismo, a generalização destes com base na filosofia
marxista, que aqui tem a função de método de pesquisa e - a par
com a lógica formal - como método de demonstração .
O exame do objeto em seu "automovimento", com todas as
s u a s r el a ç õ e s e mediações, não é apenas nem simplesmente o ca­

m inho de obtenção da verdade, é também a demonstração desta .


Na demonstração, cabe um significado especial à prática, fora da
<1ual geralmente não se pode resolver o problema da veracidade ou
falsidade de qualquer construção teórica. A unidade entre a teoria
e a prática é a mais importante tese metodológica da filosofia mar-

83
xista, tese que serve de fio condutor ao estudo do objeto e ao
estabelecimento da veracidade do conhecimento adquirido. Como se
sabe, considera-se demonstrada uma tese científica se esta tiver sido
logicamente tomada de outras teses cuja veracidade se haj a estabe­
lecido anteriormente. Mas não podemos resolver a questão da vera­
cidade de qualquer tese científica que sirva apenas de argumento
na demonstração, ou da veracidade da própria dedução lógica se n ão
superarmos os limites do pensamento, passando ao campo da ativi­
dade prática. Será mesmo objetivo o conteúdo do nosso pensamento,
estaremos vinculados às propriedades mesmas do objeto ou terá o
pensamento caído em ilusão, movimentando-se no campo de con­
cepções subjetivas, divorciadas das propriedades e leis cognoscíveis
inerentes ao mundo objetivo? :É impossível responder a esta per­
gunta se ignorarmos o papel da prática na demonstração da verdade.
Enquanto do u t liin a do método de obtenção e; demonstração da
verdade, a lógica dialética focaliza as formas de pensamento cujo
estudo sempre foi objeto da lógica. Ao estudar as formas de pensa­
men to, el a parte antes de tudo da solução materialista do problema
fundamental da filosofia. Após definir o conteúdo principal da ló­
gica dialética como ciência, Lênin escreveu: " O conjunto de todos
os as p e cto s de um fenômeno, da realidade e as relações ( mútuas ) en­
tre eles - eis aí de que se constitui a verdade . As relações
(= trans ições = contradições ) entre os concei tos conteúdo prin­
=

cipal da lógica, sendo que esses conceitos (e as relações entre eles,


transições, contradições ) apresentam-se como reflexos do mundo
objetivo. A dialética das coisas cria a dialética das idéias e não ao
contrário" 3 5 •
Para o marxismo, o lógico ( movimento do pensamento) é o
reflexo do histórico ( movimento dos fenômenos da realidade obje­
tiva ) . Para representar a dialética objetiva de modo pleno e profun­
do, as formas de pensamento devem, por si mesmas, ser dialéticas -
móveis, flexíveis, inter-relacionadas. A dialética estuda a relação en­
tre as formas de pensamento, a subordinação destas no processo de
movimento do conhecimento no sentido da verdade. "A lógica dia­
lética, em oposição à velha lógica puramente formal, n ão se con­
tenta com enumerar e, sem qualquer nexo, colocar lado a lado a s
formas de pensamento, vale dizer, as diversas formas de juízos e
deduções. Ela, ao contrário, extrai essas formas uma por uma, es­
tabelece entre elas uma relação de subord inação e não de coorde-

a5 V. I . Lên i n . Obras completas, t. 29, p. 1 78 .

84
n ação, desenvolve formas superiores a partir de fo rm a s inferiores" ª6
- escreveu F . Engels .
A lógica dialética toma por base da solução desse problema o
princípio da unidade entre o abstrato e o concreto no pensamento
teórico-científico . Esse princípio ocupa l u g a r especial na lógica d i a ­
lética; nele se baseia a construção de todo o s i s tema da l ógica dialéti­
ca : o desenvolvimento dos juízos, conceitos, deduçôcs, teorias ci­
entíficas e hipóteses não é senão u m p rocesso d e as c e n s ã o do abs­
trato ao concreto. O movimento do pensame n t o <lo abstrato para o
concreto é um meio de obtenção da a u t ê n t i ca objeti vidade no co­
nhecimento. . . . O método de ascensão do abstrato ao c o n c r e t o é
"

apenas um meio pelo q ual o pen samento a p ree n d e o con creto e o


reproduz como esp i r itual me n te concrelo""7 esc reveu K . M a rx .
-

Por último, a lógica d i al ética a n a l i s a a estru t u r a das formas


de pensamento, dando ênf a se principal à d i a l é t i ca d a i nter-relação
entre singular, particul ar e u n i ve rs a l nessas formas enquanto re­
flexo das relações do mundo objetivo .
Entre a lógica dialética e a formal existe uma diferença de
princípio no enfoque das formas de pensamento . Como a lógica
formal, a lógica dialética também analisa o pensamento que se
reflete na linguagem, porquanto não há outro pensamento real de
existência real para o homem . No entanto a lógica dialética não
se detém na linguagem ; considerando a linguagem apenas como meio
de existência e funcionamento do conhecimento, ela procura pene­
trar no próprio processo de aquisição do conhecimento, no próprio
p ro cesso de pensamento, no modo em que nele se reflete a realida­
de obj e ti v a Ora, o homem n ão necessita do pensamento para cons­
.

t ru i r u n s símbolos l i ngü ís t ic os a partir de outros ; com base nas idéias


e por meio da prá t ica, o homem produz umas coisas de outras coisas .

E para o m o d o de p ro d ução das coisas, é necessário o reflexo cl a


s u a n a t ureza n o pen samento .

Assim, se a lógica formal se interessa pel a própria forma lin­


g ii ís t i ca d e expressão de uma idéia, então a lógica dialética estuda,
a n tes de tudo, o conteúdo mental expresso n a forma lingüística,
enquanto a dialética dá atenção especial à relação desse conteúdo
m e n tal com a realidade objetiva. A lógica dialética se interessa pe­
los conceitos, juízos, deduções, teorias, hipóteses, etc. , justamente

:111 K. ?vl arx e F. Engels. Obras, t. 20, p. 583.


:11 K . M arx e F. Engels. ObraJ, t . 1 2, p. 727.

85
enquanto formas de cognição da natureza objetiva das coisas e suas
relações. Por isso a dialética não estuda a linguagem enquanto meio
de funcionamento do pensamento (os símbolos e as formas de suas
relações nos enunciados e construções teóricas ) mas as próprias
formas de conhecimento da realidade objetiva pelo pensamento .
Neste sentido surge uma questão : em primeiro lugar, dever-se-ia
chamar à lógica formal lógica, se ela não estuda o pensamento pro­
priamente dito mas a linguagem enquanto meio de sua existência
(linguagem natural ou artificial ) ? Em segundo, aplicar-se-ia o ter­
mo "lógica" à dialética, considerando-se que ela não estuda o pen ­
samento como atividade subj etiva mas as leis e formas universais de
todo desenvolvimento, que atuam simultaneamente como leis e for­
mas de conhecimento do objeto pelo pensamento? A lógica formal
seguiu outra tradição, que se definiu desde os tempos dos estóicos :
o caminho da interpretação do campo do lógico até os recursos de
l inguagem, enquanto que a dialética, ao contrário, seguiu outro ca­
minho já verificado em Aristóteles : o caminho da dilatação do cam­
po do lógico até as leis e formas da realidade objetiva, que são re­
fletidas pelo pensamento e cujo conhecimento é um degrau do mo­
vimen to do conhecimento no sentido de novos resultados . Parece­
nos que há bastante fundamento para que as duas ciências se deno­
minem lógica, de vez q ue a palavra grega antiga >.. o yoC tem uma infi­
nidade de sign ificados, entre os quais figuram palavra e pensamen­
to. Uma estuda a /... o yoC por se t ratar de pal avra, linguagem, a outra,
por tratar-se de pensamento voltado para o conhecimento da rea-
· ·

lidade objetiva .
Portanto, a lógica dialética se apresenta como ciência da verda­
de, do processo de coincidência do conteúdo do conhecimento com
·
o objeto, ciência das categorias à base das quais o pensamento coin­
cide, coaduna-se com a realidade material. Por outras palavras, as
categorias cujo sistema forma a lógica dialética são definições uni­
versais da realidade sob a forma em que esta aparece no conheci­
mento objetivo-verdadeiro, verificado e verificável pela prática do
homem, pois as definições do pensamento "verdadeiro" são defini­
ções de uma realidade verdadeiramente cognoscível. As categorias
filosóficas são con dições de concordância, coincidência ( identida­
de) en tre o pen samento e a realidade, um caminho de aquisição do
conhecimento objetivo-verdadeiro .
En tende-se c1ue, aqui, a relação entre pensamento e realidade
nunca é interpretada como "identidade" abstrata, morta, como uma
simples " a mes ma coisa" mas como o caso mais típico de identidade
dos contrários . Por isso as categorias dialéticas se apresentam ao

86
mesmo tempo como formas de transição ( transformação ) da realida­
de ao pensamento, a forma de conhecimento (i. e., como degraus do
conhecimento, da representação do mundo na consciência ) e como
fases de transformação do conhecimento em realidade, como de­
graus da realização prática e da verificação do conhecimento pela
prática. Em decorrência, a dialética, ou lógica dialética, atua ime­
diatamente também como teoria do conhecimento ( gnosiologia ) .
A dialética é, antes de tudo, um meio de incremento do co­
nhecimento real por meio da análise crítica do material factual
concreto, um método de análise concreta do objeto real, dos fatos
reai s .
Enquanto lógica, a dialética se propõe a finalidade n ão de
construir o conhecimento existente segundo um modelo ideal mas
de interpretar as leis de transição de um sistema teórico a outro,
a descobrir as leis da gênese das teorias científicas, as vias do seu
desenvolvimento. No processo de evolução do pensamento filosó­
fico, elaborou-se o método de análise do conhecimento teórico,
cujos pontos de partida são :

1) o conhecimento como processo de conhecimento da rea­


lidade objetiva pelo pensamento ;
2 ) a interação prática entre sujeito e objeto como base do
movimento do conhecimento no sentido de novos resul­
tados ;
3 ) o conhecimento como movimento no sentido de novos
resultados segundo as leis e formas da própria realidade
objetiva, representadas na conciência do homem ;
4 ) as leis e categorias da dialética, elaboradas no processo
de desenvolvimento histórico, que se constituem n as leis
do movimento quer dos fenômenos da realidade objetiva
q uer do conhecimento dos mesmos, leis e categorias que
são um instrumento pelo qual o homem obtém novos re­
sul Lados no pensamento.

Assim, o desenvolvimento da lógica levou à sua bifurcação em


duas partes autônomas, independentes uma da outra. Uma delas
coincidiu por conteúdo com a dialética, que por si mesma atua
como método do movimento do pensamento no sentido da verdade
objetiva, em suma, é lógica. Hoje, quando se levanta o problema
da inter-relação entre a dialética e a lógica, fica realmente sem so­
l ução o modo de posicionamento da dialética em relação à lógica
formal , de vez que a própria dialética é lógica não-formal.

87
Existe a tendência a apresentar a dialética e a lógica formal con­
temporânea como dois sistemas incompatíveis que se excluem mu­
tuamente : o reconhecimento da dialética levaria à negação da ló­
gica formal e vice-versa. Mas tal poderia ocorrer somente se esses
dois sistemas científicos tivessem o mesmo objeto e construíssem
teorias que negassem uma a outra, como, por exemplo, se em
oposição à lógica formal a dialética admitisse que da premissa :
todos os homens são mortais, Sócrates é homem, se deduzisse que
Sócrates n ão é mortal. No entanto a dialética não possui nem o seu
cálculo de sentenças, nem cálculo de predicados, etc. Aliás esse
nem é o seu campo de pes quisa . No pensamento teórico-científico,
a dialética e a lógica formal abordam aspectos diferentes . A dialética
fornece o sistema de categorias que apresentam desempenho posi ti­
vo no processo de movimento do pensamento nq sentido de novos
resultados, enquanto a lógica formal é um dispositvo através do qual
podem-se inferir segundo regras estabelecidas todos os efeitos pos­
síveis do conhecimento existente .
Pode surgir a pergunta : então como se deve encarar as obser­
vações dos fun dadores do marxi smo-leninismo, nas quais se expres­
sa a oposição da di alética à lógica formal? Será que eles não tinham
razão?
Respondendo a essa questão, deve-se levar em conta antes de
tudo que, como todas as outras afirmações da ciência, elas são
verdadeiras num campo concreto, relativo a uma área rigorosa­
mente determinada ; fora dos limites desse campo elas perdem o
sentido e o seu verdadeiro conteúdo. ;e. verdade que, ao elaborarem
a lógica dialética, os fundadores do marxismo-leninismo a coloca­
vam em oposição à lógica formal. Ressaltavam que a lógica formal
é restrita enquanto método de conhecimento, que, comparada à dia­
lética, ela é um degrau inferior. Enquanto métodos de conheci­
-
mento da realidade, a lógica formal e a dialética se relacionam en­
tre si como a matemática inferior e a superior .
Essa mesma idéia é desenvolvida por Lênin no artigo "Mais
uma vez sobre os sindicatos", onde escreve : a lógica formal "toma
as definições formais orientando-se por aquilo que mais habitual­
mente ou mais freqüentemente salta à vista e se limita a isto"38 •
Os fundadores do marxismo-leninismo mostraram as limitações
da lógica formal enquanto método filosófico e teoria do pensamen-

ss V. L Lên i n . Obras completas, t. 4 2 1 p p . 289-290.

88
to. Muitos dos f(l ósofos que a el aboraram eram, como se sabe,
idealistas na solução do problema fundamental da filosofia, disso­
ci avam o pensamento do mundo material , as formas de pensamento
do conteúdo delas (por exemplo, Kant c os kantianos ) , partiam
da concepção idealista da verdade e d o seu critério, consideravam
as formas de pensamento apenas co mo paralelas, fora do seu movi­
mento no processo de evolução d o conhecimento. Enquanto teoria
filosófica do conhecimento, a l ó gi ca dialé tica se opõe à velha lógica
formal .
São da maior importância as teses de Enge l s c Lên i n s ob re o
lugar que a lógica formal deve ocu p a r n a dout r i n a do pensamento .
Eles não negam a imporlând a da 16gica fo rmal mas afi rmam que,
uma vez s u rgida a l óg ic a d i a l é t ica, a lógica formal perde o seu sig­
nificado anterior de m é todo f i l o s 6 fico e t e o r i a do pensamento. Man­
ter-se, n os séculos XIX e XX, nas po s i ç õe s da lógica formal no
campo do método f i l osófico implica cm regredir à metafísica, entra
e m contradição com o nível atual de desenvolvimento do conheci­
mento científico .
F . Engels observava que a lógica formal metafisicamente in­
terpretada como método filosófico do conhecimento serve apenas
para afazeres domésticos; ela é impotente quando se procura apli­
cá-la à explicação dos fenômenos estudados pela lógica contemporá­
nea. Mas a lógica formal conserva o seu significado como doutrina
do conhecimento dedutivo, das leis e formas da inferência de um
juízo entre um sistema de outros anteriormente constituídos ; ela
forma parte da doutrina científica da demonstração, de suas for­
mas, estrutura e relações dos juízos nela existentes. A atitude nihi­
I i st a face à lógica formal e sua propriedade não é própria do mar­
xismo, que se limitou a definir o objeto da lógica formal sem
aban d o n á-l a .
Na f o rm a simbólica de exposição, a lógica formal moderna
n ão é "má" nem "superior" . Como qualquer ciência, tem seu obj e­
to e seu método. � um campo do conhecimento científico que es­
tuda o pensamento a partir de um aspecto especial. E neste sentido
a lógica formal em nada difere de outras ciências. Ela se torna "má"
tão logo começa a pretender o papel de metodologia universal do
conhecimento moderno. Entendida corretamente, é um dos pode­
rosos meios de conhecimento da estrutura do pensamento ; o dispo­
sitivo por ela elaborado é usado pelas mais diversas ciências .
A experiência do desenvolvimento do conhecimento científico
moderno mostrou que os dois sistemas lógicos - a dialética e a
lógica formal - dão resultados positivos. A ciência precisa de re-

89
gras rigorosas de dedução e dos sistemas de categorias que servem
de base à imaginação produtiva, à atividade criadora do pensamento
no sentido do domínio de novos objetos da realidade .
Além da lógica matemática ( simbólica) , que é uma etapa atual
da lógica formal, e da dialética, alguns autores destacam ainda a
chamada lógica tradicional ou clássica e levantam o problema da
necessidade de elaborá-la. Por lógica tradicional eles subentendem,
cm essência, a silogística aristotélica, acrescida da doutrina da in­
dução e de questões da dialética que se referem aos problemas da
essência dos conceitos, da sua formação e de algumas premissas
teórico-cognitivas .
Pode-se, evidentemente, traçar um curso de lógica, que, no cam­
po da problemática especial da lógica formal, venha a colocar-se no
n ível de Aristóteles e Mill e tenha como premissas teórico-cogni ti­
vas as teses gerais da gnosiologia marxista. Em certo sefitido e
para um determinado auditório semelhante curso talvez venha a ser
útil, e se dúvidas surgem nesse terreno, de modo algum se pode cha­
mar a essa lógica disciplina científica moderna, pois ela não tem
objeto próprio e, principalmente, não ç:ria o seu método de estudo
do pensamento no n ível atual. Ora, hoje ninguém se proporá se­
riamente a anal isar o pensamento científico à base do dispositivo
da silogística aristotél ica, embora esta não tenha perdido a sua im­
portância porquanto depois das definições e transformações ela se
i ncorpora aos cálculos lógicos da lógica matemática ( s imbólica ) .
Assim, a dialética e a lógica formal c:ontemporânea são dois di­
ferentes enfoques ao estudo do pensamento, duas lógicas importan­
tantes para todo conhecimento científico. E é isto que as distingue
de outras ciências que atuam como lógicas aplicadas e criam mé­
todo de estudo dos seus objetos específicos . Essas duas lógicas pos­
suem diferentes objetos, sendo que uma delas é filosofia, método do
pensamento teórico-científico, enquanto a outra, nas condições atuais,
converteu-se em campo especial do conhecimento científico e per­
deu o significado de método filosófico. Para o movimento do co­
nhecimento científico, elas são necessárias em sua unidade justa­
mente à medida que propiciam conhecimentos diversos .
Tanto a lógica formal como a dialética, nesse ou naquele sen­
tido, h á muito são aplicadas à an álise dos resultados das conquistas
da ciência e como método de movimento no sentido de novos re­
sultados. Neste sentido e dependendo de sua própria maturidade, do
nível de conheci mento científico e do caráter das concepções filosó­
ficas dominantes, elas sempre assumiram forma histórico-concreta .

I
90
li

Dialética : M é todo do Pensame n to


Teórico-Cien tífico

"O h o me m tem d i an te de si u ma rede de fe­


nômenos da natureza. O homem i n s t i nt iv o ,
pri m i ti v o , não f az distinção entre si e a na­
t u reza . O homem consciente o faz, e as ca­
tegorias são níveis dessa distinção, i. e., são
nívei s do conhecimento do m u n d o, pontos
de coi:ifluência na rede, que aj u da m a conhe­
cê -l a e dominá-la" 1 •

1. Ü CONCEITO D E MÉTODO

O m é t od o é um m ei o de obtenção de determinados resultados


no conhecimento e na prát i c a . Todo método compreende o conhe­
ci m en t o das leis objetivas. As leis interpretada s constituem o aspecto
obje ti vo do método, sendo o subjetivo formado pelos recursos de
pesquisa e transformação dos f e nôme n o s , recursos esses que s u rge m
com base n aquelas leis. Por si mesmas, as leis obj e ti va s não consti­
tuem o método ; tornam-se método os procedimentos que nefas se
baseiam e servem para a sucessiva i n terpret ação e t r an sform a ção da
realidade, p ar a a ob ten ç ão de novos resultados.
O m ét o d o é he u rís ti c o , reflete as leis do mundo objetivo sob a
óti c a d o p ro ce dim en t o que o homem deve adotar para obter novos
resultados no conhecimento e na prática. A s vezes se absolutiza esse
lado su bj etivo do método e então ele é interpretado como um con­
j un t o de p r oce di mento s desvinculados do mundo obj etivo.

1 V . 1 . Lênin. Obras completas, t . 29, p. 85 .

91
·'

Do aspecto externo, todo método científico atua sob a forma


de aplica;:ão de certo sistema racional a diversos objetos no processo
da atividade teórica e prática do sujeito. Assim, por exemplo, o
método é freqüentemente definido como "capacidade de operar com
h abilidade complexos naturais, realizada de modo deliberado e cons­
ciente nos limites de uma sucessão de expressões que pode ser
reproduzida"2•
Neste caso entende-se o método como certo procedimento,
como um conjunto de meios e ações exercidas sobre o objeto es­
tudado. Como escreveu Hegel, o método "é colocado como ins­
trumento, como certo meio situado no l ado subjetivo através do
q ual este se correlaciona com o objeto" ª·
Por isso o método se apresenta na superfície como algo sub­
jetivo, como contraposição ao objeto. Realizando os seus fins, o
sujeito procura interpretar o objeto e transformá-lo por meio de
u m sistema até certo ponto assimilado.
Ao fixar esse aspecto do método, o subjetivismo o concebe
como sendo absolutamente estranho ao objeto, um procedimento
puramente subjetivo. Mas se isto assim fosse, o método não pode­
ria conduzir o conhecimento e a ação prática ao domínio do objeto.
Ao afirmar que "o método pode, da maneira mais aproximada,
ser concebido apenas como aspecto ou modo de conhecimento e

que ele tem realmente essa n atureza" 4 , Hegel mostra o fundamento


objetivo do método : o sistema do conhecimento verdadeiro, sistema
que expressa o conhecimento das leis do objeto. Essas leis se trans­
formam, se reinterpretam nas regras de ação do sujeito, Como res­
salta T. Pávlov, "o método científico é a regularidade interna do
movimento do pensamento humano, tomada como reflexo subjetivo
do mundo objetivo, ou, o que é a mesma coisa, como lei objetiva
'transplantada' e 'transferida' na consciência humana, empregada
de modo consciente e planificado como veículo de explicação e mu­
dança do mundo" 5•
No método do conhecimento, a l ei objetiva se converte em re­
gra de ação do sujeito. Por isso todo método atua como sistema

2 1. Buchler. Th c Concept o/ metlzod. New York and London, 1 9 6 1 ,


p . 1 35.
a Hege l . O b ras, t . VI, Moscou, 1 9 3 9 , p . 209.
4 Hegel. Obras, t. IV, p. 298.
5 T. Pávlov. Teoria do reflexo. M oscou, 1 948, p. 40 1 .
de regras ou procedimentos elaborados para o conhecimento e a prá­
tica. :E: por este motivo que surge a categoria de precisão como cri­
tério de apreciação das ações do sujeito, não importa que estas
correspondam ou não às regras do método. A categoria de precisão
é aplicável não só à análise das relações entre as sentenças, fato
estudado pela lógica formal, como ainda pode caracterizar a relação
entre as idéias num sentido mais amplo, en tre os processos reais ou
a relação entre as idéias e os processos reais, por exemplo, entre
as exigências do método e as a ç õ es reais . Essa categoria é apli­
cável tanto ao método da lógica formal como a todos os ou­
tros métodos científicos especiais, apl icando-se igual mente ao mé­
todo da dialética, porquanto esta não só revela as leis objetivas do
movimento como as formul a com base na regra do conhecimento
teórieo e da ação prática. f!. isto que distingue a precisão da vera­
cidade. A veracidade se releva imed iatamente por meio da compa­
ração do conteúdo do pensamento com o objeto, estabelecendo-se
entre eles uma identidade, enquanto que a precisão se revela por
meio da comparação da ação ( teórica ou prática ) com a situação
( regra, procedimento ) ; a precisão se relaciona com o objeto medi­
ante a veracidade do sistema de conhecimento e à base desse sis­
tema formula-se a regra de comportamento.
Não se pode separar a precisão da veracidade. Identificá-las se­
r i a , contudo, igualmen te inadmissível . A precisão, como já disse­
mos, não é a apreciação do conteúdo do pensamento mas das ações
do homem ( sigam estas certas regras ou não ) ; a veracidade é a
apreciação do conteúdo do pensamento, o estabelecimento da iden·
tidade d e s te com o objeto. A diferença entre precisão e veracidade
consiste em tratar-se, no primeiro caso, das ações do sujeito que
mais uma vez não se comparam com o próprio objeto mas com as
regras estabelecidas, tratando-se, no segundo, do conteúdo do pen­
samento do homem, conteúdo independente do comportamento deste;
a veracidade é determinada apenas pelo objeto. A precisão se ba­

seia na veracidade mas com esta n ão se identifica. Em sua atividade,


o homem efetua uma transição da veracidade à precisão, transição
idêntica à transformação do pensamento em ação. Na precisão, é
como se passássemos a outro campo relacionado com a veraci­
dade e a realidade teórica, mas ultrapassando simultaneamente os
seus limites : aqui já se trata do comportamento do homem, da
apreciação dos seus atos e ações do ponto de vista da necessidade
teórica ( correspondência com as teses de caráter objetivo-verdadei­
ro ) e em conformidade com as n ecessidades práticas.

93
São essas peculiaridades da prec1sao que encontramos na apre­
ciação do problema. Em realidade, pode-se examinar o problema
do ponto de vista da veracidade por ele se basear no conhecimen­
to já adquirido, de caráter objetivo-verdadeiro. Mas esse conhecimento
ainda não é um problema. Neste se observam certas ações com vis­
tas a ultrapassar os limites das teses teóricas existentes. Por isso,
quando apreciamos um problema, estamos tratando também dessas
ações, que possivelmente levarão a novos resultados científicos. Ao
problema podem incorporar-se os resultados obtidos, que já podem
ser apreciados como verdadeiros ou falsos; em seguida, possíveis
teses teóricas, que, uma vez formuladas, também poderão ser apre­
ciadas como falsas ou verdadeiras ; por último, as ações que devem
conduzir a esses resultados científicos diferentes. Não pode haver
a questão da falsidade ou veracidade dessas ações, pois não se trata
de teses teóricas mas de ações que podem conduzir a teses teóricas.
Elas não são estranhas à veracidade mas a esta não se reduzem. O
problema implica ações que podem ser apreciadas do ponto de vista
da precisão ( metodicamente ) : saber se, por um lado, correspon­
dem às regras de caráter objetivo-verdadeiro e se, por outro, às ne­
cessidades, objetivos e anseios do sujeito, que também têm caráter
objetivo, pois são determinados pelas condições de vida dos homens,
pelo nível de civilização atingido. Noutros termos, trata-se da ori­
entação da atividade do sujeito, voltada para a obtenção de resul­
tados científicos.
As regras de ação que caracterizam o método de conhecimento
são sempre padronizadas e rigorosas 6• Podem distinguir-se pelo grau
de generalidade e aplicabilidade, mas sendo regras devem ser uní­
vocas e relativamente constantes. Pode-se até dizer que, enquanto
meio de ação, elas são automáticas e racionais : assim e somente
assim, após isto deve vir isto (a e somente a, após a deve vir b ) ;
caso sej am possíveis variações, estas serão igualmente padronizadas
e determinadas ( após a pode vir b , que por si mesmo é e, ou d , ou
o próprio a pode ser ou q, ou p ) .
O método são regras de ação, padronizadas e unívocas ; não
havendo padrão nem univalência, então não há regra, logo, não há

6 Diante disto n ã o podemos omitir a definição m u i t o precisa de · pre­


cisão, dada por Hegel : "A precisão . . . como tal é geralmente um.a igualdade
no exterior, o u melhor, uma repetição igual da mesma figura determinada
( Gestal t ) , que nos d á a unidade determinante para a forma dos objetos "
( Hegel, Obras, l. XU, Moscou, 1 93 8 , p. 1 3 8) .

94
método, não há lógica. É ªªro que as regras mudam ; nenhuma delas
é única e abso l uta, mas uma vez que é reg r a de ação do sujeito,
então deve ser determinada e p a dron iz ad a .
Assim, o método de conhecimento implica sempre dois aspec­
tos organicamente relacionados: um objetivo e um subjetivo, sendo
que, no método, o primeiro deve converter-se no segundo. No sen ­
tido gnosiológico, essa conversão s i g n i fi c a a conversão da veracidade
em precisão.
A unidade entre o sistema e o método tem caráter dialético.
Por um lado, nenhum sistema de c o n h e c ime n to se realiza plena­
mente no método, aquele é por conteúdo mais rico que este. Por
outro lado, o método que surge com base no s ist e m a ultrapassa-lhe
forçosamente os limites ao des e nvo l ve r- se , l eva à m u dan ça do v elho
sistema de conhecimento e à c ri ação de um no v o . O sistema é mais
conserv ador, procura mante r- s e e a p e rf ei ç o a r- s e . O método é p or
natureza mais móvel, volta-se para o i n c re m ento do conhe cim e n t o
e a criação de um novo sistema.
Na medida em que o método se baseia num sistema teórico
objetivo -verdadeiro, ele não pode, em essência, ser incorreto. In­
correta pode ser a aplicação prática desse método pelo sujeito, so­
bretudo a extensão do seu campo de ação além dos lim i tes do
objeto cujas leis se refletem no sistema teórico que serve de b as e
a dado método .
A hi s tóri a da ciência não conhece nenhum método que t enh a
sido ap l icado de fato à prática científica sem ser racional nessa ou
n aquela medida i. e., um método cuja ap l i c a ç ão não t en h a con­
d uzido a resultados positi vos nesse ou n a q u el e campo. Isso po d eri a
acontecer somente em um caso : se o método se baseasse num sis­
tema falso de conhecimento. Mas ci entist a nenhum iria construir
um método b a se ado num con h ecimento notoriament e falso .
É es s a a situação na ciência que opera com teorias que desco­
brem leis objetivas. Mas será que essa situação se estende ao mé­
todo filosófico? Em certo sentido, evidentemente se estende. Isto se
refere n a tu ralmen t e à dialética, que sempre descobriu certos mo­
mentos no movimento dos fen ômeno s da realidade objet i va e nes s a
base const ru iu o método de conhecimento. Aliás a metafísica tam­
bém não era infundada, baseava-se nas leis descobertas pela ciência
mas transformava as mesmas em método universal do con hecime n to .
É a esta c i rcunst ância que se deve a dualidade da metafísica: ela é
c orre ta em c ertos limites e impotente em suas pretensões à univer­
s al i dade . "O modo metafísico de interpretação, embora seja l ícito e
até necessário em certos campos mais ou menos amplos, depen-

95
dendo do caráter do objeto, cedo ou tarde chega sempre ao limite
além do qual ele se torna unilateral, limitado, abstrato, enredando­
se em insolúveis contradições . . . " 7 - escreveu F . Engels .
Por isso pode-se revelar no método metafísico o aspecto ver­
dadeiro, indicar os limites de sua aplicação; é justamente o que faz
a dialética. Por exemplo, a metafísica se manifesta em duas formas
fundamentais : a clássica, que absolutiza o momento de estabilidade,
de precisão qualitativa, de tranqüilidade, e sob a forma de relati­
vismo, que, ao contrário, absolutiza o próprio movimento. Lênin
ressaltou este aspecto : "a diferença entre o subjetivismo ( ceticismo
e sofística, etc . ) e a dialética, aliás, está em que na dialética ( obje­
tiva) é relativa até a diferença entre o relativo e o absoluto. Para
a dialética objetiva, há absoluto no relativo"ª .
:e necessário distinguir do método a metodologia, ou seja, a
doutrina do método, a teoria do método. Ao assimilarmos algum
método científico, podemos subestimar o seu papel e suas possibi­
lidades, considerando-o único e absoluto. Por isso a dialética não se
volta contra qualquer forma de metafísica enquanto método de co­
nhecimento aplicável em certos limitts mas contra a metodologia
que procura omitir esses limites e convertê-lo em método filosófico
da ciência moderna.
f: claro que alguns filósofos constroem sistemas especulativos
que não produzem a verdade objetiva e os convertem em método
de filosofar. Mas não conseguem qualquer método que tenha im­
portância para o desenvolvimento do conhecimento científico, e seus
sistemas e métodos não deixam vestígio palpável. Quando dizemos
que todo método tem um lado racional, atua em certos limites, não
temos em vista semelhante tipo d e construções artificiais. Entende­
mos por método um meio de atividade do homem em que se unem
num todo as leis objetivas interpretadas com o fim voltado para
a apreensão do objeto e a sua transformação.

2. As INTER-RE LAÇÕES DO MÉTODO FILOSÓFICO COM OS


M ÉTODOS ESPECIAIS DE CONHECIMENTO

O método se baseia nos sistemas do conhecimento objetivo­


verdadeiro, criados pela ciência em conjunto e por alguns de seus

1 K. M a r x e F. Engels. Obras, t. 20, p. 2 1 .


e V . 1 . Lên i n . Obras completas, t . 29, p . 3 1 7.

96
1
campos. A diversidade de tais sistemas gera uma riqueza de mé­
todos científicos. Alguns métodos são aplicados por muitas ciên­
cias, outros, apenas por uma, aplicando-se, às vezes, em uma ciência
somente em caso de estudo de um objeto rigorosamente especial
( por exemplo, a metódica do estabelecimento da idade dos mine­
rais orgânicos segundo o carbono radioativo ) .
Diante disto pode-se sugerir uma infinidade de diferentes clas­
s i ficações dos métodos de conhecimento, tomando por base da divi­
são diversos indícios : a esfera de aplicação do método, o caráter
das leis que lhe servem de base, etc.
Para os nossos fins, importa a divisão dos métodos de conhe­
cimento em dois grandes grupos : métodos filos6ficos e métodos
especiais. Tomamos por base dessa divisão os sistemas teóricos ( con­
ceitos, leis ) de onde surgem os métodos. O conhecimento filosó­
fico tem o seu objeto, as categorias que o refletem e, conseqüen­
temente, o seu método.
Quando se fala de particularidades do método filosófico, cos­
tuma-se enfatizar a sua universalidade, sua aplicabilidade em todos
os campos da ciência.
Nenhum método, inclusive o filosófico, recebe como prêmio a
universalidade ; esta se estabelece n a prática do conhecimento cien­
tífico e depende do nível em que este se encontre. Os métodos expe­
rimental ou estatístico desempenhavam originalmente um papel bas­
tante modesto no movimento do conhecimento. Hoje, no entanto,
nenhuma ciência pode prescindir deles. Com o método metafísico
ocorreu o contrário. Houve época em q ue o nível em que se encon­
trava a ciência lhe permitia ser aplicado em toda parte .
Ao caracterizar o método metafísico e as condições da ciência
que o geraram e o tornaram universal, F. Engels escreveu : "A de·
sintegração da natureza em partes isoladas, a divisão de diversos
processos e objetos da natureza em classes determinadas, o estudo
da estrutura interior dos corpos orgânicos segundo suas variadas
formas, tudo isso constituiu a condição fundamental dos êxitos gi­
gantescos que nos últimos quatrocentos anos foram alcançados no
campo do conhecimento da natureza. Mas aquele mesmo método de
estudo nos legou, ao mesmo tempo, o hábito de examinar as coisas
e processos em seu isolamento, fora da grande relação geral que

há entre eles, a examiná-los não em movimento mas em estado de


i mobilidade, n ão como essencialmente mutáveis mas como eterna­
mente imutáveis, não vivos mas inertes. Transferido das ciências
naturais para a filosofia por Bacon e Locke, esse método de inter­
pretação criou uma restrição característica dos últimos séculos : o

97
método metafísico de pensamento" 9• O estado atual do conheci­
mento cien tífico e suas necessidades são tais que não restaram nem
vestígios da universalidade do método metafísico.
O que é que converte a dialética materialista em método filo­
sófico da ciência moderna? O importante para o método filosófico
não é o fato de aplicar-se em toda parte mas o fato de ele tentar
descobrir as leis da evolução do conhecimento humano no sentido
da verdade. As regras e procedimentos da lógica formal são igual­
mente aplicáveis em todos os campos do conhecimento científico,
no entanto não podem pretender o papel de método de desenvol­
vimento da ciência moderna.
O dispositivo formal do pensamento, a cuja elaboração se de­
dica a lógica formal, ajuda a compreender a estrutura. da teoria
científica moderna, desempenha certa função no movimento entre
uma teoria e outra, mas é incapaz de explicar o desenvolvimento
natural do conhecimento científico.
A alguns filósofos burgueses, a impressionante mutabilidade
dos conceitos e teorias da ciência moderna se afigura absolutamente
i n co mpat ív el com o reconhecimento da objetividade do conteúdo
desses conceitos e teorias. O pensamento racional relaciona objeti­
vidade com imobil idade, absolutividade com imutabilidade, mas não
pode relacionar a objetividade do conhecimento com a sua evolu­
ção. Entretanto, são igualmente demonstradas a veracidade obje­
tiva das teorias da ciência e a rápida substituição, a evolução destas.
Faz-se necessário um método filosófico que possa explicar como e
por quê isso é possível, segundo que leis se processa o desenvolvi­
mento do conhecimento científico, qual a sua tendência fundamental.
O método filosófico deve explicar as peculiaridades do conhe­
cimento científico moderno e contribuir para o seu desenvolvimento,
definir corretamente as suas tendências, as formas e métodos de
enriquecimento com novos resultados. Para tanto ele deve ter como
base lógica um sistema de categorias desenvolvido e substancial .
Uma universalidade acanhada é má virtude de uma categoria filosó­
fica, enquanto o conteúdo objetivo, que determina as possíveis vias
do movimento do conhecimento, é a força dessas categorias.
A dialética marxista não serve a si mesma nem é necessária
à sua autoj ustificação; ela é um método de aq u i sição da verdade
obj etiva e e st á subordinada à tarefa de representar as leis da natu-
reza e da vida social tais quais elas existem n a realidade. Alguns
cientistas, aparentemente desejosos de prestar serviços à dialética,
criam teorias pseudodialéticas (se é que se pode usar semelhante
expressão ) que na aparência correspondem às leis e categorias da
dial ética marxista mas em realidade estão distantes da verdade ob­
jetiva. Mas a dialética materialista enquanto método científico é
f or te justamente por considerar mais i m portante o movimento no
sentido de resultados objetivo-verdadeiros. Nunca pode entrar em
conflito com a ciência porque ela mesma muda e se desenvolve à
base da aquisição de novos conhecimentos cien tíficos. E s sa capaci­
dade do método dialético de mudar a sua forma segu ndo o nível
de conhecimento científico garante-lhe efi ciência e rel ação indestru­
tível com a ciência .
O êxito e a "capacidade de desempenho" do método depen­
dem do tipo de leis em que se baseiam as suas regras, da pleni­
tude e precisão com que essas regras refletem tais leis.
Na filosofia burguesa, reduz-se amiúde o método filosófico de
conhecimento científico a três momentos : indução, dedução e veri­
ficação da teoria no experimento. A indução conduz à construção
teórica, a dedução permite conseguir o efeito da teoria e o experi­
mento verifica esses efeitos. Assim o método científico é descrito
por muitos autores que compartilham a concepção positivista da
ciência. J . G . Kemeny, por exemplo, afirmava que existe um mé­
todo fundamental comum a toda a ciência, sendo que o caráter cí­
cl ico do movimento se destaca como o traço mais característico
desse método. "Ele começa pelos fatos e termina com os fatos ;
os fatos, ao concluírem um ciclo, são o começo do ciclo seguinte.
O cientista mantém suas teorias sob verificação experimental , está
sempre disposto a renunciar a elas se os fatos n ão confirmarem a
h i p óte s e. Se uma série de observações destinada a confirmar certas
previsões nos leva a abandonar a nossa teoria, então procuramos uma
teoria nova ou melhorada . . . Já que admitimos ser a Ciência cons­
tituída de uma rede infinita de progresso, podemos supor esse pro­
gresso cíclico infinitamente contínuo " 1 0 •
Indução-dedução-verificação, que se repetem ciclicamente,
ocupam, evidentemente, posição relevante no método científico. En­
tretanto não podemos reduzir o método a esses momentos que est ão
• e m constante repetição. Enquanto método, a dialética materialista

10 J. G . Kemeny. A Ph ilosopher looks a i scie11ce . Pri ncelon, e le . ,


1 9 5 9 , pp. 85-86.

99
elaborou uma infinidade de formas inter-relacionadas, modos e pro­
cedimentos que "trabalham" à base de categorias como as de abs­
trato e concreto, lógico e histórico, razão e juízo, análise e sínte­
se, etc .
As leis da dialética materialista explicam o conhecimento como
sendo um processo em desenvolvimento, que incorpora necessaria­
mente saltos, interrupções do processo de graduação, a aquisição
de resultados basicamente novos à base da solução das contradições
que s u rg e m entre o sujeito e o objeto. A dialética n ão simplifica o
processo do pensamento científico, não o reduz à dedução lógico­
formal nem tampouco dtf margem a especulações irracionalistas.
O método filosófico surge como generalização de todos os ou­
tros métodos,· não se iguala a nenhum destes mas incorpora dos
mesmos a bagagem da mesma forma que o universal absorve o
particular e o singular. Em termos genéticos, o processo de desen­
volvimento vai dos métodos especiais ao filosófico. Aqui, como em
toda parte, o processo evolui do singular ao universal através do
particular. No entanto isto ocorre não por meio da transformação
de um método especial ( ou de métodos especiais ) no filosófico.
Este surge independentemente, mas levando em conta os resultados
dos métodos especiais.
Os métodos especiais são multiformes. Entre eles podemos des­
tacar aqueles que são aplicados por diversas ciências. Estes podem
ser denominados métodos especiais universalmente científicos. Em­
bora estes métodos sejam aplicados em muitas ciências (e a ten­
dência é aplicá-los em todas ) , devemos situá-los entre os métodos
especiais e não no filosófico, de vez que não determinam o cami­
nho geral de evolução do conhecimento no sentido da verdade com
todos os componentes mas apenas alguns aspectos, alguns mom;n ­
tos dessa evolução.
Os métodos particulares especiais são elaborados para esse ou
aquele campo do conhecimento, constituindo um meio de forma­
ção de teoria e obtenção, nesta, de novos resultados científicos. Al­
guns deles já se estendem atualmente às ciências mistas. De aplica­
ção muito restrita, os métodos particulares especiais merecem mais
corretamente a denominação de metódicas, que formam os proce­
dimentos particulares de investigação em ciências isoladas.
A correta relação entre os métodos filosófico e especiais pres­
supõe que o método filosófico é irredutível aos métodos especiais,
assim como n ão se pode considerar o método especial como sendo
refratário, como forma de manifestação do filosófico. A dialética
materialista não é uma soma de métodos especiais seja qual for a

100
forma em que estes se manifestem ; ela elabora suas categorias em
cujos limites dá-se o movimento do pensamento. O centro para
o q ual se volta o método de conhecimento é a teoria científica e o
modo de seu funcionamento, a construção e o desenvolvimento.
A dialética materialista não é simplesmente reinterpretada em
cada método especial ; enquanto método que em toda sua concre­
ticidade e multiformidade de manifestações visa a interpretar a rea­
lidade objetiva, dá lugar a qualquer método científico nesse pro­
cesso de construção e desenvolvimento de qualquer teoria concreta,
livrando-o da unilateralidade e das pretensões ao absoluto. Cada
método especial é original, não sendo nenhuma modificação "pe­
quena" , "medíocre" da dialética.
Se atentarmos para a história da evolução do método filosófico,
veremos que ele foi elaborado, por um lado, mediante a obliteração
das pretensões ao absoluto que se verificavam nos métodos basea­
dos no conhecimento das leis dos aspectos isolados dos fenômenos
da realidade objetiva, e, por outro, da formação dos princípios gerais
do movimento do conhecimento no sentido da criação de uma
teoria concreta. As principais intenções dos filósofos dos séculos
XVII-XVIII eram a procura de um novo método cuj a aplicação
permitisse atingir o domínio sobre a natureza ; fazer descobertas ci­
entíficas. " . . . Do juízo, da atividade, das tendências e aspirações
dos homens devemos esperar muito mais, algo melhor e alcançável
em menos tempo do que devemos esperar do acaso, dos instintos
animais e de tudo o mais que até hoje deu início às descobertas
científicas" 11• Descartes propunha a criação de uma filosofia prá­
tica que nos tornasse "senhores e soberanos da natureza" A filo­ .

sofia da Idade Moderna mostrou nitidamente que sem método é


impossível resolver a tarefa de apreender a natureza e dominar as
suas forças espontâneas. Neste sentido muda o próprio objeto da
filosofia, no q ual o método assume significado principal . O caráter
do método filosófico da q uele período era determinado pelo nível do
desenvolvimento social em geral e d a ciência em particular . A
partir da segunda metade do s é culo XV, as ciências naturais come­
çam a alcançar os primeiros êxitos, após elaborar o método de es­
tudo da natureza que serviu de base também ao método filosófico.
Ao elaborar o m étodo, Bacon se orientou nas ciências natu­
rais experimentais, razão por que seu método tem como elementos
componentes a indução, análise, comparação, observação e o expe-

11 F. Bacon. Novo organon . Mascou, 1 93 8 , p. 84, ed. em russo.

101
rimento. Interpretada à maneira materialista, a expenencia se con­
verte cm instrumento fundamental do conhecimento. A ciência deve
construir-se com base na análise, na observação e no experimento,
remontando ao conhecimento das causas, leis e os elementos mais
s i m pl e s ( "naturezas" e "formas" ) . O modo dessa ascensão é a
indução, a q ue ele chama "obtenção ou produção de axiom as
a partir da experiência'12 •
Galileu e Descartes tomaram outro caminho.
Ao refutar as tentativas dos escolastas de encontrar a verdade
mediante a confrontação de textos de autores famosos, Galileu ela­
borou e concretizou na prática das suas investigações científicas o
método de processamento racional dos dados da experiência. O
traço característico do método de Galileu é a combinação da expe­
riência ( observação e experimento ) com uma precisa análise mate­
mática e com a expressão quantitativa dos re!.ultados obtidos no
experimento.
O fim do método científico e da experi .nentação plan i fic a da é
r e v e lar os elementos mais simples a partir dos quais se formam os
fenômenos da natureza, bem como a verificação dedutiva da vera­
cidade das proposições lançadas no processo de análise (método
composicional ) . Em G a l il e u encontramos a unificação dos méto­
dos i n d utivo-experimental e abstrato-dedutivo.
O antípoda do método indutivo unilateral de Bacon foi o igual­
mente unilateral método dedutivo de Descartes, que também rejei­
tava a escolástica medieval e o misticismo, procurando colocar a
ciência em base sólida. Mas o filósofo racionalista não tomava como
base sólida a experiência e a indução, mas a intuição raCi onal e
a dedução .
Na colocação do problema do método filosófico, esses pen­
sadores se caracterizam pri nc ipa l m ente pelo empenho em t r a n s ­
formar o método aplicado nesse ou naquele campo do conhe­
cimento em mo d o universal de construção da te o ria científica. M as
Kant e, posteriormente, Hegel j á abordaram de modo diferente
a solução desse problema. Eles não procuraram converter em mé­
todo filosófico universal o método de qualquer ciência particular
( mecânica ou matemática ) .
Para os represen tantes do idealismo clássico alemão, a tarefa
da filosofia é extrair da análise do próprio pensamento ( sob forma

12 lb., p. 1 1 0.

1 02
concreta geral ) os caminhos do movimento no sentido da verdade.
Na tentativa de superar as insuficiências do método baseado na con­
cepção mecanicista do mundo está o valor do "método crítico" de
Kant.
Hegel avançou mais por esse caminho. Ao revel ar momentos
do método filosófico como 'a progressão do movimento mediante
as contradições, a negação enquanto formu de a u tomovimento, Hegel
construiu todo um sistema de ca teg or i a s Enfatizando o caráter ob­
.

jetivo destas, escreveu : Freq üe ntem e n t e considerou-se a dialética


"

como certa arte, como se ela radicasse cm algum talento subj etivo
e não pertencesse à obj e ti vi d a d e do concei to" 1 ª . A dialética é o
conteúdo interior do objeto e não algo exterior a este. O método
hegeliano é o método filosófico, constrnído com base no s i s te m a de
conhecimento filosófico e não por meio da transformação de um
método especialmente científico em método universal ; ao perderem
sua desmedida pretensão, os métodos especiais passam a ocupar o
seu devido lugar. O marxismo deu continuidade e desenvolveu essa
concepção da diferença entre o método filosófico e os métodos das
ciências especiais, reconhecendo ao mesmo tempo a estreita rela­
ção de reciprocidade entre o primeiro e o segundo. Abordaremos
detalhadamente a concepção marxista do método filosófico.

3. LEIS E CATEGORIAS : CONTEÚDO DO MÉTODO


DIALÉTICO MARXISTA

A dialética materialista tem as suas leis, entre as quais cos­


tumamos distinguir as chamadas leis básicas : 1 ) lei da unidade e
luta dos contrários, 2 ) lei da transformação das mu dan ças quan­
titativas em qualitativas, 3 ) lei da n egaç ão da negação. Todas elas
são indispensáveis e n o conjunto são suficientes para, no funda­
mental, opor a teoria dialética do desenvolvimento à t e o ri a me­
tafísica. As leis básicas da dialética ocupam posição especial na
c onc ep ção dialética do desenvolvimento, penetram todo o conteúdo
dessa concepção.
Por mais importantes que sej am, as leis básicas não es got a m
a riqueza da teoria dialética. Existem outras leis da dialética que
são a concretização, a complementação das básicas e a elas con-

n Hegel. Obras, t. VI, p. 304. (Ed. russa . )

1 03
vencionamos chamar leis não-básicas. No entanto isto não m i n i ­
miza, em hipótese nenhuma, a importância destas na concepção
dialética do desenvolvimento.
Qual a diferença entre as leis básicas e as não-básicas?
As leis básicas da dialética revelam a fonte de desenvolvimento
do mundo objetivo e do pensamento humano, a orientação desse
desenvolvimento, a tendência e a relação mútua entre as suas for­
mas ( evolucionária e revolucionária ) , isto é, abordam as questões
mais gerais da teoria do desenvolvimento ; as leis não-básicas tra­
duzem aspectos e momentos isolados no processo de desenvolvi­
mento ; as relações de reciprocidade entre forma e conteúdo, essên­
cia e fenômeno, possibilidade e realidade, causa e efeito, casuali­
dade e necessidade, singular e universal, etc .
O estabelecimento da relação de reciprocidade entre forma e
conteúdo do objeto tem, evidentemente, grande importância na teo­
ria do desenvolvimento, embora caracterize apenas um momento
isolado no processo de desenvolvimento. A lei da unidade e luta
dos con trários ou outra lei básica da dialética mat erial i st a deter­
min a , po r sua vez, o principal e o essencial no desenvolvimento
como um todo.
Entre todas as leis da dialética, a lei da unidade e luta dos
c ontr á ri osocupa po si ção especial . "Em termos sucintos, pode-se
definir a dialética como doutrina da unidade dos contrários. Com
i t so se abrangerá o núcleo da dialética . . . " 1 4 escreveu Lênin .
-

Todas as outras leis da dialética ( tanto as básicas quanto as não­


básicas ) são uma revelação, concretização ou complementação do
conteúdo dessa lei básica. A subordinação daquelas se desenvolve
justamente à base desta, ou sej a, o lugar das outras leis é determi­
nado na doutrina do desenvolvimento enquanto unidade e luta dos
contrários.
As l eis da dialética, assim como os seus traços e definições
básicas dos conceitos, logicamente não se deduzem de um conhe­
cimen to pré-estabelecido, tr ate - s e de teses filosóficas ou lei e con­
ceitos das ciências concretas. Além disso, embora a lei da unidade
e luta dos contrários seja a principal entre todas, isto não significa ,
absol utamente, que a s outras leis da dialética derivem dedutiva­
mente dela.

H V. J. Lê n i n . O bras completas, t . 29, p. 203 . (Ed. russa . )

1 04
Entre as leis da dialética, a relação é diferente das conexões
en tre o fundamento lógico e o seu efeito. Conexas, elas são ao
mesmo tempo independentes umas das outras, de vez que são igu al ­
mente universais e se p os t ul am à b a s e da extrapolação científica d os
resultados do conhecimento de fenômenos isol ados, das leis e do
c o n j un to destes .
Além do mais, o número de l e i s da d i alética não pode ser
l imitado por um n úm ero quak1 uer. Neste sen t i d o n ã o pode s urg i r o
problema da plenitude das le i s da d i a l ét i c a , po r q u a n t o a teori a da
dialética n ão é u m a construção d e caráter axiomático ; el a não é
acabada e está ab e rta a todas as leis. Nisto resi d e u m a das peculia­
ridades da d i a l ét ica en qu a nt o ciência. Não se pode, por meios pu­
ramente lógicos, respo n d e r à pergu n t a : s e r ia m suficientes as três
leis fu nd a men t a i s d a d i a l é t i c a , esgotari a m elas a f u n çã o que geral­
mente se a t ribui ao t ermo " l ei f u n d a m en t a l da dialética" '? Por exem­
p l o , é perfe i t amen te a d m i ss ív e l conceber como básica apenas uma
lei - a l e i da u n i d a d e e luta dos contrários - e não as d uas outras
( t ransformação da qu an t i d a d e em qualidade e negação da nega­
ção ) e t r an s fo rm ar em categoria as n ão-básicas .
O próprio sistem a da dialética não so f re rá m udan ç a essencial
por causa d i s s o . Isto s ignifi ca que novas leis podem ser inseridas
n a c at eg ori a de básicas .
O sistema l ó g i co da dialética m ate ri al is ta n ão pode ser i n t e r ­
p r e t a d o sem que nele se defina o lugar das categorias ( necessi d ad e­
causal idade, causa-efeito -, forma-conteúdo, essênci a-fenômeno ,
u n iversal-singular-único, etc. ) .
Quan do se trata da definição d as c at eg o ri a s , indica-se habitu al­
mente que as categorias são term os mais gerais. Esta d efi n iç ão é
correta e a e l a é d i f íc i l fazer al g u m a objeção . R e al m en t e , as cate­
gorias são for m a s de pensamento, e como t a i s devem ser incorpo­
radas aos c o n c e i t o s . As c a t e g or i a s, assim como outros c onceit o s ,
são reflexo d o mundo obj e tiv o , uma g en er al i z aç ã o dos f en ô me n o s ,
processos que existem independentemente d a nossa c o nsciên ci a . As
c a t e g ori as são produdo d a atividade da matéria de certo modo orga­
n izada - o cérebro , que p erm i t e ao homem representar ad equ a­
d a m en t e a realidade. É co rre t o , ainda, que as categorias são redu­
çôes n a s quais s e abrange, em c on so n ân ci a com as p ro pri e d ade s
gera i s , a multiplicidade de diversos objetivos, fenômenos e proc e s ­
s o s s e n sori al m en t e perceptíveis .
Porém, p o r mais corretas e importantes que sej am todas e s s as
características, el as ainda não revelam a essência d as categorias fi l o­
sóficas e sua especificidade, v i s t a s , às vezes , na g ran de afi n id a d e

1 05
que tais categorias apresentam em comparação com todos os outros
conceitos da ciência. Essa diferença está demasiadamente indefinida,
de vez que muitos conceitos fundamentais da matemática (ponto,
l inha, número ) , da física ( massa, energia, etc . ) , também apresen­
tam um grau muito elevado de generalidade.
A diferença entre as categorias da filosofia e os conceitos fun­
damentais das outras ciências é determinada pela especificidade do
objeto da filosofia, pela diferença entre ele e o objeto de todas as
outras ciências .
No seu conjunto, as categorias do materialismo dialético re­
f /e tem as leis mais gerais do desenvolvimento do mundo objetivo.
A unidade entre as leis do pensamento e as leis do ser deter­
mina a existência do conteúdo objetivo e da função lógica das cate­
gorias da dialética materialista, que é simultaneamente lógica e teoria
do conhecimento do marxismo.
Todas as categorias da filosofia marxista têm conteúdo objetivo,
pois, de uma forma ou de outra, elas são reflexo das leis do mundo
objetivo. Sem esse conteúdo objetivo elas perderiam o seu signifi­
cado e deixariam de ser categorias filosóficas. Mesmo aquelas cate­
gorias da filosofia que se consideravam puramente gnosiológicas ( o
lógico e o histórico, o abstrato e o concreto, etc . ) refletem n ã o só
as leis do desenvolvimento do processo cognitivo como do próprio
mundo objetivo. Tomemos, por exemplo, as categorias de concreto
e abstrato. No conhecimento, o concreto é o reflexo da unidade, da in­

tegridade de diversas propriedades e aspectos multifacéticos da


realidade. No conhecimento, o abstrato reflete a ind@pendência rel a­
tiva de aspectos isolados desse todo único. Sem revelar o conteúdo
objetivo das chamadas categorias gnosiológicas, não se pode apre­
ender a função que elas desempenham na criação da imagem cog­
nitiva profunda e ampla. O mesmo se refere a outras categorias
afins .
São de conteúdo objetivo até os diversos procedimentos lógicos
do estudo do objeto, de vez que estes também são um análogo da
realidade e dos processos que nela se desenrolam. As categorias não
separam o homem do mundo mas o unem com este por serem ob­
j etivas a seu modo e refletirem os processos da natureza e da socie­
dade tais quais eles existem na realidade.
As categorias da filosofia têm importância metodológica, ser­
vem de meio de procura de novos resultados, são um método de
movimento do conhecido ao desconhecido.

106 I
Reconhecer às categorias importância metodológica · implica em
desistir de opor o materialismo como teoria filosófica . à dialética,
enquanto método filosófico .
As leis e categorias da filosofia marxista se distinguem não
pelo fato de umas serem leis e categorias do método e, outras, da
teoria. Distinguem-se pelo conteúdo objetivo, pelo aspecto, pela
lei do mundo objetivo que refletem. Neste sentido são igualmente
método de conhecimento sucessivo das leis da realidade. Todas as
categorias do materialismo dialético estão vinculadas à solução do
problema fundamental da filosofia, ao estudo do processo de pen­
samento, à relação do pensamento com o ser e à revelação do
conteúdo real do objeto. Não há categorias que tenham impor­
tância puramente ontológica e não estej am de forma alguma rela­
cionadas com a solução do problema fundamental da filosofia. :f:
amplamente sabido que a filosofia antiga dava grande atenção ao
estabelecimento da "essência primária" , do "princípio" , da "causa
primeira" de todos os fenômenos da realidade. A dialética materia­
lista obliterou esse problema corno sendo metafísico, que exala o
cheiro da velha ontologia. Não é, absolutamente, tarefa da filosofia
descobrir esse "princípio", essa "matéria primária", de vez que ela
não existe.
As categorias filosóficas têm conteúdo lógico por serem formas
de pensamento ; daí ser tarefa da filosofia a explicação da essência
das categorias também sob o aspecto de 1ma forma lógica. :e evi­
dente que neste sentido o enfoque lógico-formal das categorias é
insuficiente para entendermos a essência das categorias enquanto
formas de pensamento. A dialética não pode se contentar com a
caracterização das categorias apenas enquanto aspectos de concei­
tos gerais. Não se pode igualmente considerar o conteúdo das cate­
gorias apenas do ponto de vista da lei lógico-formal da relação in­
versa do conteúdo dos conceitos com o volume destes, porquanto
as categorias são conceitos de uma generalidade extremamente
grande; isto criaria uma noção errônea do conteúdo dessas catego­
rias. Por riqueza de conteúdo, deve-se entender não a quantidade
de indícios mas a profundidade da penetração na essência dos pro­
cessos da natureza e da sociedade. O processo de abstração não
é um esvaziamento do conteúdo do conceito mas, ao contrário, um
aprofundamento do nosso conhecimento na essência dos fenômenos.
Sob a forma de categorias refletem-se as lei mais gerais e impor­
tantes do movimento dos fenômenos no mundo. O surgimento das
categorias é uma prova de maturidade, de riqueza de conteúdo do
pensamento humano, dos seus imensos êxitos na interpretação
do mundo exterior .

1 07
O conteúdo das categorias filosóficas enquanto reflexo do 'uni­
versal não abrangem, evidentemente, todos os indícios particulares,
casuais e individuais dos objetos, pois, em caso contrário, elas
deixariam de ser conceitos. O universal implica a riqueza do sin­
gular e do particular no sentido de que, apreendendo as leis, ele
está refletindo, nessa ou naquela medida, todos os casos particula­
res de manifestação do singular. Sem compreender a dialética do
universal e do singular nas categorias, é impossível descobrir a es­
sência e a relação destas com os conceitos de outras ciências. Nisto
se baseia a dedução, conclusão do singular a partir do universal .
Se o universal não implicasse, sob nenhuma forma, a riqueza do
s i ngular, a dedução seria basicamente impossível . Não é só o sin­
gul ar que leva ao conhecimento do un iversal como o próprio uni­
versal é u m degrau do conhecimento do singular, caso abranja o
essencial e o necessário .
As categorias da dialética materialista não incorporam o con­
teúdo de todos os conceitos fundamentais das outras ciências, sendo
por isto inúteis as tentativas de deduzir pura e simplesmente das
categorias do material ismo dialético o conteúdo dos conceitos de
c1cncias isol adas. Ao mesmo tempo, porém, as categorias filosófi­
cas não são isoladas da riqueza de conteúdo dos conceitos funda­
mentais das outras ciências, pois, com sua ajuda, se estabelecem
os conceitos fundamentais d as ciências com base na análise do ma­

terial concreto. E isto significa que o conteúdo das categorias filo­


sóficas está relacionado, sob um aspecto ou outro, com o conteúdo
de conceitos concretos isolados, abrange as cais� singul ares e é
um meio de conhecimento de toda a sua riqueza.
As leis da dialética materialista só se manifestam em suas ca­
tegorias. A filosofia apreendeu as leis mais gerais do desenvolvi­
mento da n atureza, da sociedade e do pensamento, quando elabo­
rou as categorias por meio das quais essas leis foram descobertas .
Estudar as categorias da dialética implica antes de tudo em escla­
recer que leis do mundo objetivo elas refletem, e é esse conteúdo
objetivo que define a importância metodológica, gnosiológica e ló­
gica daquelas categorias. Tudo o que existe na filosofia enquanto
ciência é constituído pelas categorias em sua inter-relação. A fun­
ção das categorias consiste justamente em ser forma lógica do con­
teúdo da dialética materialista.
Assim, as categorias da dialética materialista constituem o dis­
positivo l6gico do p ensamen to científico teórico que é um meio de
,

síntese, criação de novas teorias e movimento de um conceito a


outro que interpreta com mais profundidade o objeto.

1 08
4. DESENVOLVIMENTO DO CONHECIMENTO COMO MUDANÇA
DO CONTEÚDO DAS CATEGORIAS E SEU SISTEMA

Atribui-se à dialética materialista e às suas categorias a fun­


ção de método do conhecimento científico. A dialética marxista
visa a orientar o pensamento humano no sentido da procura de
novos resultados, da criação de teorias que descubram os misté­
rios da natureza e da sociedade. Mas para tanto é necessário que
as categorias da dialética materialista estejam sempre no nível do
conhecimento científico moderno .
Um sistema teórico se constrói com base numa determinada
estrutura de categorias filosóficas, sendo que o próprio cientista
p ode não ter consciênci a desse fato . No entanto não se pode usar
etern amente o mesmo sistema de categorias. A mudança do nível
do conhecimento teórico exige um novo sistema de categorias.
Que exigências se apresentam às categorias da filosofia cientí­
fica moderna, ou seja, ao materialismo dialético?
As categorias da dialética devem situar-se no nível da prática
atual, i. e . , refletir o objeto em consonância com as possibilida­
des da ci ê ncia moderna e as aspirações subjetivas das forças avan­
çadas da sociedade contemporânea. Isto significa que as categorias
da dialética devem sempre combinar em si a objetividade possível no
n ível contemporâneo da ciência com uma clareza igualmente ele­
vada de objetivo na transform ação do mundo p ara o bem da hu­
manidade. Essa clareza de objetivo é inerente não só a certas cate­
gorias relacionadas imediatamente com o reflexo das leis do de­
senvolvimento da sociedade, mas a todas as categorias sem exceção,
que estão voltadas para a própria natureza, para a realidade obje ­
tiva no sentido amplo da palavra. No entanto surge aqui uma
questão : pode o conteúdo das categorias filosóficas entrar em con­
tradição com os resultados alcançados pelo conhecimento?
Uma vez que as categorias da dialética são uma generalização
da experiência anterior do conhecimento e da transformação do
mundo, ou seja, estão relacionadas com certo nível de conheci­
mento e não são apriorísticas, os novos resultados do conhecimen­
to podem não ser abrangidos pelo conteúdo das categorias filo­
sóficas. As categorias do materialismo dialético são ricas de con­
teúdo, nelas está generalizada, sintetizada, a experiência anterior do
conhecimento do mundo. Isto sig n i fica que elas estão relacionadas
também a certo n ível de desenvolvimento da huma n idad e e do seu

109
conhecimento, sendo, ao mesmo tempo, soberanas e não-sobera­
nas, absolutas e relativas.
Por meio da extrapolação e da previsão, a filosofia pode ul­
t rapassar os limites dos dados imediatos da ciência que lhe é con­
temporânea, mas essa saída se restringe por si só aos limites do
conhecimento científico de determinada época. A tese de Engels :
"A partir de cada descobrimento que constitui uma época no campo
histórico-natural, o materialismo deve mudar inevitavelmente a sua
forma" 1 5 se baseia justamente nessa natureza dos conceitos filo­
sóficos .
A contradição entre o nível teórico de conhecimento de uma
época e sua assimilação nas categorias filosóficas pode atingir pro­
porções tais que podem reter substancialmente a formação de novas
teorias fundamentais na ciência; para estas, é necessária uma rede
lógica de estrutura diferente, com categorias novas bem como com
o novo conteúdo das categorias anteriores. Neste caso o desenvol­
vimento da ciência pode seguir o caminho da descoberta de novos
dados empíricos sem que estes sejam interpretados de modo pro­
fundamente teórico, ficando a ciência em nível empírico.
A possibilidade teórica das contradições entre as categorias
filosóficas e os novos resultados do conhecimento científico não sus­
cita grandes objeções, sendo às vezes concebida até como natural .
Não obstante, do reconhecimento dessa possibilidade teórica só
pode haver uma conclusão prática : o enriquecimento permanente
das categorias filosóficas com um novo conteúdo que corresponde ·

ao nível de conhecimento da época.


Em sua forma primária, as categorias b losóficas se formavam
quando a filosofia abrangia todo o conjunto do conhecimento, era a
"ciência das ciências" , que tentava interpretar o mundo no seu
conjunto, descobrir a "essência primária" de todas as coisas. Pos­
teriormente, mudanças essenciais se efetuaram até na problemática
filosófica; algumas questões que antes eram filosóficas tornaram-se
especiais e vice-versa; a filosofia se viu diante de novas tarefas.
Grande trabalho de reinterpretação das categorias filosóficas
foi realizado por Marx e Engels; estes não se limitaram à inter­
pretação materialista hegeliana do sistema de categorias mas colo­
caram o conteúdo desse sistema em conson ância com os dados das
ciências naturais contemporâneas. Al é m disso, o sistema de cate-

ir. K. M arx e F. Engels. Obras, t . 2 1 , p. 2 8 6 . (Ed. russa . )

1 10
gorias que caracterizava o materialismo de Marx e Engels supe­
rava consideravelmente os dados imediatos das ciências naturais.
Tomemos, por exemplo, os conceitos de espaço e tempo. Engels
viveu numa época em que não havia nenhum outro enfoque desses
conceitos exceto o de Newton. No entanto, seguindo a lógica do
materialismo dialético, ele abordou essas categorias de modo in­
teiramente novo, antecipando em grande medida os resultados da
física do século XX .
V. I. Lênin esteve vinculado à fonte da revolução que nos limi­
tes dos dois séculos se realizou nas ciências naturais e se distin­
guiu antes de tudo por descobertas que marcaram época no campo
da física. Essas descobertas não foram surpresa para o materialismo
dialético, pois correspondiam às categorias deste. Entretanto as des­
cobertas da física exigiam generalizações gnot;iológicas, propicia­
vam um rico material factual para o enri q uecimento das categorias
com um novo conteúdo. Lênin deu importante contribuição neste sen­
tido, a começar pela categoria central do materialismo dialético -
a matéria. Seguindo a tradição lançada pelos maiores filósofos do
passado, ele não se limitou aos resultados imediatos da ciência
do seu tempo, indo bem mais adiante em suas conclusões filosóficas .
Lembremos a sua tese sobre a inesgotabilidade do elétron, a cate­
goria de reflexo, que expressa as propriedades inerentes a toda a
matéria. Observe-se que só agora as ciências naturais oferecem ma­
terial concreto sobre essa capacidade jacente no fundamento da
matéria.
Lênin iniciou a interpretação dos resultados da revolução mo­
derna nas ciências n aturais.
As descobertas colossais da ciência atual mudaram substancial­
mente as nossas concepções sobre a natureza e as leis do movi­
mento dos fenômenos naturais exigem o aperfeiçoamento das ve­
lhas categorias e o lançamento de novas que sejam capazes de
generalizar a prática do conhecimento e transformação do mundo.
Assim, por exemplo, a categoria de causalidade conseguiu su­
perar, no materialismo dialético, o fracasso do determinismo lapla­
ciano na física ; contudo, para que ela pudesse suportar avanços
ainda mais revolucionários na ciência, que hoje parecem incríveis
aos cientistas, era preciso estudar atentamente e sintetizar todos os
resultados da ciência moderna, em suas tendências principais, de­
terminantes. A isto nos chama a experiência de Marx, Engels e
Lênin.
As categorias da dialética materialista foram elaboradas no
processo do desenvolvimento histórico do conhecimento filosófico,

111
razão porque a expenencia da história da filosofia é de impor­
tância primordial para interpretá-las e enriquecê-las sucessivamente.
Lênin, especialmente, dava imensa importância à Ciência da Ló­
gica, de Hegel . Considerava indispensável "organizar um estudo sis­
temático da dialética de Hegel de um ponto de vista materialista,
ou seja, daquela dialética que Marx aplicou praticamente em seu
"
O Capital e em seus trabalhos sobre história e política . . . 1 6 •
Lênin escreveu essas palavras em 1 9 1 2 no artigo "Sobre a im­
portância do materialismo militante" , que é, em essência, o seu
testamento filosófico .
Lênin, naturalmente, não se propunha a limitar a el aboração
da dialética materialista enquanto lógica e teoria do conhecimento
do marxismo à reelaboração materialista da dialética hegeliana. Em
primeiro lugar, a história da dialética pré-marxista se limita a
Hegel ; em segundo, é-nos atualmente importante não tanto a pró­
pria dialética de Hegel quanto a sua reelaboração e aplicação por
Marx e Lênin à análise da realidade viva, ao desenvolvimento da
sociedade e da ciência 1 7 • Em terceiro lugar, ao fazer anotações de
suas leituras da Ciência da Lógica, Lênin registra uma observação
importante para nós : " . . . A lógica e a teoria do conhecimento
devem ser extraídas do 'desenvolvimento de toda a vida da natu­
reza e do espírito' " 1 8• E esse desenvolvimento da vida da natureza
e do espírito era abrangido em toda a sua multiformidade tanto
pela história da filosofia quanto por toda a cultura da humanidade :
a arte, a ciência, etc. A história da evolução do conhecimento hu­
mano consti.tui elemento sumamente importante da experiência que
deve servir de ponto de partida à lógica dialética, destinada antes
de tudo a abranger as vias, leis e formas de desenvolvimento do
conhecimento no sentido da verdade. A revolução na ciência desen­
cadeia mudanças na estrutura do conhecimento científico, nos mo­
dos do seu movimento no sentido de novos resultados, na correia-

16 V. 1 . Lênin. Obras completas, t. 45, p. 30.


11 "Os naturalistas contemporâneos encontrarão . . . na dialética de Hegel,
i nterpretada de mod o materialista, uma série de respostas às questões levan­
tadas pela revolução nas ci ências naturais, nas quais 'amontoam-se ' numa
reação o s adeptos intelectuais da moda burguesa" (V. 1. Lênin. Obras com­
pletas, t. 45, p. 3 1 ) .
1 8 V. I. Lênin. Obras completas, t. 29, p. 80.
_

1 12
ção entre o emp í ri c o e o teórico, o intuitivo e o formal nesse mo­
vimento, na inter-relação de diversos métodos de conhecimento, etc.
É-nos indisp ens ável uma lógica que explique o movimento do
conhecimento em sua plenitude, que elabore um dispositivo para a
atividade do pensamento. É nessa lógica que se constitui a dialé­
tica m a teri a lista , cuj as leis e categorias são a base da síntese do
conhecimento, orientam o pensamento no sentido da procura da so­
l ução de novos p roblem a s científicos; elas devem manter-se em
estado de ação permanente, de tensão original . É necessário con­
f r on t á-las com a e xp eriência nova, ainda não-estudada, sej a a expe­
r iê n cia do conhecimento científico ou do desenvolvimento social
no seu todo. Lênin legou a tare fa de elaborar sistematicamente o
método marxist a de conhecime n t o e ação p r á tica , orientan d o s e
-

" p el o s p rotótip os de ap li c ação da d i alética em Ma rx, bem como


pelos protótipos de dialética no campo das relações econômicas e
p o l ític a s das qu ai s a história moderna, sobretudo a guerra imp e­
ri alista atual e a revolução, fornece um número extraordinaria­
m ente g r ande de protótipos" 19• Assim fez ele ao aplicar o método
de Marx à an á lise do desenvolvimento do capitalismo na Rússia e
à experiência do movimento da classe operária pela revolução pro­
letária e a ditadura do proletariado, à análise da nova fase do ca­
pit a lismo - o impe ria l i smo à revolução nas ciências naturais, etc.
,

O . que é análise? Em primeiro lugar, ela conduz a novos re­


sultados no campo da ciência (história, economia política, histó­
ria da ciência, etc. ) cujo objeto é escolhido como objeto de aná­
l ise. A q ui se vê de que modo a aplicação consciente da dialética
leva realmente do desconhecido ao conhecido, a construções teó­
ricas de objetos novos, antes pouco ou intei ramen t e não-estudados.
Em segundo lugar, a aplicação a c ertada das categorias dialéticas à
a n álise de uma si tu aç ão concreta que se form a no desenvolvimento

d a sociedade, à ci ê nci a e cultura no todo, reforça a própria dial é­


tica enquanto método de pensamento. Em t e rc eiro, e i s to é o prin­
cipal, essa análise permite desenvolver a própria lógica dialética,
p o rq ua n to esta não é um sistema fechado, constituído de um nú­
mero determinado de leis e categorias que não admitem a mudança
do seu conteúdo e a introdução de novas categorias.
Capaz de "dominar" qualquer realidade e incorporar à base
da análise desta um novo conteúdo, a dialética n ão teme quais-

io V. I. Lênin. Obras completas, t. 45, p. 30.

113
quer fatos da ciência que não caibam nas construções teóricas an­
teriores. Ao analisar e apreender a nova realidade, ela muda até
a si mesma, precisa, concretiza as suas categorias.
Elaborar a dialética materialista enquanto lógica tomando por
base sua aplicação à análise da realidade pressupõe, justamente de­
senvolver as categorias da filosofia, partindo dos princípios dialé­
tico-materialistas, e não substituí-las por conceitos de ciências par­
ticulares ou por categorias estranhas a esses princípios. Infelizmente,
encontramos os dois fenômenos na prática. :e muito tentador, por
exemplo, tomar um conceito qualquer da ciência moderna ( da fí­
sica, cibernética, etc. ) , dotado de volume extremamente amplo, e
concebê-lo sob a forma de uma nova categoria filosófica.
Esse conceito é científico e possui grande grau de rigorosidade,
além de ser novo para a filosofia. Em realidade, porém, esse enri­
quecimento da dialética materialista com uma nova categoria é fic­
tício e tal "científicidade" não eleva mas reduz a autoridade da
filosofia. Isto conduz ao positivismo, para o qual a teoria de Eins­
tein ou de Niels Bohr, por exemplo, é mais gnosiologia que qual­
quer outro sistema filosófica inclusive o materialismo dialético.
A seu modo, com base nos seus princípios, a dialética mate­
rialista interpreta o mundo objetivo em suas categorias, que, par­
tindo do dado imediato do objeto, refletem a natureza deste com
plenitude e profundidade e na necessária universalidade. As cate­
gorias filosóficas são indispensáveis a esse ou aquele campo do co­
nhecimento justamente porque este não pode elaborá-las por si
mesmo, apenas a partir da sua experiência.
:e ainda mais p eri g oso tomar como pretexto o enriquecimento
da dialética e apresentar como categorias dialéticas os conceitos de
alguma concepção burguesa do mundo, baseada numa experiência
inteiramente distinta e centrada num conteúdo que não se insere
nos princípios do materialismo dialético. B claro que esses concei­
tos podem refletir alguns aspectos da real i dade ainda não-incorpo­
rados ao conteúdo das categorias da dialética materialista. As vezes
os filósofos burgueses captam com bastante rapidez e expressam a
seu modo as mudanças registradas na sociedade e na ciência. Os
neopositivistas, por exemplo, se anteciparam até certo ponto aos
marxistas quando atentaram para a análise filosófica da linguagem
da ciência e, partindo de sua gnosiologia, elaboraram uma série de
conceitos que traduzem esse aspecto do processo de conhecimento.
Por isso, em primeiro lugar, nós marxistas não devemos retardar
a análise dialética das peculiaridades da nossa época, sobretudo da
revol ução técnico-científica em andamento. E m segundo, se em al-

1 14
gum setor é necessano eliminar esse atraso, não será recorrendo
ao empréstimo de conceitos de outros sistemas filosóficos não-mar­
xistas mas exclusivamente mediante a solução dos problemas lógico­
gnosiológicos e precisamente à base dos princípios filosóficos mar­
xistas-leninistas. O simples empréstimo de categorias do neopositi­
vismo, que abordam as peculiaridades do conhecimento científico
moderno, poderia levar à substituição da gnosiologia marxista por
alguma modificação neopositivista. E isto se refere não só aos pro­
blemas filosóficos da linguagem da ciência como também a qual­
quer outro problema filosófico ou sociológico.
No entanto a construção da lógica dialética pode tomar não
só o caminho da aplicação de suas categorias à análise da reali­
dade con creta como da generalização, da sistematização do co­
nhecimento filosófico em certo sistema lógico.
Em cada etapa do seu desenvolvimento histórico, a dialética
materialista deve submeter-se a análise, explicar qual o dispositivo
categorial de que dispõe, encontrar entre as suas categorias aquela
rel ação que propicie o método de pensamento histórico-científico
cm toda a plenitude, em toda a integridade.
Semelhante auto-análise permitirá revelar alguns elos carentes
n esse sistema, levantar o problema da sua complementação. Marx,
a o que se sabe, não limitou sua tarefa de construção do método
dialético à simples aplicação do mesmo à análise da estrutura eco­
nômica da sociedade capitalista, da luta de classe que nela se de­
senvolve. Em carta de 9 de maio de 1 868 a J. Dietzgen ele es­
creveu : "Quando eu me livrar do fardo econômico, escreverei a
Dialética. As verdadeiras leis da dialética já existem em Hegel, se
bem que em forma mística. :e necessário libertá-las dessa forma . . . " 2 0
Como é sabido, em Cadernos filosóficos Lênin revela o tra­
balho preparatório que empreendeu com a finalidade de escrever um
trabalho sistemático sobre a essência da dialética en quanto método
do pensamento teórico-científico, sobre os elementos, leis e cate­
gorias da dialética. Vê-se daí que importância Marx, Engels e Lênin
atribuíam aos problemas da lógica dialética, à explanação desta

:zo K. Marx e F. Engels. Obras, t. 32, p. 356. (Ed. russa . ) Mais 011
menos o mesmo Ma rx escreveu a Engels em 14 de j a ne i r o de 1 8 5 8 antes da
c riação do O Capital : ''Se algum dia voltasse a ter tempo para tais trabalhos,
eu exporia com grande s.a tisfação . . . em forma acessível ao bom senso
h u mano o racional que há no método que Hegel descobriu mas ao mesmo
1 c m po mistificou" ( K. M arx e F. Engels. Obras, t. 29, p . 2 1 2 ) .

115
como sistema de leis e categorias em determinado nível de desen­
volvimento do conhecimento humano.
Aquilo que Marx, Engels e Lênin não puderam fazer por força
de determinadas causas permanece como tarefa primeiríssima dos
marxistas-leninistas de hoje, levando-se em conta a nova experi­
ência inclusive do desenvolvimento filosófico. Isto é de grande im­
portância também para o combate ao positivismo de hoje e outras
formas de concepção burguesa do mundo, que especula com os pro­
blemas da lógica.
Ao colocarmos o problema da explanação sistemática da dia­
lética materialista enquanto lógica, devemos ao mesmo tempo ver
todas as dificuldades que existem nesse caminho. A explanação ló­
gica da dialética não implica em abstração das condições históricas
do ser da lógica dialética no mundo moderno, da análise do ma­
terial concreto extraído do campo do desenvolvimento social e do
movimento do conhecimento científico. Expor a dialética como ló­
gica n ão significa pairar sobre o mundo no espaço do pensamento
puro, sem qualquer contato com a realidade concreta, com a vida
das categorias dialéticas. Como escreveu Engels, " . . . o desenvol­
vimento lógico de maneira alguma é obrigado a se manter apenas
no campo puramente abstrato. Ao contrário, necessita de ilustra­
ções históricas, de contato permanente com a realidade" 21 • Nesse
contato com a realidade está a fonte do movimento das categorias
filosóficas, do seu enriquecimento com novo conteúdo.
Caso contrário teríamos de operar com um simples sistema de
cri ação reiteradamente observado na história da filosofia, com um
novo agrupamento, uma nova classificação d_e categorias sem u m a
concepção real destas como degraus, pontos convergentes do mo­
vimento do conhecimento científico e do método de ação prática.
Antes de construir um sistema de categorias, é preciso definir
rigorosamente aqueles princípios que devem ser tomados por base
desse sistema .
Como já dissemos, na solução do problema do sistema de ca­
tegorias é necessário partir do princípio da coincidência entre a dia­
lética, a lógica e a teoria do conhecimento. Isto significa q ue não
se pode abordar a correlação entre as categorias levando em conta
apenas os momentos ontológicos ou os gnosiológicos. f: indispen­
sável construir um sistema que tome em unidade todos esses mo­
mentos das categorias.

1! t K. Marx e F. Engels. Obras, t. 1 3 , p. 499. ( Ed. russa . )

1 16
O problema não é simplesmente dividir as categorias em colu­
n as segundo um indício q u al q uer, observando todas as regras da di­
visão lançadas pela lógica formal. Isto é fácil fazer tomando como
base da divisão um dos inúmeros indícios. Não se constrói o sis­
tema de categorias do materialismo dialético para fracioná-las de
algum modo, distribuí-las em quadrinhos para melhor recordá-las
e fazer uma enumeração definitiva mas para revelar, desenvolver
nesse sistema o objeto do materialismo dialético : as leis objetivas
da realidade.
A unidade entre o lógico e o histórico 6 um importante pri n­
cípio metodológico de construção do sistema da filosofia, do sis­
tema de suas categorias. A aplicação desse princípio ao estudo das
categorias e à construção do sistema destas significa que o desen­
volvimento e a sucessão das categorias devem refletir, em forma
sucinta e generalizada, toda a história da sua formação e evolução .
A história da filosofia mostra que o surgimento e desenvolvi­
mento das categorias se processa do simples ao complexo, do abs­
trato ao concreto : " . . . a marcha do pensamento abstrato, que parte
do mais simples ao complexo, corresponde ao processo histórico
real" 22• Isto significa que na construção da subordinação das cate­
gorias é indispensável seguir essas leis do pensamento abstrato, partir
das categorias que fixam o ser mais simples, habitual, massiforme
e imediato das coisas e remontar a categorias mais profundas e con.
eretas.
Ao mostrar o desenvolvimento das categorias, a transformação
de u mas nas outras, é necessário esclarecer a base real em que se
processa o movimento dessas categorias. Para Hegel , o movimento
das categorias é determinado pelo automovimento do pensamento .
Em realidade, porém, todas as categorias têm, em suma, origem ter­
rena, sensorial. A base do seu surgimento e desenvolvimento é a
realidade objetiva e a prática humana. Esse princípio primário foi
esquecido e deturpado pelo idealismo. "Quanto ao materialismo
dialético, só ele relacionou o princípio com a continuação e o fim" 2:1 •
N a construção d o sistema d e categorias, é necessário partir da
a n álise do processo de conhecimento, e isto de forma alguma im­
plica em qualquer desvio do materialismo. As categorias são for­
mas de reflexo, de conhecimento da realidade, resultam do pro-

_ .. I< . M.arx e F. Engels. O bras, t. 1 2, pp. 722-7 2 9 . ( Ed . russa . )


:? 3 V. 1. Lênin. Obras co111pletas, t. 29, p. 264.

1 17
cesso de desenvolvimento do conhecimento como mve1s deste. Daí
ser perfeitamente compreensível que as leis do desenvolvimento do
conhecimento serão tomadas como base da construção do sistema
de categorias .
A sucessão no sistema de categorias pode ter caráter lógico,
expressar a sucessão do desenvolvimento do nosso conhecimento
acerca dos fenômenos do mundo exterior mas não pode expressar
o desenvolvimento desses mesmos fenômenos. Não se pode, por
exemplo, levantar a questão sobre o que surgiu primeiro - a qua­
l idade ou a quantidade, mas é lícito levantar o problema de como
se desenvolveu o nosso conhecimento acerca da precisão quantita­
tiva e qualitativa do objeto, que categoria surgiu antes ou, em ter­
mos mais corretos, que categoria se formou antes na história dos
conhecimentos e em que sucessão ora se desenvolve o nosso co­
nhecimento acerca das leis mais gerais do desenvolvimento do
mundo exterior e o reflexo deste na consciência dos homens. Assim,
por exemplo, Lênin escreveu : "A princípio vislumbram-se impres­
sões, em seguida distingue-se algo, depois se desenvolvem os con­
ceitos de qualidade . . . ( definição da coisa ou fen ômeno ) e q uan­
tidade. A segu i r o estudo e a reflexão enc aminham o pensamento
para o conhecimento da identidade - diferença - fundamento -
essência versus fen ômeno - causalidade, etc." 24•
O quadro traçado por Lênin não representa o processo de sur­
gimento da qualidade, quantidade, essência e fenômeno no próprio
mundo mas o processo, a sucessão do conhecimento dos fenôme­
nos e leis do mundo objetivo na consciência do homem . Quando a
sucessão lógica no sistema de categorias se tra�sforma em gênese
real dos próprios fenômenos, como ocorre em Hegel, então o pen­
samento e seu desenvolvimento se convertem em demiurgo da pró­
pria realidade. Todo aquele que tenta construir um sistem a onto­
l ógi co de categorias, fica diante de um dilema: renunciar à id é i a
de desenvolvimento e construção do sistema de categorias e expor
as categorias da dialética por grupos em ordem de coordenada ou
assumir o ponto de vista errôneo da existência de uma única dire­
ção do processo de desenvolvimento do mundo, do surgimento su­
cessivo das categorias na própria realidade. Tomando o primeiro
caminho, podem-se construir diversas classificações de categorias se­
gundo um indício objetivo qualquer ( como "c oisa, propriedade,
relação" ) , mas em semelhantes classificações perder- se-á o conteúdo

24 V. 1. Lênin. Obras completas, t. 29, p. 30 1 .

1 18
( desenvolvimento ) c a ra cte rí s tico da dial ética ; assum indo o segun do
caminho, chegar-se-á à teologia, traindo o materialismo.
Existe apenas uma saída : na construção do sistema de cate­
g o ria s do materialismo dialético, tomar por base o processo de de­
senvolvimento e conhecimento do simples ao complexo, do abstrato
ao concreto. Neste caso, o sistema de categorias da filosofia cor­
responderá, em primeiro lugar, ao próprio espírito da dialética -
ao princípio de desenvolvimento ; em segundo, será um sistema ma­
terialista, livre da idéia de construção de qualquer esquema mundial ,
traduzirá o processo de interpretação, nas categorias do pensamento,
das leis mais gerais de todo movimento.
A alguns filósofos já parece desvio do m aterialismo no sentido
do subjetivismo o próprio fato da construção de tal sistema de cate­
gorias, no qual serão tomadas por base as etapas do desenvolvi­
mento do conhecimento. Mas esse equívoco s e deve a uma con­
ccpção errônea do processo de co n he c i me n to como atividade pura­
mente s ubjetiv a , dissociada da realidade objetiva. A coincidência
en tre a dialética, a lógica e a teoria do conhecimento tem por
conteúdo outra concepção do processo de conhecimento, da rel ação
das leis do pensamento com as leis do mundo objetivo .
Para a dialética, o importante está no conhecimento - con­
teúdo objetivo; o processo de desenvolvimento do conhecimento não
i mplica na substituição de concepções puramente subjetivas mas em
mudança no campo do conteúdo objetivo da imagem cognitiva. As
c a t eg o ri as do materialismo dialético assumem importância para nós

somente à medida q ue são objetivas por conteúdo ; q uando se trata


da evolução do conhecimento como base da construção do si s ­
tema de categorias, então se aborda o conhecimento do aspecto do
seu conteúdo objetivo. Ao estudarmos a mudança do conteúdo
do nosso conhecimento, apreendemos as leis do desenvolvimento dos
próprios fenômenos do mundo obj etivo.
Na construção do s i s t e m a de categorias, é i n disp en s áve l a pl i­
car a idéia de Lênin, segundo a qual "é preciso deduzir ( e não tomar
a rbitrária ou mecanicamente ) as cate g o r i a s ( sem 'narrar' , nem 'as­
segurar' mas demonstrando ) . . . %
Neste sentido, uma das tarefas da análise l ó g i c a da c1encia é
a cri ação de estruturas categori ais que sirvam de base a essa ou
:1 q ucla teoria científico-n atura l . Por esse caminho a f i l o s ofi a c o-

2� V. 1. Lên in. Obras completas, t. 29, p. 8 6.

1 19
nhece como funcionam em termos práticos as categorias na ciência,
esclarece as exigências do conhecimento cien tífico às categorias da
lógica, define os novos conceitos de caráter categorial, revela as
teorias fundamentais modernas com o fim de atentar para elas, ex­
trapolar e avançar no sentido de novas teorias.
Ao compor o sistema de categorias, é necessário operar não
só com aqueles conceitos que já existiam na filosofia há mais de
cem anos, mas introduzir novos, que reflitam as peculiaridades do
pensamento teórico-científico moderno e suas aspirações ao futuro.
A inércia, o temor de afastar-se da coletânea já conhecida de
categorias e da sua interpretação tradicional leva a que essa im­
portante questão continue sem solução. Entretanto, um sistema de
categorias não surge mediante o descobrimento da melhor combi­
nação de categorias lançadas em certa época pela filosofia, mas à
base da análise do pensamento teórico-científico atual , de suas pe­
culiaridades e aspirações.
Os filósofos sovi éticos já realizaram nesse sentido um gránde
trabalho preparatório, mas são indispensáveis novos esforços cujo
resultado traga a solução mais plena ao problema levantado por
Lênin : expor sistematicamente o materialismo dialético como sis­
tema de categorias, como lógica que ewressa a d ialét i ca .

120
III

O Pensa mento : Objeto da Lógica


Dialética

" O mais rico é o mais concreto e o mais


subjetivo" 1 •

" . . . A questão não é saber se existe o


movimento mas como expressá-lo na ló g ica
dos conceitos" 2•

1. 0 MOVI M E N TO COMO RE F L EXO SUB J ETIVO E OBJE TIVO

As leis e categorias da lógica dialética materialista se consti­


tuem em método de interpretação da realidade objetiva, situada fora
da consciência do homem, ou do próprio pensamento enquanto ati­
vidade subjetiva voltada para o conhecimento das coisas, processos,
relações e leis .
Uma das definições mais gerais e primeiras do pensamento é
esta : o pensamento é o reflexo da realidade sob a forma de abstra­
ções. O pensamento é um modo de conhecimento da realidade ob­
jetiva pelo homem. Por isto, o que é característico do conhecimento
em geral também é próprio do pensamento.
A interpretação do conhecimento como reflexo partiu do ma­
terialismo pré-marxista, mas só o marxismo (e sobretudo Lênin )

1 V. 1. Lênin. Obras completas, t. 29, p. 23 0.


l bid., p. 230 .

121
el aborou em termos profundos e minuciosos a teoria do conheci­
mento como reflexo dos fenômenos, objetos e processos do mundo
material na consciência do homem. Lênin uniu na teoria do reflexo
os princípios do materialismo com a dialética, o que permitiu ex­
p l i car a complexidade do processo de conhecimento, a relação mútua
que nele existe entre o s u bjet iv o e o objetivo .

O que é o conhecimento : sinal condicionado ou reflexo? Tra­


ta-se de uma questão de imp ortância capital para a gnosi o log i a ,
para o material ismo em geral. Se reconhecermos que em relação a o
objeto o conhecimento é apenas um símbolo, estaremos minando
todas as bases do materialismo. O conceito de "reflexo" pre ssup õe ,

inevitavelmente, a r e al i d ad e o bje ti va que é refletida, ao passo q u e


" . . . os sinais ou símbolos são perfeitamente possíveis em relação
aos objetos fictícios, e qual quer . um conhece exemplos de seme-
1 han tcs s i n a is ou símbolos" 3 - escreve Lênin.
É justamente por esses motivos que os críticos do material ismo
dialético se voltam para o conceito de reflexo, apresentando inú­
meros argumentos imaginando demonstrar que o conhecimento n ão
po d e ser reflexo. Para tanto deturpam a essência do reflexo, redu­
zem-n a à cópia m e c â nic a . Segundo afirmam os críticos do marxismo,
o conhecimento não po d e ser reflexo pois incorpora forçosamente
a atividade sintética da consciência humana, a qual, a lega m eles, é
incompatível com o reflexo. Mas o conhecimento não segue servi/­
m ente o o bjeto mas o reflete de modo criativo.
O conceito de reflexo parte da tese m aterialista da existência
das coisas, processos e o u tras formas da realidade obj e t i v a fora e
independentemente da consciência humana; o conhecimento n ão se
identifica com a pró pri a coisa, opondo-se a ela como a consciênci a
à matéria. Essa oposição, entretanto, não signifi c a um divórcio entre
o conhecimento e o objeto mas certa forma de ligação, de unifica­
ção de ambos. O conhecimento não só se op õe como coincide com
o objeto, p o rqua nto o repro d uz.
Para que o conhecimento se constitua num meio de assimila­
ção prá ti c a dos processos e objetos, deve possuí-los em seu con­
teúdo, refletir as propriedades e leis da realidade objetiva e n ão
ver as coisas apenas tais quais são dadas na n atureza como vê-las
tais quais elas podem ser como resultado da nossa a t i v i d a d e pr á tica.
A s i d é i as são imagens, são medidas segun do as quais o homem cria

a V. 1. Lênin. Obras completas, t. 1 8, p. 247.

1 22
d o s o bj e t o s existentes novos objetos; daí se refletirem nas idéias as
pr op ri e d a d e s e leis da realidade objetiva .
Como se sabe, a p r á t ic a da ciência m o d erna testemunha o
c r es ci men t o do papel do sujeito no processo de conhecimento da
re a l i d a d e . Essa circunstância motiva os furiosos ataques dos pensa­
dores burgueses ao m at eri ali smo dialético. O que é mais lamen- _

tável , p o rém , é que a teoria do reflexo se tornou objeto de crítica


até de alguns filósofos que se consideram marxistas. Numa discussão
realizada na c i d ad e de Bled em 1 9 60 pela so ci ed a d e i ugo s l a va de
filosofia, por exemplo, apresentou-se urna série d e argumentos con­
tra a teoria do reflexo. O principal entre estes foi o seguinte : a
teoria do reflexo não pode coadunar-se com o conceito marxista do
homem como ser cri a d o r práti co (Gaio Petrovitch ) . Por isto, a
teoria do reflexo, bem como o p rópr i o conceito de reflexo, não é
ca ract e ríst i c a do materialismo dialético marxista. A c o me çar por
Demócrito, alega Petrovitch, ela teria sido defendida por quase to­
das as fo rm as d e r e ali s m o i n g ênu o e do m ateri a l is m o mecanicista
mas não pelo materialismo d i aléti co, e não expressaria o novo que
Marx i n c o rp o r o u à filosofia. Negar a i m p o r t â nc i a fundamental do
c o n c e i t o de reflexo p a r a a teo ri a marxista do conheeimento im pl ic a
em t om a r o c ami n h o de sua contraposição ao conceito de prática.
Contudo, a teoria do reflexo não contra d iz o reconhecimento
d o e n fo q u e criador do co n heci mento da realidade objetiva, porquanto
o reflexo en q u an t o atividade orientada a um fim compreende a apre­
ensão do objeto não só como ele existe em d ado perío d o mas em
t o d as as suas p otenc ia l ida de s, em todas as possíveis fo rm a s de mu­
d ança p o r meio d a atividade p ráti ca do homem. A d ial éti ca mate­
·
rialista não pode omitir que o p ró pri o conhecimento é um mei o
espiritual, humano de as s i m i l a çã o da re al id a d e e tem por nature z a
caráter histórico-social . Le v a r em conta a e xp eri ê ncia do co nh e ci ­
mento da vida s o c i al dos homens é necessário para revelar o con­
teúdo d a n atureza do pen sament o , sobretudo da sua rel ação com o
o b i e t o refletível . Ademais, nenhuma categoria do materialismo dia­
létÍ co, in cluindo c at eg o ri a s como espaço e tempo; finito e i n fi n it o ,
etc . , pode desenvolver-se e enriquecer-se com um novo conteúdo e,
d e s t e m o d o , s e r forma de p en sa men t o sem levar em· conta o ser
social do homem, sua prática histórico-social.
Quando en f a t iz a m um asp e ct o da relação do conhêCimento coJTi.
o objeto, a a t i v id ad e subjetiva presente nessa "relação, alguns adver­
sários da teoria do reflexo são f o rça d os, contudo, à rec on h ece r de·
u rn a forma ou de outra a vinculaç ã o do co n hecimento com o objeto;
li qual chamam não raro de "correspondênci a " ; ' o· conhecimento·

1 23
corresponde ao objeto, está de certo modo em consonância com ela.
Mas o conceito de correspondência é demasiado restrito para expres­
sar a relação do conhecimento com o objeto, ressaltar o seu ca­
ráter ativo-prático. Objetando contra a concepção do pensamento
como reflexo, eles apresentam o seguinte argumentQ : na ciência
operamos com juízos, de cuja veracidade não temos a menor sombra
de dúvida embora neste caso não possamos saber o que eles re­
fletem. O juízo negativo existencial é verdadeiro, por exemplo, se
n ão existe aquilo que a verdade reflete. Podem-se por acaso inter­
pretar semelhantes juízos como reflexo de uma realidade autêntica?
O que é que refletem os juízos "o centauro não existe" ou "não
existe quadrado redondo"? Todo o sistema de juízos matemáticos
é um sistema de juízos verdadeiros e é difícil dizer o que eles re­
fletem. O que refletem os juízos sobre o passado, o futuro, a pos­
sibilidade ou a impossibilidade? Por isso a teoria do reflexo, con­
cluem eles, parece não resistir à prova enquanto teoria do pen­
samento verdadeiro.
Mas em que se baseia a certeza de que o juzzo "não existe
quadrado redondo" não pode refletir a realidade? Neste caso os
adversários da teoria marxista do reflexo entendem o reflexo como
uma correspondência do juízo ao objeto, como uma consonância
entre a estrutura do juízo (ou da teoria) e a estrutura da respec­
tiva coisa ou processo na realidade. E que correspondência pode
haver entre a "redondeza dos quadrados" e o "quadrado redondo"
propriamente dito se este absolutamente não existe? Aqui se ma­
nifesta a debilidade não da teoria do reflexo mas da redução do
conceito de reflexo à correspondência, à simples correlação de um
( conhecimento ) ao outro ( objeto da realidade) .
No entanto, para a teoria marxista-leninista do conhecimento,
o reflexo é bem mais amplo do que a correspondência e a simples

correlação do conhecimento ao objeto. O reflexo é o resultado da


atividade subjetiva que parte da fonte objetiva e conduz à imagem
cognitiva, superando por conteúdo qualquer objeto ou processo
tomado separadamente. Só sob essa concepção do reflexo pode-se
entender porque o conhecimento se converte em instrumento da
atividade prática transformadora do homem.
Carece de todo fundamento também a contraposição do reflexo
ii prática. Atualmente o marxista não precisa demonstrar a neces­
sidade de inserir, na teoria do conhecimento, a prática como con­
ceito fundamental . No entanto pode ser diverso o tratamento dado
à própria prática, fato já mostrado com toda evidência pelo prag­
matismo, que adaptou o referido conceito à filosofia idealista subje-

1 24
tiva; ·Infelizmente, alguns autores que defendem a categoria de prá­
tica enveredam justamente por esse caminho, quando isolam o con­
ceito de prática e o contrapõem à natureza com sua lei objetiva,
que constitui a prática fora do desenvolvimento histórico real da
humanidade. Neste caso a prática as�ume caráter abstrato, apresen­
ta-se como atividade do homem enquanto ser-espécie, perde a sua
fonte e o seu conteúdo objetivos.
Carente de conteúdo objetivo, essa prática, evidentemente, não
necessita do reflexo da realidade, mas neste caso ela não pode ser
a base do conhecimento humano. A prática verdadeira, que serve
de: base à atividade criadora do homem, necessita do pensamento
que . é objetivo por conteúdo, ou seja, tem objetivo definido, reflete
de modo ativamente criador os objetos e processos da realidade ob­
jetiva. Para dominar o objeto, o homem interfere cada vez mais
ativamente com sua prática no processo objetivo que ocorre inde­
pendentemente da sua consciência. Mas é justamente para essa prá­
tica que lhe é necessário o conhecimento objetivo, i. e., o reflexo
do processo em toda a plenitude e eonereticidade com as possíveis
tendências e formas de pensamento. Por isso o reforçamento do pa­
pel do sujeito no conhecimento não conduz ao aumento do mo­
mento subjetivo no conteúdo do pensamento mas é condição indis­
pensável de apreensão da natureza objetiva do objeto. O paradoxo
consiste em que a objetividade autêntica do objeto é captada me­
d iante a crescente atividade do sujeito, seu s meios, aspirações, fins,
pl anos e m é todos.
No passado, em alguns trabalhos de filosofia marxista, enfati­
zava-se a importância da tese do reflexo da realidade objetiva no
pensamento e dava-se pouca atenção ao fato de ser o reflexo um
momento da atividade prática criadora do homem, razão por que
se criava uma concepção unilateral do processo de conhecimento.
Mas não era enfatizando com a mesma unilateralidade o caráter
ativo do sujeito cognoscente à custa do divórcio entre o pensamento
e a realidade objetiva que se deviam superar essas deficiências. O

conhecimento está necessariamente incluído no campo da atividade


prática do homem, mas para g arantir o êxito dessa atividade ele
deve relacionar-se necessariamente com a realidade objetiva que
e xiste fora do homem e serve de objeto a essa atividade.
As duas afirmações relativas ao pensamento ( atividade cria­
d o r a e reflexo ) não só se coadunam entre si como pressupõem ne­
cessariamente uma a outra no sistema da filosofia marxista. O co­
n hccimento só pode ser ativo, um reflexo da realidade objetiva pra-

1 25
ticamente dirigido. Sem reflexo, a atividade subjetiva não conduz
à criatividade nem à criação dos objetos necessários ao homem mas a
uma produção sem resultado prático .
O marxismo não abandona o conceito de reflexo, quando se
t ra t a do conhecimento em geral e do pensamento em p articular mas
o completa com um novo conteúdo, estabelece a relação orgânica
que há entre ele e a atividade subjetiva, prático-sensorial do homem ,
superando as limitações do antigo materialismo.
Enquanto reflexo, o pensamento não é uma cópia do objeto em
certasformas materiais, não é a criação do objeto-duplo mas uma
forma de a tividade humana determinada pelas propriedades e leis
do objeto tomadas em seu desenvolvimento. A compreensão das pe­
culiaridades do pensamento como reflexo pressupõe a elucidação da
correl ação entre subjetivo e objetivo que nele se verifica.
No processo de pensamento, o sujeito não muda em termos
práticos o objeto mas tão-somente o reflete, conhece as suas leis.
Surge e se desenvolve na base do prático a relação teórica do su­
j e i t o com o objeto cujo resultado só pode ser o conhecimen to deste
e não a sua mudança. O pensamento não separa o sujeito do objeto

( o homem e a natureza ) mas os unifica. Essa unificação consiste


em que, do pensamento, resulta a criação de uma imagem subj e t i v a
do mundo objetivo .
Em que consiste a subjetividade do pensamento?
Em primeiro lugar, no fato de o pensamento sempre pertencei
ao homem enquanto sujeito. Não existe pensamento objetivo que
não estej a relacionado com a atividade do sujeito, o homem. Em
apenas dois sentidos pode-se falar da objetividade do pensamento :
1 ) é objetivo o conteúdo do nosso pensamento ; 2 ) o pensa­
mento é objetivo por ser o resultado da atividade do homem social
e em certo sentido não depender da vontade de um homem isolado .
O pensamento é um processo objetivo de atividade da humanidade,
o funcionamento da civilização humana, da sociedade como sujeito
autêntico do pensamento. Mas o pensamento objetivo, existente an­
tes e independentemente da humanidade, não passa de ficção criada
pelo idealismo objetivo! O segredo dessa especulação da filosofia
idealista consiste em que o pensamento se separa do seu agente ( o
sujeito ) e da fonte objetiva (a natureza ) , e m que o pensamento s e
transforma em algo independente, absoluto.
Em segundo lugar, a subjetividade do pensamento consiste em
que o seu resultado n ão é a criação do próprio objeto como tal ,
com todas as suas prnpriedades, mas apenas da imagem ideal do

1 26
objeto. No pensamento sempre operamos com a imagem ideal
do objeto e não com o próprio objeto.
Em terceiro, por último, o pensamento é subjetivo no sentido
de que, nele, o objeto é representado com grau variado de plenitude,
a deq u a ção e profundidade de penetração em sua essência. O pen­

samento não exclui a unilateralidade do reflexo do objeto, o divór­


cio entre a idéia e a realidade, a deformação do próprio objeto na
imagem. O caráter da imagem cognitiva depende de muitas circuns­
tâncias. A forma de existência do objeto no pensamento depende
do sujeito, da posição do homem na sociedade. Como observou
Lênin , "se considerarmos a relação do sujeito com o objeto na l ó ­
gica, devemos então levar em conta também as premissas gerais do
ser do sujeito concreto ( = vida do homem ) numa situação ob­
jetiva" 4 •
Assim, o pensamento não pode ser outra coisa senão uma ima­
gem subjetiva do mundo objetivo. Ele não pode ultrapassar os limi­
tes da subjetividade no sentido de que pertence sempre ao sujeito,
ao homem social e cria apenas a imagem e não a própria coisa
objetiva, com todas as suas propriedades. Ao mesmo tempo, o
pensamento é objetivo porquanto se desenvolve pela via da criação
de u m a imagem ideal que reflete o objeto com plenitude e precisão ;
por conteúdo, procura ser adequado à coisa objetiva, descobrir as
propriedades do objeto tais como elas existem independentes do
pensamento.
A dialética materialista revela as leis gerais do movimento do
pensamento no processo de obtenção da verdade objetiva, as leis de
transição de uma imagem cognitiva a outra mais completa e mais
profunda. As leis do movimento da imagem cognitiva do objeto, do
pensamento, guardam afinidade com as leis do movimento do pró­
prio objeto, pois o pensamento se movimenta no campo do seu
conteúdo objetivo. Mas há também uma diferença. O movimento
do próprio objeto está relacionado com a mudança da sua natureza
material, uma forma de movimento da matéria pode converter-se
em outra ou algum objeto se transforma em outro objeto com ou­
tras propriedades materiais. O desenvolvimento do pensamento leva
à substituição de uma imagem cognitiva por outra, à transição do
desconhecimento ao conhecimento, do conhecimento superficial e
unil ateral do objeto ao conhecimento profundo e multilateral.

4 V. 1. Lênin. Obras completas, t. 29, p. 1 84.

127
No entanto o conhecimento das leis do movimento dos pró­
prios objetos da realidade é ponto de partida na interpretação das
leis do movimento do pensamento, enquanto que as leis do movi­
mento do pensamento são o reflexo das leis do movi mento das pró­
prias coisas .

2. A NATUREZA SOCIAL DO PENSAMENTO :


O MATERIAL E O IDEAL, O FÍSICO E O PSÍQUICO

O pensamento é uma forma específica de atividade do homem,


é uma atividade intelectual, teórica. Em A ideologia alemã, ' Marx e
Engels dividem a produção em material e intelectual. 1 Esta última
consiste no pensamento dos homens, na produção de idéias : "A
produção de idéias, conceitos e consciência está originariamente
entrelaçada, em termos imediatos, na atividade material e na comu­
nicação material entre os homens, na linguagem da vida realj A
formação de conceitos, o pensamento, a comunicação intelectual
entre os homens são, aqui, mais um produto imediato da relação
material entre os homens" 5 •
Observa-se, posteriormente, que a produção intelectual se se­
para da material, tornando-se uma produção de idéias relativamente
autônoma� "A partir deste momento, a consciência pode realmente
imaginar que nada mais é senão a consciência da prática existente,
que ela pode realmente imaginar alguma coisa sem imaginar algo
real ; a partir deste momento a consciência está em condições de
emancipar-se do mundo e passar à formação da teoria 'pura', da
teologia, filosofi a, moral, etc . " ª .
Mas é relativa a autonomia, a independência do pensamento,
como atividade intelectual, em face da atitude prática do homem
ante o mundo objetivo; em qualquer caso, o pensamento nada mais
é senão a consciência d o ser; sej a como for, o mundo objetivo é
o conteúdo do pensamento.
A relativa autonomia do pensamento pode, por um lado, ser
a fonte que o separa das necessidades da prática social, fato que
suscita ilusões, construções especulativas extremamente distantes da

5 K. Marx e F . Engels. Obras, t . 3 , p . 24. (Ed. russa . )


a Ibid., p. 3 0 .

128
realidade; por outro, está ela relacionada com o ativo caráter cria­
dor do pensamento, condicionando-o. A gnosiologia estuda o pen­
samento como processo de atividade intelectual do homem voltada
para a obtenção de novos resultados. O movimento do pensamento
consiste no desenvolvimento da imagem cognitiva, no movimento
do desconhecimento ao conhecimento.
A força principal q ue dirige a evolução do pensamento é em
última instância a prática, mas só em última instância. O pensa­
mento tem sua lógica interna de desenvolvimento, vinculada à prá­
tica mas relativamente autônoma. Ademais, o movimento do pensa­
mento, centrado n a lógica interna deste, pode ocorrer quer nos li­
mites de conceitos e teorias antes formadas, i. e . , pode ocorrer, em
verdade, sem a obtenção de resultados basicamente novos, quer ul­
trapassando os limites desses conceitos e teorias e criando novos.
Só no segundo caso verifica-se o desenvolvimento real do pensa­
mento, o estudo dos novos resultados, o que constitui a essência
cognitiva do pensamento.
Ao revelar as leis e formas de estudo dos juízes partindo de
um conhecimento antes formado, a lógica form al opera com o mo­
v imento do pensamento nos limites do nível de conhecimento cien­
tífico alcançado. Pelas leis lógico-formais, podem-se extrair os efei­
tos do conteúdo das teorias e conceitos já existentes, caso sejam
estes considerados verdadeiros.
No entanto o desenvolvimento do pensamento está relacionado
com a formação de novas teorias e conceitos, com o movimento das
idéias fora dos limites das concepções teóricas anteriores e gené­
ricas, ou seja, com a formação de uma nova qualidade. Ao que
se sabe, existem formas rigorosamente definidas para a dedução do
efeito do conhecimento anteriormente estabelecido ; mas enquanto
não ocorre a mudan ça da teoria não se pode, segundo fundamen­
tos puramente formais, transformar uma teoria em outra superior,
baseada num nível novo e mais elevado de desenvolvimento da
prática, numa nova experiência de conhecimento da realidade. Por
outras palavras, o desenvolvimento de uma teoria incorpora não só
o movimento dentro de concentos anteriormente atingidos como
também a superação dos limites destes, a formação de construções
teóricas novas por princípio, baseadas na nova experiência do co­
nhecimento e da prática .
No processo de pensamento, o homem se baseia em todo o
conhecimento anterior fixado e consubstanciado em certas formas,
categorias. Estas se apresentam como os pontos de apoio na su­
cessiva evolução do pensamento. Isto significa que, mesmo em sua

1 29
forma mais rudimentar, o pensamento assume, nessa ou naquela me­
dida, caráter categorial .
A evolução do pensamento leva o homem a iniciar-se no co­
n he c im e nto não só do mundo exterior e d e suas leis como. també m
do processo mesmo de conhecimento, do processo de pensamento.
Essa autoconsciência, essa tomada de consciência dos resultados do
pen samento por ele m e smo é in d isp ensáv el para a solução do pro­
ble ma central : a obtenção de um conh eci m ento m a i s p l eno, ob­
j e t ivo e verdadeiro do mundo exterior .
En quanto atividade intelectual, o pen s a mento é, a segu i r , um
processo com fim definido. No pensamento o homem se propõe a
determ i na d os fins, que têm significado objetivo e são p rodut o das
necessidad e s práticas. Visando a determ in ados fins, o homem
coloca e resolve o problema da relação da essência do pensamento
com a realidade objetiva. Deste modo realiza-se a verificação m a­
terial dos resultados do pensamento, elucida-se até que ponto con­
cretizou-se o fi m colocado diante do pensamento.
Enquanto atividade intelectual do ho mem , o p e nsamento atua
como ideal em relação ao objeto nele refletido.
A imagem c ognitiva e o objeto nela refletido constituem a un i­
dade dos contrários. São únicos, pois a imagem é a cópia do ob­
jeto, sua fotografia, mas são também opostos, pois um atua c m
rel a ção ao outro como o ideal em relação ao material .
Enquanto reflexo, fotografia do objet o , a i magem c og nitiv a
não é uma cóp i a material deste. A cópia material ou modelo ma­
terial do objeto possui propriedades i n erentes aos corpos materiais.
O modelo de um barco é difere n te do próprio barco, mas se trata
da diferença no campo de uma afinidade, porquanto eles s ã o c o r ­
pos materiais com a única diferença de q u e um é menos material
que o outro e se emprega para outros fins.
O con teúdo da nossa idéia sobre o barco, s e n do uma imagem
d es se barco, não é, entretanto, a sua có p i a material , um mode lo .
A afinidade e n tre o conteúdo do n o s so pensamento e o seu objeto é
difere nte da afinidade entre a cóp i a material ( mo d elo ) e o obj et o
representado .
A u n ida d e entre o pensamento e o objeto por ele represen tado
c ons i s te em que, no conteúdo do pensamento, e s tão re presentad as
as p r op ri ed a d es do objeto embora o pensamento propriamente dito
não possua, em h ipó tese alguma, pro p ri e d a de s do objeto por ele
r epres e n tado. O modelo do barco pode ser experimentado em la­
boratório, por · el e p odc;m-se estudar as propriedades do próprií'

1 30
barco, ao passo que a id é i a sobre o barco não "navega" sequer em
condições de laboratório.
Por m ais diverso que seja o conteúdo da idéia sobre o objeto
em diferentes pessoas, esse conteúdo é a imagem ideal do obj e­
to materialmente existente ; também neste s entido a idéia sobre o
objeto é por pri ncípio diferente não só do próprio objeto como
também de todas as cópias materiais do mesmo, não possui nem
pode possuir as propriedades destas, refletindo-as apenas .
Entre o conteúdo do pensamento e o objeto por ele repre­
sen tado existe uma d i fe rença de princípio que se chama diferença
entre o material e o ideal . O ideal está relaci on a do com o material
mas não é o material ; " . . . o ideal não é outra coisa senão o
material transplantado para a cabeça do homem e nela transfor­
m a d o " 7 - escreveu K. Marx .
Não se pode co n s i d er ar a imagem cognitiva como sendo uma
coisa ideal es p ec ial, existente lado a l ado com o obj eto e i n dep e n ­
dente d el e ; trata-se apenas da im agem ideal do objeto. Aqui não
há dois objetos : um material , que existe independentemente do
nosso pensamento, outro, ideal, q ue existe no pensamento. Há ape­
n as um objeto. O pen s amento não cria o seu objeto material ou
i d ea l , a c o is a ; cria uma imagem do objeto material .
O ideal é um reflexo da realidade sob as formas da atividade
d o homem , de sua vontade e c o n s c iên c ia ; não se trata de uma coisa
i deal acessível à mente mas de uma capacidade do homem para,
em s u a atividade, produzir intelectualmente, nas idéias, vontade,
n ecessidade e fi n s , esse ou aquele objeto.
As pessoas acostum adas a pensar metafísicamente não podem
en tender se existe ou inexiste o ideal . Realmente, se ele existe, pen­
sam el as, n ão deve ser outra coisa senão algum objeto sensorialmen­
te p er cep t í vel . ! Mas o objeto sensorialmente perceptível é a matéria.
Po r isso, n ada existe exceto a matéria e as formas de seu movi­
mento ; o ideal não existe enquanto . existência especial fora do mo­
vi mento da m atéri a ) - concluem esses metafísicas.
No e n t a n t o o ideal existe na realidade apenas como um con­
t rá rio d o material , não sob a forma de coisas especiais mas como
um momento da interação prática de sujeito e objeto, como forma
de ativi dade do sujeito. I so l a d a m en te , o ideal não existe mas pode
d i s t i n gu i r-se no pensamento como alguma forma pura. Assim como

1 K . Marx e F. Enge ls. Obras, t. 23, p. 2 1 . ( Ed. russa . )

131
o redondo não existe independentemente dos corpos arredondados
mas, corno forma pura, é destacado pela atividade representativa do
homem, o ideal não existe fora da atividade material do homem,
podendo ser desmembrado apenas como forma dessa atividade. Eµ­
quanto forma pura, o ideal existe realmente como que entrelaçado
no material, no movimento do sistema nervoso, no sistema de sinais
materiais, na interação m aterial do homem com a realidade am­
biente.
O processo de pensamento se realiza à base de sinais, via de
regra de palavras e proposições que são forma sensorial, material
de existência do ideal. "O 'espírito' carrega desde o início a maldi­
ção de ser 'sobrecarregado' pela matéria que a q ui se manifesta sob
a forma de camadas móveis de ar, de sons, em suma, sob a forma
de linguagem" 8 - escreveu K. Marx. Enquanto imagem cognitiva
do objeto, enquanto abstração, o ideal realmente existe para outro
homem no processo de comunicação entre os homens, logo, existe
para o próprio ser pensante apenas quando atua sob forma material
sensorial : sob a forma de palavras, proposições. O sujeito pode per­
ceber do mundo exterior somente a quilo q ue atua sobre os órgãos
dos seus sentidos ; o cérebro humano pode entrar em interação so­
mente com os fenômenos capazes de s u scitar nele as excitações cor­
respondentes, i . e . , com o m aterial, o sensorial . P o r isto as imagens
reais dos objetos assumem na linguagem a sua forma sensorial-ma­
terial e deste modo tornam os resultados do pensamento acessíveis,
reais.
O pensamento está relacionado, ainda, com a atividade do sis­
tema nervoso do homem. K. Marx observava que no processo da
produção material o homem "põe em movimento as potencialidades
n aturais pertencentes ao seu corpo : braços e pernas, cabeça e de­
dos" º· O mesmo ele faz no processo de produção intelectual, pondo
em movimento o seu sistema nervoso (os órgãos dos sentidos e o
cérebro ) .
As categorias de psíquico e fisiológico traduzem a relação d a
consciência com o cérebro .
A relação entre essas categorias se situa nos limites da inter­
relação propriedade-coisa : a propriedade é inseparável da própria
coisa, manifesta-se na interação de uma coisa com outra ; o psi-

s K. Marx e F. Engels. Obras, t. 3, p. 29. (Ed. russa . )


o Ibid., t. 2 3 , p. 1 8 8 .

1 32
quismo existe onde há interação do cérebro humano com os objetos
do mundo exterior .
Na solução do problema da relação do pensamento com o c é­
rebro há duas posições extremas :
1 ) o isol amento do pensamento da atividade nervosa do ho­
mem, a transformação daquele em substância independente desta;
2 ) a redução do processo cognitivo e d e todos o s seus mo­
mentos constituintes, inclusive o pensamento, à atividade nervosa
superior do homem.
No primeiro caso, o pensamento perde o seu substrato ma­
terial e fica pairando no ar, no segundo, perde o seu conteúdo
e a sua especificidade.
A matéria, como é sabido, possui muitas propriedades diver­
sas, pois suas formas e aspectos são multifacéticos. Entre o pensa­
mento e outras propriedades da matéria há, evidentemente, afini­
dade ( são propriedade da matéria, pertencem a certos aspectos e
formas desta ) . Mas nos limites do geral diferem qualitativamente
um do outro ; enquanto propriedade específica da matéria, o pensa­

mento não se reduz às propriedades físicas, químicas, biológicas, etc.


Em primeiro lugar, não é inerente a toda matéria viva mas apenas a
uma forma da matéria que é o cérebro humano; em segundo, o
pensamento do homem desempenha uma função inteiramente dife­
rente do metabolismo ou da hereditariedade.
As propriedades são manifestação das peculiaridades de uma
forma qualquer da matéria ( ou de seu aspecto ) na relação com
outros fenômenos no processo de interação. Assim, por exemplo, o
metabolismo é um tipo especial de interação do albúmen vivo com
o meio exterior; no processo dessa interação manifesta-se a pro­
priedade do albúmen vivo, sua capacidade de auto-reproduzir a sua
composição química. O homem entra em interação com o obje­
to do mundo exterior; nesta interação manifestam-se as proprieda­
des do seu cérebro - o pensamento, q ue consiste na capacidade do
cérebro de criar o ideal, a imagem, de refletir de maneira especial
as propriedades dos objetos do mundo exterior. A originalidade, a
faculdade qualitativa do pensamento enquanto propriedade· do cé­
rebro está na sua capacidade de reproduzir a realidade exterior nas
imagens dos conceitos de uma outra forma. :f: justamente por isto
que, enquanto propriedade da matéria, o pensamento difere de to­
das as outras propriedades desta.
O materialismo vulgar identifica . o pensamento enquanto pro­
priedade da matéria com outras propriedades, sem perceber a ori­
ginalidade qualitativa do pensamento. Como todo materialismo, ele

1 33
n ão erra ao admitir que, em relação ao cérebro, o pensamento é
propriedade e não pode ser outra coisa. O erro do materialismo
vulgar é responder incorretamente à questão relativa às peculiarida­
des dessa propriedade da matéria, à diferença radical entre ela e
o u tra s propriedades da matéria.
Toda propriedade da matéria é expressão de certa forma do
seu movimento. As peculiaridades das formas do movimento da
matéria, inclusive uma propriedade específica como o pensamento,
são estudadas por todo um conjunto de ciências do sistema nervoso ;
aqui cabe grande papel à fisiologia da atividade nervosa superior.
O materialismo dialético, como já dissemos, não estuda as
l eis concretas específicas dessa ou daquel a forma de movimento d a
matéria; estas são estudadas por campos especiais do conhecimento
científico. O objeto do materialismo dialético é constituído pelas
l eis mais gerais do movimento, inerentes a todas as formas da ma­
téria. Por isso o pensamento, enquanto propriedade de certa forma
de movimento da matéria, não pode ser objeto da filosofia, sendo
objeto de outras ciências. Neste caso, a filosofia se l imita à solução
do problema geral da relação do pensamento com a matéria pen­
sante, deixando a outras ciências todos os detalhes do esclarecimento
dessa relação, sobretudo as formas do movimento da matéria da
qual o pensamento é propriedade.

3. A IMPORTÂNCIA DO CHAMADO PENSAMENTO AUTOMÁTICO

A compreensão do papel do fisiológico no processo de pen­


samento permite definir corretamente a essência e a importância
de ações semelhantes ao pensamento mas radicalmente diferentes
dele. Trata-se do chamado pensamento automático ou "máquinas
pensantes" .
É evidente que os termos "pensamento automático" e "má­
quinas pensantes" são extremamente falhas e capazes de provocar
confusão no raciocínio. Foram introduzidos no linguajar científico
como conseqüência do desenvolvimento da cibernética para designar
os desempenhos dos sistemas eletrônico-computacionais e outros
afins. A cibernética é uma ciência jovem, ainda não amadureceu o
suficiente em sua terminologia e por isto é forçada a operar com
termos cujo significado literal não corresponde ao conteúdo dos
conceitos cibernéticas. O que a máquina faz naturalmente não é
pensamento, fato entendido até por muitos dos pensadores que se

1 34
acham distantes do marxismo. Pensar só o homem pode, ou me­
lhor, a humanidade.
No caso dado colocamos o problema da atitude do pensamento
do homem em face do chamado pensamento automático não · com
o fim de compará-los, de mostrar a diferença que há entre eles e
resol ver se a máquina pensa ou não. Para nós tal problema não
deve surgir, pois, pelas definições que já apresentamos de pensa­
mento, :já pode-se concluir com toda evidência que ele é uma fa­
culdade · puramente humana.. Muitos autores se dedicam a refutar
a tese de alguns ciberneticistas sobre o "pensamento" da máquina,
fazendo uma simples enumeração do que a máquina não pode fazer
e do que o nosso pensamento faz. Achamos esse procedimento sim­
pl esmente dispensável , já que à máquina não é inerente o pensa­
mento nem sequer na forma mais mdimentar. A máquina não pode
c riar :u�a imagem ideal da realidade por meio de abstrações ; esta
é uma função exclusiva do cérebro humano, pois onde não há cria­
ção da imagem ideal da realidade por meio de abstrações n ão há
pensamento na forma mais rudimentar.
Quando se trata do "pensamento automático" , o correto não
é questionar se a máquina pensa ou procurar o que distingue o pen­
samento da máquina do · pensamento do homem, mas colocar o pro­
blema de como a máquina ajuda o homem a pensar, de como· ela
substitui o homem e suas ações no processo de pensamento.
O pensamento surge como resultado da ação do objeto sobre
o sujeito, o homem. O homem entra em interação com o objeto
não corno um ser puramente biológico mas social, como homem
social com tudo aquilo que lhe forma a nova qualidade em com­
paração com o animal mais altamente organizado . Inserem-se neste
contexto, indubitavelmente, os instrumentos de trabalho do homem,
todas as máquinas e dispositivos por meio dos quais ele interpreta
e transforma o mundo. Neste caso os computadores eletrônicos não
constituem qualquer exceção, juntam-se aos instrumentos com os
quais o homem conhece e transforma o mundo exterior. Da mesma
forma que a escavadeira ajuda o homem a cavar a terra, o teles-
, cópia a observar os corpos celestes, os computadores ajudam a
· pensar; facilitando-lhe o trabalho mental .
Ao reconhecer-se a importância que tem para o funcionamento
do pensamento a atividade n ervosa herdada dos animais superiores
pelo homem, é necessário levar em conta ao menos duas circuns­
tâncias .
Em primeiro lugar, os ó rgãos naturais do homem sofreram
modificação essencial no processo e como resultado do desenvol-

13 5
vimento social. Lembremos o que disse Engels sobre a mão do ho­
mem : "A mão, deste modo, não é só órgão do trabalho, é também
produto deste. Só graças ao trabalho, graças à adaptação a . opera­
ções cada vez mais novas, graças à transmissão hereditária do de­
senvolvimento especial dos músculos e, em lapsos de tempo mais
longos, também dos ossos, obtido por esse caminho, e graças à
aplicação cada vez mais nova desses aperfeiçoamentos transmitidos
por hereditariedade no sentido de operações novas, cada vez mais
complexas, somente graças a tudo isso a mão do homem atingiu o
elevado grau de perfeição no qual pôde, por meio de uma espécie
de força de magia, dar vida aos quadros de Rafael, às estátuas de
Thorvaldsen, à música de Paganin i " 1 0 •
Isto se refere tanto à mão como à cabeça do homem, ao cé­
rebro, aos órgãos dos sentidos que são igualmente produto de toda
a história da humanidade. Como o mesmo Engels observa, apenas
com o concurso da mão o homem não criaria a máquin a a vapor,
pois aqui ainda se fizeram necessários a cabeça, o cérebro do ho­
mem, que difere essencialmente do cérebro dos seus antepassados
animais. O homem j á nasce com cabeça humana, braços human os
e órgãos dos sentidos.
Em segundo, sob a influência do trabalho e da atividade so­
cial em geral, os órgãos n aturais do homem não só mudam como
se completam, sobre eles surgem superestruturas artificiais q ue ge­
ram e reforçam os instrumentos de trabalho humano. É com o fa­
brico dos instrumentos de trabalho que começa propriamente a ati­
vidade produtiva. O homem usa as propriedades mecânicas, físicas
e químicas das coisas "para, em consonância com o seu objetivo,
aplicá-las como instrumento de ação sobre outras coisas" 1 1 •
Essas superestruturas artificiais, que geram e reforçam os ór­
gãos naturais do corpo humano, erigem-se imediatamente também
sobre o sistema nervoso, os órgãos dos sentidos e o cérebro humano.
Podemos tomar os computadores eletrônicos como exemplo no qual
se manifesta com a maior clareza e evidência o uso dos instrumentos
artificiais imediatamente para a atividade intelectual do homem. Aqui
as propriedades mecânicas e físicas das coisas, especialmente as pro­
priedades elétricas, são realmente utilizadas como veículo de co­
nhecimento do mundo exterior pelo homem.

1º K . Marx e F. Engels. Obras, t. 20, p. 488. (Ed. russa . )


21 Ibid. , t. 23, p. 1 90 .

136
Entre o machado de pedra do homem primitivo e o complexo
computador eletrônico moderno h á uma enorme distância. No en­
tanto há certa afinidade entre eles : ambos são instrumentos de
trabalho humano, em qualquer parte o homem usa as propriedades
físicas e mecânicas dos objetos como instrumentos de sua atividade.
Mas o machado primitivo de pedra e suas propriedades reforçavam
a mão do homem para sua atuação sobre os objetos do mundo
exterior no processo do trabalho físico, enquanto que o compu­
tador eletrônico moderno reforça o cérebro do homem em sua ati­
vidade intelectual cognitiva. Som as condições de uma civilização
desenvolvida, de uma ciência e técnica madura, o pensamento é
suprido de instrumentos que ajudam imediatamente o homem a
pensar, refletir o objeto.
Neste caso não é absolutamente obrigatório que o instrumento
de trabalho sej a por forma e natureza física semelhante ao órgão
natural que ele completa e reforça. A locomotiva a vapor e o avião,
por exemplo, n ão são semelhantes aos pés do homem ou do cavalo
por natureza física ou por forma mas a eles se assemelham pela
função que desempenham. Só um homem de raciocínio primitivo
poderia procurar na locomotiva a vapor o lugar para atrelar o ca­
valo. O mesmo pode-se dizer sobre os instrumentos da atividade
cognitiva do homem. Nem por forma, nem pela natureza da subs­
tância de que se constitui, o computador eletrônico lembra a cabeça,
o cérebro do homem, sendo-lhe, no entanto, funcionalmente seme­
lhante. Como o machado de corpos albuminosos dificilmente cor­
taria melhor que o machado de aço, o computador eletrônico que
tomasse como células os neurônios dificilmente teria vantagens fun­
cionais sobre a má quina constituída de lâmpadas eletrônicas e semi­
condutores. Não é a simples cópia ou imitação da n atureza mas a
criação do novo, inexistente na natureza mas indispensável para
a vida social , q ue constitui a via magistral de desenvolvimento da
produção e do conhecimento humano.
A questão do lugar dos computadores e sua relação com o
processo de pensamento já foi levantada por F . Engels, que, ao
comparar o aritmômetro com a atividade da razão, escreveu : "A
razão computadora é uma máquina de calcular! Trata-se de uma
divertida mescla de atos matemáticos que admitem demonstração
material, verificação - já que se baseiam na contemplação material
i mediata porém abstrata - com atos puramente lógicos que ad­
mitem apenas a demonstração por meio da dedução e aos quais,
por conseguinte, não é inerente autenticidade positiva, própria dos

137
a tos . matemáticosi: : . qilantos deles ·s ão errôneos ! . . . f: um esquema­
padrão" 1;!' : : : . . . . . , , .

Para . E ng el s , . a . identificação do · trabalho do computador com o


trabalho . de». cérebro : human o é tuna "mescla divertida" , que jaz na
.a n a log ia : superfieia1 , · . n a incompreensão da essência e das peculi ari­
. dades do . pensamento humano. Toda máquina calculadora, até a
. mais complexa, é : co nst ru íd a à base de certo esquema (padrão )
. cuj01>· limites ela não pode ultrapassar. Nela se desmembra e se me­
. cani;z:a certo , pr9ce�so · l ógico : um esquema de deduções em deter­
mi_nada �qpe�açãq µi�temática. Por conseguinte, um processo rico e
. substancial se ,ach� representado na máquina em fo r m a empobre­
cida, esquem'atiziid.a . . Empregando os resultados da lógica matemá­
'tica · atua l , q ue ' s e p arou do p rocesso de d edução os esquemas sim­
'
ples de�te, : o h �mem mecaniz� .o processo padronizado de d e du çã o
' ' '
de um ju ízo a p arti"t de outro . Por isto a má q ui n a aj uda ao h o m e m
e . lh e s iib stitu i o· : trabalho m�n.tal no processo lógico de deduções .
·

.
Por ·: que · se pó cJe m�c a n iza r esse processo em alguma de suas
.
· partes? lsto s·e b a s ei a . em que o pens am en to sempre ocorre sobre
· a lgu m a bas� sensorial ( de p alavras, outros sinais sensoriais ) onde o
significadó
. : ideal · está rel aci o n a d o com o m aterial . Além do m ai s ,
no proces so de pensamé_nto podemos operar com símbolos senso­
.

·ri ais d e acordo coin · certas leis sem dar atenção ao significado

deles. ' A ' má q u i n a não · opera a s imagens ideais dos objetos ; lida
. apenas com' uma variedade de sinais s en s oriai s e opera somente
com o conteúdo material destes ; o sistema de sinais determinados
é . o resul t a do da ação da máquina. f: ao homem que, no processo
de pensamento, compete usar a m á qui n a e in terp re tar os resultados
. desses sinais e. relacioná-los c om certo significado .
·

. Assim, ·na máquina não se verifica um processo realmente


l ó g i co de dedução de um juízo a p a r tir de outro, urna vez que este
processo está . relacionado com a i n terpre t aç ão do significado das
teses· básic� .e dos. resultados finais elas deduções. A máquin a copia
ap en as uma parte desse proce ss o, relacionada à operação com idéias
. enquant,o sinais sensoriais segundo certas leis, para as quais pode-se
encontrar na máql;lina análogo material . Em al g um a de suas partes,
'.a m á q u i n a póde imitar o pensamento h u m an o , c o p iá- lo , e essa
' possibilid.ade , ê . fiprc)veitada p el o h omem . A parte das funções antes
'. desempenhada� pelo pró p ri� . homem n o processo de pensamento se
: tr.ansfete, p�a ª � á g uina que as exerce com rapidez e precisão.
·

. ,

i"t2 · . K � .MarX · ·e· · · F.: E.ng�Is. Obras, · t. 20, p. 6 3 l . ( Ed. russa . )

1 38
O emprego das máquinas no processo d e pensamento : se cons.:
titui em mais uma prova a favor da natureza social 'deste. A própria
máq uina é medida pelo pensamento e a prática social,: . porquanto é
resultado do progresso da ciência e da técnica dos homens; na má­
quina materializam-se os resultados do pensamento humano. Quanto
mais perfeito o próprio pensamento tanto mais comple x a a máquina.
Havendo novas teorias científicas, surgirão também novas máquinas
construídas à base delas, que começarão a desempenhar novas fun­
ções, passarão a ser um meio ainda mais sutil de penetração do
homem nos segredos da n atureza, e do próprio . processo de pen;.
sarnento. Limitar o progresso do desenvolvimento da técnica .me­
cânica, que imita uma parte do processo de pensamento, implica em
impor obstáculos, em levantar b arreiras pa r a o desenvolvimento d a
prática social do homem e seu pensamento.
A máquina é instrumento do homem e de seu . pensamento,
ajuda-lhe a pen s a r, l iberta-o de uma série de operações que ele
mesmo produziu no processo de pensamento. Mas el a é apenas um
recurso material do pensamento hum ano, e . n isto s e estabel ece o
seu limite absoluto. Por mais perfeita que s eja, a máquina não pode
ser outra coisa senão uni meio, um instrun'lento do pensamento
humano. Será sempre o homem qu e m pensará, cri a rá: , · ao passo
que a máquina será sempre e em m ed i d a cada• vez maior seu auxi­
l i ar. Te n do surgido como resultado do desenvolvimento da prática
e do pensamento dos homens, as máquinas · "pensantes". contribuem
para o desenvol vimento do pensamento, sendo que ajudar ã o ao ho ..:
mero na realização do processo pensante nas suas màis diversas ma­
nifestações : quer n a solução dos problemas ·antes levantados e par­
cialmente já resolvidos, quer na colocação e solução de n ovos pro­
b lemas .
A máquina pode ajudar ao homem também · em sua atividade
criadora, porquanto esta também está subordinada a certas leis que
se apreendem e se manifestam em certa forma ·e, conseqüentemente,
podem ser reproduzidas na máquina. :pode ser até cetto ponto me­
canizado tudo o que está sujeito a determinadas 'leis , é · interpretá­
vel e traduzível em certo sistema de conceitos que ·na superfície se
m an i fest a m sob a forma de sistema de sinais materiais, sensoriais.
A máquina pode ajudar ao homem até no conhecimento. do pró�
prio processo de pensamento. Sendo . cópia material de um aspécto
qualquer do pensamento, el a contribui para que · : o homem tenha
mais clareza dessa ou daquela' função do pensamento; Assim , " · por
·
exemplo, a prática atual de construção de máquinas cibernéticas con�
tribui para o pro g r e ss o no desenvolvimento · d a lógica matemática�

139
Esta, apó s tomar em forma pura e mecanizar o processo de dedu­
ção de um juízo a partir de outro, levou a uma compreensão mais
profunda desse processo. As máquinas "pensantes" invadirão os
mais diversos campos da atividade intelectual do homem mas con­
tinuarão sendo apenas meio material dessa atividade teórica. O ho­
mem transferirá para a máquina um número cada vez maior de
funções por ele exercidas no processo de pensamento, reservando­
se uma única função : o próprio pensamento como meio de represen­
tação da realidade mediante abstrações. Ele desenvolverá esta últi­
ma função valendo-se de todos os meios, inclusive das chamadas
máquinas pensantes .

4. 0 RACIONAL E O NÃO-RACIONAL, O RACIONAL E O


JUDICATIVO, O INTUITIVO E O DISCURSIVO

A realidade objetiva não é a materialização da razão humana ;


partindo dessa realidade t a l qual ela é , com todas as suas leis obje­
tivas e contradições, nós criamos a nossa n atureza humanizada.
Neste sentido o homem insere no mundo a sua razão, porém
apenas sob a forma de reflexo da natureza e da ação prática que
m aterializa o · racion al, reflexo esse que é voltado para um objetivo
e dirigido. O racional e o não-racional são atributos da atividade
humana, logo, sua fonte radica na prática, no seu desenvolvimento.
O racional tem caráter histórico, desenvolve-se junto com a
prática humana e mostra o grau do domínio do homem sobre os
fenômenos da realidade objetiva, da capacidade do homem para
dirigir-lhe os processos.
O pensamento é um meio de atitude racional do homem em
face da realidade por criar idéias cuja realização prática constitui
um p asso no sentido da criação de um mundo condizente com a
essência e a necessidade do ser do homem. Neste caso a medida
de racionalidade das nossas idéias é determinada pelo grau de do­
mínio sobre os fenômenos e processos da realidade objetiva .
Em certo sentido o racional e o não-racional não diferem d e
outros p ares de categorias, como, por exemplo, necessidade e ca­
sualidade, forma e conteúdo, lógico e histórico, abstrato e concreto,
etc. Ao que se sabe, nenhuma dessas categorias, tomada isolada­
mente da outra, expressa qualquer conteúdo real, daí serem defi­
nidas uma através da outra, ou melhor, na sua inter-relação per­
cebe-se certa realidade.

1 40
A questão do racional e do não-racional surge no momento
cm que o homem compara os produtos de sua atividade com as
necessidades socialmente significativas e define em que medida esses
produtos l evam à realização dos seus objetivos. Fora dessa relação
carece de sentido dizer se a realidade ou o pensamento é racional
ou irracional.
O racional é o conhecimento da realidade sob as formas do
pensamento que l ança idéias cuja realização prática cria o mundo
dos objetos correspondentes às necessidades do homem. O não­
racional se opõe ao racional como algo que não satisfaz o homem
nem reconhece p ara este formas racionais.
O n ão-racional como oposição ao racional não existe em al­
gum lugar fora da atividade humana mas nela mesma como seu
momento e produto. A própria humanidade cria aquilo que tem
de conscientizar e transformar.
O racional e o n ão-racion al são momentos de um único pro­
cesso de desenvolvimento da prática e do conhecimento do homem.
Hegel quis de uma só vez acabar com o não-racion al , concebendo-o
c omo um elemento qualquer do pensamento especulativo. No en­
tanto não se pode dar cabo dele tão facilmente. Supera-se o não­
racional à medida do desenvolvimento da humanidade e seu pensa­
mento. Esse processo histórico de transformação do não-racional
em racional nunca termina no movimento do conhecimento e da
prática. Sempre há resquícios do não-racional, e se uma coisa deixa
de ser tal qual era, surge forçosamente outra; o pensamento humano
encontra permanentemente algo novo, algo que ainda não foi do­
m i n ado pela nossa razão e a prática nela baseada.
Assim como procura dominar e interpretar os fenômenos e
processos da realidade objetiva, o homem faz o mesmo com o pró­
p r io conhecimento, considerando-o certo processo objetivo situado
fora da consciência individual. Aqui, no conhecimento sobre o co­
nhecimento, há igualmente racional e não-racional, momentos iso­
l ados do movimento do conhecimento se inserem nos limites e cate­
gorias criados do pensamento, enquanto alguns são até certo pe­
ríodo "resquício do não-racional" . O pensamento nunca se detém
ante esse "resquício" como ante um enigma eterno. No entanto
toda decifração de um enigma não é apenas o descobrimento de
segredos mas, em realidade, a criação de novos. .f: justamente na
prática e nas formas de pensar que à base dela surgem que o não­
racional se converte em racional, assume as formas necessárias e
acessíveis à compreensão do homem .

141
Ao rejeitar o irracionalismo como concepção filosófica idea­
lista, o marxismo-leninismo não nega a própria existência do não­
racional 1 3 enquanto oposição ao racional mas apresenta a sua inter­
pretação desse não-racional e de sua atitude face ao racional. O
irracionalismo é superável, mas não pelo racionalismo morto e sim
por uma concepção filosófica mais profunda e rica em conteúdo,
que, em suma, tome como orientação a razão em desenvolvimento
e a prática humana. A razão mostra sua força na superação do
dado que se lhe opõe como algo diferente dela. Nossa prática e a
razã o que nela se baseia são capazes de transformar o não-racional
em racional , só que não se deve conceber como absoluta nenhuma
forma da razão, nenhuma de suas realizações histórico-concretas .
Aqui devemos salientar mais uma vez que o desenvolvimento da
prática e da razão humana se processa mediante a superação do
não-racional, mas a natureza do desenvolvimento é tal que ele é
sempre relativo em suas formas concretas.
No pensamento, o próprio racional existe em duas formas : o
racional e o razoável .
O racional é antes de tudo a operação com conceitos e o e s ­
tudo da própria natureza destes. A razão não só transfere e agrupa
as abstrações como conscientiza o conteúdo, a natureza destes e,
em conformidade com isto, opera com elas. Daí o racional sempre
se manifestar até certo ponto como autoconhecimento. Enquanto
estudo da natureza do pensamento apreensivo, o autoconhecimen­
to não é um objetivo em si mesmo mas um meio de . conhecimento
mais eficaz do mundo objetivo. Para apreender com mais pleni­
tude e profundidade o objeto, o sujeito deve interpretar os seus
meios e métodos de conhecimento.
O grau do conhecimento racional da realidade pelo homem é
determinado, em particular, pela capacidade deste de penetrar n a
essência do pensamento interpretante, de estudar a natureza dos
próprios conceitos. Engels observava que essa capacidade é ine­
rente " . . . somente ao homem e a este apenas num nível rel ati­
vamente elevado de desenvolvimento . . " 1 4 • .

13 É necessá r i o d i sti n gu i r o não-racion al do irracional; o irracion a l i s m o


postula a exi stência d o irracional, que n u n c a pode converter-se em raciona l .
A teoria m arxista d o conhecimento r ec on h e ce a existência do não-r.ac'onal
em determi n a d a s condições, c o nsid er a n do que o n ão-rac i on a l se t r a· n s íorma e m
racional sob a influência da prática e d .a razão do h o me m .
11 K. M arx e F. Engels. Obras, t. 20, p. 5 3 8 . ( Ed . russa . )

142
A clareza de objetivo é uma peculiaridade do conhecimento
racional . A razão apreende o mundo não de maneira contemplativa
mas criadora, ativa .
A função criativa da razão era enfatizada e hipertrofiada com
empenho especi al pelo idealismo, que a transformava em criador
da realidade. Em realidade, o homem muda o mundo com sua ·
ação prática, enquanto a razão dirige essa ação com o seu reflexo
do objeto ativo e voltado para um fi m O reflexo criativamente
.

ativo pressupõe forçosamente a síntese do conhecimento, daí a razão


atuar como sinônimo da sinteticidade do conhecimento. Por meio
da razão abrange-se um amplo círculo de conhecimento e formam­
se idéias .
A razão pode ser definida como forma superior de conheci­
mento teórico da realidade.
O conhecimento judicativo também opera com abstrações mas
n ão penetra no conteúdo e na natureza destas. .S característico do
juízo operar com abstrações nos limites de um esquema dado ou de
outro padrão qualquer . A atividade judicativa não tem objetivo pró­
prio, realiza um fim dado a priori, daí o reflexo da realidade pelo
juízo ter at é certo ponto caráter morto. A função principal do juízo
é desmembrar e avaliar.
O processo de desenvolvimento do pensamento teórico suben­
tende uma interpretação entre atividade judicativa e racional e a
transformação de uma na outra. Para desempenhar seu papel fun­
damental - o de refletir os fen ômenos do mundo objetivo e as
leis de movimento desses fenômenos em toda a plenitude -, o
pensamento deve ser simultaneamente judicativo e racional .
Sem a atividade judicativa o pensamento é disperso e indefi­
nido ; o juízo dá ao pensamento sistematicidade e rigorosidade. Em­
penhado em transformar a teoria científica num sistema formal
logicamente coerente, o homem, graças ao j uízo, torna os resul ta­
dos do trabalho do pensamento acessíveis à interpretação e à cons­
ci entização. Como j á escrevera Hegel, "o juízo é geralmente um
momento essencial na instrução. O homem instruído não se con­
tenta com o vago e in d efin id o, mas percebe os obj etos em sua
precisa defin ibilidade ; já o não-instruído, ao contrário, vagueia pra
lá e pra cá, e temos freq üentemente d e fazer bastante esforço para
chegar com ele a um denominador comum sobre o assunto t r a t a d o
e forçá-lo a manter-se imut á vel justamente nesse ponto defin ido" 1 :; .

15 Hegel. Obras, t. 1. Moscou, 1 9 29, p. 1 3 3 . ( Ed . russa . )

143
Desde o seu limiar, o juízo foi refutado pela sofística, que se
assustava com a rigorosidade, a precisão e a sistematicidade do
mesmo. Mas a própria sofística é uma prova de que o pensamento
não-judicativo é falso, desvia a ciência da verdade objetiva. Se o
pensamento não se converte num sistema dentro do qual é possível
movimentar-se segundo certas leis lógicas, então não há essencial­
mente pensamento como forma do conhecimento objetivo-verda­
deiro.
No entanto, se deixarmos o pensamento sendo apenas j u dica­
tivo, ele se tornará dogmático. O juízo pode tornar-se preconceito
quando uma tese verdadeira, ao absolutizar-se, ao n ão permitir o
o seu desenvolvimento e sua transformação em outra mais obj e tiva
e concreta por conteúdo, converte-se em obstáculo à evolução da
ciência. O pensamento necessita de outra qualidade : a de mudar o
seu sistema com o fim de refletir com mais pre cisão e profundidade
o processo estudado. Destrói-se um sistema anteriormente constit uído
e cria-se um novo, A transição de um sistema de conhecimento a

outro se realiza por meio da razão, que cria novas idéias q ue ul­
trapassam os limites dos sistemas anteriores. Sem a razão não ha­
veria progresso, evolução do conhecimento científico, o movimento
existiria apenas dentro de alguns sistemas anteriormente criados e
estes não poderiam surgir sem ela .
A força da razão está em sua capacidade de lan ç ar idéias abso­
lutamente novas e, pareceria, inverossímeis, que mudam radicalmen­
te o sistema anterior de conhecimento. Às vezes concebe- se essa ca­
pacidade como algo místico e irracional . Entretanto, embora e s sa
capacidade ultrapasse os limites do juízo, em hipótese alguma deve
ser considerada como algo inacessível ao pensamento e não apre­
ensível . Hegel teve razão ao escrever : " Nós, por conseguinte, deve­
mos chamar a todo o racional ao mesmo tempo de místico ; mas
com isto estamos dizendo apenas que ele ultrapassa os limites do
j uízo e nunca que deve ser inteiramente considerado como inaces­
sível ao pensamento e não apreensível" 1 6 • A razão é misteriosa e
mística somente no sentido de que incorpora numa unidade os con­
ceitos q ue "o juízo reconhece como verdadeiros apenas em sua
divisão e oposição" 1 7 •

16 Hegel. Obras, t. 1, p. 1 42 .
l7 lbid ., p. 1 4 1 .

1 44
Opor o juízo à razão como o racional ao irracional é caracte­
rístico de alguns neo-hegelianos contemporâneos de orientação exis­
tencialista. Essa concepção da alogicidade da razão surge no mo­
mento em que o próprio lógico se fecha nos limites estreitos do
"lógico-formal" . Se entendermos por lógico o conjunto de todas as
l eis do movimento do pensamento no sentido de novos resultados
que assumem o caráter de verdade objetiva, então o processo de
surgimento de novas idéias e teorias não ultrapassa os limites do
racional, do lógico num sentido amplo. Não se pode explicar o
processo de surgimentó de novas idéias da razão partindo de algum
dispositivo anteriormente criado do pensamento mas das leis gerais
da interação prática entre suj eito e objeto.
Ao diferenciarmos os aspectos judicativo e racional no pensa­
mento teórico do homem, é preciso percebermos rigorosamente a re­
l atividade dos limites entre eles. Não há o sempre racional e o
sempre judicativo ; um só é racional porque o outro é judicativo.
O q ue c m dado nível de desenvolvimento do pensamento atua como
racional, visto que o pensamento ultrapassa os limites de um sistema
conhecido e formalizado do conhecimento, com o tempo se torna
j udicativo, enquanto que tudo o que é judicativo outrora foi ra­
cional .
A inter-relação entre o juíza e a razão no desenvolvimento do
pensamento teórico se manifesta ainda em que o pensamento judi­
cativo deve necessariamente converter-se em racional , culminar neste,
ao passo que este, ao atingir certo grau de maturidade, torna-se
j udicativo. A transformação do j uízo em razão se realiza sob di­
versas formas, entre as quais a mais típica é a superação à base
-

do lançamento de novas idéias - dos limites do sistema de co­


n hecimen to já existente. A razão se converte em juízo por meio da
formalização - segundo certos princípios - do sistema de conhe­
cimento surgido com base nas idéias da razão. Verificamos essa
transformação em cada caso de transferência das funções do pensa­
mento humano à má q ui na. A criação do algoritmo, ou seja, do
dispositivo exato que prescreve o processo computacional é condição
i n dispensável de tal transferência .
A ação baseada no algoritmo é judicativa 18, enquanto o pró­
prio algoritmo é resultado não só do pensamento judicativo mas

is É característica do algoritmo a prec1sao com uma rigorosa deter­


m inação : um a fase do processo computacional determina a seguinte, o processo
se desmembra em passos separados, a disposição se faz sob a fo rma de
combinação de símbolos.

1 45
também do racional . :E: s abido que a c1encia vem se batendo h á
muito tempo e insistentemente com a criação de algoritmos espe­
ciais, sendo que cada novo algoritmo pressupõe também uma nova
idéia ou um novo aspecto da abordagem do objeto. Por exemplo, a
solução do problema da tradução automática está relacionada com
a composição do algoritmo da tradução e isto se tornou possível
com o surgimento de uma nova disciplin a científica - a lingüística
matemática, que aplica modelos matemáticos à análise da linguagem .
A criação da Iingüísti ca matemática i mplica no surgimento de
um novo sistema de conhecimentos científicos, imbuído de novas
idéias, diferente da lingüística clássica anterior.
Em nossa época, o pensamento teórico se desenvolve com ce­
leridade em dois sentidos : no racional e no judicativo. Em cada
campo do conhecimento científico somos testemunhas do lança­
mento de novas idéias, que subvertem os velhos sistemas de conhe­
cimento acabados. Verifica-se, concomitantemente, um processo de
formalização do conhecimento, que chega à criação de algoritmos
pelos · quais a máquina pode resolver os problemas ante ela colo­
cados. A alta razão se coaduna com o mais perfeito juízo. :S um
equívoco do nosso tempo a concepção de que o desenvolvimento e
o aperfeiçoamento do juízo e a transferência de suas funções à má­
quina tomam supérflua a razão humana. Ao contrário, a premissa
necessária para o desenvolvimento do juízo é constituída justa­
mente pela elevada razão humana, sem a qual é impossível a cria­
ção de novos sistemas formais. Além do mais, o aperfeiçoamento
·
e o desenvolvimento do juízo, a transferência de suas funções à
máquina l iberta a razão humana para novos vôos rumo ao desco­
nhecido e inexplorado. Por isso todo empenho no sentido de li­
mitar o desenvolvimento do juízo, impor-lhe certos limites, desco­
brir construções teóricas que ele nunca pode dominar constitui um
profundo erro. Impondo limites ao juízo, estaríamos de fato l i m i ­
tando a razão humana cujo desenvolvimento é condição sine qua
non para que o juízo domine sistemas de conhecimento teórico
cada vez mais novos .
O juízo e a razão são dois momentos indisp ensáveis na atividade
do pensamento teórico. A inter-relação e a transformação de um
no outro no processo de movimento do pensamento criam prem is­
sas para a apreensão da natureza objetiva do objeto tal qual el a
existe na realidade.
Ao reconhecer a existência do irracional, o irracionalismo fun­
damenta a necessidade de formas não-racionais especiais de apre­
ensão deste. E lança como uma dessas form as a "intuição '. ' , q ue é

1 46
envolvida por uma auréola de mistério, de ininteligibilidade . Além
do mais, essa já não é a intuição da razão, como em Descartes, Espi­
nosa e Leibniz, mas uma atividade especial qualquer, oposta ao
pensamento. Para os irracionalistas, a intuição é uma fortna do
c onh eci me n to imediato, que descobre o caminho à realidade evi­
tando as sensações e a razão. É uma forma de vivifi cação imediata
da vida.
Como qualquer concepção idealista falsa, o intuitivismo espe­
cula cóm alguns momentos do processo real de conhecimento, so­
bretudo do pensamento criador. Sabe-se pela prática do desenvol­
vimento da ciência que as n ovas idéias que mudam radicalmente · as
velhas concepções surgem freqüentemente não como resultado de
uma rigorosa dedução lógica a partir do conhecimento antecedente
nem como simples generalização dos dados da experiência. Elas são
uma espécie de interrupção da continuidade, de salto no · movi­
mento do pensamento. A plena fundamentação teórica e experimen­
tal dessas idéias vem depois, quando elas já n asceram e se incorpo­
raram ao tecido da ciênci a. É isto que cria a noção de que essas
idéias são intu i t i v as , i n d epende ntes da experiência e do pensamento
teórico. Como escreve o famoso físico francês Louis de Broglie,
" . . . a ciência humana, essencialmente racional por seus fundamen­
tos e . p elos métodos, pode realizar suas conquistas mais notáveis
somente por meio de perigosos saltos inesperados da inteligência,
quando se manifestam as capacidades libertas dos pesados grilhões
do raciocínio rigoroso, que são chamadas de imaginação, intuição,
sagacidade" ro .
Que atitude assumir diante desse tip o de fenômenos proce­
dentes do campo da criação científica e também artística? É imp os­
sí vel negá-los, sua realidade foi demonstrada. É verdade que esses
f atos não cabem na co n c epção metafísica do pensamento enquanto
processo apenas constante que se desenrola sob a forma de dedução
lógico-formal ; eles, porém, n ão só não contradizem como são exi­
gidos, pode-se dizer, pela própria dial é ti ca materialista, sua lógic a
e g nos i olo g i a .
Efetivamente, ao apreender a realidade o pensam e nto dá sal­
tos. " . . . A vida e o desenvolvimento na n atureza incorporam a evo­
l ução lenta e os saltos rápidos, os intervalos da continuidade" 2 0

rn Louis de Broglie . Pe las sendas da ciência . M oscou, 1 9 62, p. 295,


( Ed . russa . )
20 V. 1. Lên in. Obras completas, t. 20, p. 66. (Ed. russa . )

147
- escreveu Lênin. Ao apreender a vida e o desenvolvimento, acaso
o pensamento pode ser excluído dessa dialética e não incorporar os
saltos, os intervalos da continuidade? "É dialética não só a transi­
ção da matéria à consciência como tamb ém da sensação à idéia" 2 1 •
Pode-se dar continuidade a essa idéia de Lênin : é dialética tam­
bém a transição de uma idéia a outra, de uma construção teórica
a outra.
Mas o intuitivismo interpreta os saltos, os intervalos da con­
tinuidade no movimento do conhecimento como uma espécie de
prova da existência de uma intuição especial, mística, desvinculada
da experiência e do pensamento. E nisto está a sua falsidade. J á
a dialética materialista parte d e que o s saltos aqui abordados são
s altos no movimento do próprio pensamento, em sua transição dos
d ados da experiência às teses teóricas, de uma teoria a outra .
Caracteriza-se o pensamento intuitivo por uma retração do ra­
ciocínio, pela conscientização não de todo o processo mas de um
elo isolado mais importante, especialmente a dedução final . Em
termos gerais deve-se dizer que, em termos práticos, o homem
nunca reproduz inteiramente o esquema de pensamento dado pela
lógica. Em termos reais, por exemplo, não por silogismos comple­
tos mas por entimemas. Ninguém raciocina sob a forma : "Todos
os homens são mortais. Sócrates é homem, logo, é mortal" ; antes
de tudo esse raciocínio assume a forma: "Sócrates é mortal porque
é homem" .
1
É indubitável que na intuição essa retração do raciocínio ló-
gico pode levar a que o homem geralmente fixe apenas o resul­
tado.
A dial ética materialista não rejeita uma forma de conhecimen to
como a intuição, porém, em oposição ao intuitivismo, a dialética
marxista não leva a intuição além dos limites do pensamento racio­
nal, baseado na experiência, mas a considera forma esp ecial de
pensamento teórico, mediante o qual opera-se o salto no conheci­
mento do objeto, a interrupção da continuidade no movimento do
pensamento.
A intuição é um conhecimento imediato mas só em um sen­
tido : ao lançar-se uma n ova tese, esta não deriva de forma logi­
camente necessária da experiência sensorial existente e de cons­
truções teóricas .

21 V. I. Lênin. Obras completas, t. 29, p. 256.

1 48
Saltos intuitivos dessa n atureza decorrem da relação orgânica
do conhecimento com a atividade prática do homem. As necessi­
dades da interação prática do sujeito com o objeto levam o pen­
samento teórico a ultrapassar os limites daquilo que é dado na
experiência antecedente do conhecimento. Essas "ultrapassagens" não
levam o conhecimento a tomar o caminho do equívoco pelo fato
de termos sob a forma de prática um critério seguro de veracidade
dos conhecimentos que, em suma, permite separar as verdadeiras
descobertas científicas que apreendem a fundo a realidade das fan­
tasi as estéreis que desviam o pensamento da confluência do con­
teúdo com o objeto.
A intuição exige realmente a tensão de todas as faculdades
cognitivas do homem, da imaginação à sutileza e nela se deposita
toda a experiência do desenvolvimento social e individual antece­
dente do homem ; isto, p orém, não a torna enigmática, mística, ela
é perfeitamente explicável · tendo-se em vista toda a complexidade
da inter-relação teórica e prática do sujeito concreto com o objeto.
Por conseguinte, o pensamento é intuitivo por l evar forçosa­
mente implícitos elementos que logicamente n ão derivam de outros
elementos do pensamento mas surgem como resultado da contem­
pl ação imediata relacionada com os sentidos ( sensorial-intuitiva ) ou
com a atividade da razão (intuitivo-intelectual ) .
Ao desenvolver-se, o pensamento procura libertar-se dos ele­
mentos intuitivos, fundamentá-los logicamente e deduzi-los, mas a
destruição do intiutivo em um caso leva a deduzi-lo em outro. O
pensamento não pode funcionar como um processo puramente dis­
cursivo, embora sempre tenda à coerência lógica, à demonstração,
à disposição da idéia em elementos isolados conexos e dimanentes
uns dos outros, o que assume a denominação de discursividade.
O intuitivo e o discursivo no pensamento são dois momentos
n ecessariamente componentes e inter-relacionados. Ao subverter
essas ou aquelas definições, sistemas antes formados de conheci­
mento, a razão cai forçosamente em outro sistema; ela mesma cria
as bases para o surgimento desse novo sistema e de sua lógica. A
teori a de Einstein ultrapassou os limites da física clássica, mas à
base de suas idéias criou-se um novo sistema teórico com o seu
�istema de demonstração. A geometria de Lobatchevsky está fora
do sistema da geometria de Euclides, mas ela mesma também é um
sistema rigoroso. A razão não é geralmente contra toda discursividade,
é contra apenas a absolutização de um sistema qualquer de conhe­
cimento. Se as idéias da razão não l evam, em suma, à construção

1 49
de um sistema de conceitos não têm importância científica e assu­
mem sentido realmente · místico. A mística foge ao sistema cientí­
fico, amontoa idéia sobre idéia sem fundamentação científica. A
intuitividade pressupõe necessariamente a mediação, a discursividade,
relacionada com a possibilidade de demonstração de um à base do
outro.

5. PENSAMENTO E EXPERI:fiNCIA : O SENSORIAL E O RACIONAL,


O EMPÍRICO E O TEÓRICO, O ABSTRATO E O CONCRETO

O pensamento surge e se desenvolve em base sensório-mate­


rial. J;; racional, mas leva em seu bojo um momento contrário,
. sensorial. A unidade do racional com o não-racional no pensamento
atua antes de tudo como inter-relação entre racional e sensorial .
O sensorial é não-racional no sentido em que seus resultados não
são produzidos pelo pensamento na forma n ecessária ao homem
mas nos são dados como algo independente dele. A rosa provoca
nos nossos órgãos dos sentidos sensações que, enquanto sensações,
não podem ser outras independentemente do desenvolvimento do
intelecto. Ela suscitará a sensação do "vermelho" , embora a con­
cebamos branca. Por isto as sensações são consideradas imediata­
men te autênticas e servem de fundamento de i.0dos os nosos co­
nhecimentos.
. O sensorial e o racional não são dois degraus do conheci­
mento mas dois momentos que o penetram em todas as formas e
em todas as etapas de desenvolvimento. O próprio pensamento
nunca pode carecer do sensorial quer na sua origem, quer na forma
de existência; ele sempre se baseia no sistema de sinais senso n al­
mente perceptíveis .
A unidade entre o sensorial e o racional no processo de co­
nhecimento não significa que um sucede o outro m as que ambos
participam necessariamente no nosso conhecimento. Mesmo quando
apen as observamos os fenômenos da realidade, nós pensamos, tra­
duzimos para a linguagem das idéias os resultados da nossa obser­
vação. Não podemos imaginar o conhecimento do homem sem a
linguagem, pois a linguagem consubstancia nas palavras os resul­
tados do pensamento.
Os sentidos põem o homem em contato com o mundo exte­
rior. Todo o nosso conhecimento provém , em suma, das se n sações

1 50
e percepções ; o homem não possui outras fontes, outros canais de
conta to com o mundo exterior.
Nesse sentido único porém muito importante pode-se dizer que
o sensorial antecede temporalmente não só ao racional mas a todo
conhecimento humano. Quando se resolve não a questão das fases
de desenvolvimento do conhecimento mas da sua fonte, não pode
haver qualquer dúvida de que o reflexo sensorial da realidade ante­
cede ao pensamento enquanto forma de conhecimento humano. Por
isto a q uestão do caráter das nossas sensações é de importância
essencial para a teoria do conhecimento em geral, pois se trata,
segundo Lênin, " . . . da confiança do homem nos registros dos seus
órgãos dos sentidos" , da "questão da fonte do nosso conhecimen­
to . " 2 2 • As sensações e percepções do homem constituem o fun­
. .

damento de todos os nossos conhecimentos do mundo exterior. Não


reconhecer o caráter objetivo do conteúdo das sensações implica em
negar a possibilidade do conhecimento do mundo, em caminhar
para o agnosticismo.
No homem, o conhecimento através dos sentidos não se ma­
nifesta em forma pura, embora por forma sej a pensamento, pois
o homem expressa sob forma de juízos (juízos da percepção ) os
resultados do conhecimento da realidade através dos sentido. Seja
qual for o conhecimento humano, ele é mediado pela prática ante­
cedente, pelos resultados do pensamento das gerações anteriores,
fixados nas palavras. No homem nem se pode falar de conheci­
mento sensorial como tal. A prática do homem e seu pensamento
introduziram mudança substancial, transformaram a experiência sen­
sorial do homem, daí o conhecimento, independentemente da fase
em que se encontre, implicar sempre, nessa ou n aquela medida,
momentos de processamento racional dos dados dos sentidos, razão
porque ele é sempre pensamento .
Tem sentido falar dos níveis sensorial e racional do conhe­
cimento apenas no plano genético e não no lógico. Antes do ho­
mem, o conhecimento ( se é que é oportuno empregar esse termo
para caracterizar o reflexo no mundo animal ) se realizava por meio
dos sentidos ; no homem surgiu um nível especial de conhecimento
- o racional, quando tudo assume a forma de pensamento, in­
clusive os resultados da representação sensorial da realidade. Se a
abordagem gira em tomo do desenvolvimento lógico do conheci­
mento científico independentemente do lugar em que ele se realiza,

22 V. 1. Lênin . Obras completas, t. 18, p. 1 3 1 .

151
n a ciência em geral ou na cabeça de um pensador isolado, então não
se pode dividi-lo em dois níveis : em conhecimento sensorial e ra­
cional . Essa divisão histórica se apresenta na lógica como o em­
pírico e o teórico .
Seria incorreto identificar o sensorial com o empírico, o racio­
n al com o teórico. Tanto o empírico como o teórico são níveis do
movimento do pensamento. Diferem um do outro pela maneira
e pelo aspecto em que neles é dado o objeto, pelo modo como é
conseguido o conteúdo básico do conhecimento, o que serve como
forma lógica de expressão deste e, por último, pela sua impor­
tância prática e teórica.
No pensamento empírico o objeto é representado no aspecto
das suas relações e manifestações exteriores acessíveis à contem­
plação viva. A forma lógica do empírico é constituída pelo juízo
tomado isol adamente, que constata o fato ou por certo sistema
de fatos que descreve um fenômeno. A aplicação prática do conhe­
cimento empírico é restrita, sendo, no sentido científico, um ponto
de partida qualquer para a construção da teoria .
Em nível empírico obtém-se da experiência imediata o con­
teúdo fundamental do pensamento ; são racionais antes de tudo a
forma de conhecimento e os conceitos implícitos na linguagem , em
que são expressos os resultados do conhecimento empírico .
O pensamento teórico reflete o objeto no aspecto das rela­
ções internas e leis do movimento deste, cognoscíveis por meio da
elaboração racional dos dados do conhecimento empírico. Sua forma
lógica é constituída pelo sistema de abstrações que explica o objeto.
A. aplicação prática do conhecimento teórico é quase ilimitada, en­
quanto no sentido científico a construção da teoria se manifesta
como um resultado final , como conclusão do processo de conheci­
mento.
"A tarefa da ciência é reduzir ao movimento interno real o
movimento visível , que se manifesta apenas no fenômeno" 23 -
observava Marx. O conhecimento pode assim proceder no seu nível
teórico, porquanto, ajudado pelo pensamento, ultrapassa os limites
do que é dado na experiência; o racional aqui não é simplesmente
a forma de expressão dos resultados da experiência mas um meio
nesta baseado de obtenção do novo conteúdo do conhecimento que
n ão é dado na experiência.

2a K. Marx e F. Engels. Obras, t. 25, parte 1, p. 3 4 3 .

1 52
Em nível teórico, o conhecimento assume caráter realmente
universal e procura produzir a verdade em toda a concreticidade e
objetividade do conteúdo desta. É justamente a qu i que se realiza o
pro c es s o que F. Engels assim caracteriza: " . . . no pensamento pro­
movemos o singular da singularidade para a particularidade e desta
última para a universalidade . . . descobrimos e constatamos o infi­
nito no finito, o eterno no transitório" 24•
Por força de sua universalidade e concreticidade, o conheci­
mento teórico tem ainda um campo irrestrito de ap l i c ação pr áti ca ;
à base de teorias científicas processa-se uma transformação radical
da indústria e da produção agrícol a, as teorias levam o homem às
dis t â n ci a s infinitas do Universo, etc.
O empírico e o teórico são níveis relativamente independentes,
a fronteira entre eles é até certo ponto condicional ; o empírico se
transforma em teórico e, ao contrário, o que em certa etapa da
ciência se considerava teórico torna-se empiricamente a c es s í v e l em
outra etapa mais elevada. No entanto a separação de dois níveis
diferentes tornou-se possível somente no período do pensamento ci­
entífico maduro ; até para a ciência antiga a divisão do conheci­
mento em empírico e teórico perde o sentido.
A divisão do pensamento em níveis empírico e teórico mos­
tra que a divisão kantiana dos juízos em j u ízos a priori e a posteriori
não surgiu no vazio mas é um meio singular de conscientização
d as diferenças que realmente existem no conhecimento.
Kant entendeu corretamente que o pensamento real constitui
a unidade entre o sensorial e o intelecto em suas formas racional e
jud ic a ti va . " . . . Através do conceito judicativo puro, a idéia do
obj eto em geral só pode converter-se, em nós, em conhecimento
quando esse conceito se refere aos objetos dos sentidos" 2 5 es­
-

creveu ele. Além do mais, uma idéia real se acha mais imediata­
mente próxima da experiência, enquanto a outra está tão distante
dela que descobrir a relação entre elas se torna questão bastante
delicada. Por sua vez, essas idéias se tornam por si mesmas ins­
trumento de processamento e explicação dos dados da experiência.
Como metafísico, entretanto, Kant abriu um abismo entre esses
dois níveis de pensamento, chamando a um experim ental e ao outro
absolutamente independente deste.

·2 i K. Marx e F. Engels. Obras, t. 20, p. 548 .


2� I. K.ant. Obras, t. 3 , 1 9 64, p. 201 . ( Ed . russa . )

1 53
Em realidade, não há conceitos puros do pensamento mas cons­
truções teóricas e formas de pensar que se distanciaram muito da
experiência e se transformaram em meio de conscientização dos
dados empíricos. Em Kant, a diferença relativa entre o teórico e o
empírico se transformou em existência de duas formas absoluta­
mente independentes : a forma a priori e a a posteriori. Nisto reside
u m a das falhas das concepções gnosiológicas de Kant.
O abstrato e o concreto são categorias da dialética materia­
lista elaboradas para refletir a mudança da imagem cognitiva tanto
n o. que concerne à multil ateralidade da abrangência do objeto
nessa imagem quanto à profundidade da penetração na essência dele.
Eles expressam as leis da mudança que se opera no conteúdo do
conhecimento ao longo de toda a sua evolução. O método meta­
fisico contrapõe o pensamento enquanto abstrato à experiê n c i a sen ­
�Qriµl en q uanto concreta. Daí o movimento do conhecimento da ex­
p�r i ência sensorial ao pensamento teórico ser considerado perda da
concreticidade, da multilate r alid a de Se o conhecimento é concreto, é
.

sensorial , se tem caráter teórico, então está condenado a ser abstrato,


unil ateral . Nessa contraposição do concreto ao pensamento teórico,
a gnosiologia metafísica construía e co n tinu a construindo a sua
teoria do conceito, do processo de sua formação e desenvolvimento.
El a considerava e continua considerando a transição da noção ao
c,onceito como perda da concreticidade e da substancialidade, pois
essa transição se identifica com o movimento do concreto ao abs­
trato.
. Entendendo-se por abstrato a separação, o isolamento de al­
gu m a p ropriedade sensorialmente acessível do objeto, então o mo­
yj m eqto do concreto-sensorial ao abstrato n ão será um passo adi­
ante mas atrás, ao invés do conhecimento de m u itos aspectos do
objeto no mesmo n í vel apreenderemos apenas um aspecto.
• = A confusão do movimento do conhecimento do empírico ao
teórico com a transição do con creto ao abstrato tem gerado e con­
tinua gerando uma concepção deturpada da essên c i a do pensamento
teórico, da sua capacidade para representar o objeto de forma mul­
t il a teral e profunda. Sob tal concepção, reduzia-se o papel do pen­
sa.mento . teóric.o à formação de abstrações vazias, pouco substan­
ciais, nas quais se representam os indícios, as propriedades parti­
culares, isoladas do obje to Trata-se, em essência, de uma concep­
.

ção puramente empírica do pens a mento, quando todo o conteúdo


deste e seu papel no conhecimento se reduz à tradução de pro­
priedades sensorialmente acessíveis isoladas do objeto para a lin­
guagem das idéias. A visão empírica do pensamento, inerente so-

1 54
bretudo ao materialismo anglo-francês dos séculos XVII-XVIII, era
torte no estabelecimento de conexão, especialmente genética, entre
o pensamento e a experiência sensorial, mas era demasiado fraca,
por vezes simplesmente impotente, na interpretação do conteúdo, da
essência da imagem cognitiva obtida como resultado do pensa­
mento teórico. Neste sentido a filosofia de Hegel foi um indiscutível
passo adiante.
Hegel faz antes de tudo uma revista crítica das concepções
falsas, superficiais de pensamento, que se desenvolveram antes dele
e dominaram na lógica formal a ele contemporânea. Hegel dá uma
réplica veemente àqueles que desdenham do pensamento por consi­
derarem que a verdade se apreende não por meio do pensamento
mas por outros caminhos. De certo tempo para cá, observa Hegel,
tornou-se boa maneira "dizer todas as bobagens possíveis sobre o
conceito, transformar esse ponto culminante do pensamento em ob­
jeto de desdém e, ao contrário, considerar o ininteligível, a ausência
de apreensão co m o a culminância máxima da cientificidade e da
moral idade" 2 0 •
Essa observação de Hegel foi em seu tempo dirigida contra o
irracionalismo de F. H. J acobi e outros que opunham ao pensa­
mento, em conceitos, o conhecimento imediato, a fé como mais
fi rm e e autêntica. Mas essa observação mantém integralmente o seu
significado no combate aos intuitivistas e positivistas contemporâ­
neos, que afrontam o pensamento abstrato e tentam substituí-lo pel a
intuição ou por um simples registro protocolar dos fatos.
A atitude de desprezo pelo conceito tinha alguns fundamentos .
Ocorre que o s lógicos daquele período interpretavam o conceito de
maneira tão estreitamente empírica que se podia realmente duvidar
de sua capacidade de apreender a essência das coisas . Era tradicio­
n al a visão do conceito como noção geral, como algo morto, vazio
e abstrato, enquanto se reduzia o processo de formação do conceito
ao simples descobrimento e separação de qualquer indício comum
entre os mais diversos objetos. "Quando se fala de conceito, habi­
tualmente s e apresenta à nossa visão intelectual apenas uma uni­
versalidade abstrata e então se define o conceito como noção geral .
Neste sentido, fala-se de conceito de cor, vegetal , animal , etc. e
considera-se que esses conceitos surgiram graças ao fato de omitir­
se todo o especial , o que distingue uma das outras as diferentes

2 r. Hege l . Obras, t. VI, p. 1 2 . ( Ed . russa . )

1 55
cores, os vegetais, animais, etc., e conservar-se o que eles têm de
comum" 27 escreve Hegel. f: perfeitamente compreensível que
-

caso se reduza o papel do pensamento à separação de qualquer


indício geral em objetos diversos, então estarão certos aqueles que
proclamam que o pensamento é vazio, sem conteúdo e que no co­
nhecimento do objeto cede lugar à sensação, percepção e noção,
onde o objeto é apreendido na diversidade das suas propriedades
e relações.
Desenvolvendo suas concepções sobre o pen s a m en t o , Hegel
mostra que a abstração não é vazia caso seja rac io n a l A abstração .

é um conceito que em seu desenvolvimento atingiu determinado ní­


vel. Tem como conteúdo certa propriedade real da real idade. A
abstração é a divisão do concreto-sensorial, a separação das suas
defin ições. Por meio delas captamos apenas propriedades ou mo­
mentos isol ados. Mas com a formação de abstrações isol adas n ão
se conclui o desenvolvimento do pensamento. O pensamen to é abs­
trato no sentido de que, em termos gerais, não é empírico-concreto ;
em sua essência, o pensamento é inteiramente con creto, p o i s ex­
pressa a realidade em suas multiformes propriedades e relações .
A tese de que o conceito é um conjunto ( mais precisamente,
um todo-conjunto ) de definições diversas, de que ele, em seu de­
senvolvimento, vai do abstrato ao concreto é a idéia geral da teori a
hegeliana do pensamento, que marca um enfoque absolutamente
novo do pensamento. K. M arx avaliou devidamente esse enfoque,
dando-lhe tratamento materialista. f: verdade que o pensamento ci­
entífico se movimenta da definição abstrata à concepção enquanto
"totalidade concreta" ( ao concreto enquanto unidade da multiformi ­
dade ) . Mas enquanto o concreto é para Hegel o resultado da ati­
vidade do pensamento, para a lógica dialética marxista o método
de ascensão do abstrato ao concreto é apenas um meio através do
qual o pensamento assimila o concreto, o reproduz intelectualmente
mas nunca o cria.
Para Hbgel, o conceito concreto gera a si mesmo fora da con­
templação e da noção. Ele geralmente subestimava o cami n ho do
movimento do sensorialmente concreto ao abstrato, a ch and o que
esse movimento nada tem a ver com a essência do con cei to, com
a sua veracidade 2 8 • Se descrevermos a história da abordagem do

21i Hegel. Obras, t, I, p. 268. ( Ed . russ.a. )


2s H egel. Obras, t . VI, p . 1 9 .

156
conceito, dizia ele, devemos então mencionar as percepções e no­
ções como ponto de partida do nosso movimento no sentido do
conceito. Mas em se tratando da verdade do conceito, então este
é verdadeiro fora do movimento da contemplação ao conceito, im­
plica sua própria verdade.
"É evidente que quando a ciência já está concluída, pronta,
a idéia deve partir de si mesmo ; a ciência como tal já não começa
do empiricamente dado. Mas para que a ciência adquira existência,
faz-se necessário o movimento do singular e do particular ao uni­
versal, faz-se necessária uma atividade que sej a a reação ao ma­
terial d ado da empiria para reelaborá-lo" 20 escreveu Hegel.
-

Em realidade, a empiria é importante não só no processo de


formação de conceitos mas também em sua sucessiva existência e
desenvolvimento . A ciência madura se desenvolve à base dos dados
empíricos, por isto a relação do momento racional com o sensorial
n ão se rompe depois de formado um conceito qualquer. Fora da
noção e da contemplação não pode nem se formar nem existir qual­
quer conceito do mundo exterior. A veracidade surge não do pró­
prio conceito mas como resultado do conhecimento do mundo real
com o qual os sentidos nos colocam imediatamente em contato.
A dialética materialista considera o concreto ponto de partida
e ch egada do conh ecimento No nível do empírico, a imagem do
.

objeto assume caráter concreto-sensorial, o conhecimento é multi­


lateral , o objeto se apreende no conjunto de suas propriedades. No
entanto a concreticidade, em d ada fase de desenvolvimento da ima­
gem cognitiva, tem caráter difuso, diversos aspectos, propriedades
e indícios do objeto não se manifestam em sua relação internamente
necessária. A unidade entre eles carece de fundamento, é dada de
forma puramente empírica. Daí poder-se tomar o casual pelo ne­
cessário, o singular pelo geral, o fenômeno pela essência.
Existe a opinião de que a imagem sensorial-concreta do objeto
não implica o geral, o necessário, a essência, de que ela reflete
somente o sin gular, o que é. Mas essa noção é imprecisa. O sen­
sorial-concreto pode implicar e implica necessariamente o geral e
o s ingular, o necessário e o casual, a essência e o fenômeno. Tudo
depende de como o geral, o necessário e a essência são dados n o
conhecimento empírico, da forma sob a qual eles aqui se apre­
sentam, do caráter que assume a relação entre o geral e o singular,

29 Hegel. Obras, t. XI. �scou-Lcningrado, 1 9 3 5, p. 220.

157
o necessário e o casual , a essência e o fenômeno em dada fase
do conhecimento.
Não pode haver uma imagem cognitiva que implique o reflexo
apenas do singular, do casual, do que é ou, ao contrário, só do
geral, do necessário, do existente. Se a contemplação viva de forma
alguma e em nenhum grau refletisse o geral, de onde então se ti­
raria o seu pensamento, que se baseia na experiência sensorial e
não possui outras vias de relação com o mundo exterior? A con ­
cepção de que só o pensamento propiciaria o conhecimento do geral
é um remanescente do enfoque racionalista do conhecimento.
O reflexo do objeto em toda a sua imediaticidade é um traço
característico do conhecimento sensorial-concreto. O geral e o es­
sencial não estão separados, não estão diferenciados do singular e
do casual ; a relação entre o geral e o singular não se baseia em
sua necessidade mas se manifesta como dado empírico. Por isso
Marx chamou a esse concreto de difuso, não-desmembrável . Nest e
caso o próprio geral atua na imagem sensorial-concreta sob
forma empírica, como semelhante, único para uma série de obje­
tos ; aqui, em verdade, ainda não operamos com o conhecimento
da n atureza universal do objeto. Em decorrência disto, o sensorial­
concreto é apenas o ponto de partida e não o ponto supremo do co­
nhecimento. O conhecimento não pode passar imediatamente do
sensorial-concreto ao concreto no pen;;amento. Esse caminho, como
todos os outros, é complexo e contraditório. Para atingir a concre­
ticidade autêntica, o conhecimento perde temporariamente a con­
creticidade em geral e passa ao seu próprio oposto : ao abstrato.
O conhecimento abstrato é unil ateral, daí a transição do co­
nhecimento sensorial-concreto, multilateral ao abstrato ser em certo
sentido um passo atrás, mas um passo necessário ao sucessivo avanço
do conhecimento . Para obter um novo concreto, é preciso prepa­
rar o material necessário. f: assim que o abstrato faz, separando
um aspecto qualquer do objeto em "forma pura, ou seja, na forma
em que esse aspecto existe n a realidade" . Assim, a "produ ç ã o e m
geral " , a " matéria em geral " , o "átomo em geral", etc. , são abs­
trações uma vez que na realidade concreta os homens deparam
não com a produção em geral ou a matéria em geral mas com
as formas concretas da produção, da matéria, etc. Mas isto não
significa que a abstração seja uma função e não esteja vinculada
às formas reais, concretas do ser . A abordagem das abstrações como
funções ou símbol os vocais carentes de conteúdo objetivo é carac­
terística de muitas escolas da filosofia burguesa contemporânea. A
operação com abstrações é um modo inevitável de desenvolvimento

158
do conhecimento científico, e o pensamento moderno se manifesta
sob a forma de sistemas variados - de abstração nos quais se apre­
ende a realidade objetiva.
Embora a abstração represente o objeto não sob a forma em
que ele existe na realidade, ela tem por conteúdo aquilo que real­
mente existe. As abstrações da produção em geral , da matéria em
geral, do átomo em geral refletem o que existe em cada forrria
concreta de produção, em cada tipo de matéria, em cada átomo .
Não se pode apreender nenhuma forma de produção, nenhum tipo
de matéria, etc. sem a abstração sobre a produção em geral, a ma­
téria em geral. Todo pensamento é abstrato no sentido de que se
realiz a somente nas abstrações. O pensamento abstrato, por um lado,
está mais distanciado do objeto estudado, pois está a ele vinculado
através das sensações, percepções e noções e, por outro, está mais
perto dele por apreender a essência, as leis do movimento dos fe­
nômenos do mundo objetivo. "A abstração da matéria, da lei da
natureza é uma abstração de valor, etc., em suma, todas as abstra­
ções (corretas, sérias, não-absurdas ) científicas refletem a n at u ­
reza com mais profundidade, mais fidelidade, mais plenitude" 30 -
escreveu Lênin .
Por meio de abstrações, a ciência é capaz de apreender aquil o
que é inacessível à contemplação viva. Pode conhecer e demonstrar
a necessidade e a universalidade das relações dos fenômenos da na­

tureza e da sociedade. As abstrações não substituem a contempl a­


ção viva mas é como se as continuassem, são um novo degrau qua­
l itativamente diverso no movimento do conhecimento.
Em nenhuma ciência lei nenhuma pode ser descoberta sem a
força da abstração do pensamento humano. Por meio da abstração,
os homens apreendem os mais profundos processos da natureza e
da vida social . Por exemplo, os processos que se desenrol am no
núcleo do átomo não podem ser apreendidos pela contemplação
viva, no entanto o homem os conhece através do pensamento abs­
trato e aplica na prática os conhecimentos adquiridos. Es se s conhe­
cimentos dos fenômenos internucleares do átomo se manifestam sob
a forma de equações matemáticas, de d i v ersa s teses teóricas de
caráter extremamente amplo e abstrato. Mas é j ustamente nessas
abstrações que se expressa a essência dos processos que ocorrem
no núcleo .

ao V. 1. Lênin . Obras completas, t. 29, p. 1 5 2.

1 59
As ciências naturais também não podem prescindir da abstra­
ção. No prefácio ao primeiro vollJ.me de O Capital, Marx observou
que na análise das relações económicas a economia política não
pode usar um microscópio ou reagentes químicos . Ambos são
nela substituídos pela força d a abstração. O próprio Marx deu
exemplos clássicos do uso de abstrações no estudo das leis do modo
capitalista de produção.
No entanto é estranho ao marxismo tanto o empirismo unila­
teral, rasteiro, que desdenha das abstrações como a teorização vazia,
desvinculada dos fatos e fenômenos da realidade. As abstrações são
boas quando têm a tarefa de desvendar as l eis reais da natureza
e da sociedade, quando armam o homem com o conhecimento dos

processos profundos, inacessíveis à contemplação imediata, senso­


rial . Mas se o pensamento se encerra em abstrações, deixa de ser
meio de conhecimento d a realidade, transformando-se em instru­
mento para distan ciar-se dela. Só a correta combinação do conhe­
cimento experimental com o pensamento teórico assegura a ob­
tenção da verdade objetiva .
A essência da abstração não consiste apenas em separar, iso­
lar uns dos outros os indícios sensorialmente perceptíveis. Por cxem­
pio, a imagem sensorial-concreta do objeto -A contém os indícios a,
b, e, d, e, etc., que são dados imediatamente à contemplação em­
pírica. Formar abstração não significa destacar do conteúdo dessa
i m agem o indício a ( ou b, ou e, etc. ) , isolá-lo de outros indícios.
Uma vez que esse indício existe em outros objetos, pode-se formar
u m a classe de objetos que possuem os indícios a. Mas se o con­
teúdo da abstração se limitasse a isto, as abstrações seriam terri­
vel mente pobres de conteúdo, não poderiam refletir a natureza
com mais profundidade, fidelidade, plenitude.
A interpretação da abstração como separação do indício co­
mum, semelhante, sensorialmente perceptível do objeto é caracterís­
tica do enfoque empírico do pensamento, no qual a abstração é
considerada forma original d a experiência sensorial como a própria
percepção ou noção, apenas com um número menor de indícios. O
empirista teme que a abstração tenha em seu conteúdo algo mais,
diferente em comparação com a contemplação viva ; para ele a abs­
tração n ão é uma forma nova, qualitativamente original de apre­
ensão do objeto e vê nela apenas um aspccto : o fato de ela abstrair
a diversidade de propriedades, indícios sen sorialmente perceptíveis
e tomar o objeto num aspecto qualquer.
Mas na abstração isso não é o principal . Se separarmos qual­
q uer indício sensorialmente perceptível do obj eto e concebê-lo isola-

1 60
damente de outros indícios, teremos então uma abstração elemen­
tar que é uma generalização apenas por forma e n ão por conteúdo.
Na abstração autêntica não se isola simplesmente algum indício
sensorialmente perceptível do objeto mas atrás do sensorialmente
perceptível descobrem-se as propriedades, aspectos, ind í cios e rela­
ções que constituem a essência do objeto . A tare/a da abstração
n ão é separar uns dos outros os indícios sensorialmente perceptíveis
mas através deles descobrir novos aspectos no objeto q ue traduzam
as rel a ç õe s de essência. Por exemplo, as abstrações criadas pel a
ciência sobre a luz têm como conteúdo não a separa ç ão de pro ­

priedades particulares da luz, acessíveis à contemplação empírica,


m as a revel ação de propriedades que sejam geralmente inacessíveis
à c o n templ a ção viva (a luz é um movimento de ondas eletromagné­
ticas, tem n atureza dupl a : é onda e part ícu l a , etc. ) . Só n e ste caso
a a b s tra ção fornece um conhecimento mais pro f undo do objeto que a

ima g em sensorial-concreta .
A ab s t ra ç ão n ão tem só lado fo r t e, tem t am b ém lado fraco ; n el a
a real i d ade se s i m p l if i c a, torna-se ru d i m entar , esquematiza-se,
nela há um d i stanci amento, um afastamento em face ao objeto. E
com essa debilidade da abstração que especulam diversas formas
do ideal ismo, incluindo o intui tivismo . O intuitivista declara, por
exemplo, que a razão está relacionada com a abstração em cuj a
n atureza está implícita a desintegr ação da realidade viva em estados
mortos particulares, a sua rudeza cinematogr á fi ca . O idealis t a abso-
1 u t i za essa peculiaridade da abstração e dela se vale para funda­
mentar o abismo entre o pensamento e a re a lidade concreta ou
p ara minimizar o papel do pensamento e substituí-lo por uma forma
q u alque r de conhecimento irracional ( intuitivismo ) .
A di al é tic a materialista entende as limitaç õ es da abstração e
a necessidade desta no conhecimento do objeto . " Não podemos
i m a g i n a r , e x press a r , medir, representar o movimento sem an t e s in­
terromper o contínuo , sem s i mpli fic a r , sem enrudecer, sem dividir,
sem amortecer o vivo. A representação do m ovimento pelo pensa­
mento é semp re um emudecimento, um amortecimento - não só
p e lo pensamento mas também pela sensação - não a pen as do mo­
vimento mas de qualquer c o n c e i t o " 3 1 - escreveu Lên i n . Mas a
di alética define ao mesmo tempo as vias de superação das limita­
ções da abstração, as vias de representação do m ovi m en to n a ab s­
tração tal q u a l ele existe na realidade.

•1 1 V. I. Lên i n . Obras completas, t. 29, p. 2 3 3 .

161
Com a formação de abstrações isoladas não se conclui o pen­
samento teórico, que, como o conhecimento empírico, deve fornecer
um conhecimento concreto do objeto, não um conhecimento sen­
sorial , difuso, porém um conhecimento novo, mais elevado. Abstra­
ções isoladas são apenas um meio de chegar a esse fim. A gnosio­
l ogia metafísica conhece apenas um conhecimento concreto : o sen­
sorial ; para ela, o pensamento concreto e o teórico são conceitos
incompatíveis. A dialética estabelece que o concreto no pensamento
se manifesta como forma superior do conhecimento concreto. "O
concreto é concreto porque é a síntese de muitas definições, l og o,

a unidade do diverso. Por isso ele se manifesta no pensamento como


processo de síntese, como resultado e não como ponto de partida,
embora constitua um ponto de partida real, e, conseq üentemente,
seja também ponto de partida da conte mpl ação e da noção. No
primeiro caminho a noção plena evapora até atingir o grau de defi­
nição abstrata, no segundo caminho, as defi n i ções abstratas levam
à reprodução do concreto por meio do pensamento" 3 2 - escreveu
K. Marx .
A princípio, o pensamento teórico se afasta do concreto ( a
noção plena "evapora" até atingir o grau d e defi nição abstrata ) ,
depois torna a remontar, precisamente remontar e não simplesmente
retornar a ele, pois se cria um novo concreto .
O con creto no pensamento é o conhecimento mais profundo e
substancial dos fenômenos da realidade, pois reflete com o seu
conteúdo não as definibilidades exteriores do objeto em sua rela­
ção imediata, acessível à contemplação viva, mas diversos aspectos
substanciais, conexões, relações em sua vincul ação interna neces­
sária. Abstrações isoladas elevam o nosso conhecimento da apre­
ensão do geral empírico ao universal , enquanto o concreto no pen ­
samento fundamenta a conexão do singular com o universal, fornece
não uma simples unidade de aspectos diversos mas a identidade
dos con trários .
O movimento do conhecimento do sensorial-concreto - atra­
vés do abstrato - ao concreto, que reproduz o objeto no conjunto
de abstrações é u m a m anifestação da lei da negação da negação. O
abstrato é a negação do sensorial-concreto . O concreto no pensa­
mento é a negação do abstrato, mas o concreto mental não é a re­
tomada do concreto inicial, sensorial mas o resultado da ascensão
a u m concreto novo, mais substancial. Na ascensão do abstrato ao

s2 K. M a rx e F . Engels. Obras, t. 1 2, p. 7 2 7 .

1 62
concreto verifica-se não simplesmente um processo de totalização,
de urdidura de uma abstração após outra, mas urna síntese de abs­
trações que corresponde às relações internas, às relações no objeto .
Por exemplo, não se pode imaginar o processo de transição do
abstrato ao concreto da seguinte maneira : a princípio surgem abs­
trações isoladas, independentes umas das outras, que se unificam
em seguida. Neste caso o concreto seria a soma mecânica de abstra­
ções isoladas internamente desconexas. Na realidade, porém, no pro­
cesso de formação do concreto uma abstração surge como continua­
ção lógica e complementação de outra. A ligação entre as abstrações
é determinada pelas ligações no objeto, enquanto sua unificação em
certo conjunto, ou melhor, totalidade, ocorre à base de uma idéia
que traduz a lei fundamental no movimento do objeto.
Exemplo clássico da ascensão do abstrato ao concreto é o O
Capital, de Marx, No entanto esse processo de ascensão se realiza
não só na economia política mas em qualquer outra ciência. O
movimento do sensorial-concreto ao concreto através do abstrato no
pensamento é a lei universal do desenvolvimento do conhecimento
humano, a qual ocupa posição especial na dialética materialista.
Ela permite revelar as leis do desenvolvimento da imagem cogni­
tiva, do seu movimento do simples ao complexo, do inferior ao
superior, o processo de formação das categorias. Com base nessa
l ei constrói-se a teoria das formas de pensamento, da subordinação
destes no processo de aquisição do conhecimento verdadeiro. Por
isso a referida lei se m anifesta como princípio basilar da lógica
di alética, ao qual , em suma, estão subordinadas todas as outras
l eis do movimento do pensamento. À fundamentação materialista
desse princípio está vinculada a superação do limitado enfoque eco­
nômico, metafísico do pensamento e da explicação do seu papel no
conhecimento.
Esse enfoque empírico estreito é característico do positivismo
l ógico, que reduz o pensamento à operação com percepções sen­
soriais segundo regras conhecidas. O pensamento não é uma com­
hi n ação de dados das sensações. Como já mostrara Hegel, a for­
mação do concreto no pensamento incorpora a atividade sintética
vincu lada à unificação de definições diversas numa unidade à base
d e con ceitos substanciais, categoriais. Corno resultado, o pensamento
gera construções teóricas, nas quais o objeto é representado de
1 1 1m.lo criativamente dirigido.

1 63
6. A VERDADE OBJETIVA DO PENSAMENTO :
O ABSOLUTO E O RELATIVO. Ü TE ÓRICO E O PRÁTICO

A lógica dialética tem como objeto o estudo do movimento


do pensamento no sentido da verdade. Por isto a questão mais im­
portante para ela é definir que pensamento é verdadeiro e como
estabelecer a sua veracidade.
Durante muito tempo considerou-se geralmente aceita a cha­
mada definição clássica ou tradicional de verdade, que remont a
ainda a Aristóteles. Segundo essa definição, a verdade é um juízo
que corresponde à realidade 3 3 • Neste sentido h avia na concepção
aristotélica da verdade uma forte tendência materialista : "É pre­
ciso levar em conta que não é porque você é branco que o con­
sideramos branco mas [ao contrário] é por você ser branco que nós,
que afirmamos isto, estamos com a razão" 34 - escreveu Aristó­
teles .
A insuficiência dessa definição está em sua imprecisão. Ora,
os conceitos de "correspon dência" e "realidade" podem ser inter­
pretados de diferentes modos . De fato, essa definição aristotélica
serviu de ponto de partida tanto para materialistas como para idea­
listas, que, entretanto, lhe atribuíam diferentes conteúdos .
O marxismo não se satisfaz com a colocação abstrata do pro­
blema da verdade em geral. A concepção marxista da verdade in­
corpora antes de tudo a tese da objetividade desta. Dizia Lênin
que na doutrina da verdade devemos responder antes de tudo à
pergunta : " . . . existirá a verdade objetiva, ou seja, poderá haver
nas noções humanas um conteúdo que não dependa do sujeito, não
dependa nem do homem nem da humanidade?" 3 5 • Essa tese de
Lênin enriqueceu a teoria marxista do conhecimento, distinguindo
nitidamente a concepção marxista da verdade da concepção idealista.

s3 "No q ue se re fer e acima de tudo à verdade o u à mentira, - escreve


Ari s tó tel es - a ver d a de é o cont.ato com o [ se r ] . . . enq u a n to rã verdade
opõe-se] o desconhecimento fque ] é a ausência de tal con t a t o " ( Aristóteles.
Metafísica. Moscou-Leningrado, 1 9 34, p. 1 62) . Aristóteles considera um equí­
voco a opinião "oposta às circunstâncias reais".
si d
Aristóteles. Me tafísi a, p. 1 62. ( Ed . russa . )
:1 s V. 1. Lênin. Obras con1pletas, t. 1 8, p. 1 23 .

1 64
Lênin elaborou o problem a da verdade combatendo a concep·
ção machista, subjetivista desta. Mas os argumentos leninistas man­
têm pleno vigor também no combate a diversas correntes da filo­
sofia burguesa contemporânea, que são cognatas do machismo e
em essência negam igualmente a existência da verdade objetiva. Al­
guns filósofos burgueses contemporâneos acham exclusivamente
subjetivo o conteúdo do conhecimento verdadeiro, outros apresen­
tam todas as possíveis definições místicas da verdade, consideran­
do a propriedade eterna, extratemporal, imutável e incondicional dos
-

objetos ideais.
A v erdad e é subjetiva no sentido de que é conhecimento hu­
mano, mas é objetiva no sentido de que o conte ú do do conheci­
mento v erdad e iro não depende do homem nem da humanidade En­ .

contramos mais uma vez a dialética do sujeito e do objeto no con­


ceito de verdade objetiva. A verdade é algo subjetivo que por
conteúdo passa do campo do subj etivo para o campo do objetivo.
O conhecimento é verdadeiro somente quando incorpora conteúdo
objetivo. Por isto não pode haver nenhuma outra verdade exceto
a objetiva .
A dialética materialista parte do reconhecimento de que a ver­
dade objetiva é um processo de movimento do pensamento. "A
coincidên c ia do pensamento com o objeto é um processo : o pensa­
mento ( = homem ) não deve conceber a verdade sob a forma de
t r anqüilid a de morta, sob a forma de simples quadro ( imagem ) ,
pálido ( turvo ) , sem empenho, sem movimento, exatamente como
um gênio, exatamente como um número, exatamente como um pen­
s amento abstrato" 3 6 - escreveu Lênin .
As peculiaridades da verdade enquanto processo são expressas
pelas categorias de verdade absoluta e rela tiva . As categorias de
absoluto e relativo foram elaboradas pela filosofia para determinar
alguns aspectos gerais do processo de todo pensamento e têm con­
teúdo objetivo. O absoluto expressa o estável. O imutável no fenô­
meno enquanto o relativo expressa o mutável, o transitório No
, .

processo de transição de um ao outro nem tudo muda, alguma


coisa permanece, se mantém ; o q ue numas condições é imutável mu­
da em outras . Por isto o próprio absoluto é relati v o, en quanto no
relati v o manifesta-se o absoluto. Só a matéria e seu atributo - o
movimento - são absolutamente absolutos; sej am quais forem as

30 V. I. Lênin. Obras completas, t. 29, pp. 1 7 6- 1 77.

1 65
mudanças radicais que se verifiquem no processo de movimento da
matéria, esta forçosamente continua matéria móvel, pois o absoluto
de todo o restante é relativo.
A unidade do absoluto e do relativo é inerente ao desenvol­
vimento tanto dos fenômenos do mundo objetivo q uanto do pensa­
mento ; este é ao mesmo tempo absoluto e relativo. O caráter ab­
soluto do pensamento reside na objetividade do seu conteúdo ; por
mais que mude o pensamento, ele não pode ser outra coisa senão
reflexo do mundo objetivo. Absoluto no pensamento é tudo o que
nele é objetivo, daí Lênin ter escrito : "Ser materialista significa
reconhecer a verdade objetiva que nos é revelada pelos órgãos dos
sentidos. Reconhecer a verdade objetiva, ou seja, independente do
homem e da humanidade, significa reconhecer de uma forma ou
de outra a verdade absoluta" 37•
O pensamento é absoluto porque segue o caminho da verdade
objetiva ; e só neste sentido ele assume seu caráter absoluto, sobe­
rano. O pensamento é absoluto por sua fonte e tendência; está em
condições de interpretar o mundo real, pois não se lhe impõem li­
m i tes em órgãos e objetos do conhecimento. Mas se tomarmos os
resultados concretos do pensamento, estes são relativos, mutáveis,
refletem a realidade de maneira incompleta, aproximada. Como
dizia Engels, " . . . o caráter soberano do pensamento se realiza numa
série de pessoas que pensam de modo extremamente não-sobera­
n o"3s .
Essa contradição entre a capacidade do nosso pensamento de
tudo apreender e a impossibilidade de certas pessoas realizarem essa
faculdade em determinada etapa do movimento manifesta-se con­
cretamente em cada resultado do pensamento, que é, ao mesmo
tempo, absoluto e relativo .
A verdade absoluta e a relativa são dois momentos necessários
de uma verdade objetiva, que expressam diferentes fases do conhe­
cimento do mundo objetivo pelo homem. Os metafísicas não en­
tendiam e muitos deles nem queriam entender a dialética do abso­
luto e do relativo. Para eles o absoluto é só absoluto e não está
relacionado com o relativo, enquanto o relativo não conduz ao ab­
soluto. Com base na análise de toda a históri a do desenvolvimento
do conhecimento, a dialética materialista estabeleceu que o conhe-

a1 Ibid., t . 1 8 , pp. 1 34- 1 3 5 .


as K. M arx e F. Engels. Obras, t. 20, p. 87.

166
cimento humano pode tornar-se absoluto unicamente através do
relativo. "O oensamento humano é por natureza capaz de fornecer
e nos fornece a verdade absoluta, que se forma da soma das ver­
dades relativas. Cada degrau no desenvolvimento de uma ciência
acrescenta novos germes a essa soma da verdade absoluta, mas os
l i mites da verdade de cada tese científica são relativos, sendo ora
alargados, ora comprimidos pelo sucessivo aumento do conheci­
mento" 3 9 •
A verdade absoluta e a relativa diferem entre si não pela fonte
mas pelo grau de precisão e a plenitude com que refletem o mundo
objetivo e atuam como momentos de uma verdade - a objetiva,
que existe como processo, movimento.
A verdade absoluta se constitui da soma de verdades relativas,
mas isto deve ser entendido não no sentido da totalização mecâ­
nica de diversas verdades acabadas. A verdade é um processo de
pensamento cujo conteúdo é o movimento no sentido do objetivo,
do absoluto.
Para a dialética materialista, o processo de pensamento é um
conteúdo definido pleno, independente da consciência humana. O
pensamento não se movimenta no campo da mudança de noções e
opiniões puramente subjetivas mas na área do desenvolvimento do
conteúdo objetivo. A relatividade do conhecimento humano é uma
prova do seu desenvolvimento, da vitalidade e capacidade de en­
riquecer-se com um novo conteúdo objetivo e não da fraqueza, da
impotência para dominar os fenômenos e processos do mundo exte­
rior. Neste caso a própria relatividade é relativa, vale dizer, é ape­
n as um mas não o único momento do movimento do conhecimento.
No próprio relativo há absoluto e só através do relativo apreende-se
o absoluto, o mundo objetivo. "A dialética materialista de Marx
e Engels compreende indubitavelmente o relativismo mas a ele não
se reduz, ou seja, reconhece a relatividade de todos os n ossos co­
n hecimentos não no sentido da negação da verdade objetiva mas no
sentido da condicion alidade histórica dos limites da aproximação
dos n ossos conhecimentos a essa verdade" ' º escreveu Lênin.
-

O conhecimento enquanto processo tem por fundamento e con­


teúdo objetivo o domínio dos fenômenos, das leis do mundo exterior.
Através do relativo, de verdades relativas particulares, apreende-se o
absoluto, a verdade objetiva plena, acabada. A autenticidade e con-

39 V. 1. Lênin. Obras completas, t. 1 8 , p. 1 3 7.


'º V. 1. Lênin. Obras completas, t. 1 8, p. 1 3 9 .

1 67
sistência do conhecimento humano, sua irreiuiabiiiàade, existem real­
mente, não algures, sob a forma de estado coagulado mas em
seu próprio movimento, no eterno processo de enriquecimento com
um novo conteúdo. A verdade absoluta e a irrefutabilidade fora
do movimento do conhecimento humano é uma abstração.
O pensamento como relação teórica do sujeito com o objeto
surge e se desenvolve à base da interação prática entre eles e se
caracteriza pelas seguintes peculiaridades :
.1. Essa interação tem caráter material. A prática não é uma
relação lógica mas concreta-sensorial, material. Os resultados d a
interação prática s ã o direta ou indiretamente acessíveis à contem­
plação empírica, pois surtem efeito a mudança do objeto e, simul­
taneamente, do próprio sujeito.
2 . A prática é uma forma especificamente humana de ativi­
dade, de interação entre o homem e os fenômenos da natureza.
Neste sentido o homem atua não como indivíduo mas como mem­
bro da sociedade, da humanidade.
3. O prático é a atividade racional do homem. A prática
une realmente o sujeito com o objetivo e cria os obj etos, as coisas
existentes independentemente da consciência do homem ; o pensa­
mento os une apenas teoricamente, criando imagens, medidas de
possíveis coisas e processos da realidade.
No marxismo, a prática é uma categoria que mostra o seu con­
teúdo na correlação com outros conceitos, sobretudo com os concei­
tos de sujeito e objeto .
Nossa atenção se volta freqüentemente apenas para o aspecto
pelo qual a prática está relacionada com a atividade do sujeito .
Antes de tudo, porém, a prática não é constituída por qualquer
tipo de atividade do homem. Ultimamente não têm sido raros os
casos em que se considera prática a atividade teórica, partindo do
simples fundamento de que ela também é atividade do homem. En­
q uanto atividade do sujeito, o ideal decorre da prática, no entanto
isto não significa que esta seja a prática propriamente dita. Pode-se
e deve-se colocar o problema do lugar do ideal na estrutura da
prática, mas não se pode resolvê-lo por meio da contraposição m e­
tafísica ou pel a identificação de ambos.
Tanto a contraposição da teoria à prática quanto a identifica­
ção de ambas surgem como resultado da compreensão da prática
apenas como atividade subjetiva, sem que se saiba ao certo que a t i­
vidade é essa, qual o seu objeto concreto . A prática é a unidade do
sujeito com o objeto, é ativa por forma porém concreta-sensorial por

1 68
conteúdo e resultados. Aqui se vê com clareza a diferença entre a
prática e o ideal, cujo valor e significado estão implícitos não nele
mesmo mas em algo diferente que surge como resultado da sua
realização prática. Se a prática em si muda a realidade, então o
conhecimento por si só não muda a realidade, não cria o objeto e
suas necessárias conexões e relações internas mas subentende e des­
t aca o objeto como sendo algo presentemente dado, algo que se
deve representar, ideal mente reproduzir. E m sua atividade prá­
"

ti c a o homem tem diante de si o mundo objetivo, depende dele e


,

através dele determina a sua atividade" 4 1 escreveu Lênin. Este


-

l evantou o p roble m a da unificação da prática e do conhecimento,


mas nunca os identificou nem considerou prática o próp rio conhe­
c im e n t o
.

No materialismo dialético, o objeto se incorpora à estrutura


da prática, por um l ado, e, por outro, a própria prática se insere n a
rea l id ade obj etiva, que s e opõe a o pensamento do homem.
Na unidade entre o sujeito e o objeto n a prática, o sujeito
atua c o m o a parte ativa, sendo o objeto o lado determinante. A
pró p r i a atividade do sujeito e seu aspecto atuante são substancial­
mente condicionados pel as propriedades e leis do objeto antes apre­
en didas pelo homem. Este atua em pensamento e na prática con­
forme as leis da realidade objetiva .
Por i s s o n o s parece unil ateral a concepção dos pensadores
que enfatizam demasiadamente, absolutizam o caráter atuante da
prática human a, disfarçando a sua fonte objetiva. O nível da: prá­
tica humana depende do grau de desenvol vimento do sujeito, mas
ela é co nd icio n a d a por u m tipo preciso de realidade objetiva, a
medida e as formas sob as quais e s t a se inseriu e determinou a ati­
vidade d o sujeito . A hum anidade de hoje e sua prática superam
consideravelmente os homens e a prática dos séculos XIX e XX,
pois ao campo da atividade humana incorporaram-se novos obje­
tos como o cosmos, a en ergia atômica, etc.
A correta compreensão d a correlação do subjetivo e do obje­
t i vo na prática se constitui na chave para a solução de muitas
questões filosóficas, particul armente de problemas da teoria do co­
nhecimen to.
A importância d a prática é multilateral no movimento do pen­
sa men t o : ela é a base do pensamento, determin a-lhe o fim e atua

n V . 1. Lên i n . Obras comple tas, t. 29, pp. 1 69 - 1 70.

1 69
como critério da verdade. Todos esses aspectos da prática na sua
relação com o pensamento estão estreitamente interligados.
O pensamento nasce de necessidades práticas para satisfazer
as necessidades da prática, é um processo dirigido a um fim. Os
fins a que o homem se propõe no processo de investigação do ob­
j eto assumem importância objetiva, relacionam-se com o mundo
objetivo somente através da prática. A prática determina precisa­
mente o que é necessário ao homem, a que fim ele deve visar no
processo de conhecimento do objeto e que aspecto do objeto deve
ser estudado prioritariamente, etc. Ao se propor a um fim deter­
mi nado, que emana de necessidades práticas, o homem separa uma
coisa no objeto e abstrai outra, aquela que não é essencial . Para
Lên i n , a prática é o determinador "da ligação do objeto com
aquilo de que necessita o homem" 4 2 • Com base na prática, o fim
s ubjetivo do homem coincide com o mundo objetivo .
A prática define os objetivos do pensamento e este, por sua
vez, desempen ha papel essencial na determin ação dos fins da ati­
vidade prática -, então a prática atua legitimamente como cri tério
ativo do pensamento em sua atitude em face da prática. Mas já
que a prática é a base e determina o fim do conhecimento -
enquanto este existe e se desenvolve para as necessid ades da ati­
vi dade prática -, então a prática atua legitimamente como critério
de veracidade do nosso conhecimento. Ela penetra do começo ao
f i m todo o processo de conhecimento. No sentido teórico-cognitivo,
a v antagem da prática diante do conhecimento consiste em que ela
incorpora tanto o mérito da contemplação viva ( por ser atividade
sensorial-material do homem ) quanto os aspectos fortes do pensa­
mento abstrato (por ter caráter universal e nela se realizarem os
conceitos ) . Neste sentido a prá tica está acima de todo conheci­
mento, emp í rico e teórico .
O (pensamento) prático e o teórico estão indissoluvelmente in­
ter-relacionados, o teórico encontra no prático sua consubstanciação
material. Em cada instrumento de produção, em cada experimento
científico acha-se materializada certa idéia, uma construção teórica.
É justamente por meio da consubstanciação material, prática, que se 1

dá o processo de verificação da veracidade objetiva do conteúdo


do pensamento .
O pensamento está ligado à prática e é por esta condicionado,
m as em seu movimento ele é relativamente autônomo e pode afas-

42 V. 1. Lênin. Obras completas, t. 42, p. 290 .

1 70
tar-se da prática. Esse afastamento do pensamento em relação à
prática pode ter duplo sentido. Em alguns casos l eva o pensamento
a divorciar-se · da prática, quando o pensamento se encerra em si
mesmo e considera seu movimento como sendo absolutamente au­
tônomo e independente do mundo objetivo e da atividade prática.
Noutros casos, o afastamento do pensamento da prática imediatl:I
é até necessário para servir m ais plena e efetivamente às necessi­
d ades da própria prática. O pensamento pode atuar ativamente
sobre a prática só quando está vinculado ao mundo objetivo com
b ase na lógica interna do seu desenvolvimento ; então ele chegará a
resultados que abrem amplas perspectivas de desenvolvimento da
prát i ca e são muito promissores .
Não se pode incorpo rar incondicionalmente a prática ao co­
nhecimento como degrau deste. A importância da prática no conhe- ·
cimento seria apenas diminuída e o prático perderia a sua espe.:.
-
cificidade e a diferença radical que o distingue do teórico caso se
considerasse a prática apenas como degrau, como momento no mo­
vimento do conhecimento. ::E: por isso que a prática é a base, o fim
e o critério de veracidade do conhecimento, que ela não é conheci­
mento mas determina a atividade radicalmente diversa dele. Por isso
seria errôneo inserir a prátic a no conhecimen to, sobretudo no pen­
samento. O marxismo não julga a prática um momento subordinado,
um degrau do conhecimento e não a incorpora ao conhecimento
mas à teoria do conhecimento. Isto significa que ao definir a prá­
tica como atividade diferente do conhecimento, o marxismo estabe­
leceu o lugar e o papel da mesma no movimento do pensamento.
Dado que a prática desempenha certa função no m o vi mento do
conhecimento, servindo-lhe sobretudo de critério de verdade, só neste
·
sentido estreito podemos considerá-la um elo do conhecimento .
Mas por si mesma a prática não é atividade teórica e reduzi-la ao
conhecimento implicaria em cometer um erro crasso, em substitui r
a a ti v id ade material , prática pelo pensamento teórico .
Enquanto critério da verdade, a prática tem caráter dialético.
Em particular, ela é simultaneamente absoluta e rel ativa. Enquanto
critério, a prática é absoluta, pois o que ela confirma é verdade ob­
jetiva ; mas ela é tamb ém relativa, pois "o critério da prática, no
fun do nunca pode confirmar ou rejeitar inteiramente n en hum a
,

espécie de concepção human a " 4 8 • A prática em desenvolvimento,

4ª V. 1 . Lênin. Obras completas, t. 1 8, PP·· 145- 1 46.

171
em todo o conjunto de suas formas e tipos, é um critério absolu­
tamente seguro de objetividade do conhecimento humano.

7. As CONTRADIÇÕES NO PENSAMENTO E AS SUAS FONTES

De que tipo deve ser o pensamento : contraditório ou não­


contraditório? A essa pergunta formulada de modo abstrato uns
respondem que o pensamento deve ser contraditório em todos os
casos e relações, enquanto outros respondem que ele não deve ser
contraditório. À tese abstrata : "a ciência sempre procura livrar-se
das contradições" às vezes se contrapõe outra tese igualmente abs­
trata : "todas as contradições na ciência são um bem ; aquele que
procura livrar-se das contradições no pensamento é um · lógico-m a­
temático" . Além disso, é característico um fato : aq ueles q ue acham
que o pensamento deve ser contraditório se baseiam em con tradi­
ções que são indispensáveis no processo de apreensão do objeto
pelo pensamento ; os que demonstram que o pensamento não deve
ser contraditório operam com contradições que são realmente ina­
ceitáveis no pensamento científico.
A existência de contradições inaceitáveis no pensamento é teste­
munhada pela própria colocação do problema : a lei da inaceitabi­
l idade de contradições na lógica formal não contradiria a lei da
d i alética da unidade e luta dos contrários? Caso se considerassem
devidamente contradições de qualquer espécie no pensamento, entre
nós nem poderi a surgir semelhante problema.
O caráter das contradições inaceitáveis no pensamen to é esta­
belecido pela lei lógico-formal da não-contrariedade. O conteúdo
desta lei é determinado pelo objeto da lógica formal . Ao estudar
esse objeto, a lógica formal formulou certas leis entre as quais
ocupa posição de destaque a lei da inaceitabilidade da contradição.
Esta se formula de diferentes modos, mas o seu conteúdo deve ser
assim traduzido : se reconhecemos como verdadeiro um juízo A pro­
cedente de um sistema de juízos que formam a dedução, então
não pode ser verdadeiro nesse mesmo sistema o juízo que contradiz
o juízo A, ou sej a, em certo sistema de juízos q ue formam a dedu­
ção de determinada forma não pode haver simultaneamente o juízo
verdadeiro A e o juízo n ão-A que está em contradição com ele .
A lei da inaceitabilidade da contradição não se refere ao con­
teúdo concreto dos juízos, não resolve o problema de qual é o
juízo verdadeiro entre os contraditórios. Enquanto forma de extrai1

1 72
um j uízo de outros, a dedução pode existir e funcionar normal­
men te apenas sob a condição de que não se reconheçam simulta­
neamente verdadeiros os juízos que se contradizem uns aos outros
e fazem parte da referida dedução. Além disso, essa lei sempre leva
c m conta certa dedução e certo juízo nessa dedução. Só num sis­

tema determinado de juízos que formam a dedução não devemos


permitir juízos que se contradizem uns aos outros.
As contradições proibidas pela lei da lógica formal são deno­
minadas lógicas. Embora o próprio termo "contradição lógica" não
se possa considerar impecável, na falta de outro empregá-lo-emos
somente num sentido rigorosamente determinado, ou seja, em rela­
ção às contradições no pensamento, in aceitáveis conforme a lei da
lógica formal .
Se entendermos por contradições lógicas apenas aquelas que
surgem como resultado da violação da lei da lógica formal, então
essas contradições realmente não devem existir no pensamento .
Lênin observou isto a o dizer que " . . . sob a condição, naturalmente,
de um pensamento lógico correto, a contradição lógica não deve
haver nem na análise econômica, nem na política" 4·1 •
As contradições lógico-formais são subjetivas, pois o seu con­
teúdo não reflete as contradições verdadeiramente objetivas, que
existem no movimento do próprio objeto. El as são subjetivas por­
q ue n ão levam o pensamento à a q uisição do conteúdo objetivo-ver­
dadeiro que expressa a dialética do desenvolvimento dos fenôme­
nos sob o aspecto em que eles existem independentemente da nossa
con sciência .
O juízo A e seu oposto o juízo não-A surgem em decorrên­
cia do caráter contraditório da própria realidade objetiva. O fato
de existir no nosso pensamento, em dada etapa do seu desenvol­
vi mento, os juízos A e não-A não é anomalia. Os juízos que for­
mam a contrariedade lógica refletem diversos aspectos do objeto,
d iferentes etapas de seu desenvolvimento. A lei lógico-formal da
inaceitabilidade das contradições no pensamento não nega a exis­
tência dos juízos oontraditórios, das teorias na ciência que refletem
os aspectos contraditórios do processo da realidade. Esta lei se
refere apenas à construção da dedução. Numa dedução não podem
ser reconhecidos como verdadeiros os juízos que contradizem-se uns
aos outros. Trata-se da condição indispensável de e;xistência da
dedução como forma.

44 V . I. Lên in. Obras completas, t. 30, p. 9 1 .

1 73
O obj eto implica definições contraditórias. Sobre ele podemos
expressar diversos juízos : o objeto K é dotado do indício a ( "a luz
é de natureza corpuscular " ) ; o objeto K é dotado do indício b ,
qu e contradiz o a ( "a luz é de natureza ondulatória" ) ; o objeto K
é dotado simultaneamente dos indícios a e b ( "a luz é simulta­
neamente ondulatória e corpuscular" ) . Todos esses juízos são ver­
dadeiros ; os dois primeiros fixam propriedades da luz tomadas iso­
ladamente, ao passo que o terceiro, mais profundo, reflete o fato
de ser a luz simultaneamente ondulatória e corpuscular.
As vezes a lei lógico-formal da inaceitabilidade da contradição
é interpretada em um sentido segundo o qual ela exigiria reconhe­
cer-se como verdadeiro qualquer um dentre os dois juízos : ou " a
luz é de natureza corpuscular" , ou "a luz é de natureza ondulató­
ria' ' , e negaria a veracidade do juízo : "a luz é simultaneamente
ondulatória e corpuscular" . Em realidade, porém, essa lei da lógica
formal corretamente interpretada não nos proíbe enunciar um juízo
que tenha como predicado a idéia da unidade das propriedades
contraditórias do objeto. Como as demais leis da lógica formal,
esta não se refere ao conteúdo do predicado dos juízos. Ela exerce
função importante apenas na construção da própria dedução como
forma lógica. Se em alguma dedução concreta partimos do juízo A
( "a luz tem simultaneamente como propriedades os corpúsculos e
as ondas" ) , então nesta dedução não podemos reconhecer como
verdadeira a negação do juízo A, ou seja, o juízo não-A ( "a luz
não tem simultaneamente como propriedades os corpúsculos e as
ondas" ) . Os juízos A e não-A são incompatíveis em uma dedução.
A lei da inaceitabilidade da contradição tem fundamento ob­
jetivo mas não consiste em que no mundo dos objetos e no reflexo
destes na consciência dos homens não haveria contradições . Ao
contrário, as contradições são a essência das coisas. O fundamento
objetivo de uma dada lei é constituído pela precisão qualitativa
e a estabilidade relativa das coisas e fenômenos do mundo materi al .
Em decorrência, cada juízo é rigorosamente determinado numa de­
dução e se manifesta em um conteúdo judicativo qualquer. Reun i r
numa dedução juízos que logicamente contradizem uns aos outros
implica em subverter a precisão do pensamento, elimina a possi­
bilidade de refletir corretamente o obj eto, e neste sentido a con­
trariedade lógica é subjetiva .
Assim, a exigência da lei da inaceitabilidade da contradição se
se refere à linguagem enquanto forma de existência do pensamento
q ue não deve implicar paradoxalidade lógico-formal . Se o pensa­
mento reflete as contradições que realmente existem no objeto, então

1 74
pode e deve ser expresso em linguagem correspondente que não dê
margem a qualquer ambigüidade.
Interpretada corretamente e aplicada no seu campo, a lei lógico­
formal da inaceitabilidade da contradição não é uma lei metafísica
como metafísicas não são as leis da mecânica, física, química, bio­
logia, etc. Mas na história da filosofia essa lei não raro serviu
de base à visão metafísica do mundo, porquanto era considerada
lei universal do método filosófico. Vinculava-se a lei da inaceita­
bilidade da contradição à negação das contradições no mundo ob­
jetivo e no pensamento. A dialética é tão compatível com as lei
da lógica formal corretamente formuladas e aplicadas em seu campo
como o é com as leis de outras ciências particulares (física, quí­
mica, biologia, etc . )
.

O pensamento deve refletir o objeto tal qual este existe na


realidade. Esta tese da teoria marxista do conhecimento de per si
incorpora a exigência do caráter contraditório lógico do pensamento .
O caráter contraditório lógico é inaceitável porque sua existência
exclui a possibilidade de aquisição do conhecimento objetivo-verda­
deiro. No entanto não se pode conceber a questão de maneira como
se da contradição lógica decorresse a exigência da teoria marxista do
conhecimento relativa à objetividade e à concreticidade do conhe­
cimento. Não se podem subordinar os princípios da dialética aos
princípios da lógica formal, pois os princípios da dialética são mais
substanciais e mais profundos : eles incorporam corno um de seus
aspectos aquilo que os princípios da lógica formal apresentam ao
conhecimento.
A coerência lógico-formal do pensamento n ão pode ser con­
siderada deficiência sob hipótese alguma. Outra coisa é o fato de
não se poder usá-la para resolver as contradições reais que surgem
no processo de apreensão do objeto pelo pensamento. Dado que
a lógica formal abstrai o desenvolvimento, não pode ela responder a
questão de como se realiza o movimento do pensamento no sen­
tido da apreensão da essência do objeto. Este não é o seu campo
nem esta é sua tarefa. Mas todo pensamento deve ser logicamente
coerente, logicamente não-contraditório. O erro de James Mill na
solução do problema do valor não foi o de ele ter procurado a
coerência lógico-formal do pensamento. Em caso contrário poder­
se-ia pensar que, infringindo as leis da lógica formal , ele chegaria à
solução do problema do valor! :E: evidente que no processo de
construção de uma teoria devêssemos ser logicamente coerentes, mas
o caráter contraditório lógico n ão resolve o problema da corres­
pondência da teoria ao objeto, e isto é questão central na constru-

1 75
ção de uma teoria. Na "Teoria da mais-valia" Marx critica James
Mill por ter este, na construção de sua teoria, aspirado apenas à
coerência lógico-formal, sem resolver o problema do modo pelo
qual expressaria as contradições reais do objeto real nos conceitos
e l evaria a teoria a corresponder ao objeto e à história de seu de­
senvolvimento 4 5 •
Como já observamos, as leis da lógica formal não podem ser
transformadas em método filosófico do conhecimento, em método
de construção de uma teoria científica do objeto, pois elas não co­
locam nem resolvem a questão central : como se desenvolve o nosso
pensamento no sentido da apreensão da essência dos fenômenos,
de suas contradições reais? Mas isto por acaso significaria que as
referidas leis carecem de todo sentido metodológico? Absolutamente.
A lei lógico-formal da inaceitabilidade da contradição, por ser ver­
dadeira, tem certa importância metodológica na construção de qual­
quer teoria científica. Sabe-se que a não-contradição lógica é c ri té­
rio obrigatório de toda teoria. Ao mesmo tempo, deve-se salientar
que embora essa contradição seja propriedade indispensável de toda
teoria científica, ela, não obstante, nem de longe é suficiente para
que a teoria possa ter pretensão à veracidade. Uma teoria pode ser
logicamente não-contraditória porém falsa. No entanto não pode
ser verdadeira a teoria logicamente contraditória, ou seja, construída
à base do desconhecimento da lei lógica da in aceitabilidade da con­
tradição. O que é falho não é propriamente o critério da não-con­
trariedade lógica mas a sua absolutização, a sua transformação n o
único critério possível de conhecimento.
A lógica formal, evidentemente, não pode resolver o problema
da correspondência da teoria ao objeto. Mas além da lógica formal
existe a lógica dialética, que é um método de aquisição do conhe­
cimento verdadeiro do mundo. Ela define os critérios que permitem
resolver o problema central da construção de uma teoria científica :
o problema da correspondência desta ao mundo objetivo. A impor­
tância metodológica da lei da · inaceitabilidade da contradição con­
siste em que, após localizar a contradição lógica, o sujeito pen­
sante procura descobrir a sua fonte e obliterá-la. Além do mais,
essa obliteração pode se dar de diferentes modos : ou aprimorando
o pensamento ou substituindo a dedução logicamente contraditória

por outra livre dessa deficiência.

45 K. M a r x e F . Engels. Obras, t. 2 6 , parte I l i , pp. 8 1 -82.

1 76
A localização da contradição lógica leva à procura de outras
soluções novas, mais perfeitas, daí a eliminação dessas contradições
fazer o pensamento avançar. A contradição lógica surge constan­
temente no processo de pensamento e oblitera-se. Não se pode dizer
que se as pessoas estudarem lógica formal o pensamento ficará
absolutamente livre de contradições lógicas. Ao que parece, as raí­
zes destas residem num campo mais profundo que o simples des­
conhecimento das leis da lógica formal. O próprio desenvolvimento
de uma teoria científica leva ao sugimento da contradição lógica.
Mas sej a qual for a causa do surgimento dessa contradição, ela
deve ser forçosamente obliterada e isto está sempre relacionado com
o progresso do conhecimento. Por isto o conhecimento científico
n ão deve e nunca se proporá à tarefa de adquirir e perpetuar o co­
n hecimento logicamente contraditório.
A contradição lógica n ão é a única forma de contradição no
pensamento. Neste há contradições de fonte mais profunda, que
radica na própria n atureza dele. Dado que o pensamento reflete o
mundo objetivo, as propriedades e leis dos seus fenômenos, as con­
tradições desse mundo encontram expressão no pensamento. De­
m ais, as contradições constituem não apenas o conteúdo mas tam­
bém a forma do próprio pensamento. Daí a necessidade da análise
das formas de pensamento para mostrar a sua dialética.
O estudo das contradições que no pensamento refletem as con­
tradições objetivas constitui o conteúdo fundamental da lógica dia­
l ética. Quando dizemos que na dedução enquanto forma lógica não
deve haver contradição lógica, temos em vista apenas uma forma
de contradição : as contradições que surgem como resultado da vio­
lação da respectiva lei da lógica formal .
Como o pensamento poderá refletir em suas formas as contra­
dições dos fenômenos do mundo objetivo se por si mesmas essas
formas não levarem implícitas contradições?
O pensamento deve evitar contradições subjetivas, a contrarie­
dade lógica justamente para representar corretamente as contradi­
ções objetivas. A ciência deve procurar obliterar n ão todas as con­
tradições mas só aquelas que dificultam o movimento do pensa­
mento no sentido da verdade objetiva. O conteúdo do pensamento
deve refletir o mundo objetivo em toda a sua autêntica con trarie­
dade dialética. As contradições internas das formas de pensamento
são a condição mais importante de existência destas.
Não se pode aceitar como correto o ponto de vista segundo
o qual as formas de pensamento são reguladas apenas por leis
l óg ico-formais. Sem a análise das contradições internas das formas

1 77
de pensamento e da dialética entre elas é imp oss ível entender as
condições de surgimento e existência das mesmas. "Uma flexibi­
lidade multilateral, universal dos conceitos, uma flexibilidade q u e
chega à identidade dos contrários : eis a questão"46 - escreveu
Lênin. Sem entender essa dialética dos conceitos não se pode re­
velar a essência do pensamento, que procura refletir a riq u eza do
mundo material, sua uni d ad e e variedade. O marxismo reconhece a
lógica formal com o seu princípio da inaceitabilidade da contrarie­
dade lógica. Mas, ao que se sabe, a tese fundamental do marxismo
é o reco nhecimento da universalidade das co n t radi çõ es e da necessi­
dade da representação das contradições objetivas no pensamento. O
reconhecimento da objetividade das contradições de forma a lgu m a
leva à admissão da contrariedade l ógic a do pensamento, pois as
contradições lógicas não são o reflexo das co n tra diçõ es objetivas
da realidade.
No pensamento há evidentemente con tradiç ões que devem ser
eliminadas ; parte dessas contradições surge como resultado de im­
precisões terminológicas. Mas seria incorreto consid erar todas as
contradições uma a n omali a do processo de p ens amento . As contra­
dições radicam na natureza do pensamento e obliterá-las do pensa­
mento implica ri a em li qui d ar o próprio pensamento, privá-lo da
capacidade de refletir o mundo objeti vo. Enq u anto isso, o pensa­
mento é um processo vivo de conhecimento da realidade objetiva
pelo homem, realidade que é contraditória e mul tifo rme .
As vezes se concebe a qu estão de um modo em que as con­
tradições no pensamento são simplesmente reflexos das contradi­
ções no objeto. Em realidade, porém, as co ntradiçõ e s no pensa­
mento surge m, em termos rigorosos, não como simples resulta d o
do reflexo das con tra diçõe s da real id a de obje tiv a mas devido à inca­
pacidade do sujeito para abranger, no pensamento, de forma ime­
diata e plena, o objeto em toda a sua d iversi d ad e , com todas as
contr a d i ç õe s .
O pensamento resolve as contradições entre o s�jeito e o objeto
sob forma teórica, criando a imagem de um novo objeto, deter­
minando as vias de movimento no sentido deste. Sua eficiência n a
so l u ç ão dessas contradições depende da objetividade do seu con­
teúdo, da plenitude, profundida d e e precisão com que reflete o ob­
jeto com todas as tendências do seu desenvolvimento.

4G V. I. Lêo in. O bras completas, t. 29, p. 99.

1 78
Mas o pensamento não só contribui para a solução das con­
tradições entre o sujeito e o objeto ; ele mesmo é uma expressão
dessas contradições, sendo tanto subjetivo como objetivo. A subje­
tividade do pensamento, por sua vez, é contraditória e desempenha
duplo papel no desenvolvimento deste. Por um lado, a existência
do subjetivo no conteúdo do pensamento é uma prova do seu ca­
ráter ilusório, da unilateralidade, falta de plenitude. Neste sentido,
cada passo no movimento do pensamento representa a eliminação
do subjetivo em seu conteúdo. Por outro lado, porém, essa lim­
peza se realiza por meio da mesma interferência subjetiva, ativa
do sujeito, do lançamento, por este, de novas construções teóricas
que exigem demonstração, verificação. Oblitera-se um subjetivo me­
diante a inserção de outro e isto, no todo, atua como movimento
do pensamento visando à aquisição da objetividade do seu conteúdo.
No empenho de tornar seu pensamento objetivo por conteú­
do, o sujeito cai em contradições : isto ocorre não porque ele pro­
cure inventá-las, escrever amontoados de artifícios verbais, exter­
nar uma série caótica de juízos que negam uns aos outros . .Conceber
a questão dessa maneira - e alguns assim o fazem - implica em

ocupar-se de fantasias sobre o processo de movimento do pen­


s amento. As contradições, inclusive as lógicas, surgem de maneira
absolutamente natural no processo de apreensão do objeto pelo
sujeito. Esse processo é por si mesmo muito complexo, o objeto é
contraditório, incorpora aspectos, propriedades e relações que se
excluem mutuamente. O pensamento fixa em sua forma subjetiva
esses aspectos, essas relações. A complexidade consiste em que o
pensamento deve refletir em form a subjetivamente não-contraditória
essas contradições objetivas. Isto é muito difícil , o sujeito cai em
contradições que não são próprias do objeto como tal. Caem fre­
qüentemente em contradições lógicas, inaceitáveis do ponto de vista
da lógica formal, até os próprios especialistas no campo desta ci­
ência, que se d ã o conta perfeitamente da in admissibilidade de dadas
contradições. Isto mostra mais uma vez que as contradições lógicas
não são simples equívoco ou acaso ; surgem naturalmente como re­
sultado e como forma original , atrasada de expressão das contradi­
ções entre o sujeito e o objeto .
Ademais, n ão há n e n h u m critério rigoroso e absoluto que esta­
bel eça i n continenti o caráter das contradições no pen samen t o . :f:
por meio da análise da própria teoria e suas contradições, no pro­
cesso de desenvolvimento da teoria, que se resolve com que tipo de
contradições operamos numa construção teórica. Por exemplo,
q uando na física foi estabelecida a dupla natureza corpuscular-on­
dulatória das substâncias, houve u m lapso de tempo bastante conside-

1 79
rável antes que a c1encia estabelecesse que essa contradição ex­
pressa a natureza objetiva da própria substância, não sendo o re­
sultado das autocontradições do sujeito, de sua incapacidade de
apreender o objeto tal qual este é independentemente do nosso pen­
s amento. Posteriormente, toda uma série de experimentos (Davis­
son e Germer descobriram a difração dos elétrons em cristais, etc. ) ,
muitos raciocínios teóricos ( em especial, Heisenberg criou um dis­
positivo matemático que permite prever com precisão a probabili­
d ade dos acontecimentos observados ) demonstraram que dada con­
tradição reflete na teoria as contradições do próprio objeto.
O descobrimento de contradições no pensamento, sobretudo n a
teoria, contribui para o desenvolvimento d o pensamento indepen­
dentemente da natureza dessas contradições. Se nos encontramos
diante de contradições que surgem como resultado da incapac i dade
do sujeito para refletir as contradições objetivas em forma subjetiva­
mente n ão-contraditória, então a localização dessas contradições e
sua posterior obliteração impulsiona o nosso pensamento no sen­
tido da obtenção da objetividade do conteúdo. Essas contradições
atuam n ão só sob a forma de dois juízos contraditórios, incompa­
tíveis nos limites de uma dada teori a ; em semelhantes contradições
podem atuar duas diferentes teorias ( mais freqüentemente em form a
hipotética) que explicam de maneira diversa um mesmo processo.
A existência dessas teorias diametralmente opostas, que explicam o
mesmo processo, é uma prova da incapacidade do sujeito para, n o
presente, i nterpretar a n atureza em forma subjetivamente n ão..,con­
traditória. Essas teorias podem ser logicamente n ão-contraditórias
e em um sentido impecáveis, mas são incompatíveis entre si . O
sujeito joga uma contra a outra, descobre as contradições entre elas,
analisa-as no processo dessa análise, estabelece os pontos vulnerá­
veis em cada uma das teorias. Ao obliterar as contradições entre
duas teorias, ele cria uma n ova teoria que reflete o objeto com
mais plenitude e precisão. Assim, mediante a solução das contra­
dições o pensamento avança no sentido da verdade objetiva.
Foi isso, por exemplo, o que aconteceu n a história da ciência
com as teorias ondulatória e corpuscular clássicas da luz na física.
Durante muito tempo, essas teorias competiram , se opuseram uma
à outra. A análise e a confrontação de cada uma delas lançaram o
problema da superação das limitações dessas teorias e da criação
de novas : a princípio criou-se a teoria eletromagnética, depois a teo­
ria dos quanta, na q ual está representada com mais plenitude e
profundidade a natureza da luz com todo o seu caráter contraditório.

1 80
No processo de análise de qualquer teoria científica, podem-se
elucidar também os juízos contraditórios, que traduzem contradi­
ções objetivas; esses juízos são compatíveis numa teoria por serem
compatíveis, também num objeto, as propriedades e aspectos neles
representados, a unidade entre eles na teoria reflete a unidade das
propriedades contrárias no objeto. O estabelecimento dessas con­
tradições na teoria também impulsiona o nosso conhecimento, mas
n ão por meio da obliteração delas e sim do desenvolvimento. Não
basta fixar as contradições no objeto, é necessário entender e ex­
plicar a natureza delas. Além do mais, o sucessivo conhecimento
dessas contradições leva a que, por meio de algumas delas, o pen­
samento possa descobrir outras, que servem de base ao próprio
objeto. É claro que essas contradições mais profundas o homem
apreende n ão de chofre, não facilmente mas caindo vez por outra
cm contradições internas lógicas ; sua teoria pode a princípio ser
logicamente contraditória ou ele criará duas teorias ( hipóteses ) que
se excluem mutuamente e as contradições entre estas serão elimi­
nadas por meio da criação de uma teoria nova, m ais perfeita.
O pensamento cai em contradições ao tentar abranger a nova
realidade através de conceitos velhos. Quando os físicos se viram
diante de um novo campo - o dos fenômenos que se verificam
no interior do átomo -, tentaram explicar o desconhecido atra­
vés do conhecido e valer-se de conceitos que foram úteis em cam­
pos já investigados, vale dizer, tentaram aplicar conceitos da físi­
ca clássica ao estudo de processos interatômicos, Os conceitos da física
clássica tinham caráter mecânico. Um dos conceitos fundamentais
da mecânica newtoniana era o conceito de objeto isolado, em re­
pouso ou em movimento, mentalmente divorciado do restante do
Universo, objeto que nas possíveis mudanças continuava individual
e estável. Mas eis que os físicos descobriram a impossibilidade de
explicação desses fenômenos por meio dos velhos conceitos, quando
tentaram através deles explicar os fenômenos que circundam o nú­
cleo atômico ou, conforme expressão de Paul Langevin, desceram
ao subsolo e encontraram os elétrons, que dão início ao fenômeno
da emissão e absorção da irradiação da luz. Assim surgiram os no­
vos conceitos .
Não é de imediato nem sem pesar que os cientistas abando­
nam os velhos conceitos ; foi a duras penas que muitos cientistas
se separaram, por exemplo, dos conceitos mecanicistas dos fenôme­
nos físicos, não foi sem menos trabalho que eliminaram o costu­
meiro conceito do objeto isolado e pensavam que sem esse conceito,
que expressava os fenômenos em sua conexão universal, não se

181
podia construir nenhuma explicação dos fenômenos físicos. "O me­
canicismo penetra em nós pela experiência diária, pelos mais sim­
ples objetos e fenômenos, e faz-se necessária grande concentração
e luta interior contra os hábitos arraigados para analisarmos cal­
m amente e refletirmos s obre os fatos que se nos descortinam e con­
cordarmos que não cometemos erro, que temos diante de nós a
n atureza real em toda a sua complexidade dialética e mobilidade" 47•
Dado que ocorre o desenvolvimento dos conceitos, a extinção
dos velhos e o surgimento de novos, neles sempre há divergências.
Não se podem considerar essas divergências simplesmente como con­
fusão subjetiva nos conceitos, como infração das leis da lógica for­
mal. A prática é o critério que permite distinguir no pensamento as
contradições dialéticas, as objetivas das subjetivas, q ue n ão refletem
as contradições nos objetos . Só à base da atividade prática, o ho­
mem estabelece o caráter das contradições no pensamento, afasta
aquelas que não levam o pensamento à aquisição da verdade obje­
tiva, e mantém e desenvolve aquelas que expressam a dialética
objetiva .
'
Deste modo, todas as contradições surgem n o pensamento a
partir da contradição entre o sujeito e o objeto. O fim do desen­
volvimento do pensamento é a obtenção da autêntica objetividade
do seu conteúdo. O pensamento deve refletir o objeto com todas
as suas contradições internas. Mas isto não se consegue de ime­
diato. Surgem teorias e contradições nas quais as contradições ob­
j etivas são refletidas incorretamente. No processo de seu desenvol­
vimento, a ciência abole essas contradições, obtendo construções
teóricas que não inserem n o objeto contradições subjetivas.

4 7 S. 1. Vavílov. "Lênin e os problemas filosóficos da física contem­


porân ea", in Col. : A grande força das idéias do Leninismo. M oscou, 1 9 56,
p. 1 83 .

1 82
IV

A Dialética das Formas de


Pensamento
"Os conceitos lógicos são subjetivos en q uanto
continuam 'abstratos' em sua forma abstrata,
mas ao mesmo tempo expressam as coisas em
si. A n atureza é concreta e abstrata, é fenô­
meno e essência, é instante e relação. Os con­
ceitos humanos são subjetivos na abstrativi­
dade, no isolamento, mas são objetivos no todo,
no processo, no resultado, na tendência, na
fonte" 1 •

1 . 0 HISTÓRICO E O LÓGICO.
Ü CONCEITO DE FORMA DE PENSAMENTO

O estudo das leis do movimento do pensamento no sentido da ver­


dade objetiva leva necessariamente à colocação do problema da
coriielação entre o histórico e o lógico.
Por histórico subentende-se o processo de mudança do objeto,
as etapas de seu surgimento e desenvolvimento. O histórico atua
como objeto do pensamento, o reflexo do histórico, como conteú­
do. O pensamento visa à reprodução do processo histórico real em
toda a sua objetividade; complexidade e contrariedade. O lógico é
o meio através do qual o pensamento realiza essa tarefa, mas é o
reflexo do histórico em forma teórica, vale dizer, é a reprodução
da essência do objeto e da história do seu desenvolvimento no sis-

i V. 1. Lênin. Obras completas, t. 29, p. 1 90.

1 83
tema de abstrações. O h istórico é primário em re1 ação ao lógico, a
lógica reflete os principais períodos da história .
O pensamento não deve simplesmente fotografar o processo
histórico real com todas as suas casualidades, ziguezagues e desvios.
O pensamento não é obrigado a seguir cegamente o movimento do
objeto em toda parte. Por isso o lógico é o histórico libertado das
casualidades que o perturbam . "De onde começa a história deve
começar também a m archa das idéias, cujo movimento sucessivo
n ão será mais q ue o reflexo do processo histórico em forma abs­
trata e teoricamente coerente ; o reflexo é corrigido, mas corrigido
de acordo com as leis dadas pelo próprio processo histórico real ,
sendo que cada momento pode ser examinado no ponto de seu de­
senvolvimento onde o processo atinge plena maturidade, sua for­
ma clássica"2 - escreveu Engel s .
O lógico é reflexo do histórico por meio de abstrações e aqui
dá-se . atenção prineipal à manutenção da linha principal do pro­
cesso histórico real. A lógica do movimento do pensamento tem como
uma de suas leis principais a ascensão do simples ao complexo, do
inferior ao superior, e esse movimento do pensamento expressa a
lei do desenvolvimento dos fenômenos do mundo objetivo. A 1 6 -
gica fornece a forma de desenvolvimento em aspecto puro, que, l i ­
teralmente, e m toda a s u a pureza, não s e realiza e m nenhum pro­
cesso histórico. No entanto a forma lógica de desenvolvimento re­
flete o processo histórico, daí ser ela necessária para interpretá-lo .
O estudioso de qualquer campo da ciência encontra constan­
temente a questão de como abordar o estudo do objeto, de onde
começar a reprodução de sua história no pensamento. Para revelar
a essência do objeto, é necessário reproduzir o processo histórico
real de seu desenvolvimento, mas este é possível s o mente se co­
nhecemos a essência do objeto. Por exemplo, o conhecimento da: es­
sência do Estado pressupõe o conhecimento da história de seu
surgimento e desenvolvimento, mas deve-se estudar a história do
Estado tendo-se certo conhecimento da essência deste enquanto fe­
nômeno social, pois do contrário pode-se tomar por Estado a or­
ganização gentílica do sistema comunitário primitivo .
A dialética materialista rompe esse círculo à base da unidade do
histórico e do lógico, define <:> início do conhecimento e o sucessi­
vo caminho de seu movimento. O estudioso deve começar o estudo

2 K . Marx e F. Engels. Obras, t. 13, p. 497.

1 84
do objeto pelo fi m , a par tir da sua forma mais madura, .do estádio
de desenvolvimento em que aspectos essenciais estão suficientemente
desenvolvidos e não estão disfarçados por casualidades que n ão
têm relação direta com ela. A base do estudo da fase superi o r , ma­
d ura de desenvolvimento do objeto fazem-se as definições pri m á r i a s
de sua essência. Essas definições têm caráter abstrato, são insufid­
entemente prof un das mais indispensáveis como linha no estudo do
processo histórico de desenvolvimento do objeto ; elas atuam como
ponto de partida n o estudo do objeto, porquanto refletem em certa
medida o processo d e af i rma ç ão e desenvolvimento do objeto estu­
dado .
O degrau supremo de desenvolvimento do objeto leva implíci­
tos em forma original, "desn atada", como se costuma dizer, degraus
antecedentes, assim como a forma superior de movimento da matéria
incorpora todos os degraus inferiores. Isto sig nifi c a que a reprodu­
ção da essência desse ou daquele fenômeno no pensamento constitui
ao mesmo tempo a descoberta da história desse fenômeno, que a
teoria de qualquer objeto não pode deixar de ser também a sua his­
tória. Por isso as defi n i çõ e s pr i má rias do objeto, a l óg ic a dos con­
ceitos que o expressam constitui p o nto de partida no estudo do
processo de formação e desenvolvimento de dado objeto . Por exem­
plo, ao estudar as rel ações burguesas de produção, K. Marx esta:­
belece uma ordem lógica n a mudança das formas de valo r : simples
- extensiva - geral - forma dinheiro. A esse movimento das

formas de valor corresponde o processo lógico de pensamento do


s i mpl e s ao compl exo, cio não-desenvolvido ao desenvolvido ; esse
movimento reflete o processo real de mudança das formas de valor,
processo que se verificou n a história real.
No entanto, embora a teoria do objeto se manifesta ao mesmo
tempo como sua h istória, a reprodução, no pensamento, da essência
e do c o n te ú do de qualquer fenômeno não torna desnecessário o
estudo de sua h istória; ao contrário, pa r a atingi r-se um degrau
mais elevado no c o n h ec i m e nt o do objeto, é necessário recorrer jus­
tamente à sua histó r i a . Demais, por ter sido esse estudo antecedido
da elaboração dos con ceitos primários que traduzem a essência de
dado objeto, a apreensão d a história do objeto pelo pensamento não
terá caráter empíri c o . O l ógico a tua como meio de conhecimento do
histórico, fornece o p r i nc íp i o para o estudo multilateral deste. Quan­
do se toma por base da explanação da história do objeto o conhe­
cimento da essência, tornam-se então compreensíveis e explicáveis
todas as demandas h istóri cas, casualidades e desvios, que, sem obs­
curecerem a necessidade, encontram seu lugar na manifestação e

1 85
complementação desta. A história do objeto se manifesta viva, vi­
gorosa no nosso pensamento .
O estudo da história do desenvolvimento do objeto cria, por
sua vez, as premissas indispensáveis para uma compreensão mais
profunda de sua essência, razão porque, enriquecidos com o conhe­
cimento da história do objeto, devemos retomar mais uma vez a de­
finição de sua essência, corrigir, completar e desenvolver os concei­
tos· q ue o expressam. Deste modo, a teoria do objeto fornece a
chave do estudo de sua história, ao passo que o estudo da história
enriquece a teoria, corrigindo-a, completando-a e desenvolvendo-a. B
como se o pensamento se desenvolvesse conforme um círculo : da
teoria ( ou lógica ) à história e desta novamente à teoria ( lógica ) ;
além do mais, de acordo com a lei da negação da negação, verifica­
se não a retomada das definições básicas mas a criação de novos
conceitos, surgidos à base de um estudo profundo e minucioso da
história do objeto. Uma teoria mais desenvolvida permite abordar
a história, de modo diferente, novo, descobrir nesta aspectos e mo­
mentos q ue nã o poderiam ser descobertos no estudo anterior . Por
outro lado, um conhecimento mais rico da história levará a uma
teoria mais desenvolvida e, deste modo, à base da inter-relação do
lógico e do histórico o nosso conhecimento se aprofunda na essên­
cia do objeto e em sua história .
O problema da inter-relação do lógico e do histórico tem muitos
aspectos, não se limita à inter-relação da teoria do objeto e sua his­
tória. O lógico reflete não só a história do próprio objeto como
também a história do seu conhecimento. Daí a unidade entre o
lógico e o histórico ser premissa necessária para a compreensão do
processo de movimento do pensamento, da criação da teoria cientí­
fica. A base do conhecimento da dialética do histórico e do lógico
resolve-se o problema da correlação entre o pensamento individual
e o social ; em seu desenvolvimento intelectual individual o homem
repete em forma resumida toda a história do pensamento humano.
A unidade entre o lógico e o histórico é premissa metodológica in­
dispensável na solução dos problemas da inter-relação do conheci­
mento e da estrutura do objeto e conhecimento da história e seu
desenvolvimento .
Interpretada à maneira materialista, a unidade entre o lógico e
o histórico ajuda a resolver o problema d a construção da ciência,
de sua estrutura interna, do sistema de suas categorias. Essa uni­
dade � básica na definição do próprio conceito de forma de pen­
samento.

1 86
A representação do histórico pelo lógico; a reprodução da es­
sência do objeto, da história de sua formação e desenvolvimento
se realizam nas diversas formas de movimento do pensamento. Em
termos breves pode-se definir a forma de pensamento como modo de
representação da realidade por meio de abstrações. Toda forma de
pensamento constitui certo elo do movimento no sentido da reali­
dade objetiva, nela se traduzem os resultados do conhecimento. No
processo da eterna e infinita aproximação do pensamento ao objeto
estabelecem-se certos laços nos q uais se refletem os resultados do
conhecimento do objeto. As formas de pensam ento são justamente
esses laços originais, onde os resultados do pensamento abstrativo
do homem estão de certo modo organizados, relacionados, expressam
o nível alcançado de conhecimento e as vias do seu sucessivo avanço.
As formas de pensamento n ão diferem entre si pelo fato de
umas refletirem uns objetos e outras refletirem outros. A diferença
entre elas reside em outra superfície : o mesmo objeto ( ou o mesmo
aspecto no objeto ) é representado em diferentes formas de diversos
modos, com fim diferente, daí cada forma exerce a sua função
no movimento do pensamento no sentido da verdade objetiva. O
principal na interpretação dessa ou daquela forma de pensamento
é definir o lugar q ue ela ocupa na realização do processo de repro­
dução do objeto pelo pensamento .
A função cognitiva da forma de pensamento se baseia no con­
teúdo objetivo desta, no fato de nela refletir-se de certo modo a
realidade objetiva. Fora desse conteúdo objetivo nem se pode falar
da função gnosiológica da forma de pensamento .
O conteúdo objetivo da forma de pensamento e seus elementos
estão de forma rigorosamente determinada relacionados entre si, or­
ganizados, compõem uma estrutura que constitui o conteúdo for­
mal, lógico da forma. Na superfície, do aspecto exterior é que a
forma lógica atua como estrutura do pensamento, forma de inter­
relação dos seus elementos constituintes. No entanto a estrutura da
forma de pensamento não lhe esgota todo o conteúdo, constitui
apenas um momento subordinado ; o estudo das formas de pensa­
mento não pode se limitar à simples elucidação do conteúdo formal .
No estudo das formas de pensamento a tarefa d a lógica é bem
mais ampla e profunda : definir o lugar de uma dada forma lógica
de obtenção do conteúdo objetivo-verdadeiro pelo pensamento, de
reprodução do concreto em toda a sua diversidade .
Os termos "forma de pensamento" e "forma lógica" são fre­
qüentemente empregados com o mesmo significado. Nisto também

1 87
há certo sentido, pois, ao que se sabe, não existem formas não-ló­
gicas de pensamento. IÉ possível, porém, que para afastar a confusão
terminológica que aqui às vezes se verifica, deva-se entender por
forma lógica não a forma de pensamento em geral mas somente
a estrutura constituída de sinais da linguagem artificialmente for­
m a lizada, de acordo com as regras da lógica formal .

. Em suma, enquanto modos de apreensão da realidade objetiva


no pensamento, as formas de pensamento são objeto da lógica dia­
lética, que, compreendendo a experiência de t oda a lógica ante­
cedente, interpreta-as de acordo com os princípios da dialética, de
sua concepção do pensamento como movimento no sentido da
verdade objetiva .

2. A INTER-RELAÇÃO DAS FORMAS DE PENSAMENTO

Ao estudar as formas de pensamento, suas estrutura e função


gn o siológica, a lógica há muito definiu como principais as formas :
conceito, juízo e dedução. Ao longo de toda a história da lógica
os especialistas tiveram sua atenção voltada para a localização das
diferenças entre elas, o lugar de cada uma no movimento d o pen­
samento no sentido da verdade. Nesse processo opunha-se freqüen­
temente uma forma de pensamento a outra, isolava-se uma, qu e
era considerada basilar, principal . Durante muito tempo conside­
rou-se na . lógica q ue o conceito ante c ede ao j uízo e à dedução . O
. juízo é uina relação de conceitos, ao passo que a dedução surge
como resultado da soma, da unificação dos juízos. Essa visão em­
polgava sobretudo os racionalistas, que partiam do reconhecimento
da existêricia do conhecimento acabado antes da experiência e in··
dependentemente desta sob a forma de conceitos mais simples e im­
portantes, que constituem o fundamento de todo o nosso conhe­
c i mento : de todos os juízos e deduções.
Kant se manifestou contra a concepç ã o dos conceitos como
ponto de partida do conhecimento, como forma pri m á ria de pensa­
mento. Para ele, o erro da lógica anterior estava no fato de "tratar
conceitos precisos e acabados antes dos juízos e deduções " 3 • Seg u ndo
Kant, os conceitos surgem somente como resultado dos juízos e
de duçõ es . O conceito preciso surge como resultado dos juízos, sur-

a I. Kant. Obras, t. 2, Moscou , 1964, p. 75 (Ed. em russo . )

1 88
gi ndo o acabado como resultado das deduções : "Em realidade, para
o conceito preciso exige-se q ue eu reconheça algo claro como in­
d ício de certa coisa, e é isto que é o juízo"4 - escreve ele. Neste
caso Kant aborda o juízo não como conceito preciso já formado
m as como o ato através do qual forma-se o conceito. O conceito
acabado é possível apenas mediante a dedução, pois a dedução
constitui um conceito através de indício mediato ( meio termo ) .
Essa concepção kantiana da inter-relação das formas de pensa­
mento foi desen volvida por muitos lógicos alemães, entre eles A .
Trendelenburg, que também considerava o juízo forma primária
de pensamen to, que antecede tanto ao conceito como à dedução5• O
reconhecimento do juízo como base de todas as formas de pensa­
mento tornou-se característico de todos os lógicos alemães daquel a
época, daí seus tratados de lógica começarem, em regra; pela dou­
trina do juízo. Ni sto há certo sentido, embora semelhante concep­
ção fosse não raramente relacionada com a interpretação idealista
da essência da forma de pensamento, com a noção de que no pro­
cesso de juízo cria-se o objeto da realidade.
Hegel colocou e tentou resolver o problema da inter-relação das
formas de pensamen to ; ele distinguia o s conceitos, juízos e dedu­
ções segundo o caráter da ligação neles existente entre o univer­
sal, o singular e o particular. No conceito esses momentos não são
desmembrados mas dados como algo totalizado ; no juízo eles se de­
compõem, os conceitos se subdividem em seus componentes, o sin­
gular e o universal atuam como sujeito e predicado unificados por
uma cópula. Na dedução restaura-se a unidade entre o singular e o
u n iversal : "Os conceitos como tais mantêm seus momentos desnata­
dos na unidade; no j uízo essa unidade é algo interno ou, o que dá
n o mesmo, algo exterior, e os momentos, embora correlatos, estão

col ocados como termos extremos independentes. Na dedução, as de­


fi n ições do conceito são independentes como os termos do juízo,
estando ao mesmo tempo determi nada certa unidade dos mesmos.
Deste modo, a dedução é um conceito intei ramente determi­
n ado"ª.
O desenvol v i mento do juízo leva à dedução, que não suben­
tende simplesmente mas fundamenta a conexão entre o singular e

4 lbid., p. 74 .
5 Ver A. Tre ndelenburg. Estudos de lógica, parte II, Moscou, 1 8 68,
pp . 22 1 -2 3 2 . (Ed . em russo . )
6 Hegel . Obras, t. VI, pp . 1 05- 1 0 6 . (Ed. em russo . )

189
o universal . A dedução atua como unidade entre o conceito e o
juízo .
:f: correta a idéia de Hegel , segundo a qual a dedução está
em relação indissolúvel com o juízo e o conceito, todas as formas
de pensamento subentendem uma a outra e se transformam uma
n a outra ; essa idéia, porém, é deturpada pela base objetivo-idealista
da lógica hegeliana. Todo o fim do desenvolvimento do pensamen­
to, que vai dos conceitos à dedução passando pelo juízo consistiria,
noutra base, em fazer o conceito retornar a si e, enriquecido de de­
finições, passar do campo do subjetivo ao objetivo. Sob a forma de
dedução disjuntiva, o conceito se converte em objeto. Neste caso
o desenvolvimento das formas de pensamento em Hegel opera-se
apenas em um sentido : do conceito �través do juízo à dedução ; é
por si mesmo evidente que a absolutização desse esquema é artifi­
cial e não reflete a ligação real e as transformações das diversas for­
mas . de pensamento dentro do processo real, concreto de conheci­
mento .
K . D . Uchinsky tem idéias corretas sobre a solução desse pro­
blema. "O juízo - escreve ele - não é mais que o próprio con­
ceito, mas ainda em processo de formação. O juízo definitivo se
converte em conceito . Do conceito e da noção especial, ou de dois
ou mais conceitos pode mais uma vez produzi r-se um juízo ; mas o
·
definitivo torna a concerter-se em conceito e se traduz em uma pala­
vra : por exemplo, esse animal tem duas pernas e um chifre na testa ;
ele rumina, etc . Todos esses juízos, fundidos, formam um conceito
de animal bípede e ruminante. Podemos dividir cada conceito nos
juízos que o constituem, cada juízo novamente em conceitos, os con­
ceitos novamente em juízos, etc."7 •
Não podemos dizer que essa opinião de Uchinsky contenha a
solução definitiva do problema da inter-relação do juízo e do concei­
to, se bem que se observem aqui algumas vias para a correta solu­
ção do problema da inter-relação das formas de pensamento. É cor­
reta a idéia básica de Uchinsky, segundo a qual o conceito e o juízo
- acrescente-se ainda a dedução - estão indissoluvelmente ligados
entre si e no processo de desenvolvimento do conhecimento se trans­
formam um no outro, sendo que não é só o juízo que se converte em
conceito mas o conceito também se converte em juízo . .

T K. D. Uchinsky. Obras escolhidas, t. 8. Moscou-Leningrndo, 1 95 0 ,


p. 477 .

190
Efetivamente, o 1uizo e a dedução desempenham imenso papel
na formação dos . conceitos. Para encontrar nos fenômenos o univer­
sal que é refletido no conceito, é necessário abranger o objeto de
todos os lados, emitir toda uma série de juízos sobre aspectos iso­
lados do mesmo. O essencial no fenômeno n ão pode ser definido
sem um sistema integral de deduções. Na formação dos conceitos
cabe enorme papel à análise enquanto movimento que parte do
concreto, dado nas sensações, ao abstrato, cabendo também à sín­
tese · enquanto movimento do abstrato a um novo concreto, que é n
conjunto das definições abstratas. O processo analítico é inconcebí­
vel sem indução e dedução Constituído, o conceito leva implí­
.

citos, em forma original, todos os juízos e deduções que se verifi­


caram no processo de sua formação . O conceito é a confluência, a
síntese das mais diversas idéias, o resultado de um longo processo
de conhecimento .
Ao mesmo tempo? não se pode conceber a dedução sem os
conceitos e juízos, assim como não se pode conceber o juízo sem con­
ceitos e deduções . A dedução é constituída de um sistema de
juízos e o enunciado de qual quer juízo pressupõe um conceito .
Deste tnodo, o juízo : "O Estado é um instrumento de opressão de
uma classe por outra" é inconcebível sem os conceitos "classe",
"opressão", "instrumento", etc.
Por conseguinte, para formar uma dedução e através desta
a dqu irir novo conhecimento, é necessário partir dos juízos e con­
ceitos já existentes. Os novos conceitos e juízos obtidos como resul­
tado da dedução se constituem no ponto de partida para a formação
de novas deduções, que levam a um novo conhecimento .
Mas para resolver o problema da relação entre conceito, j uízo
e deduçãO não basta indicar a unidade entre eles, a concatenação e

transformação de uns em outros. É necessário, ainda, mostrar a


especificidade de cada um deles, a diferença que há entre eles.
Há muito consolidou-se n a lógica a concepção segundo a qual
o conceito difere do juízo por n ão ser nem verdadeiro nem falso,
pois não afirma nem nega nada. Tal concepção afasta o problema
do valor cognitivo dos conceitos, os quais se transformam em for­
mas destituídas de conteúdo. Atribui-se essa concepção a A ris tó­
teles, embora, em realidade, o estagirita tenham-se referido não a
conceitos en quanto formas de pensamento mas a termos como veí­
culos de expressão do pensamento. Na lógica aristotélica não há
confronto entre juízo e conceito mas a comparação de duas formas
de enunciado, de proposição. Veri fica se uma forma de enunciado
-

quando os termos se encontram em relação predicativa, outra, quan-

191
do não há essa rel ação. Aristóteles n ão separava a forma de pensa­
mento da forma de enunciado. A lógica posterior estendeu às for­
mas de pensamento a c a racteri z ação aristotélica dos enunciados. O
que Aristóteles disse em relação aos termos foi, sem q ualq uer res­
salva, transferido aos conceitos e ao seu conteúdo .
Seria estranho se o conceito, en quanto reflexo da essência , não
tivesse qual q uer relação com a veracidade. Se o conceito não fosse
uma forma de conhecimento verdadeiro, então o desenvolvimento do
conhecimento do juízo ao conceito implicaria num movimento
regressivo do conhecimento rico de conteúdo a formas vazias, des­
providas de conteúdo, com as qu ais se descrevem os conceitos. Seria
igualmente incorreto ver a diferença entre a dedução e o juízo no
fato de a forma da dedução talvez não ser nem verdadeira nem falsa
m as correta ou incorreta. A veracidade da forma de dedução se
apóia na veracidade do juízo que constitui o conhecimento que
fundamenta .
A diferen ç a real entre as diversas formas de pe nsamento está
na especificidade que nelas o reflexo da realidade objetiva apresenta.
Refletem-se na forma de j uízo não só os aspectos gerais e esse n c i a i s
mais quaisquer aspectos do objeto. Assim, por exemplo, os juízos : "o
ouro tem a cor amarela", "o ouro é mais pesado que a água",
"o ouro é um elemento q u ímico " , "o ouro é um metal", etc., refle­
tem diversos indícios do ouro, que e s t ã o mais aproximados ou mais
distanciados do próprio objeto. Para o juízo não é absolu t amen t e
obrigatório que seu predicad o seja o reflexo do universal no objeto.
Mas tão logo o desenvolvimento do j uízo atinge o ponto e m q ue
o conteúdo do seu predicado é const í tuído pelo reflexo do geral e

do essencial, o juízo se converte em conceito. Por isto a deduçã o


provinda do conceito difere da dedução procedente do juízo que
ainda n ão se tornou conceito.
Quando se fala em dedução derivada de conceitos, t e m- se em
mente que uma das premissas é constituída pelo conceito desdobra­
do em juízo. O pr e d i c ado deste j uízo é a idéia não simplesmente de
um indíc io qualquer do objeto mas de um indício específico e es­
sencial para ele . Por i s t o o juízo, obtido como resultado do desdo­
bramento do conceito, é seletivo e, como se sabe, a existência do
juízo seletivo muda as condições da d edu ç ão. Mas quando na de­
dução há um juízo comum e não um conceito, essas formas, sob
premissas verdadeiras, não conduzem a conclusões verdadei ras .
Por ser o con ceito o reflexo do geral e do essencial no fenôme­
no, ele é mais sólido, mais consta n te em comparação com o j u ízo,
que reflete todas as p ropriedad e s, c on ex ões e rela ções , até as ca-

192
suais, exteriores. O conceito deve responder à pergunta : que obj eto
é esse e em que consiste a sua essência?, ao passo que o juízo deve
dizer o que em geral é i n erente ao objeto, que aspectos, propri edades
e i n d íci os ele possui .
Quando se fala do conceito como obtenção do universal, es­
sencial e neces s á ri o no objeto, é evidente considerar-se a obtenção
d essa universalidade um processo histórico. Um é universal em re­
lação ao outro, que já se manifesta como etapa percorrida do co­
n hecimento .
Os conceitos, juízos e deduções são diversos pelas funções que
exercem no movimento do pensamento. O juízo serve para fixar ri­
gorosamente certo resultado no movimento do pensamento , en quan­
to o conceito resume todo o con h ecimento antecedente do objeto me­
diante a runião de inúmeros juízos num todo único. Neste sentido o
conceito atua como uma redução original de juízos , conservando
todo o essenci a l no conteúdo destes ; ao fixar o já obtido , ele se
constitui num deg r au do sucessivo movimento do pensamento .
A deduç ã o é uma forma de movimento do pensamento de uns
j uízos e conceitos a o u tros , traduz o processo de obtenção de novos
resultados no pe n sa m ento. A dedução expressa o movimen to , a
t r ansição do pensamento de uns juízos e conceitos a outros, de um
conteúdo do conheci mento a outro .
A diferença en t re os juízos, conceitos e deduções nos modos
de expressão do conhecimento ve rdadeiro cond i ciona igual me n te a
d i feren ça de conexão entre o singular e o un i v er sal que neles se
manifesta, fato para o qual Hegel atentou corretamente .
No juízo está nitidamente expressa a relação e nt re o singular e
o uni v er s a l , o s uj e i t o e o predicado . No conceit o fixa-se a atenção
principal no un iversal, que é o que se disti n gu e , ao passo que se
obscurece o sing u lar .
Na dedução revel amos, mostramos como, porque e em q u e base
dado s i n g ul a r está relacionado com esse universal, o que constitui
o especi a l através do qual se e s t a beleceu a relação entre o singular

e o un iversal : a re l a ção do si n g u l a r ( ouro ) com o u n i versa l ( ele­


mento q uímico ) a t ravés do especial ( metal ) . Por isto o especial é
evi de n t e apenas n a dedução ; no juízo e l e se oculta n a cópula "ser" ,
ao p a sso c1ue no conceito oblite r a -s e não só o especial mas também
o s in g u l a r, pois nele fixa-se toda a atenção no seu conteúdo, no g e ral

e ess e n cial localizado no o bj e to . No c o nce i to oblitera-se aquilo atra­

vés do que as es s ê ncias do objeto chega m ao con h ecimento .


Disting uir qu a l q u er forma particular de pensamento como pri­
mária e mais importante não é aspir ação correta, pois não há ne-

193
nhuma sucessão histórica -rigorosa no surgimento dessas formas .
Desde os seus primórdios, o pensamento humano m aduro se mani­
festou nas formas hoje existentes ; juízos, conceitos e deduções. Caso
não haj a uma delas, o pensamento não pode funcionar normalmente,
pois o processo de pensamento incorpora forçosamente : 1 ) a distin­
ção, fixação das propriedades, indícios do objeto (juízo ) , 2 ) o re­
sumo do conhecimento antecedente, a reunião dos juízos em con­
ceitos, 3 ) as formas de transição de um conhecimento anterior­
mente adquirido a outro .
Será possível a realização do processo de pensamento caso se
exclua um desses elementos? Ao que p arece, não . Por isto nos pa­
rece errônea a concepção segundo a qual existiu inicialmente o pen­
samento em conceitos ( ou juízos) e depois a humanidade passou ao
pensamento com todas as suas formas ( juízos, conceitos, deduções ) .
No desenvolvimento histórico das formas de pensamento podem-se
distinguir duas etapas : 1 ) o pensamento não-desmembrado em for­
mas isoladas e 2) o pensamento maduro, no qual se processou a
separação das diversas formas que desempenham as suas funções
específicas no mo vimento no sentido da verdade. Posteriormente de­
senvolveu-se o processo de evolução, de desenvolvimento das formas
de pensamento, de sua complexidade, de surgimento de novas modi·­
ficações .
A diferenciação do pensamento em formas particulares implica
simultaneamente em sua separação mais precisa de outros modos de
atividade cognitiva dos homens. O movimento em que não há se­
paração de formas ainda não se definiu a si mesmo ; ele ainda não
se separou da atividade laboriosa nem tampouco do conhecimento
empírico .
Os dados da lingüística e da psicologia confirmam a tese de
que, a princípio, o pensamento não estava desmembrado em for­
mas específicas. Segundo A. A. Potebnyá e outros lingüista, por
exemplo, a forma primária do discurso não foi a oração constituída
de palavras isoladas, mas "a palavra-oração prototípica" ª .
Na construção da teoria das formas de pensamento assume im­
portância basilar para a lógica a definição da forma que serve de
célula fundamental do pensamento. A dialética ensina que o estudo
de essência do objeto deve necessariamente ser iniciado do mais

· s A . A . Potebnyá. Manuscritos sobre a gramática rnssa, t t . 1-11, Kh á r ­


kov, 1 8 88, p. 7 6 .

1 94
simples, massiforme, mais freqüentemente encontrado na forma de­
senvolvida do objeto, sendo, ademais, um simples que contenha em
forma embrionária toda a riqueza e os traços característicos do com­
plexo, desenvolvido . Trata-se do método geral de investigação ci­
entífica, que deve necessariamente ser aplicado também ao estudo
das formas de pensamento .
No entanto é necessário dispor não só da forma de pensamento
c1 ue pode ser convertida em forma basilar na explicação de todas
as outras mas também dac1uela para a qual todas convergem como
para o seu fim. A teoria é essa forma madura do conhecimento ci­
entífico moderno . A ciência se apresenta como um sistema de teorias,
relacionadas com o objeto por ela estudado. Por isto a tarefa da
dialética no estudo das formas de pensamento é descobrir as leis de
surgimento, construção e desenvolvimento das teorias científicas .
Todas as outras formas de pensamento devem ser vistas como mo­
mentos na construção e desenvolvimento da teoria científica. Aqui
se manifesta a diferença de princípio do enfoque das formas de
pensamento por parte da dialética e da lógica formal . A lógica for­
mal contemporânea tem como objeto de suas investigações não ime­
diatamente a teoria científica mas o cômputo lógico, no qual são
dadas as regras de operação com sinais ; a lógica formal pode estu­
dar apenas as relações lógico-formais entre os elementos da lingua­
gem da teoria científica e não o conteúdo dessa mesma teoria .
A dialética estuda as formas de pensamento numa perspectiva
mais ampla : estuda-as da posição da análise das leis de construção
e desenvolvimento das teorias. Sob esse enfoque o próprio côm­
puto lógico atua apenas como um momento subordinado na criação
e desenvolvimento da teoria científica. Definir a célula fundamental
do pensamento significa encontrar a célula básica na construção e
desenvolvimento da teoria científica. :E: essa a função que desem­
penha o juízo, que é a forma mais simples e geral de pensamento .
O processo de pensamento começa quando e onde se dá a se­
paração de indícios isolados e propriedades dos objetos, dos fenôme­
nos do mundo material, a formação de abstrações mesmo que sejam
elementares. O juízo é a forma mais simples e mais importante de
abstração, que constitui simultaneamente o traço característico de todo
processo de pensamento. O juízo está presente em toda abstração,
existe em toda parte : nos conceitos, nas deduções, n as teorias, etc .
Todo conhecimento, se existe em realidade para o homem, tem a
forma de juízo ou de sistema de juízos. Até a simples exposição dos
resultados da contemplação viva, sensorial, manifesta-se igualmente a

1 95
forma de juízo. Não há pensamento se não há o ato de predicação,
cuja expressão é o juízo .
A teoria científica é um sistema, um conjunto de juízos unifica­
dos por um princípio único. No juízo e sua contradição jazem todos
os traços característicos da teoria científica. Ao apreciarmos a teo­
ria, colocamos antes de tudo o problema de sua veracidade ou fal­
sidade, vale dizer, da sua atitude face ao objeto representado. De
todas as formas ( juízo, conceito e dedução ) , essa peculiaridade do
pensamento ( a de confrontar-se com o objeto ) melhor se observa
j ustamente no exemplo do juízo. Na dedução coloca-se em primeiro
plano a justeza ( correspondência de um juízo aos outros ) , enquan­
to no conceito a justeza se verifica apenas à medida que todo con­
ceito é um juízo e assume a forma deste na defin ição .
!É necessário considerar as formas de pensamento em sua atitude
face ao juízo em1uanto cél ula elementar do pensamento, por um
lado, e à teoria enquanto forma madura de pensamento, fim origi­
nal de seu movimento, por outro. Todas elas, sendo degraus no
desenvolvimento do juízo, são simultaneamente momento na cons­
trução e desenvolvirpento da teoria científica. Assim, o conceito é
um juízo, cujo predicado é a idéia do universal n o fenômeno. Os
conceitos são indispensáveis no movimento do nosso pensamento n o
sentido da teoria científica, pois neles s e concentra o conhecimen to
de aspectos essen ciais particularmente do objeto. A teoria enquanto
conhecimento sintético desse objeto é simplesmente impossível sem
o conceito .
A dedução é uma forma de mediação dos j uízos, um meio de
obter de juízos antes estabelecidos um novo conhecimento. Por
meio da dedução realiza-se o processo de transição de uns juízos a
outros . A dedução fundamenta, n a construção e desenvolvimento da
teoria, os juízes e conceitos que esta integram e serve de via de
movimento, de transição de uma teoria a outra mais acabada.
Merece atenção especial o problema colocado por alguns au­
tores, relativo à "celula fundamental do pensamento" . Para eles, é
justamente o conceito que constitui es�a célula. Ressalve-se que eles
demonstram a definição do conceito, mas tão-somente proclamando-a
como "célula fundamental do pensamento". Afirma-se, por exem­
plo, que o conceito é a forma mais abstrata, i mediata e incondicio­
nal de pensamento. Mas isto deve ser demonstrado ao menos po r
meio da comparação do conceito com o juízo. Se apelarmos para os
fatos, veremos que as abstrações primárias mais s imples têm forma
de juízo, pois cada uma delas se caracteriza por relacionar a algum
objeto a propriedade ou indício destacado . A abstração surge a

1 96
princípio j ustamente como idéia sobre a propriedade ou indício do
obj eto .
Para a definição da célula fundamental do pensamento não
tem qualquer importância a circunstância de que momentos como o
conceito, o volume e o conteúdo podem ser encontrados também
no juízo, em seu sujeito e seu predicado. Por si só isto ainda não
demonstra nada, pois se pode afirmar também o contrário : no juízo,
em seu sujeito e objeto já estão jacentes os traços característicos do
conceito (volume e conteúdo ) ; por isto o juízo deve manifestar-se
como uma célul a do pensamento .
É difícil aceitar também a afirmação segundo a qual o conceito
é a forma mais simples e atrasada de pensamento. Para que a noção
se torne conceito, é necessário pelo menos subdividi-I a entre os seus
componentes e traduzir os resultados da análise dada à linguagem
da idéias, o que implica em enunciar uma série de j uízos. O concei­
to sintetiza esses juízos numa nova unidade, diferente daquela que
se verificou na noção . Isto s ignifica que, sendo forma sintética de
pensamento, o conceito é, até por estrutura, mais complexo que as
formas q ue o antecederam : o juízo e a dedução .
O conceito não pode ser a forma mais simples e atrasada de
pensamento já pelo fato de sempre atuar como redução dos juízos.
Por isto o conceito mais simples é antecedido por alguns juízos e
deduções, além da experiência sensorial .
A d ialética tem como tarefa revelar o papel das formas de pen­
samento no processo de evolução deste no sentido da aquisição de
um conhecimento profundo, objetivo-verdadeiro do mundo exterior.
Daí ser ela diferente da lógica formal quanto ao enfoque das formas
de pensamento, da definição da célula fundamental e da forma ma­
dura, superior deste. O principal para a dialética não é decompor
o todo nas partes e deste modo revelar os blocos de que se cons­
titui esse todo mas mostrar de que elementos e de que modo surge
e se desenvolve esse todo, que papel esses elementos desempenham
na sua formação e desenvolvimento. Por isto deve-se considerar não o
conceito mas o juízo como sendo a célula fundamental do pensa­
mento .

3. CONCEITO, J UÍZO E DEDUÇÃO : FORMAS DO MOVIMENTO


DO PENSAMENTO NO SENTIDO DA VERDADE

Aristóteles foi um dos primeiros a analisar minuciosamente e a


fundo o juízo como form a de pensamento e definiu em grande me-

1 97
dida as sucessivas investigações científicas nesse campo. Contudo, a
teoria aristotélica do juízo é limitada, embora contenha muito de
verdadeiro, de materialista .
Ao analisar as formas de pensamento, Aristóteles distinguia do
significado das palavras sem unificação destas antes de tudo as for­
mas que são uma combinação de alguns conteúdos imagináveis. En­
tre as formas de pensamento que constituem uma combinação de
conteúdo imagináveis, o estagirita distinguia as formas em que não
há atitudes em face da realidade e as formas em que se concebe
forçosamente o ser ou não-ser do combinável. Em termos cogni­
tivos, ele reconhece como sendo a mais importante a última forma,
q ue contém duas modificações : 1 ) a forma de pensamento na qual
a atitude em face da realidade não atua sob o aspecto de afirmação
ou negação, logo n ão é nem verdade nem falsidade (problema,
prece, etc. ) ; 2) o pensamento como afirmação imediata ou negação,
q ue é necessariamente ou verdadeiro, ou falso .
Aristóteles chamava juízo só à última modificação da referida
forma de pensamento. Isto é compreensível, pois ele inseriu n a
classe de juízos a!Jenas u m círculo restrito de idéias. Achava que,
por conteúdo, o juízo é uma idéia acabada, relativa à inerência ou
não inerência de alguma coisa a alguma coisa, sendo por função ló­
gica a premissa ou a conclusão no silogismo. A forma de juízo é
a combinação do nome com o verbo ( do sujeito com o predicado) .
Achamos que é necessário entender por juízo um conteúdo mais
amplo do que aquele que Aristóteles lhe atribuía. Juízo é toda
idéia relativamente acabada, que reflete as coisas, os fenômenos do
mundo material, as propriedades, conexões e relações destes. Dado
que o juízo pode refletir corretamente a realidade ou deturpá-la, en­
tão é perfeitamente lícita a colocação do problema de sua veraci­
dade ou falsidade .
Através de seu conteúdo o juízo sempre estabelece algo, comu­
nica, motiva e interroga sobre os objetos, os fenômenos do mundo
·

material que nos interessam .


O juízo é um processo de apreensão do objeto pelo pensamen­
to. As diversas formas de juízo são elos particularmente, momentos
desse processo. Assim, fixa-se nuns juízos o conhecimento autêntico
já obtido sobre o objeto, em outros - probabilísticos - apenas se
subentende a existência ou inexistência de propriedades, indícios no
objeto, em terceiros - nos interrogatórios - faz-se uma inquirição
sobre a existência da propriedade, do indício da relação em um obje­
to qualquer .

1 98
Em todas as formas de juízo é comum apenas o fato de que
elas refletem, direta ou indiretamente, os fenômenos do mundo
material e as relações entre eles .
A forma de juízo foi historicamente elaborada como reflexo
da dialética . do mundo objetivo . A relação entre as partes do juízo
- o sujeito e o predicado - reflete a dialética da inter-relação do
singular e do universal no mundo objetivo. Essa dalética do juízo
j á foi observada por Hegel, para quem o juízo é a unidade do uni­
versal e do singular. "O sujeito, comparado ao objeto, pode, con­
se q üentemente, ser interpretado da maneira mais aproximada como
singular em face do universal ou igualmente como particular em face
do universal, ou como singular em face do particular, visto que eles
se opõem geralmente um ao outro apenas como mais definido e
·

mais universal"9 - escreveu Hegel .


Segundo Hegel, o juízo é construído de acordo com a forma :
o singular é o universal ( o sujeito é o predicado ) . Por um lado, o
singular é o universal ( o sujeito é o predicado ) , por outro, o sin­
gular não é o universal (o sujeito não é o predicado ) , pois cada
um deles é o que é (o singular é singular, o universal é universal )
e se distingue do outro. Essa unidade e diferença entre o singular e
o universal ( sujeito e predicado ) no juízo se constitui na fonte do
desenvolvimento, do movimento do juízo .
"Sujeito é predicado, eis o que se manifesta do modo mais apro­
ximado nô juízo ; mas dado que o predicado não deve ser aquilo
que o sujeito constitui, observa-se uma contradição que deve ser
resolvida, deve converter-se em algum resultado"10 - escreveu Hegel.
O marxismo-leninismo reelaborou de modo materialista a tese
hegeliana do juízo como unidade entre o singular e o universal.
Lênin obse rva que na oração (juízo ) há a dialética da relação entre
o singular e o universal, dialética que reflete a dialética objetiva nas
mesmas qualidades ( transformação do particular em geral, do ca­
sual em necessário, as transformações, irisaçõcs, a mútua conexão
dos contrários ) . Podemos tomar como exemplos de juízos nos quais
se estabelece a relação do singular com o universal, as sentenças : o
ouro é um metal ; o trigo é um vegetal gramíneo. Nesses juízos se
estabelece a existênci a de propriedades comuns nas coisas singu-

e Hegel. Obras, t. VI, p. 58. (Ed. em russo . )


10 Hegel. Obras, t. VI, p. 65. ( Ed . em russo . )

1 99
lares ou inclui-se o singular entre as classes das coisas . Essa relação
existe no mundo objetivo e o juízo a reflete .
No mundo objetivo existe não só a relação entre singular e uni­
versal como também outras formas de inter-relação : tudo está l i­
gado a tudo, cada coisa está direta ou indiretamente em ligação
com outra coisa qualquer. São essas multiformes relações mútuas
que se manifestam no juízo, na inter-relação sujeito-predicado .
A lei é sempre algo geral em relação a coisa singul ares isoladas,
razão porque no juízo voltado para o conhecimento da lei do mo-
.
vimento das coisas singulares o sujeito, que reflete essas coisas, é
singular em relação ao predicado, no qual se reflete a essência, a
lei do movimento dos fenômenos. Eis porque o reflexo da relação
entre o singular e o universal no juízo em forma de sujeito e de
predicado é determinante, expressa a tendência fundamental no de­
senvolvimento do juízo : movimento no sentido da apreensão dos
fenômenos, da lei.
Entre o sujeito· e o predicado do juízo a inter-relação é
complexa . Em primeiro lugar, existe, indubitavelmente, uma· uni­
dade entre eles, o predicado em certo sentido repete o objeto ; .
por isso todo juízo estabelece que o sujeito é predicado. Em segundo, \
o predicado, ao mesmo tempo, sempre difere do sujeito. En tre o su­
jeito e o predicado existe uma relação de unidade dialética, que
abrange tanto a identidade como a diferença : "O fato de a i d e n t i ­
dade conter diferença está expresso em cada sentença onde o pre­
dicado difere necessariamente do sujeito. O lírio é um vegetal, a rosa
é vermelha : aqui há no sujeito ou no predicado algo que não é
encoberto pelo sujeito ou o predicado . . . ;e evidente que a identida­
de consigo mesmo já tem como complemento necessário, desde o
início, a diferença face a todo o demais" i1 - escreveu Engles.
Se o juízo não constitui uma tautologia, então o predicado nel e
deve ser diferente d o sujeito, conter algo que n ão há 11 0 sujeito. O
predicado do juízo reflete aquilo que ex iste no objeto do juízo, mas
o juízo não reflete todo o objeto mas apenas alguma parte deste,
por isso cada novo juízo nos faz avançar cada vez mais no sentido
do conhecimento do objeto .
Sob a ampliação e o desenvolvimento do nosso conhecimen to
do objeto processa-se simultaneamente o desenvolvimento dos j uízos,
a transição de um a outro, mas não se pode conceber esse processo

n K. Marx e F. Engels. Obras, t. 20, pp. 529-530. ( Ed. em russo . )

200
corno o acréscimo mecânico de um novo termo ou conceito ao su­
jeito ou ao predicado .
Para esclarecer a essência do juízo e seu papel na interpretação
da re a l id ad e , para entender o reflexo de diversos aspectos e relações
das coisas do mundo e x terior na consciência do homem é de gran­
de i m por tânc ia a classificação dos juízos. Na história da lógica, como
se sabe, apresentaram-se diversas classificações dos juízos, as qu ai s
servem a d ete r m i n ad os fins lógicos. A divisão dos juízos segundo
o ca rát e r do sujeito, da cópula e do p redic a do, por exemplo, lan­
çada pela primeira vez ainda por Adstóteles, é indubitavelmente
impo rt a n t e sobretudo para a interpretação da estrutura do próprio
juízo e da dedução .
Mas esse p ri n c íp i o de classificação dos juízos não é único e
tem caráter limitado . Em pr im ei ro lugar, reduzia-se via de regra
esse princípio de classificação à simples enumeração de diversas
formas de j uízo ; indicavam-se as possíveis formas- de j uízo mas nem
se tentava es t ab ele cer relação entre eles. Em segundo, a divisão dos
juízos segundo o caráter do sujeito da c ópula e do predicado não
colocava o problema do desenvolvimento do juízo na orientação do
m o vim e nt o do nosso conhecimento partindo do fenômeno para n
essência, daí a dificuldade de resolver o problema do valor cogni­
tivo relativo dessa ou daqu el a forma de juízo. Embora até na classi­
ficação tradicional os juízos possam ser abordados do ponto de vista
do seu papel no processo de conhecimento, essa classificação, não
obstante, surgiu da necessidade da teoria da dedução e não se des­
tinava a esclarecer o papel d o juízo na evolução do conhecimento.
Hegel e a lógica dialética em geral não se p ropun h am a tare­
fa de construir um a cla s s ificação das formas de pensamento na con­
cepção anterior do significado desse termo como simples delimita­
ção dessas formas segundo as r ub ri c as ( ou rubricação, conforme He­
gel ) , dependendo d e s se ou d a q uel e indício. A descrição e cla s si f i­
cação de uma forma de j uízo segundo o princíp i o da coordenação
é t a ref a da lógica formal . He g el , porém, p ro c uro u mostrar o de­
s e n vo lv i m e n to d o j uízo e d ian t e disto examinar o valor cognitivo
de cada tipo de juízo . "Os diversos tipos de juízo devem ser não
como situados um ao lado do outro, não como possuidores de valor
ú n ico mas, ao cont rário, co mo uma série suce s s iva de degraus, e a
d ifere n ç a entre eles d ep en d e da importância lógica do pre d ica d o " 1·:i:
� escreveu Hegel .

22 Hegel. Obras, t. 1, p. 2 7 8 . (Ed. em russo . }

20 1
Os clássicos :dos . marxismo-leninismo apreciam altamente a tese
hegel iana do movimento do juízo . "Por maior que seja a aridez
que daqui possa dimanar e por mais arbitrária que à primeira vista
essa classificação·: possa parecer nesses ou naqueles pontos; mesmo
assim a veracidade interior e a necessidade desse agrupamento fi­
cará clara para todó aquele que estudar a fundo o desdobramento
genial desse te � a n'a · Grande L6gica . . . " 1 3 escreveu Engels.
-

. .
°É correta .a . �déia de Hegel de mostrar o desenvolvimento dos
j uízos, mas a sua· coucretização é insatisfatória numa série de luga­
res e sofre de sérios defeitos, entre os quais o principal é a interpre­
fação idealista da . essência do juízo e seu desenvolvimento .
Tomando como .ponto de partida tudo o que de positivo havia
na classificação hegeliana dos juízos, submetendo-a a uma radical
reelaboração materialista, Engels definiu as fases principais do de­
senvolvirnento do juízo .
.
éom.o escre ve EngCls, Ó que em Hegel era " . . . desenvolvimen­
to da forma de pe·ns·amento do juízo como tal, apresenta-se aqui
diante de nós como desenvolvimento dos n ossos conhecimentos teó­
ricos, jacentes em base empírica, atinentes à natureza do movi­
mentei em geral" L\ . A evolução do juízo se realiza não por um es­
quema irreal, construído independentemente do desenvolvimento real
do conhecirnerltO; mas sob a forma em que ela se desenrola no
processo teal de conhecimento científico. Não é o desenvolvimento
do conhecimento científico que deve subordinar-se ao esquema de
desenvolvimento do juízo, m as ·ªº contrário, é este esquema que
deve . construir-se à: base do conhecimento das vias de desenvolvi­
mento do pensamento em diversos setores da ciên c ia .

Como se sabe, no processo de conhecimento da realidade obje­


tivá . partimos da contemplação viva, sensorial, que nos propicia o
conhecimento dos objetos singulares, e remontamos ao conhecimen­
to do geral : da lei, da essência do fenômeno .
Em plena conformidade com essa orientação do processo real
de conhecimento, Engels divide todos os juízos em juízos da sin­
gularidade, particularidade e universalidade .

ia K. Marx e F. En gels. Obras, t. 20, p. 5 3 9 .


14 lbid.

202
No juízo da singularidade registra-se u:m fato qualquer, por exem ­
plo, "o atrito produz o calor" ; "elementos i solados são c ap azes de
desintegrar-se em componentes mais simples" .
O juízo da particularidade estabelece que ceita form a especial
de movimento da matéria revela a propriedade de transformar-se nou­
tra forma de movimento sob determinadas condições. Por exemplo :
"o m o vim en to mecânico se transforma em c alor" ; "todo um grupo
especial dos elementos mais pesados por nós conhecidos possui a
propriedade da radiatividade natural" . ·

No juízo da universalidade expressa-se a lei universal do mo­


vimento dos fenômenos : "toda forma de movimento da m atéria é
capaz de transformar-se em qualquer outra forma de movimento" ;
"sob determinadas condições cada elemento pode ser transformado
em qualquer outro elemento" .
Essa classificação dos juízos engloba todo o processo de m o­
vimento dos juízos : do conhecimento dos fen ômenos · ao conhecimen­
to da essência. A diferença da tradicional, a cl a ssificaç ão de Engels
estabelece entre os juízos n ão uma diferença formal mas uma
diferença de essência : diferentes juízos se encontram em diferentes
n í ve i s, deg rau s de conhecimento das leis da conexão dos fenômenos.
O conhecimento científico tem por finalidade o conhecimento
da essência do objeto, da lei do seu movimento e evolução. O co'­
nhecimento das leis é necessário ao homem para uma atividade prá­
tica bem sucedida .
O conh eci mento da lei, da essência dos fenômenos atua sob a
·
fo rm a de conceito, categorias. Lênin enfatizou reiteradamente a i d éia
de q ue o conceito genérico é reflexo da essêneia da lei da natu­
reza e da sociedade. O conceito15 se m anifest a não como momento
básico do conhecimento mas como resultado deste. A formação do
conceito é o resultado de um processo longo de conhecimento, o
resumo de determinada etapa do conhecimento, a e xp res são concen­
trada de um conhecimento anteriormente ad quiridp .

1� O termo "conceito" é empregado na l ó gi c a em dois sentidos :· no pri­


meiro, como reflexo do uni ve rs al e e s sen cial no objeto. .S justamente. ne sse
plano que ele atua como tip o especial de juízo. fm:ml!-· . especial de conheci­
men t o pretendente à ve r d a d e ; no segundo, o conceito é ab or d a d o ainda como
qualquer significado d o termo. Neste sentido ele atua como membro, parte
do juízo ( s uj e it o e pre d i c a do ) . No caso dado tr a t a- se do conceito não como
significado especial do termo mas como '
forma de apreensão da "essêiici'a" dos
· ' ·
fenômenos.
· ·

203
Em oposição ao idealismo, o materialismo dialético considera o
conceito uma forma original de reflexo dos objetos, das coisas do
mundo material e das leis do movimento destes. Os conceitos são
obj etivos por conteúdo. Até os mais abstratos entre eles têm os
seus análogos, os seus protótipos no mundo objetivo. O conceito
reflete o conteúdo que as coisas encerram .
Ao revelar a complexidade da atitude do conceito face ao obj e­
to, Engels escreveu : " . . . O conceito da coisa e a realidade desta
c:aminham juntos, à semelhança de dois assíntotas, aproximando-se
constantemente um do outro mas sem nunca coincidirem . Essa dife­
rença entre ambos é justamente a diferença em decorrência da qual
o conceito não é direita e imediatamente realidade e a real idade não
é conceito imediato dessa mesma realidade . Por ter o conceito
uma natureza essencial, ele, por conseguinte, não coincide direta
e prima facie com a realidade da qual só ele pode ser reruzido, e
"
por essa causa ele acaba sempre sendo mais que ficç ão . . . 1 0 •
Deste modo o conceito, por um lado, não é idêntico à reali­
dade e, por outro, . não é ficção em relação a ela e nessa ou na­
quela medida, desse ou daquele aspecto a incorpora ao seu con­
teúdo .
A peculi aridade do conceito enquanto forma de reflexo da t� a­
l idade reside antes de tudo na universalidade. Mas distinguir ape­
nas o geral ainda n ão esgota a essência do conceito enquanto forma
de representação da realidade. A noção do conceito como simples
fixação do geral é uma concepção sensualista limitada. No proces­
so de pensamento unificamos sob forma de conceito os objetos não
simplesmente pelo indício geral mas pela essência deles. O conceito
não reflete tudo no objeto, não reflete· todo o processo em toda a
sua n aturalidade mas as propriedades essenciais, os seus aspectos,
laços e relações a lei do movimento, da evolução do objeto. .S o re­
flexo da natureza universal deste. O conceito expressa traços da
abstração como o reflexo do fenômeno em "forma pura" ; oblitera-se
nele a casualidade da forma de manifestação desa ou daquela lei .
No O Capital Marx analisa a "mercadoria'', o "valor" e o "di­
nheiro" inicialmente em forma pura, o que lhe permite esclarecer
a essência desses fenômenos e interpretar com profundidade as re­
l ações de produção burguesa e outras, descobrir as leis econômicas
do seu desenvolvimento . Entretanto do fato de refletir-se o univer-

IG K . Marx e F. Engels. Obras, t. 39, p. 3 54.

204
sal sob a. forma de conceito em hipótese alguma pode-se deduzir
c1 ue no conceito perde-se toda ligação do universal com o singular.
A universal idade do conceito tem seu fundamento objetivo: a exis­
tência, no próprio mundo objetivo, de propriedades gerais, relações
das leis objetivas do mundo exterior.
En q uanto forma especial de juízo, o conceito não refle te ape­
nas o universal mas o u n i v e rsal em relação com o singular. Sob
e ss a ou aquela forma o s i n g u lar se reflete forçosamente no conceito,
embora sua o r i en t a çã o fundamental enquanto forma de pensamento
s ej a a de ref l e t i r o universal. O singular existe antes de tudo na
gênese do próprio conceito. Para formar um conceito, é necessá­
rio e s t u d a r uma in finidade de fenômenos, acontecimentos, coisas
singulares. Os clássicos do marxismo-leninismo enfatizam insistente­
mente a i déia de que, para deduzir as condições universais da pro­
d u ç ão , é necessário o estudo concreto de formas particulares de
pro dução. Como se pode obter um conceito da sociedade em geral,
do progresso em geral sem estu d ar concretamente nenhuma forma­
ção econ ómico-social? O singular ( as coisas, fenômenos, a conte c i ­
me ntos ) é o ponto de partida na formação do conceito.
A separação e n t r e o singular e o universal constitui uma das
pri ncipais fontes g no si o l ó g icas do idealismo e leva a q ue se separe
do mundo objetivo o conteúdo dos conceitos. S a b e- s e que no pro­
cesso de formação dos conceitos os estudiosos retomam o conhe­
c i mento do u n iversa l . O idealismo interpreta essa retomada como
�.utonom ia d o conceito, como sua independência face aos fenôme­
n o s singul a res .
. "A b i fu rcação do conhecimento do homem e as possibilidades
do i dealismo ( = rel igião ) já estão dadas n a abstração elemen tar ,
primeira l.'casa' em geral e casas particulares] .
O e n fm1ue, pela mente ( do homem ) , de uma coisa particular,
a có p i a ( = conc e ito ) desta não é um ato s i m p les , imediato, espe­
c u l a r - m ort o mas complexo, bifurcado, zigucza g ueforme, que com­
preende a possi b i l i d a d e de a fantas i a separar-se da vida ; mais ainda :
a p o s s i b i li d a de de transformação ( e ademais uma transformação im­

pcrceptív e l , i n i n tel igível para o homem) do conceito abstrato, da


i déia em fantasia ( in litzter lnstanz = deus ) . Isto porque até na ge­
n eral ização mais s i m p le s, na idéia geral mais elementar ('m esa' em
geral ) luí certa fatia de fantasia" 17 - escreveu Lênin.

i1 V. I. Lênin. Obras cqmpletas, t. 29, p. 3 30.

205
N ão se pode entender a essência do conceito sem examinar o
processo de sua formação e desenvolvimento. O problema da for­
mação e desenvolvimento dos conceitos é central não só na doutrina
do conceito mas também na lógica dialética em geral .
Na teoria que dominou nos séculos XVII e XVIII, todo o
processo de abstração ( formação de conceitos ) se reduzia ao des­
membramento do objeto em indícios (propriedades ) particulares,
à comparação dos indícios das coisas e a distinção dos comuns ou
semelhantes entre eles .
Assim, por exemplo, John Locke retrata em Ensaios sobre o
entendimento humano o processo de formação do conceito. À per­
gunta : como formou-se o conceito "animal'', ele responde :
"Observando que diversas coisas, que são diferentes de sua
idéia 'homem' e por isto não se adequam a esse nome, assim
mesmo têm certas q ualidades semelhantes ao homem, conservam
apenas essas qualidades, unificam-nas numa idéia e novamente, por
esse caminho, obtêm outra idéia mais geral ; após dar-lhe nome,
elas obtêm um termo de volume mais amplo. Forma-se essa nova
idéia n ão do acréscimo de algo novo, mas, como antes, somente
por meio da exclusão do aspecto exterior de algumas outras pro­
priedades designadas pela palavra 'homem', conservando-se, ade­
mais, só o corpo com vida, sentidos e movimento espontâneo ; tudo
isso é abrangido pela pal avra 'animais'"18 •
Locke não tinha a menor dúvida de que no processo de for­
mação de conceitos verifica-se apenas uma redução dos indícios .
É evidente que essa teoria da abstração descobriu alguns aspec­
tos verificados na formação dos conceitos ( a formação de con­
ceitos compreende a comparação de objetos, a localização do ge­
ral , a abstração de certos aspectos do objeto ) mas absolutizou
esses aspectos, simplificou ao extremo esse complexo processo .
A teoria da formação dos conceitos elaborada por Locke é
típica do metafísico e do sensualista limitado, que teme ver a abs­
tração ultrapassando os limites daquilo q ue é dado imediatamente
na percepção . Para Locke, a abstração é uma forma peculiar de
conhecimento sensorial ( experiência reduzida ) .
Aplicar de modo conseqüente essa teoria metafísica e empírica
da abstração implica em última análise em renunciar ao materia­
lismo. Berkeley o confirmou na prática, ao lançar a "teoria da

is J . Locke. Obras filosóficas escolh idas, t. 1 , M oscou, 1 9 60, p. 4 1 1 .

206
substituição" ou "representação". Segundo essa teoria, não existem
conceitos e idéias gerais. Existe apenas uma idéia particular isolada
( noção ) , que, ao substituir todas as outras idéias particulares desse
gênero, é considerada como uma espécie de idéia geral. Quando o
geômetra quer mostrar o modo de dividir uma linha em duas par­
tes diferentes, ele traça uma linha qual q uer, que representa todas as
linhas particulares ; " . . . o que sobre ela é demonstrado, é demons­
trado sobre todas as linhas, ou, por outras palavras, acerca da li­
nha em geral. E como essa linha particular se torna geral empre­
gada como sinal, a denominação 'linha', sendo por si mesma par­
ticular, toma-se geral através do emprego desta como sinal"111 •
Não há conceitos, há apenas idéias particulares ( noções ) em­
pregáveis como sinais para outras noções congêneres. Logo, tam­
bém não existe a concepção de "matéria" como reflexo da reali­
dade objetiva ; existem apenas sensações isoladas, percepções às
vezes dotadas de significado geral.
Do ponto de vista dessa teoria, erguer-se ao alto nível da es­
cada das abstrações significa perder quase toda conexão com o
objeto. Neste caso os conceitos se tornam realmente supérfluos,
convertem-se em palavras, em sinais, o que se acha em plena har­
monia com os pontos de vista do empirismo estreito sobre a essên­
cia do conceito .
Outra teoria da formação do conceito foi apresentada pelo fi­
lósofo alemão E. Cassirer, representante da neokantista Escola de
Marburgo, o qual criticou a tradicional teoria da abstração por
seu materialismo : sob a bandeira do combate à metafísica, Cassi­
rer baniu da teoria da formação do conceito o objeto sensorialmen­
te dado e limpou da lógica o materialismo .

Cassirer negava a existência do objeto antes do conhecimento,


tomando-o "não como a substância jacente no lado oposto de todo
conhecimento mas objeto que se forma numa experiência progres­
"
siva . . . 2 0 •
A dialética forma as teses metodológicas fundamentais que de­
terminam o processo de formação e desenvolvimento dos concei­
tos. Ela estabelece, antes de tudo, que a fonte objetiva da forma­
ção e desenvolvimento dos conceitos é o mundo real, sendo a base

11> G. Berkeley. Tratado dos princípios do co11/iecim e11 to h 11ma110. S. Pe­


tersburgo, 1 905, p. 44.
2o E. Cassirer. Co111iecimento e realidade. S. Petersburbo, 1 9 1 2, p. 3 84.

207
material constituída pela prática histórico-social dos homens. É jus­
tamente do mundo objetivo que todos os conceitos extraem o seu
conteúdo .
A atividade prática do homem antecede à formação dos con­
ceitos. Os conceitos dos objetos da realidade e dos instrumentos de
trabalho surgem à base da múltipla repetição das ações práticas
sobre os objetos mediante os instrumentos de trabalho . Antes de
dar uma denominação especial, genérica aos objetos, de reuni-los
em determinada classe, as pessoas necessitam conhecer a capacida­
de desses objetos para lhes satisfazer as necessidades. As pessoas
devem ser capazes de distinguir por experiência uns objetos de ou­
tros objetos do mundo exterior .
A mente humana fixa sua atenção nos objetos e seus aspectos
q u e na prática são úteis e necessários às pessoas . A princípio os
objetos do mundo exterior atuam como veículos de satisfação das
n ecessidades humanas, depois, visando já aos fins do sucessivo do­
mínio desses objetos as pessoas os apreendem e formam conceitos
sobre eles. A prática, a atividade so cial do homem determina a
essencialidade ou não-essencialidade desse ou daquele aspecto do
objeto.
Até a própria capacidade de abstração surge das necessidades
da prática social do homem e é o resultado da longa evolução hu­
mana .
"Os dez dedos nos quais as pessoas aprenderam a contar, i. e . ,
a produzir a primeira operação aritmética são tudo o qu e s e queira
menos produto da livre criação da razão. Para contar é necess á rio
ter não só os objetos suscetíveis de contagem mas também possuir
já a capacidade de, ao examinar esses objetos, abstrair todas as
suas demais propriedades, exceto o número, e essa capacidade é o
resultado de um longo desenvolvimento histórico baseado na expe­
riência"�1 - escreveu Engels .
Os conceitos da ciência surgem da necessidade · da atividade
prática dos homens; a limitação da prática histórico-social deter­
mina a limitação dos nossos conceitos sobre o mundo exterior. As­
sim, os conceitos "termogenia", "flogisto", "éter", surgiram como
reflexo dos fenômenos do mundo exte rior, mas um reflexo que con­
tém muito de ilusório. Esse ilusório se deve às limitações da prá­
tica do homem na quele período. O desenvolvimento da prática, so-

21 K. Marx e F. Engels. Obras, t. 20, p. 37.

208
bretudo do conhecimento científico voltado para uma bem suce­
dida ação prática sobre a natureza, levou à substituição desses con­
ceitos por outros que refletem com mais precisão o mundo exterior.
Mas nem todos os conceitos da ciência são gerados imediata­
mente pelas necessidades da atividade produtiva do homem. Mui­
tos deles, os matemáticos, por exemplo, surgem para satisfazer às
necessidades do desenvolvimento de outras ciências ( mecânica, fí­
s ica, etc . ) ; alguns são gerados pelas necessidades internas da pró­
pria ciência como meio do sucessivo desenvolvimento desta. Em
suma, porém, todo o sistema de conceitos dessa ou daquela ciência
é gerado pela prática multiforme do homem .
O processo de farmação de c o n c e i tos à base da prática se
c ons titui de muitos componentes. Nele cabe certa posição a todas
a s formas de atividade pensante do homem .

Como j á dissemos, os dados d a contemplação viva : sensações,


percepções, n oç ões constituem um ponto de partida na formação
,

do conceito. Os conceitos generalizam os dados da experiência e


sem a acumulação de certo material empírico n ão se pode formar
nenhum conceito. Mas nem de longe todos os conceitos surgem
i mediatamente das sensações e percepções. Muitos conceitos novos
se formam também à base dos concei tos anteriores. Assim, o con­
ceito de massa na física surgiu com base na solução da contradi­
ção descoberta no conceito de peso. No entanto cada novo concei­
to não é uma simples totalidade, um crescimento q uantitativo, a
repetição e multipl icação dos dados dos sentidos ( como imagina­
vam os empíricos ) , mas o contínuo d esenvolvimento desses dados,
desenvolvimento q ue compreende a transformação em nova q uali­
dade .
Na formação dos conceitos são de grande importância o ex­
perimento, a simplificação teórica ( a abstração de circunstâncias
n ão-essenciais, exteriores ao objeto, q ue obscurecem a essência des­
te ) e outras operações do pensamento. Nas ciências em que o ex­
perimento é impossível , usam-se ilustrações abstratas, represen­
tação mental das mudanças das dependências no objeto, abstração
isol ada, todas a s suposições possíveis, construção de esquema, de
gráficos, descrição matemática dos fenômenos. Aqui todo o acer­
vo do pensamento lógico está subordinado à tarefa de formação
dos conceitos . Cabe à análise e à síntese importante posição nesse
processo .
O marxismo exige q ue se considere tudo, inclusive os concei­
tos, em relação com outros fenômenos e a experiência concreta da
história. O pensamento não estaria relacionado com o ser, não

209
poderia refletir as leis do movimento deste se ele mesmo n ão se de­
senvolvesse . O movimento da realidade pode ser representado so­
mente nos conceitos em desenvolvimento .
" . . . Os conceitos humanos n ão são imóveis mas estão em eter­
no movimento, se transformam uns nos outros, desembocam uns
nos outros, sem isso eles não refletem a vida ativa. A análise dos
conceitos, o estudo deles, 'a arte de operar com eles' ( Engels )
exige sempre o estudo do movimento dos conceitos, da relação en­
tre eles, das suas transformações mútuas"22 - escreveu Lênin.
A mudança dos conceitos ocorre como resultado do desenvol­
vimento do nosso conhecimento atinente aos fenômenos do mundo
exterior à base da generalização da nova prática ou como resultado
da mudança da própria realidade representada no conceito. Nas
ciências naturais a mudança dos conceitos ocorre, via de regra,
em decorrência da mudança do nosso conhecimento do mundo ex­
terior e seu adentramento na essência do fenômeno. Assim, o con­
ceito de "massa" mudou de Newton aos nossos dias não porque
na época de Newton o corpo possuísse uma massa e hoje outra
mas porque mudou o nosso conhecimento sobre a estrutura da
matéria e suas propriedades .
Os conceitos relativos aos fenômenos da vida social mudam
tanto em face da mudança dos nossos conhecimentos atinentes aos
fenômenos sociais como em decorrência das mudanças essenciais
que ocorrem na vida social, da substituição de umas leis econô­
micas do desenvolvimento da sociedade por outras .
O processo de desenvolvimento dos conceitos segue várias di­
reções : 1 ) surgem novos conceitos, 2 ) aprofundam-se os velhos,
concretizam-se e atingem um nível mais elevado de abstração.
Na filosofia burguesa atual a metafísica se manifesta não no
fato de negar-se qualquer desenvolvimento, qualq uer movimento
dos conceitos ( essa metafísica trivial está caducando ) , mas na in­
terpretação deturpada que se faz desse desenvolvimento. O movi­
mento, a flexibilidade dos conceitos pode ser interpretado de modo
tanto dialético como sofistico. "Flexibilidade multilateral, universal dos
conceitos, flexibilidade que chega à identidade dos contrários : eis
em que consiste a questão. Aplicada subjetivamente, essa fle­
xibilidade = ecletismo e sofística. Aplicada objetivamente, i. e., refle­
tindo a multilateralidade do processo material e sua unidade, essa

22 V. 1. Lênin. Obras completas, t. 29, pp. 226-227.

210
flexibilidade é a dialética, é o reflexo correto do eterno desenvol­
vimento do mundo"23 - escreveu Lênin. Se a metafísica anterior
simplesmente separava umas das outras tanto as coisas como as
suas representações mentais (conceitos ) , criava um abismo, um
limite intransponível entre elas, a metafísica atual ( sofística e ecle­
tismo ) oblitera inteiramente os limites tanto entre as coisas como
entre os conceitos .
Se antes a metafísica trivial achava que os objetos e conceitos
não mudam em essência, já a metafísica atual ( sofística) reco­
nhece o movimento dos conceitos mas o separa da fonte objetiva,
do movimento do mundo material . O movimento dos conceitos é
visto em si mesmo fora de relação com o movimento dos objetos.
Neste caso o movimento dos conceitos se converte em arbítrio do
sujeito, vale dizer, vulgariza-se, perde sua importância e fim.
A interpretação subjetiva, sofística da flexibilidade dos con­
ceitos é característica da gnosiologia do oportunismo, o qual, te­
mendo a clareza e a precisão do pensamento, trata a flexibilidade
dos conceitos como mudança arbitrária destes .
A flexibilidade, â mutabilidade dos conceitos é reflexo da mu­
tabilidade e multilateralidade do mundo material. Assim, Lênin
mostra, em Materialismo e empiriocriticismo, que a mudança dos
conceitos da física é determinada pela aspiração da ciência a apre­
ender, à base das necessidades e generalização da nova prática,
mais a fundo e multilateralmente a estrutura da matéria e as suas
propriedades físicas . Os conceitos da nova física não surgiram tio
capricho dos físicos ; são mais objetivos que os conceitos da física
clássica .
No método dialético a flexibilidade dos conceitos combina com
a precisão, com uma relativa estabilidade e clareza deles. Os con­
ceitos estão em indissolúvel inter-relação ; a diferença entre concei­
tos isolados é relativa, sob determinadas condições um conceito se
converte em outro mas mesmo assim essa diferença existe, reflete
a estabilidade relativa e a precisão qualitativa dos objetos, dos
fenômenos da realidade .
"Cada conceito está em certa relação, em determinada cone­
xão com todos os demais" 24 escreveu Lênin. As relações entre
-

os conceitos se revelam nas noções.

23 V. 1. Lênin. Obras completas, t. 29, p. 99 .


u V. I. Lênin. Obras completas, t. 29, p. 1 79 .

21 1
As noções têm importância muito grande na ciência caso sejam
tomadas não separadamente de todo o conhecimento restante mas
em relação com ele, caso sejam consideradas um resumo breve de
uma análise profunda do ser do desenvolvimento do fenômeno .
Caso se conceda às noções mais importância do que elas têm em
realidade, caso se substituam a análise profunda da essência dos fc­
nômenos por definições pobres, então as noções deixam de ser um
veículo de conhecimento da realidade .
Nunca se deve es q uecer o caráter limitado de t o da noção re­
lacionada com o aspecto concreto da realidade, com as condições
históricas concretas e que constitui uma expressão abreviada des­
sas condições .
No processo de surgimento e desenvolvimento dos conceitos
cabe enorme papel à dedução. Nesta é onde melhor se pode obser­
var o caráter mediato, criador do pensamento humano . Grande
parte de todo o conhecimento existente tem caráter dedutivo, i. e., é
obtida no processo de dedução .
Como já tivemos oportun idade de observar, o estudo da de­
dução - das regras e formas de extrair um juízo de outros - cons­
titui tarefa especial da lógica formal . A di alética não deve subs­
tituir a lógica formal nessa questão. O campo da dialética é o es­
tudo da natureza gnosiológica das deduções, sua função no movi­
mento do pensamento no sentido da verdade, do papel da de­
dução na formação e desenvolvimento das teorias científicas .
Na solução desse importante problema não se pode assum ir
o caminho falso e estéril d a criação, da construção de silogismos
dialéticos especiais ou formas de deduções. Na teoria d a dedução
a tarefa consiste em, ao analisar o processo real , vivo, concreto de
conhecimento, tomar aquelas formas de dedução que nele se veri­
ficam, esclarecer a essência, o lugar e a relação delas quer entre
s i , q uer com outras formas de conhecimento. Neste caso a d ialé­
tica materialista pode fazer uma interpretação científica tanto das
formas simples de dedução quanto das complexas, mostrando o mo­
vimento do simples ao complexo .
A dedução é um processo de mediação e extração de juízos
dos quais ela é sistema. Este sistema consiste de três gê neros de
conhecimento : o básico ( que contém deduções nas premissas ) , o
dedutivo (que se obtém como resultado do processo de dedução )
e o argüente ( o q ue determina a possibilidade de transição das
premissas à conclusão ) .
Como conhecimento argüente atuam os axiomas, regras, defi­
nições, leis e outras de caráter autêntico ou probabilístico. O co-

212
nhecimento argüente determina a forma de dedução, o caráter da
transição das premissas à conclusão e é sempre geral em relação ao
conhecimento q ue nas premissas contém também conclusões. Por
isto o processo de dedução sempre se realiza através do geral e
com fundamento neste, com base no conhecimento da relação de
lei dos fenômenos .
A existência de leis objetivas na natureza e n a sociedade é a
base da possibilidade do processo de dedução, da transição do co­
nhecido ao desconhecido . Com base no conhecimento dessas leis
conclui-se a transição tanto do particular ao geral como do geral
ao particular, bem como do conhecimento de um grau de generali­
dade ao conhecimento do mesmo grau de generalidade .
A autonomia, independência relativa da justeza da forma de
dedução face à veracidade das premissas tem aspecto positivo ; ela
dá à dedução caráter ativo, criador. Para se chegar à verdade po­
dem-se fazer deduções corretas por forma tanto de premissas ver­
dadeiras como de premissas falsas. A dedução não seria força ativa
na obtenção e demonstração da verdade se pudesse concluir somente
de teses cuja veracidade fosse antecipadamente conhecida. Sem es­
tar relacionada com um conteúdo qual quer das premissas, a forma
de dedução pode incorporar conteúdo variado. Pode ser corretil
sob um pensamento rel ativo não só a uma relação concreta qual­
c1 uer entre dois objetos, mas também aos objetos em geral, inde­
pendentemente de qualquer concreticidade .
A forma de dedução está relacionada com a prática, fato já
observado por Hegel. Mas a dialética materialista não extrai a prá­
tica da dedução como o fazia Hegel, mas, ao contrário, extrai a
dedução da prática .
A dedução é elemento indispensável do caráter criativo do
trabalho humano. O trabalho não pode passar sem a . dedução ; o de­
senvolvimento do trabalho, a prática em geral é o desenvolvimento
também da dedução .
No processo de trabalho o homem produz, sob as condições
existentes e com os meios existentes, coisa que não existem na na­
tureza. Como indicava Marx, o trabalho vivo, após abranger as
coisas, é como se as ressuscitasse, transformando-as de valores pos­
síveis em valores reais de consumo. Como resultado do trabalho
as coisas existentes assumem funções que lhes correspondem à idéia
e à designação, são consumidas racionalmente como elementos
destinados à criação de novos produtos, novos objetos. Nisto con­
siste o caráter criativo do trabalho humano, caráter que difere ra­
dicalmente da atividade produtiva semelhante do animal .

21 3
No entanto, antes de realizar-se n a realidade, o processo de
produção de objetos se realiza inicialmente na cabeça do operário,
mentalmente. A peculiaridade específica da atividade produtiva do
homem consiste em que, em sua consciência, j á preexiste ao início
do trabalho uma espécie de resultado pronto desse trabalho. O ho­
mem abrange mentalmente os meios de produção e o processo de
sua transformação em produto, i . e . , produz mentalmente todo o
processo de produção do início ao fim, dos meios iniciais de produ­
ção ao produto final do trabalho. Livre mas não arbitrariamente,
apelando para os meios de produção, o homem transforma especu­
l ativamente o o bj eto de trabalho no P.�oduto que lhe é necessário.
Esse processo de produção ideal, mental do novo objeto partindo
dos meios de produção existentes, não é mais que a dedução .
Quando um cientista encontra um objeto qualquer da nature­
za, estabelece por meio de deduções a relação desse objeto com as
condições de sua existência, valendo-se para tanto de toda a e xpe­
riência anterior, de todo o conhecimento de q ue dispõe. Toda com­
preensão é uma dedução mental de uns fenômenos a p arti r de ou­
tros, todo descobrimento científico se obtém como resultado da
dedução feita de conhecimentos já obtidos, de fenômenos observa­
dos e experimentos realizados .
A atividade prática não só exige e gera o processo de dedução
como ainda serve de critério de sua veracidade. Teremos deduzido
teoricamente, especulativamente, produzido essa ou aquela coisa a
partir das condições de sua existência? A resposta a essa pergunta
pode ser dada somente pela prática, pela produção real, prá ti ca da
coisa, do fenômeno a partir das condições de sua existência. A jus­
teza da nossa concepção de dado fenômeno da natureza é demons­
trada pelo fato de que nós "mesmos o produzimos, o extraímos de
sua condições e ainda o fo rçamo s a servir aos nossos obje ti vos . . . "25•
Por meio da dedução reproduzimos idealmente, mentalmente, os
processos que nos são inacessíveis na prát i ca imediata e acompanha­
mos o seu desenrolar. Só quando conseguimos c onfirmar experimen­
talmente alguns elos da complexa cadeia de deduções é que nos con­
vencemos da justeza do quadro ideal, mental, da realidade por nós
criado . Deste modo, não só a prática gera a dedução como a de­
dução suscita a necessidade da prática, dos experimentos e ob s e r­
vações.

2s K. M arx e F. Engels. Obras, t. 2 1 , p. 284.

2 14
A elucidação do lugar da dedução na atividade prática do ho­
mem permite resolver corretamente o problema do seu valor cogni­
t ivo, do caráter do conhecimento dedutivo .
Vários lógicos consideram a dedução em geral e o silogismo em
particular como um processo puramente analítico, que os concluir-se
não traz nenhum conhecimento novo em comparação com as pre­
missas A dedução, raciocinam eles, é apenas a elucidação do co­
.

n hecimento existente e não a aquisição de um novo conhecimento .


Como escreveu S Gevons, " . . . a dedução nada mais faz senão elu­
.

cidar e desenvolver o conhecimento contido em certas premissas e


fatos . No pensamento dedutivo ou no indutivo nada podemos acres­
centar flº nosso conhecimento encerrado em si, que parece o conhe­
cimento contido num livro não-lido ou numa carta lacrada"20•
Na realidade, a dedução não seria força ativa caso se l imitasse
à análise e explicação do conteúdo da experiência imediata exis­
tente .
Entre os conhecimentos básico, dedutivo e argüente existe na
dedução uma unidade muito complexa e interdependência. Não há
dúvida de que a conclusão na dedução não é arbitrária, tem seu
fundamento suficiente nas premissas e no conhecimento que funda­
menta a transição das premissas à conclusão . Por isso, indiscuti­
velmente, existe uma relação, uma unidade entre as teses basilares e
a conclusão. A conclusão deve dimanar das premissas à base de
certos princípios e regras. Mas a par dessa unidade, dessa relação,
existe também a diferença, a novidade, o desenvolvimento do co­
nhecimento contido nas premissas. Essa novidade é bastante eviden­
te na indução incompleta, onde a conclusão se estende aos objetos
c fenômenos não-investigados, na analogia, onde se conclui sobre

a existência, no obj eto, de um indício ou propriedade que não estava

estabelecido nas premissas . Mas ela não é menos evidente na de­


dução, em outras formas de dedução onde a conclusão deriva ne­
cessariamente da premissa .
A novidade do conhecimento em qualquer dedução surge à
base da síntese. Nela se unifica aquilo que estava separado antes
do processo de dedução .
Ao sintetizar o conhecimento obtido em tempos diferentes e de
diversos modos, obtém-se por meio da dedução aquilo que antes se
i gnorava, ou seja, um conhecimento efetivamente novo. Logo, a

2a S . Gevons. F1111damentos da ciênâa. S. Petersburgo, 1 8 8 1 , p. 1 1 8.

215
essência da dedução é constituída pela síntese e não pela análise do
conhecimento antes conhecido .
Se a dedução não possibilitasse a obtenção de um n ovo conhe­
cimento, nunca conseguiríamos definir, por exemplo, a distância da
Terra a outros corpos celestes, não conheceríamos a composição das
estrel as, j amais poderíamos resolver o problema da existênci a de
vida em outros planetas, etc., ou seja, a ciência seria geral mente im­
possível . N ão se poderia ascender do conhecimento de uns fatos a o
conhecimento de outros e dos fatos ao conhecimento das leis do
mundo exterior, caso as nossas deduções empregadas nesse processo
não propiciassem um novo conhecimento .
Desde os primórdios do surgimento da doutrina das formas de
pensamento definiu-se na teoria da dedução um defeito de i mpor­
tância capital : o abismo metafísico entre u m tipo de dedução e ou­
tro. Esse abismo já se delineara em Aristóteles, para q uem, em
verdade, o único método seguro de a q uisição de conhecimento era
o silogismo, q ue ele mesmo identificava às vezes com a demonstração
em geral. Foi justamente por isso q ue ele elaborou do modo mais
profundo, pleno e multilateral a doutrina do silogismo, q ue cons­
titui o foco de todos os seus estudos lógicos .
A doutrina da indução surgiu bem mais tarde. Seu surgi mento
está imediatamente relacionado com o n ascimento e evolução das
ciências naturais que principiam n a segunda metade do século XV .
As ciências naturais surgiram no período do n ascimento do feuda­
lismo e da formação das novas relações de produção burguesas . A
prática do desenvolvimento do capitalismo e da técnica de prod u­
ção exigia o desenvolvimento dos conhecimentos científicos n aturais :
em primeiro lugar porq ue o estudo das diversas propriedades dos
corpos, fenômenos da n atureza e formas de sua manifestação é in­
dispensável para o aperfeiçoamento da técnica de produção, e, e m
segundo, os conhecimentos científicos naturais ajudavam à burgue­
sia a lutar contra a ideologia do feudalismo e a igreja, contra o
predomín io das concepções religiosas do mundo q ue freavam o de­
senvolvimento da produção .
Na filosofia da Idade Moderna colocava-se a elaboração dos
problemas do lugar e do papel da indução no conhecimento em re­
lação direta com a procura de um novo método de pensamento que
ajudasse ativamente o homem a assimilar os objetos do mundo ma­
terial, conseguir seu domínio sobre os fenômenos da n atureza . Essa
relação da doutrina das formas de dedução em geral e de indução
em particular com os problemas da elaboração de u m novo método
de pensamento que ultrapassasse os limites do dogmatismo esco-

216
lástico determinava o caráter da concepção da indução como o mais
imp o rt a n te componente de tal método. Mas dado que a doutrina da
indução s u rgiu no p erío do de domin a ção da metafísica n a ciência
e na f i l o s o f i a , a in dução foi incorretamente int e rpretada desde o
i n íc i o , isol ada de outras form a s d e d e duç ão .
Os m aiore s naturalistas e filósofos da Idade Moderna se dedi­
caram à el ab o r a çã o da doutrina da induç ão. E seria grande i n j us­
tiça histórica diminuir o p ape l por eles d es e mp e n ha n do no desen­
v o l vi m en t o da l ógi c a da Idad e Mod e rn a , sobretudo o pap el de ci­
entistas como Leonardo da Vinci e Galileo Galilei, que t enta r am
assimilar as leis do processo de conhecimento da natureza, desco­
brir o caminho do movimento de fatos isolados ao con h e ci men t o das
leis d a natureza. Esses p e nsadores d is t i nguiam antes de t udo dois ·

m o m entos na a q u i s ição do conhecimento verdadeiro, ou sej a , o ex­


peri mento e a m a temá t ica . A ciência verdadeira se baseia n o expe­
rimento min uciosamente colocado e v erif i c a do e na dupla obser­
vação : do experimento m e d i an t e conclu sões verdadeiras ela cami­
nha para o c o n he ci men t o da l ei. Dado q ue se d e scob ri ra m leis da
n atureza tão simples como as leis mecânicas do movimento dos
corpos, que permitem am pla elaboração matemática destes, promo­
veu-se à c a t egoria de uni v e rs a l o método matemático de p e s qui s a .
E Leon a r d o da Vinci escreveu : "Não h á nenhuma autenticidade nas
ciências ond e n ão se pode a pl ic ar nenhuma ciência matemática nem
n a q uilo que n ã o tem relação com a matemática"27 • .
A i n d u çã o era parte componente do método de i n v est i gaçã o
científica de Hegel . Pa r ti n do d a ex p er i ênci a , ele formulava as teses
g e rais das quais d e d uzia novos fatos particulares. A ve ri ficaç ão
destes através de novas observações co n fi rm ava a v er a ci d ad e das
teses gerais an t e ri orm ente formuladas . O m étodo científico de i n ­
vest i gaçã o de Heg el incorporava, deste modo, a indução e a dedu- ·

ção em sua unidade.


Quanto à doutrina baconiana da dedução , esta se vol ta, sobre­
t u do na c h a m a d a parte d e st rutiv a, c ríti ca , contra a i n terp retaç ão es­
colástica do si l ogismo . Bacon se propõe como o bj et ivo a criação de
um método especial de pensamento a t ravés do qu al s ej a po s s ív el
atingir fins como o prolongamento da vida e o rejuve n e s ci m ento do
homem , a transfo rmação de uns corpos em out ro s , a criaç ão de no-

21 Leonardo da Vinci. Obras escolhidas em dois volumes, t. 1 , Lenin­


grado, 1 93 5, pp. 67-68 . (Ed. em russo . )

217
vas espécies vegetais e animais, o domínio do ar e do céu. As exigên­
cias apresentadas por Bacon à lógica correspondiam ao espírito da
época .
A doutrina baconiana da indução surgiu como método de for­
m ação de conceitos sólidos. Na colocação geral dos problemas essa
doutrina tem muito de verdadeiro : a indução deve apoiar-se no
maior número possível de fatos minuciosamente estudados e colo­
cados em certa ordem, no processo de dedução indutiva não se pode
apresentar a generalização usando procedimentos de delimitação e
exclusão .
O lado forte da doutrina baconiana da dedução é a ênfase q ue
nel a se dá ao imenso papel da observação, do experimento. Se na
lógica escolástica afirmava-se, por exemplo, q ue Kay é mortal por­
q ue o homem é mortal, n a lógica de Bacon, segundo justa obser­
vação de Hertzen, passou-se a demonstrar com afinco o oposto, ou
seja, q ue o homem é mortal porq ue Kay é mortal . Na indução ba­
coniana o evento empírico tornou-se a premissa primeira e princi­
p a l da dedução .
René Descartes, como se sabe, construiu sua teoria do conhe­
ci mento à base do reconhecimento do papel decisivo da intuição e
dedução enquanto os dois meios mais seguros de atingir o conheci­
mento da q uilo além do que a inteligência nada pode permitir. São
seguras apenas a intuição e a dedução ; todo o restante é suspeito e
está sujeito a equívocos. Além do mais a intuição é mais segura q ue
a dedução .
A dedução serve para se extrair necessariamente alguma coisa
de algo plenamente conhecido fidedignamente. A dedução de uma
tese a partir de outra se realiza justamente à base e por meio da
intu ição. No método cartesiano, o experimento e a indução desem­
pen ham papel secundário .
Assim se formaram duas tendências que se excluem mutuamen­
te : uma enfatizava demasiadamente o papel da experiêhcia e da in­
dução ignorando a dedução, a outra estava relacionada com o re­
conhecimento do papel decisivo da intuição e da dedução. Uma to­
mqva como arq uétipo da ciência as ciências naturais experimentais,
fixándo nelas apenas um aspecto ; a outra tomava como ideal da
c i ê n cia a matemática, que n ão necessitaria de experimento nem de
in dução, construindo-se exclusivamente na intuição e na dedução.
Na história da filosofia, coube a Hegel a primeira tentativa
séria de superar o d ivórcio metafísico entre a indução e a dedução.
A teoria hegeliana da dedução teve como momento positivo o em-

21 8 ·
penho em descobrir a inter-relação, o movimento das formas de de­
dução, definindo-lhes o valor cognitivo. Para Hegel o mais impor­
tante era fixar as transições de uma forma de dedução a outra, da
dedução à indução e desta novamente à dedução por meio da ana­
logia, o que foi observado por Lênin28 •
No entanto foi a filosofia marxista que superou com mais ple­
nitude e profundidade a interpretação metafísica da inter-relação da
indução e dedução. Os fundadores do marxismo mostraram com
toda clareza e espírito científico o lugar e a importância de cada
um desses tipos de dedução para o conhecimento .
Ao criticar, por exemplo, os todo-indutivistas, Engels observa
que a indução n ão é um método impecável de dedução. As dedu­
ções a que se chega por meio da indução são problemáticas por
caráter e necessitam de verificação . A prática da vida real, o desen­
volvimento da ciência torna precisos, muda as conclusões obtidas
por via indutiva. "Se a indução fosse realmente tão impecável , de
onde então viriam as revoluções que derrocam celeremente umas
às outras nas cl assificações do mundo orgânico? Ora, elas são o
produto mais autêntico da indução e mesmo assim destroem uma às
ou tras " 2 9-escreveu Engels.
Pode-se citar um número infinito de exemplos q ue mostram
como a dedução obtida por via indutiva resultou inconsistente .
As verdades científicas autênticas podem ser encontradas so­
mente através da interação da indução, dedução e prática. No pro­
cesso de pensamento a indução e a dedução estão em constante in­
teração : "A indução e a dedução estão relacionadas entre si de modo
tão necessário quanto a análise e a síntese. Ao invés de pôr unila­
teral mente uma delas nas nuvens à custa da outra, é necessário pro­
curar aplicar cada uma em seu lugar, o que pode ser conseguido
somente se n ão perdermos de vista a relação entre elas, a mútua com­
plemen tação de uma à outra"ªº .
Os clássicos do marxismo-leninismo n ão só proclamaram teo­
ricamente a unidade entre a indução e a dedução como na prática,

28 V. 1. Lên i n escreveu : "Transição d a d e d ução p o r anologia (de ana­


l ogi a ) à de d u ç ã o de necessidade - dedução de indução - a deduções do
geral ao particular, - dedução d o particular ao geral - a explanação da
con exão e das transições (e conexão é transiçõe s ) : eis a tarefa de Hegel"
( V. J . Lên i n . Obras completas, t. 29, p. 1 62 ) .
'2 9 K. Marx e F. Engels. Obras, t . 20, p . 543 . (Ed. em russo . )
.a o K. M arx e F. Engels. Obras, t. 20, pp. 542-543 .

2 1 '9
na análise dos fenômenos da natureza e da sociedade, aplicaram
cada uma das formas de · dedução em seu lugar em mútua relação .
Assim, o O Capital de Marx é um arquétipo cl ássico de unidade
dialética entre a indução e a dedução. Como indicava Lênin, indu­
ção e dedução coincidem em O Capital31 • Essa mesma coincidência
de indução e dedução é característica do estudo da essênci a do
imperia]!smo feito pelo próprio Lênin .
A indução é impossível sem a dedução pelo simples fato de
que a própria inclução é incapaz de explicar o processo de dedução
indutiva . "Um absurdo em Haeckel : a indução contra a dedução .
Como se dedução não fosse conclusão ; logo, a ind u ç ã o também
=

é certa dedução"ª2 •
Essa conclusão de Engels é muito importante para entender a
essência da dedução. Toda dedução, incluindo a indução, ocorre
à base de um conhecimento, um princípio geral. Neste sentido toda
conclusão é até certo ponto dedução .
Indução e dedução são a unidade dialética de dois aspectos de
um mesmo processo de pensamento em forma de dedução. No de­
senvolvirnento do conhecimento elas se transformam uma na out ra.
Mas a unidade entre elas e a transformação de uma na outra n ão
excluem mas pressupõem da maneira mais decidida a oposição entre
elas, a qual não foi inventada pelos lógicos mas existe na real id ade.
A indução é uma conclusão que conduz do conhecimento de um grau
inferior de generalidade a um conhecimento de maior grau de ge­
neralidade, enquanto a dedução é o oposto. Se elas não fossem tipos
opostos de conclusão, então não haveria a necessidade de uma for­
ma de dedução completar a outra no processo de obtenção da ver­
dade .
A superação das falhas do todo-indutivismo e do todo-deduti­
vismo pelo marxismo-leninismo não reside apenas no fato de ter
ele mostrado a unidade e a oposição entre indução e dedução mas
ainda em haver apontado a existência de outras formas de con cl u­
são ligadas à indução e à dedução e ao mesmo tempo diferen tes
destas . Como escreveu Engels, os cientistas metafísicas "afun da­
ram tanto n a oposição entre indução e dedução que reduzem todas
as formas lógicas de conclusão a essas duas, passando inteiramente
desapercebidos, neste caso, que eles 1 ) aplicam inconscientemente

ai Cf. V. I. Lê n i n . O bras completas, t . 29, p. 54 1 .


32 K . M.arx e F. Engels. Obras, t. 20, p. 54 1 .

220
sob essa denominação formas de dedução inteiramente diversas, 2 )
abrem mão d e toda a riqueza de formas d e conclusão, pois elas não
podem ser comprimidas nos limites dessas duas formas, e 3) trans­
formam, como resultado, essas mesmas formas - indução e dedu­
ção - no mais genuíno dos absurdos"33•
Assim, a unidade entre indução e dedução não é simplesmente
uma relação entre duas formas de conclusão mas uma unidade de mé­
todos lógicos opostos de aquisição de novo conhecimento, de mo­
vi mento a partir da experiência às generalizações teóricas e vice­
versa, das generalizações teóricas aos seus efeitos, parte dos quais
permite a verificação experimental .

a3 K. Marx e F. Engels. Obras, t. 20, p. 54 1

221
V

A Dialética e o Processo
d e Investigação Científica

"O movimento do conhecimento no sentido


do objeto sempre se processa apenas dialeti­
camente : afastar-se, para acertar melhor. . . " '

1. A INVESTIGAÇÃO CIENTÍFICA COMO OBJETO


DE ANÁLISE LÓGICA

Nas condições atuais em que o papel da c1encia na vida da


sociedade cresce incessantemente, a lógica não pode evitar a inves­
tigação científica que se insere amplamente na prática dos homens.
Mas surge uma questão : o que a lógica pode dar para a com­
preensão da investigação científica em cujo processo cabe lugar de
destaque a fatores extralógicos como a imaginação, a intuição, etc . ?
Não há dúvida de q u e na ciência desempenham certo papel a
intuição interpretada à maneira materialista, a imaginação e inclu­
sive a jocosidade .
Mas apesar disto, o desenvolvimento da ciência em geral e o
processo de investigação científica em particular se subordinam a cer­
tas leis e têm sua lógica cujo domín ío é absolutamente necessário
para uma bem sucedida atividade científica do homem .

1 V. J. Lênin. Obras completas, t. 29, p. 252.

222
O resultado da investigação científica deve ser a aqu1s1çao de
um novo conhecimento dos fenômenos da natureza e da sociedade.
As conquistas da ciência mais importantes no sentido teórico e prá­
tico recebem a denominação de "descobrimento" .
O problema da lógica da investigação científica surgiu a prin­
cípio sob a forma de pes q uisas e construção de uma lógica especial
dos descobrimentos científicos. Não seria possível construir um sis­
tema lógico que ensinasse as pessoas a fazerem descobrimentos ci­
entíficos? Com esse tipo de lógica já sonhava o escolasta medieval
Raymond Lulle, que apresentou o projeto da "máquina lógica" atra­
vés da qual seria possível obter todas as verdades possíveis. A idéia
de semelhante lógica foi proposta pelos célebres pensadores moder­
nos Francis Bacon e René Descartes .
No entanto por m ais nobre que fossem os objetivos de Bacon ,
Descartes e outros, a lógica especial dos descobrimentos científicos
é um sonho irrealizável, pode-se dizer, uma utopia. Não pode exis­
tir tal lógica que possua leis e regras cujo domínio garanta desco­
brimentos na ciência. Se tal lógica existisse, todos aqueles que es­
tudassem as suas leis e regras fariam descobrimentos científicos .
Todos sabem, porém, que o descobrimento científico é um fe­
nômeno bastante raro, que não só não é feito por todas as pessoas
mas nem de longe por todos os que lidam com ciência. Em prin­
cípio é impossível um sistema lógico rigorosamente formalizado de
processo que leve a descobrimentos na ciência, porque cada desco­
brimento é bastante complexo por sua estrutura l ógica e reúne tra­
ços estritamente individuais, que n ão se repetem .
Hoje já é quase geral mente reconl].ecida a tese segundo a qual
o processo de criação científica não se reduz a operações lógicas de
dedução de efeitos de conhecimento antes obtido . Em realidade
mesmo não se pode, como às vezes se faz, interpretar de modo tão
simplista o movimento do conhecimento no sentido de novos re­
sultados apenas como processo de inferir de premissas dadas con­
clusões conforme as leis da dedução lógica rigorosa. A rel ação do
n ovo conhecimento com o anterior não cabe nos limites da inves­
tigação lógico-formal , os novos resultados podem não só não deri­
var do conhecimento antes obtido como entrar em contradição com
ele, parecer estranhos e absurdos em relação a ele .
No entanto a impossibilidade da criação de uma lógica espe­
cial dos descobrimentos científicos não significa que a lógica n ão
desempenhe nenhum p apel n o processo de aquisição de novo co­
nhecimento. Não existe uma "lógica dos descobrimentos" mas tam­
bém n ão há nenhum descobrimento sem lógica .

223
A c1encia moderna dispõe de poderosos recursos lógicos. Em
primeiro lugar, um desses recursos é a dialética materialista, que é
u m método universal de movimento do pensamento no sentido de
novos resultados . As leis da dialética atuam como princípio lógicos
de transição a u m novo conhecimento, de síntese do conhecimento,
q ue leva à i n te r r up ç ã o da gradualidade. A criação de um a nova teori a
incorpora como momento obrigatório o surgimento de u ma nova
q ualidade, a negação dos resultados antecedentes com a repetição
de alguns momentos destes na nova síntese .
Em segu n do l ugar, existe hoje um d i spo s itivo muito desenvolvi­
do da lógica formal , a qual, aplicando recursos matemáticos, con­
seguiu construir u m número bastante grande de si s tem a s de cál­
culo lógico. Hoje a estrutura da demonstração, com seu aspecto ló­
gico-formal, está estudada com bastante profundidade e plenitude. A
dialética e a lógica formal abrangem todo o campo do l óg i co na
forma mais dese n vo l vid a e aperfeiçoada .
O dispositivo lógico-formal e o método filosófico são necessá­
rios enquanto meios e instrumentos de estudo multilateral do pen­
samento, suas formas, tipos, etapas, etc. E aqui n ão se pode ocupar
posição de medo da aplicação simultânea dos recursos lógico-for­
mais e do método dialético. Ao contrário, para estudar alguma
forma concreta de pensamento, a hipótese ou até o conceito, por
exempl o, é necessário enfocá-la armado tanto do método filosófico
moderno como do dispositivo lógico-formal . Como resultado sur­
girão, indubitavelmente, novos sistemas lógicos de caráter sintético,
q u e estudam o objeto concreto ( método, forma, etapa de conheci­
mento, etc. ) com todos os meios existentes tanto lógicos como es­
pecialmente científicos .
A prática do desenvolvimento da ciência moderna e x ige um es­
tudo profundo do processo mesmo de investi gaç ã o científica. Para
influenciar o desenrol ar desse processo, é necessário assimilar a lógica
da i n vest i g a ç ão científica, a inter-relação dos seus componentes. A
c iberné t ica levanta o p r oblem a de transferir às máqu i n a s algumas
fu nções do homem no processo da pesquisa científica, e essa colo­
cação dificilmente p ode r á suscitar objeções sérias. Mas essa trans­
ferência pressupõe certa formal ização do processo de investigação,
vale dizer, a concepção deste sob o aspecto de sistema formal. No
entanto an tes de for ma l i z ar alguma co i sa deve-se escl arecer qual é
precisamente o conhecimento substancial a ser expresso por meio
dos formalismos e seu sistema . Por outras palavras, à formal i zação
d eve anteceder o estudo dos processos de i n ves tiga ç ão científica e
s u a coerência lógica do ponto de vista do conteúdo . Hoje pode-

224
mos observar cada vez mais fre q ü enteme nt e como as n ec es s i d ad e s
de formalização ul tr apas s a m o estudo do conteúdo desse ou d a qu el e
processo. Começam a se desenvolver com ampl itu de cada vez maior,
por exemplo, os trabalhos no campo da aplicaç ão das máqu i na s em
d i ve rs o s setores da atividade in telectual do homem. Mas o aspecto
su bs t a nc ial da lógica dessa atividade a in da está mal estudado, razão
porque as pessoas que se dedicam, por exe mplo, à fo rmal iz a çã o do
processo de tradução de uma l íng ua a outra, da atividade do médico
ou à colocação de diagnóstico, etc., andam freqüentemente às es­
curas dado que, nesses campos, o processo de pensamento foi pou­
q u íssi m o estudado sob o aspecto de seu conteúdo.
Até hoj e a lógica t em estudado de modo até certo p on to con­
te mplati vo o processo de p en s a m en to humano, d esm emb r and o-o em
f o rm a s isoladas para descrevê-las e in terpre t á-las . Mas o processo
de d e se n vol vi me nto da ciência e da prática social exige atualmente
<1 ue se domine o processo de pensamento n u ma medida que pe rm i ta
d i rigir o seu desenvolvimento. O homem deve n ão só apreen de r mas
também dominar o pensamento, con qui stá lo , subo rd i ná-lo, gov er­
-

n á -l o
.

Dominar o pen sa mento significa transformá-lo em meio ainda


m ais eficiente na c o n quista p r á t ica das potencialidades da n atur eza
e da sociedade, relacioná-lo de modo ainda mais e st re i t o com o
objeto que ele reflete. Para tanto a lógica não deve se limitar à des­
cr i ç ão e à interpretação de fo rmas isoladas de p e nsam e n t o mas es­
tudá-lo no todo como processo de movimento no sentido de novos
re sulta d o s
.

Não há n em p o d e haver uma ló gica e s pe c i a l dos descobrimen­


tos ci ent íficos, mas em seu desenvolvimento a ló g i c a deve respon­
der em m ed i d a cada vez maior às questões relacionadas com o pro­
cesso de d esco b rim e nto científico, orientar a pe s q u isa do cientista,
estar mais perto d o p róprio processo de in ve s t igação científica .
Foi d i ant e disto que surgiu o problema da lógica da investiga­
ção científica. N ão se po de entendê-l o como certo s i stema lógico de
cálculo fechado que expresse o modelo ideal das relações do pensa­
mento no desenrol ar de qu a lqu e r pesquisa científica. Se é que esse
s i ste ma ch e g a rá a surgir, s er á b a s ta n te po b re de conteúdo, carente
em ess ê ncia de qua l qu e r i mport ância para a p r á t i ca da investigação
cie ntífi c a . A lógica da p e s q u isa científica é n e c es sá r i a antes de tudo
co mo sistema lógico-gnosiológico sub s t a n cial, que propicia um co­
nhecimento in t egral do processo de investigação ci ent ífica e seus
c o m po n ent e s .

225
A base metodológica desse sistema é constituída pela lógica dia­
lética, cujas leis e categorias caracterizam o processo de conheci­
mento do aspecto epistemológico. Mas a investigação científica en­
quanto conhecimento tem suas particularidades específicas, relacio­
n adas ao fato de que ela está voltada diretamente para a obtenção
de resultados antes desconhecidos ao sujeito (à humanidade e não
ao indivíduo ) .
Para entender as particularidades desse novo aspecto no estudo
do pensamento, é necessário esclarecer a essência da pesquis a em
sua atitude face ao conhecimento. Não há dúvida de que a pesquisa
é conhecimento, daí a característica lógica-gnosiológica universal do
conhecimento ser real também para a investigação. No entanto,
para dominar a pesquisa não basta apenas sua característica lógico­
gnosiológica geral como processo de conhecimento. :� necessário co­
nhecê-la justamente como pesquisa, ou seja, descobrir as peculiarida­
des do ato de conhecimento que a torna imediatamente voltada
para a obtenção de resul tados antes desconhecidos do sujeito. A in­
vestigação científica é um conhecimento imediatamente voltado para
a obtenção, no pensamento, de novo resultado não só para um su­
jeito dado mas para o sujeito em geral. Ademais, para entender a
essência do conhecimento é necessário vê-lo como investigação, por­
quanto nesta se manifesta justamente a particul aridade característi­
ca do conhecimento humano : o movimento do pensamento no sen­
tido de resultados efetivamente novos .
A investigação científica enquauto ato de conhecimento se rea­
liza à base da interação prática do sujeito com o objeto. Ela cons­
titui uma forma teórica de apreensão do objeto pelo sujeito, nela
se manifesta especialmente a natureza social do sujeito .
Ultimamente o problema da lógica da investigação científica vem
atraindo a atenção física não só dos lógicos mas também dos espe­
cialistas de outros diversos campos do conhecimento científico. Por
um lado, os lógicos procuram se aproximar mais das rtecessidadcs
das tarefas de organização da pesquisa em diversas ciências, por
outro, os cientistas do campo das ciências humanas, sobretudo das
ciências naturais, sentem cada vez mais a necessidade da conscien­
tização lógica das vias de movimento no sentido de novas verdades
em seu campo.
Os autores de tendência positivista acham que existem apenas
dois enfo q ues da análise lógico-formal da pesquisa : 1 ) a análise
rigorosa, lógico-formal , que se limita à simples aplicação de certo
dispositivo para experimentar as idéias lançadas, do modo de de-

226
monstrá-las, que não penetra na essência do próprio processo de
n ascimento de novas idéias e teorias e 2 ) a concepção não-rigorosa,
filosófica geral da natureza lógica da ciência, que atinge absoluta­
mente tudo mas não dá nada definido, concreto, que não revela
(1uaisquer leis do processo de investigação científica .
O problema se coloca assim : ou um ou outro, nada mais. Mas
esse enfoque, em verdade, transforma a pesquisa científica, nos seus
traços mais importantes, em algo que não se presta a uma rigorosa
an álise científica .
Atualmente ainda não podemos dizer que a lógica da investiga­
ção científica que aqui nos interessa já se constituiu definitivamente
como ciência independente. Como acontece com as outras ciências,
esta não pode ser i n ventada e declarada, pois sua criação se dá de
modo natural , obedecendo a leis do processo de desenvolvimento do
conhecimento, quando se desmembram nitidamente seus objeto e
método. Ela existe atualmente antes como problema científico, cujos
trabal hos cl aborativos começaram há relativamente pouco tempo e
são desenvolvidos em dois sentidos principais : uns procuram mos­
trar o quanto o disposi tivo da lógica formal pode contribuir para a
compreensão do processo de investigação científica no que se refere
à organização, sistematização e fundamentação do conhecimento ci­
entífico adquirido 11 0 processo de pes quisa. Outros enfatizam outro
aspecto, ou seja, que só das posições da lógica dialética pode-se apre­
ender a essência da investigação, estabelecer o significado e a cor­
relação dos diversos métodos e aspectos dessa investigação. :S uma
posição correta, pois são sumamente importantes os esforços tanto
em um como em outro sentido. Contudo é necessário unificar de
algum modo essas duas tendências e conceber a pesquisa científica
110 seu conjunto, determinar o conteúdo dos conceitos que carac­

terizam o conhecimento enquanto pesquisa científica .


Visando ao estudo do conhecimento de um ponto de vista gno­
siológico geral , a filosofia elaborou vários categorias por nós já
abordadas, como a categoria de reflexo, de sensorial e racional, em­
pírico e teórico, abstrato e concreto, verdadeiro e falso, histórico e
lógico, etc. Para esses mesmos fins ela desmembrou o conhecimento
c m certas formas cuj as descrição e interpretação contribuíram para
a compreensão das leis gerais do processo de conhecimento. Mas se

nos valermos dessas categorias e formas para enfocar a pesquisa


científica, elas se revelarão insuficent(\:S para interpretar-lhe a espe­
cificidade. Por isto é necessário elaborar uma série de novas ca­
tegorias e formas que traduzam o conhecimento enquanto pesquisa.
É isto q ue se insere n a tarefa da lógica da investigação científica .

227
Não se trata de encontrar certas formas especiais de pensa­
mento que no processo de investigação científica levem forçosa­
mente a descobrimen tos. A prática da investigação científica não
confirma a divisão das formas de pensamento entre aquelas que
levam ao descobrimento de novas verdades e aquelas que apenas
demonstram teses antes lançadas, divisão que se verifica particular­
mente em Bacon , que opõe a indução capaz de levar a descobri­
men tos ao silogismo aristotélico, que se prestaria apenas à dem o ns ­

tração do conhecido .
Ao que se sabe, as tentativas de construir formas especiais de
pensamento através das quais realizar-se-ia o descobrimento científi­
co não deram e dificilmente poderão dar resultados positivos .
Na pesquisa científica, inclusive nos casos de lançamento de
novas idéias, suposições, o cientista se vale n ão só da analogia e da
indução mas também de todas as formas de conclusões dedutivas .
Quando se coloca a questão das categorias da lógica da pesqui­
sa científica, o problema gira em torno dos conceitos n os quais
deve estar expressa a essência da investigação científica, dos seus
momentos constituintes . Neste caso é necessário levar em conta as
peculiaridades dessas categorias, peculiaridades que dimanam da re­
lação entre suj eit o e objet o no processo de investigação científica. :É
preciso considerar justamente a imensa importância que n a com­
preensão da essência dessas categorias tem o momento de obriga­
toriedade pelo qual se orienta a pesquisa.
Como se sabe, o homem reflete a realidade não apenas tal
qual ela existe imediatamente mas também como pode e deve
ela ser para as necessidades sociais dele. Voltado desde o início para
a satisfação das necessidades práticas do homem, o conhecimento
cria não raro imagens de objetos que n ão foram observados n a
natureza mas devem e podem ser realizáveis na prática. A pesqui­
sa autenticamente científica está imediatamente voltada para a pro­
cura de formas e idéias segundo as quais o mundo deve ser mudado.

2. POR ONDE COMEÇAR? Do PROB L E MA À TEORIA

Qualquer pessoa que analise a investigação científica terá forço­


samente de enfrentar a questão : a partir de que conceito deve-se
começar a caracterizá-la? Na análise das formas de pensamento en­
quanto forma madura distinguiu-se a teoria, distinguindo-se o juízo

228
como célula basilar. Quanto à primeira, ou seja, à teoria, ela per­
manece no mesmo papel em relação à pesquisa científica, com a
única diferença essencial de que, no processo de an álise das formas
de pensamento, abordava-se a teoria estaticamente, enquanto os con­
ceitos e deduções atuavam como elementos ou momentos dela. Cada
uma dessas formas ocupa o seu lugar n a construção e desenvolvi­
mento da teoria científica.
Agora, ao focalizar-se a investigação científica como processo
de atividade especial do homem toma-se a teoria em seu processo de·
formação . Isto significa que se deve tomar como basilar um ele­
mento de investigação científica que nos leve à teoria e sirva de
linha na compreensão do surgimento e evolução desta. O juízo não
pode desempenhar essa função, pois n ão contém em si o impulso
e o embrião da teoria científica .
Não seria o caso de tomar o fato como célula basilar da for­
mação da teoria científica dado que os fatos são realmente premissa
necessária de teoria? Realmente, já que o fato é uma forma de co­
n hecimento humano que deve possuir autenticidade. Evidentemente é
nessa base que se fala dos fatos como de uma "coisa obstinada" ,
e é necessário reconhecê-los independentemente de gostarmos deles
ou não . É claro que nem todos os fatos resultam autênticos na rea­
lidade. No processo de desenvolvimento da ciência às vezes, como
se sabe, se estabelece a inautenticidade daquilo que se reconhecia
por fato. Mas no ideal só o conhecimento autêntico pode atuar como
fatos. Em decorrência disto as propriedades dos fatos ocupam lu­
gar especial : constituem a premissa necessária de construção do sis­
tema teórico, de seu desenvolvimento e sua demonstração .
Enquanto forma de conhecimento o fato tem valor por sempre
conservar certo conteúdo, ao passo que as teorias desmoronam ;
além do mais, ele conserva sua importância em diversos sistemas .
Mas isto é, simultaneamente, também o seu lado fraco, uma vez
que na abstratividade e no isolamento não há verdade autêntica e
concreta. O fato sempre conserva o seu conteúdo mas por si só não
está relacionado com n ada, carece de sentido e não tem importân­
cia na solução do problema colocado .
A reunião de fatos é a mais importante parte componente da
investigação científica. No entanto seja qual for o número de fatos
que se colha, estes, por si mesmos, ainda não constituem a pesquisa
científica. Podem-se colher fatos infinitamente e nunca se conseguirá
colhê-los todos. O cientista procura os fatos em todo o desenrolar de
sua pesquisa, mas para ele os fatos nunca são um objetivo em si, sendo
sempre utilizados apenas como meio de solução das tarefas que se

229
impõem. Para lançar essa ou aquela hipótese científica o pesquisa­
dor necessita apenas de certo número de fatos ; outros fatos são
necessários para a fundamentação e o desenvolvimento dessa hipó­
tese, enquanto terceiros são necessários para sua demonstração. Mas
em todos os casos é necessário incluir todos os fatos colhidos em
um sistema qualquer para dar a eles sentido e importância. O cien­
tista não se assemelha a um trapeiro e não colhe quaisquer fatos
segundo o princípio "pode ser que sirvam" ; ele os seleciona desde
o início, orientando-se a determinado fim que se desenvolve, se mo­
difica no processo de investigação mas sempre se mantém enquanto
não se cria um sistema de conhecimento que o satisfaça. Por si só o
fato não leva implícito semelhante fim e por isto não pode ser cé­
lula basilar no estudo da pesquisa científica .
À primeira vista pode parecer que esse momento basilar é cons­
tituído pel a prática, dado que ela leva implícito o objetivo da pes­
quisa científica. :É o que realmente ocorre, pois são justamente as
necessidades práticas do mais diverso caráter que motivam os cien­
tistas a desenvolverem a ciência .
.É claro que a prática determina todo o nosso conhecimento
mas ela mesma ainda não é conhecimento ; ela determina também
a pesquisa científica mas não é elemento desta. No estudo da pes­
quisa científica pode ser basilar somente aquilo que, por um lado,
é elemento dela e , por outro, expressão das necessidades práticas
que impulsionam o pensamento no sentido da procura de novos re­
sultados. São essas peculiaridades que estão presentes no problema
do qual começa a investigação científica .
Podemos conceber como definição inicial do problema aquilo
que não foi apreendido pelo homem mas que é necessário apreender.
Ao conceito de problema já se incorpora o momento da obrigatorie­
dade que orienta todo o processo de investigação. No entanto é su­
mamente grande o campo do que não foi apreendido e deve ser
alcançado. Há muita coisa que o homem ainda desconhece e não
há nada que em princípio ele não possa ou não deva saber. Neste
sentido não há quaisquer proibições e, em essência, não existe co­
nhecimento que seja desnecessário ao homem .
No entanto não é todo o não-conhecido que constitui o proble­
ma científico, que não é simplesmente um n ão-conhecimento mas
um conhecimento do não-conhecimento. Não se escolhe como pro­
blema qualquer objeto que o pesquisador queira conhecer, o que esse
objeto constitui, as leis a que ele se subordina, mas só um objeto
sobre o qual o conhecimento é realmente possível sob as condições
vigentes. Também ante o conhecimento a humanidade coloca somen-
te tarefas que em determinado nível do desenvolvimento ela deve e
pode resolver. Os problemas surgem diante da ciência no processo
de desenvolvimento da sociedade e a partir das necessidades desta.
A colocação do problema compreende necessariamente o co­
nhecimento das vias de sua solução. 'f: preciso ter uma noção clara
do que se pode saber sobre determinadas condições, que modo é
possível obter o conhecimento necessário à prática. Os problemas
surgem dos resultados antecedentes do conhecimento como efeito ló­
gico original. Ter a habilidade de colocar corretamente o problema,
deduzi-lo do conhecimento antecedente já significa resolver metade
da questão.
Deste modo, o problema mesmo já não passa de certo sistema
de conhecimento diverso que incorp ó ra fatos antes estabelecidos,
idéias e possibilidades de solução do problema colocado, assim
como a própria colocação deste. Esse sistema constitui um conjunto
de juízos, o centro do qual é ocupado pelo juízo-questão. 'f: justa­
mente nesse juízo-questão que se expressa o não-conhecido que deve
ser n ecessariamente transformado em conhecido.
Encontramos no problema a sistematização do conhecimento
científico, q ue é própria, nesse ou na quele grau, dos resultados da
pesquisa científica em qualquer etapa de seu desenvolvimento .
J;: evidente q ue a sistematização do conhecimento não é uma
simples totalização de conceitos, juízos e deduções isolados, não é
uma incorporação mecânica destes, uns aos outros, mas a síntese em
sua forma superior. Por isto a compreensão da essência da siste­
matização do conhecimento científico e de sua formas está vincu­
lada à interpretação da natureza da síntese e sua atitude face à
análise.
Como se sabe, durante muito tempo os conceitos de análise e
síntese permaneceram no círculo das conclusões indutivas e dedu­
tivas, sendo q ue surgiam inicialmente como características do mé­
todo geométrico de demonstração. Segundo Euclides, na análise to­
ma-se algo desconhecido, suscetível de investigação, como indis­
cutível com o fim de chegar a verdades realmente indiscutíveis. Na
síntese, ao contrário, parte-se de verdades realmente indiscutíveis e
chega-se àquilo que antes não era evidente� .

2 g esse conceito de análise e síntese que encontramos no l i vro XIII


cios Elem en tos, de Euclides.

23 1
1
Aqui a análise e a síntese atuam como dois modos opostos de
demonstração dedutiva : sob o método analítico deduzem-se do des­
conhecido, não-demonstrado, as teses cuja veracidade fora anterior­
mente estabelecida. Na síntese, as teses suscetíveis de demonstração
são deduzidas das verdades indiscutíveis. Neste caso trata-se, em
verdade, não do descobrimento de novas teses verdadeiras mas
dos modos de demonstração das teses prontas anteriormente obt i ­
das ; o próprio movimento d o desconhecido a o conhecido e vice-ver­
sa é interpretado de modo muito estreito, pois aqui não se trata
da formação de novas verdades científicas mas tão-somente dos
meios de estabelecimento de sua evidência .
Posteriormente a lógica afastou-se da concepção puramente
geométrica da análise e da síntese, ampliando sua concepção dessas
operações. A análise e a síntese passaram a ser colocadas em opo­
sição uma à outra como dois diferentes tipos de movimento do pen­
samento : do indutivo e do dedutivo, vale dizer, as categorias de aná­
lise e síntese assumiram significado universal mente lógico mais
amplo enquanto aspectos do método científico de pensamento. As­
sim, Hobbes achava que " . . . todo método através do qual inves­
tigamos as causas das coisas é unificador ou divisor ou em parte
u n ificador ou em parte divisor. Habitualmente chama-se analítico
ao método divisor e ao unificador sintético"3• Esses dois métodos
estão relacionados com a dedução en quanto movimento do desco­
nhecido ao conhecido (o descobrimento de ações por meio de cau­
sas conhecidas ou o descobrimento de causas à base de ações co­
nhecidas ) . Toda dedução unifica, combina ou divide, desintegra .
Newton expressou com mais nitidez a relação da análise com a . in­
dução e da síntese com a dedução ; neste caso a análise newton.i ana
antecede à síntese. O método analítico consiste em produzir experi­
mentos, observações, em deduzir destes conclusões gerais ; mediante
sua aplicação realiza-se a transição do complexo ao simples, das
causas às ações, de causas particulares a causas mais gerais .
Por meio da análise descobrem-se novas verdades, que são fun­
damentadas, demonstradas por meio da síntese. Embora essa con­
cepção da análise e da síntese seja um passo adiante em comparação
com a visão puramente geométrica, ela é limitada uma vez que, aqui,
análise e síntese cabem, em primeiro lugar, nos limites de d iversas
formas de dedução e, em segundo, são concebidas como processos

s T. Hobbes. O bras esco//1 idas, M o sco u - Leningra do, 1 926, p. 48 (ed . em


russo) .

232
independentes : uma é meio de aqms1çao da verdade, a outra, de
sua demonstração ; em suma, não se obtém um conceito real do
processo sintético e dos meios de sua realização .
A filosofia de Kant constituiu certo passo adiante na solução
desse último problema. Achava Kant que todo conhecimento só é
possível como s ínt e se, sendo que esta pressupõe forçosamente a uni­
f i c ação dos conceitos e das noções evidentes. A síntese sempre ocor­
re numa base qualquer ( categoria, idéia ) ; sua tarefa é pensar a
variedade como sendo una, não através da redução das noções a um
conceito mas mediante a criação de novos juízos, da unificação dos
dados da noção à base de categorias : "No sentido mais amplo en­
tendo por síntese a incorporação de noções diversas umas às outras
e a compreensão destas num ato único de conhecimento"•. A uni­
dade da autoconsciência enquanto possibilidade de redução de to­
das as noções a uma - "eu pen so" - constitui a condição superior,
a condição suprema de toda síntese, de todas as categorias à base
das quais esta se real iza. " . . . Não é o objeto que implica a relação
que a ele pode ser tomada de empréstimo mediante a p e rcep ç ão, só
graças ao q u e aquela pode ser d iscernida pela razão, mas é a pró­
pria relação que constitui uma função da razão e a pró p r i a razão
não passa de uma facul dade a priori de relacionar e colocar sob
a u n idade da apercepção a variedade [conteúdo] de dados das no­
ções. Esse princ ípio é o fundamento supremo em todo o conheci­
mento humano"5• Conforme Kant, no objeto não há nada unificado
q ue antes não tenha sido unificado em nós mesmos ; a síntese, a
unificação, é a única noção "que não é dada pelo objeto mas pode
ser criada somente pelo próprio objeto, pois ela é um ato de ini­
ciativa deste"º .
Na colocação kantiana do problema da síntese manifestam-se
concomitantemente com nitidez esp e c ial todos os defeitos do seu
sistema f i l osófico, jacentes no idealismo subjetivo e no apriorismo.
Kant nega a existência da fonte obj et i va da síntese. Por isto o co­
nhecimento o bt i d o como resultado da síntese nele, alega-se, não deve
ter significado de verdade objetiva, não pode ser conhecimento das
"coisas em s i " . :É errôneo ainda dividir a síntese em "pura" e "em­
p íri c a ' ' , o que dimana do apriorismo de Kant. Ele tampouco su-

� J. Kant. Obras, t. 3 . p. 1 7 3 (ed. em russo ) .


ã Tbid., p . 1 9 3 .
G Ib.

233
perou a contraposição metafísica, a separação entre a síntese e a
art'álise. A síntese, alega-se, se realiza por si mesma, independente­
mente da análise . A primeira tem a sua lógica - a transcendental ,
a ·segunda, a geral ou formal. Ademais, a síntese antecede à análise.
" . . . Não podemos imaginar nada relacionado no objeto que nós
mesmos não tenhamos relacionado antes . . . "7 • Por isto a análise
em Kant em verdade não participa do movimento do conhecimento
científico, da formação de novos conceitos .
A inter-relação dialética da análise e da síntese no processo
'
• :

de ' conhecimento foi bem revelada por Hegel, para quem o conhe­
citrtento analítico e o sintético são momentos de obtenção da ver­
dàde . Hegel mostra antes de tudo a pobreza, o caráter abstrato das
definições da análise como um movimento do conhecido ao des­
co n hecido e da síntese como transição do desconhecido ao conhecido.
Pode-se dizer, observava ele, c1 ue o conhecimento começa sempre
dó desconhecido, "pois não há por quê travar conhecimento com o
que já conhecemos"ª . ;i;: igual mente correta a afirmação contrária :
" o· conhecimento se movimenta do conhecido ao desconhecido". O
conhecimento começa pelo processo analítico, que consiste "na de­
composição de um dado objeto concreto, do isolamento do seu de­
senvlvimento e da comunicação, por ele, da forma de universalidade
abstrata"9•
', ' A análise começa por algum objeto ( ou fenômeno, aconte­
ci m ento ) isolado, concreto, que não se decompõe simplesmente em
seus componentes no pensamento mas se reduz a certo universal.
Pl>r isso a essência da análise consiste em estabelecer a identidade
'
fdtmal entre o objeto e a universalidade abstrata. A absolutização
do processo anal ítico, característica do empirismo, leva a uma no­
ção, deturpada das coisas. "Neste caso o objeto suscetível de análise
é= visto de modo como se constituísse um bulbo do qual se tira uma
camada após outra" 10• Distinguindo-se definições abstratas isoladas,
não se pode reduzir o objeto em toda sua variedade a definições
temadas em forma isolada ou totalizada .
· : · Ao contrário do conhecimento analítico, o sintético "procura
apreender aquilo C) Ue existe, ou seja, entender a variedade de defini-

7 r. Kant. Obras, t. 3 , p. 173 (ed. em russo ) .


s Hegel. Obras, t. VI, p. 252 ( e d . em russo ) .
o ld., t. 1, p. 3 32.
10 Hegel. Obras, t. VI, . p. 260.

234
ções em sua unidade" 1 1 . Neste caso a síntese não unifica simples­
mente os resultados da análise, reproduzindo aquilo que havia antes
da análise. Em tais circunstâncias tanto o processo analítico como · o
sintético que o sucede seriam disponsáveis. Partindo-se do universal
na síntese, chega-se ao conhecimento do singular em sua necessi­
dade e universalidade. São momentos desse processo sintético : 1 )
a definição, 2 ) a subdivisão, 3 ) o teorema . A definição dá o uni­
versal, que se deve isolar, o que se consegue n a subdivisão ; no teo­
rema ocorre a conclusão do processo sintético, o particular se con­
verte em sinbular, realiza-se a unidade entre conceito e realidade12•
Referindo-se à unidade entre os processos analítico e sintético,
Hegel observa que a escolha destes não depende do arbítrio do su­
jeito pensante de seguir esse ou aquele método : " . . . da forma dps
próprios objetos que desej amos conhecer depende qual dos dois mé­
todos dimanentes do conceito de conhecimento definiti o tere mo s �
de aplicar" 13 •
Embora muito vinculada à concepção hegeliana, a concepçiio
marxista de análise e síntese difere basicamente dela por ser livre
não só do apriorismo mas também de todo idealismo e metafísica .
A base objetiva dos processos analítico e sintético no conheç i ­
mento é a existência de uma variedade de formas de movimento {!a
matéria em sua unidade essencial, interna e necessária. Dado que
o próprio mundo é uno e multiforme, nele existem identidade e di­
versidade, sendo que o uno existe no diverso (o idêntico no diverso-)
e o diverso no uno (o diverso no idêntico ) . O conhecimento deve
apreender a natureza do mundo objetivo, refletir o diverso no uno
e o uno no diverso, razão por que cresce a necessidade da decom­
posição e unificação em sua unidade. . . . O pensamento consi�te
"

tanto da decomposição dos objetos da consciência nos elemen�os


destes quanto na unificação, em certa unidade, dos elementos int�r­
relacionados. Sem análise não há síntese" ª - escreveu F . Engels .
É tarefa tanto da análise quanto da síntese a reprodução fjo
objeto no pensamento conforme a natureza e as leis do próprio mu!I-
i ;.

11 " Na defin ição e d ivisão o s i n té t ic o é uma relação adotada de fora ;


atribu i-se ao preestabelecido uma forma de conceito, mas como preestabel,e­
cido mostra-se apenas no todo o conteúdo; o teorema n ão deve ser demonstrado"
( id., pp. 275-276) .
12 ld. , t. 1 , p. 3 3 2.
ia K. Marx e F. Engels. Obras, t. 20, p. 4 1 .
H K. Marx e F. Engels. Obras, t. 20, p. 4 1 .

.2 J 5
do objetivo. Se o pensamento se afasta das leis objetivas e passa
a produzir a análise e a síntese conforme as leis estranhas à natureza
do próprio objeto (separa os elementos inexistentes n a n atureza e
un i fica o que está dividido no mundo material ) , então abandona
a verdade objetiva passando para o campo das construções especu­
lativas, da construção de teorias arbitrárias. Como observa Engels,
"caso o pensamento não cometa erros, ele pode reunir em certa
un idade os elementos da consciência somente se nestes ou em seus
arq uétipos reais essa unidade já tenha existido an tes. Pelo fato de
circunscrevermos a escova de sapateiro junto com os mamíferos numa
só categoria aq uela ainda não adquire glândulas mamárias"15• O
marxismo vê a fonte da atividade sintética do pensamento não n a
unidade t ranscendental d a apercepção mas n a unidade material do
mundo .
A análise e a síntese têm caráter criativo e seu resultado é o
avanço do nosso conhecimento . Mas a criação no conhecimento n ã o
i mpl ica na separação do mundo objetivo e suas leis mas n a apre­
ensão destes em toda a plenitude e objetividade. A síntese evidente­
mente ocorre à base de certos conceitos antecedentes, sobretudo
de categorias filosóficas, ma s estas conduzem a resultados fec u n ­
dos na síntese pelo fato de elas mesmas refletirem criativamente a
real idade objetiva. A atividade analítico-sintética do pensamento hu­
mano é l i v re e ilimitada na representação objetiva dos fenômenos
da realidade .
Não se pode conceber o processo cognitivo sob forma tão s i m­
plificada c1 ue a princípio se realiza a análise ( sem síntese ) e poste­
riormente a síntese, com base na análise. A relação entre análise e
síntese é orgânica, interior ; ao realizarmos o processo analítico nós
sintetizamos, e a síntese incorpora também a análise como momen­
to. O pensamento não pode dar um passo adiante só analisando ou
só sintetizando. Até a análise mais elementar é impossível sem a
s í ntese, sem a unificação dos elementos analisados em algo u n o ,
sendo eviden te q ue a síntese compreende como necessária a sepa­
ração, no uno, de elementos particulares deste .
A atividade analítico-sintética é momento i n d i spensável de todo
processo de pensamento, mas a conex�o dialética, a unidade dessa
atividade, vale dizer, da análise e da síntese se manifesta com mais

15 Ib.

236
nitidez, plenitude e maturidade no processo de formação e evolução
da teoria científica16•
Chama-se teoria a um vasto camp o do conhecimento, que des­
creve e explica um conjunto de fenômenos, fornece o conhecimento
dos fundamentos reais de todas as teses lançadas e reduz os desco­
brimentos em determinado campo e as leis a um princípio unificador
único . Essa definição não esgota todo o conteúdo do conceito de
"teoria" mas distingue o principal, o fundamental nele . Quando se
fala de teoria, subentende-se antes de tudo um campo bastante am­
plo de conhecimento de um objeto qualquer ou de um conjunto de
fenômenos. Mas o conhecimento não é interpretado mecanicamente
ou dividido em teorias, não é simplesmente cortado em pedaços.
Não é qualquer conjunto de teses, mesmo o mais vasto, que pode
ser chamado teoria .
Em primeiro lugar, pode-se relacionar a essa ou aquela teoria
apenas os conhecimentos relativos a determinado objeto (a um con­
j unt� de fenômenos rigorosamente definido e organicamente cone­
xo ) . Realmente, certas teses que descrevem e explicam processos n a
Lua, por exemplo, combinadas, digamos, aos dados cien tíficos so­
bre o funcionamento do coração da rã, de maneira alguma podem
constituir qualquer teoria científica. A unificação do conhecimento
em teoria é realizada antes de tudo pelo próp r i o objeto e suas leis.
É j ustamente isto que determina a relação entre juízos isolados, con­
ceitos e deduções na teoria .
. Em segundo lugar, não é qual quer conjunto de teses sobre um
objeto qualquer que constitui uma teoria. Para se converter em
teoria o conhecimento deve atingir em seu desenvol vi mento certo
grau de maturidade. Quando o conhecimento compreende apenas :i
seleção e descrição dos fatos da realidade, rel ativos a esse ou àquele
objeto, ele ainda não assume forma de teoria científica. A seleção
e descrição dos fatos é apenas um enfoque da teoria, uma prepara­
ção para a sua criação e não a própria teori a . Aristóteles já obscr-

rn O termo ''teoria" não é unívoco. Às vezes chama-se teoria a todo


conhecimento. Neste caso usa-se esse termo quando se trata da inter-relação
de teoria e prática . Aqui se subentende por teoria não uma forma e specífica
qualquer de conhecimento humano mas o conhecimento em geral, ou seja,
a teoria se manifesta como sinônimo de conhecimento. No presente capítulo
o termo se emprega em sentido predomi nantemente mais restrito: como forma
de pe11samento que tem suas peculiaridades e ocupa certo l ugar no movimento
do conhecimento.

237
vava que o conhecimento é antes de tudo descobrimento das causas
dos fenômenos. A teoria deve compreender não só a descrição de
certo conjunto de fatos mas também sua explicação, o descobrimento
das leis a que eles estão subordinados. f: claro que por explicação
entende-se o descobrimento não só das causas {pois a causalidade
é apenas uma partícula da conexão universal ) mas também das leis
das relações em geral . Inserem-se na teoria várias teses que expres­
sam relações de lei . Além do mais, essas teses estão unificadas por
um princípio geral, que reflete a lei fundamental de um dado objeto
( ou conjunto de fenômenos ) . Não havendo princípio geral unifica­
dor, então, por maior que seja, nenhum conjunto de teses científicas
que refletem as relações de lei constitui uma teoria científica. 1t esse
principio que desempenha a função sintetizante fundamental na
teoria, que relaciona num todo único todas as teses que a integram
( descrevem e explicam ) .
Os indícios acima enumerados caracterizam toda teoria ; sãü
aquilo que é necessário e suficiente para que o conhecimento se ma­
nifeste sob a forma de teoria. No entanto as próprias teorias variam .
Elas se distinguem antes de tudo dependendo do objeto que
refletem. Assim, por exemplo, a teoria matemática tem suas peculia­
ridades que a distinguem das teorias físicas, biológicas, históricas, etc .
Na construção, desenvolvimento e demonstração de uma teoria de
qualquer ciência, os traços específicos dimanentes do caráter do
objeto desta são estudados por essa mesma ciência, enquanto o s
princípios gerais de enfoque do estudo das peculiaridades da cons­
trução e desenvolvimento das teorias são dados na ciência pela gno­
siologia.
As teorias podem ser discernidas ainda dependendo da a m ­
plitude do círculo de fenômenos que elas descrevem e explicam .
Neste sentido elas podem ser mais gerais ou menos gerais, fato im­
p o rtante para a definição do lugar de uma dada teoria no sistema da
ciência . A amplitude da teoria é determinada, por sua v ez pel0 ,

caráter do princípio nela unificador. Se o papel desse princípio é


desempenhado pela lei fundamental de maior grau de generalidade,
então a teoria à base dela construída tem caráter bastante vasto.
Demais, é essencial para a teoria o método de fundamentação, de
demonstração nel a empregado . D i sti n gue m s e as teorias cuj as teses
-

são demonstradas experimentalmente e as teorias em que as te­


ses basil ares são fundamentadas por via dedutiva. Diante disto elas
p o d em ser formal izadas em maior ou menor grau.
Por último, o caráter da teoria é d eterminado pelo grau de
fundamentabilidade do seu princípio determinante. Em algumas tco-

238
rias esse princípio é representado pela tese cuja veracidade já foi
autenticamente estabelecida, em outras, fundamenta-se apenas com
maior ou menor grau de probabilidade. Essa última teoria, evidente­
mente, é de menor importância que a primeira .
A teoria é a forma de conhecimento que pode servir de escala
para a avaliação da maturidade de todos os outros sistemas. A in­
vestigação científica já se manifesta desde o início, i . e . , desde a co­
locação do problema, como certo arquétipo da teoria, seu embrião.
Por isto a colocação do problema, sua formulação se afigura um
assunto bastante difícil e sério. Em verdade, ao lançar um problema
científico, o cientista constrói um sistema teórico sui generis - uma
"teoria vazia" -, no qual o princípio unificador é substituído por
uma questão para a qual deve-se procurar a resposta. Quando essa
resposta for encontrada, converter-se-á em teoria científica o sis­
tema de conhecimento que forma o problema. Mas o. caminho para
esse fim é muito longo e espinhoso. Inicialmente a resposta à per­
gunta contida no problema não será "sim" nem "não" mas "prova­
velmente", e o próprio sistema de conhecimento asRumirá em con­
formidade com isto a forma de hipótese.

3. HIPÓTESE : FORMA DE DESENVOLVIMENTO DA C'ltNCIA

O enfoque materialista dialético da hipótese difere essencial­


mente e é até francamente oposto tanto ao enfoque da filosofia na­
turalista com sua especulação pura q uanto ao do positivismo, que
limita o conhecimento apenas com a descrição "pura" dos dados da
experiência. A dialética materialista dá continuidade e desenvolve
na doutrina da hipótese a linha traçada e definida espontaneamente
pelos maiores cientistas dos séculos XVIII-XIX. Levando em conta
a experiência de toda a história da filosofia, da ciência, Engels con­
clui que "a hipótese é a forma de desenvolvimento das ciências na­
turais, porquanto estas pensam " 1 7 •
Nessa tese d e Engels deve-se atentar antes de tudo para o fato
de que a h ip ó t ese atua como elemento indispr.nsável das ciências
naturais pensantes .
Surge uma questão : seria possível o conhecimento natural não­
pensante?

1. 7 K. M arx e P. Engels. Ob1·as, t. 20, p. 555.

239
Em princípio semelhante conhecimento é impossível, mas os em­
piristas tentam tornar ou ao menos imaginar o conhecimento na­
tural como sendo não-pensante, que apenas registra e avalia os fa­
.
tos. O conhecimento natural, é incon t e ste, é e deve ser pensante,
não pode limitar-se simplesmente à reunião e à acumul ação de fatos.
O amontoado absurdo de fatos, conforme expressão de K. A. Timi­
ryázev, leva à pantanização da ciência. E dado que o conhecimento
natural pensa, ele constrói e verifica as hipóteses .
O segundo momento importante implícito na referida tese de
Engels é constituído pela idéia segundo a qual a hipótese se apre­
senta como forma de desenvolvimento das ciências naturais. Efeti­
vamente, a transição, na ciência, de fatos particulares ao conheci­
mento da lei, de uma construção teórica a outra que reflete com
mais precisão e profundidade as leis do movimento dos fenômenos
se realiza por meio das hipóteses .
A formação de hipóteses é o caminho necessário para o des­
cobrimento das leis, para a criação de teorias científicas autênticas.
"A observação descreve um fato novo qualquer, que torna im­
possível o método anterior de explicação dos fatos relativos ao
mesmo grupo. A partir deste momento surge a necessidade de novos
métodos de expl icação, necessidade que a p rincípio se baseia apenas
num número limitado de fatos e observações. O sucessivo material
experimental leva à depuração dessas hipóteses ; afastam-se umas,
corrigem-se outras, até que a lei seja finalmente estabelecida em for­
ma pura. Se quiséssemos esperar até o material ficar pronto em for­
ma pura para a lei, isto implicaria em interromper a investigação
até agora pensante e por esse simples motivo nunca obteríamos a
lei" 1 8 •
A tese de Engels segundo a qual a hipótese é uma forma de de­
senvolvimento das ciências naturais pode ser estendida à ciência
c m conjunto, uma vez q ue mediante as hipóteses realiza-se o pro­
cesso de movimento do pensamento em todas as ciências sem exce­
ção ( tanto nas naturais como nas sociais ) .
Todo o campo do conhecimento pode ser fracionado em gran­
des grupos: 1 ) as ciências da n a tu re z a inanimada (matemática, as­
t ronomia, mecânica, física, química, etc. ) ; as ciências da natureza

is K. Marx e F. Engels. Obras, t. 20, p. 555.

240
viva( diversas disciplinas biológicas e médicas ) e 3 ) as ciências dos
fenômenos da vida social, q ue estudam as condições de vida dos
homens, as relações sociais, as formas jurídicas, estatais ( história,
economia política, filosofia, Iingüística, etc. ) . No nível atual de
desenvolvimento da ciência, essa divisão é, evidentemente, bastan­
te condicional e não pode servir de base para a classificação das
ciências. No entanto ela pode ser adotada para os nossos fins, quais
sejam, os de mostrar que o desenvolvimento do conhecimento por
meio das hipóteses tem caráter universal . Podemos ver constante­
mente que em todas as ciências ( quer na inanimada, quer na viva,
quer n a sociedade ) o desenvolvimento do conhecimento se realiza
por meio da construção, fundamentação e demonstração de hipóteses.
Comecemos pela ciências da natureza inanimada, antes de tudo
pela matemática. Existe uma opinião bastante sólida, segundo a
llual n a matemática o processo de conhecimento seguiria caminho
inteiramente diverso daquele que se verifica nas ciências n aturais ;
nela não haveria lugar para indução, analogia, observação, experi­
mentos e hipóteses, ela operaria somente com raciocínios rigorosa­
mente demonstrativos, dedutivos. No entanto, embora o conhecimen­
to matemático tenha as suas particularidades específicas, está subor­
dinado às leis gerais do desenvolvimento do conhecimento, sendo­
l he, em particular, característica a obtenção de novos resultados me­
d iante hipóteses . Também neste sentido são bastante notáveis as se­
guintes palavras do famoso matemático contemporâneo J . Poya :
"Considera-se a matemática uma ciência demonstrativa. No entanto
este é apenas um de seus aspectos. A matemática acabada, exposta
em forma acabada, parece puramente demonstrativa, constituída ape­
nas de demonstrações. Mas no processo de criação a matemática
lembra quaisquer outros conhecimentos humanos situados no proces­
so de criação. Deveis vaticinar um teorema matemático antes de
demonstrá-l o ; deveis vaticinar a idéia de uma demonstração antes
de aplicar detalhadamente esta última. Deveis confrontar as obser­
vações e seguir as analogias ; deveis provar e mais uma vez provar .
O resultado do trabalho criativo do matemático é o raciocínio de­
monstrativo, a demonstração ; mas descobre-se a demonstração por
meio do raciocínio verossimilhante, mediante a conjetura" rn .
Para a obtenção d e novos resultados, o processo d e raciocmto
n a matemática pode ser concebido da seguinte maneira : as obser-

1u J. Poya. A matemática e os raciocínios verossimilhan tes, Moscou,


1 957, p. 10.

24 1
vações e a indução e analogia nele baseadas levam os matemáticos
à formulação de certa sentença A, que foi claramente formulada mas
n ão foi demonstrada e por isto atua apenas como sentença ; dado
que sua veracidade n ão foi demonstrada, ela pode resultar falsa .
No entanto demonstra-se a sua probabilidade por meio da indução
e da analogia .
O enunciado de sentenças na matemática e a fundamentação
destas por meio da indução e da analogia constitui o caminho para
uma demonstração rigorosa. " . . . Não deveis confiar exagerada­
mente em qual q uer conjetura, nas suposições heurísticas habituais
nem nas vossas próprias hipóteses. Seria tolice crer que sem de­
monstração vossa conjetura é justa. No entanto talvez seja racional
empreender um trabalho qualquer esperando que vossa conjetura
resulte justa"2º .
A abordagem da matemática no processo de surgimento, for­
·
mação e desenvolvimento de suas teses mostra q ue ela, assim como
todas as outras ciências, está cercada por uma "densa floresta de
hipóteses". Nela todos os descobrimentos passam pela fase das hi­
póteses, o que pode ser ilustrado no exemplo de qualquer uma
destas .
Em A m atemá tica e os raciocínios verossimilhantes ( título da
edição russa - N. do T. ) , Poya examina um grande número de
descobrimentos na matemática e mostra a importância das hipóteses,
das conjeturas baseadas na indução e na analogia para o enfoque
desses descobrimentos, para a colocação de determinada tarefa de
pesquisas de uma demonstração rigorosa. Como qualquer outra ci­
ência, a matemática nem sempre consegue de imediato estabelecer
a veracidade ou falsidade das suas hipóteses .
Mas a aplicação de hipóteses na matemática tem as suas par­
ticularidades específicas, uma das quais se formula da seguinte ma­
neira : a matemática demonstra as suas afirmações somente por meio
de deduções e cálculos lógicos, que sob a veracidade das premissas
verdadeiras levam a conclusões lógicas impecáveis, autênticas. "Para
o matemático o experimento é, no melhor dos casos, um modo de
orientação no sentido d a verdade matemática, que, entretanto, deve
ser sucessivamente demonstrada por via puramente lógica"z1 • Por

20 Id., p. 2 3 2.
21 Molódshy. Ensaios sobre
V. N. questões de fundamentação da male­
mdtica, Moscou, 1 95 8 , p. 70.

242
isto nos livros que expõem os resultados das verdades obtidas pela
matemática não há hipóteses, ali se expõem teses, teoremas com
demonstrações rigorosas, que, havendo autenticidade das premissas,
garantem a autenticidade das conclusões. Esta é uma das peculiari­
d ades da matemática, que a distinguem das ciências naturais onde as
hipóteses se inserem imediatamente no tecido da ciência.
Quanto à física, aqui não suscita objeção a afirmação de que
ela se desenvolve por meio de hipóteses. Hoje isto é um fato evi­
dente. As peculiaridades das hipóteses aplicáveis na física foram ana­
l i sadas pelo acadêmico S. 1. Vavílov no artigo "A física" , onde os
métodos da física foram divididos em três grupos : o método das hi­
p6teses modelares, o método dos princípios ·
e o método das hipóteses
matemáticas.
No método das hipóteses modelares lançam-se diversas teorias
à base das observações e da experiência habitual. Mas neste caso
toma-se como fundamento de todas as construções físicas a hipótese
de que todos os fenômenos na natureza ocorrem à semelhança dos
fenômenos do mundo das habituais proporções humanas comum
para nós. "Essa concepção se constitu i num modelo preciso para
a teoria dos processos cuja essência interior está oculta à observação
e experiência habitual . Supõe-se, por exemplo, que todo corpo é
constituído de partículas ( átomos ) isoladas, que se movimentam e in­
teragem pelas leis da mecânica, e nesse terreno cria-se a teoria ci­
nética da substância, a qual explica com bastante êxito muitas pro­
priedades mecânicas e térmicas dos corp os . . À base do método das
.

hipóteses modelares nasceu a teoria clássica do calor, da luz e do


som"22 •
O método das hipóteses modelares tem tanto as suas vantagens
como deficiências. Suas vantagens estão na evidência e intelegibili­
dade, as deficiências, na suposição arbitrária de que há semelhan­
ça entre as propriedades do mundo das proporções humanas e as
propriedades do rnicromundo, em decorrência do que ele é l i­
mitado e aproximado. Nesse método é limitada também a aplica­
ção da matemática : ac1ui ela é apenas um meio técnico auxiliar para
a execução de cálculos quantitativos .

Podem ser tornadas como exemplo das hipóteses modelares as


h i póteses primárias, que surgiram como resultado do descobrimento
d a radiatividade .

�2 S. I. Vavílov. Obras escolhidas, t. III, Moscou, 1 9 5 6, p. 1 56 .

243
O segundo método ( dos princípios ) parece q ue à primeira vis­
ta não está relacionado com a hipótese e a evita, indo diretamente
do experimento aos princípios . Ele se baseia na extrapolação, na
extrapolação dos dados experimentais. As leis observadas por via
experimental em um grupo limitado de fenômenos, estendem-se a u m
grupo mais amplo. A lei d a conservação da energia, por exemplo,
foi demonstrada experimentalmente para um círculo limitado de fe­
nômenos mas se generaliza como princípio vigente para qualquer sis­
tema físico fechado. Os princípios obtidos por via indutiva encon­
tram expressão matemática e se aplicam à solução de tarefas físicas
concretas . Baseia-se nesse princípios a termodinâmica clássica, a
teoria particul ar da relatividade que tem por base os princípios da
relatividade do movimento inerciai e da permanência da velocida­
de da luz .
A vantagem desse método está na grande precisão, suas defi­
ciências, no caráter abstrato e na pouca evidência. Nele a matemá­
tica também desempenha papel meramente técnico, auxiliar .
O terceiro método - o método das hipóteses matemáticas -
surgiu bem recentemente, tem por base a extrapolação de fórmulas
matemáticas. A qui a matemática desempenha um papel qualitativa­
mente diverso do desempenhado nos dois primeiros métodos. Neste
a matemática é não só um dispositivo técnico para a expressão q uan­
titativa das leis estabelecidas pela experiência mas também um meio
de conhecimento de novas leis .
Mas a extrapolação não pode ser ilimitada . Ela se limita, � m
primeiro lugar, ao experimento, em segundo, à correspondência en­
tre as fórmulas matemáticas extrapoláveis e as leis da física clás­
sica. As leis da física clássica são justas ao menos aproximadamen te
para os fenômenos com os quais o homem opera em sua experiên­
cia cotidiana, e isto significa que as fórmulas extrapoladas para essas
proporções devem coincidir com as leis da física clássica .
Um exemplo de onde se aplica o método das hipóteses mate­
máticas podemos encontrar na eletrodinâmica de Maxwell, na me­
cânica dos quanta e n a teoria geral da relatividade.
Aplicando os métodos de observação astronômica que ora nos
são acessíveis e conhecidos, por enquanto ainda é difícil verificar
a teoria geral da relatividade, que surgiu como resultado da extra­

polação. Mas algumas observações dão resultados correspondentes


ao princípio de igualdade das massas inerciai e gravitacional adotado
nessa teoria. Assim, a órbita de Mercúrio n ão se encontra em es­
tado de repouso em rel ação às estrelas i móveis mas gira lentamente

244
no sentido do movimento do planeta em torno do Sol ; com o correr
do tempo o perigeu de Mercúrio muda de lugar. E essa mudança,
que a teoria anterior explicava apenas parcialmente, insere-se bem
na teoria de Einstein .
O segundo fato que confirma a teoria geral da relatividade é
a observação do deslocamento da posição visível das estrelas em
torno do Sol durante os eclipses totais . Essas observações estão
em boa combinação quantitativa com a teoria que prevê a distorção
dos raios de luz quando estes se difundem no campo da gravitação.
Por último, a teoria geral da relatividade prediz o efeito do
deslocamento (por freqüência ) das linhas espectrais das estrelas em
comparação com a posição delas nos espectros obtidos em condições.
terrestres. Ao observar-se a luz das estrelas sob condições terres­
tres, o deslocamento deve ocorrer para o lado vermelho. Este des­
locamento foi fixado durante a observação dos chamados pigmeus
brancos. Essa coincidência das conclusões de um.a hipótese com os.
dados da observação reforça a hipótese e justifica a extrapolação .
Deste modo, vemos que em todos os métodos aplicados pel a
física no descobrimento de leis n a natureza a hipótese ocupa lugar
que nem de longe é o último. O primeiro e o terceiro são direta­
mente chamados métodos das hipóteses, mas no segundo (o dos
princípios ) n ão se dispensam as hipóteses. Isto porque, em essência,
antes que o princípio se torne tese autêntica ele é uma hipótese
cujas conclusões são verificadas constantemente na experiência, fato
que o conduz à consolidação enquanto princípio .
A hipótese também se aplica amplamente em todas as outras
ciências da natureza inanimada. Na química, por exemplo, basta
lembrar a hipótese atomicista que desempenhou grande papel em
todos os seus campos. Não é necessário falar do papel das hipó­
teses na cosmologia e geologia, que estudam os processos que,
conforme expressão de Engels, não poderiam ser observados por
nenhum homem e podem ser reproduzidos na prática humana, fato
que dificulta seriamente o estudo destes . Mas também neste caso·
a hipótese é um meio insubstituível de conhecimento desses processos.
Quanto às ciências dos fenômenos da natureza viva, também
neste caso merece recorrer a Engels . "Neste campo reina tal diver­
sidade de inter-relações e relações causais que não só cada q uestão
resolvida levanta uma imensa infinidade de novos problemas como
cada questão particular pode ser resolvida na maioria dos casos so­
mente por partes, através de uma série de pesquisas que exigem
freqüentemente séculos inteiros ; neste caso a necessidade de siste­
matização das relações estudadas nos obriga constantemente a cer-

245
car as verdades definitivas de uma floresta em última instância
densa de hipóteses"23 - escreveu Engels .
E realmente, nas ciências biológicas n ão há uma teoria autên­
tica que não tenha passado pela fase da hipótese . Se, digamos, a
princípio não existisse a hipótese da evolução do mundo orgânico,
então não haveria tampouco uma teoria autêntica da evolução.
O conhecimento dos f enômenos da vida social tem as suas par­
ticularidades específicas. Mas embora a ciência histórica, por exem­
plo, tenha as suas peculiaridades dimanentes da especificidade do seu
objeto, ela também está subordinada a leis especiais do movimento
do conhecimento, sobretudo ao desenvolvimento por meio de hipó­
teses. IÉ claro que a construção, fundamentação e demonstração das
hipóteses, assim como o seu próprio caráter, têm na ciência histó­
rica, e aliás em outras ciências sociais, os seus traços definitivos,
diferentes do processo semelhante que ocorre nas ciências naturais.
Seria um grande erro ignorar essa diferença. No entanto a sua
existência não afasta uma afinidade inerente ao desenvolvimento
do conhecimento científico não importa onde ele se realize .
Não em menor mas em maior medida que o objeto de algumas
ciências naturais, o objeto da ciência histórica exige a hipótese para
ser conhecido a fundo. Em regra, a história opera com fenômenos
que o próprio historiador não observa imediatamente, não pode
reproduzir artificialmente em sua prática nem experimentá-los . Ele
deve reproduzir num sistema de abstrações, de caráter relativo, o
quadro do passado, as leis do desenvolvimento da vida social de di­
versos povos, em diferentes épocas históricas. Além do mais, seu
conhecimento do passado sofre influência substancial de sua concep­
ção do mundo, dos seus ideais, etc. Assim, pela natureza da própria
ciência histórica, a reprodução do processo histórico no pensamento
também exige o lançamento de hipóteses, embora o historiador mes­
mo nem sempre tenha consciência de que a sua construção teórica
·

tem caráter hipotético .

4 . HIPÓTESE E VERDADE.
PROBABILIDADE E AUTENTICIDADE

Do que acabamos de expor deve ficar claro que a pes q uisa ci­
entífica em todos os campos passa pela fase da hipótese . Mas da-

23 K. Marx e F. Engels. Obras, t. 20, p. 89 .

246
qui surge inevi tavelmente uma pergunta : ao construir hipóteses, se­
guiria a pesquisa científica o caminho da verdade objetiva?
Essa pergunta surge diante das particul aridades da hipótese como
forma de conhecimento. Entre os juízos que a constituem há aqueles
cuj a veracidade ou falsidade ainda não foram estabelecidas, ou seja,
os juízo�·-sentenças. Além do mais o juízo problemático não existe sim­
plesmente n a hipótese mas ocupa nela posição central . O juízo pro­
blemático pode existir em qualquer sistema de conhecimento ci­
entífico, inclusive numa teoria cuja autencidade tenha sido de­
monstrada. Na hi pótese a sentença ocupa o lugar da resposta à
pergunta colocada no problema, ou seja, n ão é um juízo ordinário
mas um juízo que se encontra no foco do próprio sistema teórico .
Os jJízos que fazem parte de uma hipótese servem ou como funda­
mentação dessa sentença ou como efeito dela, i . e . , ou levam à sen­
tença ou derivam, eman am del a. Neste sentiçlo a sentença pode ser
considerada a alma da hipótese . /
Dado que na hipótese a sentença ocupa posição central , é per­
feitamente possível colocá-l as em identidade. Até hoje não se tem
subentendido por hipótese todo o sistema de conhecimento que sur­
giu para a explicação do objeto estudado mas apenas um momento
essencial desse sistema : a suposição . Assim o conceito de hipótese
se reduz ao juízo-sentença. Essa restrição nos parece ilícita, pois ela
não considera a hipótese um processo de movimento do pensamento
mas, apenas o resultado deste, ou melhor, uma parte do resultado.
A hipótese atua como forma de desenvolvimento do conheci­
mento científico não por ser ela um juízo-sentença . Tomada por
si só isoladamente, a sentença não desenvolve o conhecimento do
objeto : ela desempenha a sua função somente quando colocada em
conexão com o conhecimento antecedente autenticamente estabele­
cido. e. as conclusões que dele dimanam. No fundo, a hipótese faz o
nosso conhecimento avançar porque permite construir um s istema
de · conhecimento que leva a novos resultados .
O valor heurístico de uma hipótese consiste em que nela o
anteriormente conhecido está relacionado com o novo, o incógnito .
Esse fio que liga um conheci mento a outro é o que a hipótese cons­
titui. Assim, a análise lógica de uma hipótese significa a caracterís­
tica do sistema de conhecimento que a constitui, o qual é formado
de juízos e deduções diferentes por caráter. Nesse sistema há antes de
tudo juízos autênticos ; a hipótese que carece de todo conheci­
mento autêntico e demonstrado não tem valor científico. Na hipó­
tese o conhecimento autêntico é a base, o fundamento. Qualquer hi-

247
p ó t e se só tem valor qu an do baseada em f a t o s e leis ante s estabe­
lecidos solidamente .
Por sua e ss ênci a , como já d i ss emo s , a h i p ó t es e i n c orpora tam­
bém os juízos problemáticos, o u sej a, o s juízo s cuj a veracidade ou
falsidade ainda não fo i d e m o n s tr ad a , ,mas esses j uízos não devem
ser s up o s iç õ es arbitrárias ; sua veracidade deve ser fundamentada pelo
conhecimento antecedente antes demonstrado. Se a ci ência faz su­
posições sobre a p o ssib i li d ad e de vida em Marte, parte do conheci­
mento au tê n t i co de f ato s e fenômenos (a existência de atmosfera,
água, etc . , em Marte ) que tornam essa s up o s i çã o perfeitamente ló­
g ic a . A hipótese constituída de suposições arbitrárias não deixa ves­
tígio considerável n a ciência .
É diante disto que surge o problema da veracidade e da falsi­
dade das hipóteses científicas. Se isto é u m a suposição, então aq ui
não há "a verd a d e definitiva cm última instância", o que para o
metafísi co e qu i vale a que ela geral men t e não é verdade. E dado
que sem hi pó tese não há c i ê nci a , surge o ponto de vista sobre o
qual Engels escreveu : "Não tendo os naturalistas preparação lógi c a
e d i a l é ti ca , o número e a mudança das hipóteses que derivam uma
da outra suscitam facilmente entre eles a noção de que seríamos
i ncap a ze s de conhe cer a e ssênc i a das coisas . . . "24
Ao revelar as causas do idealismo físico, Lênin apresentava
como segunda causa " . . . o princípio do relativismo, da relativida­
de do nosso conhecimento, princíp i o que se impõe com ênfase es­
pecial aos físicos no período da destruiÇ ão radical das velhas teorias
e que, desconhecendo-se a dialética, l e v a fatalmente ao idealismo',.2 � .
Assim, Engels e Lênin achavam que o re l a t i vi smo, havendo des­
c o n h e cim ento da dialética ( inexistindo preparação lógica e dialética )
leva ao idealismo, a uma concepção deturpada da es s ê nc i a do co­
nhecimento. Em re l a ção à h ipó t e se esse desconhecimento se man i­
fe s ta na negação, na hi pó te se, de um reflexo obj etiv amen t e verda­
deiro, absoluto da realidade. O i n te r es se de cl asse dos f i l ó so fo s e
c i en t i stas burgueses con s o l i d a e m an t é m essa i n t erpre t aç ão defor­
m a d a da essência do conheci mento humano .
A s especulações idealistas em torno da hip6tese e do caráte r
d o conhecimento nela contido su rg em em decorrênci a do cará­
ter complexo da hi pótese como forma de co n h e c i m en to .

Z4 K . M arx e F. Engels. Obras, t . 20, p . 5 5 5 .


2 11 V. 1. Lênin. Obras completas, t . 1 8, p . 327.

248
O filósofo que está acostumado a pensar sob a forma do me­
t afísico "ou - ou", cai em impasse quando encontra um fenômeno
mais ou menos complexo em que essa fórmula se torna imprópria.
Para ele verdade e mentira são sempre e em qualquer parte opostas,
daí considerar qualquer j uízo (ou outra forma de pensar ) como
sendo ou absolutamente verdadeiro, ou absolutamente falso . Mas
a colocação do problema n a forma "ou - ou" é aplicável so­
mente aos juízos formulados, acabados, jacentes, de cada um dos
quais pode-se realmente dizer que é verdadeiro ou falso .
Quando o filósofo que só pensa na forma "ou - ou" encontra
uma forma de pensamento como a hipótese e necessita resolver o
problema da veracidade desta, ele, ao ver a impropriedade dessa
fórmula para o caso dado, cai no idealismo e nega a veracidade ob­
jetiva das hipóteses científicas .
A filosofia metafísica racional , que considera a verdade uma esta­


do estático e enfoca dogmaticamente o conhecimento, manifesta-se in­
teiramente incapaz quando tenta responder se a hipótese fornece ou
não um conheci nto objetivo do mundo. Partindo da concepção
dogmaticamente a imilada segundo a qual a hipótese não propicia­
ria um conheciment acabado do objeto, os metafísicas afirmam que
a hipótese e a verdade são, em termos gerais, absolutamente incom­
patíveis ( se é verdade então não é hipótese, e se é hipotese então
.
não é verdade ) . Em decorrência disto eles excluem da ciência as
hipóteses como algo inacabado, não-verdadeiro. Mas neste caso a
própria ciência se torna extremamente pobre, pois o seu desenvol­
vimento está relacionado com o lançamento de novas e novas hipó­
teses. E todas essas buscas de "verdades definitivas em última ins­
tância" levam os metafísicas à conclusão agnóstica de que a verdade
é geralmente inatingível .
Assim a filosofia metafísica chega ao relativismo . O dogmatismo
e o relativismo não são concepções opostas na teoria da verdade
mas dois aspectos do mesmo enfoque metafísico desta. Uma vez que
o nosso conhecimento é um processo relacionado com a mudança
das hipóteses, então não se pode nem falar de qualquer espécie de
verdade. Nas hipóteses e sua mudança está expresso da maneira mais
evidente e convincente que o pensamento científico é um processo. E
os relativistas percebem bem esta questão, mas a assimilam a seu
modo e a interpretam subjetivamente. As hipóteses e sua mudança
seriam um movimento do conhecimento no campo das noções pu­
ramente subjetivas do objeto ; substitui-se um quadro do mundo por
outro mais cômodo e praticamente proveitoso para o sujeito .

249
A dialética mostra que o movimento do pensamento em geral
e sob a forma de substituição das hipóteses em particular implica
na mudança do conteúdo objetivo do pensamento . No processo
desse movimento o pensamento apreende os fenômenos, as leis do
mundo exterior, o conteúdo dele assume caráter objetivo . Por isto,
quando se levanta a questão sobre se a hipótese é uma forma de
expressão do conhecimento objetivo-verdadeiro, isto implica em sa­
ber se n as hipóteses o desenvolvimento do pensamento segue o ca­
minho da obtenção do conteúdo objetivo ou se as próprias hipó­
teses e sua substituição se encontram em algum lugar à margem
d a apreensão do objeto pelo pensamento .
Para o dialético material ista n ão pode haver qualquer dúvida
d e lf Ue a hipótese científica surge e se desenvolve das necessidades
de aquisição do conhecimento objetivo do mundo, de que através
das h i póteses ocorre o conhecimento das propriedades e leis objetivas .
Enquanto processo de desenvolvimento do pensamento, a hipó­
tese i n corpora como certos momentos determinados resultados, um
sistema de .teses relativamente acabadas. Por isso, tanto em relação
à hi pótese ao todo como a teses particulares desta é lícita a coloca­
ção do problema do conteúdo objetivo dessas teses, da medida e m
·
que elas . apreendem as coisas, os processos da realidade tais q u ai s
eles existem independentemente da nossa consciência .
·
Com(. as outras formas de conhecimento, a hipótese é o reflexo do
mundo material na consciência do homem, uma imagem subjetiva
·
do m undo, . o bjetivo. A hipótese científica fornece o conhecimento
objetivo-verdadeiro das leis do mundo exterior, seu conteúdo não
depende d o homem nem da humanidade ; ela não é uma ficção,
um símbolo� um sinal estenográfico, um padrão lógico, um instru­
mento de trabalho, uma floresta acima do edifício da ciência nem as
suas muletas mas uma imagem cognitiva, uma fotografia dos obje­
tos, dos fenômenos do mundo material e das leis do movimento
destes . Mas como qualquer outra forma de conhecimento objetivo­
verdadeiro do mundo exterior, a hipótese não é uma cópia especular
morta da realidade mas u m processo ativamente criador de repre­
sen tação do · mundo .
A objetividade do conteúdo é propriedade inalienável da h ip ó ­
·
tese científica, que a distingue de toda sorte possível de construções
fantásticas, de invencionices com as q uais operam a religião e a
filosofia i dealista. Além do mais, entre diversas formas e tipos de
hipóteses científicas não há qualquer diferença no sentido de que
sua fonte e seu conteúdo são objetivos. A diferença entre eles está
apenas na plenitude da abrangência do objeto, no grau de precisão

250
do reflexo deste, no nível de assimilação da natureza objetiva do
objeto .
São ainda reflexo de certos aspectos dos fenômenos da reali­
dade objetiva construções hipotéticas provisórias como as versões .
Se a versão não incorporasse a representação de certos aspectos do
processo ou fenômeno em estudo ela não contribuiria para o mo­
vimento do nosso conhecimento na apreensão da natureza objetiva
do objeto. É ainda mais objetiva por conteúdo uma hipótese cienti­
ficamente fundamentada .
Em cada hipótese devem-se distinguir dois aspectos : 1 ) aquilo
que ela reflete no mundo objetivo e com que precisão o faz e 2 )
que perspectivas ela abre n o sucessivo movimento d o conhecimento
científico . Neste caso o segundo depende do primeiro. A eficiência
ou ineficiência, capacidade ou incapacidade de trabalho d a hipótese
é definida e medida pelo grau de sua veracidade objetiva. Quanto
mais conteúdo objetivo há na hipótese, tanto mais fecunda ela é e


vice-versa, as hipóteses que não contêm o grau necessário de conhe­
cimento objetivamente verdadeiro do objeto, que não abrem amplos
horizontes para o d envolvimento da ciência, não propiciam a devida
base para a descob ta de novas leis.
O próprio estu ioso não pode resolver de imediato o que n a
hipótese por el e lanç da é objetivamente verdadeiro e o que é não­
verdadeiro, pois isto é estabelecido pelo sucessivo processo de de­
senvolvimento do conhecimento. Por exemplo, das posições da mo­
derna teoria da luz para nós é hoje evidente o que era objetivamen­
te verdadeiro em hipóteses como as mecânicas ( corpuscular e ondu­
latóri a ) e a eletromagnética. Ao mesmo tempo hoje são igualmente
notórias as debilidades dessas hipóteses, seu caráter multilateral, que
leva ao afastamento da natureza objetiva do objeto. Mas para nós
é indubitável ainda que o desenvolvimento do conhecimento da na­
tureza da luz sob a forma de substituição das hipóte ses expressava
o movimento do conhecimento pela via da verdade objetiva, contri­
buía para o descobrimento da natureza desse movimento sob a for­
m a em que el a existe independentemente da consciência do ho­
mem. Cada uma dessas hipóteses era um momento, o resultado de
um dado processo nessa ou naquela etapa de desenvolvimento da
ciência, refletia certos aspectos do objeto e não era limitada por­
quanto o próprio objeto é mais rico e mais substancial que qualquer
uma delas .
Muitos pensadores reconhecem apenas o papel heurístico das
hipóteses, negando a importância obj e tiva delas . Acham eles que
a hipótese não é ciência mas algo situado por volta dela. A hipótese

25 1
desempenharia o papel de muletas das qu a i s a c1encia deve liber­
tar-se o quanto antes. E corno a s muletas podem ser de qu alque r
espécie, contanto que apóiern, então se usam hipóteses sumamen­
te d i ver s a s, que seri am criadas arbitrariamente, sem refletir os
processos objetivos que ocorrem n a natureza e na sociedade. As­
sim, por exemplo, Pierre Duhern afirmava que as n o ss a s hipóte­
ses não se refeririam nem poderiam referir-se à essência mesma das

coisas, daí não terem qu a l q u er valor objetivo. Elas seriam formu­


l adas arbit r ar iamente e não pretenderiam estab el e c er conexões ver­
d adeiras entre. as propriedades reais dos corpos. O ún ico limite des­
se arbítrio é a ausência de contra dições . O objetivo das hipóteses
seria apenas descrever simbolicamente as leis experimentais. "As
n o ssas teorias físicas não procuram absolutamente ser explicações ;
as nossas hipóteses não são absolutamente suposições relativamen­
te à própria natureza das coisas materiais. As nossas teorias visam
somente à gener a l iz aç ão econômica e à classificação d as leis exper i­
mentais"26 - escreveu Duhem .
Entre os filósofos ide a lista s e certa parcela de n a t ur alista s exis­
te a tendência a considerar a hipótese uma construção puramente
"operativa", "instrumental'', carente d e q ual qu e r conteúdo objetivo.
Além disso alguns deles pro cla ma m todas as hipóteses fantasias,
si mples invencionices de valor apenas prático mas que em nenhuma
medida r efl etem o mundo obj eti vo . P a ra eles a hi p ó tese é apenas
um procedimento artificial de pensamento, que s istematiza os co­
n h ecimentos existentes .
Imaginar todo o nosso conhecimento como sendo apenas uma
"hipótese de trabalho" ou mesmo uma função constitui a linha de
conduta de todos os defensores do agnosticismo e do fideísmo. Lênin
mostrou que se essa linha for aplicada de modo coerente, chegar-se-á
à conclusão d e que n ão só os átomos, elétrons, etc., mas também o
tem po , o espaço, as leis da natureza e todo o mundo exterior
c o n s t i tu e m um a sim p le s hipótese de trabalho27•

Esse caminho foi seguido por muitos pensadores burgueses, que


c aír a m nos braços do idealismo filosófico e do fideísmo. Assim ,
H . Poincaré escreve : "Para nós não é essencial se realmente existe
o ar ou não : que os metafísicas o resolvam ; p a ra nós o ma.ts im­
portante é a circunstância de que tudo ocorre como se ele exis-

2n P. Duhem. A teoria física. Fim e estrutura. S. Petersburgo, 1 9 1 O,


p. 262 ( ed. em russo) .
21 V. 1 . .Lênin. Obras c01npletas, t. 1 8 , p. 304.

252
ti sse e que essa hipótese é cômoda para a interpretação dos fenô­
·

menos. Em suma, será que dispomos de quaisquer outros funda­


mentos, exceto esses, para ter fé na existência dos próprios objetos
materiais? E isso é exatamente assim : apenas uma hipótese cô­
moda . . . "28 •
No caso dado, parece que o idealismo não necessita de outra
coisa senão proclamar o mundo exterior uma cômoda "hipótese de
trabalho" .
Em realidade, o conceito hipótese de trabalho surgiu com o fim
de distinguir o valor cognitivo de diversos tipos de hipóteses. Cha­
ma.:.se habitualmente "hipótese de trabalho" a uma das primeiras
explicações dos fenômenos que se prestam a certo período de tempo
como instrumento de sucessiva investigação do objeto. Por exemplo,
D . 1. Mendeléyev achava que as hi póteses de trabalho se prestam
a "um dado período de desenvolvimento da ciência"20, despertam a

curiosidade da mente mas estão distantes da realidade e são dispen­


sadas no estudo posterior do objeto. O cientista recorre a essas
hipóteses porque a pesquisa do objeto ele necessita orientar-se por
alguma idéia. Co o dizia Mendeléyev, " . . . é melhor sustentar uma
hipótese que com tempo pode revelar-se não-verdadeira que não
sustentar nenhuma"ªº .
Quando se constrói uma hipótese de trabalho, o principal não
é se ela explica correta ou incorretamente um processo (na etapa
i nicial . de estudo esse aspecto pouco interessa ao estudioso ) mas o
que ela dá para a sucessiva análise desse processo, como lhe aju­
da a orientar o seu pensamento no sentido de um estudo mais de­
t alhado e profundo do objeto ou fenômeno .
Para que o processo de localização e descrição dos fenômenos
tenha caráter orientado para um fim, planificado consciente, para
l] UC o estudioso descubra os fatos não por meio da sensibilidade,
da intuição, casualmente, é necessário orientar-se em alguma idéia­
guia cujo papel, em casos isolados, é desempenhado pela hipótese
primária ou hipótese de trabalho. Após construir semelhante hipó­
tese, o estudioso procura os fatos, os fenômenos que devem existir
caso o conteúdo da hipótese corresponda à realidade. E caso não se
descubram tais fatos, descobrindo-se, ao contrário, fatos contrários

zs H. Poincaré. Ciência e hipótese. Moscou, 1 904, p. 23 1 .


2e D . 1. Mendeléyev. F"ndamentos de química, t . 1 , Moscou-Leningrado,
1 947, p. 358.
a o ld., p. 1 5 1 .

253
à hipótese, então o estudioso a abandona e constrói uma nova hi­
pótese de trabalho .
A impossibilidade de encontrar quaisquer fatos que corres­
pondem à hipótese lançada tem, para a explicação dos fenômenos,
importância às vezes n ão inferior à descoberta dos mesmos, dado que
ao se explicarem os fenômenos é importante saber não só o que
existe, que fenômenos e fatos existem mas aquilo que n ão existe,
os fenômenos ou relações que não se descobrem . A inexistência
desses fatos ou fenómenos é como se nos levasse a lançar outra
hipótese que melhor refletisse a realidade.
Às vezes o estud ioso constrói não uma mas de imediato várias
hipóteses de trabalho e verifica minuciosamente cada uma. No pro­
cesso de estudo desses ou daqueles fenômenos l ogo descobre que
uma das hipóteses não corresponde à realidade, e ele a bandona; a
probabilidade das outras nesse caso, ao contrário, cresce. E assi m
processegue até que se descubra uma hipótese mais provável, que
explique de modo mais ou menos comp leto todos os fatos existentes .
O estudo dos fenômenos do ponto de vista de várias hipóteses
simultâneas assegura o enfoque multilateral da pesquisa e, como se
sabe, a multilateralidade é uma das exigências da lógica dialética ,
ela, como observou Lêni n , nos protege dos erros e da necrose .
:f: evidente que as chamadas hipóteses de trabalho são menos
importantes do ponto de vista do movimento no sentido da aquisi­
ção do conhecimento autêntico do que as outras hipóteses que pre­
tendem que com o tempo terão demonstrada sua autenticidade, e
aquelas impostas como reais. Mas a diferença e n tre esses dois tipos
de hipótese - a real e a de trabalho - tem caráter relativo . A con­
traposição acentuada, absoluta de uma à outra leva à metafísica e
ao idealismo . Essa relatividade se manifesta particularmente no fato
de que, n o processo de conhecimento; uma delas se transforma n a
outra. Assim, a hipótese d e trabalho é uma das primeiras suposições
q ue surgiram no começo da pesquisa científica ; após ser especifica­
da a hipótese se torna real , serve para explicar todos os fatos da
realidade colhidos e pretende a demonstração. E, ao contrário, a hi­
pótese que a prin cípio se considerava real, no processo de i nvesti­
gação pode tornar-se apenas hipótese de trabal ho, pois se desco­
brem fatos que a contradizem ; agora, na aquisição de um conhe­
cimento mais pleno e preciso, el a começa a desempenhar outro papel
e exercer outras funções intermediárias de caráter provisório .
Assim, por exemplo, a hipótese dos quanta surgiu em Plan t:k
a princípio como explicação de trabalho provisória da lei de emis­
são de corpo negro. Depois transformou-se em hipótese real, o que

254
ocorreu especialmente depois que Bohr a aplicou para explicar a
estrutura do átomo .
Deste modo, a suposição provisória de trabalho converteu-se
em hipótese de grande valor científico .
O oposto aconteceu com a hipótese do éter, que para a ex­
plicação dos fenômenos da difusão da luz e da eletricidade pressu­
punha a existência de uma substância extremamente fina e · flexí­
vel - o éter ; embora se considerasse real essa hipótese, na his­
tória da física ela desempenhou de fato o mero papel de hipótese
de trabalho .
Na avaliação da hipótese verifica-se com muita freqüência a
substituição de conceitos. Quando se trata de hipótese, cabe respon­
der, em verdade, não a uma mas a duas perguntas : 1 ) se nela o de­
senvolvimento do conhecimento segue o caminho da verdade obje­
tiva e 2 ) como e até que ponto é fundamentada sua suposição, per­
maneceria esta provável e em que grau ou plenitude fica demonstra­
da sua veracidade?
Não se podem confundir as categorias de probabilidade e au­
tenticidade com as categ()fias de verdade e equívoco. Cada um des­
ses pares tem seu conteú cm . As categorias de verdade e equívoco
caracterizam o nosso conhecimento partindo de como a realidade
objetiva está representada no nosso pensamento : tal qual ela existe
fora d a nossa consciência ou em forma deturpada, com a inserção
de propriedades, relações e leis a ela não-inerentes?
No entanto, na caracterização do conteúdo do pensamento não
se deve limitar-se à simples definição de como e para onde se mo­
vi menta o conhecimento : pelo caminho da verdade objetiva ou do
equívoco. E necessária uma apreciação mais pormenorizada dos
resultados do pensamento, analisar e estabelecer mais a fundo em
que grau foram demonstrados os juízos que i ntegram um dado
sistema de conhecimento. Quando se trata de hipótese, então o pro­
bl ema surge antes de tudo em relação à suposição, que já foi abor­
dada em forma geral ; aqui já é oportuno focalizar esse conceito
mais pormenorizadamente .
Como se sabe, existem na ciência diversas formas de suposi­
ções, cada uma das quais possuindo as suas peculiaridades. Podem­
se distinguir entre elas os seguintes tipos, usados na ciência : 1)
suposição ou conjetu11a voltadas para a demonstração da veracidade
do juízo que contradiz essa conjetura ; 2) suposições met6dicas, lan­
çadas com o fim de estudar um processo qualquer em forma pura ;
3 ) suposição de um processo qualquer ou fenômeno, quando não se

255
coloca a tarefa de obtê-la na prática e, por último, 4 ) suposição da
hipótese .
Caracterizemos em breves palavras a função gnosiológica de to­
dos esses tipos de suposições com o fim de melhor elucidar as pe­
culiaridades na suposição da hipótese.
Não raro o pensamento pode assumir apenas a forma exterior
da suposição, sem em essência constituí-la . Fazem-se habitualmen­
te tais suposições nas demonstrações de um juízo qualquer. Para de­
monstrar o juízo A, pressupõe-se como verdadeiro o juízo n ão-A.
Dessa suposição deduzem-se efeitos cuja falsidade é evidente. Da
falsidade dos efeitos de não-A conclui-se sobre a falsidade do próprio
não-A, e da falsidade do n ão-A passa-se ao estabelecimento da ver­
dade de A com base na lei do terceiro excluído. Neste caso a con­
jetura ou suposição atua como procedimento na demonstração, dan­
do-se ênfase à demonstração não dessa suposição mas do juízo a
el a oposto. Por exemplo, na demonstração do teorema segundo o
qual duas paralelas não se cruzam na geometria de Euclides, faz-se
a suposição : suponhamos que elas se cruzem. Essa suposição leva a

efeitos falsos, logo, ela mesma é falsa; conseqüentemente, é verda­


deira a afirmação que a ela se opõe : as retas paralelas não se
cruzam .
No caso dado a suposição não serve de base, de idéia para
a construção de um sistema científico de conhecimento que permite
obter novos resultados, descobrir fatos antes desconhecidos . Seu
papel é muito restrito : é apenas um método de demonstração quan­
do se toma consientemente por verdadeiro o juízo falso . iB evidente
tiue na hipótese a suposição tem outro caráter e exerce outra fun­
ção. Aqui a suposição não é uma forma, não é uma conjetura ar­
bitrária mas uma expressão do nível do conhecimento sobre o obje­
to, quando ainda não foi conseguida uma expl icação fidedigna deste
e lança-se apenas uma das prováveis. Na hipótese empreende-se
aquilo que realmente ainda não foi estabelecido com precisão . As­
sim, o juízo segundo o qual em Marte há vida, o qual se insere no
tecido da hipótese, é de fato apenas uma suposição, pois a ciência
moderna ainda não pode estabelecer com autenticidade a sua ve­
racidade .
O segundo tipo de suposições é a conjetura, que se aplica n a
ciência visando à simplificação e ao estudo do fenômeno, do pro­
cesso em forma pura. Essa suposição serve de base de uma das for­
mas da abstração - a simplificação, q ue difere de outros tipos de
abstração. Essa simplificação está relacionada com uma série de
suposições, que admitem elucidar em forma pura qualquer processo

256
ou aspecto. Por isto, ao estudar esses ou aqueles fenômenos, o cien­
tista faz toda sorte de suposições e conjeturas. O ciberneticista, por
exemplo, ao considerar o cérebro humano como transformador de
i n formação, constitui para si um modelo condicional desse proces­
so, que, evidentemente, está relacionado a uma série de suposições
e simplificações. Ele concebe o cérebro em plano puramente infor­

macional, pressupondo que as células cerebrais atuam igualmente


como os elementos sem icon dutores no computador eletrônico e que
em cada momento dado o homem pode assimilar somente a infor­
mação final. Mas não se fazem todas essas suposições visando a
demonstrá-las, pois elas são empregadas como procedimento, como
método de pesquisa científica ; através delas distingue-se o processo
q ue é necessário estudar em forma não-deturpada pelos acasos.
Esse tipo de suposições difere do primeiro. iÉ um procedimen­
to não na demonstração do juízo conhecido mas no estudo do objeto,
é um método de fo rmação de abstrações. Aqui a suposição exer­
ce a função não de demonstração mas de pesquisa do objeto, e neste
sentido está mais próxima da hipótese. No entanto ela difere essen­
cialmente do conteúdo e papel da suposição na hipótese. No caso
dado, o estudioso que faz toda sorte d e suposição não está absolu­
tamente interessado no conteúdo delas e ele não se dedica a anali­
sá-fas e muito menos a demonstrá-las . Seu objeto de estudo é outro
bem diferente . Aqui se fazem suposições para aproximar-se da
pesquisa do seu objeto e facilitar a compreensão deste . A suposi­
ção liberta o cientista daquilo que lhe dificulta conceber o processo
cm forma pura ; através dela ele se liberta das casualidades perturba­
doras. Na hipótese, como se sabe, a suposição ocupa outro lugar e
exerce função inteiramente diversa. Constitui o centro, o foco da
hipótese, para ela se volta toda a atenção do estudioso, à base
dela ocorre o sucessivo movimento do pensamento, o descobrimento
de novos fatos e leis .
As suposições feitas visando ao estudo do objeto ou processo
cm forma pura constituem importante procedimento da pesquisa ci­
en tífica. Mas caso a transformemos em método filosófico universal
de conhecimento dos fenômenos da natureza e da sociedade, ela
será unilateral e ao invés de meio de obtenção da verdade tornar­
se-á modo de deformação da realidade .
Por último, o terceiro tipo de suposição na ciência é consti­
tuído por aquelas nas quais se concebe como existente algo ideal ,
real mente inatingível porém indispensável para a compreensão das
leis do movimento dos fenômenos. Assim, por exemplo, o "zero
absoluto" introduzido por W. Thomson é o limite a que tende a

257
temperatura do corpo congelado por um método mais eficiente .
Como outros conceitos semelhantes, o conceito de "zero absoluto"
tem conteúdo objetivo, é um reflexo do mundo objetivo. Ele n ão é
alguma invencionice estéril, uma ficção, mas uma das mais impor­
tantes abstrações da física, que permite penet rar a fundo na essên­
cia dos fenômenos térmicos. O conteúdo objetivo dessa abstração
consiste em ela refletir, juntamente com outros conceitos, o pro­
cesso real de mudança do estado da substância em decorrência do
declínio da temperatura .
Esse tipo de suposição difere dos dois anteriores, pois não
é um procedimento na demonstração nem um método pelo qual es­
tuda-se o objeto que nos interessa. É evidente que quando fazemos
suposições simplificadoras, pressupomos também aquilo que na rea­
lidade não existe. Mas neste caso essa suposição n ão nos interessa ;
ela é necessária apenas enquanto meio d e estudo d e outra. No mes­
mo caso é a própri a suposição que se submete à análise e ao es­
tudo : ela comporta o conhecimento que nos interessa, seu papel
heurístico é suscetível de investigação e revelação ; à base dessa su­
posição surge todo um sistema de conhecimento, uma construção
teórica. Por isso semelhante forma de suposição é por conteúdo
gnosiológico bastante próxima da suposição na hipótese. Apesar
disto, entretanto, entre a suposição que fazemos no conceito de "zero
absoluto" e a suposição na hipótese há uma diferença essencial .
Esta diferença, porém, não consiste em ter a primeira valor objeti­
vo e a segunda, não. Ao introduzir o conceito de "zero absoluto" ,
ao fazer suposições sobre o gás ideal e as condições sob as quais
é possível ati ngir essa temperatura, o cientista coloca em primeiro
plano não a obtenção prática dessa temperatura ou de outra pró­
xima dela mas a explicação da importância dessa suposição para o
conhecimento das leis da física .
Diferente é o caráter da suposição na hipótese, onde o sentido
daquela consiste justamente em demonstrar a existência real do
suposto. Por exemplo, a ciênci a procura demonstrar a veracidade
da suposição relativa à existência de vida em Marte, suposição enun­
ciada com base n u m a infinidade de fatos e condições objetivas, reais,
precisamente estabelecidas em Marte, estreitamente vinculadas a
fenômenos como a vida .
A suposição na hipótese perderia seu sen tido se nela mesm a
estivesse antecipadamente prevista a irrealidade do seu conteúdo.
Além disso, ao lançar uma hipótese o cientista parte da possibilida­
de de sua demonstração . J. S. Mill enfatiza bem esse aspecto da h i­
pótese ao escrever : " . . . A condição de uma hipótese propri amen-

258
te científica é, ao que parece, o fato de ela não ter sido condenada
a permanecer eternamente hipótese, o fato de poder-se ou demons­
trá-la, ou refutá-la comparando-a a fatos observados"31 •
Após examinarmos diversos tipos de suposições, diferentes da
suposição na hipótese, podemos agora conceber com precisão as
peculiaridades da última : a) essa suposição constitui um meio de
conhecimento do objeto, de suas relações e leis essenciais ; b) o co­
n hecimento nela contido tem caráter probabilístico ; c ) no processo
·
de fundamentação e desenvolvimento da hipótese a suposição deve
ser demonstrada nesse ou n aquele aspecto, ou refutada e substituída
por outra ; d ) à base dela constrói-se um sistema de conhecimento
que permite descob rir novos fatos e leis e, conseqüentemente, se
constitui em instrumento de movimento do conhecimento .
Deste modo, a suposição na hipótese deve ser demonstrada mas
o seu grau de demonstrabilidade pode ser diverso . Quando se tra­

t a de uma hipótese científica, qualquer suposição desta deve obriga­


toriamente submeter-se à análise do ponto de vista de sua proba­
bilidade.
Nenhuma tese que na hipótese surgiu por meio da imaginação
cien tífica pode ser aceita se não for fundamentada a sua probabili­
dade. Daí assumir i mensa importância o estudo das formas e meios
de aquisição do conhecimento provável, a fundamentação da pro­
babilidade dessa ou daquela tese. A isto se dedica a lógica formal,
sobretudo uma de suas partes, a lógica probabilística, cujo disposi­
tivo evoluiu de modo bastante acentuado diante das necessidades
d a ciência moderna.
, . A lógica formal estuda atualmente a hipótese somente de um
aspecto : de que modo pode-se avaliar a probabilidade aproximada
de um enunciado integrante da hipótese científica? Ela chama hipó­
te.re3 2 ao enunciado cuja veracidade ou falsidade não tenha sido
estabelecida. A probabilidade dessa ou daquela hipótese se determi­
na relativamente a outros enunciados que se reconhecem por ver­
dadeiros. Quando um enunciado qualquer dimana destes de modo
rigorosamente lógico, sua probabilidade equivale a J, vale dizer,
ele � verdadeiro ; quando ele os contradiz logicamente, sua proba­
bilidade equival e a O. Em todos os outros casos a probabilidade

?1 J. S. Mill. O sistema da lógica. Moscou, 1 9 14, p. 45 1 .


ª2 Aqui o termo "hipótese" se
emprega em sentido restrito não como
sistema de conhecimento mas como enunciado isolado.

259
oscila de O a J, de vez que o enunciado não deriva de modo rigo­
rosamente lógico do conhecimento existente e ao mesmo tempo
não o contradiz .
A lógica probabilística que na verdade é a teoria lógica moderna
das conclusões in dutivas propõe-se a tarefa de elaborar um dispo­
sitivo para a avaliação da fundamentabilidade de hipóteses isoladas
que concorrem entre si .
A importância desse di spositivo é especial mente grande se con­
siderarmos que o estudioso lança de uma só vez várias suposições
e necessita escolher a mais provável dentre elas .
O estabelecimento do grau de probabilidade da suposição na hi­
pótese não significa a solução do problema da veracidade ou falsi­
dade da hipótese no seu todo . Sabe-se que a tese científica const i ­
t u i todo u m sistema de teses, sendo umas autênticas e outras pro­
váveis. As prováveis estão em certa conexão lógica com as autên­
ticas. Todo conhecimento provável na ciência jaz em algo autêntico ;
a probabilidade que não se baseia em alguma autenticidade consti­
tui uma opinião meramente subjetiva e carece de importância na
ciência .
Por outro lado, a autenticidade não excl ui a probabilidade. O
pensamento em evolução sempre leva implícito certo elemento do
provável, do aproximado ; ao estabelecer algo autêntico, ele coloca
um novo problema e à base desse autêntico enuncia a suposição que
exige verificação e demonstração . Por isto o provável à base da
demonstração se converte em autêntico, enquanto que este gera o
provável ; no processo de desenvolvimento do pensamento o prová­
vel e o autêntico estão inter-relacionados e se condicionam um ao
outro .
Quando se coloca o problema da veracidade ou falsidade de
uma hipótese, deve-se então falar não de teses isoladas desta mas
d e todo o sistema de conhecimento, evolua esse sistema no sentido
do enriquecimento do seu conteúdo objetivo ou pelo caminho da
separação entre o pen samento e a realidade . Entre a verdade e a
falsidade enquanto processos de pensamento n ão há nada de inter­
mediário. O pensamento pode desenvolver-se no sentido da verda­
de objetiva ou pelo caminho do equívoco. IÉ verdade que, como j á
observamos, o processo verdadeiro pode incorporar também u m mo­
mento de não-verdadeiro, podendo o e g uívoco ter certo aspecto ver­
dadeiro, mas a existência do ilusório no verdadeiro e do verdadeiro
no falso não cria nada de intermediário entre verdade e equívoco
como dois processos de desenvolvimento do pensamento ; ela apenas

260
ca racteriza a complexidade e o caráter contraditório da própria ver­
d a d e enquanto processo .
Por sua vez, a afirmação de que entre a verdade e a falsidade
h á algo intermediário, probabilidade, pode levar a uma concepção
agnóstica da inacessibilidade da verdade em geral. Isto verificamos
nos positivistas contemporâneos, que a princípio proclamam pro­
vável todo o nosso conhecimento do mundo objetivo e depois ne­
gam o conteúdo objetivo da probabilidade. Para eles, a probabilida­
de não tem relação com a veracidade, existe como uma espécie de
terceiro, de intermediário entre a verdade e a falsidade. � B. Rus­
sel que escreve : "O fato de todo o conhecimento humano ser duvi­
doso em maior ou menor grau é uma doutrina que nos veio da An­
tiguidade ; ela foi proclamada pelos céticos e pela Academia em
seu período cético . No mundo moderno ela é consolidada pelo pro­
gresso da ciência"ªª .
A verdade é objetiva, seu conteúdo não depende da consciência
do homem, ela n ão muda dependendo da demonstração. Assim, o
juízo : "em Marte existe uma forma biológica de matéria em movi­
mento" é ou verdadeiro ou falso por natureza, por força do seu con­
teúdo objetivo, independentemente da nossa demonstração ( ou l á
existe vida e o nosso juízo é verdadeiro, ou n ã o existe e ele é falso ) .
Na fase atual de desenvolvimento do conhecimento apreciamos o
referido juízo como sendo provável, mas isto não significa que por
natureza, por conteúdo objetivo, ele não seja verdadeiro nem falso
mas algo intermediário. A probabilidade não é uma característica do
conteúdo objetivo do juízo mas uma avaliação do seu grau de fun­
damentabilidade, de demonstrabilidade. O juízo : "existe vida bioló­
gica no Sol" é falso por conteúdo objetivo mas autêntico por demons­
trabilidade, enquanto o juízo : "em Marte há seres vivos" pode ser ou
verdadeiro, ou falso por conteúdo objetivo, sendo provável pelo
grau de fundamentabilidade .
A probabilidade traduz imediatamente a relação lógica de um
dado juízo com outros juízos cuja veracidade foi estabelecida, e não
uma relação do juízo com a realidade objetiva. A mudança do
grau de probabilidade do juízo não significa quaisquer mudanças no
seu conteúdo objetivo. não leva à redução ou ao aumento dos mo­
mentos objetivo-verdadeiros neste, ao b animento das ilusões do
conhecimento. Por exemplo, se a ciência descobrir um novo argu-

ªª B. Russel . O conhecimento h umano, Moscou, 1 957, p. 416 (ed. em


russo ) .

261
menta a favor do juízo segundo o qual "há seres vivos em Marte" ,
então a probabilidade desse juízo naturalmente aumentará mas em
seu conteúdo objetivo não haverá quaisquer mudanças, não aumen­
tarão quaisquer novos momentos, ele permanecerá o mesmo, mu­
dando apenas a nossa atitude diante dele . Por isto o desenvolvimen­
to do conhecimento do equívoco à verdade deve ser distinguido de
sua transição da probabilidade à autenticidade. No primeiro caso
ocorrem mudanças radicais no conteúdo do próprio conhecimento,
muda a imagem cognitiva, ou sej a, da imagem que deforma a rea­
lidade realiza-se a transição a uma nova imagem que reflete a na­
tureza objetiva do objeto tal qual ela existe fora da dependência
da nossa consciência. No segundo caso, q uando se realiza a transi­
ção da probabilidade à autenticidade, o conteúdo objetivo da ima­
gem cognitiva no fundamental não muda, continua o mesmo ( ou
verdadeiro, ou falso ) mas ocorre a conscientização, pelo sujeito pen­
sante, da veracidade ou falsidade do conhecimento, mudando com
isto também a nossa atitude face a el e. 'É verdade que o processo
de demonstração do conhecimento incorpora, em certa medida, tam­
bém a mudànça do seu conteúdo .
O conteúdo do j uízo verdadeiro, repetimos, não depende do
modo pelo qual é demonstrado nem mesmo do fato de sua veraci­
dade haver ou não sido demonstrada. A mesma idéia, a mesma tese
pode ser demonstrada e verificada p01; diversos modos e métodos,
mas o conteúdo do juízo não muda por isso ; esse conteúdo é deter­
minado apenas pelo mundo objetivo, pelas leis do movimento dos
seus fenômenos. Os métodos de verificação de um juízo estão rela­
cionados ao nível de desenvolvimento da prática social e da ciência.
Por exemplo, em diferentes épocas históricas os homens demons­
traram de diferentes modos a forma redonda da Terra, mas a ve­
racidade do juízo "a Terra é um Globo" n ão dependia do meio de
demonstração ; ela é determinada pelo fato de que o conteúdo desse
juízo reflete a realidade obj etiva .
A demonstração e os seus métodos têm , evidentemente; enorme
importância na conscientização da veracidade, no estabelecimento da
convicção de que o conteúdo do juízo reflete a própria realidade
objetiva mas a queles não constituem o conteúdo do juízo . Os posi­
tivistas contemporâneos identificam o conteúdo objetivo do pensa­
mento com o critério e os métodos de sua verificação, alegando que
o conjunto das operações de verificação constitui o sentido científico
e o conteúdo do pensamento . Isto, por sua vez, implica na substitui­
ção do objetivo pelo subjetivo, ou seja, a negação da possibilidade

262
de veracidade objetiva do pensamento, da independência do seu
conteúdo diante do homem e da humanidade .
Ao mesmo tempo, a probabilidade e a autenticidade estão vin­
culadas à veracidade. O provável é o conhecimento de um grau
de precisão e fundamentabilidade, o autêntico, de outro grau, su­
perior; no processo de movimento do pensamento a probabilidade
se converte em autenticidade, enquanto que esta gera nova proba­
bilidade. Neste sentido cabe à probabilidade um papel ativo no
dom friio do objeto, na apreensão das suas propriedades. Tradu zin­
do determinado nível de conhecimento do objeto, sua apreensão até
certos limites, o juízo da probabilidade constitui o caminho para a
obtenção da verdade objetiva no aspecto mais pleno e acabado .
Por conseguinte, a probabilidade, assim como a autenticidade,
que são momentos subordinados à veracidade objetiva, não podem
ser divorciados e contrapostos à verdade. O papel delas pode ser en­
tendido somente em face da análise das leis de obtenção do con­
teúdo objetivo-verdadeiro pelo pensamento .
Assim, pois, a hipótese científica é uma forma de movimento
do conhecimento objetivo-verdadeiro, nela estão expressos os resul­
tados - do conhecimento desse ou daquele objeto em dado nível de
desenvolvimento da ciência. As peculiaridades da verdade objetiva
que a hipótese nos propicia consistem em que esta última contém
teses cuja veracidade está fundamentada a um elevado grau de pro­
babilidade. Além do mais, essas teses ocupam posição essencial na
hipótese, traduzem o seu princípio, constituem o seu centro. Mas a
existência dessas teses prováveis, como pudemos nos convencer, não
exc1ui o fato de ser a hipótese um processo de apreensão da n atureza
objetiva do objeto pelo pensamento ; ela apenas confere originalida­
de a esse processo .

5 . FATORES L ÓGICOS E EXT RAL Ó GICOS DE


FORMAÇÃO E D E S E NVOLVI M E NTO DE UMA H I P Ó T E S E

Qualquer estudioso sempre se interessa pela c1uestão do surgi­


mento de uma hipótese . Responder a essa questão é fácil e difícil .
Indiquemos antes de tudo o papel d a experiência e diversas for­
mas de dedução na formação de uma hipótese.
A hipótese está rel acionada com o experimento como o pen­
samento teórico com o empírico . A tese segundo a qual o pensa­
mento teórico surge à base do con hecimento experimental mantém-

263
se em vigor também em relação à hipótese. No entanto, não pode­
mos nos lim itar a essa afirmação quando se trata de esclarecer a
atitude da hipótese face ao experimento . É igualmente incorreta
a outra afirmação segundo a qual toda hipótese tem como funda­
mento o experimento, constituindo ela mesma um espécie de elo pro­
visório entre o experimento e o pensamento teórico. Muitas hipóte­
ses, é claro, surgem como generalização dos resultados justamente do
estudo experimental dos fenômenos da realidade. Mas paralelamente
a elas há aquelas construídas não à base do experimento anterior
mas de outras teses teóricas. Por exemplo, a hipótese da teoria únicn
do campo n a física teórica moderna não está relacionada diretamente
com algum experimento determinado ; ela surgiu como generalização
de todos os conhecimento teóricos da física atinentes às partícul as
elementares e aos campos .
No desenvolvimento do conhecimento científico moderno po­
de-se observar a seguinte tendência : é como se o pensamento se
distanciasse do experimento, tornando-se cada vez menor o número
de construções teóricas e hipóteses que surgem imediatamente como
generalizaçã.o do experimento ou observação.
Tomando como base os seus resultados anteriores, o pensamen ­
to tem impulsos ousados, lança novas hipóteses que anteced@m as
experiências e experimentos. Entre alguns cria-se a impressão de
que agora rompe-se a estreita ligação, a união entre o experimento
e a especulação. Em realidade isto significa que a relação do pen­
samento com a experiência, ao contrário, torna-se antes mais e s ­
treita, mais orgânica, mudando sua forma de manifestação .
O pensamento teórico atual assume em proporções cada vez
maiores traços inerentes à sua n atureza. A tarefa do pensamen to
não é apenas registrar os resultados da experiênci a e da observação
t.: com base neles atingir aquilo que é inacessível à experiência e �

observação. Hoje já não têm grande importância as hipóteses lança­


das com o fim de expl icar certo círculo de dados empíricos . Hoje
não são elas que determinam o estado d a ciência e as perspecti vas
do seu desenvolvimento. Atualmente as hipóteses surgem em base
extremamente ampla, num rico m aterial teórico e empírico tom ado
de diferentes campos da ciênci a ; neles se generalizam não só os
experimentos e observações mas também as teorias anteriores. Por
isso é mais correto considerar que a toda hipótese antecede certa
acumulação de conhecimentos, inclusive empíricos, que são os que
constituem a base d a hipótese. Em diversas hipóteses a correla­
ção entre o teórico e o empírico no conhecimento antecedente é
diferente ; num caso predomina o empírico, noutro, o teórico . Al ém

264
do mais, podem haver hipóteses construídas à base da generalização
apenas dos conhecimentos teóricos antecedentes.
Citemos alguns exemplos da história da ciência. A teoria espe­
cial da relati vidade, como qualquer outra teoria, passou pela fase
da hipótese. Ao criar essa teoria, Einstein se baseou em experimen­
tos, particularmente nos experimentos de Albert Michelson. Mas os
resultados negativos dos experimentos de Michelson não represen­
tam o ú n ico fundamento para o surgimento da teoria especial da re­
latividade, que se constituiu no resultado do desenvolvimento da
eletrodinâmica dos ambientes móveis. Ela tem como premissa ::i
síntese dos fenômenos elétricos, magnéticos e luminares, à qual a ci­
ência chegara antes . Os experimentos de Michelson serviram ape­
nas de impulso acelerador na transição a concepções absolutamente
novas, desempenhando papel substancial na criação da teoria da
relatividade. Quanto à te oria geral da relatividade, esta deve seu
surgimento, em medida ainda menor, ao experimento físico ime­
diato ou à observação astronômica. ;e evidente que semelhante teo­
riaria não podia mesmo surgir como generalização dos dados expe­
rimentais. Ela surgiu como uma nova síntese dos conhecimentos
antecedentes, sobretudo do conhecimento da teoria especial da rel a­
tividade, das idéias geométricas de Lobatchevsky, Bolyai, Rie­
mann, etc .
Como exemplo de hipótese imediatamente relacionada com o
experimento, podemos indicar a hipótese da existência do neutrino.
Em sua época foi descoberto por via experimental o caráter inin ter­
rupto do espectro dos raios beta. E eis que ao elucidar esse fato
experimental W. Pauli lançou a hipótese segundo a qual na desin­
tegração-beta desprende-se do núcleo não uma partícula, o elétron ,
mas duas : o elétron e mais uma partícula desconhecida ( o neutrino ) .
Os exemplos citados caracterizam como que três tip os de hi­
póteses cm sua atitude em face do experimento : 1 ) a hipótese que
surge imediatamente para a explicação do experimento ; 2) a hi­
pótese em cuj a formação o experimento desempenha papel determi­
n ado mas não exclusivo ; 3 ) a hipótese que surge à base da genera­
l ização apenas das construções teóricas antecedentes .
. No entanto, em todos etises casos aborda-se a atitude da hipó­
tese face ao experimento apenas de um aspecto : do papel exercido
imediatamente pelo experimento no surgimento e fundamentação da
hipótese . Mas isto não esgota a ligação da hipótese com o experi­
mento. Num plano gnosiológico amplo, ao experimento está vincu­
lada toda hipótese enquanto forma de conhecimento teórico, e de
um conhecimento multilateral em todo o seu processo de desen-

265
volvimento . Em primeiro lugar, até quando a hipótese surge à base
da generalização somente das construções teóricas antecedentes, sua
gênese está assim mesmo relacionada com o experimento, pois · as
construções teóricas que lhe serviram de fundamento se apóiam,
em suma, na experiência · multiforme do homem . Em segundo lugar,
a hipótese não apenas serve como explicação do experimento como
prediz novo experimento, antecipa-o. Também neste sentido toda
hipótese independe de como surgiu, tem relação direta com o ex­
perimento. A teoria geral da relatividade não se baseou, em 5eu
surgimento, nos dados experimentais imediatos, mas dela se seguem
conclusões que admitem verificação experimental (particularmente
por meio de observações astronômicas ) . Logo, o desenvolvimento
do conhecimento sob a forma de lançamento de hipóteses pressupõe
uma incessante inter-relação do experimento e do conhecimento teó­
rico .
Mas independentemente de como surge a hipótese ( do experi­
mento ou das construções teóricas antecedentes ) , seu lançamento,
sua formação e fundamentação estão relacionados com a aplicação
de diversas formas de deduções. A generalização do conhecimento
antecedente . seja ele teórico, seja ele empírico, é impossível sem
deduções : sem analogia, sem a indução em seus diversos aspectos,
s em dedução.
O papel da analogia, por exemplo, no surgimento e fundamen­
tação das conjeturas e suposições já foi observado corretamente
pelos lógicos, mas muitos deles, infelizmente, absolutizavam esse
papel como método de fundamentação de conjeturas, enquanto ou­
tros, ao contrário, passavam a olhá-lo por cima dos ombros. Não é
difícil entender que ambos esses extremismos n ão são apenas errô­
n eos como ainda prejudiciais .
Não se pode, evidentemente, nem absolutizar, nem negar o pa­
pel da analogia no surgimento e fundamentação das conjeturas .
Isto porque a analogia leva justamente ao enunciado de conjeturas
e suposições. À base da semelhança dos objetos em alguns indícios

conclui-se sobre a probabilidade dessa semelhança também em


outros .
A analogia, via de regra, dá início, impulso, ao enunciado d a
suposição. A localização da semelhança, d a relação entre os fenô­
menos em estudo cujo caráter já estabelecemos dá fundamento para
supor que, em dado caso, pode haver o mesmo tipo de relação de
l ei mas com certas particularidades específicas. O fundamento para
semelhante suposição é o caráter de lei do desenvolvimento do
mw1do material, a sua unidade material .

266
Na construção da hipótese o estudioso usa toda a bagagem dt.
conhecimentos acumulados pela ciência. Neste momento surgem-lhe
diversas analogias ; ele intensifica a imaginação científica criadora,
procura semelhança do caso dado com fatos próximos conhecidos e
estudados, estabelece ligação entre os fenômenos estudados, que exi­
gem explicação, e os fenômenos j á relativamente estudados e ex­
plicados .
Pode-se apresentar uma infinidade de exemplos da história de
diversas ciências, que mostram que as hipóteses surgem, em regra,
de analogias bem sucedidas. Assim, à base da analogia da difusão
da luz com a difusão da onda na superfície da água surgiu a hipó­
tese da natureza ondulatória da luz ; por analogia com o nosso sis­
tema planetário surgiu, em princípio do século XX, na física,
a hipótese da estrutura do átomo.
Uma hipótese nunca pode basear-se apenas num fato qualquer ;
uma suposição ( conjetura ) lançada deve fundamentar-se numa in­
finidade de fatos. Daí ser mais que evidente o papel da indução na
hipótese.
Por ser problemática a conclusão por analogia, dela devemos
partir no sentido da conclusão por necessidade, à qual se chega jus­
tamente através da indução. Esta assume importância particular­
mente grande naquelas hipóteses que devem sua origem à generali­
zação dos dados experimentais. A generalização do experimento
não pode ocorrer sem o auxílio da indução. Conforme expressão
de Laplace, a indução e a analogia são os meios principais de obten­
ção da verdade na matemática .
Mas o processo de sucessiva fundamentação, de fortalecimento
da hipótese, de transição de uma hipótese a outra, da hipótese à teo­
ria é inconcebível sem a dedução. Da suposição enunciada sobre · a
relação deJei entre os fenômenos fazem-se conclusões dedutivas. Re­
corrend<fa os fatos, ao conhecimento anteriormente acumulado, rea­
lizando ! experimentos à base da hipótese o estudioso reúne conside­
rável material que desenvolve, dá precisão à h ipótese, aumenta-lhe
a probabilidade ou a refuta e substitui por outra ou mesmo a de­
monstra. No entanto, esse movimento do nosso conhecimento a
dedução não participa sozinha, separada de outras formas de con­
clusão mas em interação com elas.
A verificação dedutiva das hipóteses é necessária porque a
analogia e a habitual indução incompletas por si mesmas não po­
dem produzir conclusões autênticas. Tem razão Louis de Broglie a o
escrever : "As pessoas que por si mesmas não se dedicam à ciência
supõem com bastante freqüência que as ciências sempre propiciam

267
teses absolutamente autênticas; essas pessoas acham que os colabo­
radores científicos fazem suas conclusões com base em fatos indiscu­
tíveis e raciocínios impecáveis e, conseqüentemente, avançamos con­
victos, sendo que está excluída a possibilidade de erro ou retrocesso.
Mas o estado da ciênci a contemporânea, assim como a história da
ciência no passado, demonstra que o problema é absolutamente di­
feren te"34.
No fundo, é muito difícil responder à pergunta de como e por
que esse ou aquele estudioso teve a idéia de lançar justamente essa
tese e não outra. Além do mais i sto não é assunto apenas da ló­
gica .
Alguns cendem a explicar o surgimento de novas idéias com
um ato original de "profecia científica", porquanto inexiste um
método geral de nascimento de idéias. Isto não é obra do acaso,
pois no surgimento dessa ou daquela idéia ou hipótese há freqüen­
temente momentos que em realidade são dificilmente explicáveis .
IÉ aqui que observamos aqueles fatores que podem ser defini­
dos como extralógicos. Deve-se isto ao fato de cada hipótese ser
uma conjetura, sendo questão bastante difícil, quando não impossí­
vel , ensinar as pessoas a conjeturar .
Aqui penetramos num campo que não pode ser situado em
quaisquer · limites do lógico rigoroso. Uma pessoa pode conjeturar,
outra, não .
No processo de surgimento de uma hipótese cabe lugar de des­
taque à fantasia ou imaginação, que tem limites determinados na in­
vestigação científica. Por sua essência, a hipótese sempre incorpora
m omentos de fantasia ( imaginação ) .
Fantasia e ciência parecem à primeira vista incompatíveis. Mas
não é assim ; sem fantasia nenhuma ciência pode desenvolver-se.
"Essa capacidade é extremamente valiosa. :f: inútil pensarem que
ela é necessária somente ao poeta, Isto é um preconceito tolo. Ela
é necessária até n a matemática, sem fantasia até o descobrimento
dos cálculos integral e diferencial seria impossível. A fantasia é uma
qualidade do maior valor . . . " 3 5 escreveu Lênin.
-

Poderia Lobatchevsky, por exemplo , criar a sua nova geome­


tria, diferente da de Euclides, sem a fantasia? Não foi por acaso
que ele lhe chamou "imaginação". E os adversários das novas idéias

ª' Lou is de Broglie. Pelas sendas da ciência. M oscou, 1 9 62 , pp. 28 2-29 3 .


as V. 1. Lênin. Obras completas, t. 45, p. 1 25.

268
a qualificavam de "fantasia absurda" , desmerecedora de atenção,
sátira, caricatura da geometria, etc. Os críticos de Lobatchevsky não
percebiam a diferença entre uma fantasia fundamentada, sem a
tjual não se pode avançar nas ciências, inclusive na matemática, e o
fantasiar estéril que desvia a razão da verdade. A tentativa de pres­
cindir da fantasi a na ciência equivale a renunciar ao pensamento.
Qualquer abstração já constitui uma espécie de fantasia, pois distingue
e m forma pura um aspecto, uma propriedade no objeto . Além do
mais, o papel da fantasia no conhecimento científico aumenta inces­
santemente, sendo verdade, porém, que neste caso muda o seu pró­
prio caráter .
Assim, na ciência imatura do mundo antigo, da época da Idade
Média e do Ren ascimento, havia uma abundância de fantasia que
desempenhava duplo papel. Por um lado, com o auxílio dela a ci­
ência da Antiguidade fazia conjeturas geniais, antecipações que até
hoje nos deixam impressionados ; por outro l ado, a ciência imatura
levava implícitas invencionices fantásticas que a desviavam da ver­
dade e em certo sentido a aproximavam da religião e do idealismo.
Distinguiam-se particularmente como uma espécie de construçõe�
fantásticas os juízos filosófico-naturalistas dos pensadores do passa­
do. Exemplo de semelhante fantasia são as concepções que se obser­
vam na época do Renascimento, atinentes à origem dos animais ( às
árvores genealógicas dos gansos e das ovelhas, cujos frutos são os
pequenos gansos ou ovel has ) . Acaso n ão são monstruosamente fan­
tásticas, digamos, as teses de Paracelso sobre a possibilidade de ob­
tenção, por meios artificiais, de homenzinhos - os homúnculos, fei­
tos de urina humana colocada inicialmente numa abóbora perfura­
da e depois na barriga de uma égua? :É evidente que semelhante fan­
tasia não encaminhava nem podia encaminhar o pensamento para
a pesquisa das leis reais do surgimento dos organismos vivos, limi­
tando-se a metê-lo num cipoal de fantasias incompatíveis com a ci­
ência. Se os cientistas fossem perder seu tempo à procura dessas
árvores geneafó gicas de gansos ou ovelhas ou na produção de ex­
perimentos se�undo a receita de Paracelso, seu trabalho n ão levaria
_
a resultados positivos .
Por isso a evolução da ciência está relacionada com a renúncia a
esse tipo de fantasia estéril, que oblitera a diferença entre a teoria
científica ou a hipótese e o mito. Mas isto não significa que a ciên­
cia prescinda inteiramente da fantasia ; ao contrário, nela adquire
importância cada vez maior outro tipo de fantasia, que determina
o caminho para o descobrimento das propriedades e leis objetivas do

objeto. O caráter da ciência moderna pressupõe um emprego espe-

269
cialmente amplo desse tipo de fantasia. A física moderna, por
exemplo, está relacionada ao estudo de realidades que são inacessí­
veis à experiência sensorial imediata ; aqui não há como prescindir
d a fantasia, ela é realmente tão necessária quanto o ar .
A pessoa que não sabe fantasiar nada pode fazer na ciência
moderna. No entanto, como observou Lênin, tem direito à fantasia
e a sonhos somente aquele que parte de uma análise sóbria, con­
creta da situação concreta . Ilustrando essa idéia, Lênin cita as se­
guintes palavras de um artigo de D . I . Pissariov, intitulado "Os
malogros de uma idéia imatura" : "Há divergências e divergências . . .
Meu sonho pode ultrapassar o desenrolar natural dos acontecimen­
tos ou mudar absolutamente de sentido, para um lugar aonde nuncn
chegará nenhum desenrolar natural de acontecimentos. No primeiro
caso o sonho n ão causa nenhum dano ; pode até apoiar e reforçar
a energia do homem trabalhador . . . Em semelhantes sonhos não há
nada que deforme ou paralise a força de trabalho. Ocorre incfosive
o oposto. Se o homem fosse inteiramente privado da capacidade de
pensar deste modo, se ele não pudesse vez por outra avançar e com
sua imaginação contemplar num quadro integral e acabado a pró­
pria criação que mal começa a formar-se sob as suas mãos, então
ser-me-ia decididamente impossível imaginar que causa motivadora
levaria o homem a empreender e concluir trabalhos vastos e exaus­
tivos nos campos da arte, da ciência e da vida prática . . . A diver­
gência entre o sonho e a realidade não fará nenhum mal se o indi­
víduo pensante acreditar seriamente no seu sonho, encarar atentamen­
te a vida, comparando as suas observações com os seus castelos no
ar e trabalhando geralmente com honestidade na realização de sua
fantasia. Quando existe algum contato entre o sonho e a vida, en­
tão tudo vai bem"ªª .
Citando essas palavras de D. 1. Pissariov, Lênin observa : "Eis
um tipo de sonho demasiado escasso, infelizmente, em nosso mo­
vimento"37 .
No caso dado Lênin enfatiza a importância da fantasia na ati­
vidade prática do homem. A fantasia orien ta os nossos esforços
no sentido da transformação do mundo em conformidade com o
conteúdo dela. Mas pode desempenhar um papel ativo e motriz so­
mente a fantasia não-carente de conteúdo objetivo, que orienta a

� Apud. V . I. Lênin . Obras completas, t. 6, p. 1 72 .


37 V. I. Lênin. Obras completas, t . 6, p. 173.

270
nossa atividade no sentido da conquista de um ideal que tenha fun­
damento real na realidade concreta. Para que a fantasia leve o ho­
mem ao êxito em sua atividade prática, o conteúdo dela deve ser
objetivo-verdadeiro .
A natureza da fantasia é objeto de estudo de várias ciêncial),
entre elas a psicologia. No entanto o enfoque gnosiológico da fan­
tasia difere do psicológico. Para a teoria do conhecimento, o mais
importante n a fantasia é a elucidação do caráter do conhecimento
nela implícito, daquilo que a fantasia constitui enquanto reflexo dos
fenômenos do mundo objetivo, das peculiaridades da fantasia cien­
tífica e em que formas ela se manifesta .
Sobre essa questão o acadêmico B . M. Kédrov tem interessantes
considerações : "Enquanto fator psicológico - escreve ele - a fan­
tasia é algo semelhante, próximo da imaginação . Já do aspecto ló­
gico, ela ( subentendemos a fantasia científica ) se aproxima da con­
jetura, da hipótese . Num e noutro sentido a fantasia desempe­
nha papel essencial em qualquer descobrimento científico e geral­
mente em qualquer criação científica, sobretudo quando se trata
da criação de uma teoria geral, do lançamento de uma ampla hi­
pótese, da elaboração de um sistema científico de conhecimentos ou
da descoberta de uma nova lei fundamental na natureza" ªª.
A imaginação científica ( fantasia ) surge d a necessidade de uma
representação precisa, multilateral do objeto, do conhecimento de
suas propriedades e leis. Sua tendência e função s ão o conhecimen­
to do objeto tal qual ele existe na realidade e como meio de obtenção
do conhecimento científico não tem qualquer outro fim senão a
aquisição do conhecimento objetivo-verdadeiro. A imaginação cien­
tífica é diametralmente oposta à religiosa, assim como a ciência é
oposta à religião, a verdade ao equívoco .
A imaginação i;ia ciência tem caráter criativo. Permite conhecer
aquilo que é inace�sível a outros meios de conhecimento : à obser­
vação, ao experimento, ao raciocínio lógico que leva a conclusões
verdadeiras e por isto tem seus limites determinados. Mas ela tem
sentido na investigação científica somente enquanto leva ao conhe­
cimento das propriedades e leis reais do mundo objetivo ; e tão
logo ultrapassa esse limite deixa de ser imaginação científica .

"" B. M. Kédrov. "O dia de um grande descobrime11to". Moscou, 1 95 8 ,


p. 308.

27 1
Neste sentido deve-se atentar para o fato de que a c1encia,
após chegar, por meio da imaginação, ao reconhecimento da exis­
tência de alguma propriedade ou lei do mundo objetivo, em hipó­
tese alguma se detém neste ponto mas procura estabelecer fidedig­
namente a existência ou inexistência de dada propriedade ou lei .
A imaginação na ciência atua não como um fim em si mesmo
mas um meio de obter no conhecimento um conteúdo objetivo­
verdadeiro. :É necessário enfocar os resultados da fantasia científica
com os mesmos critérios que se aplicam ao conhecimento científico
em geral ; eles nos interessam somente à medida que conduzem à
verdade .
A ciência tem a incumbência de descobrir as leis objetivas e é
justamente do ponto de vista dessas tarefas e fins que ela enfoca
a apreciação dos resultados do emprego da fantasia. Como já obser­
vamos, a fantasia na ciência assume a forma de suposição na hi­
pótese e a apreciação lógica dessa suposição se faz mediante o es­
tabelecimento do grau de sua probabilidade. Enquanto resultado da
imaginação científica, a suposição deve ser logicamente fundamen­
tada como juízo problemático de elevado grau de probabilidade .
Isto significa que ela deve derivar do conhecimento antes estabele­
cido fidedignamente segundo as regras das deduções ( a indução ci­
entífica, a analogia, etc . ) . Assim, a fantasia na ciência tem deter­
minados limites. À base da imaginação pode-se supor apenas o
que é provável, o que dimana das leis apreendidas .
A princípio uma idéia nova se manifesta sob a forma de con­
jetura, lançada n ão raramente por via intuitiva. Neste caso funda­
mentam-se a sua autenticidade e a probabilidade num grau consi­
derável. Na conjetura há realmente muitos momentos extralógicos
Se estes não existissem, então haveria um método absolutamente
garantido de conjetura que todos poderiam estudar. E mesmo assim
todo cientista procura adquirir certas habilidades para conjeturar
no seu próprio campo. D . Poya teve razão ao escrever : "É claro
que vamos aprender a demonstrar, mas vamos igualmente apren­
der a conjeturar"39•
A conjetura é como se existisse somente para o próprio pes­
quisador e a princípio, via de regra, ainda não ultrapassasse os
limites do laboratório criativo deste. Às vezes ela se afigura tão im­
provável que parece simplesmente uma espécie de "milagre" . O cien-

39 D. Poya. A matemática e os raciocínios vel'Ossim ilhantes, p. 10.

272
tista tem diante de si a tarefa de demonstrar a aplicabilidade dela,
encontrar as premissas teóricas que a tornem provável. Como dizia
Einstein, "o objetivo de toda a atividade do intelecto é transformar
certo 'milagre' em algo concebível"40• Para tornar a conjetura um
patrimônio da ciência, é necessário convertê-la em hipótese científica,
inserindo a fantasia nos limites permitidos pela ciência. Começa o
processo de fundamentação da hipótese, por enquanto ainda como
hipótese, i. e., sua idéia básica ainda continua não-autêntica mas ape­
n as provável em alto grau. Ocorre o processo de mobilização do co­
n hecimento disponível, que torna provável a suposição que consti­
tui o sentido principal da hipótese .
É claro que quando se faz uma descoberta que marca época,
l an çam-se idéias que parecem subverter as concepções anteriores;
então o conhecimento ultrapassa os limites do provável da ótica dos
d ados existentes, tornando-se provável . Ora, como todos os outros
limites, o limite entre o provável e o improvável é relativo. Assim,
até certo período a idéia da divisibilidade do átomo parecia im­
provável, pois não havia dados precisos que levassem a ela. Mas
tarde, porém, ela se tornou provável e até verdadeira .
Não custa muito revel ar também algumas condições gerais, ne­
cessárias para o surgimento e a fundamentação de uma hipótese.
Construir hipóteses em setores isolados do conhecimento científico
quando se estudam objetos diversos tem suas particularidades espe­
cíficas. As hipóteses na astronomia, por exemplo, diferem das hipó­
teses na medicina ou na biologia. É evidentemente impossível cons­
truir hipóteses sem levar em conta essas particularidades. No en­
tanto há teses e condições gerais que se devem observar ao constru­
ir-se qualquer hipótese científica independentemente do campo do
conhecimento científico. Essas condições indispensáveis são as se­
guintes .
Em primeiro lugar a hipótese lançada pode ser verificada pelos
·

critérios da filosofia marxista-leninista.


É fato bem conhecido que na sociedade antagônica de classes
a ciência é arena de luta entre o materialismo e o idealismo. Influ­
enciados pela filosofia burguesa, alguns cientistas generalizam os
dados de sua ciência com ajuda do idealismo filosófico, daí as hi­
póteses por eles lançadas estarem freg üentemente impregnadas do
veneno do idealismo e do agnosticismo .

"º A. Einstein. Obras científicas escolhidas, Moscou, 1 9 67 , t. IV, p . 7 8 .

273
iÉ claro que não se deve exagerar a influência da filosofia idea­
lista na criação científica dos cientistas dos países capitalistas ; mui­
tos deles assumem espontaneamente posições do materialismo dia­
lético. Mas não se pode ao mesmo tempo deixar de ver que a con­
cepção burguesa do mundo ainda continua influenciando os cientis­
tas, parte dos quais tenta obstinadamente conciliar as surradas idéias
religiosas com as conquistas da ciência moderna, falsificá-las pre­
viamente de maneira idealista .
A aplicação dos princípios da filosofia marxista-leninista na ci­
ciência pressupõe a denúncia da essência reacionária, idealista das
hipóteses nas quais substitui-se a ciência por raciocínios especulati­
vos, que levam à deformação da realidade. A hipótese é uma forma
de generalização teórica dos resultados do conhecimento obtidos, e
a concepção de mundo do cientista assume grande importância na
definição do caráter e da orientação dessa generalização ; depende
da generalização ser científica ou enveredar pelo caminho da reli­
gião e do idealismo .
A importância do materialismo dialético consiste não só em
que com a sua ajuda o cientista pode determinar se essa ou aquela
hipótese tem caráter científico. Cabe a ele imenso papel também no
próprio estabelecimento das hipóteses científicas. Se a hipótese tem
caráter científico, ela corresponde às leis e princípios da dialética
materialista. Mas uma coisa é quando o cientista aplica consciente­
mente os princípios da filosofia marxista na sua criação e outra
quando os emprega espontaneamente. O primeiro caminho tem in­
dubitavelmente as suas vantagens; livra o cientista de possíveis er­
ros e ziguezagues, cria as condições necessárias para o movimento
do pensamento pelos trilhos da ciência e para a obtenção de no­
vos resultados pelo caminho mais breve .
Ao ressaltar a grande importância metodológica, heurística da
filosofia marxista-leninista na criação e verificação das hipóteses ci­
entíficas, no combate às construções teóricas estranhas à ciência ,
é necessário, entretanto, combater d a forma mais decidida o sim­
plismo nessa questão . O materialismo dialético dá, indiscutivelmente,
a possibilidade de refutar e refuta as hipóteses que seguem a linha
do idealismo e da religião. No entanto deve-se levar em conta que
na ciência verifica-se não só a luta entre concepções científicas e
anticientíficas como também uma competição de hipóteses científi­
cas, que enfocam de diferentes modos, de diversos aspectos, a solução
dos mesmos problemas. Cada uma dessas hipóteses pode seguir a
linha da procura da resposta científica aos problemas colocados,
pode interpretar de maneira materialista . os processos em estudo. O

2 74
materialismo dialético, além de não reprimir a luta de opm1oes, a
competição de hipóteses científicas, ainda as. considera condição in­
dispensável do desenvolvimento da ciência. Ele dá a possibilidade
de definir se essa ou aquela hipótese segue no sentido da solução
científica do problema ou se nos afasta dela, ou seja, se estamos di­
ante da competição de hipóteses científicas ou d a luta entre a ciên­
cia e o idealismo .
:B claro que os critérios da dialética materialista são aplicáveis
em cada hipótese, porém, em primeiro lugar, n ão são postulados
quaisquer estabelecidos a priori mas uma generalização dos resul­
tados do conhecimento anterior dos fenômenos do mundo objetivo
e refletem as leis mais gerais do desenvolvimento destes ; em segundo

lugar, as leis da dialética materialista não se constituem absoluta­


mente em ponto de partida das hipóteses na ciência ( cada hipótese
p arte dos fatos e l eis estabelecidos por essa ou aquela ciência concre­
ta ) ; o papel del as na formação e desenvolvimento das hipóteses
consiste em orientar o pensame.rito do cientista pelos trilhos da ci­
ência, generalizar os fatos e leis segundo sua natureza objetiva .
A tese da necessidade da coadunação entre a hipótese científica
e as leis da dial ética materialista não pode ser interpretada de modo
simplista no sentido de que, descobrfndo-se na hipótese quaisquer
afirmações ideal istas, deva-se imediatamente refutá-la no conjunto
como sistema de conhecimento científico. Deve-se tomar e conside­
rar a hipótese como sistema de conceitos e não extrair dela um
juízo isolado e com base nel a fazer conclusões sobre toda a hipó­
tese. Na apreciação da hipótese é de grande importância o estabele­
cimento do caráter da idéia à base da qual realiza-se a síntese do
conhecimento . Se a idéia é notoriamente falsa, deforma a realida­
de, então o sistema à base dela construído não pode servir como
vi a segura de solução científica do problema .
Assim, a di alética materialista tem grande importância heurís­
tica na construção e desenvolvimento de uma hipótese científica .
A tarefa do cientista é assimilar esse método de conhecimento e
transformação revolucionária da realidade, fazer pesquisas, cons­
t ruir hipóteses com base nele e combater a concepção idealista em
todos os campos do conhecimento científico e lutar contra as hi­
póteses pseudocientíficas .
A hipótese lançada deve ainda corresponder às leis estabeleci­
das na ciência. Assim, por exemplo, na física moderna nenhuma
hipótese pode ser fecunda para o desenvolvimento da ciência se con­
tradisser a lei da conservação da energia . Visando em seu tempo
à explicação do fenômeno da desintegração do beta, Bohr lançou a

275
hipótese segundo a qual o elétron nem sempre receberia toda a
energia que se forma como resultado da transformação radiativa ; é
como se uma parte desta energia desaparecesse sem deixar vestígio.
Como se pode ver, essa hipótese está em contradição com a lei fun­
damental da física acima mencionada - a lei da conservação da
enegia, sendo por isto inconsistente .
Em cada ciência há leis que nela desempenham função meto­
dológica, pois constituem o fundamento de todas as suas construções
teóricas. Esse papel é desempenhado pelas leis mais gerais de uma
dada ciência, pelas teorias universalmente científicas cuja veraci­
dade já foi demonstrada pela prática. Aqui podemos ver como se
manifesta a lei geral no movimento do conhecimento, ou seja, como
o conteúdo objetivo anteriormente obtido é empregado como pre­
missa necessária do movimento desse conhecimento, da obtenção de
n ovos resultados. Na qualidade desse trampolim pode ser usado
qualquer conhecimento, mas a função metodológica especial é exer­
cida, indubitavelmente, pelas leis mais gerais e as teorias autênticas,
pois elas fazem parte, de uma forma ou de outra, de qualquer
construção particular na ciência .
É evidente que não se pode enfocar dogmaticamente o conhe­
cimento anteriormente demonstrado ( as leis descobertas e as teo­
rias autêticas ) ; ora, a hipótese pode colocar em dúvida também
aquilo que antes se considerava perfeitamente autêntico. No ent::m­
to, quando deparamos uma contradição entre uma hipótese lança­
d a e as leis e teorias anteriormente demonstradas, então devemos
duvidar antes de tudo da hipótese . Mas se os novos fatos e leis
reforçam cada vez mais a hipótese, então se deve examinar até
que ponto é autêntica a teoria que a contradiz. Ocorre isto porque,
como j á dissemos, há também casos em que, sob a influência de
novas hipóteses, revêem-se e precisam-se as velhas teorias que antes
pareciam irrepreensíveis em todos os sentidos.
A seguir, a hipótese deve explicar o maior número possível
de fatos autênticos existentes, os quais estão sujeitos a estudo nos
limites da hipótese, que na medida do possível não deve contrad i­
zê-los. Mas dessa tese não se segue absolutamente que se essa o u
aquela hipótese não está, no presente momento, em condições d e
explicar qualquer fato, deve-se então abandoná-la imediatamente,
refutá-la como dissonante com a realidade. Ao contrário, é preciso
continuar trabalhando essa hipótese, estudar melhor os próprios fa­
tos, desenvolver, aperfeiçoar a hipótese e empenhar-se em que e l a
explique todos o s fatos existentes e sej a mais completa e adequada .

276
A hipótese não deve conter nada de supérfluo, nenhum amon­
toado artificial ou artificio, mas pode ser complexa se for complexo
o objeto que nela se reflete. A ciência tem a obrigação de cons­
truir suas teorias e hipóteses sobre o fundamento sólido dos fatos,
os quais, conforme expressão de 1 . P . Pávlov, são o ar para o
cientista. No entanto isto não significa que se deva fetichizar os fa­
tos, reverenciá-los e desdenhar das construções teóricas. No conhe­
cimento moderno é difícil separar "fatos puros" e contrapô-los às
teorias, porque o próprio fato é até certo ponto o resultado da teo­
ria. Os fatos da ciência são mediados pela prática do homem e o
conhecimento antecedente. Por exemplo, a foto do lado oposto da
Lua é um fato da ciência moderna mas mediado por dispositivos
nos quais estão materializadas determinadas construções teóricas. Por
isto esse fato é verdadeiro na medida em que são verdadeiras as
teses teóricas que permitiram obtê-lo .
Por conseguinte, o próprio fato da ciênci a depende dos meios
de sua obtenção, sendo ele objetivo na medida em que são obje­
tivos esses meios. Por isto não só a veracidade de uma teoria é ve­
rificada pelos fatos da realidade como os próprios fatos dependem
da veracidade de toda uma série de construções teóricas. Não há
quaisquer "fatos puros" da ciência que não estej am relacionados
com essa ou aquela teoria; a diferença entre os fatos e as teses
teóricas se torna, deste modo, relativa, pois na ciência moderna
cada fato está sempre mais relacionado com certa interpretação
dele mesmo, é ele obtido por via cada vez mais mediata como re­
sultado da teoria, perdendo por isto qualquer superioridade sobre
ela. A procura de "fatos puros" desvinculados da teoria e da in­
terpretação é uma metafísica, que não compreende a essência do
conhecimento humano em geral e suas peculiaridades na etapa atual
em particular. Se depurarmos dos fatos da ciência as construções
teóricas à base das quais eles foram obtidos, sendo deste modo
resultado delas, então n ão haverá o próprio fato d a ciência.
Tudo isso mostra que os próprios fatos da ciência são suscetíveis
de uma minuciosa verificação prática ; quando se descobre uma
con tradição entre o fato da ciência e a hipótese, deve-se duvidar
igualmente tanto da hipótese como da autenticidade do fato da ci­
ência.
Às vezes se lançam como condições anunciadas na hipótese a
evidência desta, a representatividade relativamente fácil . Em reali­
dade, porém, a representatividade fácil n ão é critério para a hi­
pótese, pois há verdades paradoxais, que fogem às noções habi­
tuais. Assim, ao explicar o lucro a economia política marxista par-

277
te da tese segundo a qual as mercadorias se vendem em média
pelos seus valores reais e o lucro é obtido com a venda das mer­
cadorias pelo seu valor. "Isto parece paradoxal e contraditório à
experiência cotidiana - escreve Marx. - Mas é paradoxal também
o fato de que a Terra gira em torno do Sol e de que a água é
constituída de dois gases facilmente inflamáveis. As verdades ci­
entíficas são sempre paradoxais se julgarmos com base na experi­
ência cotidiana que capta apenas a aparência enganadora das coi­
sas"41 .
A física moderna cria hipóteses difíceis de imaginar-se, mas
isto não lhes diminui a veracidade. A noção em geral não pode
abranger a verdadeira essência das cois as, daí a evidência não ser
critério para a hipótese .
Uma das mais importantes exigências, e critério obrigartório,
para a verificação da consistência de uma hipótese é a sua não­
contrarieda.de lógico-formal como sistema de conhecimento . Re­
almente, dado que a hipótese é um sistema de juízos, nela um juízo
não deve atuar como a negação lógico-formal de outro.
É claro que um sistema falso por fundamento pode ser logi­
camente não-contraditório, razão porque a n ão-contrariedade, em­
bora condição necessária, ainda é insuficiente para um sistema
verdadeiro de conhecimento .
·� evidente que no caso dado trata-se n ão de qualquer con­
trariedade na hipótese mas tão-somente daquela não admitida pela
lei da lógica formal . Quanto às contradições que são reflexo da
contrariedade do próprio objeto da pesquisa, elas, ao que se sabe,
não são apenas admitidas na hipótese como necessárias para que
esta apreenda o seu objeto com mais plenitude e profundidade.
As contradições lógico-formais são inadmissíveis no sistema de
conhecimento porque inserem no nosso conhecimento um momento
subjetivo, que leva à deformação da realidade. Elas introduzem
no conteúdo da hipótese aquilo que não há no próprio objeto. Já
as contradições dialéticas, ao contrário, são necessárias na hipó­
tese para que o objeto seja refletido em toda a sua plenitude e
objetividade. É verdade que às vezes é difícil distinguir a con­
trariedade lógico-formal da dialética, que reflete as contradições

41 K. Marx e F. Engels. Obras, t. 1 6, p. 1 3 1 .

278
objetivas. Por isto, quando o estudioso se vê diante de contra­
dições na hipótese ele deve antes de tudo definir-lhes o caráter :
que contradições são essas : lógico-formais ou dialéticas? Não raro
elas assumem a mesma forma lógica ( principalmente verbal ) . Não
existe um critério puramente formal para distingui-las, daí a neces­
sidade de analisar concretamente, em cada caso particular, o con­
teúdo da hipótese e defini r a natureza das contradições nela exis­
tentes. Neste caso, como em todos os demais, só a prática pode
servir de critério.
Se nessa ou naquela hipótese se estabelece a diferença entre
as contradições lógico-formais que solapam o próprio sistema de
conhecimento, daí ainda não se conclui que se deva refutá-la ime­
diatamente. Isto porque na medida em que dado sistema de conhe­
cimento ainda não foi formalizado, ainda não foi expresso numa
l inguagem rigorosa de termos unívocos e enunciados, ele, por for­
ça do seu caráter substancial, pode compreender também contra­
dições que podem desempenhar papel heurístico. Após localizar
essas contradições, o pesquisador se empenhará em afastá-las, logo,
em mudar e aperfeiçoar o sistema constituinte de dada hipótese. E
só no caso em que a contrariedade lógico-formal jaz na natureza
desse ou daquele sistema e não se pode obliterá-la sem destruir
o próprio sistema, o estudioso será forçado a refutar a hipótese
por ele lançada e tentar construir um novo sistema desprovido de
contrariedade lógico-formal . Aqui podemos ver também a inconsis­
tência dos critérios lógico-formais (à b ase destes pode-se estabelecer
que sistema de conhecimento é evidentemente inconsistente embora a
observância deles não garanta a veracidade objetiva do sistem a ) e
a sua . força : eles podem servir de fonte do movimento do nosso

pensamento de um sistema de conhecimento a outro .


Dado que para a explicação do mesmo processo surgem, via
de regra, várias hipóteses que competem entre si, o pesquisador
deve · escolher a melhor entre elas . Para tanto experimenta cada
uma por diversos meios : o experimento, a análise lógica, etc . E
quando esses recursos se tornam insuficientes ele recorre a outros
como a simplicidade da hipótese, sua economicidade, elegância.
Conforme opinião de Einstein, os sistemas teóricos devem sa­
ti sfazer a dois critérios : " . . . Em primeiro lugar, devem admitir
uma comparação possivelmente segura ( intuitiva ) e plena com um
conjlinto de sensações ; em segundo, devem procurar contentar-se
com o menor número de elementos logicamente independentes ( con­
ceitos básicos e axiomas ) , isto é, de conceitos para os quais não

279
se fazem definições, e de sentenças para as quais não se fazem
·

demonstrações"-1 2 •
Ao concretizar o próprio conceito de simplicidade, ele escre­
ve : " . . . Entre duas teorias com teses básicas igualmente 'simples'
deve-se preferir aquela que mais fortemente limite as possíveis
qualidades a priori dos sistemas . . . "43• Adiante : "Ao 'aperfeiçoa­
mento interno' da teoria eu incorporo ainda o seguinte : a teoria
nos parece mais valiosa quando constitui o modo arbitrário do
meio escolhido das teorias aproximadamente equivalentes e ana­
logicamente construídas"44•
Como podemos ver, a concepção einsteiniana da simplicidade
e da perfeição interna da teoria não contém nada puramente subje­
tivo, sendo um meio heurístico complementar para a escolha do
sistema teórico mais provável de conhecimento .
A exigência de verdade objetiva significa que a teoria cientí­
fica deve refletir o mundo tal qual ele existe independentemente da
nossa consciência. O mundo objetivo é simples e complexo, e de­
ve-se refleti-lo em toda a simplicidade e complexidade. Ele é ra­
cional no sentido de que os fenômenos nele se movimentam su­
bordinando-se a leis rigorosas cuja representação constitui a tare­
fa da teoria científica .
Como já observamos, a hipótese deve ser simples, não deve
conter nada supérfluo, de subjetivo, quaisquer suposições arbitrá­
rias que não dimanem da necessidade do conhecimento do objeto
tal qual ele é na realidade. Também neste sentido devemos tender
à simplicidade, à clareza, à economicidade, sem lhes dar, entre­
tanto, algum significado independente e considerando-se apenas mo­
mentos característicos do conhecimento objetivo-verdadeiro. Não
era por acaso que Einstein empregava o termo "naturalidade" da
teoria significando a ausência de amontoados excessivos, artificiais .
O pensamento deve procurar a solução da tarefa de refletir a rea­
lidade objetiva em seu aspecto autêntico seguindo o caminho mais
racional, simples e claro ; e aqui, efetivamente, entre uma infinidade
de hipóteses equivalentes deve-se dar preferência àquela que cami-

42 A. Einstein. "Autobiografia criadora'', in Col . Einstein e a física


modema, !\foscou, 1 9 5 6, p. 3 2 .
43 A . Einstein. Op. cit., p . 32.
44 Ib .

280
nhe para esse fim com mais simplicidade, mais clareza ' · e econo­
mia .
Algumas palavras sobre a "perfeição interna" e ' a "'elegância"
das construções teóricas : alguns estudiosos, citando palavras de
L. Boltzmann segundo as quais deve-se deixar a elegânda aos ai �
faiates e sapateiros, acham que a apreciação estética · é geralmente
inaplicável às teorias científicas. Mas a questão não é · assim : os
resultados da pesquisa científica, em maior medida · que outras for­
mas de atividade do homem, devem dar-lhe prazer · estético. Con­
forme opinião de Louis de Broglie, "a pesquisa científica; embora
seja quase sempre orientada pela razão, assim mesmo constitui
uma atraente aventura"45• Aqui, a obtenção de resultados suscita
muitas sensações, inclusive estéticas.
O sentido do belo, do elegante, do perfeito, surge no homem
durante a percepção não só dos objetos materiais mas também
dos produtos de sua atividade intelectual, materializados nessa ou
naquela forma. O matemático se deleita com uma equação ou fór­
mula por ele deduzida, assim como se deleitaria com uma es­
cultura, uma paisagem bela, etc. A solução elegante de liin proble­
ma científico é uma coisa tão possível quanto a execuÇão bela
de uma peça musical. Mas o sentido do belo, do elegante, tem tam­
bém a sua fonte objetiva, é expressão de certo conteúdo concreto .
N a teoria científica esse conteúdo é representado p_ela sua veraci­
dade objetiva . Ficamos encantados, por exempio, com a simplici­
dade, a facilidade com que se resolve esse ou aquele problema
científico. Sua solução suscita prazer, afigura-se graciosa tanto ao
próprio autor como a outros especialistas. Neste caso . quem não
é matemático não pode sentir prazer estético, percel:>er a graça

de uma fórmula matemática, pois para tanto é necessário enten­


der o seu sentido, a sua importância para o sucessivo . desenvolvi­
mento da ciência. Vej amos, por exemplo, o que escreve o físico
inglês Paul Dirac sobre um caso ocorrido com Schrõdinger, ana­
lisando a história da evolução das concepções quânticas :
,
"Acho que essa história contém certa moral, i. e., que é mais
importante a coerência de uma equação qualquer e não sua cor­
respondência ao experimento . . . Ao que parece, para a obtenção
( do êxito o mais importante é a exigência da beleza das equações,
o possuir uma intuição correta. Se não há plena concordância en-

45 Louis de Broglie. Pelas sendas da ciência, p. 295.

28 1
tre os resultados de uma pesquisa teórica qualquer e o experimento,
não se deve cair em desânimo, pois essa divergência pode ser de­
terminada por detalhes mais sutis que não se conseguiram levar
em conta e possivelmente será superad a no processo da sucessiva
evolução da teoria"1 6 •
É evidente que a simplicidade, a economicidade e a graça de
forma alguma são critérios suplementares de veracidade concomi­
tantes com a prática. Através delas geralmente não se pode de­
monstrar a autenticidade ou a probabilidade de uma hipótese. Mas
quando o pesquisador se vê diante da necessidade de escolher uma
hipótese entre hipóteses equivalentes em todos os outros sentidos,
ele, naturalmente, prefere aquela que possui as propriedades da
simplicidade, da economicidade e da graça, recursos que reforçam
a legitimidade da hipótese .
Assim, a simplicidade, economicidade e graça, além de não
criarem obstáculo, ainda desempenh�m importante papel na in­
vestigação científica em geral e na apreciação da hipótese em par­
ticular, quando são corretamente tomadas como orientação ; é n eces­
sário apenas não lhes dar importância absoluta mas considerá-las
momentos subordinados que contribuem ativamente para a aqui­
sição do conhecimento objetivo-verdadeiro .

.6
.
VERIFICAÇÃO E DEMONSTRAÇÃO DA
HIPÓTESE E DA TEORIA

Qualquer hipótese científica pretende demonstrar-se e trans­


formar-se em teoria científica autêntica. Mas antes de examinar
as vias dessa demonstração e transformação, da transformação da
hipótese em teoria, é necessário analisar uma importante questão:
saber qual é a: inter-relação desses fatores e se é possível, em prin­
cípio, semelhante transformação .
Alguns filósofos burgueses são de opinião que a hipótese nun­
c a poderia converter-se em teoria científica autêntica, pois toda
hipótese se apóia na indução e a forma indutiva de dedução n ão
l eva à autenticidade. A verificação d a hipótese, declaram eles, se
realiza pela · forma : se uma hipótese gualquer é verdadeira, então

40 Paul A. Dirac. "A evolução das concepções dos fís.:cos sobre o quadro
da natureza", in Voprósi filosófii, 1 96 3 , n<? 1 2, pp. 85-86.

282
esses e outros fatos devem ser observáveis. Esses fatos realmente
se observam, mas nem por isso a hipótese se torna conhecimento
autêntico. ;E: preciso ainda demonstrar que os referidos não podem
ser explicados por nenhuma outra hipótese, o que, segundo Ber­
trand Russel, não se pode fazer pois não existe um método comum
de análise de todas as hipóteses possíveis. Além do mais, se exis­
tisse tal método, descobrir-se-ia então que os mesmos fatos po­
dem ser explicados por diferentes hipóteses. Por isto, sem qualquer
possibilidade de obter o conhecimento autêntico, resta-nos apenas
escolher como hipótese de trabalho a mais simples, caso esta possa
satisfazer, ou seja, conduzir a alguns resultados .
Esse ponto de vista é aplicado por Ph. Frank, para quem a
hipótese pode apenas confirmar-se enquanto hipótese mas nunca
se converterá em teoria autêntica. "Nenhuma suposição pode ser
'demonstrada' por meio do experimento - escreve ele. - Seria cor­
reto dizer que o experimento 'confirma' certa suposição . Se uma
pessoa n ão encontra no bolso a sua carteira, isto confirma a su­
posição de que talvez haj a um ladrão entre os presentes mas não
a confirma. Essa pessoa pode ter deixado a cart�ira em . casa.
Assi m , o fato observado confirma também a suposição de que ele
pode tê-la esquecido em casa. Toda observação confirma uma in­
finidade de suposições. Toda a questão está no grau de confirma­
ção que se exige . A ciência parece um conto policial . Todos os
fatos confirmam determinada hipótese, mas no fim das contas é
uma hipótese completamente diferente que resulta correta. Con­
tudo deve-se dizer que na ciência não existe nenhum outro critério
de verdade exceto esse"H .
Para demonstrar a tese da impossibilidade da transformação
da hipótese em teoria autêntica Frank apresenta o seguinte argu­
mento : a teoria consiste de uma infinidade de afirmações mutua­
mente rel acionadas de modo complexo . Ocorre, porém, que esse
ou aquele fato descoberto ainda não indica nem pode indicar com
precisão qual dessas duas afirmações é falsa, já sem falar de que
o fato único pode ainda menos refutar todo um sistema de afirma­
ções e, conseqüentemente, "não podemos dizer que determinado
fato refuta determinada teoria mas apenas que ele é incompatí­
:vel com o fim especial da teoria"48 •

4.7 Ph. Frank. Filosofia da ciência. Moscou, 1 9 60, p. 76.


48 Id,. p. 94 .

283
A negação, pelos positivistas lógicos, da possibilidade de trans­
farmação da hipótese em teoria científica autêntica emana das con­
cepções lógico-positivistas gerais da essência do conhecimento e dos
critérios de sua veracidade. Sua divisão metafísica do conheci­
mento em conhecimento rigorosamente analítico, aparentemente des­
vinculado do mundo objetivo, e conhecimento empírico, se baseia
apenas n a experiência sensorial, sua negação da relação com a
transformação de uma em outra, a concepção da verdade apenas
como sistema contraditório interno ou como juízo ao qual corres­
ponde uma . experiência sensorial qualquer refletiram-se indiscuti­
velmente e não podiam deixar de refletir-se indiscutivelmente e não
podiam deixar de refletir-se nas afirmações dos positivistas sobre a
hipótese, as possibilidades e modos de sua demonstração .
Ao considerarem a hipótese como sistema de teses, os positivis­
tas lógicos fazem apenas duas exigências em relação a ela : ela não
deve ser logicamente contraditória ( um j uízo não deve ser a ne­
gação lógico-formal de outro ) e suas teses particulares devem admi­
tir a verificação experimental . E como se sabe, semelhante critério
ou · as exigências que acabamos de mencionar, tomadas quer sepa­
radamente, quer conjuntamente, são indiscutivelmente insuficientes
para a transformação da hipótese em teoria autêntica. Por isto,
dado que o positivismo não conhece nem pode conhecer outros
meios ( como diz Philipp Frank, na ciência não há nenhum outro
critério exceto esse ) , ele chega à conclusão agnóstica de que a hi­
pótese estaria condenada a permanecer sempre hipótese. E aqui que
se manifesta a falha do princípio neopositivista de verificação,
que é incapaz de encontrar critérios de veracidade para todo um
sistema de conhecimento em evolução como é o caso, por exem­
plo, da hipótese .
A dialética materialista n ão só não erige um obstáculo inex­
pugnável entre a hipótese e a teoria científica autêntica como, ao
contrário, generalizando os resultados do conhecimento científico,
estabelece entre elas uma relação profunda, indestrutível . Em rea­
lidade, entre a hipótese e a teoria científica autêntica existe grande
afinidade no sentido gnosiológico, que consiste antes de tudo
em ambas serem uma forma de sistematização do conhecimento ci­
entífico .
Os conceitos de "teoria" e "hipótese" estão relacionados entre
si como gênero e espécie ; os indícios gerais do gênero podem ser
transferidos para o conceito de espécie. Por isto "contrapõe-se" não
a hipótese à te9ria em geral mas a hip ótese como tipo de teoria a
outra sua forma : à teoria autêntica. A hipótese é uma teoria

2 84
i n a utêntica, porquanto a veracidade da tese que desempenha a fun­
çüo de princípio unificador ainda não foi demonstrada mas apenas
fundamentada somente até um alto grau de probabilidade. É aqui
q u e está o limite entre a hipótese e a teoria autêntica .
Essa diferença do caráter do princípio unificador na hipótese
e na teoria autêntica ( numa a diferença é autêntica, na outra, ape­
nas provável ) determina todas as outras diferenças entre elas. Mais
precisamente, a hipótese difere da teoria autêntica pelo caráter do
conhecimento contido ; nela há mais de subjetivo, de relativo, de
in acabado que na teoria autêntica, sendo que esse subjetivo, rela­
tivo, inacabado, está no coração da hipótese - no princípio unifi­
cador : nela a própria idéia ainda não está suficientemente desenvol­
vida e fundamentada .
O desenvolvimento da teoria científica autêntica se realiza por
várias linhas. Antes de tudo ele se enriquece, inclusive com o auxí­
lio da hipótese, com novas teses ; nela o sistema de conhecimento
se amplia e se aprofunda à custa da inserção de novas teses e da
concretização de velhas. Além do mais, o aprofundamento e a con­
cretização podem referir-se inclusive ao princípio unificador.
·

As vezes o desenvolvimento da teoria leva a um novo sistema


de conhecimento com um novo princípio básico, mas neste caso
o velho sistema não se desintegra porquanto era autêntico, incor­
porando-se com o seu princípio ao novo sistema de conhecimento
como parte componente deste .
Assim, a geometria de Euclides tornou-se parte de um siste­
ma geométrico mais vasto, a física de Newton tornou-se parte da
teoria física moderna, etc .
No processo dessa inserção da teoria autêntica no novo sis­
tema de conhecimento opera-se uma precisão, a libertação do não­
verdadeiro, a limitação do significado." Ela se desfaz das pretensões
à absolutividade e exclusividade mas se mantém como teoria autên­
tica em determinados limites. Pode servir de prova disto o prin­
cípio de correspondência, segundo o qual o novo sistema de co­
nhecimento deve fornecer a teoria anterior como um de seus sig­
n i ficados particulares.
Diferente é o caminho seguido pelo desenvolvimento da hipó­
tese científica. Aqui também há várias possibilidades. Em primeiro
lugar, como a teoria autêntica a hipótese pode desenvolver-se,
precisar-se, concretizar-se permanecendo hipótese. Esse desenvolvi­
mento compreende a complementação da hipótese com novos fatos
e leis da ciência, a obliteração dos juízos falsos nela, etc . A hi-

285
pótese pode ser incorporada ao novo sistema de conhecimento q ue
tem caráter também hipotético. Mas tudo isto é o desenvolvimento
da hipótese nos limites da hipótese, i. e,, o princípio sistematizador
dela continua tese cuja veracidade não foi demonstrada .
Em segundo lugar, o desenvolvimento da hipótese pode levá­
la à autonegação. Assim , por exemplo, ao dedicar-se à verificação
e fundamentação dessa ou daquela hipótese, o estudioso pode des­
cobrir fatos e leis que negam essa mesma hipótese. Surge então o
problema de substituí-Ia por outra hipótese, com outro princípio .
Neste caso ocorre uma quebra do sistema de conhecimento ( e não
seu simples aperfeiçoamento ) , o lançamento e a fundamentação de
uma nova idéia. '.É claro que se mantém certa sucessão entre esses
dois sistemas, mas aqui é sobretudo evidente a interrupção da
continuidade. A substituição das hipóteses difere por princípio do
desenvolvimento, do aperfeiçoamento da teoria autêntica, de sua
inserção no novo sistema de conhecimento, pois quando se refuta
a tese básica de uma hipótese e surge uma nova hipótese, então o
velho sistema de conhecimento se desintegra e surge um sistema
novo por princípio. Isto, evidentemente, não significa que o siste­
ma anterior desapareça sem deixar vestígios ( ele desempenhou sua
função ) , mas ele deixa de existir na ciência como sistema de co­
nhecimentos dotado de determinado princípio . Por último, a tercei­
ra via de desenvolvimento da hipótese : sua transformação em teo r i a
científica autêntica. Isto acontece quando se estabelece a veraci­
dade do princípio que lhe serve de base. Neste caso a demonstra­
ção da hipótese e sua transformação ein teoria estão relacionadas
com a evolução do sistema de conhecimento científico. A tese bá­
sica da hipótese não só se demonstra mas se desenvolve, comple­
ta-se e concretiza-se, ocorrendo ao mesmo tempo o aperfeiçoamen­
to de toda a construção teórica .
Assim, embora entre a hipótese, seu desenvolvimento e a teoria
científica autêntica e sua mudança, exista uma diferença de prin­
cípio, essas duas formas de sistematização d o conhecimento cientí­
fico estão em relação de reciprocidade. No processo de movimento
do conhecimento a hipótese se converte em teoria .
A relação de reciprocidade entre a hipótese e a teo ria autêntica
é tão indissolúvel, elas penetram tão mutuamente uma na outra
que o próprio desenvolvimento da teoria autêntica se realiza por
meio de hipóteses. Em realidade, quando essa ou aquela teoria se
incorpora a um novo sistema de conhecimento, este sistema tem
inicialmente caráter hipotético. Ele exige a sua demonstração. E o
fato de que na nova hipótese está incluída a teoria autêntica cons-

286
titui ·mais uma prova da existência do conhecimento objetivo-ver­
dadeiro na hipótese científica na qual nem tudo é hipotético.
A sucessiva evolução e o aperfeiçoamento do princípio da teo­
ria científica também ocorre por meio · de hipóteses .
A relatividade da diferença entre a hipótese e a teoria emana
da relatividade da prática enquanto critério da verdade. Quando
se qualifica uma teoria de autêntica e outra de hipotética, parte-se
do nível atingido pela prática .
Em termos práticos é freqüentemente difícil delimitar a teoria
autêntica e a hipótese. As vezes parece que o princípio que serve
de base a esse ou aquele sistema de conhecimento foi demonstrado
e é irrefutável , mas depois se descobre a sua inconsistência. Isso
ocorre porque a prática de cada período histórico determinado é
limitada e em dado momento não permite demonstrar plenamente,
absolutamente, ou refutar todas as idéias que surgem. Como resul­
tado, às vezes tomam-se as hipóteses por teorias autênticas, enquanto
muitas teorias permanecem durante longos anos como hipóteses
n ão-demonstradas. São freqüentes ainda os casos em que certas
hipóteses, não tendo ainda sido criadas teorias autênticas, exercem
com bastante êxito a função destas. E ao contrário, se, por exem­
plo, o princípio básico de qualquer teoria foi refutado pelo suces­
sivo desenvolvimento da ciência, significa que ela desempenhou de
fato o papel de hipótese. Ademais é característico que as hipóteses
são são vivazes que até após o descobrimento de fatos autênticos
que as refutam elas ainda continuam vivas na ciência. Como obser­
va corretamente Ph . Frank, "soa muito bonito quando dizem que
abandonamos uma teoria se revelamos ao menos uma divergência
entre ela e os fatos, mas em realidade ninguém assim procede
enquanto não se encontra uma nova teoria"4º .
Isto não significa que entre a hipótese e a teoria autêntica não
haja qualquer diferença, que todas as construções teóricas são equi­
valentes, sendo um modo cômodo de explicação dos fenômenos em
dada etapa de desenvolvimento da ciência. :É indiscutível que exis­
te diferença entre a hipótese e a teoria autêntica, sendo essa dife­
rença absoluta em certos limites. O conhecimento cuja veracidade
foi demonstrada difere por princípio do conhecimento provável. No
entanto, por mais "absoluta" que sej a a diferença entre a hipótese e
a teoria autêntica, entre elas não há um abismo intransponível. Elas

49 \Ph. Frank. Filos6/ia da ciência, p . 9 3 .

\, 287
estão estreita e indissoluvelmente ligadas entre si ; na ciência ocorre
permanentemente a transformação de unia em outra. E a prática é a
base dessa transformação.
A hipótese é um sistema em desenvolvimento cuja veracidade
pode ser demonstrada não mediante uma observação isolada mas
através de todo um sistema de resultados práticos. Ademais, o
fator decisivo na transformação da hipótese em teoria autêntica é a
demonstração prática do princípio que lhe serve de base.
A prática não só gera hipóteses como é ainda critério de sua
veracidade. Sendo critério universal da verdade, ela penetra o de­
senvolvimento do pensamento sob a forma de hipótese ao longo de
toda a evolução desta, do momento do seu enunciado à sua trans­
formação em teoria autêntica .
O processo de transformação de uma hipótese em teoria au­
têntica à base da prática realiza-se em diversos setores da ciência de
diferentes modos, dependendo da especificidade do objeto por esta
estudado, do caráter das hipóteses nela contidas e das particulari­
dades da manifestação da prática. Por isto, para estabelecer com
mais precisão as vias de transformação das hipóteses em teorias au­
tênticas é necessária uma análise concreta da evolução dessa ou
daquela ciência.
Abordaremos os métodos de demonstração prática das hipóte­
ses que não são simplesmente específicos de uma ciência qualquer
mas expressam as leis gerais do processo de conhecimento científico.
A hipótese se converte em teoria autêntica quando se desco­
brem por via prática os resultados que podem emanar somente de
um dado sistema de conhecimento científico. O processo de demons­
tração consiste em tirar de uma hipótese todo um conjunto de con­
clusões que em seguida são verificadas pela atividade prática da vida.
Neste caso devem-se fazer conclusões não a partir de juízos parti­
culares isolados e autênticos que podem existir em outro sistema (na
hipótese ) mas dessa mesma hipótese, da suposição básica que lhe
constitui a essência . Exemplos dos mais diversos campos da ciência
podem servir de confirmação de que, amiúde, é justamente desse
modo que as hipóteses se convertem em teorias autênticas .
Em sua obra Quem são os amigos do povo e como lutam con­
tra os sociais-democratas?, Lênin mostra o caminho da transforma­
ção da concepção materialista da história de hipótese em teoria ci­
entífica autêntica. Nos anos 40 do século p assado K. Marx expôs as
teses básicas da concepção materialista da história, segundo a qual
as relações de produção entre os homens são fundamentais, deter-

288
minam todas as o.utras relações entre os homens. Essa idéia genial
de Marx, como indica Lênin, estava para aquela época apenas na
.

condição de hipótese, mas era uma hipótese "que pela primeira vez
criava a possibilidade de uma atitude rigorosamente científica face
aos problemas históricos e sociais"50•

Em suas obras Marx e Engels demonstram a referida hipótese


à base do estudo de um imenso material histórico. "Mas eis que
Marx - continua Lênin -, tendo lançado essa hipótese na década
de 40, lança-se ao estudo efetivo (nota bene ) , do material. Ele toma
uma das formações econômico-sociais - o sistema de economia
mercantil - e com base numa gigantesca massa de dados ( que es­
tudou o mínimo durante 25 anos ) faz a mais minuciosa análise das
l eis do funcionamento dessa formação e do seu desenvolvimento.
Essa análise se limita às relações de produção entre os membros da
sociedade : sem recoqer uma única ve°!' a quaisquer momentos si­
tuados fora dessas relações de produção para a explicação da ques­
tão, Marx permite ver como se desenvolve a organização mercantil
da economia social, como ela se transforma em capitalista, criando
(já nos limites das relações de produção ) as classes antagônicas da
burguesia e do proletariado, como desenvolve a produtividade do
trabalho social e com isto introduz um elemento que entra em con­
tradição irreconciliável com as bases dessa mesma organização ca­
pitalista . . .
Hoje - desde o tempo do surgimento do O Capital , a con­ -

cepção materialista da história já não é uma hipótese mas uma tese


cientificamente demonstrada . . . "n. A análise da formação econô­
mico-social à base da hipótese lançada por Marx levou ao desco­
brimento das leis do desenvolvimento social, que obtiveram sua
confirmação na prática do desenvolvimento da sociedade e, deste
modo, a hipótese tornou-se teoria científica autêntica .
Quando dizemos que a hipótese é demonstrada pela prática,
pelos fatos, não estamos falando de fatos isolados que correspon­
dem à hipótese mas de todo um conjunto de resultados práticos, que
compreende freqüentemente também o desenvolvimento da produ­
ção. Fatos isolados podem apenas aumentar a probabilidade da
hipótese, verificá-la mas n ão demonstrá-la .

Go V. 1. Lênin. Obras completas, t. 1 , p. 1 3 6.


51 V. 1. Lênin. Obras completas, t. 1 , pp. 1 3 8, 1 3 9- 1 40.

289
Mede-se a importância heurística de uma hipótese pela capa­
cidade de prever novos fatos e teses. Mas o descobrimento, na prá­
tica, de fatos previstos não apenas aumenta a probabilidade da h i ­
pótese como sob determinadas condições a transforma em teoria au­
têntica. Se à base da hipótese descobriu-se todo um conjunto de
novos fatos e leis que podem ser explicados em dadas condiçôes
somente com base nessa e não em nenhuma outra hipótese, entãt)
ela deixa de ser hipótese e se toma teoria autêntica. A verificação
da veracidade da hipótese, o descobrimento prático dos fatos e leis
necessários dependem do dispositivo lógico através do qual se rea­
liza essa verificação e descobrimento dos fatos. :É legítimo colocar
o problema : qual a atitude desse dispositivo lógico face à prática,
constituirá ele algo autônomo e independente dela - segundo cri­
tério paralelo - ou está de algum modo relacionado com ela?
A dialética materialista reconhece apenas um critério de vera­
cidade das hipóteses : a prática. Com base na prática surge também
o dispositivo lógico ; este é subordinado a ela, sendo a sua consol i­
dação e o seu instrumento .
O reconhecimento da diversidade de vias lógicas de demons­
tração da hipótese, que surgem à base da prática, da inter-relação e
mútua complementação entre elas constitui um dos meios mais i m ­
portantes de combate ao agnosticismo na interpretação da essênci a
d a hipótese. A tarefa do pesquisador é encontrar e m cada caso
concreto, para cada hipótese particular um caminho (ou conjunto
deles ) pelo qual se possa demonstrá-la e deste modo relacioná-l a
com a prática para que a suposição da hipótese possa passar de
tese provável a autêntica ou ser refutada como tese que não se confir­
mou. Cada modo de demonstração é particularmente . relativo, mas
no seu conjunto, baseando-se na prática em evolução, são absol utos.
Na formação, desenvolvimento e demonstração das hipóteses
cabe grande papel ao experimento. Engels observava que "a de­
monstração da necessidade consiste na atividade humana, no expe­
rimento, no trabalho . "52 •
. .

Mediante o experimento realiza-se a demonstração prática das


hipóteses que surgem na ciência. No entanto não é esse o ú nico
meio de demonstrá-las. A absolutização do experimento, o esque­
cimento de outras formas de assimilação prática da realidade leva a

52 K. Marx e F. Engels. Obras, t. 20, p. 544.

290
grandes erros na teoria do conhecimento . Onde é impossível o ex­
perimento existem outros tipos de demonstração prática ( a expe­
riência da luta de classes, das revoluções sociais, etc. ) , que, além
de não serem inferiores ao experimento pela força de demonstra­
ção, ainda o superam em certo sentido .
Não devemos esquecer que o experimento surge da necessida­
de do desenvolvimento do conhecimento científico, que exige um
método de estudo do fenômeno sob o qual o homem possa interfe­
rir ativamente no processo da sua evolução visando a uma obser­
vação mais minuciosa e precisa de sua observação. O surgimento e
a ampla aplicação do método experimental de estudo dos fenôme­

nos levou a um rápido aumento dos conhecimentos científicos .


De onde surge então a força demonstrativa do experimento?
De que modo um experimento isolado pode servir de demonstração
u m a hipótese, construção teórica de caráter universal?
Lênin dá uma resposta profunda a essa pergunta nos Cader­
nos filosóficos, ao revel ar as peculiaridades da prática enquanto
critério de veracidade do nosso conhecimento.
Antes de tudo os resultados do experimento são sensorialmente
acessíveis, podem ser compreendidos por meio dos órgãos dos sen­
tidos. E, como se sabe, os dados dos sentidos são dotados de auten­
ticidade imediata; nisto está a força do conhecimento empírico. A
força demonstrativa do experimento está, indiscutivelmente, relacio­
nada com esta sua capacidade. Qual quer observação experimental
da realidade tem autenticidade sensorial. No entanto não equiparamos
a sua força demonstrativa à prática em geral e ao experimento em

particular. Mesmo sendo o caso de essa ou aquela hipótese corres­


ponder a uma observação qualquer, esta, seja como for, não pode
constituir-se em demonstração da veracidade de tal hipótese nem
a transforma em teoria autêntica. Além do mais, esse papel não
pode ser desempenhado nem por um número muito grande de obser­
vações (milhares de observações de cisnes brancos não demonstram
a tese de que todos os cisnes são branços ) . Por si mesma a obser­
vação empírica nunca pode revelar e demonstrar a necessidade e a
universalidade das relações observáveis.
O estabelecimento da necessidade e da universalidade ( desco­
berta de leis ) é tarefa do pensamento teórico, que deve "dar o obje­
to em sua necessidade, em suas relações multilaterais . . . "5 3

63 V. 1. Lênin. Obras completas, t. 29, p. 1 9 3 .

29 1
Ma:s o pensamento teórico não possui autenticidade sensorial e
naturalidade em relação ao objeto. Por isto é necessário encontrar
uma forma de interpretação da realidade que una em si a universa­
lidade com a naturalidade imediata e a relação com o objeto. São
justamente essas particularidades que a prática possui .
Lênin escreveu : "A prática é superior ao conhecimento ( teórico )
,

pois possui não só o mérito da universalidade como também reali­


dade imediata"54• Esta tese de Lênin é de imensa importância para
a compreensão da essência do experimento no qual o conhecimento
empírico e o teórico se relacionam num todo único, organicamente .
No processo de atividade prática em geral e do experimento
como uma de suas formas em particular ocorre a realização, a obje­
tivação dos conceitos, das idéias. Extraídas do experimento, as cons­
truções teóricas tornam a revestir-se de forma concreto-sensorial .
"Mas o conceito humano abrange, capta 'definitivamente' essa ver­
dade objetiva, domina-a somente quando o conceito se torna 'ser
para si' no sentido da prática"55 •

'.É nisto que consiste a diferença radical entre a função gnosio­


lógica da observação empírica habitual de um fenômeno qual quer
e os resultados da prática, particularmente do experimento. Para
demonstrar que a água é constituída de dois átomos de hidrogênio
e um átomo de oxigênio não são necessários milhares de exemplos
de obtenção de água desses dois gases em laboratório ; um experi­
mento já pode demonstrá-lo e fazer aquilo que está além das possi­
bilidades de um grande número de observações empíricas. Engels es­
creveu : "A máquina a vapor foi a prova mais convincente de que
do calor pode-se obter movimento mecânico. Cem mil máq uinas a
vapor o demonstraram de modo não mais convincente do que uma
máquina, elas apenas forçaram os físicos a se dedicarem à explica­
ção disto"56• Conseqüentemente, para a demonstração da lei física
foi suficiente uma máquina a vapor construída pelo homem .
Assim, por meio do finito, do singular, demonstra-se o infinito,
o universal.
Partindo de que "o geral existe apena s no particular e atrav� s
do particular"57, a dialética reconhece a possibilidade do descobn-

H Id., p. 1 95.
ss Id., p. 193 .
ss K. Marx e F. Engels. Obras, t. 20, p. 543.
s1 V. I. Lênin. Obras completas, t. 29, p. 3 1 8 .

292
mento do universal por meio da enumeração e do exame não de
todos os fatos e fenômenos singulares mas só de alguns e até de um
deles. Mas para tanto não basta simP.lesmente tomar um fato ou
fenômeno singular e submetê-lo à contemplação mas, tomando por
base as construções teóricas ( hipóteses ) antecedentes, reproduzi-lo
na prática, dar ao universal forma concreto-sensorial. Somente as­
sim, à base da apreensão do singular e do finito, pode-se chegar
fidedignamente ao conhecimento do universal e do infinito .
No processo de experimentação o pesquisador realiza trabalho
idêntico ao do processo de abstração. Desmembra o aspecto que
o interessa, procura separar a lei em "forma pura", i. e., livre de
suas manifestações casuais. "O físico observa os processos da natu­
reza onde eles se manifestam na forma mais nítida e onde são me­
nos obscurecidos pelas influências que os violam, ou, quando é pos­
sível, efetua experimento sob condições que garantem o desenrolar
do processo em forma pura"58 - escreveu K. Marx .
Mas o estudo do fenômeno que interessa em forma "pura" no
experimento difere do desmembramento das leis nas abstrações. No
pensamento teórico depura-se a lei, por via especulativa, das casua­
lidades que a violam, enquanto no experimento, por via prático­
sensorial, material. :B nisto, em particular, que consiste a peculiari­
dade da assimilação prática do mundo e sua diferença em relação
às formas de conhecimento teórico. Neste sentido o experimento
surge sempre à base de uma construção teórica qualquer, pois o es­
tudo experimental dos fenômenos pressupõe sua análise teórico­
científica .
Todo experimento surge como uma materialização da hipótese.
O experimentador procura um modo de materializar a idéia da hi­
pótese e deste modo torná-la concreto-sensorial .
Podem-se fazer conclusões atinentes à autenticidade de uma
construção teórica qualquer somente guando o experimentador está
convencido de que materializou a idéia que o interessa, encontro�1
o modo de unificação do universal com o singular, no qual pode-se
j ulgar o universal à base do singular. Isto nem sempre se consegue
realizar em termos práticos, pois não é qualquer hipótese que se possa
verificar com experimento direto e nem sempre se consegue co­
locar o experimento em termos práticos . Isto é ainda mais
evidente considerando-se que na ciência moderna teoriza-se cada

58 K. Marx e F. Engels. Obras, t 23, p. 6.

293
vez mais o experimento, os raciocm1os teóricos se entrelaçam no
tecido do experimento, constituindo momento essencial deste. Neste
sentido a ciência atual recorre em proporções cada vez menores à
força clássica de experimento, onde tudo é sensorialmente palpável,
visível. O momento do concreto-sensorial, no qual materializa-se a
idéia, no experimento moderno pode ocupar posição modesta na ca­
deira de raciocínios teóricos. Mas sem ele, por mais insignificante que
seja a posição que ocupe, não há experimento enquanto forma de
demonstração prática das construções teóricas .
O acadêmico S. 1. Vavílov, um dos maiores físicos da atual ida­
de, escreveu : "Todo experimento físico, se é minucioso, tem valor
autônomo. Mas amiúde recorre-se a esmo ao experimento, à procura
de fenômenos novos, inesperados. Na maioria dos casos coloca-se o
experimento visando a julgar se são corretas ou errôneas determina­
das construções teóricas. O resultado do experimento pode refutar de­
finitivamente e com maior ou menor precisão determinada suposi­
ção. A confirmação dessa ou daquela teoria, ao contrário, em termos
rigorosos, nunca deve considerar-se inapelável pelo motivo de qu�
o mesmo resultado pode proceder de diversas teorias. Neste sentido
é dificilmente possível o indiscutível experimentum crucis. A respos­
ta dada pelo experimento às vezes pode ser surpreendente, e então
o experimento se torna fonte primária de urna nova teoria ( assim,
por exemplo, surgiu a teoria da radiatividade ) . Nisto reside a im­
portância mais valiosa, heurística, do experimento.
Mas resultados dessa natureza são muito raros, daí o experi­
mentador, antes de empreender o experimento,
- colocar sempre a
questão da sua conveniência"59 •
Aqui Vavílov aponta com absoluta razão o duplo papel do ex­
perimento : 1 ) por meio do experimento demonstram-se ou refu­
tam-se teses teóricas antes estabelecidas ; 2 ) o experimento pode
ter importância heurística, tornando-se fonte primária de novas hi­
póteses e teorias. Esses dois aspectos são inseparáveis no experi­
mento : ao demonstrarmos um conhecimento, nós o desenvolvemos
em certa medida e, desenvolvendo-o, nós o demonstramos .
Diante da elucidação do papel do experimento na demonstra­
ção de uma hipótese, surge o problema do "experimento decisivo"
( experimentum crucis ) , cuj a teoria foi fundada pela lógica tradi­
cional. De acordo com essa teoria, caso se descubra um fato que

so S. 1. Vavílov. Fundamentos experíme11tais da teoria da relatividade,


Moscou-Leningrado, 1928, pp. 1 6- 1 7 .

294
contradiz uma hipótese e corresponde a outra, então pode-se consi­
derar demonstrada a segunda hipótese .
Mas na ciência se conhecem também casos em que o fato deci­
sivo para a confirmação de uma hipótese e a negação de outra foi
encontrado mas assim mesmo a hipótese continuou hipótese. Assim,
em determinada época parecia que a hipótese corpuscular da luz
havia caído definitivamente, triunfando a ondulatória. Conforme a
hipótese corpuscular, a velocidade da propagação da luz num meio
transparente condensado é maior que no vazio ; conforme a hipótese
de Huyghens, ocorre o contrário. A tarefa consistia em medir expe­
rimentalmente a velocidade da luz no vazio e, por exemplo, na água,
e isto deveria constituir-se no fator decisivo para a demonstração

de uma hipótese e a negação da outra. Os experimentos de Fou­


cault mostraram que a velocidade do movimento da luz na água
é menor que no vazio. No entanto isto ainda não afastou a concep­
ção da natureza descontínua da luz e não transformou a hipótese
ondulatória em teoria científica autêntica.
b processo de desenvolvimento da ciência mostrou que nenhum
experimento é absoluto ou decisivo em dado sentido. Isto serviu de
"fundamento" para a conclusão positivista sobre a impossibilidade
de transformação da hipótese em teoria autêntica. Assim, Ph. Frank
escreve : "Falou-se muito do 'experimento decisivo' que poderia re­
solver se determinada teoria devia ou não ser refutada. Um experi­
mento único pode refutar uma teoria somente se por teoria suben­
tendermos um sistema de afirmações particulares que exclua a pos­
sibilidade de sua mudança. Mas o que na ciência se chama teoria, em
realidade nunca constitui tal sistema. Se nos referirmos à 'teoria
do éter' ou à 'teoria corpuscular' da luz, ou à 'teoria da evolução'
em biologia, cada uma dessas denominações pode significar uma
grande variedade de possíveis sistemas. Por isto nenhum experimento
decisivo pode refutar nenhuma teoria semelhante'"6º.
Para Vavílov é pouco provável que o indiscutível experimentum
crucis seja possível. Frank não tem a mínima dúvida de que ele é
impossível não só como meio de demonstração da hipótese mas
também de sua contestação . Poderia parecer que há coincidência entre
os pontos de vista do acadêmico Vavílov, que se mantém nas po­
sições do materialismo dialético, e do positivista Philipp Frank quan­
to à referida q uestão. Mas isto é apenas aparência. Ao negar a

�'° Ph. Frank. Filo}ofia da ciência, p. 95 .

29 5
qualquer experimento isolado o significado de demonstração decisi­
va, definitiva ou de contestação de uma hipótese qualquer, Frank
conclui, conseqüentemente, que a ausência desse experimento é uma
prova da impossibilidade da demonstração da hipótese em geral e
sua transformação em teoria autêntica. Por outras palavras, a nega­
ção do experimento decisivo é, em Frank, uma das premissas bási­
cas para a fundamentação do ponto de vista agnóstico da hipótese
e do conhecimento humano em geral, dado que essa negação se de­
senvolve por meio de hipóteses .
Como dialético que parte do reconhecimento do desenvolvimento
do conhecimento científico pelo caminho da verdade objetiva, Vaví­
lov duvida da existência do indiscutível experimentum crucis, enten­
dendo as limitações quer do resultado isoladamente tomado do co­
nhecimento, quer do ato de sua verificação prática .
Efetivamente, como meio de demonstração o experimento é li­
mitado e relativo. Cada experimento surge à base do nível alcança­
do de técnica e conhecimentos científicos. A história da ciência mos­
tra que as construções teóricas, as hipót�ses que foram refutadas pela
ciência posterior estruturaram-se em sua época à base de experimen­
tos e foram por eles confirmadas. Mas esses mesmos experimentos
eram limitados no sentido da possibilidade de penetração da essên­
cia do objeto, propiciavam apenas a verdade relativa, situada mais
perto ou mais longe do conhecimento absoluto. A medida do aper­
feiçoamento da técnica de experimentação crescia a força demons­
trativa do experimento, a ciência podia tirar dele conclusões mais
precisas.
Isto significa que só em seu desenvolvimento o experimento
pode ser um meio real de demonstração do conhecimento verdadei­
ramente em evolução .
Todo experimento é limitado, ele não demonstra nem refuta
inteiramente a construção teórica que através dele se verifica. No
entanto não se deve esquecer que o experimento serve não só de
meio de demonstração de uma hipótese mas também de instrumento
do seu sucessivo desenvolvimento. Por um lado, como singular ele
não expressa plena e adequadamente o universal e o necessário, por
outro, qualquer singular é por conteúdo mais rico que qualquer uni­
versal .
Por isto o experimento contém não só aquilo que se verifica
plenamente mas também o novo, antes não previsto pelo experimen­
tador, que amplia as suas concepções teóricas .

296
A fonte do desenvolvimento do conhecimento é não só o ex­
perimento que confirma uma construção teórica mas também o que
dá resultado negativo. Diante do fato de que todo experimento si­
multaneamente demonstra ( ou refuta ) uma construção teórica qual­
quer e fornece a base para novas suposições que · exigem demons­
trações, o pesquisador deve distinguir- rigorosamente aquilo que já
foi demonstrado pelo experimento do gue à base deste surge como
suposição. A confusão desses dois aspectos leva a erros grosseiros .
A evolução do conhecimento pressupõe uma interação incessan­
te do experimento, particularmente dos experimentos, com o pen­
samento teórico, a hipótese. Além do mais, o próprio experimento
constitui uma combinação concreta da atividade abstrativa da ra­
zão humana com a contemplação viva, sensorial. No processo de
conhecimento passamos da observação, do experimento, ao raciocí­
nio teórico e, deste, novamente ao experimento. O experimento e a
especul ação se interpenetram, invadem um ao outro em todo o desen­
rolar do conhecimento do objeto: ora as formas de pensamento abs­
trato se fundem nas formas materais do experimento científico, ora
tornamos a abstrair o concreto-sensorial para obter abstrações a
um nível mais elevado, que refletem de maneira adequada, multila­
teral , o objeto estudado.
À pergunta relativa à existência do experimento decisivo pode­
mos responder que todo experimento é decisivo, de vez que acres­
centa ao nosso conhecimento um grão, uma partícula do conheci­
mento objetivo, absoluto e contribui para a conversão da hipótese
em teoria autêntica .
Não existe experimento que geralmente não demonstre algo.
Mas ao mesmo tempo nenhum experimento ou até mesmo série
deles são decisivos, posto que eles não concluem o processo de desen­
volvimento do conhecimento .
Ao demonstrar uma hipótese científica, o pesquisador a desen­
volve simultaneamente. A própria teoria autêntica não é algo abso­
luto : é apenas um sistema relativamente acabado de conhecimento,
o qual muda no processo de desenvolvimento da ciência. Essas mu­
danças ocorrem inicialmente nos limites de dada teoria e de seu
princípio mediante a inclusão de novas e de certa mudança das teses
anteriores que a integravam .

No entanto chega um mo nto q ue é assinalado "pelo limite
do desenvolvimento da teoria", ao se incluírem na construção teó­
rica novos fatos nela se descobrem contradições insolúveis nos li-

297
mites do referido sistema de conhecimento. A solução dessas con­
tradições pressupõe uma mudança essencial dos princípios que ser­
vem de base da referida teoria, dado que os novos fatos entram em
contradição com esses princípios.
Somente por meio da análise concreta d a situação cognitiva
que se formou em torno da teoria pode-se determinar o momento
em que ela atinge o limite em seu desenvolvimento .
Surge a necessidade da criação de uma nova teoria com prin­
cípios diferentes. No processo de movimento no sentido da teoria a
pesquisa torna a percorrer o caminho, começando pela colocação do
problema . Juntamente com as contradições nela descobertas, a teo­
ria anterior se torna agora elemento do conhecimento que é neces­
sário para a colocação do problema. A nova teoria surgida determi­
na o campo de aplicabilidade de todas as anteriores, relativas ao
objeto dado . Elas, por sua vez, como os fatos autênticos, são critérios
de probabiHdade da extrapolação que existe na nova teoria .
É nisto que reside o conteúdo gnosiológico do chamado prin­
cípio de correspondência, lançado pela primeira vez por Niels Bohr
aplicadamente à física mas aplicável agora a um grande círculo de
foorias61 •
Assim, não só os fatos conduzem às teorias, mas as teorias se
tornam fatos no decorrer da pesquisa. A transformação da teo ria
em fato implica em demonstrar-lhe a autenticidade .

s1 I. V. Kuznetsov apresenta a seguinte formulação generalizada desse


princípio : " . . . as teorias, cuja justeza foi estabelecida experimentalmente para
esse ou aquele campo dos fenômenos físicos, com o surgimento de teoria nov.as,
mais gerais, não são afastadas como algo falso mas conservam a sua impor­
tância para o campo anterior de fenômenos como forma-limite e caso parti­
cular de novas teorias. No campo onde era justa a velha teoria 'clássica' as
conclusões das novas teorias se transformam em conclusões da teoria clás�ica ;
o dispositivo · matemático da nova teoria, contendo certo parâmetro caracterís­
tico cujos significados são diferentes nos campos velho e novo dos fenõmenos,
no devido significado do parâmetro característico se tranforma em dispositivo
matemático da velha teoria" (1. V. Kuznetsov. Os princípios de correspo11dê11-
da na física moderna e sua importância filosófica. Moscou-Leningrado, 1 94 8 ,
p. 56 ) .

298
VI

Fundamentos Lógico-Gnosiológicos da
Realização Prática do Conhecimento

"A idéia de incluir a vida na · lógica é com­


preensível - e genial - d o ponto de vista
do processo de representação do mundo obje­
tivo na consciência ( a princípio individual )
do homem e da verificação dessa consciênda
( representação ) pela prática . . "i .
.

1. 0 CONHECIMENTO CIENT ÍFICO, SUA LINGUAGEM E

SUAS P E C ULIARIDADES

A teoria não é a única forma de sistematização do conhecimento .


Existem formações especiais, ciências, que reúnem várias teorias.
Elas surgem do mesmo modo que as teorias, com a única diferença
de que a teoria unifica os conceitos e a ciência é um sistema de
teorias .
En quanto forma de si stematização do conhecimento, a ciência
tem as suas particularidades específicas cujo estudo constitui gran­
de interesse para a compreensão das leis do desenvolvimento do
conhecimento. Partindo da concepção da ciência como forma es­
pecífica de consciência social, é neces.sário estudá-la não s6 do as-

2 V. 1. Lênin. Obras completas, t. 29, p. 1 84.

299
pecto sociológico2 mas também do lógico, i. e., esclarecer o lugar da
ciência no desenvolvimento do . conhecimento, o modo de sintetizar
nela o conhecimento, suas peculiaridades enquanto forma de movi­
mento do pensamento.
A primeira pergunta que aqui surge consiste no seguinte : qual
é o conjunto de conhecimento q ue constitui a ciência, quais os prin­
cípios pelos quais ocorre a unificação das teorias em uma ciência?
Os positivistas e neopositivistas negam o caráter objetivo das
teses da ciência e por isto são forçados a procurar os critérios do
conhecimento científico em algum lugar fora da ciência, não no
objeto mas no sujeito e antes de tudo" na linguagem da ciência . A
idéia principal deles é a afirmação de que a análise da ciência sig­
nifica antes de tudo o estudo da sua linguagem.
Segundo eles, o fundamento da construção do sistema de conhe­
·
cimento é constituído pelas chamadas sentenças protocolares, nas
q uais se fixam os resultados das observações além dos dispositivos
sob a forma : "o indicador do dispositivo registra 1 O" Essas sen­
.

tenças, denominadas "protocolo básico", admitiriam a verificação


experimental imediata ( para convencer-se da veracidade delas, é ne­
cessário olhar o indicador) . Para elas, constituem uma etapa ne­
cessária na construção do sistema científico o comunicado das obser­
vações, a construção da linguagem científica cuj as sentenças re­
vestem as observações de significado, determinam as regras lógicas
e sintáticas e ajudam a tirar conclusões delas .
O critério de cientificidade de um sistema construído, afirmam


eles, é constituído pela não-contrariedade lógica interna desse sis­
tema ela correspondência de todas as suas teses às sentenças pro­
tocolar s que fixam os resultados do experimento imediato. E dado
que, gundo os positivistas, as teses basilares na construção da ci­
ência ( "as sentenças protocolares" ) não refletem o mundo objetivo,
referem-se não aos objetos estudados mas às próprias notas e regis­
tros, então a ciência se fecha para eles no campo da atividade sub­
jetiva .

2 Não são raros os casos em que se estuda a c:ência predominantemen­


te do aspecto apenas sociológico, i. e., elucidam-se as suas peculiaridades como
formas de atividade dos homens na sociedade. É inconteste que esse asp:cto
do problema é não só importante como determinante na compreensão d a
essência da ciência e seu lugar n a vida social. M a s seria ilítico limitar-se a
isto ; além do mais, esse aspecto do problema ultrapassa os limites do tema
do presente trabalho.

3 00
Cada c1encia constitui a unidade do conhecimento, mas os
positivistas vêem a fonte dessa unidade não no objeto da ciência
mas na sua linguagem, na sua terminologia. Não existe qualquer
unidade das leis, existe apenas a unidade da linguagem da ciência,
ou, como dizia Carnap, a base geral da redução p ara os termos de
todos os setores da ciência ; por isto eles aplicam a idéia de que o
problema da unidade da ciência é puramente lógica, não se baseia
e m nenhuma ontologia .
Em realidade, porém, o conjunto de conhecimentos que consti­
tui a ciência surge por via histórico-natural, é gerado pelas necessi­
dades da prática. No processo de desenvolvimento da sociedade
surge a necessidade do conhecimento de determinado objeto muito
i mportante na vida dos homens ( por exemplo, dos organismos vi­
vos ) . É natural que os conhecimentos disponíveis sobre esse objeto
se unam a uma ciência ou setor desta, enquanto o desenvolvimento
posterior dos mesmos leva ao descobrimento das leis inerentes ao
objeto. Essas estão ligadas entre si através do próprio objeto. As­
sim, todo o vivo é uno, tem sua natureza universal que o difere do
i nerte .
O conhecimento chega não só ao conhecimento de leis parti­
culares no objeto mas também à relação objetiva entre elas, i. e., ao
conhecimento das leis fundamentais jacentes na n atureza do objeto .
Assim, por exemplo, forma-se a idéia q ue traduz a essência de de­
terminado objeto. Essa idéia é tomada como base da síntese, da uni­
ficação do conhecimento à ciência de um objeto dado. Em decorrên­
cia disto forma-se o sistema de conceitos e categorias no qual estão
expressas as leis descobertas por uma ciência dada.
O sistema de conceitos e categorias na ciência é usado como
instrumento de incremento do conhecimento. Interpretar a essência
da ciência, dominá-la, implica antes de tudo em interpretar o cará­
ter do seu método e dominá-lo. � importante não apenas conhecer
algo sobre o objeto mas saber usar esse conhecimento para incre­
mentá-lo . O domínio de uma ciência dada, de seu método pela ló­
gica constitui momento indispensável no estudo criativo dessa ci­
ência .
Cabe ao método o papel decisivo na construção do sistema da
ciência, dado que nele se descobre a idéia desta. Com base nas
teses do método estabelece-se a subordinação dos conceitos, catego­
ri as e leis da ciência .

301
A sistematização do conhecimento, realizada na ciência, é a for­
ma superior de síntese. Isto se deve a várias circunstâncias. Em pri­
meiro lugar, a ciência surge à base de uma idéia madura e desen­
volvida, assume a forma de um sistema relativamente acabado · de
conhecimento com seu objeto e método. Na ciência a idéia atinge
um nível tal, um grau de objetividade que de subjetiva (por meio
da atividade prática ) se converte em objeto. A unidade entre o
pensamento e o ser n a ciência atinge a maior plenitude, os fins
subjetivos coincidem com o processo objetivo de movimento do
objeto e por isto realiza-se facilmente na atividade prática dos
homens. Isto corresponde à função social da ciência, ao seu papel
na vida dos homens .
Em segundo lugar, a ciência produz a verdade objetiva mais
plena, concreta e profunda. Os conceitos, as categorias no sistema
da ciência, são mais concretos e definidos, neles se manifestam em
unidade as relações multiformes existentes no objeto. Quanto mais de­
senvolvido o sistema da ciência tanto mais precisa, tanto mais
adequadamente ele reflete o seu objeto, expressa maior número de
relações essenciais em seu objeto os próprios conceitos se tornam mais
flexíveis, mais capazes de refletir as nuances mais sutis, as "artima­
nhas" do próprio objeto .
Por último, na ciência enquanto sistema de conhecimento a r\!­
lação entre os conceitos se estabelece com base nos princípios apro­
vados pela prática, conceitos basilares e axiomas que expressam a
idéia de uma dada ciência. A ciência é a unidade orgânica do co­
nhecimento, unidade que surgiu por efeito de lei, naturalmente Seu
..

princípio unificador é o método, que absorveu toda a história . ante­


cedente do conhecimento do objeto. Por isto a ciência se torna um
sistema de conhecimento dotado de sua lógica, vale dizer, de sua
lógica aplicada.
Daí ter o nome de científico o conhecimento que integra essa
ou aquela ciência e constitui o seu elemento . Neste sentido ele · se
opõe ao conhecimento rotineiro, que surge como resultado da ge­
neralização da experiência da vida diária com a aplicação de recur­
sos, de conceitos que não constituem parte componente da ciência
moderna .
Neste sentido tem certo sentido observar como os neopositivis­
tas especulam com as diferenças entre o conhecimento científico
e o rotineiro e a partir daí constroem certas conclusões. Segundo

eles, existem dois mundos : 1 ) o mundo da experiência habitual, das

302
coisas e processos que o homem depara no cotidiano, e 2 ) o mundo
da ciência, onde essas mesmas coisas e processos assumem outro
aspecto . Como afirma Ph. Frank, o mundo do conhecimento cien­
tífico afastou-se do materialismo, que seria inerente apenas ao co­
nhecimento rotineiro. "A física moderna nada nos diz sobre a 'ma­
téria' ou o 'espírito' mas fala muito de semântica. Nós nos convence­
mos de que a linguagem na qual o 'homem de rua' descreve a sua
experiência diária é inadequada para a formulação das leis gerais
da física. É necessário criar uma nova linguagem científica . " 3 . •

E: evidente que existe diferença entre o conhecimento cientí­


fico e o rotineiro ; ela existe também na linguagem. A linguagem da
ciência moderna se torna cada vez mais artificial, formalizada, ao
passo que o conhecimento rotineiro permanece no nível da lingua­
gem natural. Mas neste caso é necessário saber exatamente o que
realmente constitui a diferença entre esses dois tipos de conheci­
mento e saber onde essa diferença não existe.
Os conhecimentos científico e rotineiro são únicos no sentido
de sua orientação para o objeto. Seja qual for a forma que assuma,
seja qual for a linguagem que tenha formalizada, o conhecimento
científico tem por conteúdo a mesma realidade objetiva, seus fenô­
menos, processos, propriedades e leis que tem o conhecimento roti­
·
neiro, com a única diferença de que o primeiro abrange essa realida­
de com mais profundidade que o segundo. Por outras palavras, onde
Frank procura diferença entre os conhecimentos científico e roti­
neiro ela realmente não existe.
Em hipótese alguma o conhecimento científico afasta o pro­
blema fundamental da filosofia; ao contrário, a elucidação das fon­
tes do conhecimento nele se converte em questão vital cuja solução
é necessária ao seu sucessivo desenvolvimento .
Ao mesmo tempo, repetimos, ele difere muito do conhecimen­
to rotineiro pela plenitude, concreticidade, maior objetividade, coe­
rência, demonstratibilidade, etc . , i. e., por propriedades que são in­
dispensáveis para aproximá-lo e não para distanciá-lo do objeto .
Quanto à linguagem do conhecimento científico, ela também visa a
que os problemas do reflexo da realidade objetiva no conhecimento
se resolvam efetivamente, a que esse conhecimento sej a mais pre­
ciso e profundo .

a Philipp Frank. "Present role of science", in Relazioni introduttive


(A tti XIIdei Congresso lntemazionale di Filosofia ) , vol. 1, Firenze 1 9 5 8 , p. 8.

303
Pode-se dizer que o abismo entre a linguagem da c1encia e a
linguagem rotineira aumenta, por um lado, diminuindo provavel­
mente, por outro. Ele aumenta se entendermos por rotineira a lin­
guagem desprovida da terminologia científica moderna, mas quase
n ão encontramos mais esse tipo de linguagem na prática . O abismo
diminui, pois a ciência e sua terminologia penetram intensamente
também na consciência habitual das pessoas. O ajustamento do co­
n hecimento das pessoas ao nível do científico é um processo de
desenvolvimento cultural. Além do mais, a ciência, ao que se sabe,
não para mas se desenvolve permanentemente, progride ; por isto o
dispositivo conceituai, atinente, digamos, aos fenômenos da eletri­
cidade, é característico da ciência do século XIX, torna-se hoje
rotineiro diante da elavação do nível de conhecimento da física. Um
dia a terminologia da física moderna também se incorporará à cons­
ciência comum das pessoas, mas até lá a ciência também avançará.
Logo, a diferença entre o conhecimento científico e o rotineiro con­
tinuará a manter-se, mas não é estática e sim dinâmica, incentivan­
do-nos a difundir por todos os meios o conhecimento científico,
exigindo a elevação do conhecimento rotineiro até o nível de cientí­
fico com sua linguagem específica .
De certo tempo para cá os problemas da análise lógica e fi­
losófica da linguagem da ciência passaram a atrair a atenção fixa
tanto dos filósofos como de especialistas de outros campos do co­
nhecimento. E não estaríamos aqui separando o enfoque filosófico
.
do lógico se não existisse nem fosse tão difundido o ponto de vista
segundo o qual o campo do lógico se limita àquilo que a lógica
formal moderna dá, ou seja, aos inúmeros sistemas' de cálculo com
seu método lógico de análise da linguagem formalizada de modo
predominantemente artificial. Em nos s o s dias careceria de sentido
ter qualquer dúvida quanto à importância do enfoque lógico-formal
da análise do conhecimento : a eficiência desse enfoque na solução
de muitos problemas que se impõem à análise lógica da linguagem da ·. )
ciência já foi demonstrada, sendo pouco provável a necessidade
de voltar à questão .
No entanto, por mais necessário gue sej a o método lógico-for­
mal de análise da linguagem da ciência, ele nem de longe é sufici­
ente para elucidar a essência do conhecimento implícito nos termos
e expressões da teoria .
Podemos dividir a teoria científica moderna, particularmente a
teoria física, em dois elementos : ela contém estruturas expressas
pela linguagem da matemática e dados empíricos. Por si só, nenhum
desses elementos forma uma teoria e, conseqüentemente, o conhe -

3 04
cimento físico. Uma construção teórica incorpora quer elementos
tomados imediatamente à experiência e às observações, quer a ex­
periência anterior fixada em determinadas formas em termos de es­
truturas lingüísticas. Isto é sobretudo evidente no exemplo da teoria
física moderna .
O significa, por exemplo, a afirmação de N . Bohr : "não
vamos considerar a matemática pura um ramo isolado do conheci­
mento ; vamos considerá-la antes o aperfeiçoamento da linguagem
geral . . . "-1. Por que a matemática não é apenas nem simplesmente
uma ciência mas a linguagem de outras ciências?
Acontece que a matemática propicia um conhecimento que de­
sempenha as funções de linguagem em outras ciências, ou sej a, seus
sinais e expressões se tornam forma de pensamento, uma determi­
n ada estrutura formal que contribui para a expressão do conteúdo
de uma ciência dada. Esse fato foi observado por Lênin ainda no
raiar da revolução na física, quando escreveu : "O grande êxito
das ciências naturais, a aproximação de elementos da matéria tão
homogêneos e simples de cujo movimento as leis admitem elabora­
ção matemática, suscita o esquecimento da matéria pelos matemá­
ticos. A 'matéria desaparece', ficam apenas as equações. Na nova
!ase do desenvolvimento e, aparentemente, de modo novo ocorre a
velh a idéia kantiana : a razão prescreve as leis à natureza"5 •
Na teoria física moderna essa razão se apresenta antes de tudo
sob a forma de matemática, que é para a teoria uma linguagem ar­
tificial, formalizada. A teoria física é obrigada a seguir essa razão, a
subordinar a ela o seu conteúdo empírico. Mas isto não significa
que as próprias formas matemáticas sejam estranhas ao conteúdo
n elas expresso ; elas são linguagem só relativamente a essa ou aquela
teoria, constituindo, por si mesmas, um conhecimento que possui
objeto.
A teoria científica, particularmente a física, atua na superfície
sob a forma de linguagem, o que significa que o próprio conheci­
mento pode ser considerado em certo sentido como linguagem ( ar­
tificial e natural ) . E já que é assim, então será lícita também a
colocação do problema da linguagem enquanto meio de represen-

� Niels Bohr. Obras filos6ficas escolh idas em dois volumes, t. II, Mos­
cou, 1 97 1 , p. 482.
s V. I. Lênin. Obras completas, t. 18, p. 3 26.

305
tação da realidade. Se abordarmos a linguagem estreitamente, ou
seja, tomando apenas os símbolos e outros meios que servem de si­
nal, então é evidente que não se pode afirmar que ela reflete o
objeto, mas tomado em conjunto, incluindo o significado dos sinais
e suas relações, a linguagem constitui, indiscutivelmente, um meio
de representação da realidade .
Neste sentido pode-se abordar de modo diferente o princípio
da relatividade lingüística, formulado na chamada hipótese de Su­
pir-Worf. Como se pode explicar "que os fenômenos físicos seme­
lhantes permitem criar um quadro semelhante do Universo apenas
por haver semelhança ou correlatividade dos sistemas lingüísticos?" " .
A influência d a linguagem sobre o pensamento constitui u m fato
para a ciência moderna, que criou um sistema de diversas lingua­
gens artificiais, fato que dispensa demonstração. Mas é necessário
entender como explicar a dependência do pensamento face ao sis­
tema de linguagem escolhido, que linha segue essa dependênci a .
Achamos que aqui n ão pode haver outra resposta senão o reconhe­
cimento de que a linguagem fixa os resultados alcançados pelo co­
nhecimento, que não só integram a síntese posterior do pensamento
como, na qualidade de certa forma a priori, dirigem e determinam
os sucessivos caminhos do seu desenvolvimento. Dos pontos de par­
tida do conhecimento escolhidos, depende o sucessivo desenvol­
vimento deste. Por isto não há nada de surpreendente no fato de
que a filosofia e a lógica moderna, ao analisarem o conhecimento,
voltam-se antes de tudo para a linguagem. Em realiqade, haverá
outro ponto por onde começar senão da linguagem, se ) o conheci­
mento é dado ao homem em forma de linguagem? M as tudo de­
pende de que posições partir para analisá-la, que lugar reservar a
essa linguagem na teoria geral do conhecimento. Se no caso dado
considerarmos a linguagem em toda a sua plenitude como forma real
de existência do conhecimento, então a análise lógico-filosófica d a
linguagem da ciência terá como base necessária a teoria d o reflexo
sem a qual não se pode entender a linguagem e sua função no pro­
cesso de pensamento .
O princípio da relatividade lingüística fixado na hipótese de Sa­
pir-Worf deixa muitos confusos justamente porque a linguagem e
seus diversos sistemas são nela isolados do conhecimento nela coo-

6 O novo em lingüística, fase. 1, Moscou, 1 9 60, p. 1 7 5.

306
tido, que reflete a realidade. E se reconhecermos o reflexo da r1::a­
I idade no conhecimento e na linguagem que o expressa, então essa
hipótese se torna afirmação natural que estabelece a influência do
conhecimento antecedente, fixado na linguagem, sobre o sucessivo
processo de seu movimento. O primeiro atua como algo a p riori em
relação ao segundo, que incorpora, além da linguagem, a experiência
do conhecimento novamente alcançada .
Ao iniciar-se a interpretação da teoria científica moderna, é sem­
pre necessário levar em conta a complexidade da linguagem enquan­
t o forma de existência do conhecimento.
A pergunta que já vem ocupando os lógicos ao longo de mui­
to tempo pode ser assim formulada : de que modo pode-se revelar
a importância cognitiva dos termos e expressões da teoria científica,
q ue usa recursos da linguagem moderna da ciência formalizada em
maior ou menor grau?
A resposta a essa pergunta cabe à lógica formal, e esta já fez
muito neste sentido criando um dispositivo para a interpretação sin­
tática, semântica, empírica e pragmática da linguagem da ciência.
Os esforços nesse sentido continuarão indubitavelmente e levarão a
n ovos resultados fecundos.
Entretanto nem de longe seria suficiente iimitarmo-nos aos mo­
dos. de interpretação da linguagem da ciência aqui enumerados, pois
nem no seu conjunto eles respondem à pergunta : qual a impor­
Jând a cognitiva dos termos e expressões da teoria científica?
Sabe-se que a teoria constitui um setor relativamente fechado
do conhecimento humano com as regras dela específicas de emprego
de certos termos da linguagem. Fazendo a devida interpretação des­
se conhecimento, nós elucidamos justamente essas regras: A inter­
pretação semântica, por exemplo, resolve o problema da localização
dos objetos ( coisas, processos, etc. ) que existem atrás de certos sím­
bolos de dada teoria, embora se saiba de antemão que nem de lon­
ge se podem interpretar de tal maneira todos os termos, pois tanto
a interpretação sintática como a semântica se referem à elucida­
ção apenas do momento formal no conhecimento. Para as expressões
l ingüísticas da teoria podem-se encontrar os efeitos observáveis cor­
respondentes e interpretá-las por essa via empírica. É evidente, po­
rém , que a interpretação empírica da linguagem da teoria é limi­
tada. Ela será sempre incompleta, parcial ; os mesmos termos po­
dem ser interpretados em diversos objetos acessíveis à observação,
e o que é mais importante, muitos sistemas teóricos permanecem
por muito tempo fora dos limites dessa interpretação.

307
Neste caso, como então elucidar no conhecimento a síntese do
formal e do empírico? Ora, se não é possível nenhuma outra inter­
pretação da teoria científica exceto a sintática e a empírica, então
a lógica deve, em verdade, reconhecer sua impotência para encon­
trar um dispositivo que permita interpretar o conhecimento que se
oculta sob a linguagem da ciência, que é criado pela síntese do
pensamento e da experiência. O positivismo lógico caiu em impasse
justamente por ter-se limitado ao estudo apenas dos meios lógico ­
formais que não ultrapassam os limites dos três referidos tipos de
interpretação da linguagem da ciência. E ele foi levado a essa l i­
mitação pela gnosiologia idealista .
Se a análise lógica do conhecimento se detém apenas nos meios
propiciados pelo método lógico-formal e o próprio conhecimento
vem a ser abordado como simples operação com sinais segundo
regras rigorosamente fixadas, então, e videntemente, se "justificam"
também as concepções intuitivistas. Por isto não é por acaso que
ultimamente os pesquisadores têm dado grande atenção à chamada
interpretação pragmática ; procura-se nela um enfoque mais amplo
do conhecimento como forma de atividade do homem. Acontece, po­
rém, que ela também se limita a proporções bastante estreitas: à
atitude do sujeito face aos sinais da linguagem, suas reações diante
destes .
Em suma, o problema da interpretação da teoria · científica
é complexo ; concomitantemente com os seus métodos antes abor­
dados, tem imensa importância a forma de interpretação a que
chamamos convencionalmente de "epistemológica" .
A necessidade desta forma de interpretação emana das neces­
sidades de explicar a importância da linguagem da ciência como
tipo especial de meio intelectual de apreensão da realidade . Todo
conhecimento implica um conteúdo que lhe traduz a essência e a
especificidade. As tentativas de libertar o conhecimento desse con ­
teúdo não levaram a nada exceto à perda do próprio conhecimento .
Nenhum sistema lógico conseguiu desprover o conhecimento do in­
telectual e do intuitivo-sensorial, daí ser necessária uma lógica que
não ignore mas explique a unidade desses momentos do conheci­
mento. Além do mais, o conteúdo intelectual do conhecimento não
pode ser reduzido às regras analíticas d a dedução lógica : esse con­
teúdo tem sua natureza cuja base é constituída pela síntese .
Por meio do conhecimento criam-se idéias, n as quais se expres­
sam as relações do homem, sua prática e da realidade circundante,
seus objetivos e aspirações, a visão do mundo não apenas tal qual

308
este é mas também tal qual deve ser. O ideal, contido no conheci­
mento, é uma forma especial de atividade do sujeito. E se sob a
linguagem da teoria científica não conseguimos descobrir esse con­
teúdo, então a nossa análise não atingiu a sua meta. A chamada
interpretação epistemológica, com o concurso do dispositivo cate­
gorial, inclui a linguagem da teoria científica no processo geral de
movimento do conhecimento, no desenvolvimento intelectual da
humanidade. Enquanto linguagem, nenhuma teoria pode ser expos­
ta ou entendida como sistema de conhecimento humano se ao in­
terpretá-la for aplicado apenas seu próprio dispositivo categorial .
Por isto, concomitantemente com a linguagem de uma dada teoria e
o dispositivo lógico-formal da análise; as categorias filosófias cons­
tituem, indiscutivelmente, um acervo indispensável de meios de in­
terpretação da linguagem da teoria científica .
O conhecimento não existe para si mas para a prática dos ho­
mens. Quanto mais próximos ele estiver do conhecimento científico,
tanto mais rápido e plenamente se realizará na atividade dos ho­
mens ; quanto mais teórico, tanto mais prático e tanto maior é a
importância que tem para o domínio e a direção dos processos da
natureza. Mas para a realização prática, o conhecimento deve, em
sua evolução, atingir determinado grau de maturidade, ou seja,
tomar-se não simplesmente teoria mas idéia científica.

2. A IDÉIA COMO FORMA SUPREMA DE CONVERGÊNCIA


DO PENSAMENTO COM O OBJETO

As fontes do termo "idéia", assim como da maioria dos outros


conceitos filosóficos, remontam à filosofia antiga. Hoje, evidentemen­
te, é difícil estabelecer quem entre os filósofos gregos antigos e
em que sentido foi o primeiro a usar esse termo. Mas com base em
fontes literárias pode-se concluir que um dos primeiros filósofos
gregos antigos a introduzir o termo "idéia" no uso foi Demócrito.
Conforme testemunho dos antigos, ele escreveu uma obra especial,
A cerca das idéias. Demócrito chamava idéias aos átomos : " ( Em
realidade ) , tudo ( isto ) são formas indivisíveis ( 'idéias' ) , como ele
as chama, e ( além delas ) nada mais há"7• No caso dado suben­
tende-se por idéia a menor forma, o menor corpo.

1 A. O. Makovelsky. Os atomistas gregos antigos. Baku, 1 946, p. 228.

3 09
A etapa seguinte na evolução do conceito de idéia foi a filo­
sofia de Platão. Na concepção da idéia há algo essencialmente co­
mum entre Platão e Demócrito : para ambos a idéia é aquilo que é
autêntico, que realmente existe e se ªJ?reende não através dos sen­
tidos mas da razão . Tanto Demócrito como Platão interpretavam
a idéia ontologicamente, mas de diferentes maneiras . Dado que,
como idealista, Platão subentendia por idéia não a essência ma­
terial mas a ideal, devia ele inserir em sua característica traços ine­
rentes ao pensamento humano.
No próprio conteúdo do conceito "idéia" podem-se distinguir
em Platão os seguintes momentos : em primeiro lugar, a idéia é aqui­
lo que se manifesta sob a denominaÇão de universal, de genérico,
que é inerente a um número infinito de coisas singulares. E aqui
não está em pauta o universal formal mas o universal por essência.
No caso dado Platão dá continuidade à doutrina de Sócrates sobre
o universal e sua definição. A idéia é um universal que existe não
só para o nosso pensamento quando pensamos esse universal, mas
também quando ele n ão é objeto do nosso pensamento. Em segun­
do, a idéia, segundo Platão, é aquilo que constitui a essência das
coisas, corresponde ao conceito de um dado objeto. Em terceiro, as
idéias são desprovidas de sensibilidade ; são essências inteligíveis à
razão e em oposição ao sensorialmente perceptível são verdadeira­
mente existentes A veracidade do sensorialmente perceptível, é apa­
. .

rente .
A idéia, segundo Platão, é algo autenticamen te objetivo, real ,
existente por si mesmo, independentemente das coisas concretas .
Mas a sua objetividade e realidade se constitui na objetividade e
realidade não do conhecimento mas das essências espirituais espe­
ciais .
Por último, as idéias, segundo Platão, são imutáveis e eter­
nas ; todas as coisas reais se apresentam como conseqüência del as .
Resumindo a colocação do problema da idéia na filosofia antiga,
podem-se separar os seguintes momentos : 1 ) a idéia se dis tingu iu
entre todas as outras formas do ser e da consciência como o mais
essencial e universal ; 2) ela era colocada em ligação com a gênese
das coisas e processos ; 3 ) era considerada como princípio criador
ativo, formativo. Todos esses momentos são realmente caracterís­
ticos da idéia, mas na filosofia antiga foram apenas esboçados e
estavam saturados de concepções errôneas .
A idéia realmente deve traduzir o universal, a substancialidade
da coisa. Nisto reside a sua especificidade como meio de apreensão

3 10
d a realidade. Enquanto essência ontológica a idéia não tem pers­
pectivas de desenvolvimento, mas o conceito dela devia e não de­
via ser abandonado ; ele passou a evoluir em outro sentido : como
forma específica de pensamento dotada de conteúdo objetivo .
: N o entanto esse caminho resultou não-direto ; ao que se sabe,
posteriormente os filósofos absolutizaram aspectos particulares do
conteúdo do conceito de "idéia" .
Para a filosofia nova foram determinantes as pesquisas não
da essência primária mas de um novo método de conhecimento, a
c riação de · uma teoria do conhecimento correspondente à ciência em
evolução. Desse aspecto ela enfocava também o problema da idéia.
E diante disto confunde-se a linha da luta entre o materialismo e o
idealismo em torno da idéia. Se na filosofia antiga essa luta se rea­
l izava entre as interpretações opostas - a materialista e a idealista
- da essência primária (o que é a idéia e poderá ela ser uma es­
sência primária ) , na filosofia moderna o materialismo e o idealismo
se defrontam no problema da essência da idéia enquanto forma de
conhecimento ( qual é a origem das idéias e a fonte do seu con­
teúdo? ) .
Para resolver corretamente os complexos problemas relaciona­
dos com a concepção das peculiaridades da idéia, a filosofia devia
ainda passar pela unilateralidade do empirismo e do racionalismo,
esclarecer aspectos particulares e criar os primeiros blocos para uma
concepção científica da idéia .
O s filosófos do século XVII entendiam que a idéia é uma for­
·'ªª de conhecimento da realidade pelo homem, mas não foram ca­
pazes de descobrir a sua especificidade. O máximo que eles pude­
ram obter neste sentido foi a afirmação, característica do raciona­
lismo, segundo a qual a idéia é um pensamento que apreende a es­
sênciá do objeto. Isto era evidentemente insuficiente para a com­
preensão das peculiaridades da idéia, a diferença entre ela e o con­
ceito e sua função no movimento do conhecimento .
Diferenciando a idéia en q uanto conceito da razão de outras
form as de pensamento, Kant se manifestou decididamente contra a
'
que se confundisse a i déia com as categorias, conceitos e concepções,
já sefll falar das sensações e percepções .
Para Kant a idéia não é só um conceito mas o conceito dos
conceitos, o conceito da razão. Ao introduzir o termo "idéia" para
definir o conceito de razão, ele considerava a idéia uma essência
ideal sui gcneris no sentido de que o "conceito-limite" da razão,
a "tarefa-limite" da atividade sintetizadora do juízo deve ser inter-

311
p re t a da como a "c oi sa em si" . Por meio da idéia a razão humana
é como se t en ta ss e ultrapassar os limites da experiência no sentido
do ideal , do absoluto e do incontestável . Mas os conceitos do juízo
são finitos e l i mit a d o s. O conhecimento humano tenta superar essa
sua limitação v in c ul ada à experiência e ultrapassar os limites desta
no s en tid o do campo do todo absoluto de todos os fenômenos. Esse
campo é constituído justamente pela idéia, que não pode ser con­
cretamen te material iz a d a em forro alguma e permanece problema
sem qualquer solução. É neste sentido que a idéia atua como "ima­
gem ideal das coisas" . "Entendo por idéia um conceito necessário
da razão para o qual nenhum objeto adequado pode ser dado nos
se nti do s . Logo, os conceitos puros da razão aos qua i s nos referi­
mos são idéias transcendentais. São os conceitos da razão pura, dado
que neles to do conhecimento experimental se considera como deter­
minado pela totalidade absoluta das condições. Eles não são arbi­
trariamente inventados mas dados pela natureza da própria razão e
por isto têm necessariamente relação com toda a aplicação do juízo .
Por último, essas conceitos são transcendentais e ultrapassam os li­
mites de toda experiência na qual, conse_q üentemente, nu n ca há obje­
to adequado à idéia transcendental"ª·

Apesar do idealismo, na colocação kantiana do problema da


idéia, não se pode deixar de perceber certo avanço em comparação
com o empirismo e o racionalismo. Sem conseguir superar a unila­
teralidade de um e do outro e assumindo o caminho do compro ­
misso, da conciliação do empirismo com o racionalismo à base do
apriorismo, Kant, contudo, descobriu n a concepção da idéia algun s
de seus aspectos cujo desenvolvimento, sobre um correto fundamen­
to filosófico, podia levar a resultados fecundos .
O passo seguinte na doutrina da idéia foi dado na filosofi a de
Hegel. Defendendo a tese verdadeira segundo a qual as idéias são
a verdade obje ti va do objeto, Hegel mostra que assim ela pode ser
apenas como processo. Diante disto, ele observa que a idéia não
é um pensamento abstrato qualquer, q ue fixa um aspecto do ob j e ­
to ; "ela, em todo caso, é abstrata à medida que nela todo o não­
verdadeiro se destrói e desaparece, mas em si mesma ela é essen­
cialmente concreta, pois é um conceito autodeterminante livre e ,
conseqüentemente, determinante de si e m face da realidade" 9 •

s I. Kant. Obras, t. 3, pp. 3 5 8-359.


o Hegel. Obras, t. 1, pp. 3 2 1 -3 22.

3 12
Hegel enfrentou dificuldades iguais às de outros · idealistas ri a
fil osofia d a Idade Modern a : como unir a afirmação d e que a "idéia é
uma forma de pensamento com a tese de que nela é dada a essência
d as coisas. Lançou a concepção de que a idéia é uma forma de pen­
samento, fato q ue coincidia com a afirmação da filosofia moderna.
Mas eis que o pensamento é a própria realidade, porque, em Hegel ,
as idéias como formas de pensamento se tornam realidade objetiva.
Com isto, evidentemente, afasta-se, mas em hipótese alguma resol ­
ve-se o problema da relação da idéia com as coisas, com o pro­
cesso do mundo objetivo .
Na concepção hegeliana da idéia é muito importante o empe­
nho de Hegel cm relacionar a categoria de idéia com o objetivo e a
atividade prática do homem. Sem objetivo e atividade racional o
conceito n ão pode fundir-se, não pode confluir com o objeto. Lênjn
interpreta essa idéia de Hegel no sentido que o conhecimento não
pode atingir objetividade e demonstrar sua objetividade fora da
atividade racional. " :E: notável : através da atividade prática, racional
do homem Hegel aborda a 'idéia' en quanto confluência do concei­
to com o objeto, a idéia enquanto verdade. Aborda plenamente o
fato de que, com sua prática, o homem demonstra a justeza obje- .
tiva das suas idéias, conceitos, conhecimentos, da ciência"141• A idéi a
é aquilo que deve realizar-se, materializar-se na ativid_ade� transfe-
rir-se para outro campo .
·

Assim, na filosofia anterior, pré-marxista, alguns aspectos da


i déia foram captados de modo bastante correto . Para a compreen-
•'.· são do conteúdo gnosiológico da idéia tiveràm a maior importân­

cia as seguintes teses l ançadas nessa filosofia : 1 ) a tese da filosofia


materialista segundo a qual todas as idéias são, em suma, de origem
experimental e constituem um reflexo dos objetos, f enômenos, pro­
cessos e leis do mundo objetivo; 2 ) o pensamento de Kant segundo
o qual a idéia é uma forma específica de pensamento e tem · como
função basilar a obtenção da síntese suprema d a conheeimento ; 3 )
a tese hegeliana da idéia como forma superior d e expressão d a ver­
dade objetiva, resumo de todo o conhecimento anterior, do desen­
volvimento da idéia e sua relação com a prática, com a sua realiza­
ção concreta .
Mas antes dos fundadores do marxismo essas teses muito im­
portantes da doutrina da idéia . não tiveram um desenvolvimento coe-

:i o V. 1. Lênin. Obras cumpletas, t. 29, p. 1 7 3 .

313
rente. Além do mais, o idealismo e a metafísica incentivavam por
todos os meios os pensadores a um desenvolvimento unilateral e à
absolutilização apen as de momentos corretos isolados, de aspectos,
a uma interpretação deturpada destes, deformando a atitude deles
face a outros momentos. Por isto a concepção marxista-leninista da
idéia não é nem uma simples continuação de uma interpretação an­
terior qualquer da idéia, nem uma totalidade aditiva delas por mais
corretas que tenham sido em sua particularidade. As teses dos filó­
sofos antecedentes sobre a idéia desempenharam e continuam de­
sempenhando papel n a construção da concepção marxista-leninista
da idéia apenas de certo material teórico, mas passaram a desem­
penhar tal função somente após modificação .
Exemplo nítido de semelhante reelaboração é o resumo que Lê­
nin fez do capítulo "A idéia'', da Ciência da lógica, de Hegel. Esta
parte dos Cadernos filosóficos de Lênin constitui a base não apen as
para a teoria marxista-leninista da essência gnosiológica da idéia
mas também para a elaboração de muitos outros problemas da dia­
lética enquanto lógica e teoria marxista do conhecimento. Nela Lênin
formulou sua tese atinente aos elementos fundamentais da dialética,
fez uma interpretação da complexidade, da contrariedade do proces­
so de conhecimento e sua atitude diante da prática . Todos esses
problemas da dialética estão em estreita ligação com a concepção
da essência da idéia e seu lugar no movimento do pensamento no
sentido da verdade. A riqueza dessas idéias de Lênin, paralela e jun­
tamente com outras teses dos fundadores do marxismo, constitui o
fundamento para a elaboração multilateral do problema da i déia
no marxismo .
É basilar na concepção marxista-leninista da idéia a tese da
idéia como reflexo da realidade, tese que se coloca em relação in­
dissolúvel como a solução coerentemente materialista do problema
d a fonte das idéias .
A concepção da idéia como reflexo da realidade supera a di­
ficuldade com a qual se bateu todo o pensamento filosófico anterior
a o marxismo e a qual é até hoje um . obstáculo para todas as cor­
rentes da filosofia burguesa . Realmente, como compatibilizar as teses
de que a idéia, por um lado, é um pensamento e, por outro, é obje­
tiva e surge para expressar a objetividade? Ao resolver esse proble­
ma, a filosofia pré-marxista caía habitualmente ou num subjetivismo
extremado, proclamando a idéia apenas forma subjetiva de conheci­
mento da realidade, ou num ontologismo extremado, que via na
idéia uma essência metafísica especial, situada fora do pensamento

314
do homem . Era em torno desses dois extremos que giravam todas
as concepções anteriores da idéia .
Se alguns filósofos tentavam apresentar urna concepção da idéia
na q ual se relacionavam dois momentos desta ( pensamento e obje­
tividade ) , eles não podiam fundamentar corretamente sua concep­
ção e, em suma, tendiam a um dos extremos : ao subjetivismo ou ao
ontologismo .
Ao abordar e reconhecer a idéia como pensamento de con­
teúdo objetivo, o marxismo-leninismo supera o extremismo do onto­
logismo em q ualquer forma de sua manifestação e fecha o caminho
ao subjetivismo, que isola a idéia do mundo exterior .
A fundamentação da origem experimental das idéias constitui
momento essencial na concepção marxista da idéia. Além do mais,
o probl ema aqui gira não em torno da concepção empírica da idéia,
na qual esta última se reduz à fixação do simples resultado do
experimento, mas em torno de que a idéia difere qualitativamente
dos dados experimentais imediatos ; ao contrário, ela procura supe­
rá-los, enxerga muito além dos seus limites. Corno todo pensamen­
to, porém , a idéia se relaciona com o mundo objetivo, em resumi­
das contas, através da experiência. A idéia está ligada ao experimen­
to e de modo bem mais complexo que outras formas de pensamento.
Entre a idéia e o experimento há muitos elos mediatos ; isolada
da experiência a idéia não tem acesso ao mundo objetivo. A pre­
cariedade da concepção racionalista se deve justamente ao fato de
ela isolar a idéia da experiência. Neste caso dever-se-ia assumir al­
gum caminho místico na explicação da origem e da objetividade do
con teúdo d a idéi a . E é assim que procede o racionalismo, ao assu­
mir a posição do reconhecimento da naturalidade das idéias .
Deste modo, o ponto de vista sensualista sobre a origem expe­
rimental de todas as idéias se constitui numa das premissas mais im­
portantes na fundamentação do ponto de vista materialista de idéia
como forma de repre s entação da realidade .
No entanto o reconhecimento da origem experimental das idéias,
embora seja necessário, é insuficiente para a fundamentação plena
e multilateral da objetividade do conteúdo destas. A experiência da

história da filosofia ensina que, às vezes, até o mais extremado


grau de subjetivismo pode conviver com o sensualismo. Por isto
ou tro aspecto essenci al da concepção marxista-leninista da idéia é
constituído pela concepção da dialética do processo de conhecimen­
to, da qual a idéia é um momento .

315
O conhecimento é um processo de imersão ( da mente ) na na­
tureza inorgância no sentido da subordinação desta ao poder do
sujeito e da generalização ( do conhecimento do geral nos fenôme­
nos dessa natureza ) . . . "13 •
Não podemos dizer que essas teses caracterizam apenas a idéia ;
elas se referem ao conhecimento em geral ( não era · por acaso
que Lênin colocava freqüentemente sinais de igualdade entre a idéia
e o conhecimento ) , mas o típico do conhecimento em geral em for­
ma madura e clássica se manifesta justamente na idéia onde todos
os momentos característicos do conhecimento parecem acentuar-se,
patentear-se. A idéia atua como uma espécie de ideal gnosiológico ,
a o qual o conhecimento tende n o seu movimento. Ora, a tarefa d o
conhecimento é obter u m saber n o qual a idéia s e funde por con­
teúdo à objetividade. A idéia é justamente a forma de pensamento
onde essa coincidência atinge a suprema plenitude em dado riível
de desenvolvimento do conhecimento. O ideal gnosiológico, a i ma­
gem ideal de todo conhecimento é simultaneamente real , atingido, i. e . ,
deixa d e ser ideal e torna a surgir como ideal a o qual aspira o· co­
nhecimento .
A filosofia há muito procurava o ideal gnosiológico, no qu::i l
o conhecimento atingisse seu ponto de conclusão e aperfeiçoamen­
to. Kant viu esse ideal na idéia que expressa a aspiração do nosso
conhecimento à integridade incondicional. A fenomelogia de Hus�
serl também coloca como obj etivo a fundamentação do ideal gno­
siológico. Como se sabe, ela parte do fato de que a essência está­
tica das coisas, suas idéias ou verdades em si se apreendem por meio
da contemplação imediata, da visão. A essa contemplação da essên­
cia Husserl chama "ideação", que "não tem nada em comum "com
a 'experiência' no sentido da percepção, da recordação ou atos se­
melhantes, não tendo, conseqüentemente, nada em comum com a
generalização empírica . . . A contemplação contempla a . essência e n ­
quanto ser essencial"'H. Neste caso tudo tem "suas 'idéias' , que,
sendo apreendidas e fixadas contemplativamente, tornam possível o
conhecimento absoluto"15• Para Husserl , o ideal da ciência, aquilo
que faz da ciência ciência é constituído pela apreensão das relações
objetivas ou ideais, que dão aos atos reais de pensamento relação

1a V. 1. Lênin. Obras completas, t . 29, p. 1 7 6.


H E. Husserl. Filosofia como ciência rigorosa. Logos, livro I, Mosc o u ,
1 9 1 1 , p . 29 .
tá Ib.

318
material homogênea. A relação ideal, que penetra idealmente todo o
pensamento científico, é uma relação de verdades em si como cor­
relato do ser em si : "As relações conhecimentos no ideal correspon­
dem às relações de verdades" H1•
Mas no exemplo de Kant e Husserl vê-se que o problema da
idéia e!lquanto ideal gnosiológico na filosofia n ão-marxista era co ­
locado e resolvido à base da metafísica e do idealismo. Em Kant,
a idéia é como a perfeição do conhecimento, a integridade absoluta
é inteiramente isolada do mundo obj etivo, das "coisas em si", a
idéia atua como tarefa irrealizável do conhecimento, sua aspiração
ideal. Em Husserl, as idéias enquanto essências das "coisas em si"
são apreensíveis pelo pensamento, mas nele o próprio conhecimento
assume forma mística. f: característica de ambos a concepção me­
tafísica . do ideal gnosiológico, que atua como algo estático, absolu­
tamente fechado, desprovido de contradições. � justamente a essa
concepção do ideal gnosiológico que se aplicam plenamente as pa­
lavras de Hegel e Lênin segundo as .quais o conhecimento real é
examinado sem aspiração, sem movimento.
Mas o fato de, n a história da filosofia, colocar-se de modo
idealista e metafísico o problema da idéia como ideal gnosiológico
não significa, em hipótese alguma, que a teoria marxista-leninista do
conhecimento deva afastá-lo inteiramente como sendo ilícito. Ao
contrário, ele deve ser colocado e resolvido à base da interpreta­
ção m aterialista dialética do processo de conhecimento .
A idéia atua como ideal gnosiológico no desenvolvimento do
conhecimento nesse ou n aquele campo, em primeiro lugar, porque
a objetividade do conteúdo do conhecimento atinge, nela, o grau
mais elevado em dado nível de desenvolvimento da ciência. Neste
sentido devemos subentender por idéias também os resultados do
conhecimento, os quais determinam o aspecto da ciência da sua
época ; é neles que em forma concentrada estão expressas as con­
quistas do conhecimento científico . Em segundo lugar, a idéia en­
quanto n ível superior de plenitude e objetividade do conhecimen­
to em determinada fase implica a aspiração à realização prática, à
consubstanciação material por meio da prática. Isto a converte ain­
da mais em ideal gnosiológico, porquanto o processo de conheci­
mento tem por fim a obtenção de resultados objetivos que podem

10 E. Husserl. Estudos lógicos, part. J, S. Petersburgo, 1 909, p. 202.

319
ser materializados na realidade e deste modo transformar a própria
realidade .
Mas para a dialética materialista o ideal gnosiológico está em
desenvolvimento à base de contradições. A idéia é o ideal histori­
camente transitório no conhecimento. Ao obter determinados re­
sultados, que se apresentaram como o ideal, o conhecimento avança ;
o ideal passa a ser não-ideal, o sujeito aspira a u m conhecimento
no qual se obtém objetividade ainda maior e plenitude de conheci­
mento. "A idéia implica também uma fortíssima contradição, o re­
pouso ( para o pensamento do homem ) está na firmeza e certeza
com a qual ele a cria eternamente ( trata-se da contradição do pensa­
mento com o objeto ) e eternamente a supera "17 . . . •

Na evolução da idéia, assim como de qualquer outra forma de


conhecimento humano, o principal é a contradição q ue há em seu
conteúdo entre o subjetivo e o objetivo. A cada passo do movimen­
to da idéia, essa contradição se resolve ( por conteúdo a idéia coin­
cide cada vez mais plenamente com o objeto ) e torna a surgir, por­
quanto se descobrem novos aspectos essenciais no objeto q ue ainda
não foram refletidos na idéia. Referindo-se aos conceitos humanos
em geral e, por conseguinte, à idéia, por ser esta, como veremos, um
conceito q ue em sua evolução atingiu determinado grau de matu­
ridade, Lênin enfatiza a idéia da superação da abstratividade e da .
subjetividade nesses conceitos .
Se em sua evolução a idéia pára, fica estagnada, "imagina-se"
ideal absoluto do conhecimento, ela morre como idéia científica, por­
quanto os momentos constituintes do seu conteúdo objetivo se con­
verterão no absoluto, ficarão unilateralmente exagerados. Por isto
a idéia se mantém como objetivo-verdadeira somente desenvolven­

do-se sem cessar, num processo de ªJ? reensão cada vez mais plena
do conteúdo objetivo. N ão é a idéia morta mas a idéia viva, em evo­
lução, que constitui o ideal gnosiológico. Também n este sentido o
ideal gnosiológico é rel ativo .
Neste caso a subjetividade no desenvolvimento da idéia desem­
penha duplo papel . Por um lado, ela é o momento negativo que é
necessário superar; também neste sentido o desenvolvimento da idéia
significa a superação d a subjetividade. Por outro lado, ela traduz
o caráter ativo da consciência humana na superação da contradi­
ção qu e há na idéia entre o sujeito e o objeto, ou, como observa

1• V. 1. Lênin. Obras completas, t. 29, p. 1 77 .

320
Lênin, a subjetividade é uma aspiração a eliminar essa separação
( entre a idéia e o objeto ) " 18• Também neste sentido a subjetivida­
de desempenha p apel positivo no desenvolvimento da idéia, é um
meio do movimento desta no sentido da objetividade. Cada nova
idéia que surge, ao negar a anterior, insere-a no seu conteúdo como
momento isolado. Fora dessa sucessão não há nem pode haver
desenvolvimento .

3 . FORMAS DE REALIZAÇÃO DA IDÉIA

A idéia enquanto ideal deve realizar-se e assim verificar a sua


função, por um lado, e por outro desempenhá-la : influenciar o pro­
cesso de conhecimento e a prática social do homem .
A idéia se realiza nas seguintes formas básicas : 1 ) na teoria
e no método científicos; 2 ) na imagem artística; 3 ) n a criação prá­

t ica de um novo mu ndo de co isas e processos .


A própria idéia contém a síntese do conhecimento e serve de
base para uma nova síntese, Isto é observado por Lênin : "O ser
particular ( objeto, fenômeno, etc. ) é ( apenas ) um aspecto da idéi a
( verdade ) . Para a verdade são necessários, ainda, outros aspectos da
realidade, que também parecem apenas independentes e particula­
res. . Só no conjunto delas (zusam m en ) e na re lação entre elas ( B e­
.

ziehung ) realiza-se a verdade" 1'9 . A idéia não pode de ixar de ser


� ín tese do conhecimento de aspectos particulares do objeto, do con­
t rário não será idéia. Fora da síntese é inadmissível a plenitude ne­
cessárias da confluência do conteúdo do pensamento com o objeto .
Em essência, todo conhecimento é sintético ; onde não há sín­
tese, não há igualmente conhecimento, dado que o pr ó prio objeto
é a totalidade dos diversos aspectos, propriedades e relações. Mas
cada forma de conhecimento tem a suâ análise e a sua síntese. Na
i déia a síntese constitui a sua natureza; nela a unificação do conheci­
mento dos diversos aspectos do objeto é obtida por meio do des­
cobrimento do princípio em que, como em um foco, esses aspectos
s e juntam e encontram explicação. Assim, a i déi a da seleção natural

sin tetiza todos os conhecimentos sobre o processo da evolução, por­


(1uanto ela é a base da explicação de todos os aspectos desse com-

·i s Id., p. 1 7 6 .
u V. 1 . Lênin. O b m s completas, t. 29, p. 1 7 8 .

32 1
plexo processo. Entre outras coisas, essa idéia explicou fenômenos
como a racionalidade relativa das formas orgânicas e a ausência de
transições entre elas. Esses dois fenômenos se constituíram em obstá­
culo insuperável para todas as concepções do processo evolutivo an­
terior ao darwinismo .
Sendo uma síntese original, a idéia desempenha por si mesma
a função sintetizadora no desenvolvimento do conhecimento cientí­
fico. À base dela dá-se a ascensão do abstrato ao concreto. Hegel
já entendia nitidamente que na ascensão do abstrato ao concreto
operamos não com uma conbinação mecân ica de abstrações mas
com o desenvolvimento do conhecimento. "O conhecimento se pre­
cipita adiante de conteúdo a conteúdo. Esse movimento ascension al
se caracteriza antes de tudo pelo fato de começar pelas definibilida­
des simples e as definibilidades posteriores se tornam cada vez mais
ricas e concretas. Isto porque o resultado leva implícito o seu princí­
pio e o sucessivo movimento desse princípio o enriqueceu ( o prin­
cípio ) com uma nova definibilidade. O universal constitui o funda­
mento ; por isto o movimento ascensional não deve ser entendido
como o correr de determinado outro a determinado outro. No mé­
todo absoluto o conceito se mantém no seu outro ser, o universal , em
seu isolamento, no juízo e n a realidade ; em cada degrau da sucessi­
va definição o universal eleva mais alto toda a massa do seu conteúdo
anterior e n ão só não perde em conseqüência do seu ascensional
movimento dialético, não só n ão se atrasa como leva consigo todo
o adquirido, enriquecendo-se e condensando-se dentro de si"2º -
escreveu Hegel .
Nessas palavras de Hegel percebe-se um momento extremamen­
te importante no processo de ascensão do abstrato ao concreto, q u a l
seja, que esse processo é o movimento d o pensamento d e um con­
teúdo a outro ; não é uma abstração que se incorpora mecanica­
mente a outra mas é essa ou aquela abstração que se desenvolve, q ue
se enriquece com um novo conteúdo, que abrange outros aspectos
do objeto . A multiplicidade de definições no pensamento concreto
surge n ão como resultado da unificação de d iversas abstrações mas
como desenvolvimento de alguma abstração isolada, que, embriona­
riamente, leva implícita toda a riqueza de defi nições sucessivas. Es­
tas, ao atingirem a maturidade, adquirem certa autonomia relativa ,
certa independência ; oblitera-se-lhes a origem como sendo d e certa

20 Hegel. Obras, t. VI, p. 3 1 5.

322
abstração pnmana, daí surgir a concepção do concreto no pensa­
mento como simples unificação mecânica de diversas abstrações.
Essa abstração primária, que se desenvolve no processo de as­
censão do abstrato ao concreto, constitui-se no princípio da forma­
ção da idéia. O surgimento, à base dela, de outras abstrações t;
idéias implica na formação e desenvolvimento de uma nova idéia .
Tomada isoladamente, nenhuma abstração constitui uma idéia, nem
mesmo aquela que representou o momento inicial da ascensão. A
i déia está presente em cada uma dessas abstrações, não se esgota
em nenhuma delas. Elas são momentos do desenvolvimento de uma
i déia .
Quando dizemos que a idéia constitui a base da teoria cien­
tífica, não pressupomos a possibilidade de separá-la da teoria, de
isolá-la e considerá-la algo independente e exterior em relação ao
s istema de conhecimento à base dela criado. A idéia existe na pró­
pria teoria e nesta se revela. Sem teoria não há idéia e sem idéia
não . há teoria.
Com efeito, enquanto a idéia não amadurece, n ão se cristaliza,
n ão . se pode criar uma nova teoria nem o sistema de conceito que
a forma, os quais têm como função revelar a idéia. A física moder­

n a, por exemplo, acumulou grande material factual, formou novos


conceitos que refletem os processos que ocorrem no chamado mi­
cromundo. Ante os físicos teóricos coloca-se a tarefa de sistematizar
todo esse conhecimento numa nova teoria, que cria um quadro uno
do nmndo . Contudo, para a formação de uma teoria que ofereça
um quadro objetivo da inter-relação de todas as formas e tipos de
matéria ( de todos os campos e partículas ) , é necessária uma nova
i déia; pois nenhuma · das idéias físicas gerais anteriores, sob a for­
m a em que elas existem atualmente, pode servir de base para
u criação de semelhante teoria. Já existem tentativas de criação de

semelhante teoria, surgem diversas hipóteses de redução de todas as


formas conhecidas de matéria à unidade. Cedo ou tarde será pro­
posta uma idéia que lançará luz sobre todos os fatos experimentais
an tes obtidos, sobre as leis descobertas, que permitirá elucidar o
sentido destes, unificá-los num sistema coerente que propicie um co­
n hecimento profundo e concreto dos microfenômenos . O nascimen­
to .de tais idéias à base das abstrações antes formadas é uma lei
do desenvolvimento do conhecimento científico .
A idéia, deste modo, constitui também a fronteira da teoria ci­
entífica no sentido de que a substituição de idéias implica também
na substituição de teorias; o desenvolvimento da teoria está relacio­
nado com o desenvolvimento da idéia. Quando se resolve a ques-

323
tão sobre a idéia a que se relaciona esse ou aquele conceito, pode-se
tomar como critério a relação deste com a idéia, i. e. , necessário
esclarecer para revelar de que idéia ele surgiu . Com efeito, o con ­
ceito assume seu significado na ciência, quando atua no sistema
com outros conceitos enquanto momento de formação e desenvolvi­
mento da idéia.
Dado que na teoria científica todos os conceitos estão relacio­
nados com a idéia, são a ela subordin ados e traduzem diversos
aspectos, diversos momentos dela, a revelação do conteúdo da idéi a
n ão pode ser realizada sob a forma d e definição isolada, sendo ne­
cessário todo um conjunto de definições que a caracterizem de di­
versos aspectos. Definir a idéia implica, em suma, em revelar todo o
sistema de conhecimento científico nela baseado, o processo de for­
mação e desenvolvimento dela .
Como observamos, a idéia se revela no sistema de conceitos,
de definições, dado que é o conceito dos conceitos. Sua definição
primeira e geral é constituída pelo estabelecimento, pela revelação
do seu princípio, o qual, por isto, atua como momento inicial n a
construção e explanação d a teoria científica. Por exemplo, a idéia
da evolução constitui a base d a teoria da evolução. A revelação do
conteúdo dessa idéia começa pela formulação do princípio da e v o ­
lução, no qual ela recebe a primeira definição, bastante abstrata :
a evolução é um movimento q ue compreende transformações quali­
tativas. Mas a formulação do princípio é apenas o começo, o pon to
de partida na revelação do conteúdo de qualquer idéia, inclusive da
idéia da evolução. A identificação da idéia com o princípio tem como
fundamento o fato de que o primeiro contato com o conteúdo da
idéia científica se faz através do princípio enquanto definição primária
dela .
Para entender a peculiaridade do princípio enquanto forma de
conhecimento e a diferença entre ele e a idéia, é necessário voltar à
teoria. As teses da teoria científica podem ser construídas sob a for­
ma de escada, de hierarquia. O extremo inferior dessa escada se
apóia nos fatos, ou melhor, · nos juízos que os registram e descrevem ,
o superior, no princípio. Assim, o princípio atua como limite supe­
rior da generalização num dado sistema ( teoria ) . Todas as teses da
teoria científica, começando pela descrição dos fatos e terminand o
com o princípio, integram u m a dada teoria porque revelam de­
terminada idéia à qual estão subordinadas e pela qual foram unifi­
c adas. Mas é diverso o papel dessas teses na revelação do conteú­
do da idéia. Os mesmos fatos podem integrar diferentes teorias por

324
serem considerados do ponto de vista de diferentes idéias, n elas se
procuram leis diversas.
Os fatos, como já dissemos, são algo fidedigno e irrefutável
no surgimento e construção da teoria; eles, via de regra, estão nela
presentes sob forma "desnatada" e, em caso de necessidade, podem
ser sempre reproduzidos também em forma plena. No fundo, as
teorias são constituídas de generalização dos fatos, de abstrações.
O princípio atua na teoria como essa generalização limite dos fatos,
razão porque é abstrato, unilateral por natureza. O princípio mos­
tra o grau de generalização a que se chegou em dada teoria; traduz
a idéia sob intensa forma unilateral. Em cada teoria científica é
necessário aspirar-se à máxima generalidade de expressão da idéia,
de estudo da possibilidade de transferi-la à interpretação de outros
fenômenos, etc. Por isto a conscientização do princípio da teoria
científica e da expressão dele na forma mais generalizada é extre­
mamente necessária para o desenvolvimento da idéia que serve de
base a uma dada teoria .
Assim, os fatos e princípios se manifestam como dois p6los ex­
tremos na teoria, cada um deles lhe é necessário, mas nem sepa­
radamente, nem conjuntamente tomados eles constituem uma teoria.
A idéia que se revela na teoria e atua como algo concreto no pen­
samento constitui a negação de um e de outro e pressupõe simulta­
neamente a existência de ambos. O princípio é necessário à idéia
como uma de suas definições. Ele exerce ainda função sintetizadora
por constituir-se num momento da idéia, em sua expressão unila­
teral, abstrato-limite . Por exemplo, tomemos o sistema periódico
de elementos químicos de Mendelêyev como teoria científica. Este
sistema parte de determinados fatos que lhe constituem a base e pos­
sui o seu princípio, que, na etapa atual de desenvolvimento de uma
dada teoria, é formulado da seguinte maneira : as propriedades dos
elementos se constituem nas funções periódicas do número dos elé­
trons no átomo, da carga igual do núcleo. Esse princípio representa
uma expressão extrema e abstrata da idéia da periodicidade que
serve de base de todo o sistema .
O desenvolvimento da própria idéia da periodicidade levou à
mudança do seu princípio. Assim, o próprio Mendelêyev o formulou
do seguinte modo : as propriedades físicas e químicas dos elementos,
as quais se manifestam nas propriedades dos corpos simples e com­
plexas por elas formados, encontram-se em dependência periódica
do peso atômico desses mesmos corpos. A ciência moderna, por
sua vez, encontrou uma forma mais abstrata e extremamente am­
pla de expressão da idéia da periodicidade. Mas seria incorreto

325
considerar que a idéia da periodicidade se revela plenamente no
princípio. O princípio permite apenas sua expressão primária e a
mais abstrata, ao passo que a idéia se revela em todo o sistema pe­
riódico, em todas as teses deste. A sucessiva evolução do sistema
periódico levará a uma expressão ainda mais abstrata do seu princí­
pio, mas isto implicará no aprofundamento do nosso conhecimento
na apreensão da periodicidade das propriedades q uímicas. O prin­
cípio da periodicidade reflete a lei periódica .
A compreensão do conteúdo gnosiológico da idéia se constitui
na base para a elucidação da função metodológica desta . Não sus­
cita qualquer dúvida o fato de que, na ciência, as idéias constituem
a fonte de obtenção de um novo conhecimento. Além do mais, à
base das idéias surgem, ainda, todos os métodos científicos. Mas
dado q ue a idéia não existe por si mesma mas em determinado sis­
tema de conhecimento e lhe serve de base, q ualquer método cientí­
fico de conhecimento pode surgir somente à base de certo sistema
de conhecimento dotado de seu próprio centro. Uma tese tomada
isoladamente de um sistema não é apenas limitada no sentido me­
todológico como, em es,sência, é incapaz de desempenhar a função
de método, pois à base dela não se pode fazer uma análise concreta do
processo estudado. Por exemplo, quando se trata da dialética como
método científico universal de conhecimento, têm-se em vista não
suas teses ou leis isoladas nem a soma delas mas um sistema de
leis e categorias da dialética, que traduzem a idéia do desenvolvi­
mento. :S justamente esta última que constitui o fundamento e a pe­
culiaridade do método dialético de conhecimento .
Quanto ao enfoque dogmático do método dialético, é-lhe ca­
racterística a redução deste a exemplos isolados ou uma soma de
teses . O dogmático tenta apresentar como método dialético uma
tese isolada qualquer ou essa ou aquela lei d a dialética e mostrar
como a realidade evolui em conformidade com essa lei ou tese. Mas
se analisarmos a realidade partindo apenas de uma lei qualquer,
mesmo que seja uma lei da dialética, então poderemos chegar facil­
mente a uma verdade abstrata, unilateral, da qual há apenas um pas­
so para a deturpação da realidade .
A experiência mostra que separar a função metodológica e o
valor prático de uma lei qualquer da dialética nunca levou a outra
coisa senão à reunião de exemplos isolados que ilustram a tese
segund o a qual a quantidade se transforma em qualidade ou a di­
visão do singular em contrários se verifica quer n a natureza, quer
na sociedade, quer no pensamento humano. Mas com isto ainda
não descobrimos nada de novo. O destino principal do método é
servir de meio seguro para a obtenção de um novo conhecimento,

326
e é isto que ele realmente é enquanto sistema de conhecimento
baseado na idéia objetivo-verdadeira. A própria idéia do método
está · expressa nos princípios e leis de cujo sistema seguem-se as
conclusões metodológicas.
As idéias desempenham na ciência o papel de método na expli­
cação dos fenômenos e no sucessivo movimento do conhecimento .
Quando surge uma nova idéia, os cientistas procuram aplicá-la à
análise dos fatos acumulados e das leis descobertas e tentam, atra­
vés dela, descobrir novos fatos e leis .
Desempenha papel considerável, também, a maneira como a
lei se manifesta na idéia, o grau de precisão e plenitude dessa m a­
nifestação. Se a idéia reflete a realidade de maneira deformada, de­
turpada, tergiversada, ela geralmente não tem importância metodo­
lógica, constituindo-se em obstáculo à evolução do conhecimento
científico ( semelhante papel é desempenhado, por exemplo, pelas
idéias da filosofia idealista na ciência moderna) . Se a idéia reflete
a realidade de modo aproximado, condicional e unilateral, então
sua importância metodológica é limitada. A idéia só abre amplo ho­
rizonte no sucessivo progresso do conhecimento quando reflete pre­
cisa e plenamente a lei mais importante do mundo objetivo .
É singular o processo de realização da idéia na imagem artís­
tica. A imagem artística e a teoria científica são da mesma ordem
no sentido gnosiológico ; tanto uma como a outra é uma síntese,
um reflexo do concreto e do todo. Para entender a especificidade
do reflexo artístico é necessário elucidar a essência e as peculiarida­
des da. imagem artística, o papel da idéia em sua formação .
· Existe, a nosso ver, uma incorreta concepção segundo a qual
a imagem artística ou se separa do pensamento, sendo considerada
apenas como forma de transmissão de sentimentos e vivências, ou
se identifica com ele, sendo interpretado como pensamento trans­
ferido para a linguagem das imagens (o pensamento em forma ar­
tística ) . Em ambos os casos nega-se a especificidade da imagem
artística enquanto forma de representação da realidade.
A tendência a reduzir a imagem artística à transmissão de sen­
t imentos foi expressa por L . Tolstóy21• Essa interpretação se baseia

21
"Como a palavra que transmite os pensamentos e experiências das pes­
soas -escreve Tolstóy - serve de meio de união das pessoas, do mesmo modo
atua a arte. A peculiarid.ade desse meio de comunicação, a qual o distingue
da comunicação por meio da palavra, consiste em que, a través da palavra,
uma pessoa transmite a outra os seus pensamentos e por meio da arte as
pessoas transmitem umas às outras os seus sentimentos" ( in, Os escritores
russos sobre literatura, t. 2, Leningrado, 1 9 3 9 , p. 9 1 ) .

327
no fato de que a imagem artística é capaz de tran smitir toda a di­
versidade e as nuances dos sentimentos e vivências das pessoas. Nis­
to consiste realmente a especificidade da representação artística .
O caráter de imagem está por natureza relacionado com a sensibi­
l idade, razão porque privar a imagem artística do concreto-sen­
sorial implica em destruir a própria imagem artística. Mas disto
ainda não se segue que a imagem artística careça de sentido, de
generalização. Ora, o pensamento humano geralmente não pode ser
puramente sensorial, ele representa sempre uma unidade do senso­
rial e do racional , só essa unidade adguire diversas formas. A ima­
gem artística, indubitavelmente, é uma forma original de unidade
do sensorial com o racional no pensamento, a qual é condicionada
pel a especificidade do objeto da arte e pela função deste no conhe­
cimento e na transformação do mundo.
O ponto de vista da i magem artística como forma de conhe­
cimento sensorial foi criticado por muitos autores. No entanto al­
guns deles caíram no putro extremo, ou seja, concebiam essa imagem
corno a consubstancià'ção, em forma artístico-concreta, de conceitos
e idéias acabados. El �s concebiam o processo de conhecimento ar­
tístico d a seguinte maneira : a princípio o artista cria ou toma de
empréstimo o conceito desse ou daq:uele fenôrneno social, depo,i s
lhe imprime forma metafórica .
Segundo esse ponto de vista, a imagem artística difere do co­
nhecimento científico apenas pelo fato de que, nele, os conceitos e
idéias assumem vivacidade e clareza própria de uma concepção,
graças ao caráter metafórico. � corno se o artista não fizesse nenhu­
m a generalização independente dos fenômenos, corno se sua tarefa
fosse encontrar apenas a forma adequada, a imagem artística para o
conceito ou a idéia .
Mas quem não sabe que as obras em que os autores se dedi­
caram apenas a semelhantes tran sformações de conceitos e idéias
acabados em imagens via de regra resultaram poucos artísticas, es­
quemáticas, e não exerceram a devida influência sobre o homem?
Nessas obras as imagens eram mortas, abstratas.
Ao fundamentar-se a opinião segundo a qual a imagem artís :
tica é uma realização concreto-sensorial da idéia, tomam-se às vezes
como base os democratas revolucionários russos que a lançaram .
Tal fato realmente ocorreu, ela foi efetivamente mantida por Belinsky
e Tchernichevsky, mas neste sentido devem-se levar em conta as se­
guintes circunstâncias .

328
Ao considerarem a imagem artística realização concreto-sen­
sorial da idéia, os democratas revolucionários russos defendiam o
conteúdo ideológico da arte, a qual não deve ser separada, por uma
"muralha chinesa", das idéias que in g uietam a sociedade . Isto é
absolutamente verdadeiro, e esse enfo g_ue que eles faziam da ques­
tão constitui uma reserva permanente da ciência estética .
A evolução do pensamento estético dos democratas revolucio­
nários russos seguiu um rumo correto, mas isto n ão significa q ue
todas as teses deles sejam absolutamente verdadeiras. A concepção
da imagem artística como realização çoncreto-sensorial da idéia é
bastante limitada, abrange apenas um aspecto, ou seja, o de q ue
a imagem artística n ão pode existir sem a idéia e sua realização
concreto-sensorial . Esses dois elementos estão forçosamente presentes
na imagem artística. Isto, contudo, ainda não quer dizer qu e a pró­
pria imagem surj a como resultado da unificação da idéia anterior­
mente constituída com as formas concreto-sensoriais. Assim como
a teoria científica não é uma simples u n i ficação de conceitos diver­
sos à b as e da idéia, a imagem artística não constitui a materializa­
ç ão do abstrato no concreto-sensorial .
No processo de análise a imagem artística pode, evidentemente,
ser decomposta na idéia e sua m aterialiZaç ão concreto-sensorial, mas
essa imagem propriamente dita surge por via mais complex a que a
simples unificação da idéia acabada d� · individuaJidáde. Os d em ocra­
tas revolucionários russos não revelaram toda a complexidade da di­
n âmica da imagem art ís ti c a ao considerarem-na forma nítida e pa­
tente da idéia.
Os próprios democratas revolucionários entendiam as l im i t ações
da concepção da imagem artística como materialização d a idéia em
forma concreto-sensorial. Não se devê esquecer que as concepções
estéticas daqueles pen s a d ores estavam em processo de formação, de
pesquisas ( às vezes muito angústiantes ) de soluções c orret as. Por isto
podemos encontrar n el es pontos de vista diyerso s e at é contraditório3
sobre a essência da im age m artística em sua reláção com a idéia.
Assim, por exemplo, no quinto artigo de V . G . Belinsky sobre Púch­
ikin, encontramos teses qu e estão em contradição com al gum as afir­
mações anteriores do autor. Essa contradição é uma prova de que
s uas concepções estéticas evoluíam num sentido correto, de gue ele
e stava superando a unilateralidad e na interpretação da imagem artís­
tica. Comparando a idé_ia poétic a com a ciência, B el insky e s c reve :
"A arte não se admite idéias filosóficas abs tráta s e muito menos
idéia s racionais : ela admite somente idéias poéticas ; e a idéia poéticn
n fo é um silogismo, um do,gma ou uma regra: é a paixão viva, é n

329
ênfase . . . Na ênfase o poeta é um apaixonado da idéia como de
um ser belo, . vivo, é apaixonadamente imbuído del a ; e ele a contem­
pla . não com a razão, o sentimento ou uma faculdade qualquer de
sua alma mas com toda a plenitude e integridade do seu ser moral,
razão porque a idéia é, em sua obra, não um pensamento abstrato,
não uma forma morta mas uma criação viva . . . " 2 2 •
Para Belinsky era imprecisa e indefinida a afirmação : nesta
obra há idéia, naquela, não. J;: necessário levantar o problema da
ênfase da obra, na qual se fundem num todo a idéia e a forma.
" . . . Muitos aceitam por idéia aquilo que pode ser idéia em toda
parte, exceto a· obra onde a imaginam ver e onde ela, em realidade,
é apenas uma lucubração, revestida de certo modo de farrapos de
uma forma pobre, sob a qual transparece a sua nudez"21" •

Essas teses de Belinsky conduzem a uma solução correta do


problema da essência da imagem artística em sua relação com a idéia.
. Parece-nos correta a opinião segundo a qual a própria genera­
lização a r tística difere das abstrações na ciência, antes de tudo, por
conteúdo e não pelo simple s fato de ela estar simplificada em forma
sensorial 24• A idéia 91!e se desen�o�ve n � te<?_ria . c!en.tífica e a idéia
que serve de base da: imagem artíStica nao sao 1dentlcas.
O estab �lecimento da düerença entre a idéia da imagem artís­
.
tica e a teoria: científica não implica na obliteração da unidade do
conhecimento humano. · O conhecimento é uno no sentido de que
reflete a realidade e evolui no sentido da obtenção do conhecimento
objetivo-vetdadeíro. Na arte, entretanto, as idéias d iferem das idéias
na ciência. Essa diferença é determinada pelo objeto nelas represen­
tado, bem como pela função no movimento da consciência.
P ara entender · a peculiaridade da imagem artística, é necessário
examinar o proce sso de sua formação e evolução . A formação da
imagem artístiea realiza-se efetivamente conforme as leis gerais do
movimento · do conhecimento. O artista parte não de uma idéia aca­
bada, que posteriormente materializa na imagem sensorial, mas de
um material empírico, das observações da vida das pessoas na natu­
reza: e na sociedade. A seguir ele caminha para as generalizações,

22 V. G. B"elinsky. Obras filosóficas escol/1idas, t. II, Moscou, 1 9 4 8 , p . 5 2.


.
· 23 Id., p. 55 .
24 "A abstração artística não é o mesmo que a abstração científica"
( V. F. Asrnus . "A : imagem como reflexo da realidade e o problema do
.
t ípic o", in No�·y Mir, 1 953, nC? 8, p. 2 1 5 ) .

330
para a apreensão da essência dos fenômenos. Partindo' do concreto­
sensorial e passando pelo abstrato, a ciência evolui para o concreto
no pensamento, para o conhecimento do todo nas abstrações, ao pas­
s o que a arte não rompe com o concreto-sensorial ; ela o eleva à
generalização de grande importância gnosiológica, social e' estética.
Alguns autores entendem mais ou menos assim a formação da
imagem artística : o movimento do concreto-sensorial ao abstrato não
seria re a l i z ad o pela ciência : o artista tomaria essa abstração for­
mada pela ciência, carregando-a de imagem e deste modo obten­
do uma nova forma do concreto-sensorial . A arte caminha do
concreto-sensorial comum (das sensações, percepções, concepções )
para o concreto-sensorial artístico, estético (da imagem habitual à
artística ) . Neste movimento o elo determinante é constituído não pel a
abstração tomada à ciência mas pela generalização, pela abstração
artística elaborada pelo artista. Neste sentido a idéia da imagem artís­
tica surge e se desenvolve no processo de sua formação, no movi­
mento de sua im agem habitual à artística.
As idéias da obra de arte surgem e amadurecem no · processo de
estudo da vida e de criação da imagem artística. Elas . se tornam o
p rincípio consolidador através do qual unificam-se num todo único
diversos traços, aspectos, detalhes, etc., formando a imagem artística.
O artista não só abstrai os detl1-!hes concreto-sensoriais� . o . singulP ··

mas os seleciona, i. e., toma detalhes que se refereni .. à expressão da


idéia da imagem artística. · ···
Na formação da imagem artística, assumem i�portância meto­
dológica particularmente grande as categorias da d i alética . _iµaterialis­
ta. Mas isto não quer dizer que o artista se dedique . à, ,re-recriação
dos conceitos da ciência e das categorias da filosofia,, conyertendo�os
em imagem artística. ,., ,
A especificidade da formação da imagem artística e de . sua idéia,
diferentemente da teoria científica, consiste também · no caráter da
célula b as ila r de uma e de outra. Como já observamos, na formaç ã o
da teoria científica o embrião que é a célula é constituído pela abs­
tração, que satisfaz determinadas exigências. Quanto à imagem artís­
tica, ela se desenvolve não a partir da abstração mas de uma con­
ccpção concreta ou de certa soma delas. Essas concepÇões · (de indi­
víduos isolados, fenômenos ) também satisfazem a determinadas exi­
gênci a s . Nela deve estar representado de modo mais nítido, mais
patente, o fenômeno que interessa ao artista, sendo que essa concep­
ção deve ser não só clara e viva como expressar algo inerente não
·

a um mas a muitos ( i . e., ser de massa, freqüente) . · · ·

33 1
C on tudo , mes m o qu a n do se t o m a por base da imagem a rtís t ica
a con c epç ã o viva sobre uma pessoa qualquer ou fen ô m en o , isto ainda
não p ro d uz imagem artística mas constitui apenas o s e u e mb rião ,
a célula basilar de sua formação. A imagem artística surge como
resultado d a elev aç ão de tal c oncepç ão à categoria de generalizaç ão
a rtíst ica ; ela incorpora a formação e o d e s envolvi ment o da idéia, o
que pre s s upõ e a u n i fi c ação de traços isolados, de peculiaridades, to­
mados de dife rentes pessoas.
O artista escolhe uma pessoa qualquer, um a con te cime n to como
cél ula basilar d a ima gem men t al izada, seleciona o s tra ç os nos fcnô­
menos e o s unifica, em conformidade com a idéia qu e lhe s urge ,
n u ma i m agem artíst ica in tegral. A constituição e o desenvolvimento
da i déi a da imagem artística ocorre no proc esso d e sua formação .
Antes de passar à cri açã o de sua obra, i, e . , no projeto, surge no
a r tista, inicialmente, u m a concepção básica ( u m a pessoa ou fen ô­
meno que o impres sionou) , a idéia se toma clara e n ítida . Mas ela
a t i n ge a ma turid ad e necessária somente no pro c e sso de d e s en v o l v i ­

mento dessa concêpção básica até a imagem artística enriquecitb


pelo m a te rial de todas as observações e idéias d o artista. Além do
mais, a idéia da imagem continua a viver e d esenvo lv er- se mesmo
após o artista concluir a su a obra. O leitor, ouvinte ou espectador
cont in u a por si mesmo a desenvolvê-la, en riqu e c e n d o- a com seus
po n tos de vista , s en tim en to s e ob s erv açõ es. Neste caso ele a inter­
preta a seu modo, apree nde e d es envolve a qu e les aspectos que lhe
são mais ín timos e compreensíveis.
As d iv e rgência s que habitualmente surgem e n tre a i nt e nçf o ini­
ci a l e a imagem artística já revestida de forma confirmam que a
idéia da im agem a madurece e se desenvolve concomitantemente com
a sua formação. Exemplos d e ss a s d ivergência s são constantemente
c i ta d o s n a l it e ratura e também mostram que o artista não procura
m a t eri aliz a r na imagem concreto-sensorial a idéia acabada que cons­
titui a int en ç ã o , mas cri a r a imagem artística juntamente com s u a idéi a ,
a qual, além de poder não coincidir, ainda po d e co n t ra d ize r a in ·

tenção .
Assim, a imagem artística é uma síntese sin gula r das concepções
e pen s am e n to s unidos por um prin cípio comum : a idéia . Todas essas
c oncepçõ es e pens a men to s atuam como momento de revelação e
d e s e nvo lvimento da idéia. Neste sentido a função da i d éi a da ima­
gem a rtís tica é semelhante ao seu p apel na teoria científica . Mas ri
teoria científic a , repetimos, difere da imagem artística, fato condicio-

332
nado pela pró pria idéia por ser ela o principal quer na t e o ri a , quer
na ima ge m .
Na teoria científica a idéia se revela no co nj u nto de c o n c e i tos
mediante os quais ela se d el in eia e se fu nd ame nt a nitidamente de­
m o ns t ra- se . Aqui ela não é simplesmente algo comum, i n e re n t e a
u m g rand e número de fenômenos singulares, mas algo universal , q u e

reflete a lei.
Na i m age m artística a idéia se revela e se d e s e nv ol ve , permane­
cendo no sistema do concreto-sensorial, aqui ela não se delineia
ri gorosame n t e, pode ser interpretada de diversos modos e até ser
d e se n v ol v id a por quem a aceita; ela é o geral mas não o universal
f un d am e nt ado . Sua tarefa não é descobrir e demonstrar a lei mas
mostrar os seus momentos e influenciar as pe ss o a s ( o s s e u s senti­
me nt o s, pensamentos ) , motivá-l as para determinados atos.
A c o mp ree ns ã o do papel da i dé i a na criação da i m age m artística
permite c olo c a r corretamente a questão do critério de sua veracidade.
A veracidade d e uma t e or ia científica se verifica por meio do esta­
bel ecimento da c o rre sp on d ê n c i a à realidade d a idéia que serve de
base a essa teoria e a todos os conceitos. que a constituem. A vera­
cidade da imagem artística, com efeito, não é determinada pel a cor­
respondência de todos os seus componentes à realidade . Certos de­
talhes podem refletir fantasticamente a re al idad e , mas, neste caso,
a imagem a rt ís t i ca continua verdadeira caso seja ve rd a d e i ra a idéia

q u e lhe serve de b a s e .

4. Ü LUGAR DA IDÉIA NA DIALÉTICA DO SUJEITO E DO OBJETO

Como ob se r v a m o s , a idéia, diferentemente de outras formas de


c onhe c i m en to, caracteriza-se por uma rel ação i med i ata e speci al com
a ação prá ti ca . Na i d éia o conhecimento atinge tal grau de maturi­

dade que se materializa na vid a , na realidade at ra v é s da atividade


material, práti ca . Para tanto é necessário : 1 ) que o conhecimento
seja obj e ti v a mente verdadeiro e 2) que o homem sej a capaz de
concretizá-lo em formas materiais com base nos meios disponíveis .
Não vamos abordar o segundo aspecto por não ser este obj et o de
est ud o gnosiológico ; limitemo-nos a o p ri m eiro .
Qual deve s er o conhecimento, para que ele possa m ateri al izar­
s c na v i da? Co m efe i to , nenhuma técnica de produção, mesmo a mai.5

perfeita, pode realizar na prática teses e idéias falsas. Todavia é pos-

333
sível uma situação inversa : o conhecimento atingiu tal grau de matu­
ridade que está apto para a realiz ação prática mas a i n d a não foram
criados os meios para concretizá-lo ; contudo , o grau de maturidade
do p róp rio conhecimento se const itu i n a premi ss a p rimeira de · sua
realização.
De uma forma geral, à questão colocada pode-se re spo nd e r
assim : para que o conhecimento possa ser materializado em realidade,
deve tornar-se objetivo-verdadeiro. Só o conhecimento objetivo-ver­
dadeiro se transforma em realidade obj etiv a através da prática mate­
r i a l . Por meio da prática uma forma de objet iv id ad e - a obj etivi­
dade do conhecimento - se transforma em out ra - na realidade
objetiva. E qu anto mais o conhecimento é objetivo por conteúdo,
tanto mais ele se aproxima da realização prática . Por isto é neces­
sário esclarecer em que medida o conhecimento atinge o grau su­
p re m o de objetividade.
Tomados is ol ad amente , os juízos ou conceitos são abstratos e
nes t e sentido s ubjetivo s . Essa insuficiência da repre sentaç ão da reali­
dade nos conceitos se supera por meio da continu id ad e do desenvol­
vimento d eles, da formação de complex os sistemas móveis de
conhecimento que impl i cam e traduzem a idéia. Do ponto d e vista
gno s iológico, a atividade prática do homem atua como objetivação
das id éias . :B como se a idéi a antecedesse à criação prática do objeto .
E é j u s tamen te esse aspecto gno siológico da interação da idéia com ·

o objeto que a fil o sofi a idealista absolutiza, atribuindo às idéias ce r­


ta força criadora. Em realidade, todavia, a interação da idéia com
o objeto a ss um e ca ráte r m ais complex o . A id éia é ante s de tudo
reflexo dos objetos, dos fenômenos do mundo obj e t i vo , e não um re­
flexo simples mas adequado, q ue tende à ple nitu d e e à t ot alid a d e .
O objeto constitui o conteúdo objetivo da idéia. Esse primeiro aspcc­
to na atitude da idéia face ao objeto é s u m am ente importante, e o
idealismo ou o obscurece, ou s implesmen te o ignora. Na i d é i a, além
do mais, a representação do objeto atinge o supremo grau de obje­
tividade e plenitude. O m ateri al i sm o anterior ao m arxis mo também
dava atenção a esse a spect o d a qu e stão dada, mas i n fel izm en te se
limitava a ele.
Existe, entre t anto , outro aspecto não menos i m port a n te na in­
ter-relação da idéia e do objeto, ou seja, aquele s ob o qual se proces­
sa, à b ase do conhecimento objetivo-verdadeiro do obj et o e das l e i s
do movimento, a transformação do objeto por meio da atividade ma­
terial prática. Se no primei ro caso o objeto atua como algo priniaria­
mente dado para a consciência, no segundo , ao c o n t rá r i o, a idéin

334
como algo constituído serve c om o dado basilar para a re aliz açã o
prátic a . A exist ência d a idéia se constitui em premissa da prática, é
v e rd ade que não é a única p re missa mas é ext remamente importante,
que deixa o seu vestígio sobre a e specifi cid ade d a p r ática enquanto
forma verdadeiramente humana de atividade. Quan d o int erage m par­
tículas elementares ou macrocorpo s da n aturez a inanimada e anima­
da, essa interação não se relaciona à re al iz ação das idéias nem cons­
titui a prátic a . Já a interação do homem com o objeto da natureza
subentende que ele (o sujeito ) tenha idéias que reflitam com esse ou
a q uele grau d e pl enitude e p re cis ão o obj e to sobre o qual o sujeito
atua na pr átic a . E era esse aspecto da inter-relação de idéia e obj et o
que a filosofia idealista enfat iz av a, h ipertrofiav a.
A primeira das teses de M arx sob re Feuerbach revela os defei­
t o s tanto do m ateriali sm o anterior como do idealismo na solução do
p rob l ema d a inter-relação de objeto e idéi a. "O defeito principal de
todo o materialismo a n t er i or, inclusive o de Feuerbach, consiste em
tomar o objeto, a re al id ad e , o at o sensorial apenas sob a forma de
objeto ou sob a forma de contemplação, e não como atividade sen­
sorial humana, c om o prática, não de modo subjetivo. Daí de corre
que o lado ativo era desenvolvid o pelo id ealísm o , em op osiç ã o ao
materialismo, mas apenas de modo abstrato, dado que o idealismo,
ev id e n t em ente , d esconhe ce a atividad e real, sensorial como tal" 2 5 •
O m aterialism o anterior ao marxismo via na idéia a�-;;_ s uma
re pre s e n ta ç ã o p assiva do obj et o da realidade, razão porque obscure­
cia o papel criador das idéias . Já o idealismo, ao contrário, via o
papel da idéia apena s na atividade prática, mas d e sco nh e ci a a ativi­
dade sensorial real. Como observou Marx, "Hegel conhece e r e c o ­
nhece apenas um tipo de tr ab al h o , ou seja, o trabalho abstrato-inte­
lectual"2ª. Por esse motivo o i d e al i s m o at ri buía às própri as idéias
como tais função criadora em relação ao s objeto s do mundo material.
O m aterialism o dialético apresenta uma solução basilarmente
nova da inter-relação de objeto e idéia. P arte antes de tudo da teoria
do reflexo : as idéias refletem os obj et os da r eal i dad e objetiva, mas
ele concebe o próprio reflexo como um processo criativo. A idéia
não copia simpl e sm ente , não fixa aquil o que existe, não reproduz em
si os fe n ô m eno s da realidade. Se a ssim ocorresse, e nt ã o em sua p rá­
tica, com base nas idéias disponíveis, o homem apen a s r e pet i ri a os

25 K. Marx e F. - Engels. Obras, t. 3, p. 1 .


20 K . Marx e F . Engel s. Primeiras obras, t . 29 p . 194 .

335
obj eto s existentes na própria natureza. Mas sabemos perfeitamente
que a questão é diferente ; por meio da prática o homem cria aqui­
lo que antes não existia na natureza ( novas máquinas complexas, no­
vos materiais sintéticos, etc. ) , e para tanto o pensamento deve refle­
tir criativamente a realidade .
Ao fazer anotações de leituras de Hegel, Lênin escreveu : " O
conceito ( = homem ) enquanto subj etivo torna a subentender em s i
mesmo o outro ser real ( = natureza independente do homem ) . Esse
conceito ( = homem ) é a aspiração à auto-realização, a dar a si
através de si mesmo objetividade no mundo objetivo e realizar ( exer­
cer ) a si.
Na idéia criativa (no campo da teoria ) o conceito subjetivo
(conhecimento? ) enquanto geral e por si mesmo carente de definição
opõe-se ao mundo objetivo do qual retira determinado conteúdo e
complementação.
Na idéia prática (no campo da prática) esse conceito enquan­
to real ( atuante? ) se opõe ao real"21•
Ao refletir a realidade, o pensamento procura complementar seu
conteúdo com um conteúdo objetivo, existente independentemente da
consciência do homem. Mas no próprio pensamento já se acha j acente
a cri ação : o empenho em representar o objeto não apenas tal qual

ele existe como também à base do conhecimento das leis do seu


movimento, em representá-lo tal qual ele será e deve ser para a sa­
tisfação das necessidades práticas do homem ; como observa Lênin, "o
mundo não satisfaz ao homem e o homem resolve mudá-lo com a
sua ação" 2 8 •
O homem muda o mundo com a sua ação prática e não com a
idéia, mas esta atua como a premissa mais importante da açã o d el e ;
e l a mesma deve ser um reflexo criador d a realidade. Também neste
sentido a idéia leva vantagem sobre todas as outras formas de conhe­
cimento, inclusive sobre a teoria científica.
Em que consiste a vantagem da idéia? A teoria mantém face
ao obj eto uma atitude um tanto contemplativa, propicia a verdad2
objetiva, cria o objeto ideal mas não contém o movimento e s ua re a­
lização. E quando se traçam caminhos da corporificação da imagem
ideal em real, o conhecimento teórico se converte em idéia que j á
se manifesta como plano de ação d o homem.

21 V . I. Lênin. Obras completas, t . 29, p . 194 .


2s ld., p. 195.

336
Ass im, a peculiaridade da idéia enquanto forma de conheci­
mento consist e em que, nela, dois momentos se fundem em um todo :
o objeto real criado pela teoria e o plano orientado para a realização

deste objeto. Por isto o conhecimento deve converter-se em idéia para


afi rmar-se no mundo.
Na idéia o subjetivo eleva-se ao nível de fins e aspirações do
sujeito, enquanto a imagem objetivo-verdadeira criada se torna ne­
cessidade interna deste, aquilo que ele de\re introduzir no mundo
com a sua atividade prática. Ao mesmo tempo, os próprios fins e
aspi rações do homem assumem na idéia caráter objetivo ; além de
não serem estranhos ao mundo objetivo, eles, por força de sua vera­
cidade objetiva e mediante a atividade material prática, se conver­
te 111 em real idade obj etiva.
Para formar uma idéia, é necessário o conhecimento não só do
objeto mas também do suj eito, dos seus fins e aspirações, necessida­
des sociais e, por último, do conhecimento do conhecimento, vale
d izer, dos meios e vias de transformação do mundo, de materialização
do conhecimento teóric o em vida.
A idéia leva implícitos vários momentos, que a distinguem
e n tre todas as outras formas de conhecimento : 1 ) nela estão ex­
pressas em forma concentrada as conquistas do conhecimento cientí­
fico ; 2 ) ela leva implícita a aspiração à realização prática, à sua
corporificação material, à afirmação de si; 3 ) ela contém o conhe­
cimento de si mesma, das vias e meios de sua objetivização, é um
p l a no de ação do sujeito .
A originalidade da idéia consiste ainda em que o conhecimento
teórico nela se desenvolve essencialmente até o limiar de sua auto­
ncgação, vale dizer, o conhecimento marca a transformação a outro
campo - o prático, havendo como resultado o surgimento de novos
fc nômenos e objetos.
A realização prática, l;l chamada materialização das idéias resol­
ve-lhes definitivamente o problema da veracidade objetiva. Quando
a idéia está realizada, torna-se claro a<)_uilo que nela era :;iparente,

n ão-verdadeiro, e aquilo que era objetivo, verdadeiro. Ao mesmo tem­


po , isto se constitui numa espcie de balanço do conhecimento do
objeto e no momento básico na ascensão desse conhecimento a um
nível mais elevado (o começo de um novo ciclo ) .
Neste caso deve-se salientar que o processo de · obj etivação da
idéia se realiza somente por meio da atividade material-sensorial ,
fora da qual é impossível � transição da objetividade do conheci­
mento à realidade objetiva. Por isto, ao definir-se a prática é de suma

337
importância indicar o seu caráter material- sensorial. Deixando-se pas­
sar esse momento, surgirá a concepção segundo a qual a idéia, en­
contrando-se no campo do ideàl, pode por sí niesma tomar-se objeto .
Esse aspecto da atividade prática do homem já foi definido por
Marx nos Manuscritos econômico-filosóficos de 1 844 : "O ser
material atua de modo material, e não atuaria de modo material se
o material não residisse em sua definição essencial . E ele só cria e
supõe os objetos porque ele mesmo é admitido pelos objetos e . é na­
tureza desde os seus primórdios"29•
Assim, as idéias são materiais, objetivas por conteúdo . :E: j usta­
mente por isto, por força d e s ua objetividade que a idéia relaciona o
sujeito ao objeto não apenas por refletir este último mas também
por se propor a mudá-lo.
Se quisermos ser mais precisos, o melhor será dizer que n a
atividade prática não é a idéia que s e converte em objeto mas o
objeto que se toma outro objeto à base da prática, que incorpora a
atvidade material e a idéia (o reflexo do objeto ) . A idéia desempe­
nha certa função na tránsformação de u.m objeto ( ou objetos ) em
outros, j á que reflete criativamente o objeto ( tal qual ele é e tal qual
deve ser por sua idéia ou ideal ) e assim orienta a atividade prática
material, cria a forma ideal da coisa futura ou do_ processo futuro
que se materializam na prática. Além do mais, só por meio da abs­
tração é possível separar a idéia ou essa forma ideal da própria ati-
·

vidade prática material.


Para revelar a inter-relação de prática e idéia, é necessário e s ­
clarecer o papel da idéia na dialética do sujeito e do objeto . Sabe-se
que o conhecimento surge como resultado da interação prática do
sujeito (o homem social ) com o objeto que se encontra fora . dele .
Além do mais, o sujeito é o princípio ativo dessa interação . Ao
atuar sobre o obj eto., o sujeito dispõe de determinados meios : instru­
mentos, experiência e conhecimentos, i. e . , tem certas idéias. .

Como essas idéias tratam o objeto? Elas e stão unidas com o


objeto, mas unidas dialeticamente. Quando se demonstra a dialetici­
dade da unidade de pensamento a ser, ressalta-se habitualmente ape­
nas um aspecto : o objeto não se reflete plenamente na idéia . Esse
aspecto realmente se verifica, o objeto é inesgotável rio conhecimento,
contém uma infinidade de propriedades ao entrar em inúmeras re­
lações de reciprocidade com outros objetos e também com o próprio

29 K. Marx e F. Engels. Primeiras obras, p. 6 3 0

338
s u j e it o . Mas se formos fixar nossa atenção na s olução do problema
da r e laç ão entre as idéias e o objeto somente no fato de que o objeto
não· se reflete plenamente na idéia, então não ficará claro d e que
modo as idéias po dem atuar como força ativa na tran sform aç ão do
obj eto se refletem d e modo inc ompleto o próprio obj eto .

No entanto, n a inter-relação de objeto e idéia há outro as­


pecto s u mament e imp ortante para a compreensão do pap el d a i dé i a
na tr an sform ação práti ca do mundo real. Quer isto dizer que uma
mesma idéia, por um lado, não reflete plenamente o objeto e, por
outro, apreend e bem mais do que existe no próprio objeto em
d ado nível de s eu desenvolvimento. Além do mais, a i mp ortân ci a
científica do que no momento presente ainda não existe no objeto
mas é p o s sível no futuro tem caráter d e v erdad e obj e tiv a .
Ao apreen d er esse ou aquele objeto, a idéia o examina e m
desenvolvimento e em relação universal com outros objetos. Isto
dá fundamento para conhecer não só o que dado objeto repre­
senta como tampém para saber o que ele pode ser n o processo
de seu sucessivo desenvolvimento, o que se pode fazer objetiva­
mente dele. O conhecimento pode recriar não só o obj eto real mas
também o objeto ideal, que pode converter- s e em real como resul­
tado da atividade prátic a .
Por i s so, quan do o sujei to passa à ação prática sobre o ob­
jeto� tem como premissa, por um l ado, a c oin ci d ên cia, a unidade
da idéia e do obj et o e, por outro, a contradição entre eles. A idéia
não coincide inteiramente com o obj eto não · apenas por refleti-lo de
modo incompleto como também por implicar como objetivo a im a­
gem ideal do novo obj eto , que, como tal, ainda não existe n a rea­
l i dade (no objeto ant erior está i mplícit a apenas a sua possibilidade
re al ) . Essa contradição entre a idéia e o objeto, contradição que
·

existe n os limites de certa unidade entre eles, serve de premissa


teórica para a transformação pr ática do obj eto ; é como se ela es­
tabelecesse uma diferença entre o obj eto já existente e o plausível,
ideal, e orientasse à realização deste · últim o .
Em cada idéia reflete-se não só o objeto já exi s ten te mas tam­
bém o plausível, d a í ser ela, por um lado, i dêntica ao objeto e, por
oufro, não coincidir com ele. Para que a idéia tenha importância
p ráti ca e com o t empo possa ser realizada, ela deve obrigatoria­
mente levar implícitos ambos esses momentos. Se el a não reflete
de modo pbjetivo-verdadeiro o objet o como este existe, então a
atividade prática será abstrata e, podemos antecip ar, condenada ao
f rac ass o Se contudo privarmos a idéia do princípio criativo, ex­
.

presso na aspiração de criar um a imagem do obj eto futuro, ideal,

339
então a atividade prática carecerá de perspectiva e perderá sua de­
signação principal. A idéia mostra ao sujeito a imperfeição do ob­
jeto e com isto fundamenta teoricamente a necessidade de mudá-lo.
Abordamos a relação entre a idéia e o objeto, o qual é sub­
metido a mudança na prática. Mas este é apenas um aspecto n a
relação recíproca entre eles, pois é como resultado da interação
prática entre sujeito e objeto que se realiza não só a mudança do
último como também surge, pode-se dizer, um novo objeto. Em
termos esquemáticos, a inter-relação de objeto e idéia pode ser ex­
pressa da seguinte maneira : objeto - idéia - objeto. O objeto é
o momento inicial da interação entre sujeito e objeto e, simultanea­
mente, o resultado final dessa interação. A idéia se constitui em
determinado elo mediativo no movimento de um objeto a outro .
A atitude da idéia em face do primeiro objeto ( o objeto inicial n a
prática ) difere d a atitude face ao segundo objeto ( o resultado d a
prática ) .
No primeiro caso constatamos a falta de correspondência d a
idéia ao objeto em termos de reflexo incompleto, de reprodução
ideal incompleta do objeto na idéia, no segundo, a coincidência i n ­
completa d o objeto com a idéia que serviu de momento inicial d a
prática cujo resultado foi o surgimento de um novo objeto.
A primeira vista, nossa afirmação de que o objeto não cor­
responde à idéia pode parecer idealista. Mas se examinarmos toda
a cadeia do movimento na prática de um objeto a outro via idéia, ·

essa impressão desaparecerá num instante.


O homem opera com a n atureza somente na medida em que
esta é dada em sua atividade prática e teórica, se constitui no ob­
jeto e no resultado dessa atividade, sendo o próprio homem, ade­
mais, produto dessa atividade. "Mas o homem não é apenas um
ser natural , ele é um ser natural humano . . Nem a natureza no
.

sentido objetivo, nem a natureza no sentido subjetivo é dada ime­


diatamente ao ser humano de modo adequado" 30 • Ao an alisar o
resultado de sua atividade prática, o J1omem deve levantar e l e­
vanta a questão : até que ponto o resultado corresponde aos seus
fin s e aspirações, àquilo que ele deseja obter, i . e., à idéia, to­
mada por ele como orientação na tran sformação prática da rea­
l idade?
E aqui verificamos mais uma vez, por um l ado, a coincidên­
cia de idéia e objeto, e, por outro, a contradição entre eles. Além

ao K . Marx e F. Engels. Primeiras obras, p . 63 2 .

340
do mais, o grau de coincidência depende da maturidade científica,
que é característica da idéia e dos meios de que o homem dispõe
para realizá-la na prática. Aqui é importante, antes de tudo, o grau
de objetividade do conteúdo da idéia, o grau de plenitude, precisão
e profundidade com que ela reflete a realidade objetiva, a pro­
porção com que a síntese do conhecimento nela contida corres­
ponde às relações objetivas .
A maturidade científica, o caráter da idéia constitui a primeira
premissa necessária para sua feliz realização prática ; a existência de
recursos técnicos necessários é a segunda condição, é a corpori­
ficação da idéia em realidade. O conjunto de um e do outro conduz
a que, na prática, o sujeito crie objetos que correspondam mais
plenamente às idéias, aos fins da natureza social humana. Aqui ,
como observou Marx, ocorre uma espécie de materialização do
homem e de suas idéias, a obtenção da unidade acabada, essencial
do homem com a natureza via sociedade e prática social : " . . . o
homem não perde a si mesmo em seu objeto somente se esse objeto
se converter para ele em objeto humano ou m aterializado pelo
homem. Isto é possível somente quando esse objeto se torna para ele
objeto socia l, quando ele mesmo se torna ser social para si e a
sociedade se torna para ele uma essência no objeto d ado" 3 1 • Em
qualquer resultado da atividade prática existe uma coincidência do
humano com o natural através da realização das idéias e dos fins
do sujeito .
Concomitantemente a isto, entretanto, existe sempre uma di­
vergência entre a idéia e sua realização prática, divergência que é
mais evidente quando se realizam idéias científicas insuficientemente
maduras. E é justamente aí que mais uma vez podemos nos con­
vencer do quanto o resultado da prática chega a ser distante da
idéia que no caso dado se tomou como orientação. Mas não se
deve pensar que se a idéia é suficientemente madura e desenvol­
vida, o resultado prático será absolutamente idêntico a ela. Isto não
ocorre, pois mesmo neste caso existirá contradição entre a idéia e
o resultado da realização prática. A prática, por um lado, é incapaz
de realizar plenamente as idéias existentes e, por outro, está sem­
pre adiante delas, sempre propicia o novo em comparação com
aquilo que havia nas idéias das quais ela partiu. :E: isto, aliás, que
toma a prática base do conhecimento e critério da veracidade. Ao

31 K. Marx e F. Engels. Primeiras obras, p. 5 9 3 .

341
confirmar a veracidade das idéias, ao definir o que nelas havia de
objetivo, a prática vai além delas, cria a base para o surgimento
de novas idéias .
À luz do exposto torna-se também compreensível porque a
prática atua quer como critério absoluto, quer como critério relativo
de veracidade das idéias. Somente por meio da realização prática
das idéias pode-se estabelecer o que nelas é objetivo-verdadeiro e
o que não é. Mas essa mesma realização prática das idéias é um
processo dialético ininterrupto, contraditório. Ela vai além das idéias
existentes e ao mesmo tempo, nesse ou naquele resultado concreto,
não lhes cobre todo o conteúdo, é incapaz de realizá-las plena­
mente.
A realidade objetiva constitui o princípio e o fim da idéia. A
princípio a idéia extrai seu conteúdo do mundo objetivo, depois,
por meio da prática, esse conteúdo torna-se por si mesmo uma das
formas concretas da realidade objetiva. Assim, a princípio o ob­
j etivo muda a forma de sua existência, torna-se subjetivo, e só de­
pois a atividade prática converte o subjetivo em objetivo. E isto é
possível somente graças ao fato de ser a prática atividade material
dos homens. Fora da interação prática, material, é impossível a trans­
formação seja do objetivo em subjetivo, seja do subjetivo em rea­
lidade objetiva .
Quando a idéia se realiza, quando se torna objetiva não só ·

por conteúdo mas também pela forma de sua existência, ela deixa
de ser idéia e se toma realidade objetiva. Reformulando Hegel à
maneira materialista, Lênin escreveu :
"As leis do mundo exterior, da natureza, subdivisíveis em me­
cânicas e químicas ( isto é muito importante ) , s ão os fundamentos
da atividade racional do homem .
Em sua atividade prática o homem tem diante de si o mundo
objetivo, depende dele, através dele define a sua atividade.
Deste aspecto, do aspecto da atividade prática (voltada para
um fim ) do homem, a causalidade mecânica (e química) do mundo
(da natureza ) é algo assim exterior, como que secundário, como
que oculto.
. Duas formas de processo objetivo, a natureza (mecânica e quí­
mica ) e a atividade do homem voltada para um fim. A correlação
dessas formas. Os fins do homem parecem inicialmente estranhos
( 'outros ' ) em relação à natureza . A consciência do homem, a ci­
ência ( 'der Begriff' ) reflete a essência, a substância da natureza,

342
mas essa consc1encia é ao mesmo tempo exterior em relação à na­
tureza ( não coincide de imediato, simplesmente, com ela ) "32•
Cómo a citação mostra, Lênin fala de duas formas, ou melhor,
de dois aspectos do processo objetivo do ponto de vista da ativi­
dade prática : num aspecto está o sujeito com as idéias e a ativida­
de que implica um fim, no outro, a natureza ( mecânica e quí­
mica ) . Além do mais, essa última parece estranha e exterior à ati­
vidade humana, assim como a consciência e os fins, o conteúdo
destes, embora tomados ao mundo objetivo, apresentam-se inicial­
mente como algo sobrenatural em relação aos fenômenos da rea­
lidade material .
Na prática e seus resultados verifica-se a unificação, a síntese
desses dois aspectos do processo objetivo ( a atividade que suben­
tende um fim e os fenômenos da natureza exterior ) . Verifica-se
essa unificação em cada ato da atividade prática, de vez que ela
tanto implica um fim quanto é sensorial-material . O resultado da ati­
vidade prática é como se resolvesse a contradição entre o sujeito e
o objeto .
Nas idéias, o conhecimento cria uma imagem subjetiva do mun­
do objetivo e deste modo dá o primeiro passo no sentido da uni­
ficação do sujeito ao objeto . Nos resultados da atividade prática,
os quais, em certo sentido, podem ser chamados forma objetiva do
subjetivo (a idéia) , ocorre plena unificação do sujeito com o objeto,
o próprio sujeito se objetiva; suas idéias adquirem formas objetivas
e se torn am independent e s da consciência e da vontade do sujeito.
Embora a máquina a vapor tenha sido criada pelo homem por meio
da prática à base de determinadas idéias, desde o momento em que
ela assumiu form a objetiva de existência torna-se tanto realidade
objetiva quanto qualquer objeto da natureza. Por meio da consci­
ência não se pode nem destruí-la, nem ref azê-la ; para a sua trans­
formação, bem como para o objeto da natureza, é necessária a ati­
vidade material prática .
Do ponto de vista da solução do problema funda me ntal da
filosofia, não existe diferenç a entre o objeto que surge com o auxí­
lio do homem e o objeto criado pela ação espontânea das forças da
natureza. O conceito de r ealid ade objetiva foi elaborado pela filo-

az V. 1. Lênin. Obras completas, t. 29, pp. 1 69-170.

343
sofia para um único fim : ele estabelece o caráter absoluto de
contraposição entre matéria e consciência nos limites da gnosiologia.
E neste sentido não há nem pode haver duas formas de realidade
·

objetiva .
Os resultados da atividade prática unem o homem à natureza,
é como se a natureza se humanizasse, enquanto o homem e suas
propriedades, os seus traços se materializam, assumem o caráter de
objeto, encontram-se fora do sujeito e em certos casos lhe são es­
tranhos. Mas do ponto de vista da solução do problema funda­
mental da filosofia, a humanização da natureza se constitui na mes­
ma realidade objetiva como se constitui a n ão-humanização . · Nisto
reside a verdade do materialismo.
A prática resolve a contradição entre o sujeito e o objeto,
une-os. Diferentemente do conhecimento ( das idéias ) , essa unifica­
ção é plena no sentido de que o próprio subjetivo se torna objetivo
n ão só pelo conteúdo mas também pela forma de sua existência. No
entanto ela é relativa, porquanto cada ato da atividade prática une o
sujeito ao objeto e estabelece novas contradições entre eles.
Na atividade prática o homem reproduz a natureza à base da
própria natureza. No entanto essa reprodução não é uma simpl es
repetição dos corpos da natureza mas a criação e a auto-afirmação
do homem na natureza. Para entender as peculiaridades da atitude .
prática do homem em face do mundo, são muito importantes as
seguinte teses de Marx, expressas nos Manuscritos econômico-f i­
losóficos de 1844 : "A construção prática do mundo objetivo, a
elaboração da natureza inorgânica é . a auto-afirmação do homem
como ente-espécie cons êiente . . O animal, é verdade, também pro­
.

duz . . . Mas o animal produz apenas aquilo de que necessita ime­


diatamente ele mesmo ou seus filhotes ; ele produz unilateral mente,
ao passo que o homem produz universalmente ; ele produz apenas
impelido pela n ecessidade física imediata,. ao passo que o homem
produz m esmo estando livre dessa necessidade física e n a verda­
deira acepção da palavra só produz quando está livre del a ; o animal
só produz a si mesmo, ao passo que o homem reproduz toda a
natureza; o produto do animal está imediatamente ligado ao seu
organismo físico, ao passo que o homem se opõe livremente ao
seu produto. O animal forma a matéria somente em conformidade
com a medida e a necessidade da espécie a que pertence, ao passo
que o homem sabe produzir segundo a medida de qualquer espé­
cie e em toda parte sabe aplicar ao objeto a medida adequada; em

3 44
decorrência disto o homem forma a matéria também conforme as
leis da beleza" 33 •
Essa universidade da atividade produtiva do homem, sua capa­
cidade de formar a matéria conforme as medidas de qualquer espé­
cie como uma de suas premissas necessárias dispõe da criação, pelo
homem, das idéias enquanto formas ideais do mundo objetivo, as
quais servem justamente como certa medida na formação da ma­
téria. A idéia é sempre subjetiva por forma, é uma forma de pen­
samento humano. :E: capacidade da concepção idealista do mundo
levar as idéias para além dos limites da consciência humana no sen­
tido do mundo objetivo. Hegel, segundo expressão de Marx, con­
cebia . as idéias humanas como espíritos estagnados que habitam fora
da natureza e fora do homem. "Hegel reuniu num todo e aprisionou
em sua Lógica todos esses espíritos estagnados . . " 34 • .

As idéias são uma forma de apreensão das leis do mundo


objetivo pelo homem, e como tais são inerentes apenas à consciên­
cia .humana. A maçã, tirada pelo j ardineiro, como a maçã criada
pela natureza, não implica qualquer idéia.
· Do papel das idéias no processo formativo emana a função
social delas, seu imenso papel no desenvolvimento da sociedade. O
surgimento e evolução de idéias avançadas sempre serviu de pre­
mis�a do progresso social. No entanto esse tema grande e impor­
tante ultrapassa os limites do presente trabalho, razã<? porque não
podemos lhe dar aqui a devida atenção.

5. MEIOS SUBJETIVOS DE OBJETIVAÇÃO E REALIZAÇÃO DA IDÉIA

Como já observamos, as medidas da forma ideal e do meio de


transformação do mundo são constituídas pelas idéias do homem nas
quais estão refletidos os fenômenos da realidade tanto nas formas
existentes quanto nas necessárias ao homem. A investigação cien­
tífica está imediatamente voltada para a procura daquelas formas
segundo as quais o mundo deve ser mudado, razão porque ela é
posta em movimento pela imperiosidade do sujeito, sobre o qual
Hegel diz : "Enquanto o intelecto procura apenas tomar o mundo

33 K . M arx e F. Engels. Primeiras obras, p. 5 66.


a� Id., p. 640;

345
tal qual ele é, a vontade, ao contrário, · aspira a tornar o mundo ago­
ra só tal qual ele deve ser"35•
Essa imperiosidade, essa obrigatoriedade parte do sujeito, vale
dizer, do pesquisador, mas é objetiva por conteúdo, expressa o ob­
jeto pelo prisma do sujeito : p arte das necessidades da humanidade
de transformar o mundo. Como diz Hegel, "aqui o próprio sujeito
apropriou-se da objetividade; sua clarividência dentro de si mesmo é
o objetivo, pois ele é uma universalidade que está ao mesmo
tempo inteiramente definida" 36 • Na imperiosidade do homem o
mundo objetivo e suas leis são dados não em sua imediaticidade
e abstratividade, no isolamento face ao homem mas numa pleni­
tude concreta. As soluções puramente volitivas, os impulsos levam
ao subjetivismo, a ações que não contribuem para o domínio do
objeto . Para que a vontade não seja um arbítrio, um capricho
do sujeito, ela se baseia n a verdade, nas leis objetivas antes apreen­
didas .
As idéias são realizadas na prática pelos homens não apenas
com o auxílio de meios materiais (instrumentos de trabalho) m a s
também espirituais (vontade, emoções, etc . ) . No entanto antes de
atuar em conformidade com essa ou aquela idéia, deve amadure­
cer no homem a decisão para tanto necessária . Na formação dessa
decisão cabe certo papel à vontade, à certeza na veracidade da
idéia, na necessidade de agir em conformidade com ela, na pos­
sibilidade rea� de concretização da idéia em realidade.
A fé é a capacidade do homem para ultrapassar os limites do
dado, para reconhecer a existência daquilo que não é dado em
termos reais. Na religião essa ultrapassagem se faz, · como se sabe,
m ediante o reconhecimento da existência do sobrenatural. Por isto
tem-se considerado com justeza que o conhecimento e a fé rel i ­
giosa são tradicionalmente opostos, incompatíveis.
S necessário distinguir rigorosamente a fé cega, que leva à
religião, da convicção consciente do homem, baseada no conheci­
mento das leis objetivas. A fé consciente, a convicção, não só n ã o
contradiz a verdade da ciênci� como emana dela; isto também im­
plica n a superação dos limites do dado imediato pelo homem no co­
nhecimento, mas uma superação que tem fundamentos reais no
próprio conhecimento.

35 Hege l . Obras, t. I, p. 3 3 8 .
36 Hege l . Obras, t. VI, pp. 289-290.

346
· Pode surgir uma pergunta : para que o homem necessita de
convicção; se ele dispõe de conhecimento verdadeiro que se tomou
idéia? O c on h e cimento é necessário ao homem para a ação prá­
tica, deve conduzir a essa ação, converter-se nela. E para atuar com
êxito à base do conhecimento, o homem deve estar convencido
da veraci d a de desse conhecimento e da veracidade do plano de
sua ação prática. O h omem que empreende uma ação prática sem
co n vicção na ver a cida d e da idéia que ele se propõe a realizar n a
vida, carece d e vontade, clareza d e objetivos e motivação emocional ,
tão nec e ss á rias para a feliz realização dessa ação.

. A convicção atua como certo elo intermediário entre o conhe­


ci mento e a ação prática; ela não é apenas nem simplesmente co­
n hecimento, mas um conhecimento fecundado pela vontade, pelos
s e n time n t o s e vivências do homem, conhecimento que se c o nvert eu
em c e rtez a, em convicção. No entanto os conhecimentos propria­
me nt e ditos de um indivíduo isolado nesse ou naquele campo nem
sempre são suficientes para que, apenas à base deles, se possa for­
m ar a c o n vicção da veracidade dessa ou daquela idéia e da con­
veni ên cia do pl a no de ação baseada nela. Por isto o homem vê-se
obrigado a ultrapassar os limites desses conhecimentos, ap oiando­
s e n o s conhecimentos de outros. A convicção interna, a certeza da

veracidade do c onh ecimento e da justeza da • ação prática é neces­


sária a o homem, mas nada têm em comum com a religião e seus
atributos .
A fé religiosa também compreende momentos de vo nt a d e , de
qxcitação. emocional, mas aqui eles desempenham papel bem d i­
ferente. Se na convicção baseada no conhecimento esses m o mento s
correspondem ao êxito na atividade prática, n a luta contra as fo rç as
dà n atureza , na dominação das precipitações naturais, no estabele­
ci mento de relações sociais justas, já na fé religiosa, na religião,
eles c o n du zem ao fanatismo, à perda absurda de energia humana
para a ob ten ç ão do irreal, do irrealizável, do ilusório.
Sabe-se pela história que as pessoas religiosas faziam os maio­
res sacrifícios pela religião, iam para a fogueira. a bastante co­
nhecido, ainda, o fato de que essas vítimas foram inúteis, absurdas,
de v ez que a sua fé não tinha terreno real, era de caráter ilusório.
Assim, à fé religiosa deve-se opor não só o conhecimento mas
ta mbém a c o n vicç ão, a certeza, baseada no conhecimento das leis
obj etivas. Ess a convicção, certeza, dispensa a religião, não se con­
verte nela, mas, ao contrário, a ela se opõe e a contradiz, e ntra
com ela no mesmo conflito que a ciência e a atividade prática do
homem .

347
Sem a transformação da idéia em convicção pessoal do homem
é simplesmente impossível a realização prática das idéias te6ricas.
Tomemos, por exemplo, a saída do homem ao cosmos aberto, rea­
lizada pela primeira vez pelo cosmonauta soviético Alexey Leônov.
O homem se lançou ao abismo do Universo . . . Ora, para isto foi
realmente necessária uma grande decisão. No entanto ela não se
parece com o passo desesperado do suicida que chega a assumir a
idéia de que a continuidade de sua existência é desesperadora, não
sendo, tampouco, o resultado de um psiquismo doentio, que fugiu
ao controle da consciência. Trata-se do passo de um homem ra­
cional, que realiza na prática uma idéia científica. Para empreen­
dê-lo, Leônov necessitava de fé consciente, de certeza ou convicção
da veracidade do plano traçado de realização dessa idéia, da se­
gurança da aparelhagem criada, de si mesmo e do feliz desfecho do
experimento. Não foi o apego cedo, fanático a uma idéia qualquer
da cosmon á utica mas a convicção consciente que lhe deu a neces­
sária decisão .
A transformação das idéias científicas em convicção pessoal é
é uma das tarefas mais importantes de qualquer aprendizado e educa­
ção do homem. Não se pode suplantar a fé religiosa sem substituí-la
pela convicção consciente n a veracidade das idéias científicas e na
atividade criadora do homem nelas baseada. A concepção de murido
científica, materialista dialética constitui, justamente, não só o c0nhe­
cimento que propicia a verdade objetiva mas também a convicção .
que suplanta a religião.
Algumas correntes da filosofia burguesa contemporânea, sobre­
tudo o positivismo e neotomismo, propagam por todos os meios a
tese da incompatibilidade entre as idéias científicas e a fé religiosa,
alegando que, uma vez que uma e outra tratam de diferentes objetos
- o conhecimento propicia a verdade sobre as leis do movimento da
matéria inanimada enquanto a fé religiosa se refere à alma humana,
aos seus mistérios recônditos, então eles, ao descreverem campos
diferentes, se completam mutuamente. Além do mais, os neotomistas
declaram que a ciência não só não refuta como ainda demonstra
a necessidade da fé religiosa sem a qual ela seria impotente contra
o mal causado pela razão e a técnica nela baseada. Os positivistas
apresentam uma afirmação mai s modesta : se é que o conhecimento
científico não confirma a fé religiosa, pelo menos não a refuta; eles
são independentes um do outro.
A filosofia marxista fala da compatibilidade do conhecimen to
científico não com qualquer fé e muito menos a religiosa, evidente-

348
mente, mas apenas com a fé consciente, com a conv1cçao que se
baseia nos dados da ciência e em sua demonstração, conduzindo o ho­
mem à realização prática das idéias científicas. Também aqui o
conhecimento e a convicção se relerem à mesma esfera: à dos fenô­
menos da realidade objetiva. O conhecimento os reflete criativamente,
enquanto a convicção é o meio necessário da ação prática que realiza
as idéias objetivo-verdadeiras.
Assim, a fé consciente, a certeza, expressa a convicção interna
do sujeito da veracidade da idéia, da justeza do plano de sua realiZa.­
ção prática. Nela o conhecimento objetivo-verdadeiro se converte em
convicção subjetiva, que impulsiona, motiva, dispõe psicologicamen­
te o homem para a ação prática que converte a idéia em vida. Nisto
reside o conteúdo gnosiológico do con ceito de fé consciente, de
convicção e sua necessidade para o desenvolvimento do processo
cognitivo.
A transformação do objeto ideal em fenômeno da realidade
objetiva pressupõe vivência subjetiva, à qual se incorpora não só a
consciência da convicção interior da verdade objetiva da idéia teórica
e dos meios de sua realização, ma s também todo o complexo de
desejos, sentimentos, emoções, que acompanham e dirigem a ação
prática, que criam em torno desta o necessário colorido subjetivo.
O homem não é máquina, embora a máquina tenha alguma
s emelhança com ele. A atividade prática dele não se assemelha ao
funcionamento dos autômatos, embora a ela seja inerente certo auto�
matismo. O homem cria autômatos justamente para libertar-se do
trabalho automático, maçante, cansativo, não-criativo .
Dizem que o autômato leva vantagem sobre o homem : não erra
influenciado por desejos e emoções, ao impacto repentino destes não
muda a ordem dada na realização de operações . Em certo sentido
pode-se concordar com isso. No entanto é incorreta a atitude diante
dos desejos e emoções do homem como diante de simples fonte de
erros ; não se pode absolutizar apenas um aspecto desses desejos e
emoções. As vezes as emoções, evidentemente, conduzem a erros na
atividade teórica e prática. Mas como se sabe, sem o ardor da alma
do homem, sem a influência do seu coração não surge nenhuma idéia
genial não se realiza nenhum plano, mesmo o mais brilhante. Por isto a
vivência dos fenômenos do mu ndo e suas representações na cons-
_ ciência do homem é elemento indispensável do trabalho criativo. No
efervescer da alma humana, n a vivência e conhecimento do mundo
cabe imenso papel à arte e ao belo em geral.
O problema não consiste em ser ou não a arte conhecimento
do mundo (o que é indiscutível ) , mas em ela existir ou não apenas

349
para o conhecimento do mundo ou se ela desempenha outras funçõe!I
na 'v ida social dos homens.
Opor a arte ao conhecimento carece, evidentemente, de qual­
quer sentido, pois a arte autêntica, realista, é um reflexo dos .fenôme­
nos da realidade. Na afirmação dessa tese cabe grande mérito à
estética materialista pré-marxista, sobretudo à estética democrático­
revolucionária russa do século XIX. O marxismo-leninismo torna
essa tese basilar n a compreensão da arte, no entanto não se detém
nela de vez que o conhecimento, embora constitua certa base, uma
importante função da arte, não esgota toda a essência desta; nenhum
conhecimento só determina a peculiaridade da arte enquanto forma
de consciência social. A ciência é igualmente conhecimento do mun­
do, além disso faculta a verdade objetiva concreta, com demonstra-
··

ções rigorosas.
Enquanto forma de conhecimento, a arte não está limitada por
nada, tudo . lhe é acessível na natureza e na sociedade; além do mais,
o artista pode tanto ele mesmo conhecer os fenômenos d a realidade
e descobrir o novo - e neste sentido exercer a função de pesquisa

científica - quanto usar os resultados acabados do conhecimento,


antariormente obtidos pela ciência e a arte . Mas a criação artística
enquanto conhecimento em nada essencialmente difere da científica,
nel.a não há n ada que em princípio sej a impossível na ciência, A
erudição sensorial do pensamento não é apenas admissível corno às
vezes ainda · é uma exigência do processo de desenvolvimento do
conhecimento científico, onde a imaginação é tão necessária quanto
na arte. Se, contudo, tomarmos corno especificidade da arte apenas a
expressão dos resultados do conhecimento sob forma pictórico-senso­
rial, e n t ão a arte poderá realmente afigurar-se uma forma de conhe­
cimento primitiva em comparação com a ciência. A evidência senso­
rial, por um lado, é necessária e, por outro, mina a capacidade do
pensamento humano para penetrar na essência do ser.
A especificidade da arte em sua relação com os fenômenos da
realidade, o seu papel na inter-relação prática de sujeito e objeto
consiste em que ela nií.o só apreende o mundo como também o viven­
da. Expressar a vivência do homem no processo de sua atividade
teórica e prática é tarefa da criação artística, e neste sentido a arte
ocupa seu lugar de destaque na interação prática de sujeito e objeto,
a qual tem como forma principal o trabalho, no qual se acumulam
as forças criativas do homem, suas esperanças, planos, fins .
Entender a essência e a função d a arte e da atividade artística
em geral implica em encontrar o lugar delas no trabalho, de onde se
inicia o futuro do homem.

350
Conforme demonstra a experiência da história, força nenhuma
pode deter a aspiraç ão do homem a tudo o que é mais elevado,
melhor, ao futuro, razão porque sempre permanece no homem a
necessidade de arte. É incontes t e que para o futuro está voltada
também toda a atividade prática do homem e a ciência nela baseada,
m as cada uma delas trabalha a seu modo em função dele, a seu
modo aborda o objeto do ponto de vista do movimento progressivo
da história. Atendendo aos interesses do futuro, a ciência apreend e
as leis objetivas, empenhando - s e em traduzi-las n a forma mais inde­
pendente poss ível do homem ( sistema de abstrações ) . Ao expressar
os resultados do conhecimento teórico, a ciência se empenha em
con cebê-los objetivos , indepen dentes do homem e da humanidade;
nisto reside a essência da verdade objetiva do conhecimento científi­
co. Quanto à vivência do mundo, que é dada na arte, ela é simpl es­
mente impossível sem a auto-expressão do homem; n ão se exclui o
humano do conteúdo da arte. Baseando-se no conhecimento do mun­
do, a arte o vivencia e expressa e ssa vivência do mundo pelo homem
em prol da aspiração a um progresso infin i to . Com esse fim ela se
vale de todos os meios possív eis contanto que sirvam à tarefa que
se nos apr esenta .
À arte cabe papel especial na aspiração do lwmem ao seu ideal
de vida. Por isto é n e cessário relacionar a arte não só a determinada
forma de conheci mento do mundo mas também a uma atitude espe­
cial do homem em face do mundo, ao vivenciamento e transforma­
ção deste em prol de um avanço progressista.
Diante disto surge a questão do critério da arte no mundo
atual, de sua essência de classe, da diferença entre arte e não-arte. ·
Isto é i mportante sobretudo agora, quando na sociedade burguesa
surgem correntes em face d as qu ais carece realmente de sentido o
emprego do conceito d e arte, poi s nelas não se vêem o homem nem
a h u manidade, a relação do homem com o mundo .
Para entender a função social e a especificidade da arte, seu
papel no conhecimento e transformação prátic a da realidade, exami­
nemos o s eguinte e xempl o : o pensamento humano penetrou nos m is­
t érios do mar e n o cosmos, em outros planetas muito antes de serem
construídos submarino s e espaçonaves à base de cálculos científicos.
A arte penetrou ali mediante seus recursos (o sonh o e a fantasia) .
É verdade que em ob ras de arte, especialmente nas obras de Júlio
Verne, havia muita coisa que posteriormente foi confirmada nos
dados da ciência, mas para nós· o valor delas não está nisto; sej a como
for, ninguém con stru iu o submarino orientado por um rm;nance de

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J úlio Verne e, ao dirigir-se a Marte, o homem não vai tomar como
fonte componente as obras de Herbert Wells.
A tarefa das obras de arte não é armar o homem com dados
científicos , digamos, sobre os turbilhões marítimos e as vastidões
cósmicas, mas levá-lo a vivendá-los, fixar a atenção dele nesses
dados, orientar a sua atividade no · sentido da apreensão teórica e
prática dos mesmos .
Ao expressar a vivência do mundo, a arte se vol ta para o pró­
prio homem ; seus interesses não são as vastidões cósmicas como tais
mas o homem em face delas , cs seus sentimentos e emoções, a
formação da personalidade humana que apreend e e transforma o
mundo. É como se a arte descobrisse um campo possível de atividade
do homem, o r i e nt asse os seus pensamentos, sentimentos e atividades
na obtenção do fim proposto, tornasse-o capaz de praticar as ações
necessária s para conquistar a natureza e transforma r o mundo
ambiente .
Não se deve pensar que isto é feito apenas por um tipo de arte
como a ficção artística : toda a arte autêntica, progressista, está diri­
gida ao homem, à formação do indivíduo, à motivação deste p ara
o trabalho criativo. E se essa ou aquela obra de arte assim não pro­
cede, ela não desempenha a sua função no movimento do homem
no sentido de uma nova realidade e se converte em simples entreten i­
mento, em brincadeira que está longe de ser sempre inofensiva. A
verdadeira arte deve, por um lado, não se separar da ciência, e, por
outro, desempenhar o seu papel esp f'cífico como meio de . representa­
ção artística da realidade, de conhecimento e transformação desta
pelo homem .
Dado que a arte está relacionad a com a influência emocional
sobre o h01nem, na sua motivação p ara a atividade, ela deve dispor,
possuir uma força para essa influência como a beleza, o belo. Sem o
belo, que suscita no homem a sensação de satisfação, prazer, a arte
não pode exercer a sua função social. No entanto, como já observa­
mos, não é a idéia como tal nem a beleza pura. não é apenas o belo
mas uma fusão orgânica deles que cria a imagem a r t í st i ca. A h i stória
conhece obras " ideológicas " carente s de artísticidade, e " formas
belas " sem idéia valorativo-social , sem conteúdo o qual o homem
deve experimentar. Nenhuma delas foi obra de arte autêntica, que
tenha deixado o mínimo vestígio perceptível na evolução do homem
ou na influência sobre ele. A chamada idéia pu ra pode ser obtida
somente na ciência, ao passo que as formas bel as puras, em jogos
infantis e em adornos, mas a arte autêntica, realista, não s e pode redu-

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zir quer à ciência, quer à ornamentação. pois tem su a tarefa e s e u
· fim na sociedade.
Por si só a " forma bela" não implica conteúdo, desempenha
apenas certa função sígnica que transmite uma idéi a ; ela pode ocultar
tanto uma idéia avançada, progressista, quanto reacionária. Por isto
atua emocionalmente não só a arte avançada · mas também a deca­
dente, que debilita o homem na luta contra as forças da natureza e a
sociedade exploradora, semeia o desânimo, impede-lhe a ação voltada
para a erradicação do mal, mina a sua fé na ciência, no progresso
e em s,u as próprias forças . :É nisto que reside o perigo daquelas obras
que não estão relacionadas com a expressão da idéia avançada da
époc a .
A arte avançada, progressista, deve forçosamente expressar,
transmitir essa idéi a e motivar o homem para a percepção, a vivên­
cia e a assimilação dela, para determinada ação que vise à mudança
do injustificável mundo da exploração e à consecução do fim alme­
jado. Não h á nem pode haver nenhuma arte estritamente " pura" ,
s e m princípio, na qual não s e toque, não se reflita de modo algum
a realidade existente. Por meio de formas belas, artísticas, a arte
atrai o homem para a atividade destinada ao aperfeiçoamento do seu
ser, à realização das tarefas que se lhe colocam e dos objetivos que
nem sempre e nem em todos os detalhes e leis básicas lhe são claros
mas que serão descobertos pelo conhecimento científico. A arte
autêntica, progressista, pronuncia sua sentença contra a realidade ca­
duca, em nossos dias representada pelo imperialismo, o capitalismo, o
colonialismo, e conclama à atividade teórica e prática de criação de
uma nova realidade, prepara o homem capaz de realizar as idéias
científicas avançadas da época.
Criar, à base das idéias, novos objetos, coisa e fenômenos que
como tais n ão existem na natureza significa humanizá-la, estabelecer
o nosso domínio sobre ela . No entanto cada coisa nova, cada desco­
brimento, invento, leva em si também alguma coisa que não tinha
sido prevista pela idéia, e essa coisa pode não só não servir ao homem
como ser uma força dirigida contra ele, como, por exemplo, o empre-
go da energia atômica com fins militares, etc. .
O domínio do homem sobre a natureza, a impressão da marca
de sua vontade sobre ela levou à mudança da superfície do nosso
planeta, d a Terra, à mudança dos mundos animal e vegetal e do
próprio homem. Não satisfeito com a Terra, o homem volta hoje
seus olhares para as infinitas vastidões d o Universo, para outros
planetas do sistema solar.

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No .entanto cada passo da civilização do homem gera novas
contradições e dificuldades que repetidas vezes é necessário superar.
Ao dominar a natureza, ao criar e gerar novos objetos e fenômenos,
o homem desperta novas potências ·com as quais d eve lutar de um
modo ou de outro. Neste caso o caráter contraditório dos resultados
da civilização, inclusive da revolpção técnico-científica, chega, no
capitalismo, a suscitar ceticismo entre as pessoas, desconfiança nas
forças do homem na luta com a natureza.
O êxito do homem na transformação da natureza exterior em
mundo por ele dominado depende do tipo de homem, do tipo de
sociedade em que ele vive. Ora, os honiens mudam a n atureza confor­
me as suas aspirações. Os fins a que eles se propõem ao chegarem
ao conhecimento e à transformação da natureza emanam do cará­
ter, da essência e dos fins da sociedade em que eles vivem, das re­
l ações nela vigentes .
Para conseguir pleno domínio sobre a s forças da natureza, o
homem deve mudar não só a natureza mas também a si mesmo, as
relações sociais, torná-las autenticamente humanas, sem exploração
e opressão. Quando no mundo for abolida a exploração do homem
pelo homem, as pessoas terão uma · atitude diferente, racional, humana
face à 11 - �ureza, transformando-lhe o s processos e fenômenos em
mundo verdadeiramente humano.

Composto e impresso por


SOLIVRO GRAFICA E EDITORA LTDA.

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