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PSICOLOGIA ARGUMENTO ARTIGOS

ISSN 0103-7013
Psicol. Argum., Curitiba, v. 30, n. 68, p. 75-85, jan./mar. 2012

[T]

Relações de apego no contexto da institucionalização na infância e


da adoção tardia
[I]
Attachment in the context of institutionalization in the infancy and in late adoption

[A]
Lília Iêda Chaves Cavalcante[a], Celina Maria Colino Magalhães[b]
[R]

Resumo
[a]
Docente do Programa de Estudos apresentam evidências de que são vários os fatores que podem influenciar a qualidade
Pós-Graduação em Teoria e
do apego entre pais e filhos adotivos, em particular quando isso envolve crianças com histó-
Pesquisa do Comportamento da
Universidade Federal do Pará rico de longa permanência em abrigos e instituições similares. O tema tem sido ainda pouco
(UFPA), professora adjunta da explorado pela literatura científica, considerando que são raros os estudos que propõem a
Faculdade de Serviço Social,
discussão da formação do apego nesse contexto específico. Entre as realizadas nas últimas
Belém, PA - Brasil, e-mail:
liliaccavalcante@gmail.com décadas, está a sugestão de que são importantes os efeitos para o desenvolvimento do tempo
que a criança passou no convívio com figuras de referência na família de origem e em institui-
[b]
Docente do Programa de
ções de acolhimento infantil antes de ser adotada. Desse modo, estudos têm apresentado um
Pós-Graduação em Teoria e
Pesquisa do Comportamento da conjunto de fatores que podem favorecer ou inibir a formação do apego nessas relações, mas
Universidade Federal do Pará poucos destacam a disponibilidade da criança adotada tardiamente, assim como de seus novos
(UFPA), bolsista de produtividade
cuidadores, para essa forma de vinculação. Este artigo cumpre assim com o propósito de apre-
do CNPq, Belém, PA - Brasil,
e-mail: celina.magalhaes@ sentar referências bibliográficas que ilustram a produção sobre o tema e oferecem subsídios
pesquisador.cnpq.br para esse debate na contemporaneidade. [#]
[P]
Recebido: 05/04/2011 Palavras-chave: Apego. Institucionalização na infância. Adoção tardia. [#]
Received: 04/05/2011 [A]
Aprovado: 14/07/2011 Abstract
Approved: 07/14/2011
Studies provide evidence that there are many factors that can influence the quality of attachment
between parents and adopted children, particularly when it involves children with a history of
long-stay in shelters and similar institutions. The theme has yet been little explored by the scien-
tific literature, whereas there are rare studies that propose discussion about the formation of at-
tachment on such specific context. Among the studies held in recent decades, there is a suggestion
that, for a child, the effects of time she spent, before being adopted, in contact with important
figures from the origin family and in children shelter institutions are important for the develop-
ment for that child. Thus, studies have shown a set of factors that might promote or inhibit the
formation of attachment in such relationships, but a few of them highlight the availability of a
late-adopted child, as well as of her new caretakers for this form of binding. This way, this paper
complies with the purpose of presenting references that illustrate the production on the issue and
provide input to this debate in contemporary society. #]
[K]

Keywords: Attachment. Institutionalization in childhood. Late adoption. #]

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76 Cavalcante, L. I. C., & Magalhães, C. M. C.

Relações de apego na infância: Notas introdutórias do vínculo entre animais inspirou estudos seme-
lhantes com humanos e que até hoje são referên-
Entre estudiosos do desenvolvimento humano, cias importantes no meio científico, entre os quais
com maior ou menor ênfase, a infância tem sido apre- se deve dar merecido destaque ao conjunto da obra
sentada como um período que engloba vários e com- de Mary Ainsworth, resultado de uma fecunda par-
plexos processos: crescimento orgânico e maturação ceria com John Bowlby, a partir da década de 1950
neurológica, organização do pensamento e raciocínio, (Bretherton, 1992).
percepção e expressão da emoção, interação e rela- Entre 1953 e 1967, Mary Ainsworth realizou es-
ção social (Bowlby, 1997; Bronfenbrenner, 1996). tudos precursores sobre o apego entre mãe e filho.
Nessa área do conhecimento, estudos teóricos e Primeiro com bebês na faixa etária de 1 a 24 me-
empíricos sobre desenvolvimento infantil têm pri- ses, na África; depois, em Baltimore, nos EUA, com
vilegiado o que tem sido considerado como talvez a crianças que tinham entre 10 e 24 meses. O experi-
mais importante das propriedades humanas: a ca- mento, que ficou conhecido no mundo inteiro como
pacidade de construir vínculos e relações de apego. Situação Estranha, procurou registrar comporta-
Para Hrdy (2001), os humanos, assim como mentos que promoviam a proximidade entre mãe e
outras espécies animais, nascem biologicamente filho, constatando que os sinais emitidos pela crian-
preparados para estabelecer e manter uma ligação ça eram dirigidos predominantemente à mãe. Após
emocional, forte e duradoura com a mãe ou qual- várias repetições do mesmo experimento, ficou cla-
quer outra figura de apego primário. As crianças ro que a maioria dos bebês, cerca de 60%, brinca e
já nascem com a necessidade de se apegar. Os se- explora o novo ambiente de maneira mais tranquila
res humanos são, por assim dizer, nascidos para o e ativa, quando na presença da mãe. Contudo, os be-
apego. É o que podemos considerar como a dimen- bês reagem de maneira diferente às circunstâncias
são biológica do vínculo. Das ligações primárias criadas pelo experimento – o afastamento da mãe e
depende a sobrevivência do filhote humano, princi- a proximidade do estranho. Em geral, demonstram
palmente nos primeiros anos de vida, pois requer satisfação e alívio diante da presença da mãe, mas,
ajuda para ser alimentado, protegido do frio e calor por vezes, manifestam raiva ou indiferença ao reen-
excessivo, mantido próximo e a salvo de estranhos contrá-la após o período de separação.
que ofereçam risco à sua segurança. Os resultados obtidos permitiram categorizar
Assim, Bowlby (1997) compreende que entre os diferentes tipos ou padrões de apego quanto ao
mamíferos, sobretudo os primatas, – incluindo os hu- grau de confiança e segurança presente na relação
manos –, o primeiro e mais contínuo dos vínculos é o entre mãe e filho. O apego foi definido basicamen-
estabelecido entre a mãe e seu filho pequeno, entre a te como seguro ou inseguro, embora existam outras
criança e seu cuidador habitual, prolongando-se em variações de qualidade – indiferente, ambivalente
geral da infância até a vida adulta. Nessas condições, ou desorganizado. No apego seguro, o mais comum
entre os parceiros, existe o que pode ser definido, se- nas situações pesquisadas até hoje, a criança busca,
gundo o autor, como uma inclinação natural para de forma moderada, conforto e contato físico com a
manterem-se próximos um do outro. Nesse sentido, a mãe, mas especialmente ao reencontrá-la após um
vinculação se estabelece e se consolida pela proximida- período de afastamento. A criança demonstra cla-
de, pela convivência contínua. A formação do vínculo é ramente que prefere a mãe ao estranho. No apego
essencial e torna possível, na eventualidade da separa- inseguro-esquivo, a criança evita o contato com a
ção dos parceiros, disposição para recompor os laços mãe, principalmente quando se reúne a ela após a
afetivos que foram desfeitos. Por isso, argumenta que separação. Não resiste às tentativas da mãe em fa-
a separação entre pares vinculados não ocorre comu- zer contato, mas também não busca a proximidade.
mente sem resistências – o mais fraco agarra-se ao mais A criança trata de forma semelhante a mãe e o es-
forte buscando proteção contra o elemento estranho, tranho. No apego inseguro-desorganizado, a criança
especialmente quando se trata da díade composta por apresenta comportamento contraditório, confuso
mãe e filho. ou apreensivo em relação ao contato com a mãe.
Em que pese a existência de críticas à ênfase Quando a reencontra após a separação, pode acei-
dada por essas formulações iniciais à base instintiva tar o conforto oferecido por ela e, ao mesmo tempo,
das ligações humanas, a compreensão da natureza evitar manter qualquer contato visual.

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Os efeitos da separação ou perda da figura de Entre os pesquisadores que se destacam no trato


apego investigados por Bowlby (1995) e Ainsworth científico dessa questão, existe relativo consenso
(1983), contribuíram para deixar claro o valor das em torno da ideia de que, nos primeiros anos de
figuras primárias de apego para o desenvolvimento vida, são graves as sequelas físicas, cognitivas, afe-
humano, além de discutir questões que dizem res- tivas e sociais derivadas do tempo passado em
peito à situação de crianças encaminhadas a insti- instituições asilares, uma vez que a criança é
tuições precocemente e tempos depois acolhidas afastada do seu ambiente familiar e passa a con-
em lares adotivos. Em todo o, mundo essa é uma viver com pessoas e situações estranhas, o que pode
realidade secular e é possível encontrar ainda hoje resultar em intensas manifestações emocionais
milhares de crianças que passam os primeiros dias, como angústia e medo. Se o tempo passado longe
meses e até anos de sua infância em instituições de de casa for demasiadamente longo, a possibili-
abrigo, sob a responsabilidade de profissionais que dade das sequelas decorrentes dessa experiên-
se revezam na tarefa de lhes prover cuidados subs- cia serem mais graves e persistentes tende a ser
titutos, que funcionam como uma alternativa à con- ainda maior, como mostram observações clínicas
vivência em família. e pesquisas longitudinais que acompanharam a
Por essas e outras razões, considera-se que os colocação de crianças em instituições, e depois,
limites e as possibilidades para a construção de a sua convivência em lares adotivos.
novos vínculos afetivos e a formação do apego en- Alguns desses estudos foram realizados há mais
tre pais e filhos adotivos devem ser discutidos à de meio século, mas permanecem atuais quando se
luz da compreensão teórica dos efeitos da insti- consideram as contribuições apresentadas ao deba-
tucionalização prolongada na chamada primeira te do tema em pauta. Outros, mais recentes, relati-
infância para a criança, sob pena de se subtrair vizam a pertinência dos estudos precursores para a
dos fundamentos dessa análise aspectos outros compreensão do fenômeno na contemporaneidade,
que são decisivos face às particularidades de sua difundindo a ideia de que toda e qualquer sequela
trajetória desenvolvimental. pode ser prevenida ou minimizada a partir de fatores
que protegem e promovem o desenvolvimento da
criança durante a sua prolongada permanência
Institucionalização na infância e suas implicações em instituições, mas principalmente após essa
para a formação do apego experiência, em que as oportunidades de vinculação
e apego com novos cuidadores em um lar adotivo
No Brasil (Ipea, 2004), assim como em várias podem ser decisivas para a qualidade do desen-
regiões do mundo (Unicef, 2010), a separação volvimento esperado.
involuntária dos pais ou a exposição à violência, Nesse sentido, estudos divulgados a par-
à doença, ao abuso e à exploração, dentro e fora tir de meados do século passado, como os tra-
do lar, são situações frequentes e servem como balhos de Bowlby [1976] 1995, ([1979] 1997),
justificativa para a longa permanência de crian- Bronfenbrenner ([1994] 1996), Freud e Burlingham
ças em instituições abertas ou fechadas, a exem- (1960), Provence e Lipton (1962), Spitz ([1965]
plo dos abrigos, orfanatos, internatos, hospitais 1998), Tizard e Hodges (1978), guardam impor-
e unidades psiquiátricas. tância histórica na medida em que impulsionaram
De acordo com Roy, Rutter e Pickles (2000), a o debate sobre os efeitos do cuidado institucional
despeito do relativo consenso entre os especialistas precoce e prolongado para a aquisição de importantes
de que a privação do cuidado parental nos primei- competências cognitivas, onde se ressalta o seu
ros anos de vida pode oferecer riscos ao desenvol- processo de desenvolvimento sócio-emocional.
vimento infantil, observa-se que as sociedades em Entre os precursores do debate sobre esse tema
geral ainda reforçam a ideia de que a colocação da está Spitz ([1965] 1998), que, na primeira metade
criança em instituições de abrigo pode ser a única – e, do século XX, demonstrou que situações de privação
por vezes, a melhor – alternativa em países atingi- afetiva, total ou parcial, levam muitas crianças cui-
dos por guerras, epidemias, catástrofes naturais, ní- dadas em instituições a manifestar uma espécie de
veis extremos de pobreza e precariedade das redes síndrome, um conjunto de sintomas de natureza física
de apoio social. e psíquica que afetam o desenvolvimento da criança.

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Nesses termos, a chamada Depressão Nosológica alertar para os prejuízos deixados por essa expe-
está relacionada à presença de um quadro clínico riência ao desenvolvimento infantil.
que envolve, inicialmente, choro insistente, perda Em que pese críticas sofridas ao longo do tem-
progressiva de peso, evoluindo para a recusa do po, o conjunto dos trabalhos citados nos parágrafos
contato com outras pessoas, perturbações no ritmo anteriores serve ainda como referência para estu-
do sono, maior vulnerabilidade a doenças infecto- dos mais recentes sobre a condição psicossocial
-contagiosas graves, e, em casos extremos, possibi- da criança institucionalizada, mas principalmente
lidade de poder haver manifestação de rigidez facial quanto aos limites e às possibilidades do desenvol-
e outros problemas neurológicos. vimento humano em contextos marcados pela pri-
Freud e Burlingham (1960) também realizaram vação material e afetiva.
estudo em berçários que acolhiam crianças sem Entre os representantes de uma perspectiva eco-
lar e privadas do convívio com os pais. As autoras lógica acerca dos efeitos da longa permanência em
dedicaram especial atenção ao estudo dos efeitos instituições para a condição psicossocial da criança,
do stress gerado pela privação dos cuidados mater- Bronfenbrenner ([1994] 1996) resgata a impor-
nos para o desenvolvimento dos chamados Órfãos tância dos precurssores nesse debate. Traz novas e
da Guerra, analisando com propriedade a extensão importantes contribuições ao argumentar que o po-
dessas sequelas psicológicas e os recursos ofere- tencial desenvolvimental das crianças cuidadas em
cidos pela terapia psicanalítica infantil para sua instituições aumenta na razão direta em que o meio
reparação. Na discussão do conteúdo de suas ob- físico e social favorece a assimilação de padrões de
servações clínicas deixaram claro a pertinência dos interação recíproca com seus pares e cuidadores
achados de outros estudos psicanalíticos sobre a que desempenham papel parental, assim como abre
traumática experiência da institucionalização pro- espaço para a construção de relacionamentos diá-
longada e suas implicações para a dimensão afetiva dicos primários cada vez mais complexos, como de-
das relações da criança com seus cuidadores e pa- vem ser definidas as relações de apego.
res, realizados mais ou menos no mesmo período. Na perspectiva da ecologia do desenvolvimento,
É o caso do trabalho publicado por James Bronfenbrenner (1996) considera que a família e
Robertson, em 1948, que realizou avaliação diag- as instiuições infantis constituem-se contextos pri-
nóstica sobre a situação da saúde mental de crian- mários, abrangentes e complexos, no qual a criança
ças institucionalizadas, apoiado pela Organização realiza atividades, constrói relações e desempenha
Mundial da Saúde. O estudo envolveu crianças de papéis que podem beneficiar em maior ou menor
ambos os sexos, com 2 e 3 anos, que tinham em co- medida o curso do desenvolvimento. Isso significa
mum o fato de terem sido cuidadas fora do lar por dizer que a criança não interrompe a sua trajetória
um determinado tempo. Ele as observou antes, du- de desenvolvimento a partir do momento em que
rante e depois do retorno ao convívio com a família. deixa a convivência com a família de origem e passa
As crianças que participaram da pesquisa permane- a viver sob os cuidados de uma instituição. Ao con-
ceram durante semanas ou até meses em ambien- trário, como contexto ecológico abrangente, a insti-
tes institucionais, como hospitais ou entidades de tuição oportuniza à criança o envolvimento em múl-
assistência social, sempre em regime de internação tiplas atividades, papéis e relações que, em maior
e com o convívio de profissionais que se revezavam ou menor medida, exercem influência sobre a sua
em seus cuidados diários, mas sem a presença de trajetória desenvolvimental como um todo.
uma mãe-substituta estável. Por seu turno, Zeanah et al. (2003) chamam
Na esteira dessa polêmica, em 1952, John Bowlby atenção para o fato de que viver e crescer em uma
publicou obra que apresenta e discute questões re- instituição do tipo asilar implica em acumular ex-
lacionadas à privação do contato físico entre mãe e periências que têm o poder de afetar o desenvol-
filho e as implicações afetivas dessa separação nos vimento global da criança, principalmente quando
primeiros anos da infância, lançando luzes sobre a ocorrem nos primeiros 36 meses de vida. O perí-
investigação de situações nas quais a criança recebe odo que se estende da concepção até a idade de
os cuidados primários em ambiente institucional, três anos é particularmente decisivo para o desen-
mas não consegue estabelecer trocas afetivas e con- volvimento, uma vez que são processadas rápidas,
tínuas com os cuidadores substitutos, procurando complexas e profundas mudanças na formação da

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mente da criança. É precisamente nessa fase da vida psicológico da criança institucionalizada, ora os
que a criança passa de um quadro de completa de- efeitos perceptíveis da privação afetiva para a se-
pendência dos cuidadores primários em razão de gunda geração. Na trajetória do desenvolvimento da
limitações de ordem motora, verbal e cognitiva, a criança com histórico de institucionalização prolon-
uma refinada capacidade de entendimento e partici- gada e adoção tardia (após os dois ou três anos de
pação ativa em situações regidas por regras sociais. idade), estudos mostram que tais sequelas estão ge-
Entende-se, assim, que o afastamento da famí- ralmente associadas à privação afetiva associada ao
lia e a permanência da criança em instituição que cuidado material e emocionalmente negligente de-
ofereça pouco estímulo ao funcionamento das es- dicado à criança no tempo em que conviveu com a
truturas cerebrais, são experiências que podem li- sua família de origem e/ou na instituição onde pas-
mitar os notáveis avanços desenvolvimentais espe- sou parte significativa da infância. De maneira geral,
rados nessa fase da vida. Com base nos achados de estudos atuais confirmam a tese já existente de que
Zeanah et al. (2003), é possível notar que sequelas a privação afetiva traz, em alguma medida, prejuízos
derivadas de um longo e precoce período de priva- ao desenvolvimento físico, cognitivo e emocional,
ção costumam ser mais graves e persistentes se, e contudo definem hoje a hipótese de que a extensão
somente se, o ambiente institucional for limitado desses efeitos dependerá dos riscos potenciais da
em sua capacidade de gerar estímulos à criança exposição da criança a um padrão de acolhimento
que está em uma fase da vida particularmente sen- e cuidado institucional, ao mesmo tempo, precoce,
sível ao aprendizado social e à constituição de um exclusivo e prolongado.
padrão afetivo. Os achados e hipóteses de estudos realizados
Sobre a questão, Dozier, Stovall, Albus e Bates nos dez últimos anos assumem, portanto, clara
(2001) defendem que a longa permanência em ins- importância para a discussão proposta neste arti-
tituições de acolhimento pode resultar em riscos ao go, por permitirem a compreensão de como e por
desenvolvimento global da criança, e, por isso mes- que os processos de institucionalização prolonga-
mo, deve ser evitada. Contudo, os riscos implicados da e adoção tardia estão comumente imbricados e
nessa experiência assumem contornos mais preo- exercem influência na capacidade da criança sob
cupantes apenas quando limitam a capacidade da essas condições desenvolvimentais, construir e
criança de criar e manter relações estáveis e dura- manter relações de apego ao longo da infância e
douras, seja com profissionais responsáveis por sua nos anos seguintes.
rotina de cuidados, seja com seus pares no intenso Entre as pesquisas que contribuem para esse
convívio no cotidiano da instituição. debate, faz-se referência especial aos estudos que
Na presente década, pesquisas começam a dar avaliam o curso do desenvolvimento de crianças
um passo à frente na compreensão da complexida- adotadas a partir de instituições sediadas no Leste
de que envolve os processos de institucionalização Europeu, Rússia e outros países onde muitas famí-
e seus efeitos imediatos e em longo prazo para o lias enfrentam adversidades sociais graves, com-
desenvolvimento humano. Estudos comparam hoje pondo uma população que apresenta um leque de
diferentes aspectos do desenvolvimento de crian- problemas relacionados, ora à privação do cuidado
ças que, em seus primeiros meses ou anos de vida, parental, ora às características hostis que marcam a
foram cuidadas em instituições e, depois, em lares vida institucional.
adotivos. Em sua maioria, são estudos comparativos Em estudo longitudinal realizado por O’Connor,
e longitudinais que têm em comum o fato de traba- Rutter, Beckett, Keaveney e Kreppner (2000), em
lharem com amostras de crianças com histórico de conjunto com pesquisadores do English Romanian
institucionalização precoce e prolongada, como res- Adoptees Study Team (ERA), avaliam a extensão dos
gatam Sigal, Perry, Christopher, Rossignol e Ouimet efeitos da privação severa sobre o desenvolvimento
(2003) e Zeanah, Smyke, Koga e Carlson (2005) a da criança nos primeiros anos de vida. Nesse estu-
partir de minuciosa revisão da literatura disponível do, em particular, a equipe de pesquisadores traba-
sobre o tema. lhou com três amostras de crianças adotadas por
Assim como os precursores na discussão des- famílias residentes no Reino Unido, entre 1990 e
se tema, pesquisas recentes evidenciam ora a pre- 1992. No primeiro, grupo selecionaram 165 crian-
sença de déficits duradouros no funcionamento ças (de um total de 324) com histórico de privação

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severa de ordem material e emocional. Após rigoro- apresentaram sempre os escores mais baixos. Na
sa avaliação dos pesquisadores, a amostra final foi Escala de Denver, por exemplo, 18% das crianças
composta por 111 crianças adotadas de 0 a 24 me- expostas há mais tempo aos riscos próprios do cui-
ses de idade, sendo 51% dos participantes do sexo dado institucional, negligente e exclusivo, alcança-
masculino. No segundo grupo, estavam 48 crianças ram pontuação inferior a 70.
romenas também adotadas por famílias do Reino Os resultados indicam que parte das crianças
Unido, na faixa etária de 24 a 42 meses, com pre- expostas à privação severa no início da vida apre-
domínio do sexo feminino (65%). O terceiro grupo sentou déficits cognitivos mais elevados quando
era constituído por um contingente de 52 crianças, comparadas as que não haviam tido essa experiên-
oriundas do Reino Unido, que não possuíam em seu cia, ainda que os pesquisadores tenham notado
histórico experiência de privação severa anterior. expressiva variabilidade em termos das diferenças
Independente da idade em que foram adotadas individuais nos escores referentes à avaliação reali-
as crianças participantes da pesquisa, a maioria foi zada aos de seis anos de idade, fato que talvez esteja
encaminhada à instituição nas primeiras semanas associado aos benefícios derivados do cuidado no
de vida, apenas um pequeno número convivera an- pré-natal e influências genéticas.
tes em ambiente familiar. Em geral, as crianças pes- Em que pese reconhecerem a importância desses
quisadas estavam severamente desnutridas e apre- achados, para O’Connor, et al. (2000) e pesquisado-
sentavam as marcas do cuidado negligente recebido res do ERA, não seria possível afirmar de forma con-
em instituições romenas. clusiva que a deterioração e os avanços no desen-
Os procedimentos da pesquisa que objetivavam volvimento físico e cognitivo das crianças avaliadas
submeter à avaliação o desenvolvimento global guardam correlação significativa com a duração da
das crianças e comparar resultados apresentados privação (se foi longo o tempo de permanência na
pelas amostras, foram os seguintes: 1) Medidas instituição ou não) ou ainda o tempo de convivência
Antropomórficas (registra peso, altura e circun- em família substituta (se a adoção ocorreu tardia-
ferência da cabeça); 2) Índice Global Cognitivo mente ou não). Para esses autores, assim como para
(analisa aspectos como percepção, memória, ex- muitos dos por eles citados, outras variáveis preci-
pressão verbal e quantitativa por meio da Escala sam ser consideradas para explicar de maneira con-
de McCarthy, 1972 e Merril-Palmer, ANO); 3) sistente alterações no curso do desenvolvimento de
Questionário Revisado de Denver (recupera relatos crianças com histórico de privação severa e cuidado
parentais quanto a alterações nos comportamentos institucional prolongado.
sociais, linguagem, psicomotricidade fina e gros- O trabalho de Ames (1997) amplia o leque dessas
sa). Do ponto de vista qualitativo, outras medidas análises ao sinalizar os elementos que precisam ser
foram ainda utilizadas pelos pesquisadores: per- considerados na avaliação das trajetórias desenvol-
cepção dos pais adotivos quanto à manifestação de vimentais dessas e outras tantas crianças adotadas.
problemas comportamentais na fase pré-escolar, a Para a autora, que estudou detidamente o proces-
frequência às aulas e o tipo de instituição de ensino so de adaptação de crianças romenas adotadas por
que a criança passou a frequentar no Reino Unido famílias em países de cultura anglo-saxônica, entre
(pública ou privada). 1990 e 1991, entre outros fatores que podem ter
O experimento revelou avanços na evolução dos contribuído para atenuar os efeitos da longa espera
dados antropomórficos e na aquisição de habilida- por uma família em instituições asilares, o contato
des cognitivas entre as crianças que compunham os regular com brinquedos e atividades lúdicas deve
três grupos de adotados. Foram considerados dados ter sido decisivo para a melhoria da qualidade dos
da avaliação feita no momento em que ingressaram cuidados recebidos no período.
no Reino Unido e os escores obtidos em nova afe- Estudos têm mostrado que a brincadeira facilita
rição feita aos 4 e 6 anos a partir de uma bateria a elaboração pela criança de sentimentos e emoções
de testes e relatos parentais. Entretanto, quando intensos, tais como o medo, a raiva e a tristeza, per-
os pesquisadores observaram o desempenho das mitindo alargar as fronteiras do autoconhecimento
crianças em todas as medidas de avaliação do de- e identificar limites e recursos próprios para lidar com
senvolvimento, as que foram colocadas tardiamente essas manifestações emocionais. Por meio da brinca-
em lar adotivo, ou seja, após os dois anos de idade, deira, a criança sente-se a vontade para ex­pressar

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verbalmente aspectos do seu universo afetivo, com- primárias para o desenvolvimento e a atualidade do
preendendo comportamentos que traduzem seu debate acerca dos efeitos da privação afetiva que
grau, a sua angústia diante de privações de toda está associada a um padrão de cuidado institucio-
ordem, como também os mecanismos de supera- nal, prolongado e exclusivo, na fase inicial da vida.
ção que a tornam tão resiliente quanto possível face Essas são, portanto, questões inexoravelmente liga-
às condições adversas presentes em seu ambiente das entre si.
imediato. Sob a ótica de Ames (1997), a convivência
em instituições que oportunizavam experiências
lúdicas que favorecem sensações de prazer, confor- O apego entre pais e filhos em situações
to e segurança, aproximando afetivamente adultos de adoção tardia
e crianças, provavelmente aumentou a chance da
prevenção de graves sequelas cognitivas e emocio- Estudos têm mostrado que bebês adotados que,
nais na população de crianças estudada por ela e desde os primeiros meses de vida, receberam os cui-
outros autores. dados primários por parte de pessoas com as quais
Esses e outros trabalhos de autores como não mantêm vínculos familiares, provavelmente têm
O’Connor et al. (2000) e Ames (1997), definem, diante de si o desafio da formação do apego e do laço
neste artigo, as bases para uma compreensão alar- afetivo que os unirá aos seus novos cuidadores.
gada da influência que podem ter experiências an- Em geral, quando são deixados em instituições por
teriores de privação severa na adaptação da criança muito tempo, por vezes desde o nascimento, os be-
ao lar adotivo, onde se inclui a sua disponibilidade bês adotados experimentaram antes condições re-
para a construção de novos vínculos afetivos, assim conhecidas como emocionalmente problemáticas,
como os desafios postos por esse processo em ter- em particular a interrupção nas relações estabele-
mos da superação por pais e filhos dos efeitos gera- cidas com seus cuidadores primários na família ou
dos pela prolongada exposição à pobreza e a convi- em ambiente institucional.
vência em ambientes com pouca oferta de estímulos Especificamente sobre essa questão, Zeanah,
físicos e sociais. Smyke, Koga e Carlson (2005) realizaram estudo
Percebe-se, assim, que a discussão sobre os efei- que examinou a qualidade do apego em dois grupos
tos da privação severa para a adaptação posterior da de crianças que residiam em Bucharest, na Romênia.
criança às condições apresentadas pelo lar adotivo O primeiro era formado por 95 crianças cuidadas
deve envolver outras questões importantes: a vali- exclusivamente em ambiente institucional. O outro
dade da hipótese que prevê a existência de períodos grupo reunia 50 crianças que nunca haviam sido
críticos do desenvolvimento que favorecem a aqui- institucionalizadas, tendo convivido em ambiente
sição de certas habilidades cognitivas e sociais; os familiar desde o nascimento. As crianças seleciona-
limites da resiliência infantil em contextos marcados das eram de ambos os sexos e tinham idades entre
por condições material e emocionalmente adversas; 12 e 31 meses. Ao longo da duração da pesquisa, fo-
a existência de mecanismos pelos quais experiências ram realizadas entrevistas estruturadas com os cui-
precoces podem se constituir em fatores de risco dadores primários dessas crianças e procedimen-
para o amadurecimento psicológico da criança. tos do experimento elaborado por Ainsworth, Bell
O pioneirismo desses primeiros trabalhos teve e Donelda (1983), mundialmente conhecido como
certamente o mérito de levantar questões que per- “Situação Estranha”.
manecem atuais entre pesquisadores contempo- Nesse estudo, na ausência dos pais, os pesquisa-
râneos. Entre tantas, destaca-se: Quais as impli- dores procuraram identificar quem eram os cuida-
cações da interrupção dos cuidados em família e a dores habituais por quem as crianças manifestavam
longa permanência em ambiente institucional para clara preferência. Os resultados demonstraram que
a formação de um padrão de apego emocionalmen- as crianças que recebiam os cuidados primários,
te seguro a partir do momento em que a criança exclusivamente em instituições assistenciais, com-
passa a conviver em lares adotivos? punham o grupo que apresentou maior dificuldade
Talvez o primeiro passo para se buscar possí- para se vincular aos seus cuidadores e apresentar
veis respostas a essa e outras questões esteja no comportamentos associados à formação e organiza-
reconhecimento de que a importância das ligações ção do apego. Zeanah et al. (2005) verificaram ainda

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82 Cavalcante, L. I. C., & Magalhães, C. M. C.

que apenas 22% das crianças que se encontravam reconhecendo-as como úteis na sugestão de hipó-
institucionalizadas por ocasião do experimento de- teses teóricas que podem esclarecer como se dão as
senvolveram estratégias de apego em situações de relações de apego entre pais e filhos adotivos com
interação com cuidadores por quem demonstravam histórico de institucionalização nos primeiros anos
algum nível de proximidade ou preferência. Já entre da infância.
as crianças que eram cuidadas exclusivamente em Em qualquer contexto relacional, sabe-se hoje,
ambiente familiar, esse percentual foi mais elevado, a questão da qualidade do apego é considerada
aproximadamente 78% desenvolveram estratégias muito importante pelos pesquisadores da área da
para a formação do apego. As crianças que convi- Psicologia e afins, porque reflete a qualidade da re-
viam com seus pais apresentaram diferenças signi- lação da criança com quem dela cuida no cotidiano,
ficativas na quantidade e na qualidade do contato além de que comumente está associada à função in-
com seus cuidadores, o que deve ter sido decisivo terpessoal que ela irá desenvolver posteriormente.
do ponto de vista emocional para a formação do pa- Em revisão à literatura que discute o tema, Dozier
drão de apego seguro em índices mais elevados do et al. (2001) verificaram que as crianças que desenvol-
que os encontrados no grupo que recebia atenção vem apego seguro com seus cuidadores primários
somente de cuidadores profissionais. mostram-se mais competentes na habilidade de re-
Igualmente, para Dozier, Stovall, Albus e Bates solver problemas posteriores, mais independentes
(2001), existem hoje evidências empíricas suficien- e confiantes com professores e outros pré-escola-
tes de que essas experiências prévias podem, em res, mais dispostas aos comportamentos interativos
alguma medida, diminuir as chances dos filhos ado- com seus pares na idade escolar do que outras que
tivos construírem relações de confiança com seus vivem em ambientes pobres em estímulos para a in-
novos pais e cuidadores, o que não significa exata- teração social e a vinculação afetiva. Inversamente,
mente eliminá-las. Sobre a polêmica que gira em concluíram que crianças com experiência de apego
torno desse debate, a literatura sobre o tema mos- desorganizado na relação com seus cuidadores pri-
tra que, mesmo em condições consideradas pou- mários e pessoas de referência apresentaram mais
co favoráveis do ponto de vista social e emocional frequentemente comportamento agressivo com seus
à formação do vínculo e à manifestação do apego, pares e sintomatologia dissociativa evidenciada no
crianças adotadas conseguem organizar seu com- decorrer da infância.
portamento de apego. Isso em razão da presença de Para tornar mais consistentes e válidos os acha-
variáveis fortemente relacionadas ao processo de dos científicos relativos às experiências de apego
vinculação, em que tem sido destacada pelos auto- vividas em diferentes contextos relacionais, Dozier
res a disponibilidade de seus novos cuidadores para et al. (2001) afirmam que tem sido investigada a
a vivência desse tipo de experiência. qualidade do apego de crianças com cuidadores que
Dozier et al. (2001) consideram que, ainda que foram definidos pelos pesquisadores como não bio-
existam fortes evidências de que a formação do ape- lógicos, e que foram, ora adotadas logo após o seu
go esteja relacionado de uma ou de outra forma às nascimento, ora mantidas por longo período em
sequelas deixadas pelo longo tempo de privação afe- instituições como abrigos e orfanatos. Entende-se
tiva ao qual a criança esteve exposta antes e durante que essas investigações têm sido úteis por sugeri-
a sua permanência em instituições asilares, poucos rem, no mínimo, o nível de complexidade que envol-
são os estudos dedicados especificamente ao exame ve a formação de novas relações de apego em subs-
da natureza do apego formado por crianças adota- tituição as que eram antes mantidas pela criança em
das com seus novos cuidadores. De acordo com os períodos anteriores de sua vida.
autores, de maneira geral, esse é um tema ainda Com base em dados que revelam as condições
pouco explorado na literatura científica, quando extremamente desfavoráveis ao cuidado infantil em
se toma como referência a quantidade de vezes em orfanatos na Romênia, Dozier et al. (2001) chamam
que crianças de diversas nacionalidades são adota- atenção para a experiência de crianças que cresce-
das em seu próprio país ou por outros de culturas ram nesse contexto específico e que depois passa-
distantes. Graças a isso, as publicações destinadas ram a ser estudadas a partir da sua inserção em fa-
à questão da questão acabam por tomar como re- mílias substitutas no Reino Unido, Canadá e Estados
ferência a experiência afetiva de díades intactas, Unidos. Entre outros resultados, constatou que 66%

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Relações de apego no contexto da institucionalização na infância e da adoção tardia 83

das crianças adotadas por volta dos quatro meses para a hipótese de que, se são potentes os efeitos
de idade desenvolveram apego seguro com seus das experiências anteriores dos filhos adotivos no
pais adotivos. Esses autores consideram que essa que diz respeito à qualidade do acolhimento institu-
realidade não é significativamente diferente daque- cional e à interrupção desse cuidado nos primeiros
la que foi encontrada em um grupo de crianças não anos da infância, então, pode ser que as caracterís-
adotadas em condições semelhantes por Chisholm ticas dos pais adotivos e/ou dos novos cuidadores
(1998), que observou que 58% delas desenvolve- sejam em razão disso completa ou parcialmente
ram apego seguro. No entanto, a situação começa a neutralizadas. É como se as sequelas deixadas por
mudar quando se considera a amostra de crianças um período da vida marcado por perdas afetivas
que haviam convivido em ambientes institucionais subsequentes não conseguissem ser atenuadas e/ou
por pelo menos oito meses. Nessas circunstâncias, o reparadas completamente em razão das novas
pesquisador verificou que somente 37% desenvol- experiências de vinculação colocadas pela adoção.
veram apego seguro na relação com seus pais ado- Contudo, outros aspectos precisam ser adiciona-
tivos. Igualmente, apurou que essas crianças que dos e investigados no trato da questão. As associa-
permaneceram sob a guarda da instituição por um ções entre as variáveis de interesse primário (por
período considerado demasiadamente longo apre- exemplo, estado da mente da mãe adotiva e apego
sentavam índices mais altos de apego desorganiza- da criança) e as variáveis de interesse secundário
do e comportamento indiscriminadamente amigá- (idade da mãe adotiva, receitas financeiras, corres-
vel com estranhos. pondência racial) foram pouco exploradas no estu-
Na interpretação desses e de outros achados que do realizado por Dozier et al. (2001), indicando que
apontam na mesma direção, Dozier et al. (2001) os resultados por esse tipo de exame são ainda in-
ressaltam que algumas ponderações precisam ser conclusivos. Não é a toa que nesses estudos há cons-
feitas para que não se tirem conclusões precipitadas tantemente a indicação da necessidade de análises
e distorcidas sobre a questão. A primeira e principal subsequentes que possam captar a complexidade
ponderação a ser feita diz respeito à inadequação que envolve a pesquisa desse tipo de evento com-
do cuidado ofertado às crianças romenas ao longo portamental e desenvolvimental.
do tempo passado continuamente em orfanatos e Desse modo, conforme salientam Dozier et al.
similares, qualificado por Cicchetti e Barnett (1991) (2001), considera-se que a idade e o estado civil da
como pouco estável e personalizado, tendo sido a mãe adotiva, a condição sócio-econômica da famí-
maioria das crianças que passaram pela instituição, lia adotiva, o número de filhos adotivos na família
negligenciada emocionalmente ao extremo. Por isso, substituta, a causa do encaminhamento da criança à
advertem eles, esta entre outras descobertas, suge- instituição e ao lar adotivo, o número de colocações
re muitas possibilidades de investigação do apego anteriores e a correspondência racial entre a mãe e
de filhos adotivos a seus novos cuidadores, mas o filho adotivo, são variáveis que não foram significa-
especialmente ressalta a importância de se olhar tivamente relacionadas ao estado da mente da mãe
para trás e reconhecer as condições em que eram adotiva e ao apego da criança, ou mesmo a ambos.
cuidadas as crianças adotadas em instituições e o Em resumo, em acordo com Dozier et al. (2001),
tempo em que estiveram expostas aos efeitos pre- conclui-se que os resultados dos estudos que inves-
judiciais da privação afetiva. Entretanto, como traço tigam as relações de apego no contexto da adoção
comum entre tais experiências, fica a certeza de que tardia confirmam a força da propensão humana
é necessário olhar também para frente e analisar as para vincular-se ao outro capaz de lhe oferecer pro-
condições reais e as oportunidades de vinculação teção, como uma experiência que tem por isso valor
efetivamente colocadas pela convivência em um lar de sobrevivência para essa espécie. Nesse sentido,
adotivo, com seus novos cuidadores, como analisam é possível afirmar que essa disposição está presen-
Dozier et al. (2001). De acordo com esses autores, te na criança adotada, a despeito das experiências
após um período de ajuste e consolidação, os filhos de cuidado inadequado às quais esteve entregue,
adotivos tendem a organizar seu comportamento quer na família de origem uma vez que apresenta
de apego em torno da disponibilidade de seus no- geralmente múltiplas adversidades psicossociais
vos cuidadores, entre outras condições contextuais (Beckett�����������������������������������������
, ���������������������������������������
et al. ��������������������������������
2006), quer
�������������������������
em instituições mar-
apresentadas. Nesse contexto, chamam atenção cadas comumente pela convivência com muitos

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cuidadores substitutos, mas nenhum em condições Assim como, por força da lei, cresce a preparação
de ter com ela um relacionamento exclusivo (Tizard dos candidatos à adoção de crianças acima dos dois
& Hodges, 1978). Em razão do exposto, pode-se afir- anos que se encontram abrigadas, discutindo com
mar que essa propulsão humana para o apego se faz eles aspectos sociais e psicológicos que envolvem
sentir na criança adotada apesar de interrupções essa experiência afetiva. Isso porque, como se pro-
subsequentes na relação estabelecida por ela com curou mostrar, a criança com histórico de institucio-
figuras de referência a partir de formas de cuidado nalização precoce e prolongada em geral acumula
previamente experimentadas (Dozier et al. 2001). interrupções experimentadas nos relacionamentos
Entretanto, é sempre interessante lembrar que, com figuras de apego primárias na família, na ins-
nos casos mais graves em que estão presentes for- tituição e acumula expectativas de que, no lar ado-
mas precoces e prolongadas de privação afetiva, tivo, o desfecho dessa relação possa ser diferente.
como as citadas neste artigo, estudos têm mostrado De qualquer modo, considera-se que os estu-
que, quanto menor for a idade da criança e o tem- dos aqui reportados servem como referência e es-
po passado em instituições asilares, maiores são as tímulo para a realização de pesquisas semelhantes
chances de conseguir desenvolver confiança e ape- no Brasil, mas que possam apreender o máximo
go seguro na relação com seus novos cuidadores em possível a complexidade que envolve o tema e as
um lar adotivo. Isso significa que todos os esforços particularidades das experiências afetivas, reais e
pessoais, institucionais e familiares devem apontar potenciais, nos contextos da institucionalização na
em uma única direção: quando não for possível evi- infância e/ou das adoções consideradas tardias.
tar a separação da criança de sua família de origem,
tornar o tempo de permanência na instituição o
mais breve possível e oferecer a ela estímulos so- Referências
ciais e afetivos capazes de ativar a disposição para
manter-se próximo de seus cuidadores substitutos Ainsworth, M. D. S., Bell, S. M., & Donelda, J. S. (1983).
e com eles construir relações estáveis, prazerosas e A ligação mãe-filho e o desenvolvimento social:
de confiança. A “socialização” como um produto da resposta re-
Sob essas condições, entende-se que a adoção cíproca a sinais. In M. P. M. Richards (Org.). A inte-
tardia pode oferecer à criança a oportunidade de gração da criança no mundo social. Lisboa: Livros
continuar investindo na construção de relaciona- Horizonte. (Publicação original em 1974).
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mais duradouros, porém, agora, em um novo e defi- Ames, E. (1997). The development of romanian chil-
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Considerações finais Beckett, C., Maughan, B., Rutter, M. Castle, J. Colvert, E., &
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Pelo exposto neste artigo, percebe-se ser muito deprivation on cognition persist into early adoles-
difícil desenhar conclusões firmes a partir dos re- cence? From the english and romanian adoptees stu-
sultados apontados por estudos aqui citados. Tais dy. Child Development, 77(3), 696-711.
estudos investigaram as experiências afetivas entre
pais e filhos no contexto da adoção tardia, visto que Bowlby, J. (1995). Cuidados maternos e saúde mental.
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2010), a sociedade brasileira vem acumulando avan­
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