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Como será o Passado? História, historiadores e a Comissão Nacional da


Verdade

Book · June 2018

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Caroline Silveira Bauer


Universidade Federal do Rio Grande do Sul
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CAROLINE SILVEIRA BAUER_

COMO
SERA o
PASSADO?

HISTÓRIA, HISTORIADORES E A
COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE

PACO [] EDITORIAL
Conselho Editorial
Profa.Dr.
Prof. Ms. Fábio
Dra. Andrea
Carlos
Antônio
Antonio
Cristóvão
Eraldo
Humberto
José
Gustavo
BeneditaDomingos
H.
Cristianne
Ricardo
Régio
Bauer
Leme
Carlos
Cesar
Domingues
Pereira
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Bento
Batista
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Rocha
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Giuliani
daSant’anna
Silva
Ferreira
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Almeida Profa. Dra. Ligia Vercelli
Prof. Dr. Luiz Fernando Gomes
Prof. Dr. Marco Morel
Profa. Dra. Milena Fernandes Oliveira
Prof. Dr. Narciso Laranjeira Telles da Silva
Prof. Dr. Ricardo André Ferreira Martins
Prof. Dr. Romualdo Dias
Profa. Dra. Rosemary Dore
Prof. Dr. Sérgio Nunes de Jesus
Profa. Dra. Thelma Lessa
Prof. Dr. Vantoir Roberto Brancher
Prof. Dr. Victor Hugo Veppo Burgardt

©2017 Caroline Silveira Bauer


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permissão da editora e/ou autor.

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
B34c

Bauer, Caroline Silveira


Como será o passado?: História, Historiadores e a Comissão Nacional da
Verdade e / Caroline Silveira Bauer. - 1. ed. - Jundiaí, SP: Paco, 2017.
236 p. : il. ; 21 cm.

Inclui bibliografia
ISBN: 978-85-462-0896-8

1. Comissão Nacional da Verdade (Brasil). 2. Crime político - Investi


gação - Brasil. 3. Ditadura - Brasil. 4. Brasil - Política e governo - 1964-1985.
I. Título.

17-44805

CDD 364.1310981
CDU 343.301(81)

Av. Carlos Salles Block, 658


Ed. Altos do Anhangabaú, 2º Andar, Sala 21
Anhangabaú - Jundiaí-SP - 13208-100
114521-6315 | 2449-0740
contato@editorialpaco.com.br
Veio para ressuscitar o tempo
e escalpelar os mortos,
as condecorações, as liturgias, as espadas,
o espectro das fazendas submergidas,
o muro de pedra entre membros da família,
o ardido queixume das solteironas,
os negócios de trapaça, as ilusões jamais confirmadas
nem desfeitas.

Veio para contar


o que não faz jus a ser glorificado
e se deposita, grânulo,
no poço vazio da memória.
É importuno,
sabe-se importuno e insiste,
rancoroso, fiel.

O historiador, Carlos Drummond de Andrade


SUMÁRIO

Prefácio 7

Introdução 13

I. História, historiadores e a Comissão Nacional da Verdade 31


Entre dois ofícios, questões epistemológicas: o historiador e o juiz 52
Lições do passado: a função da pena e o aprendizado com a história 84
Reparar: o que é fazer a coisa certa em se
tratando de passados traumáticos 96

II. As múltiplas temporalidades nos


debates sobre a criação da Comissão 115
Políticas de memória e usos políticos do passado 133
O debate legislativo sobre a criação da CNV 149
O que (não) pode ser dito 163

III. O relatório e o futuro da memória 173


A construção da narrativa histórica no relatório 175
A entrega do relatório 193
Um réquiem: como será o passado? 200

Epílogo 235
PREfÁCIO

“Como é imensurável o tempo da inação, o tempo da dis


tância, o tempo do silêncio, como é diferente deste tempo do
encontro, das vozes que se cruzam, dos rostos que se veem.”
Julián Fuks, A resistência, 2016

São muitas as formas pelas quais o passado adentra o presen


te, às vezes sem o devido aviso, avançando de forma impetuosa
e, por vezes, invasiva diante do contemporâneo. Em alguns casos,
ele chega na caixa de cartas enviado sabe-se lá por quem ou para
que fins, podendo inclusive causar certo desconforto para quem
o recebe. É o caso, por exemplo, do narrador de K. Relato de uma
busca, livro que Bernardo Kucinski publicou em 2011 e que narra
a desafortunada história da procura de um pai pela filha, desapa
recida em 1974 durante os brutos anos da repressão ditatorial no
Brasil. Neste caso, são anúncios enviados por um banco oferecen
do seus serviços à irmã desaparecida, muitos anos depois do que
aconteceu e sem nenhuma chance para que ela própria pudesse
ter acesso a tal correspondência: aqui, para quem o recebe, o pas
sado chega na forma do nome impresso no envelope, com tudo o
mais que cabe na profundeza daquele nome.

É como se as cartas – nos diz o narrador – tivessem a


intenção oculta de impedir que sua memória na nossa
memória descanse; como se além de nos haverem negado
a terapia do luto, pela supressão do seu corpo morto, o
carteiro fosse um Dybbuk, sua alma em desassossego, a
nos apontar culpas e omissões. Como se além da morte
desnecessária quisessem estragar a vida necessária, esta
que não cessa e que nos demandam nossos filhos e netos.1

1. Kucinski, Bernardo. K. Relato de uma busca. São Paulo: Cosac Naify, 2014,
p. 10. Em nota, o autor informa que “na mitologia judaica, o Dybbuk é a alma

7
Caroline Silveira Bauer

Pelas mãos desse mensageiro impertinente, o passado as


sombra o presente na forma de um tormento, de uma angústia
que se perpetua como memória que não descansa, uma lem
brança não apaziguada, pois não se sabe do que ela efetivamente
faz lembrar: o desaparecimento aqui é a imposição de um desco
nhecimento, e a busca do pai é também a busca pelo que lembrar
e pelo que conhecer.
Obviamente, não se trata de uma procura sobre quem foi a
filha desaparecida (quanto a isso não pairam dúvidas nem para o
pai, nem para o narrador), mas sim sobre o que de fato ocorreu a
ela após o desaparecimento. É uma busca pelo conhecimento que
permitirá, por fim, elaborar a memória que falta e, com isso, fazer
descansar a memória já existente. E trata-se de uma busca com
partilhada por outras tantas pessoas que passaram ou enfrentam
situação similar. Hoje, todavia, o desconhecimento dos fatos é
minimizado pelo que nos conta o relatório final da Comissão
Nacional da Verdade (CNV), entregue à então presidenta eleita
Dilma Rousseff, em 10 de dezembro de 2014. Militante da Ação
Libertadora Nacional, a professora da Universidade de São Paulo
Ana Rosa Kucinski foi presa junto com seu companheiro Wilson
Silva, e assassinada possivelmente na chamada “casa da morte”
em Petrópolis. Supõe-se ainda que seu corpo tenha sido incinera
do na Usina Cambahyba, em Campos dos Goitacazes, estado do
Rio de Janeiro.
Instituída em maio de 2012, a CNV marcou um importan
te acontecimento no espaço público brasileiro. Fazendo parte do
processo mais amplo de formulação de uma política da memó
ria no Brasil, sua repercussão e os debates que alimentou certa
mente conferem a ela um lugar importante na conjuntura atual,
momento em que nossa sociedade resolveu, ainda que de forma
excessivamente limitada, lidar com traumas ocasionados pelos
insatisfeita que se cola a uma pessoa, em geral para atormentá-la. A palavra vem
do hebraico Devek, que significa ‘cola’”.

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Como será o passado? História, Historiadores e a Comissão Nacional da Verdade

acontecimentos da ditadura civil-militar iniciada com o golpe


de 1964, o penúltimo na nossa história recente. E este lugar tem
um significado próprio para a historiografia, uma vez que lida
diretamente com questões que ocupam há algum tempo a agenda
de discussões de historiadores e historiadoras, seja pelo interesse
em relação ao contexto histórico transcorrido entre as décadas de
1960 e 1980, seja pelas dimensões teóricas e éticas que envolvem
as formas pelas quais nossa sociedade lida com seus passados.
O livro que este prefácio antecede aborda tais questões, ofere
cendo uma reflexão densa e sistemática sobre a relação que man
temos com um determinado passado que ainda nos invade – e é
invadido por nós – das mais diferentes formas, situando a posição
complexa e ambivalente daqueles que praticam a historiografia.
Desse modo, ele próprio situa sua autora, a historiadora Caroline
Silveira Bauer, em relação aos compromissos epistemológicos e
éticos que dizem respeito tanto às discussões sobre a dimensão
política relativa aos trabalhos da CNV, quanto à dimensão públi
ca que define a prática historiográfica.
O passado, então, aparece aqui atravessado por múltiplas mo
dalidades discursivas e variadas disputas sociais, indicando como
que as próprias formas pelas quais ele habita o presente são plu
rais e convidando, assim, o leitor e a leitora a pensar não apenas
no, mas nos diversos passados que dizem respeito à historiografia
e que, de formas variadas, pluralizam igualmente a temporalida
de que nos envolve àquelas experiências. O livro acompanha, por
exemplo, o tempo próprio do direito, com suas demandas por
reparação histórica e punição penal por conta das violações dos
direitos humanos cometidas pelo Estado ditatorial; aborda o tem
po psicológico, nos planos individual e coletivo, que lida com as
formas de traumas e com as perspectivas possíveis para o traba
lho de luto; discute o tempo próprio da política, contrapondo cer
tos oportunismos imediatistas do presente com posições que, de

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Caroline Silveira Bauer

fato, procuram deliberar sobre os caminhos viáveis para o futuro


da sociedade. Para cada um destes tempos, um passado distinto
é configurado, utilizado, manipulado, mesmo que todos digam
respeito à mesma cronologia e às mesmas situações históricas.
Essa pluralidade temporal, portanto, tem por corolário a di
versificação dos passados sobre os quais falamos quando trata
mos das experiências vividas e sofridas nos contextos abordados
pelas investigações da CNV. Não obstante, isso não significa em
absoluto que este livro conduza sua reflexão para o lugar nebu
loso de um relativismo ético, no sentido de sugerir que todo uso
do passado se equivale. O que ele nos faz pensar, pelo contrário, é
que se o tempo disponível para a concretização dos trabalhos da
CNV é ainda um tempo marcado pelo denso fardo de um esque
cimento anistiador – esquecido de tantas coisas relevantes, mas
com a lembrança sempre em dia da lei de 1979 –, outras tempo
ralidades podem emergir daquilo que a sociedade fará a partir
daqui e, quem sabe, abrir um tempo próprio para a superação
da impunidade. O trabalho historiográfico realizado, neste caso,
revela as perspectivas de futuro do passado que o título sugere.
Este livro é, portanto, uma intervenção pertinente de uma
historiadora no espaço público brasileiro, um espaço ainda mar
cado fortemente pelos traços de uma cultura política autoritária,
com suas notícias diárias de prisões arbitrárias e de desapare
cimentos forçados, em que o estado de exceção parece ter sido
convertido em regra. E neste espaço vemos, cotidiana e impu
nemente, o elogio criminoso da tortura, em alguns casos diante
da própria vítima, como expressão contundente do uso indecente
do passado com o único objetivo torpe de ferir mais forte quem
ainda tem suas feridas expostas.
Assim, mesmo sem mencioná-lo diretamente, este livro si
tua em outros planos aquele nome impresso como destinatário
das cartas que chegam sempre como um passado impertinente.
Como sugeriu o narrador,

10
Como será o passado? História, Historiadores e a Comissão Nacional da Verdade

o nome no envelope selado e carimbado como a atestar a


autenticidade, será o registro tipográfico não de um lapso
ou falha de computador, e sim de um mal de Alzheimer
nacional. Sim, a permanência do seu nome no rol dos vi
vos será, paradoxalmente, produto do esquecimento co
letivo do rol dos mortos.2

Diante, então, de uma relação com o passado que assume a


forma de uma patologia social, as páginas que seguirão talvez não
ofereçam os mecanismos de cura, mas certamente fazem ver com
mais nitidez quem são os verdadeiros doentes.

Além da irrecusável responsabilidade de escrever este prefá


cio, tive o prazer de acompanhar desde os primeiros momentos
a escrita deste livro, que remonta, é claro, ao tempo próprio das
pesquisas e do percurso intelectual desta historiadora, com quem
tenho a fortuna de dividir muito mais coisas do que as inquieta
ções políticas e o interesse profissional.
Pude assim perceber quão variadas e complexas são as ex
periências que norteiam o trabalho de escrita da história e tudo
aquilo que o pudor disciplinar acaba considerando dispensável
de aparecer no produto final. Pois há muita coisa que este livro
não conta: os cadernos de anotação abertos sobre livros e mais
livros na mesa da sala, infindáveis papeis soltos dividindo o es
paço com as xícaras de chá ou café, o computador apoiado no
braço do sofá, as tarefas incontáveis da professora cuidadosa e
as inúmeras caminhadas da mulher companheira e cidadã pelas
ruas turbulentas das manifestações contra o golpe e contra seus
nefastos desdobramentos. História e historiadora carregam em si
muito mais que um livro pode conter.
2. Ibid., p. 12.

11
Caroline Silveira Bauer

Tudo isso me faz compreender com tamanha nitidez que


há algo sobre o prefaciar que não está contido nos dicionários:
suspeito que além de preambular, prologar, preludiar, proemiar,
preceder ou deixar antever, o prefácio possui também a função
inclassificável de admirar e é com a mais sincera admiração que
encerro este.

Fernando Nicolazzi
Porto Alegre, junho de 2017.

12
INtROdUçãO

Inoportuna, insistente e rancorosamente, como a definição


dada por Drummond ao historiador, e, ao mesmo tempo, fiel aos
compromissos éticos e políticos do ofício, apresento este livro como
resultado do projeto de pesquisa “Um estudo sobre os usos polí
ticos do passado através dos debates em torno da Comissão Na
cional da Verdade (Brasil, 2008-2014)”, financiado pelo Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Há seis anos atrás, em 2011, finalizava minha tese de douto
rado em que analisei comparativamente a elaboração de políticas
de memória na Argentina e no Brasil. No final daquele ano, a Câ
mara dos Deputados aprovaria a criação da Comissão Nacional
da Verdade (CNV), fomentando esperanças de avanços quanto às
políticas sobre o passado recente.3 Desde então, minha trajetória
enquanto pesquisadora da ditadura civil-militar foi atravessada
pelo desenvolvimento das atividades da comissão, pelos debates
públicos suscitados, pela divulgação do relatório final e pelas per
cepções dos agentes envolvidos em relação aos resultados alcan
çados e às recomendações presentes no documento.
Nesse percurso intelectual e, mais especificamente, ao longo
do desenvolvimento dessa pesquisa, a interdisciplinaridade esta
belecida com o direito, a filosofia e a psicanálise para abordar um
objeto híbrido como uma comissão da verdade suscitou uma série
de problematizações conceituais, epistemológicas, metodológicas
e teóricas em relação à história, bem como reflexões sobre a fun
ção social do historiador, estabelecendo um diálogo entre as áreas.
Do retorno à história e aos historiadores, e sobre as relações
que estabelecemos com nosso entorno e nosso presente, surgiram
os questionamentos que lhes apresento, mas que não se encerram

3. A tese de doutorado foi publicada em 2012 com o título “Brasil e Argentina:


ditaduras, desaparecimentos e políticas de memória” e uma segunda edição foi
lançada em 2014, ambas as edições publicadas pela Editora Medianiz.

13
Caroline Silveira Bauer

nessa obra, que possui um objetivo bem mais modesto: fomentar


o debate sobre fazeres e práticas dos historiadores comprometi
dos com uma escrita da história que fundamenta suas análises no
pensar as possibilidades de intervenção no mundo; historiografia
essa marcada, segundo Enzo Traverso, por um “giro ético-políti
co” na abordagem sobre o passado.4
Essa dimensão ética e política da historiografia não significa o
abandono ou a relativização de determinados preceitos que confe
rem cientificidade à pesquisa histórica, mas sim assume a impossi
bilidade de negar essas dimensões na escrita da história de questões
sensíveis, como é o caso de temas relativos à ditadura civil-militar.
Quanto a este posicionamento, pode-se afirmar que boa parte
dos historiadores da ditadura civil-militar brasileira tem perdido
certa “inocência epistêmica”, baseada nos preceitos do distancia
mento, da neutralidade e da objetividade que reificam seus objetos
de pesquisa. Tratam-se de profissionais críticos e conscientes da
dimensão ética e política do seu trabalho, que não negam as re
lações transferenciais que estabelecem com o passado, expressas
nas dimensões afetivas e valorativas com as quais se manifestam5;
bem como que não creem que a distância temporal faça a ditadura
mais propícia para análise: ao contrário, concebem a passagem do
tempo como inimiga da memória, da verdade e da justiça.
A escrita da história do terrorismo de Estado das ditaduras
do Cone Sul está indissoluvelmente ligada a essas dimensões. A
história recente da região estabelece complexos vínculos com a so
ciedade em geral, e com a memória em particular. Por isso, quase
4. Traverso, Enzo. El pasado, instrucciones de uso. Buenos Aires: Prometeo Li
bros, 2011, p. 106. A conjuntura histórica e historiográfica de ascensão dessa
perspectiva de escrita da história foi analisada por Marcelo Rangel e Valdei
Araújo. Cf. Rangel, Marcelo de Mello; Araújo, Valdei Lopes de. Apresentação –
Teoria e história da historiografia: do giro linguístico ao giro ético-político. Hist.
historiogr., Ouro Preto, n. 17, p. 318-332, abr. 2015.
5. LaCapra, Dominick. Testimonio del Holocausto: la voz de las víctimas. In:
Escribir la historia, escribir el trauma. Buenos Aires: Nova Visión, 2005, p. 129.

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Como será o passado? História, Historiadores e a Comissão Nacional da Verdade

sempre a relação que se estabelece com o passado recente da re


gião é de insatisfação, e não poderia ser diferente em se tratando
da história da ditadura civil-militar brasileira. Embora exista uma
atualização em demasia do passado como espaço de experiência, o
que resulta em um sentimento de responsabilidade em relação aos
acontecimentos das décadas de 1960 e 1970, dificultando a criação
de empatia, é necessário reforçar que esse mal-estar é resultado
das medidas implementadas pelo Estado brasileiro desde o pro
cesso de transição política que visavam à impunidade e ao silen
ciamento. Poucos meses após assumir a presidência da República,
em 1979, o general João Batista Figueiredo enviou ao Congres
so Nacional o projeto de lei para concessão de anistia aos crimes
cometidos durante a ditadura civil-militar. Na época, afirmava o
militar: “Eu não quero perdão porque perdão pressupõe arrepen
dimento [...]. Eu apenas quero que haja esquecimento recíproco.”6
As ações dos governos democráticos também contribuíram
para esse mal-estar, na medida em que não conseguiram instituir
uma efetiva política de memória, assim como a configuração de
determinadas narrativas e representações sobre o passado recente
brasileiro que reatualizam os traumas do período discricionário.
À semelhança de outras comissões da verdade, as expectativas dos
familiares e de ex-presos e perseguidos políticos, de movimentos
sociais e de setores da sociedade foram muito maiores que os re
sultados obtidos. Não se trata apenas de uma coincidência que
Lethe, a deusa grega do esquecimento, seja filha de Eris, deusa da
discórdia.7 Sobre esse assunto, está se lidando com uma plurali
dade de memórias, de historiografias, de temporalidades, ideoló
gica e culturalmente mediadas. Não é à toa que as disputas pelos

6. Monteiro, Tânia. Venturini: “O grande mentor da anistia foi Figueiredo”. O


Estado do São Paulo, São Paulo, 22 ago. 2009. Disponível em: <https://goo.gl/
JRxz6q>. Último acesso: 30jan. 2011.
7. Ilíada IV 440-443.

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