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Resenha de Livro

Fernando Báez
A história da destruição cultural da América Latina: da conquista à
globalização.
Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2010

A história da destruição cultural da forma, Báez tece considerações sobre


América Latina: da conquista à globali- a ética da conquista e o sucateamento
zação é um dos estudos mais comple- do Novo Mundo durante os séculos
tos sobre o continente americano. O XVI aos dias atuais.
autor aborda em 390 páginas a saga da O livro é bem construído meto-
conquista e da submissão dos povos dologicamente. A coleta de dados em
nativos ao modelo politico europeu. arquivos, bibliotecas, acervos parti-
É uma obra intensa, fundamen- culares, além do apoio de estudiosos
tada em fontes primárias, coletadas e familiares, é apresentada no início
em arquivos europeus e latinoameri- da obra, quando Báez estende seus
canos. Fernando Báez analisa critica- agradecimentos a todos que o auxi-
mente a destruição dos bens culturais, liaram durante quatro anos de pes-
tradições e costumes dos povos nati- quisa. Pela intensidade da pesquisa, o
vos e assinala aspectos paradoxais livro já é um referencial teórico para
da conquista europeia na América, a história da América.
como a construção do Novo Mundo. Deve-se destacar também nesse
Segundo Báez, para o êxito da obra estudo a construção de novos con-
da conquista foi necessário destruir e ceitos para explicar a trajetória da
saquear as sociedades nativas. ‘conquista e destruição cultural da
A proposta do autor é apresentar América Latina’ e os percalços aca-
a invasão das terras americanas e a dêmicos enfrentados pelo pesquisa-
destruição das sociedades nativas por dor como entraves burocráticos para
meio do ‘genocídio cultural’. Dessa a consecução de uma obra instigante

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que se confronta com teorias já cris- conseguiu que a Pedra do Sol fosse
talizadas sobre a história do Novo levada para o Museu.
Mundo. Por fi m, deve-se salientar o Assim como a estátua de Coatlicue
fragmento do brilhante discurso de e a Pedra do Sol, a memória cole-
Tácito sobre o sentido de devastação tiva e os imaginários astecas foram
das culturas e a ação dos predadores arrancados da história dos anti-
do mundo. gos mexicanos.
A obra é elaborada em três par- A História da destruição cultu-
tes temática se um Apêndice. Cada ral das sociedades americanas estava
parte é composta de capítulos. Na apenas começando. Associada à
primeira parte, Báez discorre sobre ação predatória dos símbolos mate-
o saque da cultura americana, apon- riais, a Igreja inicia o processo de
tando as causas do ‘etnocídio’, desde dessacralização da religião indígena
o assassinato da memória, quando a para ressacralizar a vida espiritual
estátua da deusa Coatlicue, detentora através evangelização e da força
da vida e da morte dos homens, é da Inquisição.
encontrada em 1790 e levada para o Ainda na primeira parte, Báez
pátio da Universidade do México. trata da grande catástrofe que resul-
Naquela ocasião, após uma análise tou na transição colonial, na cen-
ligeira, foi sugerido que deveria ser sura intelectual e espiritual, além da
novamente enterrada para que sua aplicação de um programa de trans-
presença não despertasse a recordação culturação defi nitiva. Este consistiu
da religião antiga entre os ‘indígenas na aplicação da educação escolás-
insensíveis à bondade do cristianismo tica, através dos princípios rígidos
(p.55)’. Em 1804, o barão alemão da Contrarreforma para apagar
Alexander von Humboldt, após exa- os vestígios da educação indígena
minar aquela arte indígena, mandou dos Calmecacs , no México e dos
que a enterrassem. Apenas em 1982 Amautas , nos Andes. Não se esque-
o governo mexicano permitiu que ceram, nessa perseguição insana, da
fosse exposta ao público. O mesmo cultura africana, abatida da mesma
ocorreu com a descoberta da Pedra maneira durante os longos séculos
do Sol, um gigantesco monólito com de devastação.
um calendário asteca, encontrada na A segunda parte do livro focaliza
Plaza Mayor, e guardada na Catedral do saque cultural, as guerras, comér-
Metropolitana. Só a pressão popular cio e a implantação do império. Báez

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discorre sobre os estragos, os primei- confundir o inimigo (p.300) e com-


ros butins e alcança o século XX com plementa que qualquer guerra fica
o saque nazista. Lembra o Holocausto, incompleta se não causar desconcerto
a aniquilação sistêmica de milhares de por meio do ataque aos símbolos de
judeus e, sobretudo, o memoricídio, identidade, que são fundamentais
quando milhões de bens culturais tan- para a resistência. Dessa forma, a
gíveis e intangíveis foram destruídos hegemonia, entendida como a supre-
em expurgos inimagináveis (p.208). macia de um estado ou grupo sobre o
Báez traça um paralelo com a des- outro, requer a aniquilação dos moti-
truição mundial e lembra os saques vos principais da resistência do adver-
dos chineses, as questões da Palestina sário com propaganda ou destruição
a Sarajevo, além dos ataques à indireta ou direta (ataque psicológico
Bamyane à Bagdá. ou cultural), explica Báez.
Na terceira parte, o autor discute O autor conclui, em sua aná-
a Transculturação e o Etnocídio na lise sobre a destruição cultural da
América Latina, enfatizando a fatali- América Latina, que :
dade da memória, os esquecimentos • O saque cultural foi um etnocí-
e sobretudo, a identidade cultural. dio e memoricídio premeditado
No capitulo III apresenta os novos para mutilar a memória histó-
conceitos introduzidos para análise rica e atacar a base fundamental
da destruição cultural da América da identidade das populações
Latina, destacando etnocídio, memo- • Com essa estratégia perderam-
ricidio, aculturação e transcultura- -se 60% do patrimônio tangível
ção. Enfatiza também a estratégia e intangível da região.
do predador, assinalando que a pri- • A transculturação produziu
meira coisa que se ataca numa guerra, uma operação bem sucedida de
entendidascomo contenda, confusão alienação
e discórdia, é a memória coletiva.
Assim, analisa guerra como a arte de Maria Teresa Toribio Brittes Lemos

Janeiro | Dezembro 2011

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