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Carranca da 1•) fas e de Gua: any, originár:a ca coleção Má rio Cravo Jr., hoje
pertence a D. Maria Eston.

CARRANCAS DO SÃO F RANCISCO


E FIGURAS DE PROA DE
OUTR OS R IOS
P AULO PARDAL
Engenheiro

No número 10 do Navigator, o Dr. r anoos do São Francisco, que por má


Carlos Francisco Moura apresentou um interp retação semântica geraram críti-
interessante e bem documentado artigo cas do Dr. Carlos Francisco Moura.
sobre figuras de proa, no qual comenta Conforme assinalo logo à pág. 2 de
alguns aspectos do trabalho Carrano~s meu trabalho, " oorranca * é a denomi-
do São Fnancisoo, de minha autoria, nação consagrada, no Brasil, para as
publicado pelo Serviço de Documenta- figuras de proa das barcas do Rio São
ção Geral da Marinha. Francisco " . E à pág. 18: " os exemplos
Gratificado por novas e . importantes abaixo mostram como as figums de
informações sobre o tema, qu~ cons- pr oa eram freqüentes, em nossos na-
tituirá um próximo livro do autor, ve- vios" , dentre os exemplos, citando o
nho esclarecer algumas fr ases do Car- da barca Laura li e uma figura de

* O grifo a qui, como em outras palavras deste a rtigo, não consta do original.
Seu emprégo facilita rá ao leitor acompanha r meu raciocinio.
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proa referida por J. Nóbrega como turas talvez ainda hoje ornem a proa
tendo pertencido à embarcação do To- de algumas embarcações locais, no Bra-
cantins. sil. . . sem o significado social e artís-
Não observando a distinção acima tico das carrancas do São Francisco" .
entre carranca e figura de proa, o Dr. (pág. 69).
Moura julgou-me .e m contradição:
"O próprio prof. Pardal, embora ne- * * *
gando inicialmente o uso de figuras Outra crítica feita pelo Dr. Moura,
de proa no Tocantins, fornece uma quando gentilmente me classificou
notícia de grande interesse sobre o como alguns e studic·sos se refere a
assunto: "José da Nóbrega ( .. . ) minha conclusão de terem as carrancas
citou-me ter visto . . . " (pág. 72). surgido eerca de 1875, pois vários au-
E, após citar a figura de proa do tores que escreveram até esta data,
Laura 11, acresce: descrevendo em detalhe as barcas, não
as assinalaram e muitos auvo11es (em-
"~. portanto, mais uma prova de que bora não todos, é claro) que publica-
não só no São Francisco, mas tam- ram livros a partir de 1888, citam as
bém em outras regiões brasileiras, carrancas, mesmo quando não descre-
usavam-se figuras de proa de cará- veram as barcas em detalhe. Como
ter popular". (pág. 78) . prova da fragilidade deste argumento,
Aliás, é curioso notar que, logo o Dr. Moura mostra uma foto de car-
ranca em livro de 1912, cujos autor.es,
abaixo, diz o Dr. Moura: "O Laura li, "com relação às embarcações do São
bem como o Laura I e o Laura III Francisco, informaram apenas:
(que também teriam figuras de proa),
pertenciam . .. " Ora, esta ilação (que "No Rio de S. Francisco e em alguns
os Laura I e III teriam também figuras afluentes, além da navegação a va-
de proa), não é minha. por, existem barcos a vela, muito
A negativa que faço do uso de car- característicos e pitorescos, e peque-
rancas (não figuras de proa. Essas nos botes vulgarmente chamados pa-
houve. Eu mesmo cito um exemplo) no qu etes" (C. Moura, pág. 73) .
Tocantis, se confirma pelo seguinte tre- Não é de estranhar que as carrancas
cho do artigo do Dr. Moura, referente não apareçam em citação tão resumida
aos barcos usados naquele rio: e imprecisa: as ba rcas, que raramente
"A proa do bote, a parte exatamente velejavam, se transformaram em " bar-
que fende a água, é mais saliente, e cos á vela, muito característic;.os e pi-
culmina por símile de figura qual- torescos" (para demonstrar i sso, os
quer, jacaré, cavalo, etc., e denomi- autores devem ter considerado suficien-
na-se talham ar". (pág. 72) . temente a foto da carranca.)
Mas seria de estranhar que existis-
A roda de proa é a peça de madeira sem as carrancas -em 1860 e Halfeld
que prossegue a quilha; a parte que não as tivesse citado, quando descre-
fende a água é o talhamar, e sua extre- veu detalhadamente os tipos de embar-
midade (capelo), "mais saliente, cul-
cação no médio São Francisco, trans-
mina" por uma figura, provavelmente crito em cinoo páginas do Carrancas do
esculpida na própria roda de proa (de
São Francisoo (págs. 30 /36) .
pequena seção retangular) , conforme
me foi dito em Teresina, 1976, por al- Contudo, esta é uma crítica aceitá-
guém que as viu, como citarei no fi- vel. No Prefácio de meu livro, digo que
nal deste artigo. Mesmo se a escultura pela escassez de dados sobre as car-
fosse presa ao capelo, representaria rancas, não alcancei "senão a formula-
uma solução bem difer·ente das grandes ção de hipóteses, embora bem ancora-
carrancas, de muito maior diâmetro das" . Uma de minhas âncoras foi o si-
que o capelo e que assentavam no ta- lêncio dos autores anteriores a 1888.
boado da proa. Aliás, no Carrancas do Outras cito às páginas 68/69, além da
São Francisco, lê-se "Pequenas escul- intuição de quem viveu um tema du-
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rante seis anos, conversando com deze- não sendo "impossível que minha apre-
nas de informantes. A mesma intuição ciação sobre as carrancas seja exage-
que fez o Dr. Moura concluir que se rada", como confesso à pág. 3 do Car-
o Laura li tinha figura de proa, os rancas do São Froncisoo. De fato, tendo
Laura I e III igualmente teriam tido. ocorrido figuras de proa (embora não
Também li muitos outros artigos, escri- de m~do generalizado como no São
tos no século XX, especialmente os de Francisco) em outros rios do Brasil, a
caráter técnico, onde as carrancas não referência de Alves Câmara não está
eram citadas. Como isso não prova obrigatoriamente restrita às carrancas.
que elas sejam anteriores a 1875, pre- Contudo, é curioso notar que Alves Câ-
firo continuar com minha hipót-es.e a mara só cita a ocorrência de figuras
respeito desta data. de pr.oa nas barcas do São Francisco,
Sobre esse tóp!co vale observar que silenciando sobre sua presença na ex-
é pena qu e um trabalho tão bem do- tensa descrição que faz dos diversos
cumentado como o do Dr. Moura, não tipos de canoas, em todo o Brasil. Esse
cite a fonte bibliográfica de um fato fato, aliado a algumas imprecisões do
digno de análise: "Paranhos Montene- referido autor, que assinalei no Car-
gro. . . continuou a ·escrever sobre o rancQls dJo São Francisco, levaram-me à
assunto (Navegação no São Francisco) interpretação criticada.
mesmo depois de a existência delas Por outro lado, é de estranhar que
(oarranoas) ter sido atestada por Alves tenha ·~$capado ao Dr. Moura, uma
Câmara e Vieira de Aguiar (1888) e falha que cometi em assunto de sua
continuou a não se referir às carran- especialidade, quando disse, na ERRA-
cas". Esse fato, prossegue o Dr. Mou- TA, que "a carraca era um tipo de
ra, "nos permite supor que elas (car- embarcação asseme-lhada à caravela"
nancas) datam das primeiras barcas quando deveria ter dito nau, conforme
que, segundo ele (MonNm.egro) , sur- alertou-me o Comandante Max Guedes.
giram no século XVIII" (fins, acres- Permito-me apresentar, também, ao
ço eu .) Dr. Moura, algumas críticas construti-
Ora, um dos meus argumentos foi o vas, tendo em vista seu prometido tra-
silêncio de vários autores que, antes de b::tlho Figuras de Proa de Navios Por-
1888, descreveram as barcas com ri- tugueses e Brasileiros.
queza de detalhes. Muito mais criticá- A pág. 81 do artigo é assinado pelo
vel me parece supor que as carrancas Dr. Moura lê-se:
datam de fins do século XVIII, porque
um únioo autor não se referiu a ·e las "Por sua temática e estilística as car-
nem antes nem após 1875! rancas do São Francisco estão mais
Para provar aos leitores que não sou próximas das figuras de proa que
tão intransigente como pareço, na de- aparecem nas xilogravuras portugue-
fesa de meus pontos de vista, reconheço sas da História Trágico-Marítima
justa uma das críticas do Dr. Moura (sec. XVI e XVII) do qu~ das figu-
ao meu trabalho. Alves Câmara escre- ras do século XIX.
veu: E ainda à mesma página:
"Nos rios do interior, onde não é "a Nau Santa Maria, que ostenta
forte a ação dos ventos, há canoas, uma grande figura de proa "sanfran-
que são adornadas com um pássaro, ciscana". Estilística e tematicamente,
ou outra figura na proa, e têm cama- uma carranca" .
rim envidraçado na popa, remadas a Estas citações são fundamentais para
pás, ·e servem para transporte de pas- melhor filiar a tipologia das figura..s de
sageir.os e famílias de ricos senhores barca. Infelizmente, contudo, não fo-
de engenho". ram reproduzidas as referidas figuras
Interpretei o trecho como referente tão aparentadas às nossas carrancas,
às barcas do São Francisco, com suas cujo medievalismo igualmente assinalo
carrancas, "que tanto me fascinam" à pág. 102 do Carrancas do São Fran-
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Em 1977 será realizada em Paris uma I Exposição Mundial de Figuras de Proa,


com cerca de 80 peças , de mais de uma dezena de países, dentre os quais 15
carrancas, s olicitadas à Embaixada do Brasil na França.
Em janeiro de 1976, no Salão Náutico de Paris, houve um stand sobre Figuras
de Proa a fim de preparar a referida Exposição. No referido stand, Norman Gaches
(foto a cima, de Francine Rolland) , escultor de figuras de proa, mostrou ao público
seu trabalho.
As tradicionais figuras de proa ainda não morreram!
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cisco. Também não consta da biblio- para Santos, S. P. , dezenas de velhas


grafia o autor e editor da História Trá - carrancas do São Francisco (vide pág.
gico-Marítima (Século XVI e XVII) . 98, Carrancas do Sã,o Francisco) e ne-
Segundo o Dr. Moura "o cavalo era nhuma escultura de bote do Tocan-
uma das figuras de proa mais comuns tins, qu e igualmente não constam, que
nas barcas do São Francisco e nos bo- eu saiba, de qualquer Museu ou cole-
tes do Tocantins (op. cit. pág. 85). ção. Levando em conta a peneira fina
Ora, de cerca de 90 carrancas autên- que os antiquários sempre passaram
ticas que classifiquei, só m e lembro de em tudo qu e apresenta algum intere sse
três , que representassem nitidamente comercial, isso poderia confirmar que
um cavalo, reproduzidas às págs. 45 e a roda de proa esculpida dos botes do
47 do Carrancas do São F ran c isco. Tocantins teria perecido com os botes.
Eram raras as carrancas naturalistas; Também, observando o desenho des-
em sua quase totalidade, zoo-antropo- te tipo de embarcação (pág. 72 do ar-
morfas, ligadas ao fantástico e sobre- t igo do Dr. Moura) , verifica-se que
natural, se vago parentesco apresentam sua proa afilada e alçada não permi-
com animais, é mais fácil associá-lo ao tiria a fixação de uma ·e scultura pesada
leão. Quant~ aos botes do Tocantins, como a carranca sanfranciscana. Tudo
cuja proa "culmina por símile de figura leva a crer que a solução mais prová-
qualquer, jacaré, cavalo etc." , não m·e vel seria esculpir a figura na própria
parece que essa única e vaga citação roda de proa.
apresentada pelo Dr. Moura autorize Agradecendo o interesse com que o
sua conclusão de ser o cavalo uma das Dr. Carlos F . Moura examinou meu tra-
figuras de proa m a is comuns nos botes balho, atendo à sua solicitação referen-
de Tocantins. te a informações suplementares sobre
Aliás, a denominação de Figura de figuras de proa, especialmente no To-
proa é utilizada para esculturas fixa- cantins .
das ao navio, geralmente no beque, sob No ano de 1976, percorri todas as
o gurupés, mas também no castelo de capitais dos estados ao norte do Rio
proa, como no caso das carrancas. de Jan eir-o. Por motivos profissionais,
Como já comehtei à pág. 22 deste arti- estabeleci contato, em cada capital,
go, nos botes do Tocantins provavel- com dezenas d e elementos, identifican-
mente a figura, de pequenas dimen- do alguns que tinham tido vivência com
sões, era esculpida no final da própria embarcações, especialmente nos rios do
roda de proa. Nessa hipótese p ergun-
norte.
to-me se seria válido denominá-la figu-
ra de pr1o.a ou simplesmente roda de O jornalista Guaipuam Vieira (R. João
proa esculpida. Gaioso, 399, Terezina) há anos pesqui-
Para evitar má interpretaçã o, reitero sa figura s de proa no Parnaíba, só
que o parágrafo acima se refere só aos tendo conseguido identificar uma: "em
botes ou barcos mineiros do Tocantins, 1925 ... Albatroz, pequena lancha que
onde obviamente também navegavam fõra feita por família que r esidira em
Juazeiro .da Bahia,* já transmitia, aos
embarcações maiores, com autênticas
figuras de proa. Essas, provavelmente, deuses das águas, mensagem do seu
foram conservadas, após o abandono ritual, através da carranca* que condu-
da embarcaçã o a que pertenciam. Já vi zia" (de artigo a ser publicado pelo
várias figuras de proa em nossos anti- autor) . A referida lancha desapareceu
quários, inclusive em um que trazia há cerca d e dois d ecênios, d esconhe-
muitas peças de Belém. Citei J . Nóbre- c endo-se o paradeiro de sua carranca .
ga, c omprador d e antiguidades que Não pude confirmar, em Terezina, a
percorria todo o norte e viu uma figu- existência, nos ú!timos decênios, de
ra de proa, que não conseguiu adqui- máscaras usadas em embarcações na
rir, em Belém. Mas só Nóbrega levou confluência dos Rios Poty e Parnaíba,
* O grifo é meu, mas a s palavras são de G. Vieira, que ao escrevê-las ainda
não havia lido o Carrancas do São Franc isco.
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fato quz m e havia sido citado por um e Manaus, consegui identificar: um


engenheiro em Salvador, que em certa busto de mulher, em embarcação do
época s~ deslocava com freqüência a baixo Amazonas; uma figura (sereia?)
Terezina. em emb:1rcação no Porto de Manaus;
De outros e!ementcs, habituados a um dragão, de grandes dimensões (150
viaja1·, nos dois últimos decênios, nos em?), de uma embarcação da Ilha de
rios da região, inclusive Araguaia e Marajó. Nesse último caso, meu infor-
Tocantins, soube de uma figura de prca mante citou que curioso pelas dimen-
vista em cada um desses rios, além de sões e bom acabamento da peça, que
algumas embarcações com um:1 escul- se encontrava em embarcação de trans-
tura grosseira, entalhada na extremi- porte de passageiros, indagou sobre sua
dade da roda de proa, prov a v e lm znt ~ origem. Foi-lhe explicado tratar-se de
do tipo das descritas por Ayrcs da um antigo barco de ricos senhores da
Silva. Ilha, qu e após muito tempo encostado
havia sido reformado, recentemente.
Em Mato Grosso, José da Nóbr-ega Constava que sua figura de proa tinha
soube, em 1950, da existência, no pas- a utilidade de espantar du endes das
sado, de pequenas e grosseiras figuras águas.
à proa de barcos do Rio Guaporé.
Confirmo assim minha hipótese para
Nenhuma havia sido preservada. a origem das carrancas sanfrancisca-
No Rio Amazonas, ultimamente, de nas: surgidas originalmente como de-
muitos a qu em indaguei, inclusive ve- c ~ ração e símbolo de poder, receberam ,
lhos marinheiros, dos Portos de Belém logo depois, conotação popular mística.

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