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JANUS 2013

3.3.13 • As incertezas da Europa • Instituições e realidades sociais


O sindicalismo europeu no centro do vulcão: Elísio Estanque
desafios e ameaças Hermes Costa

Do mesmo modo que a Europa não constitui o movimento sindical adquiriu um amplo reco- dical se revelou dispersa e frágil (Ross e Martin,
um espaço monolítico, mas sim uma realidade nhecimento e foi protagonista fundamental nos 1999: 8).
multicultural e plural – não obstante o projeto de processos nacionais de promoção de bem-estar. O declínio da referida “idade de ouro” significou,
construção europeia –, também o sindicalismo Com o seu contributo foram-se definindo normas portanto, uma progressiva degradação das condi-
europeu está longe de ser considerado um movi- de cidadania laboral no local de trabalho e os go- ções de trabalho, colocando novas exigências so-
mento a uma só voz. Assim, falar de sindicalismo vernos desenvolveram políticas macroeconómicas bre os orçamentos de Estado, em especial para
na Europa é falar de diferentes tradições ideológi- favoráveis ao pleno emprego (Ross e Martin, fazer face ao aumento do desemprego que ia
cas, momentos de afirmação, formas de luta e 1999: 7). O Estado-Providência e o pleno emprego constantemente agravando a crise fiscal do Esta-
experiências discursivas e identitárias marcadas configuraram-se como mecanismos redistributi- do. Logo no início dos anos 80, o caso inglês
pela variedade, mesmo tendo em conta as múlti- vos cujas metas garantiram amplos consensos. (com a governação Thatcher) ilustrou bem o
plas iniciativas unificadoras que ao longo dos Foi nesse contexto que o neocorporativismo se rompimento do “compromisso nacional”, através
tempos foram levadas a cabo, de que são exem- afirmou como disposição institucional de rela- da adoção de políticas centradas na flexibilidade
plos as Internacionais operárias de finais do sécu- ções consensuais entre o governo e os interesses e na desregulamentação que foram acompanha-
lo XIX e, mais recentemente, o papel “unificador” organizados (Regini, 1995: 8) e o fordismo se das de uma restrição, pela via legislativa, da influ-
desempenhado pela Confederação Europeia de confirmou como modelo de relação salarial do- ência sindical e uma aposta no mercado, no out-
Sindicatos (CES), criada em 1973. minante. sourcing e na individualização das relações
O presente texto tem como objetivo proceder No entanto, esta visão de prosperidade foi-se di- laborais, com o isolamento do trabalhador de
a uma breve reflexão sobre o sindicalismo euro- luindo, sobretudo após a crise petrolífera de qualquer ambiente coletivo ( Waddington, 1995:
peu, em particular no período da segunda meta- 1973, que evidenciou a vulnerabilidade do referi- 31; Beynon, 1999: 274-275).
de do século XX até à atualidade. Procurando do modelo e em geral das economias europeias.
apontar alguns dos desafios internos com que os Uma dupla transformação afetou a ação dos sin- Desafios internos
sindicatos estão hoje confrontados, pretende-se dicatos: por um lado, as decisões mais importan- Propagaram-se, assim, os fatores da crise do sindi-
questionar o atual quadro de políticas de austeri- tes para os interesses sindicais deslocaram-se das calismo: desagregação de interesses em redor da
dade e os seus efeitos destrutivos sobre os direi- arenas nacionais “para cima” (para níveis transna- classe trabalhadora, em resultado da crescente
tos laborais alcançados ao longo dos tempos. O cionais) e “para baixo” (para níveis subnacio- diferenciação, segmentação e flexibilização dos
trabalho assalariado ocupou e ocupa nas socieda- nais). Em ambos os níveis, porém, os sindicatos mercados de trabalho, da descentralização da
des industriais do Ocidente um papel central, revelaram-se consideravelmente mais fracos do produção ou da precarização da relação salarial;
não apenas no plano económico mas sobretudo que no nível nacional; por outro lado, as decisões crescente ausência de lealdade e solidariedade
enquanto instância vital na sustentação da coesão macroeconómicas passaram a ser progressiva- dos trabalhadores ao sindicato como reflexo da
social e do Estado de direito. Mas, se dele decor- mente produzidas no quadro de negociações in- emergência do individualismo, que orienta os tra-
reram os principais progressos dos últimos tergovernamentais e dos mercados globais, pata- balhadores para interesses mais amplos e diversi-
duzentos anos, que culminaram com a edificação mares que superaram claramente a capacidade ficados, mas que é também o resultado do endu-
do Welfare state e as suas importantes conquistas de ação das estruturas sindicais. Além disso, deci- recimento da oposição patronal e governamental
no campo dos direitos humanos (trabalho digno, sões sobre salários e condições de trabalho passa- decorrente de contextos de liberalização e de lio-
direitos sociais, remuneração justa, segurança ram a depender menos de acordos coletivos e filização das empresas (lean production); crise
no emprego, progressão salarial, etc.), foi devi- mais das empresas, espaços onde a influência sin- de representatividade sindical, que se traduz na
do ao longo e doloroso trabalho organizativo
e mobilizador do movimento sindical, desde a era
do capitalismo selvagem, do século XIX até aos
nossos dias. O grande problema é, todavia, o imi- As tarefas do sindicalismo
nente retrocesso civilizacional em que nos encon-
■• Reforçar a vigilância sobre o modo e as condições em que o trabalho é prestado, defendendo a digni-
tramos hoje, quando estamos à beira de um
dade e o valor do trabalho, combatendo a sua mercadorização;
novo ciclo de barbárie mercantilista, semelhante ■• Organizar grupos subrepresentados nos sindicatos (jovens, mulheres, desempregados, precários,
ao dos tempos de Marx. minorias étnicas...);
• Criar parcerias e/ou formas de atuação regular com organizações não sindicais mas com interesse
Ascensão e declínio
na esfera laboral (como os FERVE, os Precários Inflexíveis, a rede MayDay, os Intermitentes do Espetá-
As longas lutas laborais do movimento operário culo, entre outros);
de há dois séculos, associadas aos efeitos diretos •■ Reforçar a representatividade sindical em sectores mais vulneráveis, com destaque para as atividades
e indiretos de conflitos mundiais e da revolução comerciais e os contratos a termo certo (vínculos precários, falsos recibos verdes, etc.);
bolchevique de 1917, contribuíram para que, ■• Fortalecer a democracia interna dos sindicatos, estimulando o debate aberto e evitando que a atividade
após a II Guerra Mundial, o modelo dominante sindical seja condicionada (ou instrumentalizada) pela presença de forças partidárias;
■• Apostar na formação de quadros e dirigentes sindicais, através de programas e convénios com univer-
de relações laborais assentasse – em especial no
sidades e centros de investigação de reconhecida competência nestas áreas, estimulando a análise
Norte da Europa – em sindicatos e associações crítica e auto-crítica sobre o sindicalismo;
patronais fortes e centralizados, que passaram ■• Intervir não só no espaço nacional, mas também numa escala transnacional e em rede, participando
a articular a sua capacidade de atuação com a dos no ativismo contra-hegemónico global;
governos. Muito embora com toda a diversidade ■• Dinamizar o sindicalismo eletrónico e dar a devida importância ao debate e mobilização através
de correntes que internamente se iam digla- do “ciberespaço”.
diando, pode dizer-se que nessa “idade de ouro”, Fonte: Costa e Estanque (2011: 172-173).

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dificuldade de mobilização de trabalhadores para defende a “rigidez” das leis laborais). Convém Áreas de intervenção da Confederação
as ações de luta, uma vez que diminui o número lembrar, por exemplo, que a Cimeira Europeia Europeia de Sindicatos
de sindicalizados ( Waddington, 2005; Costa, de 8 e 9 de Dezembro de 2011 inaugurou um
2008; Estanque, 2008 e 2011; Sousa, 2011). período de desencanto para os atores do mundo Composta por 85 confederações sindicais de 36
países da Europa Ocidental, Central e de Leste,
Não surpreende, pois, que nas últimas duas déca- do trabalho, pois na sequência, entrou em vigor
e ainda por 10 Federações Sindicais Europeias,
das o campo sindical tenha legitimamente sido a 13 de dezembro o pacote legislativo six pack,
a CES tem vindo a privilegiar as seguintes áreas
confrontado com a sua perda de representativi- com o propósito de assegurar disciplina fiscal, de intervenção:
dade. Procurou-se aferir até que ponto confiam confirmado na cimeira seguinte, de 30.01.2012, •● Diálogo social e relações laborais
as pessoas nos sindicatos, quais os sinais de reno- com a assinatura do “pacto orçamental europeu” • Governação Económica Europeia
vação destes e qual a sua influência efetiva na so- por 25 Estados-Membros da UE. Na prática, todo • Juventude e desemprego
ciedade (Costa, 2011; Estanque e Costa, 2011), este processo persegue o objetivo (consagrado • Políticas sociais
situação que, no caso português, se liga também pelos credores e pela troika) dos cortes e conge- • Europa social
ao problema da alegada “instrumentalização”, lamentos salariais, reduções nas prestações so- • Trabalhadores deslocados
tendo em conta que cada uma das confederações ciais, contração do emprego, embaratecimento • Igualdade
• P olíticas económicas e de emprego
(CGTP-IN e UGT) mantêm na sua história víncu- dos custos do trabalho, etc., em suma, o culminar
(Europa 2020)
los fortes com forças partidárias identificadas. de uma sucessão de medidas que visam, na prá-
• Trabalhadores domésticos
Acrescem ainda alguns fatores de natureza inter- tica, o desmantelamento do Estado-Providência • Flexigurança
na que não são alheios à referida tendência de e o empobrecimento geral das populações como • Mercado interno e serviços públicos
fragilização: 1) em primeiro lugar, o reforço da se daí resultasse milagrosamente o relançamento • Protocolo
 de Progresso Social/acórdãos
confiança nos sindicatos tornou necessário que da economia. do Tribunal Europeu de Justiça
estes olhassem com mais atenção para os novos • Ambiente
segmentos de trabalhadores com maior dificulda- • Relações Externas
de de organização (trabalhadores precários, • Grupos de interesse específico (jovens,
contratos a termo certo, a recibo verde, desem- Para reagir e fazer ouvir a sua mulheres, conselhos sindicais inter-regionais
• Sindicalismo europeu
pregados, etc.); 2) segundo, se os sindicatos voz, o sindicalismo terá de atuar
• A melhor agenda regulatória
demonstrassem sinais firmes de renovação (dando conjuntamente no plano • Reforma financeira
maior protagonismo a jovens, mulheres, militan-
nacional e transnacional. Fonte: http://www.etuc.org
tes de base, fortalecendo a comunicação interna
e externa, etc.) certamente teriam mais adeptos Terá de se articular com
a confiar neles; 3) o grau elevado de burocratiza- os segmentos sociolaborais que teve lugar na Península Ibérica, bem como
ção de importantes setores sindicais, até pelo não organizados, como noutros países do Sul da Europa (e que coincidiu
peso de camadas etárias envelhecidas e pouco os setores mais precarizados, também com a jornada europeia de protesto
qualificadas, protelou durante muito tempo o re- da CES), foi uma boa ilustração do caminho a
curso às novas tecnologias digitais e revelou a sua
jovens e qualificados e outras seguir para, em nome da defesa do modelo social
incapacidade para lidar com as redes de ativismo camadas da classe média [...] europeu, se rejeitarem as políticas de austeridade
do ciberespaço; 4) por fim – e não menos impor- que estão a minar a humanização das relações
tante –, a influência dos sindicatos depende em laborais, a justiça social e a coesão da sociedade.
boa medida do sucesso concreto das lutas e da Neste cenário, multiplicam-se e acentuam-se as Com a sociedade civil e os grupos “subalternos”
visibilidade na realização dos seus objetivos. Mas, incertezas quanto ao futuro do sindicalismo. No a mostrarem a sua indignação e revolta contra
como é sabido, a eficácia das lutas sindicais nem caso português, em resultado do memorando a ideologia neoliberal e a politica “austeritária”
sempre é imediata e esbarra muitas vezes na qua- de entendimento com a troika (maio de 2011), imposta pelos grandes grupos financeiros (e pela
se sempre dissonante “contagem de espingardas” do acordo de concertação social (janeiro de 2012), Alemanha), é este o momento do sindicalismo
(entre governo e sindicatos) quanto aos valores das alterações à legislação laboral (em vigor desde de abrir, se renovar e alargar a sua ação, esten-
da adesão a uma greve ou manifestação, como se 1.08.2012), pairam no ar um conjunto de ameaças dendo as suas alianças e rompendo com fronteiras
esse fosse o único critério de validade das deman- que estão a ser impostas ao movimento sindical territoriais e algum sectarismo ideológico que o têm
das sindicais. e que a crise tem vindo a acentuar: individualiza- manietado. n
ção das relações laborais e diminuição da contração
Ameaças externas coletiva; enfraquecimento do poder dos sindica-
A evolução de alguns indicadores do mercado tos na concertação social, abrindo a possibilidade Referências
de trabalho – elevadas taxas de desemprego, pro- a que matérias como a mobilidade geográfica
Costa, Hermes Augusto (2008) — Sindicalismo global
liferação de formas precárias de trabalho, aumen- e funcional, a organização do tempo de trabalho ou metáfora adiada? Porto: Afrontamento, 347 pp.
to dos contratos a prazo, reduções salariais, facili- e a retribuição sejam reguladas não apenas por Costa, Hermes Augusto (2012) — “From Europe as a model
tação dos despedimentos –, os comportamentos comissões sindicais mas por comissões de traba- to Europe as austerity: the impact of the crisis on Portuguese
trade unions”, Transfer – European Review of Labour and
patronais, muitas vezes de tipo despótico ou as lhadores; redução dos direitos e deveres regula- Research, 18 (4), 397-410.
decisões políticas dos governos são, por outro dos pela negociação coletiva, falando-se mesmo ESTANQUE, Elísio (2012) — A classe média. Ascensão
lado, fatores externos que condicionam e limitam em acabar com as portarias de extensão, o que e declínio. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos.
ESTANQUE, Elísio (2008) — “Sindicalismo e movimentos
a força do sindicalismo (Estanque e Costa, 2012), implicaria apurar a verdadeira representatividade
sociais: dilemas e perplexidades” e “entre os velhos
além de que, tudo isto ocorreu num clima de tanto sindical como patronal (Costa, 2012). e os novos activismos”, JANUS 2011 – Anuário de Relações
reforço da ideologia neoliberal e consequente Para reagir e fazer ouvir a sua voz, o sindicalismo Internacionais. Lisboa, UAL/ Jornal Público, pp. 184-187.
preconceito ideológico destinado a estigmatizar terá de atuar conjuntamente no plano nacional ESTANQUE, Elísio; COSTA, Hermes Augusto (orgs.) (2011)
— O sindicalismo português e a nova questão social –
o campo sindical como instância “conservadora” e transnacional. Terá de se articular com os seg- crise ou renovação? Coimbra: Almedina, 181 pp.
ou “força de bloqueio” às reformas e à “flexibiliza- mentos sociolaborais não organizados, como os ESTANQUE, Elísio; COSTA, Hermes Augusto (2012) — “Labour
ção” do mercado de trabalho. Governos e grupos setores mais precarizados, jovens e qualificados relations and social movements”, in Denis Erasga (ed.) —
Sociological. Landscapes: Theories, Realities and Trends.
económicos impõem no discurso público a ideia e outras camadas da classe média em perda acele-
Rijeka/ Croacia: INTECH/ Open Acess Publishing, 257-282
do “bom” sindicalismo (o que negoceia, isto é, rada de direitos e de estatuto social (Estanque, [disponível em http://www.intechopen.com/articles/show/
o que cede) contra o “mau” sindicalismo (o que 2012). A greve geral de 14 de novembro de 2012, title/labourrelations-and-social-movements].

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