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O FEMININO ABJETO NA OBRA DE ANGÉLICA LIDDELL

Janaina Fontes Leite

Resumo: O presente artigo estabele algumas hipóteses sobre a ideia de “feminino abjeto” tomando por base o
trabalho da artista espanhola Angélica Liddell e o conceito de abjeção proposto por Julia Kristeva. Problematiza
ainda a performance social da “mulher” e propõe a abjeção como um conceito que pode operar critica e
dialéticamente na problematização dos gêneros sem apaziguar as tensões e contradições ainda latentes em nosso
tempo.

Palavras-chave: autobiografia, dramaturgia, abjeção, performance

Se é verdade que o abjeto solicita e pulveriza simultaneamente o sujeito, compreende-se que


ele experimenta sua força máxima quando, cansado de suas vãs tentativas de se reconhecer fora de si,
o sujeito encontra o impossível nele mesmo: quando percebe que o impossível é o seu ser mesmo,
descobre que não é outro que o abjeto. A abjeção de si será a forma culminante dessa experiência do
sujeito ao qual é revelado que todos os seus objetos repousam somente sobre a perda inaugural
fundante de seu próprio ser.
Júlia Kristeva, Os poderes do horror, p.21

A abjeção

Tomar a abjeção como um processo indispensável à própria constituição do eu parece ser uma
contribuição fundamental e inédita da autora, psicanalista e filósofa francesa Júlia Kristeva.
Na perspectiva adotada por Kristeva nos chama a atenção dois pontos principais: 1) a abjeção
é tomada primordialmente enquanto processo, sendo a resultante uma função secundária; 2) é
um processo cuja matriz se encontra na figura materna e/ou na função MÃE.
Talvez por essa razão o conceito tenha sido bem pouco abordado por Jacques Lacan visto que
o psicanalista se deteve mais longamente nos processos de estruturação e introjeção do PAI.
Tomando PAI aqui como função simbólica ou PAI= LEI.
Se estivermos corretos, - e isso é apenas uma hipótese em um início de pesquisa – talvez
possamos criar um diálogo interessante e complementar através da contribuição dos dois
pensadores. Talvez a abjeção tal qual proposta por Kristeva seja uma espécie de margem do
real.
Julia Kristeva em seu Poderes do horror discute amplamente, através da psicanálise, da
antropologia e da literatura, o conceito de abjeção. A abjeção se relaciona fundamentalmente
à oposição “eu” e “outro” e, de forma mais arcaica, entre o “dentro” e o “fora”. Em
psicanálise, um dos processos subjetivantes mais básicos se refere justamente ao momento em

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que o bebê precisa identificar o “outro” para que ele se torne um “eu”. Segundo Kristeva, algo
de si precisa ser “abjetado”, colocado para fora, nesse processo já que esse outro não surge no
exterior, mas emerge a partir do próprio processo interno de individuação.
A mãe está no centro desse processo pois se num primeiro momento o bebê tem a mãe como
sendo ele próprio, é esse ela-si próprio que ele precisará abjetar para tornar-se um eu. “O
abjeto nos confronta, em nossa arqueologia pessoal, a nossas tentativas mais antigas de nos
distinguir da entidade maternal antes mesmo de existir fora dela graças a autonomia da
linguagem.” (KRISTEVA, 1980, p.18)
O corpo materno é citado várias vezes por Kristeva como o “in-significável”, o “in-
sibolizável”, é o próprio abismo – Kristeva fala da “caverna maternal” - que ameaça a
dissolução do ser. O corpo materno sintetiza o tentador e o terrifiante, o desejável e o abjeto.
Hal Foster em seu O retorno do real se debruça sobre o conceito citando repetidamente
Kristeva. E ao falar do horror, do repulsivo, retoma a relação entre horror, abjeção e o corpo
da mãe.

(…) como ocorre freqüentemente em filmes de terror e histórias de ninar, o horror


significa, em primeiro lugar e acima de tudo, horror à maternidade, ao corpo da mãe
tornado estranho, mesmo repulsivo, na repressão. Esse corpo é igualmente a cena
primária do abjeto, uma categoria do (não)ser definida por Julia Kristeva como nem
sujeito, nem objeto, mas antes de se tornar o primeiro (antes da inteira separação da
mãe) ou depois que se tornou objeto (como um cadáver entregue à condição de
objeto). (FOSTER, 2005: p.176)

Aquilo que foi abjetado, colocado fora, não chega a se constituir como objeto. Ao contrário,
ele permanece, como diz Kristeva, como fronteira. A autora fala da pele, dos orifícios, da
nossa relação com os alimentos e excrementos para dar imagem a isso que chama de
“economia abjetal”. Sangue, vomito, saliva, fezes, apodrecimento são elementos que podem
apontar para essa rejeição a si próprio. Kristeva fala dos borderslines como uma
subjetividade limite onde o eu arrisca o tempo todo abjetar-se para fora de si mesmo
(bulimias, mutilações e o próprio suicídio).
Ainda sobre o papel crucial da abjeção na constituição do sujeito, Foster sublinha que o abjeto
é aquilo “do que preciso livrar-me para tornar-me um eu”. Mas ele se pergunta o que seria
esse eu primordial que expulsa em primeiro lugar?:

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É uma substância fantasmática não só estranha ao sujeito, mas íntima dele – de fato,
demasiadamente –, e esse excesso de proximidade produz pânico no sujeito. Dessa
forma, o abjeto toca a fragilidade de nossos limites, a fragilidade da distinção
espacial entre nosso dentro e fora, assim como da passagem temporal entre o corpo
materno (novamente o local privilegiado do abjeto) e a lei paterna. Tanto espacial
como temporalmente, portanto, o abjeto é a condição na qual a subjetividade é
perturbada, “em que o sentido entra em colapso”; daí sua atração para artistas de
vanguarda que desejam perturbar tais ordenações do sujeito e da sociedade.
(FOSTER, 2005: p.179)

Nessa última colocação de Foster, ressoa o ponto principal para onde converge a tese de
Kristeva. A autora diz que o abjeto é também uma “ressurreição” que passa pelo poder de
sublimação que a linguagem possui. E ela cita escritores como Céline, Joyce, Proust, que
fazem da linguagem, de palavras desentranhadas, abjetadas, a sua fonte de vida e,
principalmente, a origem de uma poética própria. A relação entre linguagem e abjeção
merecerá, sem dúvida, grande atenção ao situarmos o conceito no campo das expressões
artísticas. Para Kristeva, a linguagem poética se aproximaria da psicose pois que subverte a lei
paterna, a ordem simbólica. Não nos debruçaremos sobre isso nesse ensaio, mas abjeção, real
e expressão artística parecem formar uma tríade bastante fértil para pensar, de fato, as
poéticas de muitos artistas na contemporaneidade.

Pode o ab-jeto ser um objeto?

Tanto Kristeva como Foster sublinham o caráter fronteiriço do abjeto. Se o ab-jeto é


justamente aquilo que não chega a se constituir enquanto objeto e permanece como fronteira,
será que é possível perguntar algo como quem abjeta? o quê abjeta? Ou essas perguntas
formuladas dessa maneira terminariam por reduzir, simplicar a dimensão processual,
dinâmica e substitui-la por uma lógica de resultantes na qual é possível localizar o “quem” e o
“o quê”?
Essa colocação talvez seja uma maneira ainda irresponsável, já que pouco fundamentada, de
fazer uma ressalva à apropriação que Judith Butler faz de Kristeva em sua teoria dos corpos
abjetos. Coloco como “ressalva” e não contraposição já que não estamos rejeitando de forma
alguma sua leitura e apropriação tão fecundas ao lançar luz sobre todos aqueles corpos cuja a
imagem não se adequa ao nosso regime simbólico. A leitura de Butler se fará muito

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necessária quando, mais adiante, precisaremos nos debruçar sobre a ideia de feminino e de
que forma o feminino também é abjeto socialmente.
Diferentemente de outros corpos abjetos que não encontram lugar no simbólico justamente
porque rompem todas as expectativas e normas como o corpo trans por exemplo, a mulher é
aquela que encena demais a sua adequação. Não sendo propriamente um ser (como o homem
- a norma, o que é, aquele que por ser pode transcender) a mulher é pura imanência em
constante performatização. A santa, a mãe, a esposa, a puta, a apaixonada, a carente, a
abnegada, a viril, a devoradora, seus vários ideais-mulher forjados socialmente. Ao exigir de
si mesma e ao ser exigida a se ajustar a esses papéis torna abjeta a caricatura na qual ela se
projeta e é projetada. Não à toa, é pejorativo tudo o que se reporta ao universo feminino (ser
“mulherzinha”, ser “afeminado”). A caricatura fica evidente, por exemplo, quando vemos as
super-mulheres, super sexuadas, nas quais se travestem transexuais, travestis, dragqueens
performando um ideal de sensualidade feminina moldado a medida do desejo masculino, ou,
no sentido inverso, outra caricatura do feminino que é a mãe e a esposa, caricaturizadas nos
comerciais de fralda e sabão em pó, também essas projetadas à medida da conveniência de
uma sociedade machista.
A visão de Butler oferece uma chave de leitura importante para entender, por exemplo,
porque o corpo da mulher é explorado de forma a reduzir a mulher não a um verdadeiro outro
dotado de subjetividade, mas a um objeto moldado como projeção daquele que ocupa o lugar
da norma, no caso, o homem.1
A teoria dos corpos abjetos permite também compreender porquê e como se mata um corpo
de mulher, corpo abjeto. Lembremos do caso de Ciudad Juarez onde estuprar, mutilar, matar e
expôr publicamente corpos de mulheres (foram milhares de mulheres) eram formas de
demarcar território, de demonstrar poder, ou ainda no caso indiano da menina estuprada
dentro de um ônibus em movimento por vários homens, na frente de seu namorado, de forma
brutal, usando uma barra de ferro que terminou por causar sua morte, ou, do recente caso da
chacina em Campinas que apresenta um claro teor misógino. É abjeta a vadia, a puta, a
solteirona, a frígida, a feia, a que não teve filhos, a velha, a lésbica, a mandona. Todas aquelas
que não se adequam ao ideal normativo masculino.

1Opero aqui com a categoria mulher, acreditando que é falacioso dizer que podemos (já) superar o
gênero mulher adotando cegamente a lógica não-binaria. Defendo, obviamente que o binarismo não
dá conta de todas as possibilidades de se performar tanto o gênero como a sexualidade, mas
acredito que, socialmente, o binarimo homem e mulher ainda é muito presente, atuante, determinante
das relações sociais e da organização sensível, política, afetiva do mundo, produzindo muito de vida
e morte nessas categorias.
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Butler explicita essas figuras do feminino ao ressaltar por exemplo o que se passa com
aquelas que rejeitam a maternidade.

“O corpo sem filhos é um corpo abjeto pois dentro da simbolização do que é o


“feminino” um dos atributos fundantes é o corpo reprodutor, associando força,
natureza, realização, abnegação. Talvez dos maiores atributos do feminino,
biológicos, culturais, simbólicos esteja ligando a imagem do corpo materno. O corpo
que fracassa ou se recusa a entrar nessa ordem simbólica, é abjetado da mesma
invocando as imagens do seco, estéril, egoísta.” (BUTLER, 2003)

Para Butler, a “recusa da maternidade como inscrição do corpo da mulher num terreno de
inteligibilidade” é uma forma de crítica a esse mecanismo de leitura dos corpos.
No entanto, Butler parece tornar a abjeção uma relação objetal onde é possível identificar
quem abjeta e o que é abjeto (ainda que se mantenha o significado de fratura no simbólico do
corpo abjeto, guardando o que parece ser o ponto central do conceito de Kristeva). Mas eu
gostaria de somar a essa visão butleriana uma forma de pensar a abjeção como algo interno
ao próprio devir mulher.
Se, como compreendemos com Kristeva, todo ser humano precisa abjetar a mãe introjetada
para se tornar um eu, e existe, para todos, esse algo que permanece fronteiço, margem,
indeterminado, sem nunca plasmar-se completamente como objeto da consciência nos
mantendo de certa forma ligados ao território da mãe, esse real informe, que ameaça nos
engolir novamente para a caverna uterina ou nos precipitar em direção ao nosso próprio corpo
em decomposição – o que é de certa forma a mesma coisa (territórios de indeterminação,
volta ao inorgânico, cessação da pulsao de vida), - na mulher esse processo se mantém
enquanto tensão permanente já que o “eu” mulher não chega a se constituir plenamente como
um “si mesmo”. Me explico melhor retomando Simone de Beauvoir, uma das mais
importantes filósofas para o pensamento sobre o devir mulher no século XX que, ainda que
sintamos hoje os limites do seu pensamento circunscritos ao tempo histórico e socidedade em
que viveu, deixou um legado fundamental para compreendermos a dimensão histórica, social
e cultural disso que tomamos “naturalmente” como “a mulher”. Beauvoir propõe que sendo a
mulher um produto de uma cultura patriarcal e machista que tem o homem como norma,
como centro, como “ser”, ela foi forjada e forjou-se a si mesma como a imagem projetada por
um ideal masculino reificante. Sem experimentar nada que pudesse parecer com “o humano”
ao qual apenas os homens podiam transcender , viu-se confinada em uma “essência”
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absolutamente artificial e conveniente para a manutenção dos privilégios masculinos sobre si.
Mas não só. O que gostaria também de apontar é que, perversamente, essa essencialização da
mulher também contribuia para a manutenção de seus próprios privilégios enquanto vítima. E,
nesse ponto, talvez eu possa avançar um pouco sobre de que maneira percebo uma
possibilidade complementar entre as abordagens da abjeção de Kristeva e Butler.

O feminino abjeto

O proceso de conscientização da mulher ao longo do século XX, somado aos pontos que
abordamos até aqui - abjeção como exterioridade numa relação “algo é abjeto para alguém” e
abjeção como processo intrínseco ao eu – nos dão a chave para a nossa hipótese de trabalho
que é a de tomar a ideia de feminino abjeto como parte de um processo emancipador das
mulheres por elas mesmas ou seja reinvindicar a abjeção como o processo ontológico
possível para um devir feminino.
O feminino abjeto não seria então uma recusa pura e simples dessas máscaras colocando–as
imediatamente fora, como objetos execráveis do feminino (como o que acontece dentro do
que nos parece ser o discurso imperante do “empoderamento feminino”). Mas sim uma
tomada de todos os objetos-máscaras que configuram seu lugar social, defletindo-os,
abjentando-os, reinvindicando-os como seus, como si mesmas, para movê-los de dentro para
fora. Ou (mais conforme com Kristeva) mantendo-os como fronteira. Nem si mesmo
(tornando-os essência, verdade), nem imediatamente exteriores (estranhos ao eu).
Nossa tentativa aqui é a de adentrar um campo crítico em relação ao feminino que não recaia
nem em algum novo essencialismo nem em uma visão equivocada de performatividade como
algo puramente exterior, encenado, destituído de verdade psíquica (o que seria uma visão
bastante rasa de performance, mas possível quando se ouve certos slogans prontos que tomam
como meramente exterior, por exemplo, o papel da “mulher abnegada”). Ao meu ver, um
campo crítico na arte (e distinguo a arte de outros campos como o das reinvindicações sociais
que podem e devem ser mais prágmaticos) precisaria sustentar a relação conflituosa entre o
ser da mulher e suas máscaras, talvez, indo mais além, perceber que nesse momento histórico
do processo de emancipação da mulher, o ser e suas máscaras são uma coisa só. Mesmo “a
mulher livre” também está perfomando a sua liberdade pois que não sendo o neutro, a norma,
a mulher é naturalmente artificial já que ela sempre é para o outro. Aqui estou refletindo
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tomando por paralelo o pensamento de um dos mais importantes escritores sobre a questão
dos negros e do racismo, Frantz Fanon, que diz que o negro nunca fica sozinho, nunca pode
ser ele mesmo, porque o branco fez dele um outro, lançou sobre ele o olhar que diz o que ele,
o negro, é. Negros e mulheres partilham a sina histórica de terem sido usurpados de seu ser
depois que o branco, homem, se instituiu regra e medida de todas as coisas.
O ser social do homem branco é também, evidentemente, uma performance mas esta se
confunde, por uma maquinação histórica, como uma verdadeira essência.
A essencia da mulher é uma caricatura histórica moldada convenientemente em uma
sociedade machista, patriarcal e misógina, que se psicossomatizou. No entanto, dizer isso não
significa dizer que seja mentira. Os papéis sociais da mulher que se confundem com o ser da
mulher participam do principio de prazer feminino, operam na economia psíquica feminina ou
no narcisísmo feminino.
Minha hipótese é de que olhar para o feminino abjeto seria uma forma de operar criticamente
nessa zona movediça na qual se constitui o eu-mulher sem ignorar as imensas contradições
nessa lenta e necessária perlaboração de um sujeito mulher verdadeiramente emancipado.
Talvez uma das figuras mais repulsivas e mais difíceis de transcender seja a figura da vítima
provavelmente pelo ciclo vicioso que alimenta o circuito perverso do gozo entre vítima e
algoz. O papel de vítima não se estabele apenas nesse binômio, é claro, mas é uma figura
emblemática da mulher, talvez das mais difíceis de se dissociar como podemos encontrar
sublinhado em autoras feministas como Camille Paglia e Virginie Despentes.
Reproduzo abaixo um relato extraído da internet da atriz e diretora Maria Tendlau:

No dia 30 de março de 1981, Eliane de Grammont foi assassinada pelo ex-marido


Lindomar Castilho (sabe aquela história casual de não se conformar com a
separação?). Ela tinha escrito uma música chamada Amélia de Você, uma poema
horror, para pensarmos como isto está entranhado em nós. Na época eu estudava
com a sobrinha dela. Lembro de depois da tragédia anunciada, o lugar onde ela
sentava na classe ter permanecido vazio, por uma semana. 36 anos depois, ao saber
da chacina de Campinas, a única imagem que me vem é daquela carteira vazia, no
fundo da sala. Casos assim não são acaso. Não são acaso. Nós não nascemos pra ser
Amélia de ninguém!

Amélia De Você
Tentei mudar você
Não consegui e desisti

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Porque você não tem mais jeito
Cansei de ser Amélia, santa e boa
Que esquece, que perdoa
Seus defeitos
A vida com você é uma loucura
Me deprime e me satura
Ser Amélia já era
Tentei mudar você
Não consegui, não deu
Quem deve então mudar sou eu
Mas acontece
Que eu choro, eu falo
Anoitece e eu me calo
Pra pensar só em você
Cheia de amor
Seus erros, seus defeitos
Já não importam
Não tiro os olhos da porta
Para ver você entrar
E me beijar
E toda encolhidinha nos teus braços
Não escondo nem disfarço
Toda a minha emoção
Tentei mudar você
Não consegui por que
Nasci pra ser Amélia de você
Nasci pra ser Amélia de você”

Tendlau compactua com a vítima no repúdio às “Amélias” (“Nós não nascemos pra ser
Amelia de ninguém!”). No entanto, em Eliane, a sua consciência sobre esse lugar detestável
de Amélia, não foi suficiente para que ela conseguisse (ou quisesse?) abrir mão dele. Ela
confirma sua sina “nasci para ser Amélia” na sequência em que ela, depois de reiterar uma
imagem canônica da mulher que espera (“não tiro os olhos da porta”), constata também o
prazer que experimenta (“não escondo nem disfarço toda a minha emoção”) ao se ver a si
mesma nesse quadro que é mais uma imagem icônica da fragilidade feminina, a mulher
“encolhidinha” nos braços do seu homem.

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O extremo da situação – um assassinato - somado à aparente simplicidade e lugar comum da
canção revelam, ao meu ver, uma imagem grotesca e poderosa de algo ainda não superado em
muitos níveis para a mulher, algo que nos ameaça não apenas de fora, mas também de dentro:
“Fronteira sem dúvida, a abjeção é sobretudo ambiguidade. Porque, ao demarcar, ela não
separa radicalmente o sujeito daquilo que o ameaça – pelo contrário, ela o reconhece em
perigo perpétuo.” (KRISTEVA, 1980, p.17)
Encarar as figuras abjetas em mim que fazem sofrer mas também fazem gozar (no sentido
psicanalítico) me parece um caminho necessário, sobretudo nas artes, para lidar com
contradições ainda operantes ainda hoje.

O abjeto é a violência do luto por um “objeto” para sempre já perdido. O abjeto


derruba o muro da repressão e de seus julgamentos. Ele reconduz o eu [moi] à fonte
dos limites abomináveis dos quais, para ser, este se separou – ele o reconduz ao não-
eu, à pulsão, à morte. A abjeção é uma ressurreição que passa pela morte (do eu
[moi]). É uma alquimia que transforma a pulsão de morte em despertar de vida, de
nova significância. (KRISTEVA, 1980, p.22)

Reinvindicar esse olhar é talvez poder construir um caminho para um “luto” real de nós
mulheres sobre essa parte nossa que repudiamos. Talvez então a abjeção nesse processo
produza como consequência essa espécie de “ressurreição”, essa “nova significância” que
propõe Kristeva.

O feminino abjeto em Angélica Liddell

Quando Kristeva em seu “Os poderes do horror” culmina em análises de obras artísticas para
coroar o seu percurso teórico, é porque a autora acredita que certas expressões ou poéticas
podem ser paradigmáticas para que compreendamos o potencial subversivo da abjeção ao
adentrar o território do PAI, a linguagem. Acreditando nesse potencial, concluímos nós
também nosso breve percurso com alguns apontamentos sobre a representação do feminino na
obra da espanhola Angélica Liddell.

Liddell é uma artista que empreende um projeto teatral no qual assume radicalmente a fala em
primeira pessoa, sem, com isso, reiterar as ilusões narcisistas que sustentam grande parte dos
empreendimentos autobiográficos tão comuns e banalizados na contemporaneidade. Sem, tão
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pouco, recair em uma espécie de reinvindicação identitária, seja do ponto de vista do sujeito,
seja do ponto de vista de alguma categoria de pertencimento coletiva. É marcante a maneira
pela qual ela trabalha o feminino em sua obra. Liddell afirma “Tenho uma consciência, uma
brutal consciência de ser mulher. Não posso evitar sentir-me mulher”. O que poderia, somado
aos temas de muitos dos seus espetáculos nos quais ela denuncia violências sofridas por
mulheres, apontar para uma espécie de posição feminista, ganha contornos imprevistos ao nos
depararmos com textos como este que se segue:

No quiero ser como todas esas lloronas que se inflan a pastillas para dormir. No
quiero ser una de esas señoras con esperanzas, que sueñan, que aun oliendo a
meados conservan las esperanzas, que frotan su vagina con cualquier polla pero en
el fondo conservan otras esperanzas. Segundas oportunidades y toda esa basura. No
quiero ser una de esas mujeres que son sólo setimientos, que necesitan sentimientos
a todas horas, que no tienen más argumentos que los putos sentimientos, que
necesitan limpiar hasta una letrina por amor, y no simplesmente porque dében
limpiar la letrina, y limpiarla bien, y ya está. Limpiar una letrina no es amar. No
quiero ser como todas esas mujeres que le echan la culpa a todos los hombres de su
desgracia, de su soledad, que le echan la cupla a todo el mundo,antes de reconocer
que son viejas, y feas, y estúpidas. Y están agotadas, y cargadas de hijos, que las
hácen todavía, más viejas, más feas y más estúpidas,y ni el suplemento de dignidad
las salva, ni ser madres las salvas. (LIDDELL, 2014, p.168-169)

Muitos textos trazem uma forte carga misógina repudiando a mulher e suas representações.
Talvez a radicalidade de Liddell resida na sua maneira de colocar as questões do feminino de
forma que elas não se adequem a uma lógica de afirmação de uma identidade feminina ou de
uma luta reinvindicatória pelos direitos das mulheres. O feminino em Liddell só pode ser
tomado em sua negatividade ou em sua dimensão abjeta. Naquilo que se nega a encontrar
plena simbolização no campo das trocas sociais ou servir a categorias afirmativas. Com
efeito, é dela também a frase “meu ponto de vista é absolutamente anti-social”, reforçando sua
recusa em adequar seu teatro a qualquer luta identitária.

Dessa forma, a des-identidade termina por apontar para o aparente paradoxo de uma obra que
se declara “pornograficamente” pessoal.

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O “ser mulher” que se revela não se presta a nenhum tipo de construção edificante que sirva
de anteparo a nossa própria identificação narcísica com ela. O feminino que se revela é da
ordem da abjeção, tomando aqui a abjeção como uma espécie de “crise narcísica” como
propõe Kristeva:

O narcisismo aparece como uma regressão em retirada do outro, um retorno a um


refúgio autocontemplativo, conservador, autossuficiente. De fato, tal narcisismo
não é jamais a imagem sem ruga do deus grego numa fonte plácida. Os conflitos
das pulsões atoladas no fundo perturbam sua água e trazem tudo aquilo que, para
um dado sistema de signos, ao não se integrar, é da abjeção. A abjeção é, pois,
uma espécie de crise narcisística. (KRISTEVA, 1980, p.21)

Tomado dessa maneira, o feminino em Liddell aparece então como o contrário dessa “fonte
plácida” onde podemos nos mirar. É muito mais um fundo turvo em que as imagens da
mulher se encontram convulsionadas.

Dessa forma, a poética de Liddell parece sim operar critica e artisticamente na


problematização dos gêneros mas sem com isso apaziguar as tensões e contradições que o
próprio conceito de abjeção carrega.

Referências

BUTLER, Judith P., Problemas de gênero: feminino e subversão da identidade; trad. Renato Aguiar,
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
FOSTER, Hal, The Return of the Real, Londres: MIT Press, 1996.

KRISTEVA, Júlia, Pouvoirs de l’horreur, Essai sur l’abjection, Paris: Éditions du Seuil, 1980.
LIDDELL, Angélica, Todo el cielo sobre la tierra. In: El centro del mundo, Editiones La Uña rota,
2014.

The abject feminine in the work of Angélica Liddell

Abstract: The present article establishes some hypotheses about the idea of "abject feminine"
based on the work of the Spanish artist Angélica Liddell and the concept of abjection
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proposed by Julia Kristeva. It also problematizes the social performance of the "woman" and
proposes abjection as a concept that can operate critically and dialectically in the
problematization of the genres without appeasing the tensions and contradictions still latent in
our time.

Keywords: Autobiography, dramaturgy, abjection, performance

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