Você está na página 1de 18

Conselho Editorial:

Casemiro dos Reis Filho, Dermeval Saviani, -.


\
Gilberta S. de M. Jannuzzi, Walter E. Garcia

Diretor Executivo A PESQUISA EM ARTE


Flávio Baldy dos Reis
UM PARALELO ENTRE ARTE E CIÊNCIA
Diretora Editorial
Gilberta S. de M. Jannuzzi

Diagramação e Composição
Selene Nascimento de Camargo

Revisão
Daniela Manini SILVIO ZAMBONI

Capa
Criação
Milton José de Almeida

Arte Final
Selene Nascimento de Camargo

Copyright © 1998 by Editora Autores Associados

EDITORA AUTORES ASSOCIADOS


Caixa Postal 6164 - CEP: 13081-970 - Campinas - SP COLEÇÃO POLÉMICAS DO Nosso TEMPO
Fone/Fax: (019) 289-5930
editora@autoresassociados.com.br EDITORA
AUTORES
www.autoresassociados.com.br ASSOCIADOS
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
SUMÁRIO

Zamboní, Silvio APRESENTAÇÃO /


A pesquisa em Arte : um paralelo entre arte e ciência / Silvio
Zamboni. - Campinas, SP : Autores Associados, 1998. - (Coleção
polémicas do nosso tempo ; 59)
INTRODUÇÃO 5

Bibliografia.
CAPÍTULO UM
ISBN 85-85701-64-1 ARTE E CIÊNCIA //
1 . Arte e Ciência como Conhecimento / /
1. Arte - Pesquisa 2. Arte e Ciência 3. Pesquisa - Metodologia I.
Título. II. Série. 2. Intuição, Intelecto e Criatividade em Arte e Ciência 21
3. O Paradigma em Arte e Ciência 31
98-0620 CDD-700.105
CAPÍTULO Dois
índices para catálogo sistemático: METODOLOGIA DE PESQUISA EM ARTES VISUAIS 43
l. Pesquisa e Metodologia 43
1. l. A Especulação (Desordem Experimental) 45
l. Arte e ciência 700,105
1. A Metodologia na Pesquisa em Artes Visuais 48
2. l . A Definição do Objeto de uma Pesquisa 49
2.2. Métodos de Observação 54
Impresso no Brasil - agosto de 1998 2.3. Processo de Trabalho 56
2.4. Resultados e Interpretaçãos 58
3. Resumo da Proposta de uma Metodologia
para Pesquisa em Artes Visuais 59
Depósito legal na Biblioteca Nacional conforme Decreto n° l .825, de 20 de de-
zembro de 1907.
Todos os direitos para a língua portuguesa reservados pela Editora Autores Associados CAPÍTULO TRÊS
Ltda. ANÁLISES 61
Nenhuma parte da publicação poderá ser reproduzida ou transmitida de qualquer
modo ou por qualquer meio, seja eletrônico, mecânico, de fotocópia, de gravação, ou \. Os Parâmetros para a Analise 61
outros, sem prévia autorização, por escrito da Editora. O código penal brasileiro deter- 2. As Fontes 64
mina, no artigo 184:
2. l. Pesquisas Apoiadas pelo CNPq 66
"Dos crimes contra a propriedade intelectual
Violação de direito autoral - art. 184. Violar direito autoral 2.2. Dissertações e Teses 77
Pena - detenção de três meses a um ano, ou multa.
Io Se a violação consistir na reprodução, por qualquer meio, de obra intelectual, CONCLUSÕES 95
no todo ou em parte, para fins de comércio, sem autorização expressa do autor ou de
quem o represente, ou consistir na reprodução de fonograma e videograma, sem auto- BIBLIOGRAFIA ESPECÍFICA 101
rização do produtor ou de quem o represente:
Pena - reclusão de um a quatro anos e multa." BIBLIOGRAFIA GERAL 106
A P R E S E N T A Ç Ã O

A s motivações que me levaram à conveniência de


elaborar este trabalho advêm, em grande parte, das
dificuldades que encontrei para caracterizar a pes-
quisa em arte, desde a época em que comecei a trabalhar
na nascente área de artes no CNPq, em 1984.
Naquela época, essa área ainda não era oficializada na
Jnstítuição. Já havia processos tramitando, é verdade, mas
não existia o reconhecimento oficial da área. As cotas de
bolsas e de verbas para a pesquisa em artes não tinham
alocação específica dentro de rubrica própria que garantis-
se, com segurança, o atendimento dos projetos aprovados.
Não havia consultores específicos e especializados em ar-
tes plásticas; os processos eram julgados por assessores
convocados de outras áreas.
Apesar de todas as dificuldades, era fundamental trans-
formar uma área incipiente, e quase clandestina no CNPq,
em área estruturada e oficial dentro do órgão. O estatuto de
área oficial lhe daria a quota de recursos financeiros em ru-
brica própria, necessários ao seu desenvolvimento e con-
solidação no panorama científico brasileiro.
Para tanto, iniciei uma série de contatos com pesqui-
sadores de universidades do país buscando incentivar o au-
mento da demanda de recursos. Realizei também muitas
2 A PESQUISA EM ARTE APRESENTAÇÃO 3

viagens pelo país para divulgar as vias de acesso da insti- Era fundamental que fossem definidos alguns parâme-
tuição para atendimento dos pleitos dos pesquisadores em tros básicos, a partir dos quais seriam criadas as normas que
artes. A partir desse trabalho a demanda de solicitações de regeriam a atividade. Alguns critérios foram formulados; to-
bolsas e de verbas para a área de.artes foi aumentando, davia, porque ainda eram pouco operacionáveis para o
tornando-se cada vez mais significativa e passando a cons- gerenciamento da área, tornaram muito difícil a sua norma-
tituir-se em fato real e, portanto administrável pelo CNPq. tização. Sabia-se que, pela própria história e natureza da Ins-
Paralelamente aos contatos com os pesquisadores de tituição, o CNPq deveria apoiar somente as proposições
artes, iniciei um longo trabalho de convencimento interno, que constituíssem pesquisa em artes, mas não se conseguiu
dentro da Instituição, a fim de sensibilizar as instâncias com eficácia definir o que era realmente pesquisa em artes.
decisórias para a importância da pesquisa em artes. Surgiram alguns conceitos e regras não suficientemente sis-
No CNPq, ficou cada vez mais clara a todos os diri- tematizados, ainda pouco explícitos e pouco claros, mas
gentes a necessidade da oficialização da área de artes. Mas que, não obstante a precariedade, até recentemente foram
isso ainda não era o bastante. Uma proposta nesse sen- utilizados para o gerenciamento da demanda.
tido deveria ser aprovada no órgão colegiado de delibe- Essas dúvidas quanto a questão da pesquisa em artes
ração máxima da Instituição, no qual tinham assento e não ocorreram somente no CNPq. Por ocasião da pri-
voto vários membros representantes da comunidade ci- meira reunião visando a fundação da Associação Nacional
entífica, muitos dos quais eram contrários à implantação de Pesquisadores em Artes Plásticas - ANPAR em dezem-
da área. Alegavam que o CNPq era um órgão que, por bro de l 986, ocorreram-nos também muitas dúvidas so-
tradição, apoiava a ciência baseando-se nos próprios cri- bre como definir e conceituar a pesquisa em criação ar-
térios científicos para definir os projetos a serem aprova- tística. Para amenizar as discordâncias, dividiu-se a entida-
dos, e que não deveria apoiar as artes, pois poderia ferir de nascente em cinco comités nos quais estariam repre-
os objetivos primeiros da instituição, além de faltarem cri- sentadas todas as áreas de pesquisa: história e teoria da
térios claros e objetivos p&rz o julgamento de projetos em arte, arte-educação, restauração, curadoria e linguagens
artes. O assunto entrou em pauta em reunião desse con- visuais. Se as quatro primeiras não tiveram dificuldades
selho de deliberação e, depois de muitas vozes-a favor e quanto a caracterização da atividade investigativa como
também muitas contrarias, a própria presidência do-CNPq pesquisa, o comité de linguagens visuais, que congrega
interveio em defesa da proposta fazendo com que, final- artistas-pesquisadores, continuou com dúvidas e inde-
mente, as artes se tornassem área efetiva dentro da ins- finições sobre como caracterizar a pesquisa em linguagens
tituição. visuais.
Uma vez reconhecida oficialmente, era fundamental Nas Universidades, pude constatar que também existem
que o órgão dispusesse de um conjunto de critérios, ain- grandes dificuldades para o gerenciamento e n_ormatizacjcí
da que tentativos, capaz de organizar minimamente a área das pesquisas relacionadas à criação artística. Em várias pa-
recém-criada. Logo ficou evidente que enquadrar e julgar lestras e mesas-redondas de que participei sobre o assun-
os projetos de pesquisa em artes, segundo os mesmos to, constatei, principalmente pelo teor das perguntas e de-
critérios de outros campos do conhecimento, poderia ma- bates que a elas se sucederam, a existência de dúvidas e
tar no nascedouro a área que, depois de tantas adversida- questionamentos entre artistas, professores, alunos e prin-
des, estava enfim criada. cipalmente da parte dos pró-reitores de pesquisa.
4 A PESQUISA EM ARTE

I N T R O D U Ç Ã O
Diante dessas dúvidas e indefinições é que optei por
desenvolver como tema de minha tese de doutorado em
Artes na ECA/USR e que agora público com pequenas mo-
dificações, a problemática envolvida na caracterização do
que seja a pesquisa em artes. Tenho consciência de que
meu trabalho não resolverá a questão de modo definitivo,
mas fica pelo menos a certeza de estar contribuindo para
uma reflexão mais amadurecida acerca da pesquisa em ar-
tes e de ter fornecido a agências de fomento, universida-
des, mestrandos, doutorandos, equipes de avaliação de
pesquisa - e principalmente a arttstas-pesquisadores - uma
ferramenta útil para alavancar os projetos e iniciativas na
área artística.

ste trabalho tem como tema central, como foco de


preocupação e como ponto de convergência das re-
flexões desenvolvidas o que se costuma denominar,
de maneira abrangente, de pesquisa em artes, termo hoje já
bastante difundido nos meios académicos e artísticos.
Para evitar equívocos de compreensão quanto ao empre-
go que faço dessa expressão neste trabalho, passo a escla-
recer as limitações operadas no conceito mais abrangente de
pesquisa em artes, para conformá-lo aos limites do trabalho
e aos propósitos que busquei alcançar.
Pode-se dizer, de uma maneira ampla, que pesquisa em
arte é qualquer pesquisa que se desenvolva no campo das
artes. Ora, a arte, enquanto área do conhecimento humano,
abarca um amplo espectro de expressões e manifestações.
Esse trabalho, embora limitando-se apenas ao unJverso das
artes visuais, pode ter em muitas circunstâncias os seus con-
ceitos estendidos às artes em geral, e mesmo dentro desses
limites estão todas as suas diversas faces: criação, recepção,
crítica, ensino, etc. Essas faces, por sua vez, podem ser es-
tudadas em muitas disciplinas, tais como história da arte, arte-
educação, restauração, teoria da arte, curadoria, psicologia
da arte, sociologia da arte e tantas outras. Em sentido
abrangente, portanto, existe a pesquisa do teórico da arte, do
Ó A PESQUISA EM ARTE INTRODUÇÃO 7

investigador em arte-educação, do restaurador, do historia- Vou empregar o termo Pesquisa em Artes pára designar
dor da arte, do investigador que trabalha com materiais artís- exclusivamente as pesquisas relacionadas à criação artística,
ticos, do museólogo, enfim, de qualquer pesquisador que se que se desenvolvem visando como resultante final a produ-
ocupe da arte. ção de uma obra de arte, e que são empreendidas, ipso fac-
Usarei a expressão pesquisa em artespara me referir ao to, por um artista.
trabalho de pesquisa em criação artística, empreendido por O objetivo principal desse trabalho é, em última instância,
artistas-jq.ue,objetivam obter como produto final a obra de a proposição de um modelo metodológico para a pesquisa de
arte. Portanto, só tratarei nesse trabalho da pesquisa realiza- criação artística em artes visuais - sem com isso se negar o ca-
da pelos artistas, ou seja, quando o artjsta também se assu- ráter sensível e intuitivo inerente ao processo. Acredito que a
me como pesquisador e busca, com essa dupla face, obter proposição de um modelo metodológico caracteriza uma fase
trabalhos artísticos como resultado de suas pesquisas. de culminância das reflexões e norteamento do caminho per-
É preciso ressaltar que as outras atividades de pesquisa corrido, constituindo a condensação e cristalização de muitas
ligadas à arte, as teóricas, as interdisciplinares ou as circun- ideias que serão apresentadas e desenvolvidas ao longo do tra-
dantes, que também poderiam ser rotuladas de pesquisa em balho. O modelo deverá ser a síntese que dará resultados e
artes, já têm uma fundamentação metodológica usual que respostas a questões eminentemente práticas. No capítulo
orienta o processo de investigação. O historiador da arte, por Analises, este modelo metodológico será testado com dados
exemplo, conta com métodos solidificados para a realização empíricos, para a avaliação de sua adequação à pesquisa em
de seu trabalho, pois, embora o objeto de seu estudo seja a criação artística, no estado e nas condições em que atualmen-
manifestação da arte ao longo do tempo, as metodologias de te é desenvolvida pelos artistas pesquisadores. A adequação
que se vale, normalmente, são aproximações de outras uti- também faz parte dos objetivos desta proposta metodológica,
lizadas em história ou outras ciências humanas afins. O mes- que, em resposta a uma demanda pragmática, visa fornecer
mo se dá com o arte-educador, que pode lançar mão de uma contribuição efetiva, a todos que, de variadas formas, ocu-
métodos de pesquisa habitualmente utilizados em educação, pam-se com a pesquisa em arte.
em ciências sociais, psicologia, etc. É importante que se diga que ainda persistem muitas dú-
Em resumo, são muitas as pesquisas que têm a arte vidas em relação à pesquisa em arte, questiona-se até mes-
como objeto, mas que utilizam métodos e técnicas de in- mo a sua própria existência como tal. Muitos artistas e mes-
vestigação bastante diversos uns dos outros. Até áreas pu- mo alguns teóricos de grande respeitabilidade com quem tive
ramente técnicas fazem pesquisa em artes utilizando meto- a oportunidade de discutir a questão - e que prefiro não os
dologias e conceitos teóricos relativos a outros campos de citar nominalmente, para evitar qualquer má interpretação -
conhecimento. Como exemplo, lembra-se a pesquisa de entendem que não há sentido se falar em pesquisa em arte, '
materiais artísticos, a qual exige conhecimentos e métodos pois, segundo eles, toda arte, pela sua própria natureza, é
de análise principalmente da química e da física - e não vis- pesquisa, daí não caber distinções.
tas sob o ângulo da linguagem. Da mesma forma, o biólo- O pressuposto central deste trabalho é a existência de for-
go, ao pesquisar fungos que atacam obras de arte, deve se mas distintas de se processar o trabalho em arte, ou seja, há
utilizar de métodos e conhecimentos da biologia, especifi- artistas que realizam de forma nitidamente consciente pesqui-
camente de mícologia, muito embora não deixe de estar sas em arte, e artistas que trabalham de uma forma preponde-
realizando Pesquisa em Artes. rantemente intuitiva, e se afastam, ipso facto, de um proces-
8 A PESQUISA EM ARTE INTRODUÇÀO ç

só de labor com elevado grau de conscientização, conduta dências da racionalidade na arte, deixando claro não ser a
requerida por qualquer pesquisa de procedimento racional. obra de arte fruto somente do inconsciente. Para ele, exis-
Tomando-se a forma de pensamento das principais cor- tem pelo menos duas formas distintas de ordenamento: o
rentes filosóficas ocidentais, percebemos que as atividades lógico e o sensível. Essas formas não são autónomas, in-
relacionadas ao conhecimento humano giram em torno de dependentes e dissociadas. Na realidade, diferentes tipos
um componente lógico, racional e inteligível, de um lado, e de "racionalidade" interagem, por vezes se confundem, se
de um componente intuitivo e sensível, de outro, sendo as- auxiliam e se complementam na produção e na recepção
sim tanto na produção do conhecimento científico, quanto na das mensagens expressivas e intrínsecas contidas nas
do conhecimento artístico. A diferença básica entre ambos é obras de arte.
que o resultado apresentado pela ciência não pressupõe e A racionalidade lógica se funda em mecanismos pró-
não suscita maiores questionamentos quanto aos métodos ximos da racionalidade científica, de caráter explicativo, in-
sensíveis e intuitivos que interferiram no processo de gera- teligível, distínguível, definível e passível de esquematização.
ção do produto científico. Na arte, o sensível, embalado por Todas as manifestações artísticas possuem caráter lógico
impulsos intuitivos, vai além do processo de criação artística, que, embora não exclusivo, constitui-se em evidentes for-
pois faz parte do próprio caráter multissignificativo da obra de mas de arranjamento e ordenação consciente e racional.
arte, sempre apresentado ao interlocutor como parte inte- O texto literário, por exemplo, muitas vezes traz consigo
grante de sua significação. A esse interlocutor é que cabe a reflexões de caráter filosófico, ideológico, político que,
recepção da obra de uma forma própria e pessoal. embora assentados no pensamento lógico, nem por isso
As preocupações com o caráter racional da arte não são impedem que a obra seja de arte. Igualmente, outras lin-
recentes. Seguramente, desde Platão e Aristóteles já esta- guagens podem ter vertentes lógicas sem que o resultado
vam presentes as explicações da racionalidade implícita no final deixe de ser arte.
fazer artístico. A existência do caráter racional em arte se revela ine-
No Renascimento, Leonardo da Vinci trabalhou de uma for- gável quando se promove a interposição e a comparação
ma altamente intelectualizada e com um método inspirado na entre a arte e a ciência enquanto formas de atividades do
mais alta lucidez. Paul Valery ( 1 9 9 1 , pp. i 37/1 66) chegou a conhecimento humano. Daí o método de abordagem da
identificar esse método com o utilizado por Faraday em suas pesquisa em artes ser feito sempre comparativamente ao
pesquisas científicas. da pesquisa em ciências e o uso desse modelo compara-
Apesar de ter-se evidência da racionalidade na arte em tivo ocorre, principalmente, em razão da existência de um
várias épocas, sempre existiram e existem até hoje muitos grande arsenal teórico destinado ao entendimento da pes-
que não aceitam a arte como uma forma de atividade racio- quisa em ciências.
nal. Críticos, artistas, intelectuais e mesmo o cidadão comum O presente trabalho não se interpõe a paradigmas as-
debatem o problema. Mas a maioria das pessoas, e mesmo sentados no racionalismo, mesmo porque seu objetivo
alguns setores mais académicos, pensam que a produção e principal é a elaboração de um método que, pela própria
a recepção não obedecem a uma norma racional. Para o sen- natureza, envolve caráter lógico e, como tal, só poderia
so comum, arte é sinónimo de emoção. ser desenvolvido se assentado em aspectos racionais.
Jayme Paviani, em seu estudo intitulado "A Racionalidade A abordagem que farei neste trabalho está, portanto, re-
Estética", (l 99 l , p.7) discorre longamente sobre as evi- lacionada mais ao caráter lógico e organizativo do processo
10 A PESQUISA EM ARTE
C A P I T U L O U M
de trabalho na arte, tomando a pesquisa em artes como uma
forma manifesta das mais apuradas da racionalidade lógica.
Pesquisa é premeditação e essa, por sua vez, é racional. En-
tendo também que uma das características fundamentais da
pesquisa é o grau de consciência e do pleno domínio intelec-
tual do autor sobre o objeto de estudo e do processo de tra-
balho, mas com isso não pretendo negar a existência da força ARTE E CIÊNCIA
intuitiva e sensível contida em qualquer processo de trabalho,
seja em arte, seja em ciência.

1. ARTE E CIÊNCIA COMO CONHECIMENTO

P ode-se afirmar que a história da humanidade con-


funde-se com a própria história do conhecimen-
to humano, pois dependendo dos valores vigen-
tes em épocas diversas, ele pode ser concebido segun-
do as contingências e os juízos-da época que o gerou.
Encarado e entendido segundo tal ou qual óptica, uma vi-
sada diacrônica sobre o conhecimento mostra diferentes
rearranjamentos e composições se produzindo ao lon-
go da história. Assim, o que é uno e distinto hoje não o
era em épocas passadas e nada garante que o será no fu-
turo.
A divisão do conhecimento humano, principalmente
no que diz respeito aos aspectos explicativos, deu-se
principalmente a partir de Descartes (l 596-1 690). Suas
ideias e seu método influenciaram sobremaneira todo o
modo de pensar ocidental, provocando uma ruptura com
a maneira anterior de conceber o mundo.
Descartes fez da razão o ponto de apoio para desen-
volver sua teoria, que é calcada na necessidade de um mé-
todo. Ele parte de quatro conceitos básicos: Evidência,
Divisão, Ordem e Enumeração, justificando que é mais
funcional dispor de poucos preceitos, do que um grande
12 A PESQUISA EM ARTE ARTE E CIÊNCIA 13

número deles, tal como se estrutura a Lógica; e os enun- procura é entender todas as coisas sempre segundo o mes-
cia, no seu Discurso sobre o Método.* mo critério, utilizando, para tanto, sempre o mesmo méto-
Esses quatro conceitos fundamentais conferem à teoria do. Tudo o que é suscetível de conhecimento é passível de
cartesiana, de forma clara, a sua feição. Primeiramente só é ser formulado em pensamento do tipo matemático.
verdadeiro aquilo que é evidente, que é claro e distinto, O cla-
ro deve ser dividido, segmentado, separado para poder ser Esta é a fórmula inflexível do racionalismo cartesiano, que
analisado. As questões complexas devem ser divididas em é um racionalismo radical e essencial pela univocidade ab-
questões mais simples: tem-se que partir das parcelas para se soluta de seus critérios de evidências, e não pelo seu ili-
mitado alcance, facilmente desmentido. O pensamento
atingir o total. Tudo deve ser ordenado. A ordem como es-
cartesiano é racionalista por conjugar, rigorosamente, a
sência do método inicia a transformação radical sobre a na-
unidade da razão com a unidade do saber e com a uni-
tureza do pensamento: este já não pensa em coisas, e sim dade do método (Kujawski, 1969: p. 78).
em relações. Depois da evidência, da divisão e da ordenação,
o papel de enumeração tem a função de restabelecer a con- Obviamente não foi somente Descartes o único respon-
tinuidade do pensamento que foi fragmentado. sável pela mudança de rumos históricos do conhecimento
O cartesianismo não pretendeu explicar todas as coisas, universal. Ele talvez tenha sido o maior símbolo, por ter ex-
o próprio Descartes declara que, em questões da alma e do posto com maior detalhamento e clareza a proposta meto-
corpo, não tem ideia nenhuma. O cartesianismo é a razão, dológica do racionalismo, que permeia até hoje de forma
e explica o que pode ser enquadrado dentro de seus precei- marcante a busca do conhecimento no mundo ocidental.
tos. O que está além ou aquém da razão não pode ser en- Outros também contribuíram para engendrar a nova perspec-
tendido porque foge da análise racional feita pela parte do cé- tiva do moderno espírito científico.
rebro destinada a tal fim. O que o raciònaltsmo cartesiano O empirismo de Bacon (1558-1627) fez também
por contribuir para essa nova ordem de pensamento. Ele
I. Descartes, Obras Escolhida, São Paulo, 1962, p.53/54: é tido como o inventor do método experimental e uma
"O primeiro era o de jamais acolher alguma coisa como verda- das personalidades que mais influíram na formação da ci-
deira que não conhecesse evidentemente como tal; isto é, de evitar ência moderna. Encontraremos ainda em Galileu (1564-
cuidadosamente a precipitação e a prevenção, e de nada incluir em meus 1642) fundamental contribuição ao desenvolvimento do
juízos que não se apresentasse tão clara e tão distintamente a meu moderno método científico. Entre suas contribuições, a
espírito, que eu não tivesse nenhuma ocasião de pô-lo em dúvida. principal foi a utilização matemática para explicar os prin-
O segundo, o de dividir, cada uma das dificuldades que eu exami-
cípios da física, o que provocou divergência na ciência ofi-
nasse em tantas parcelas quantas possíveis e quantas necessárias fos-
cial da época, representada pelos seguidores de Aristó-
sem para melhor resolvê-las.
O terceiro, o de conduzir por ordem meus pensamentos, come- teles, que não aceitavam tal postura.
çando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para subir, Isaac Newton (l 642-1727) combinou o método empírico
pouco a pouco, como por degraus, até o conhecimento dos mais com- e indutivo de Bacon ao método racional e dedutivo de Descar-
postos, e supondo mesmo uma ordem entre os que não se precedem tes, mostrando que tanto a interpretação de fenómenos sem
naturalmente uns aos outros. sistematização, quanto a dedução sem uma base experimen-
É o último, o de fazer em toda parte enumerações tão completas tal não constituíam o caminho a ser seguido para uma formu-
e revisões tão gerais, que eu tivesse a certeza de nada omitir".
lação teórica respeitável. Combinando os fatores, Newton
14 A PESQUISA EM ARTE ÀRTE E CIÊNCIA 15

deu realidade ao sonho iniciado por Descartes e completou volvimento de outras. Numa velocidade grande, abrem-se
de forma definitiva a revolução científica antes iniciada. os leques das ramificações para se encontrar soluções via
Newton não foi um filósofo no sentido mais restrito da especialização, de forma tal que a ciência continua a se de-
palavra, mas a sua contribuição para o conhecimento huma- senvolver sem ter que sair do mesmo modelo.
no se deu em muitas áreas tais como: cálculo infinitesimal, Mas se, pelo lado ocidental, o conhecimento se desen-
gravitação universal, teoria da luz, movimento dos corpos e volveu dessa forma, no pensamento oriental existem inú-
teoria atómica. A visão mecanicista do mundo, já de certa meros aspectos muito diferentes.
forma anteriormente proposta por Descartes, é sustenta- Kichard Wilhelm, Jung e outros estudiosos que se ocu-
da por Newton. Segundo ela, o mundo é visto como um param com estudos sobre a filosofia chinesa apontam o li-
grande amontoado de coisas reunidas como peças de uma vro / Ch/ngcomo sendo a obra mais importante da sabedo-
máquina de grandes proporções, em que tudo é possível de ria oriental.2
ser reduzido, tudo é divisível e a união desse divisível é que Procurando-se os conceitos básicos que permeiam o
forma o mundo. livro,3 pode-se permanecer dentro dos limites de alguns
Sob esse sistema se desenvolve a ciência atual: tudo poucos, porém amplos conceitos, como o dos opostos
preferencialmente é divido, subdividido, enumerado, classi- que originam o princípio que guia todos os movimentos do
ficado, passível de ser contado, de ser medido, tudo deve Tão, ou seja, a essência primária da realidade. É um proces-
ser enquadrado em linguagem matemática para poder ser so contínuo e dinâmico. Os dois pólos fixam os limites para
manipulado com maior coerência dentro do modelo.
Essa matriz racionalista faz com que o conhecimento
humano tenda a ser rotulado em áreas e sub áreas, as divi- 2. Richard Wilhelm, / Ching, São Paulo, 1987, na introdução que escre-
veu dessa edição, afirma na página 3:
sões e subdivisões alastram-se, as especializações prosse-
"O Livro da Mutações -1 Chingem chinês - é, sem dúvida, uma das mais
guem em caminhos que parecem não ter retorno. Perde- importantes obras da literatura mundial. Sua origem remonta a uma anti-
se em amplidão, ganha-se em profundidade, mas sempre guidade mítica, tendo atraído a atenção dos mais eminentes eruditos chine-
dentro do mesmo modelo reducionista. ses até os nossos dias. Tudo o que existiu de grandioso e significativo nos Ires
Esse caminho que percorreu o desenvolvimento do co- mil anos de história cultural da China ou inspirou-se nesse livro ou exerceu
nhecimento ocidental, acabou por sistematizar as ciências em alguma influência na exegese do seu texto. Assim pode-se afirmar com se-
gurança que a sabedoria amadurecida ao longo de séculos compõe o l Ching,
áreas e sub áreas, e, a medida em que mais diferenciações
Não é, pois, de estranhar que essas duas vertentes da filosofia chinesa, o
são engendradas, novas ciências ganham razão de existên-
Confucionismo e o Taoísmo, tenham suas raízes comuns aqui. (...)
cia independente, pois surgem novas divisões no conheci- Na realidade, não apenas a filosofia da China mas também sua ciência
mento para sustentarem o desenvolvimento das demais. Um e arte de governar sempre buscaram inspiração na fonte de sabedoria en-
exemplo típico disso é o caso da informática; foram tantos contrada no l Chíng (...)".
os dados gerados necessários ao desenvolvimento da ciên- 3. Esse livro milenar tem como ponto de partida um conjunto de 64
cias devido ao modelo adotado, que não foi mais possível hexagramas, que se baseiam nos princípios yang-yin. O /' Ching é. um livro de
adivinhações, onde são interpretadas as formas de um conjunto de varetas
ao cérebro humano organizá-los e trabalhá-los sem a exis-
que são soltas sobre uma superfície, e dependendo da posição que assu-
tência de um poderoso instrumento como o computador.
mem, são relacionadas aos hexagramas do livro que contém os caminhos
Isso faz parte do modelo da ciência racional-reducionista, para as interpretações. Mas o l Ching tem uma importância muito maior do
que necessita desdobrar e criar novas áreas para o desen- que um livro de uso oracular: é seu uso como livro de sabedoria.
ARTE E CIÊNCIA 17
10 A PESQUISA EM ARTE

ficas", ou seja, de forma muito suscinta, é um conjunto de


os ciclos de mudança, quando o yangaimge seu clímax, ele
regras e normas coerentes entre si.
é substituído pelo yin, e vice versa, mantendo-se sempre
Um exemplo claro disto é o que ocorreu no início des-
um equilíbrio que deve ser harmónico. Não existe o con-
se século: uma nova ordem científica estabeleceu-se com a
ceito de que um seja bom e o outro ruim; bom é o equilí-
teoria da relatividade e, com a teoria quântica, um novo
brio entre os dois, e ruim; é o desequilíbrio entre ambos.
paradigma foi adotado para suportar a nova coerência das
O yin corresponde a tudo que é contrátil, receptivo e
descobertas ocorridas, pois os físicos já não mais puderam
corTservador, enquanto que o yangestá associado ao expan-
pensar nos moldes racionalistas da física clássica.
sivo, agressivo e exigente. Várias outras associações podem
A investigação do mundo atómico e subatômico colo-
ser feitas em relação a esses.conceitos, como associar o Yin
cou os cientistas em contato com uma nova realidade que
à intuição e o Yangzo racional.
abalou profundamente todos os conceitos e formas de
pensamento de até então. A medida que se adentrava nos
Essas duas espécies (Yine Yang) de atividade estão inti-
mamente relacionadas com tipos de conhecimento, ou experimentos atómicos, a natureza respondia com um pa-
tipos de consciência, os quais foram reconhecidos, ao radoxo, e quanto mais os cientistas se esforçavam por es-
longo dos tempos, como propriedades características da clarecer a situação, mais agudos os paradoxos se torna-
mente humana. São usualmente denominados de méto- vam. Tiveram que admitir que seus antigos conceitos sim-
do intuitivo e método racional., e têm sido tradicional- plesmente não mais respondiam às novas questões que
mente associados à religião ou ao misticismo e à ciên-
estavam investigando; um novo paradigma estava surgindo
cia. Embora a associação do yin e do yangcom esses dois
tipos de consciências não faça parte da terminologia chi- para a explicação dos fenómenos da natureza atómica e
nesa original, ela parece ser uma extensão natural das subatômica.
antigas imagens (...). Os próprios descobridores das teorias ficaram confu-
O racional e o intuitivo são modos complementares de sos com suas descobertas, pois estavam se afastando dos
funcionamento da mente humana. O pensamento racional padrões e das teorias científicas usuais. Os tradicionais con-
é linear, concentrado, analítico. Pertence ao domínio do
ceitos da física clássica despencavam dos altares em que
intelecto, cuja função é discriminar, medir e classificar. As-
sim, o conhecimento racional tende a ser fragmentado. O Newton os havia colocado. O próprio depoimento de Eins-
conhecimento intuitivo, por outro íado, baseia-se numa tein ilustra bem a situação:
experiência direta, não intelectual, da realidade em decor-
rência de um estado ampliado de percepção consciente Todas as minhas tentativas para adaptar os fundamentos
(Capra, 1982: p.33). teóricos da física a esse (novo tipo de) conhecimento fra-
cassaram com p latamente. Era como se o chão tivesse
Tanto o racional, tão desenvolvido no ocidente, como a sido retirado debaixo de meus pés, e não houvesse em
qualquer outro lugar uma base sólida sobre a qual pudes-
intuição tão, valorizada no oriente, são formas de atividades
se construir algo ( Capra, 1982: p. 72).
complementares que povoam os cérebros ocidentais e orien-
tais de artistas e de cientistas; o que mais influi na maior ou
A concepção mecanicista, muito embora seja válida até os
menor utilização de uma forma ou outra são os paradigmas
dias atuais para a física clássica, deixara de servir às explica-
adotados para um determinado tipo de atividade, devendo-se
ções da física moderna. O espírito da filosofia oriental esta-
entender paradigma aqui como é entendido por Thomas
va muito mais próximo de conceitos subatômicos do que os
Kuhn no seu célebre livro A Estrutura das Revoluções Cientí-
18 A PESQUISA EM ARTE
ARTE E CIÊNCIA l ç

princípios cartesianos, pois era difícil explicar como partícu-


"O trabalho estético é denominado pela intenção de pro-
las subatômicas não se assemelhavam com os sólidos obje- gresso no domínio da linguagem e está atento aos novos
tos da física clássica newtoniana, e mais, como explicar que elementos, posição e características que emergem, aqui e
partículas ora eram partículas, ora deixavam de ser para se ali e apontam para a descoberta de novas possibilidades.
tornarem ondas? Esse caráter dual entrava em choque com Neste momento, surge o conjunto progresso-descoberta-
experimentação, responsável pela natureza intelectual que
os princípios da época.
caracteriza a Arte Moderna. Deste modo, a arte não é,
A teoria quântica mostrou que o antigo paradigma forte- apenas, uma atividade, mas se torna uma espécie de ci-
mente assentado no cartesianismo não podia ser mais utili- ência experimental eliminando os limites clássicos entre a
zado: na física atómica, não pôde manter-se a nítida divisão arte e a ciência que, sem dúvida, foi efeito da experimen-
cartesiana entre matéria e mente, entre o observado e o ob- tação modernista. Esta aproximação se deu, notadamente,
servador. Nunca podemos falar da natureza sem, ao mesmo com a física, a matemática e a linguística, a lógica, a es-
tempo, falarmos sobre nós mesmos.4 tatística e as ciências da comunicação e da informação"
(idem, p. 10)
Os primeiros anos do século XX é um momento de
grandes revoluções. Não só a ciência provoca rupturas,
Max Bense (1975), dentro do contexto modernista, afir-
como também novas propostas filosóficas, estéticas, ideoló-
ma que tanto na.Arte como na Física irrompe o aspecto não
gicas e políticas são formuladas, e a arte passa a operar se-
objetivo, isto é, se processa um deslocamento gnoseológico,
gundo um novo paradigma: o modernismol em detrimento dos
que colocou, em lugar de coisas e suas propriedades, estru-
princípios do classissismo.
turas e funções.
O Modernismo aparece como um movimento demarca-
Do exemplo exposto sobre as rupturas na física e na
tório de épocas. É a apoteose do novo, do revolucionário,
arte no início do século XX, constatou-se que a questão da
a negação do velho e do antiquado. Negam-se os antigos pa-
mudança de paradigmas nega que as áreas de conhecimen-
drões estéticos da arte, procuram-se novos rumos, novos
to, por si só, mantenham-se cristalizadas em cima de pa-
temas e instaura-se uma nova estética - ou uma antiestética.5
drões definitivos e imutáveis; a questão do racional e da in-
Lucrécia Ferrara (1986), em seu livro A Estratégia dos
tuição em relação à arte e à ciência experimentaram, nesse
Signos, aborda bem a questão do papel da linguagem para o
caso, mudanças de postura e entendimento. Na realidade,
procedimento artístico modernista e a importância da recep-
essas duas faces do conhecimento "perse"não são tão dis-
ção em arte moderna, chegando mesmo a afirmar que a
tanciadas, dado que os procedimentos mais usuais da arte
grande revolução modernista está mais na recepção da obra
e da ciência se complementam, ajustam-se e para todos os
do que na sua produção. Ao longo de sua análise sobre o
fms brotam do mesmo cérebro humano que se ocupa tan-
procedimento modernista, analisa também a questão do
to de uma como de outra atividade.
experimentalismo como um dos fatores que sintetizam o
A atividade do pensamento permeia todo e qualquer
procedimento da antiestética modernista:
tipo de conhecimento humano, e é nesse sentido que
pode se falar em ambos como pertencentes ao conheci-
4. Para maiores detalhes ver Capra, Op. cit. que discute o assun- mento humano como um todo. Paul Valéry ( 1 9 9 1 ) , em
to com profundidade. seu estudo intitulado Introdução ao Método de Leonardo
5. Esta ideia da antiestética é elaborada por Lucrécia Ferrara, A
Da Vinci, faz longas reflexões sobre a forma do método
Estratégia dos Signos, São Paulo. Ed. Perspectiva, 1986.
utilizado por Leonardo, sem especificar sua utilização em
ARTE E CIÊNCIA 21
20 A PESQUISA EM ARTE

valentes a dizer que a educação dos sentidos e da percep-


arte ou ciência. Compara tanto o método de pensamen-
ção ampliam o nosso conhecimento de mundo, o que
to relativo aos feitos científicos de Da Vinci (como a con-
vem reforçar a ideia de que a arte é uma forma de conhe-
cepção do ar, a qual atribui ser o germe da teoria das on-
cimento, que nos capacita a um entendimento mais com-
dulações luminosas), quanto ao método da concepção da
plexo e de certa forma mais profundo das coisas. O tipo
Monalísa ou da Santa Ceia.
de explicação dado pela arte é diverso do científico, o co-
Bronowski (1983) refletindo sobre arte e ciência, diz:
nhecimento fornecido pela ciência é sempre de caráter
Há um fio que percorre continuamente todas as culturas explicativo; é uma explicação, e faz parte da natureza da
humanas que conhecemos e que é feito de dois cordões. explicação sempre o caráter racional.
Esse fio é o da ciência e da arte. (...) Este emparelhamen- Na realidade, o que existe são formas de pensamento
to indissolúvel exprime, por certo, uma unidade essen- que mais usualmente se relacionam ao tipo de atividade uti-
cial da mente humana evoluída. Não pode ser um aciden-
1 lizado em arte e outras mais comumente relacionadas com
te o fato de não haver culturas que se dediquem à ciên-
cia e não tenham arte e culturas que se dediquem à arte as da ciência. Uma das diferenças entre essas formas é que
e não tenham ciência. E não há, certamente, nenhuma a explicação na ciência é sempre de caráter geral, procuran-
cultura desprovida de ambas. Deve haver alguma coisa do sempre /e/sque sirvam para generalizações que possam
profundamente enterrada no espírito humano -mais pre- ser aplicadas a outras realidades, enquanto a explicação ar-
cisamente na imaginação humana- que se exprime natu- tística é extremamente particular, não passível de grandes
ralmente em qualquer cultura social tanto na ciência quan-
generalizações, mas mesmo assim transmite invariavelmente
to na arte.
mensagens de natureza bastante ampla.
É comum se ter a.ciência como um veículo de conhe- A arte e a ciência, enquanto faces do conhecimento,
cimento, já a arte é normalmente descrita de maneira dife- ajustam-se e se complementam perante o desejo de obter
rente, não é tão habitual pensá-la como expressão ou trans- entendimento profundo. Não existe a suplantação de uma
missão do conhecimento humano. Não obstante, é neces- forma em detrimento da outra, existem formas comple-
sário entender que a arte não só é conhecimento por si só, mentares do conhecimento, regidas pelo funcionamento
mas também pode constituir-se num importante veículo das diversas partes de um cérebro humano e único.
para outros tipos de conhecimento humano, já que extraí-
mos dela uma compreensão da experiência humana e dos 2. INTUIÇÃO, INTELECTO E
seus valores. CRIATIVIDADE EM ARTE E CIÊNCIA
Tanto a arte como a ciência acabam sempre por assumir
um certo caráter didático na nossa compreensão de mundo, Sabe-se que o cérebro, morfologicamente, está dividi-
embora o façam de modo diverso; a arte não contradiz a ci- do em dois hemisférios: o direito e o esquerdo, cabendo
ência, todavia nos faz entender certos aspectos que a ciên- a cada um deles determinadas especializações. Sabe-se tam-
cia não consegue fazer. bém que a função verbal (compreender e expressar-se por
Segundo Valéry: "Uma obra de arte deveria ensinar- intermédio de uma linguagem) é uma especialização prepon-
nos sempre que não havíamcis visto o que vemos. A edu- derantemente do hemisfério esquerdo, enquanto a função
cação profunda consiste em desfazer a educação primitiva" visual-espacial (reconhecer formas complexas, dominar a
(op. cit, p. 145). Essas palavras, em sua essência, são équi- noção espacial e geométrica) é especialização do hemisfé-
22 A PESQUISA EM ARTE ARTE E CIÊNCIA 23

rio direito. Entretanto, isso não quer dizer que as funções são provavelmente mais antigos . Mas parece, por ou-
sejam exclusivas de um ou outro hemisfério.6 tro lado, que as ideias mais profundas vêm do cérebro
A linguagem está intimamente ligada à atividade racional, de réptil, que é onde . provavelmente, surgem os so-
nhos e as intuições. (...) Talvez um artista viva mais
a expressão verbal é o principal meio de que dispomos para
com o cérebro de réptil, que é onde, provavelmente,
a expressão de ideias racionais. Falar da parte racional do cé- surgem os sonhos e as intuições.
rebro humano através da expressão verbal é como se usar
uma "meta explicação". Os princípios, termos, explicações À medida que se conhece melhor o funcionamento do
e conclusões fazem parte da mesma matriz, na qual tudo está cérebro humano, vão sendo explicados certos fatos que até
esquematizado segundo as normas próprias. Daí ser muito então eram cobertos de mistério. A própria atividade artísti-
mais fácil de explicar tudo o que é racional, ou seja, tudo o ca sempre esteve envolta por uma auréola nebulosa, devido
que ocorre na parte esquerda do cérebro. principalmente à dificuldade de se traduzir para um código
verbal alguns processos de trabalho da parte menos racional
Resumindo-se: o hemisfério dominante é caracterizado
dessa atividade. É inegável que existe um lado racional no tra-
pelos detalhes imaginativos, em todas as descrições e re-
ações, isto é, ele é analítico e sequencial. Ele também balho artístico, mas, de outro, existe um componente não
pode somar, subtrair e multiplicar, ou realizar qualquer racional, e portanto difícil de ser verbalizado no processo de
outro tipo de operação computável. É claro que esse do- produção de arte. Valéry (1978), na Notion Générale de L'art,
mínio é derivado de sua habilidade verbal e ídeacional, e aborda com clareza a questão da interposição do intelecto -
de sua ligação com a consciência. É por sua deficiência e seus elementos utilizados como a lógica, o método e as
nesses setores que o hemisfério secundário merece esse
título, porém em muitas características importantes ele classificações- à sensibilidade enquanto experiência sensória).
se sobressai, especialmente no que se refere às habilida- A ProP Betty Edwards (1984), baseada principalmente
des espaciais, de sentido modelar e pictorial fortemente nas pesquisas do grande pesquisador Sperry, criou um mé-
desenvolvidos. Por exemplo: quando o hemisfério secun- todo para o ensino do desenho intitulado Desenhando com
dário programa a mão esquerda, ele é altamente supe- o Lado Direito do Cérebro", que aciona o conhecimento in-
rior em todas as espécies de desenhos geométricos e de
tuitivo para o aprendizado.7
perspectiva (Ecles, op. cit, p. 230).
O racionalismo do hemisfério esquerdo é dominante em
!•
Mário Schenberg (1990: pp. 96/97), físico e crítico de relação à função intuitiva do hemisfério direito, razão pela qual
arte, apoiado em descobertas da biologia evolucionista, cita que: o racional sempre interfere primeiro em qualquer atividade ce-
rebral que se pratique. No caso do desenho, é necessário ini-
temos vários cérebros e não um só. Temos um cérebro
de réptil, temos o cérebro de mamífero e temos o cé-
rebro mais racional (...). Os nervos do cérebro de réptil 7. Entre os vários exercícios que ela utiliza em seu método, um
deles consiste em reproduzir uma figura tomando-a invertida, ou seja,
de cabeça para baixo, O fundamento desse exercício é exatamente fazer
6. Ver Eccles, (1979: p. 245), Atheneu Editora/EDUSR p. 245 com que o hemisfério esquerdo não compreenda a figura (e portanto
Nesta publicação, Ecles trata em detalhes várias experiências a respeito não a interprete de forma racional), facilitando, com isso, a passagem
das atividades dos dois hemisférios cerebrais, e conclui que ambos são dessa modalidade para a modalidade do hemisfério direito. Esse trei-
da mais alta importância para o ser humano, apesar de chamar o he- namento visa ativar de urna forma premeditada a transição de uma
misfério esquerdo de "dominante" e o direito de "secundário". modalidade verbal e analítica para um estado espacial e não verbal.
24 A PESQUISA EM ARTE ARTE E CIÊNCIA 25

cialmente se "afastar" o racional para que o intuitivo possa fluir, Com a atividade científica, o processo é análogo. O pró-
dado que as modalidades do hemisfério esquerdo são muito prio Einstejn. em preciosos depoimentos sobre a sua maneira
mais desenvolvidas para essa função.8 de trabalhar, dizia que raramente, pensava com palavras, pois
primeiro elejinha uma forma de pensamento y/sua/(ícones),
Quando se requer a anulação do pensamento racional e das
é só depois fazia a tradução de seus produtos em outros sig-
palavras para mergulhar na intuição pura, uma técnica acon-
selhada consiste em contemplar figuras geométricas regu- nos, como fórmulas, equações ou linguagem verbal:
lares, configurações espaciais que seriam, precisamente,
apanágio do hemisfério direito. Assim quando Don juan, um Para mim não há dúvida de que nosso pensamento funci-
feiticeiro mexicano, instrui o escritor e antropólogo ame- ona, geralmente, sem utilizar signos (palavras); é muito
ricano Carlos Castaneda, ele indica como uma nova técni- comum, aliás, que funcione de uma maneira consciente.
ca, para conquistar uma nova consciência de si, 'ver' e 'não' Não é absolutamente necessário que um conceito seja li-
falar (Menecacci, 1987: p. 7). gado a um signo reproduzível ou reconhecível pelos sen-
tidos (uma palavra), mas, quando isso acontece, o pensa-
Na realidade, embora seja indiscutível a especialização das mento torna-se comunicável (Menecacci, op. cit.: p. 100).
funções dos hemisférios cerebrais, possivelmente nenhuma
A estereotipada concepção de que o cérebro do cien-
atividade humana em que se utilize o cérebro tenha a partici-
tista é somente racional e linear é bastante difundida, mas
pação de somente um hemisfério. A parte criativa , que nor-
para fazer ciência é necessário utilizar as duas metades do
malmente é função do hemisfério direito, tornar-se-ia incóg-
cérebro. Da mesma maneira, não existe um cérebro padrão
nita no sentido de uma explicitação verbal, se não passasse
por uma codificação formal-racional normalmente desempe- do artista que funcione somente pelo seu lado intuitivo.
nhada pelo hemisfério esquerdo. A música é um exemplo tí- Quanto a esse aspecto, deve-se lembrar que os grandes
pico e esclarecedor desse processo. "Se a criatividade musical, artistas, ou seja, aqueles que conseguiram mudanças de
pois, é função do hemisfério direito, a linguagem, tanto verbal paradigmas e que moveram o curso da arte, nem só de in-
como musical, isto é, a capacidade de articular numa sequência tuição viveram e trabalharam, pelo contrário, usaram o cé-
um carácter após o outro -letra ou nota-, compete ao hemis- rebro racionalmente e através da linguagem verbal emitiram
fério esquerdo" (op. cit, p. 55). seus manifestos e enunciaram suas teorias. Em suma, o fun-
cionamento dos dois hemisférios cerebrais é necessário
tanto para as atividades artísticas como para as científicas,
8. O próprio aprendizado do desenho, no fundo, é um treina-
donde dizer que existe um cérebro do artista e um cérebro
mento da passagem do hemisfério esquerdo para o direito, ou seja,
para se desenhar é de fundamental importância concentrar a atenção do cientista é enunciar somente meia verdade. Por mais
nas informações puramente visuais, que o Hemisfério esquerdo tem que sejam exercitadas as ligações neuronais de um ou ou-
dificuldade de processar. Não só em relação ao desenho isso aconte- tro hemisfério é sempre necessária a utilização das duas
ce, existem inúmeros outros casos que servem como exemplo; um metades, quer se faça arte, quer se faça ciência.
bastante significativo é a meditação utilizada nas seitas orientais. A Não existe um cérebro padrão, determinado pela ativi-
meditação consiste basicamente em se desocupar o cérebro com
dade que se exerça, pode existir uma preponderância de um
coisas racionais, ou seja, algo parecido com o "não pensar". Existem
muitos poemas orientais em que a sequência de palavras não tem um em relação ao outro. Os hemisférios cerebrais são utilizados
significado lógico-racional, tal arranjo ocorre exatamente para poder da mesma forma que usamos mais uma parte do corpo do
liberar a parte intuitiva do cérebro. que outra; por exemplo, como um tenista usa mais os mus-
20 A PESQUISA EM ARTE ARTE E CIÊNCIA 27

culos do braço do que um jogador de futebol, contudo nem A linguagem verbal como forma racionalizada de pensa-
por isso em competições deixa de usar todos os músculos mento encontra dificuldades em explicar o processo intuiti-
do corpo; o mesmo se dá com relação à utilização do cére- vo do inconsciente.
bro, dado que cada atividade intelectual aciona as partes ce-
rebrais de maneira diferentes, desenvolvendo-se mais, por- Etimologicamente falando, a intuição é um conhecimento
direto, uma espécie de visão imediata dos objetos e de suas
tanto, as mais exercitadas.
relações^com outros objetos, sem uso de raciocínio dis-
A questão da intuição e do intelecto está, de certa for- cursivo. É nesse sentido que se diz que a intuição é uma per-
ma, ligada à questão do consciente e do inconsciente. Pode- cepção, visão ou contemp/ação(&a\zcLriar\, 1.986: p. 41).
mos relacionar, ainda que de forma grosseira, o racional com
o consciente, e a intuição com inconsciente. Normalmente, Bergson (1975) se ocupou com a questão da intuição,
agimos e pensamos de uma forma consciente, isto é, utilizan- particularmente em "O Pensamento e o Movente", onde faz
do dados e informações armazenadas na memória conscien- importantes reflexões sobre esse problema de complexo
te. Mas, paralelamente a essa, existe outra memória, que é entendimento:
a do inconsciente, a qual não está sempre imediatamente dis-
ponível para a utilização do consciente. A mente inconscien- Através dela (a intuição), problemas que julgamos insolúveis
te é um repositório de informações acumuladas no passado, vão se resolver, ou antes, se dissolver, seja para desapa-
recer definitivamente, seja para se colocarem de outra ma-
ao qual não temos acesso fácil e imediato. Quando se pen-
neira. E ela se beneficiará do que tiver feito por esses pro-
sa que algo foi esquecido, na realidade esse algo passou para blemas. Cada um deles, intelectual, lhe comunicará um pou-
o inconsciente, e muitas vezes repentinamente é lembrado, co de sua intelectualidade. Assim intelectualizada, ela poderá
mesmo que tenha ocorrido em vivência remota.9 ser apontada novamente para os problemas que a servirão,
depois de se terem servido dela: dissipará, ainda mais, a
obscuridade^que os envolvia, e tornar-se-á por ela própria
9. Cari Jung (1987) propõe um modelo da psique como uma
mais clara. É preciso, pois, distinguir entre as ideias que
sequência de camadas. A mais periférica seria a referente à sensação, ou
guardam para si a sua luz, fazendo-a penetrar imediata-
seja, aquela destinada a receber as informações do mundo dos objetos
mente até as partes mais profundas, e aquelas cuja luminosi-
exteriores. Abaixo viria o pensamento, onde entram as coisas recebi-
dade é exterior, iluminando toda uma região de pensamen-
das pelo sentidos e onde é lhes atribuído um nome. "A seguir, surgirá,
to. Estas podem começar por ser interiormente obscuras;
em relação a elas, um sentimento. E no final teremos uma certa cons-
mas a luz que projetam ao redor volta-lhes por reflexão,
ciência do destino das coisas percebidas, bem como a maneira pela qual penetra-as cada vez mais profundamente; e ela possui en-
elas se desenrolam no presente. E a intuição, que nos faz ver o que está tão o duplo poder de aclarar em torno delas e aclarar-se
acontecendo nos cantinhos mais escondidos" (op. cit: pp. 38/40). A a si mesmas (op. cit. p. 122).
essas quatro funções Jung chama de sistema ectopsíquico. Seguindo-se
mais para o interior, ainda segundo Jung, existe uma outra camada de-
A intuição ocorre sempre que faltarem meios empíricos
nominada de esfera endopsíquica, que é onde se encontra a memória
que pode ser controlada pela vontade. Caminhando-se mais para as e racionais para processar o contato com o mundo. É um sal-
profundidades, vai-se encontrar o inconsciente pessoal e em último ní- to, um pulo que racionalmente não se sabe como se deu, ou
vel o inconsciente coletivo. Segundo Jung, o inconsciente pessoal é aquela no dizer de Jung;
parte da psique que contém elementos que também poderiam aflorar à
consciência, e que se encontra, de certa forma, numa camada relativa- Sempre que se tiver de lidar com condições para as quais
mente superficial situada logo abaixo do limiar da consciência. não haverá valores preestabelecidos ou conceitos já firma-
28 A PESQUISA EM ARTE ARTE E CIÊNCIA 2Ç

dos esta função -a intuição- será o único guia. (...) O que nalizar, devido ao fato de a imagem do trabalho científico estar
quero dizer é que a intuição é um tipo de percepção que associada às ideias de exatidão, precisão, verdade e dedução.
não passa exatamente pelos sentidos; registra-se ao nível Na verdade, a criatividade está ligada à intuição, mas não é
do inconsciente, e é onde abandono toda a tentativa de propriamente um produto do inconsciente. Uma importante
explicação dizendo-lhes: Não sei como se processa (jung,
corrente dos psicanalistas neofreudianos vinculam a criatividade
op. cit.: p. l I).
às produções do pré-consciente. A pré-consciência difere do
Em arte, a intuição é de importância fundamental, ela traz em inconsciente porque pode ser requisitada quancfo existe um re-
grau de intensidade maior a impossibilidade da racionalização laxamento da parte racional. É possível se penetrar nessa região,
precisa. A arte não tem parâmetros lógicos de precisão matemá- praticando-se uma forma de pensamento intuitivo para se bus-
tica, não é mensurável, sendo grandemente produzida e assimi- car soluções desejadas. A criatividade é um processo de busca
lada por impulsos intuitivos; a arte é sentida e receptada, mas de de soluções interiores, mas não é claro nem ao próprio indiví-
difícil tradução para formas integralmente verbalizadas. duo que o exercita; as soluções começam a se tornar consci-
Essas colocações, entretanto, não pretendem negar que entes à medida em que vão ganhando uma forma, quer no de-
a arte tenha também a sua parte racional. Os críticos, alguns senho e cores expressos no cavalete de um pintor, quer nas re-
artistas e teóricos da arte conseguem racionalizar e verbalizar soluções e fórmulas de um cientista.
uma parte do todo, mas a outra só pode ser produzida, trans- Na esfera da criatividade, as primeiras ideias, ainda num es-
mitida e receptada por outra linguagem que não a verbal. Por tado pré-consciente, não surgem de forma clara e cristalina, elas
outro lado, não se pode vincular a intuição exclusivamente à precisam tomar alguma forma apreensível pelo aparato racional
arte e aos artistas, porque o cientista, por mais racional que para serem trabalhadas, ou seja, é necessário submeter a ideia
seja a sua atividade também intui, principalmente quando lhe a alguma forma de linguagem, sejam palavras, fórmulas ou sím-
faltarem dados lógicos e objetivos. bolos. Isso acontece porque o mecanismo criativo ocorre de
M. j, Coracini (1987), em um estudo sobre o discurso uma forma preponderantemente intuitiva, enquanto o racional
científico, faz uma série de entrevistas com vários cientistas, necessitada elementos enumeráveis, comparáveis, ordenáveis.
e os resultados revelam que a grande maioria admite o uso O que ocorre frequentemente dentro de um processo
da intuição para realizar pesquisas científicas. de trabalho criativo é a-existência de sequências de momen-
A intuição nada mais é do que uma forma de sabedo- tos criativos (intuitivos), seguidos de ordenações racionais.
ria; em arte, assume muitas vezes feições de uma auréola Ao longo de um processo de trabalho criativo existe uma
de mistério, pela dificuldade de verbalização e de explicações dinâmica intensa de trocas muito rápidas entre o intuitivo e o
lógicas sobre a forma de obtenção de resultados. Os cien- racional: procura-se algo, e, através de um insight (intuitivo)
tistas também intuem, também utilizam a visão intuitiva ao vem a solução, passa-se a ter elementos sob forma passível
montarem seus projetos e desenvolverem suas pesquisas. de ser controlada pelo intelecto, os quais são ordenados. Na
É verdade que depois procuram comprovar suas intuição sequência, surge outro problema, novamente um insight, e as-
através de mecanismos formais próprios do procedimento sim por diante... Dessa maneira se dá forma"a uma ideia. A cri-
científico. ação, na realidade é um ordenamento, é selecionar, relacionar
Há muitos mitos sobre a forma do trabalho cerebral de ci- e integrar elementos que a princípio pareciam impossíveis. No
entistas e artistas. O senso comum costuma atribuir grosseira- início, parece que algo paira no ar de forma vaga, solta, sem se
mente ao artista a faculdade de intuir, e ao cientista a de racio- ter um domínio efetivo do evento, de repente algo aflora, e se
30 A PESQUISA EM ARTE ARTE E CIÊNCIA 31

torna mais claro, e quanto mais o cientista ou o artista traba- depois de encontrado percebe-se qual foi esse caminho. É
lhar a questão, mais clara e elaborada se tornará. se descobrir algo que estava escondido, é pressentir de for-
Não se deve deixar de reconhecer também que tanto no ma insólita a coerência de elementos arranjados dentro de
trabalho artístico como no científico existe um caráter pessoal e uma forma nova. Enquanto descoberta, enquanto solução,
subjetivo na forma de se trabalhar e de se encontrar soluções não se.pode fazer nenhuma distinção fundamental entre cri-
criativas. O fluxo ordenativo segue os comandos dados pelo ação artística e científica. Ou, como no dizer de A. Moles:
cérebro do indivíduo que está procedendo ao arranjamento, de
uma forma individual, espelha, ipso facto, o seu interior. O espírito humano é um só e os processos de criação se
aplicam indistintamente, in statu nascendi, aos materiais do
A criação artística espelha a visão pessoal do artista, da
pensamento racional ou da forma estética. As diferencia-
mesma forma que a criação científica reflete a visão pessoal ções que o espírito opera versam sobre os conteúdos,
do cientista. A diferença entre uma obra e outra não se dará sobre as regras de aceitação do produto acabado e não
no ato criativo, mas no processo de trabalho fundamentado sobre os métodos de reunião, combinação, ou variação
num determinado paradigma, e. no conhecimento acumulado dos métodos de pensamento (Moles, l 981: p. IX)
de quem realiza a obra.
Muitas vezes é esquecido que o ato criativo excede em 3. O PARADIGMA EM ARTE E CIÊNCIA
muito o universo da arte, pois o cientista necessita tanto da
criatividade quando o artista. A ideia de que a criatividade só Thomas Kuhn, em seu livro A Estrutura das Revoluções
está ligada às atividades tidas como intelectuais é, também, Científicas, lança muitas ideias de suma importância sobre a
totalmente errónea. Atividades tidas como simples, como a forma como se dá o^desenvolvimento das ciências. Analisa
maioria dos ofícios, podem ser também atividades criativas. principalmente o mecanismo da mudança dos grandes para-
Tanto em arte como em ciência ou em qualquer ativi- digmas nas ciências, ou seja, a substituição de um conjunto
dade, o ato da criação é o surgimento de algo original, uma de normas, regras e princípios por outros, que vêm a ser base
ordenação que assume um caráter que remete ao novo. de todas as revoluções científicas. Ele identifica e define os
Podem ocorrer divergências quanto à enunciação do que períodos de ciência normais, os de revolução científica, sen-
venha a ser criatividade, mas as diferenças são sobretudo do que tanto num como no outro, o pesquisador deve ser
semânticas. De uma determinada perspectiva, pode-se até criativo para poder desenvolver suas atividades, embora nos
negar a existência da criação; sob essa óptica nada é cria- períodos de ciência normal exista a tendência a um con-
do, tudo que está no universo e que o que se chama de servadorismo. O que acontece de diferente, em ambos os
criação nada mais é que um ordenamento do já existen- casos, é uma questão de magnitude, de ordem de grandeza
te. Uma outra postura assume que qualquer rearranjamen- e não de diferenciação com relação à criatividade nos proces-
to de fatores existentes é, por si só, uma forma de cria- sos de produção científica. Nas revoluções científicas, é ne-
ção, pois um ordenamento, desde que seja original, pas- cessário um impulso criativo muito maior para que se possa
sa a constituir algo inédito no qual houve criação, já que produzir o rompimento de um paradigma, enquanto nos pe-
sem esse o inédito não existiria. ríodos de ciência ^or/na/também se necessita de criatividade,
De uma forma ou de outra, a criatividade está intima- mas possivelmente em proporção e magnitude muito meno-
mente ligada à sensação de descoberta. É algo novo, é um res, o suficiente para encontrar as soluções dentro do traba-
caminho encontrado para se solucionar alguma coisa, e só lho cotidiano, obedecendo as regras de um paradigma dado,

Você também pode gostar