Você está na página 1de 112

Universidade de São Paulo

Departamento de Filosofia

Jacques Derrida: em direção à


desconstrução

Prof. Vladimir Safatle


Segundo Semestre 2018
Jacques Derrida
Aula 1

“Jacques Derrida, o intelectual francês, nascido na Argélia, que se tornou um dos


filósofos mais celebrados e notoriamente difíceis do final do século XX, morreu
sexta-feira em hospital parisiense. Ele tinha 74 anos (...) O Sr. Derrida ficou
conhecido como o pai da desconstrução, o método de análise que afirma que
todo escrito é pleno de confusão e contradição, assim como afirma que a
intenção do autor não poderia superar contradições inerentes à própria
linguagem, privando assim os textos – seja literatura, seja história da filosofia –
de conteúdo de verdade, sentido absoluto e permanência. Tal conceito foi
eventualmente aplicado à toda gama das artes e ciências sociais, incluindo
lingüística, antropologia, ciência política e mesmo arquitetura (...) Críticos
literários quebraram textos em passagens e frases isoladas a fim de encontrar
sentidos escondidos. Defensores do feminismo, dos direitos dos homossexuais e
de causas do terceiro mundo abraçaram o método de Derrida como instrumento
para revelar os preconceitos e inconsistências de Platão, Aristóteles,
Shakespeare, Freud e outros ícones “brancos masculinos” da cultura ocidental.
Arquitetos e designers podiam afirmar terem assumido pontos de vista
“desconstrucionistas” ao abandonar simetrias tradicionais e criar espaços
ziguezagueantes, às vezes inquietantes (...). Por volta do final do século XX,
desconstrução tornou-se uma palavra-chave do discurso intelectual, assim como
existencialismo e estruturalismo – duas outras filosofias escorregadias que
entraram na moda vindas da França pós-Segunda Guerra. O sr. Derrida e seus
seguidores não estavam dispostos – alguns dizem que eles eram incapazes – de
definir “desconstrução” com alguma precisão. Por isto, ela ficou incompreendida
ou interpretada infinitamente de maneira contraditória. Típico das explicações
opacas dadas pelo sr. Derrida a respeito de sua filosofia foi o paper apresentado
na Cardozo School of Law, em Nova York, que começa: “Desnecessário dizer,
mais uma vez, que a desconstrução, se há algo como isso, encontra seu lugar
como experiência do impossível” (...) Vários leitores acham sua prosa empolada
e desconcertante, mesmo que os aficionados a achem iluminadora. Uma única
sentença podia durar três páginas, e uma nota de rodapé podia ser ainda maior.
Ás vezes, seus livros eram escritos em estilo “desconstruídos”. Por exemplo,
“Glas’ (1974) oferece comentários do filósofo alemão Georg Wilhelm Frierich
Hegel e do romancista francês Jean Genet em colunas paralelas nas páginas do
livro; no meio há uma terceira coluna ocasional com comentários sobre as idéias
dos dois (...) “O problema em ler o sr. Derrida é que há muita transpiração para
pouca inspiração” escreveu o The economist em 1992, quando a Cambridge
University concedeu ao filósofo um título honorário depois de uma dura
discussão, na faculdade, entre seus defensores e seus críticos”1.

Estes são trechos de um obituário publicado pelo jornal The New York Times,
logo após o falecimento de Derrida, em 2004. Se resolvi começar por ele um curso de
introdução à experiência intelectual de Jacques Derrida, é, primeiro, para lembrar a
vocês como toda verdadeira instauração filosófica é medida pelo desconforto e pela
1
KANDELL, Jonathan, In: New York Times, 10/10/2004
violência que ela é capaz de causar. Pois esse simpático obituário sintetiza, de maneira
violenta e polêmica, todo o desconforto que nossa época sentiu diante do filósofo
francês. Ele diz, de maneira intelectualmente mais ingênua e tosca, o que boa parte do
meio acadêmico ainda pensa a respeito de Jacques Derrida. Filósofo que teria inventado
um “método de análise” que não é um, pois não passaria de uma estratégia relativista
visando quebrar a ordem das razões de um texto, ignorar contextos de produção,
fazendo assim todo e qualquer texto dizer aquilo que ele decididamente não disse.
Regime de leitura que esconde, na verdade, uma operação mistificadora que se serviria
de um estilo “empolado e desconcertante” apenas como estratégia diversionista de um
“niilismo” estilizado. Regime responsável por um nivelamento perigoso da diferença
genérica entre filosofia e literatura, entre reflexão conceitual e metáfora poética. Jürgen
Habermas, por exemplo, dirá que o programa de Derrida não seria mais do que a
tentativa de “estetização da linguagem, que é resgatada através da dupla negação do
sentido próprio do discurso normal e poético” 2. O que significa dizer que Derrida seria
incapaz de compreender a diferença de sentido entre um texto filosófico em suas
expectativas descritivas de verdade e validade e um texto literário em suas exigências de
expressão estética.
Por fim, last but not least, Derrida teria cometido o pecado maior de ignorar o
regime de clareza geométrica própria à natureza argumentativa da escrita conceitual.
Como se para falar sobre alguns objetos fosse necessário torcer a estilística filosófica
até que ela fique no limite do reconhecível, até que ela adquira a monstruosidade destas
frases de três páginas e notas cancerígenas que parecem querer tomar de assalto o texto
principal. Este pecado de atentado contra a clareza chegará a ser chamado por alguns de
“terrorismo”. Lembremos, a este respeito, do que diz o filósofo norte-americano John
Searle:

“Com Derrida, como ele é tão obscuro, você dificilmente pode interpretá-lo mal.
Cada vez que você diz: “Ele disse tal e tal”. Ele sempre diz: “Você não entendeu
nada”. Mas se você tenta imaginar a interpretação correta, não será tão fácil.
Uma vez disse isto a Foucault, que era ainda mais hostil a Derrida do que eu, e
ele disse que Derrida praticava o método do ‘obscurantismo terrorista’. Como
estávamos falando em francês, perguntei: “O que você quer exatamente dizer
com isto?”. Ele disse: “Derrida escreve de maneira tão obscura que você não
pode definir sobre o que ele está falando, esta é a parte obscurantista; e quando
você o critica, ele sempre pode dizer: ‘Você não entendeu nada, você é um
idiota’. Esta é a parte terrorista3.

Não deixa de ser desprovido de interesse lembrar que este tipo de argumento
(“seu uso da linguagem é tal, ele é tão distante do senso comum, que não se sabe do que
ele está falando”) não é exatamente novo. Se vocês quiserem, poderíamos fazer aqui
uma pequena “genealogia do obscurantismo terrorista” em filosofia. Começaríamos, por
exemplo, com Hegel, o mesmo Hegel que não temerá em dizer, por exemplo:

Não é difícil perceber que a maneira de expor um princípio, de defendê-lo com


argumentos, de refutar também com argumentos o princípio oposto, não é a
forma na qual a verdade pode se manifestar. A verdade é o movimento dela
mesma nela mesma, enquanto que este método é o conhecimento exterior à

2
HABERMAS, O discurso filosófico da modernidade, Lisboa: Dom Quixote, p. 194
3
SEARLE, John; Realities principle : na interview with John Searle, In:
http://www.reason.com/news/show/27599.html
matéria. É por isto que ele é particular à matemática e devemos deixá-lo à
matemática4.

Pensando nisto, Adorno chegou a sintetizar bem a vertigem que se sente diante da
linguagem hegeliana, com suas “frases de três páginas”: “Hegel é sem dúvida o único
dentre os grandes filósofos que, em alguns momentos, não sabemos e não podemos
decidir sobre o que ele fala exatamente, o único a respeito de quem a própria
possibilidade de tal decisão não é assegurada”5.
Mas poderíamos aqui lembrar também de Heidegger, que ouviu do Círculo
positivista lógico de Viena o mesmo tipo de acusação que Searle endereçava a Derrida:
“suas proposições eram simplesmente desprovidas de sentido”. Quando ele diz: “o nada
nadifica”, “o espaço espaça” ele não quer dizer nada. “Terrorista” porque, em suas
mãos, o solo seguro das certezas da linguagem ordinária se dissolve. Mas, não seria esta
a obrigação de toda verdadeira filosofia? Nos retirar o solo seguro das certezas da
linguagem ordinária. Como dirá alguém para quem estas questões de estilo e escrita
eram da maior importância: “A filosofia do senso comum [e vocês compreenderão mais
a frente porque devemos falar do senso comum e de suas exigências de clareza como
uma “filosofia’] quer que pensemos como pensamos. A questão da filosofia é outra: -
por que pensamento assim? – Mais precisamente: - por que já não podemos pensar
exatamente assim?”6.
Esta é talvez uma boa questão inicial para abordar a experiência intelectual de
Jacques Derrida: a natureza da discursividade própria à filosofia, do regime de escrita
que realmente lhe convém, não seria uma questão filosófica da mais alta grandeza? Se
colocarmos a questão “Como os filósofos escrevem?” talvez ficaremos impressionados
com a profunda dispersão estilística que faz com que cada experiência filosófica
fundamental venha necessariamente acompanhada de uma instauração discursiva
singular. Como se cada experiência filosófica fundamental sempre repetisse a
proposição: “Não é mais possível escrever como até agora se escreveu”. Montaigne e os
Ensaios, Descartes e a perspectiva experimental da primeira pessoa nas Meditações,
Hegel e a escrita de experiências que vão dissolvendo as certezas gramaticais
elementares da consciência na Fenomenologia, Nietzsche e o perspectivismo herdado
dos moralistas franceses. Todos eles dizem, à sua maneira: “Não é mais possível
escrever como até agora se escreveu”. É necessário passar a uma instauração discursiva.
A primeira condição para ler Derrida talvez seja então partir desta proposição e, assim,
colocar a questão: “Por que, para Derrida, não é mais possível escrever como até agora
se escreveu?”.

Margens

Procuro me conservar no limite do discurso filosófico. Digo limite, e não morte,


pois não acredito em absoluto nisto que se nomeia atualmente de “a morte da
filosofia” (nem acredito na morte do que quer que seja, do livro, do homem ou
deus; até porque, como se sabe, o morto conserva uma eficácia bem específica).
Limite, pois, a partir do qual a filosofia tornou-se possível, definiu-se como
episteme, funcionando no interior de um sistema de restrições fundamentais, de
oposições conceituais fora das quais ela torna-se impraticável (...) ‘Desconstruir’
a filosofia seria assim pensar a genealogia estruturada de seus conceitos da
4
HEGEL, Fenomenologia do espírito - prefácio
5
ADORNO, Drei Studien über Hegel, GS 5, p. 326
6
PRADO Jr. Bento ; Alguns ensaios, São Paulo : Paz e Terra, 2000.
maneira a mais fiel, a mais interior, mas ao mesmo tempo desde um certo
exterior inqualificável para ela, inominável, determinar o que essa história pôde
dissimular ou proibir, fazendo-se história exatamente através dessa repressão, de
uma certa forma, interessada7.

Eis proposições bastante claras para um autor com fama de obscuro. O que diz
afinal Derrida? Primeiro, que a própria discursividade filosófica, seu estilo, seu modo de
expor e definir problemas, sua textualidade não é construída através de uma gramática
neutra e desinflacionada do ponto de vista metafísico. Enquanto discurso, a filosofia é
uma episteme e depende de uma episteme. O termo, tal como Derrida o utiliza, vem de
Michel Foucault, em especial de seu livro As palavras e as coisas. Ele indica a idéia de
que os múltiplos discursos que se entrelaçam em uma dada época histórica estão todos
submetidos a uma mesma matriz comum de racionalidade, a uma mesma episteme. Ou
seja, episteme deve ser aqui entendida como conjunto de regras e sistemas que
organizam o campo de experiências possíveis e de possibilidades de saberes. A partir
disto, Foucault procurava demonstrar como os saberes positivos de uma época
configuram-se a partir da definição de regimes gerais de ordenamento com suas relações
de diferença e de identidade. Isto lhe permitia dizer que: “a filosofia não é nem
historicamente nem logicamente fundadora de conhecimento, mas existem condições e
regras de formação do saber aos quais o discurso filosófico encontra-se submetido a
cada época, como toda forma de discurso com pretensões racionais”. Pois haveria uma
espécie de “inconsciente do saber que tem suas próprias formas e regras específicas”8.
O que diz então Derrida? Ele diz querer fazer filosofia no limite do discurso
filosófico, colocando-se à margem do que funda a episteme da qual a filosofia como
discurso é tributária. Mas aqui uma pergunta deve ser imediatamente posta? Haveria
afinal uma episteme, uma matriz comum do logos a respeito da qual a filosofia como
discurso seria tributária? Notemos quão estranha é esta pergunta. Pois trata-se de dizer
que haveria algo de fundamental, um certo projeto a unificar vários momentos da
filosofia (e vemos como, afinal, Derrida lê filósofos tão diferentes como Platão, Husserl,
Hegel, Heidegger mostrando a mesma dificuldade em escapar de um projeto que muitas
vezes está prestes a se quebrar, que acaba por abrir outros possíveis, mas que, graças a
uma astúcia de múltiplas faces, retoma a palavra final). Qual é este projeto que Derrida
nomeia (e ainda não sabemos nada sobre esse nome, o que ele pode bem significar, qual
a estrutura de parentesco que ele sustenta com outros modelos de crítica) de “metafísica
da presença”? Que regime de discursividade é este fundado em um conjunto de
pressupostos, de exclusões e de tensões cujo nome correto, ao menos segundo Derrida,
seria “metafísica da presença”? Quais são seus verdadeiros pressupostos, ou ainda, o
que deve acontecer à história da filosofia para que ela possa aparecer como a história da
hegemonia de uma metafísica da presença? Tais questões serão respondidas no decorrer
deste curso.
Mas, por enquanto, lembremos como essas perguntas chamam outras com as
quais também teremos que nos confrontar constantemente. Pois o que pode significar
fazer a crítica desta discursividade, desta metafísica que se confundiria com a própria
instauração da filosofia como lugar que pensa as expectativas de validade presentes na
multiplicidade dos saberes e práticas ou, se quisermos, que se confundiria com o que
normalmente entendemos por “razão”? “Poder-se-á, em todo rigor, marcar um lugar
não-filosófico, um lugar de exterioridade ou de alteridade a partir do qual se pode ainda
tratar da filosofia? Esse lugar não terá sido sempre, previamente, ocupado pela
7
DERRIDA, Jacques; Positions, Paris : Seuil, 1972, pp. 14-15
8
FOUCAULT, Dits e écrits, p. 1152
filosofia?”. Até porque: “A exterioridade, a alteridade, são conceitos que, por si só,
nunca surpreenderam o discurso filosófico” 9. Proposição decisiva, pois, desde ao menos
a História da Loucura, de Foucault, uma problemática não cessava de se inscrever no
interior do debate filosófico francês : se quisermos fazer uma crítica da razão,
mostrando todos estes pontos nos quais ela configura seu Outro (a loucura, o irracional,
a infância, etc.), de nada adianta deixar o Outro falar, pois ele falará mimetizando nossa
língua. Não é possível deixar a loucura falar, dirá o próprio Derrida em ‘Cogito e
história da loucura”, porque o reconhecimento de sua alteridade é modo de sua inscrição
no interior da minha gramática. E não há gramática neutra do ponto de vista de suas
implicações metafísicas. Como dirá Nietzsche, em uma colocação da maior importância
para nossa compreensão do que estava realmente em jogo neste momento do
pensamento filosófico francês: “Temo não nos desvencilharmos de Deus enquanto
continuarmos a acreditar na gramática”10.
Se vocês me permitem, diria temer não compreendermos Derrida enquanto não
meditarmos de maneira demorada esta frase. Pois voltemos um pouco atrás e
recoloquemos mais uma vez a questão: “Poder-se-á, em todo rigor, marcar um lugar
não-filosófico, um lugar de exterioridade ou de alteridade a partir do qual se pode ainda
tratar da filosofia?”. Alguns dariam de ombros para tal questão e diriam: “Claro, o lugar
não-filosófico a partir do qual se pode tratar da filosofia (e, talvez também, tratar a
filosofia, no sentido clínico de alguém que trata de doenças e ilusões) é a linguagem pré-
filosófica do senso comum com suas certezas imediatas. O senso comum sadio nos
fornece uma linguagem desinflacionada do ponto de vista metafísico, linguagem
presente no mundo cotidiano da vida, linguagem que todos nós aceitaríamos sem
reservas.
Este é talvez um dos pontos fundamentais que aproximam o que
convencionamos chamar de crítica pós-estruturalista da razão (e insistiria neste
aspecto, há uma crítica da razão que aproxima autores como Derrida, Deleuze e
Foucault, mesmo que ela seja conjugada de maneira diferente, a partir de referências
filosóficas distintas e com resultados não homogêneos). Pois todos eles dirão,
juntamente com Nietzsche, que nossa linguagem pré-filosófica naturaliza categorias
filosóficas como unidade, substância, duração, causa, realidade, ser e, principalmente,
sujeito (e veremos, em outras aulas, de onde vem esta centralidade do conceito de
“sujeito”) devido simplesmente à sua gramática. Deleuze compreendeu isto de maneira
exemplar ao falar da relação entre filosofia e “imagem do pensamento”. Neste contexto,
“imagem” significa o que determina o regime de visibilidade do pensamento, aquilo que
o pensamento é capaz de ver, de dispor e determinar, um pouco como determinamos e
diferenciamos coisas no espaço. Esta condição de visibilidade do pensar está ligada aos
pressupostos implícitos que colocam o pensamento em uma boa direção “natural”. Isto
significa elevar as relações entre linguagem filosófica e linguagem pré-filosófica à
condição de problema filosófico maior. Pois é a linguagem pré-filosófica, esta
linguagem “ordinária” própria ao senso comum, que forneceria ao pensar filosófico seu
conjunto tácito de pressuposições não problematizadas. Neste sentido, a crítica à
imagem do pensar é, no fundo, avaliação crítica das relações entre filosofia e senso
comum. Isto fica claro em afirmações como:

Os postulados em filosofia não são proposições a respeito das quais o filósofo


nos pede que aceitemos, mas ao contrário temas de proposições que continuam
implícitas e que são ouvidas de maneira pré-filosófica. Neste sentido, o
9
DERRIDA, Jacques; Margens da filosofia, Campinas : Papirus, 1991, p. 14
10
NIETZSCHE, Friedrich; Crepúsculo dos ídolos, “A razão na filosofia”, § 5
pensamento conceitual filosófico tem por pressuposto implícito uma Imagem do
pensamento, pré-filosófica e natural, tomada do elemento puro do senso
comum11.

No fundo, Deleuze quer insistir que o bom senso e o senso comum são imagens
ortodoxas do pensamento e, neste sentido, carregadas de implicações metafísicas e
morais. É exatamente devido a perspectivas como estas que Derrida insistirá não ser
mais possível escrever como até então se escreveu:

Seria simultaneamente necessário, por meio de análise conceituais rigorosas,


filosoficamente intratáveis, e pela inscrição de marcas que não pertencem já ao
espaço filosófico, nem mesmo à vizinhança do seu outro, deslocar o
enquadramento, pela filosofia, dos seus próprios tipos. Escrever de outro modo12.

Mas que tipo de escrita é esta ou, ao menos, que tipo de escrita ela quer ser?
Voltemos a esta explicação fundamental: “‘Desconstruir’ a filosofia seria pensar a
genealogia estruturada de seus conceitos da maneira a mais fiel, a mais interior, mas ao
mesmo tempo desde um certo exterior inqualificável para ela, inominável, determinar o
que essa história pôde dissimular ou proibir, fazendo-se história exatamente através
dessa repressão, de uma certa forma, interessada”. Desconstruir a gramática que suporta
a filosofia como discurso equivaleria a operar uma certa genealogia. O termo
nietzscheano indicava este modo de se perguntar sobre a gênese do que estamos
dispostos a contar como incondicional e universalmente válido. Qual a gênese do que
aparece como pressuposto para nossa forma de pensar? Gênese que nos leva a uma
história dissimulada, reprimida que não é outra que a história da razão e de nossos
modos de racionalização.
No entanto, podemos dizer (e este dizer é apenas inicial, ele será corrigido, mas
devemos partir dele) que a desconstrução é uma genealogia. Uma forma muito peculiar
de genealogia. Sua peculiaridade vem da compreensão que tem Jacques Derrida a
respeito do que é um texto filosófico.

O que é um texto filosófico?

Talvez uma das melhores maneiras de começar a compreender o que é afinal a


desconstrução passe pelo retorno a seu solo de origem. Enquanto prática de leitura que
nasceu da confrontação com textos da tradição filosófica (Husserl, Heidegger,
Rousseau, Hegel, Nietzsche) e apenas posteriormente com textos das ciências humanas
(linguística, antropologia, psicanálise) e da literatura, ela, na verdade, era uma recusa do
modo dominante de leitura de textos filosóficos na vida universitária francesa dos anos
50 e 60, modo cujos nomes de Martial Guéroult e Victor Goldschmidt sintetizaram
admiravelmente bem.
De fato, contrariamente a uma perspectiva hegemônica no meio francês de
então, que via a filosofia como prática de análise interna da sistematicidade de textos
que compõem a tradição do pensamento filosófico através da construção de “ordens de
razões” claramente pressupostas pelo filósofo, para Derrida, ler um texto filosófico era
principalmente forçar a sistematicidade do discurso filosófico a deparar-se
continuamente com seus limites e misturar-se com aquilo que lhe era aparentemente
estranho. Forçagem que impediria a filosofia de se transformar em um comentário
11
DELEUZE, Différence et répétition, Paris : Seuil, 1969, p. 172
12
DERRIDA, Margens da filosofia, op. cit. p. 27
infinito de seus próprios textos e sem relação a exterioridade alguma. Comentário
infinito que nos levaria necessariamente a esta prática de análise que ignora a relevância
filosófica dos espaços em branco, dos não-ditos, das resistências e das elisões
necessárias à instauração de todo discurso fundador.
Todos vocês sabem do que trata aqui. Creio que esta é uma questão de suma
importância porque vocês estão no interior de um processo de aprendizagem de leitura.
Vocês aprenderão técnicas fundamentais para todo e qualquer processo filosófico de
leitura de textos da tradição : saber identificar o tempo lógico que nos ensina a
reconstituir a ordem das razões internas a um sistema filosófico, pensar duas vezes antes
de separar as teses de uma obra dos movimentos internos que as produziram,
compreender como o método se encontra em ato no próprio movimento estrutural do
pensamento filosófico, entre outros. Trata-se de um ensinamento fundamental para a
constituição daquilo que chamamos de “rigor interpretativo” que respeita a autonomia
do texto filosófico enquanto sistema de proposições e não se apressa em impor o tempo
do leitor ao autor. Rigor que nos lembra como o ato de “compreender” está sempre
subordinado ao exercício de “explicar”. Mas ele não define o campo geral dos modos
filosóficos de leitura. Ele define, isto sim, procedimentos constitutivos da formação de
todo e qualquer pesquisador em filosofia. Ele é o início irredutível de todo fazer
filosófico mas, por mais que isto possa parecer óbvio, o fazer filosófico vai além do seu
início.
Lembremos, por exemplo, do que diz Kant a respeito de seu modo de leitura dos
textos filosóficos : “Não raro acontece, tanto na conversa corrente como em escritos,
compreender-se um autor, pelo confronto dos pensamentos que expressou sobre seu
objeto, melhor do que ele mesmo se entendeu, isto porque não determinou
suficientemente o seu conceito e, assim, por vezes, falou ou até pensou contra sua
própria intenção”13. Este comentário aparentemente inocente é a exposição de todo um
programa de leitura que, aparentemente, não está totalmente de acordo com as regras do
rigor interpretativo. Afinal, Kant reconhece que sua leitura é, digamos, sintomal. Ele irá
procurar aqueles pontos da superfície do texto nos quais a letra não condiz com o
espírito, nos quais o autor estranhamente pensou contra sua própria intenção. Ou se
quisermos utilizar uma formulação que agradaria Derrida, pontos nos quais o texto
pensou contra a intenção de seu autor. Mas o que significa admitir um pensamento que
se descola de sua própria intenção e que deixa traços deste descolamento nos textos que
produz? Podemos dizer que significa, principalmente, estar atento às regiões textuais
nas quais o projeto do sistema filosófico é traído pelo encadeamento implacável do
conceito que insiste em abrir novas direções. Estar atento as estas estruturas que
atravessam a consciência do texto e que deixam marcas nos caminhos trilhados pela
escrita. Ao menos neste ponto, é difícil estar de acordo com Goldschmidt, para quem :
“as asserções de um sistema não podem ter por causas, tanto próximas quanto
imaginárias, senão conhecidas do filósofo e alegadas por ele”14.
A história da filosofia, ao contrário, mostra que é sim possível pensar a partir
daquilo que o autor produz sem o saber, ou sem o reconhecer. Sabemos todos, e Derrida
em primeiro lugar, que o estabelecimento de regras de prática de leitura é a base de todo
e qualquer aprendizado em filosofia. Mas em um dado momento de sua história, a
filosofia (ou, ao menos, uma parte dela) começou a desconfiar sistematicamente de suas
práticas. Pois, ao menos no caso de Derrida, tratava-se de afirmar que um texto, e
fundamentalmente o texto filosófico, é sempre uma operação tensa de negociação.
Como se um verdadeiro texto filosófico fosse sempre e necessariamente um campo de
13
KANT, Crítica da razão pura, A 314
14
GOLDSMITH, Tempo lógico e tempo histórico na interpretação dos sistemas filosóficos, p. 141
linhas divergentes de força, como se sua redação fosse sempre a história de certos
abandonos, restrições e surpresas. Como se todo filósofo, ao escrever, colocasse em
marcha um sistema de conceitos, uma maquinação conceitual que ele apenas no limite é
capaz de controlar. Porque no interior do texto trabalha algo que não é apenas o querer
dizer do autor, a não ser que liberemos este querer dizer da noção de “intencionalidade
consciente”, de “causas conhecidas do filósofo” e de todos estes dispositivos que ainda
remetem a figura-autor às temáticas herdadas de uma filosofia da consciência. Isto
talvez nos explique porque lá onde normalmente vemos apenas “erro de leitura”,
“distorção de perspectiva” ou “redução do texto a um mero pretexto”, Derrida verá um
momento fundamental de todo fazer filosófico. Pois talvez não exista fazer filosófico
sem certos deslocamentos, sem torções e reconfigurações.
Neste ponto, começamos a nos aproximar do que Derrida entende por
desconstrução. Desconstruir não consiste em criticar um texto comparando-o com o que
ele foi incapaz de apreender, apontando suas falhas e limitações a partir de uma
perspectiva que seja exterior ao próprio texto. A aposta de Derrida é muito mais
arriscada, e por isto mesma mais interessante. Trata-se de comparar um texto com ele
mesmo, mostrar como, nele, trabalham questões que um autor mobiliza sem saber (já
que ele é muito mais um suporte do que um agente destas questões), mostrar como,
neste sentido, a exterioridade do texto, aquilo com o qual o texto será confrontado, já
está inscrita no próprio texto. Costuma-se repetir muito este logon tão associado a
Derrida, “não há nada fora do texto”. Diz-se isto como se Derrida afirmasse alguma
espécie de profissão de fé relativista onde toda exigência de objetividade seria
sumamente desqualificada. Veremos como este não é o caso. Talvez seja o caso de dizer
que afirmar a inexistência de uma exterioridade ao texto significa, ao mesmo tempo, ver
todo texto como algo a mais do que os escritos de uma página de papel. “Texto” é aqui
o nome de um sistema de coordenadas que articula múltiplas produções de saberes e
práticas a partir de um regime particularmente instável de ordenamento (e precisaremos
entender de onde vem tal instabilidade, porque tais sistemas não são fundados em um
fundamento que permitiria a clarificação de tais práticas e saberes). E mesmo os escritos
de uma página de papel, quando pensados como textos, nunca são homogêneos.
Exemplo disto é o que Derrida diz de Saussure:

Mais do que qualquer outro texto, o de Saussure não é homogêneo. De fato, eu


analisei um estrato “logocêntrico” e “fonocêntrico” dele (que não havia sido
apreendido e cuja eficácia é considerável), mas para mostrar ao mesmo tempo
que ele constituía uma contradição no projeto científico de Saussure, tal como
ele é legível e que eu levei em conta15.

Estrutura do curso

A fim de analisar de maneira sistemática essas e outras questões que compõem o


fundamento da experiência intelectual de Derrida, proponho um curso que visa discutir
alguns textos fundamentais. Neste curso, centraremos nossas leituras em três livros que
compõem a base da filosofia de Derrida. Três livros lançados no mesmo ano (1967) e
que marcaram o aparecimento do projeto derrideano. São eles: A voz e o fenômeno, Da
gramatologia e Escritura e diferença. Além destes textos, trabalharemos também um
texto sobre a crítica ao humanismo editado em 1972, Os fins do homem e um conjunto
de conferências que apareceu em 1994 com o título Força de Lei : o fundamento
místico da autoridade, além de Voyous: dois ensaios sobre a razão.
15
DERRIDA, Jacques; Positions, Paris: Seuil, 1972, p. 71
Começaremos pois a partir da leitura de um textos do livro Escritura e diferença
intitulado A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas. Trata-se de
uma porta de entrada que nos permitirá compreendermos a natureza da relação entre
Derrida e este movimento que aparecia como hegemônico no interior das discussões
sobre as ciências humanas na França dos anos 60, a saber, o estruturalismo. A
experiência intelectual de Derrida foi marcada por uma dupla recusa em relação às duas
correntes hegemônicas do pensamento francês de então: o estruturalismo e a
fenomenologia. No que diz respeito ao estruturalismo, a posição de Derrida sempre
consistiu em denunciar o que seria sua dependência em relação a uma certa metafísica
visível nas noções linguísticas de signo, significante e sistema (inspirado na fonologia).
Denúncia que o permite mobilizar as temáticas da desconstrução contra a antropologia
de Lévi-Strauss, a linguística de Saussure e Jakobson, a psicanálise de Lacan e mesmo
aspectos maiores da filosofia de Foucault. Começaremos discutindo alguns aspectos
fundamentais do estruturalismo. Por isto, pediria a leitura de três textos fundamentais: A
estrutura dos mitos e A análise estrutural em lingüística e antropologia, de Claude
Lévi-Strauss, e o capítulo “Princípios gerais”, do Curso de lingüística geral, de
Ferdinand de Saussure.
O segundo texto a ser trabalhado é o pequeno livro A voz e o fenômeno. Através
de uma leitura cuidadosa e inovadora de aspectos do problema da relação entre
linguagem, significação e consciência em Husserl, Derrida se pergunta: “A necessidade
fenomenológica, o rigor e a sutileza da análise husserliana, as exigências às quais ela
responde e às quais nós devemos respeitar, não dissimulariam um pressuposto
metafísico?”. Uma metafísica no coração da fenomenologia? “Trata-se pois de ver, a
partir do exemplo privilegiado do conceito de signo, anunciar-se a crítica
fenomenológica da metafísica como momento no interior da segurança metafísica.
Mais: trata-se de começar a verificar que o recurso à crítica fenomenológica faz parte do
próprio projeto metafísico, em sua realização histórica e na pureza restaurada de sua
origem”16. Veremos como esta maneira de expor a metafísica presente na teoria
husserliana da linguagem permitirá duas operações : a constituição da temática da
metafísica da presença (dispositivo maior de articulação do pensamento de Derrida à
história da filosofia) e a surpreendente produção de um campo comum de crítica que
abarca tanto fenomenologia como estruturalismo. Para tanto, eu pediria a leitura
suplementar um texto de Husserl; Origem da geometria (traduzido e extensamente
comentado pelo próprio Derrida).
O terceiro texto vem também de Escritura e diferença. Trata-se de Freud e a
cena da escritura. Como vocês verão, este é um texto decisivo na constituição de
noções centrais na filosofia de Derrida, como: escritura, traço, a crítica da origem e a
crítica à concepção moderna de sujeito. A leitura derrideana de Freud será constante e
profícua. Contrariamente à sua leitura de Lacan, que será sempre crítica devido,
principalmente, à teoria do sujeito deste último. Gostaria de discutir aqui dois pontos:
primeiro, como um projeto filosófico recorre às temáticas psicanalíticas a fim de
constituir um campo conceitual a ser mobilizado no interior de um projeto de crítica da
razão? O que significa este recurso à exterioridade da filosofia? Segundo: em que o
próprio projeto da desconstrução depende de uma certa absorção da prática
psicanalítica. Para o comentário deste texto, pediria a leitura de Notas sobre o bloco
mágico e o capítulo VII de A intepretação dos sonhos, de Freud.
O comentário destes três textos permitirá compreendermos os modos de
articulação do pensamento de Derrida com o estruturalismo, a fenomenologia e a
psicanálise. A partir daí, poderemos abordar de maneira sistemática este que talvez seja
16
DERRIDA, La voix e le phénomène, Paris : PUF, p. 3
o livro mais importante de Derrida: Da gramatologia. Gostaria de dedicar ao menos
quatro aulas para este livro, para a elucidação de seu projeto, de seu métodos de relação
com a história da filosofia e de suas dificuldades. Veremos porque ele era visto por
Derrida como o anúncio do fim de uma era patrocinada pelo desenvolvimento de certos
setores das chamadas ciências humanas. Desenvolvimento a respeito do qual a filosofia
deveria ser capaz de pensar. Fim tão claramente enunciado em frases como:

“a unidade de tudo o que se deixa visar atualmente através dos conceitos mais
diversos da ciência e da escritura é, a princípio, mais ou menos secretamente
mas sempre, determinada por uma época histórico-metafísica a respeito da qual
entrevemos seu término. (...) O futuro só pode ser antecipado na forma do perigo
absoluto. Ele é o que rompe absolutamente com a normalidade constituída e só
pode anunciar-se, apresentar-se, sob a forma da monstruosidade. Para este
mundo por vir e para aquilo que, nele, teria feito tremer os valores do signo, da
palavra e da escritura, para aquilo que aqui conduz nosso futuro anterior, não há
ainda epígrafe” 17.

Por que seríamos contemporâneos de uma época histórico-metafísica próxima de


seu término? Que época seria esta, que história esta leitura derrideana pressupõe? E,
além disto e acima de tudo, o que vem após o término de uma época? Gostaria de ler
Da gramatologia tendo tais questões em mente. Para tanto, peço ainda as leituras do
Ensaio sobre a origem das línguas, de Rousseau, e o capítulo “Introdução”, do Curso
de lingüística geral.
Por fim, vamos ler dois textos mais recentes. Estes dois textos adiantam alguns
aspectos importantes do que poderíamos chamar de “as conseqüências politicas da
desconstrução”. O primeiro é Os fins do homem, um capítulo de Margens da filosofia
(1972). Um texto que expõe claramente os meandros da crítica derrideana ao
humanismo. Ele deve ser lido conjuntamente com Carta sobre o humanismo, de Martin
Heidegger, já que ele é, em larga medida, um comentário das posições heideggerianas.
O segundo é Força de Lei, um texto a meu ver fundamental para a compreensão do
interesse que a desconstrução pode ter para a discussão de noções como validade,
autoridade e poder. Ele deve ser seguido da leitura de outros dois textos: Crítica da
violência, de Walter Benjamin e Estado de exceção, de Giorgio Agamben.
Antes então de terminar a aula de hoje, eu gostaria de dizer duas ou três palavras
mais pessoais a respeito do que me levou a apresentar para vocês um curso sobre
Jacques Derrida. Creio ser obrigado a dizer tais palavras porque aqueles que conhecem
o que faço sabem que alguém que escreveu livros sobre Lacan e a dialética não parece
ser a pessoa mais indicada para falar sobre a filosofia de Derrida. Todos meus interesses
maiores são por autores contra os quais Derrida claramente se contrapõe, como Hegel,
Lacan, embora ele reconheça um campo aberto de aproximações com outro autor que
trabalho, Theodor Adorno. Mas, se decidi oferecer este curso sobre Derrida é porque
tive um professor que um dia me ensinou que só começamos realmente a pensar quando
perdemos o medo de nos confrontar com autores que parecem nossos antípodas. Este
professor era um profundo leitor de Sartre que, devido exatamente a esta crença, decidiu
escrever uma tese sobre o aparente antípoda de seu autor: Henri Bergson. Foi ele quem
me mostrou, pela primeira vez, o interesse que pode existir na filosofia de Derrida e, a
cada dia que passa, tenho certeza de que sua própria filosofia em muitos pontos se
encontrava, graças a caminhos absolutamente próprios, com dispositivos maiores do
pensamento de Derrida. Por isto, que este curso seja uma certa maneira de prestar uma
17
DERRIDA, De la grammatologie, Paris: Seuil, 1967, p.14
pequena homenagem não apenas a ele, mas à forma de fazer filosofia que ele próprio
representou. Um fazer filosofia que é, acima de tudo, o ato de pensar contra si mesmo.
Se vocês me permitem, é isto que gostaria de fazer durante este semestre, é isto que
gostaria de fazer junto com vocês.
Jacques Derrida
Aula 2

Na aula de hoje, gostaria de fazer uma apresentação geral do estruturalismo. Ela nos
servirá para compreendermos as discussões que Derrida procura desenvolver em A
estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas e em momentos centrais
de Da gramatologia.
Raros foram os momentos históricos que viram configurar uma experiência
intelectual como aquela que se colocou sob a égide do estruturalismo. Experiência que
realizou, à sua maneira, um verdadeiro “programa crítico interdisciplinar” nascido da
articulação cerrada entre antropologia, psicanálise, lingüística, crítica literária e reflexão
filosófica. Programa que, de uma certa forma, aliava sob protocolos comuns nomes
como Claude Lévi-Strauss, Jacques Lacan, Louis Althusser, Roland Barthes, Michel
Foucault, Roman Jakobson, entre outros.
Digamos, inicialmente, que analisar com calma o estruturalismo e seus projetos,
significa deparar-se com uma tentativa singular de procurar redefinir por completo o
parâmetro de racionalidade e os métodos das chamadas ciências humanas. Tentativa
com conseqüências filosóficas absolutamente evidentes. Tal redefinição partiu da defesa
da lingüística como “ciência ideal” que deveria guiar a reconfiguração do campo das
ciências humanas. Notemos, por exemplo, o tom ditirâmbico que anima a seguinte
afirmação de Lévi-Strauss :

No conjunto das ciências sociais ao qual pertence indiscutivelmente, a


lingüística ocupa, entretanto, um lugar excepcional; ela não é uma ciência social
como as outras, mas a que, de há muito, realizou os maiores progressos: a única,
sem dúvida, que pode reivindicar o nome de ciência e que chegou, ao mesmo
tempo, a formular um método positivo e a conhecer a natureza dos fatos
submetidos à sua análise18.

Este primado da lingüística implicava em um duplo efeito. Primeiro, como


vemos na afirmação de Lévi-Strauss, tratava-se de uma questão de método. A
lingüística estrutural inspirada por Saussure, e implementada por nomes como Jakobson
(sem esquecermos de todo o Círculo lingüístico de Praga: Troubetzkoy, Vachek entre
outros), Greimas e Hjelmslev havia realizado um amplo processo de formalização de
seu objeto, o fato lingüístico, através da compreensão da linguagem como sistema
diferencial-opositivo de unidades elementares (fonemas). Não se tratava de uma
matematização no sentido próprio àquela implementada no campo das ciências físicas,
ou seja, redução dos objetos a uma unidade comum de medida que permite a
implementação de processos de quantificação e comparação. Tratava-se de uma
formalização estrutural, ou seja, sistematização de “elementos que se especificam
reciprocamente em relações”19 e que não tem nenhuma realidade intrínseca para além
deste campo de relações. Lembremos, por exemplo, da relação estabelecida por
Saussure entre a linguagem e o jogo de xadrez. Tratava-se de demonstrar como o valor
de cada elemento era determinado através do estabelecimento de um conjunto de regras
e de sistemas de permutação : “O valor respectivo das peças depende da sua posição no
18
LÉVI-STRAUSS, Antropologia estrutural, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, p. 45. Ou ainda, como
nos diz Granger : “A tentativa de transformar o acontecimento vivido em objeto abstrato, essencialmente
definido por suas correlações a outros objetos em um sistema formal, parece ter sido levada ao extremo
pela lingüística estrutural e apresenta-se como uma verdadeira provocação aos olhos dos hábitos do
conhecimento científico” (GRANGER, Pensée formelle et sciences de l´homme, p. 74)
19
DELEUZE, Em que se pode reconhecer o estruturalismo?, p. 280
tabuleiro, do mesmo modo que na língua cada termo tem seu valor pela oposição aos
outros termos”20. Fato que levava Saussure a afirmar, de maneira canônica, que, na
ciência da linguagem:

Os objetos que ela tem diante de si são desprovidos de realidade em si, ou a


parte dos outros objetos a considerar. Eles não tem absolutamente nenhum
substratum de existência fora de suas diferenças ou das diferenças de toda forma
que o espírito encontra um meio de atribuir à diferença fundamental21.

Por outro lado, a estrutura não é dada de maneira imanente no campo fenomenal. Ao
contrário, ela determina de maneira transcendente este campo e seus atores, que agem
de maneira inconsciente. Ao falar, os sujeito não têm consciência da estrutura
fonemática que determina seus usos da língua, da mesma maneira que, ao operar
escolhas matrimoniais, os sujeitos não têm consciência dos sistemas de parentesco que
determinam tais escolhas. Este caráter inconsciente da estrutura será um dado
fundamental para a objetividade do pensamento estruturalista, assim como para o seu
anti-humanismo. Para um pensamento estruturalista estrito os sujeito não falam, eles são
falados pela linguagem. De onde se segue a afirmação clássica de Lévi-Strauss: “Não
pretendemos mostrar como os homens pensam nos mitos, mas como os mitos se pensam
nos homens, e à sua revelia. E. como sugerimos, talvez convenha ir ainda mais longe,
abstraindo todo sujeito para considerar que, de um certo modo, os mitos se pensam entre
si”22.
Mas se o primeiro efeito do primado da lingüística era esta reconfiguração da
racionalidade das ciências humanas através do programa de formalização estrutural, o
segundo efeito estava na compreensão de que o verdadeiro objeto das ciências humanas
não era o homem, mas as estruturas que o determinam. Michel Foucault compreendeu
isto claramente ao afirmar que: “Há ciências humanas não em todo lugar onde é questão
do homem, mas em todo lugar onde analisamos, na dimensão própria do inconsciente,
as normas, regras, conjuntos significantes que desvelam à consciências as condições de
suas formas e de suas condutas”23.
Tal recompreensão do objeto das ciências humanas implicava, necessariamente
em uma teoria da sociedade que transformava a linguagem no fato social central, já que
todos os fatos sociais : trocas matrimoniais, processos de determinação de valor de
mercadorias, articulação do ordenamento jurídico, seriam todos estruturados como uma
linguagem. Assim como a filosofia anglo-saxã do início do século XX defrontou-se com
uma certa guinada lingüística que reorientou os problemas ontológicos para o campo da
análise da linguagem, as ciências humanas francesas da segunda metade do século XX
reconstruíram seu objeto e seu campo ao usar a análise da linguagem como método e
parâmetro. Podemos ver claramente tal estratégia em ação na seguinte afirmação de
Lévi-Strauss :

No estudo dos problemas de parentesco (e sem dúvida também no estudo de


outros problemas), o sociólogo se vê numa situação formalmente semelhante à
do lingüista fonólogo: como os fonemas, os termos de parentesco são elementos
de significação; como eles só adquirem esta significação sob a condição de se
integrarem em sistemas; os ´sistemas de parentesco´, como os ´sistemas

20
SAUSSURE, Curso de lingüística geral, p. 104
21
idem, Essais de linguistique générale, p. 65
22
LÉVI-STRAUSS, o cru e o cozido, p. 31
23
FOUCAULT, Les mots et les choses, Paris : Seuil, 1966, p. 376
fonológicos´, são elaborados pelo espírito no estágio do pensamento
inconsciente; enfim a recorrência, em regiões afastadas do mundo e em
sociedades profundamente diferentes, de formas de parentesco, regras de
casamento, atitudes identicamente prescritas, entre certos tipos de parentes etc.
faz crer que, em ambos os casos, os fenômenos observáveis resultam do jogo de
leis gerais, mas ocultas24.

Esta recompreensão dos fatos sociais como fatos estruturados como uma
linguagem permitirá, por exemplo, o re-enquadramento do campo da política e da crítica
da ideologia no interior de um campo de análise do discurso (lembremos de Foucault
com sua noção de “práticas discursivas”, de Lacan com sua teoria do vínculo social a
partir de uma tipologia de discursos e de Derrida com seus procedimentos de
desconstrução como substituto dos protocolos de crítica da ideologia). Mas devemos
aproveitar este momento para levar a cabo uma apresentação, mesmo que panorâmica,
de alguns pressupostos maiores do estruturalismo. Três aspectos são centrais no
estruturalismo: a noção de ordem estrutural como elemento transcendental de
determinação do sentido, o caráter inconsciente de tal ordem e, por conseqüência, a
noção determinista do sujeito como suporte da estrutura.

Saussure e o problema do signo

Tomemos, inicialmente, algumas elaborações de Saussure. O nome de Saussure


está fundamentalmente vinculado ao impulso de construção de um método, que se
pretendia objetivo, de abordagem dos processos de determinação do fato lingüístico. As
raízes de tal impulso sistematizado devem ser procuradas ainda na idade clássica, mais
especificadamente no século XVII. Exemplo maior aqui são a Logique de Port Royal
(1662) e Grammaire generale et raisonnée (1664), todos os dois de Antoine Arnault,
embora o primeiro seja em colaboração com Pierre Nicole. Através da idéia de uma
“gramática geral” não se tratava simplesmente da aplicação de uma certa lógica à teoria
da linguagem. Tratava-se de tomar o discurso como objeto de crítica a fim de analisar a
“instauração profunda de uma ordem”25, como diria Foucault. Ordem que Derrida
chamará de “estruturalidade da estrutura”. Notemos que não se trata de tomar a língua
como objeto de análise, mas o discurso entendido como seqüência de signos verbais. De
onde se segue o caráter prescritivo e normativo desta gramática geral.
Os estudos da linguagem ganharam outro impulso inovador no final do século
XVIII com o advento da filologia, que renovará os estudos vinculados à hermenêutica
ao tentar compreender a função gramatical das palavras através das modificações
temporais às quais elas estariam submetidas. Mas a verdadeira raiz da lingüística
moderna deve ser procurada um pouco mais a frente, no início do século XIX graças,
principalmente, a Franz Bopp e Jacob Grimm.
Os estudos de Bopp sobre o sânscrito e os de Grimm sobre a gramática alemã
permitiram o advento de uma espécie de filologia comparativa ou gramática comparada.
Este passo foi decisivo para a sistematização dos estudos lingüísticos. Como nos lembra
Saussure, Bopp, ao analisar o grego e o latim a partir do sânscrito como fonte comum:
“compreendeu que as relações entre línguas afins podiam tornar-se matéria duma
ciência autônoma. Esclarecer uma língua por meio de outra, explicar as formas duma
pelas formas de outra, eis o que não fora feito até então”26. No entanto, teria faltado à
24
LÉVI-STRAUSS, Antropologia estrutural, op. cit. p. 48
25
FOUCAULT, Les mots et les choses, p. 97
26
SAUSSURE, Curso de lingüística geral, p. 8
gramática comparada uma verdadeira teoria geral da linguagem que fornecesse não
apenas um método positivo de análise dos fatos lingüísticos, mas que determinasse a
natureza do seu objeto de estudos. Daí porque Saussure pode afirmar: “a Gramática
comparada jamais se perguntou a que levavam as comparações que fazia, o que
significavam as analogias que descobria”27. Na verdade, é o estabelecimento desta teoria
geral da linguagem, teoria que não é teoria de nenhuma língua particular, que será o
objeto do esforço conceitual saussureano. Daí porque Saussure pode enunciar, como
tarefa da lingüística: “fazer a história das famílias de línguas e reconstituir, na medida
do possível, as línguas-mães de cada família; procurar as forças que estão em jogo, de
modo permanente e universal, em todas as línguas e deduzir as leis gerais às quais se
possam referir todos os fundamentos particulares da história e delimitar-se e definir-se a
si própria”28.
Vale a pena atentar-se principalmente para o segundo ponto: estabelecer leis
gerais, permanentes, universais e incondicionadas que determinariam os fatos
lingüísticos. Pois se tratava, na verdade, de determinar as condições a priori para a
existência de fatos lingüísticos. Um questionamento transcendental a respeito da
linguagem como elemento de estruturação do pensamento se insinuava aqui. Tal
questionamento deveria dar conta, entre outras coisas, da maneira com que a linguagem
estrutura o pensável e como ela se relaciona com a referência do pensamento. Mas,
como nos lembra Granger:

Seria inexato caracterizar este encaminhamento preliminar como simples


abstração. A estrutura lingüística aqui visada não é apenas um abstrato em
relação ao fato da linguagem; ela é aquilo que, na ausência de termo melhor,
chamaremos com Husserl de essência, ou seja, um esboço transcendental de
objeto, para além de toda ontologia. Transcendental aqui não conserva nenhuma
significação propriamente idealista, na medida em que não se trata de exposição
de uma condição imutável de conhecimento de objeto fundada na natureza de
um eu abstrato (...) A palavra transcendental justifica-se precisamente porque o
esboço não se reduz a um empobrecimento do vivido por abstração. Não importa
qual seja seu estatuto genérico, o esboço constitui o guia de um conhecimento
conceitual possibilitando as contribuições de uma experiência controlada e o
desenvolvimento de uma combinatória.29

Por outro lado, Saussure era um defensor claro da arbitrariedade do signo, ou


seja, de uma certo convencionalismo que afirmava a autonomia do signo em relação à
toda determinação prévia da referência. Analisemos este problema com calma pois ele
será de suma importância para Derrida.
Podemos adentrar nos princípio da lingüística saussureana através da discussão a
respeito do problema da referência. Isto nos levará a compreensão da estrutura do signo
saussureano : unidade elementar de significação na língua. Em vários aspectos, a
definição saussureana de signo é particular. Segundo ele: “o signo lingüístico não une
uma coisa e uma palavra, mas um conceito e uma imagem acústica”30.
Tal afirmação é prenhe de conseqüências. Trata-se de desconsiderar o problema
da referência, ou seja, da relação entre nome e coisa, como um problema lingüístico
central. Se o signo é a união de um conceito e de uma “imagem acústica” que, neste

27
idem, p. 10
28
idem, p. 13
29
GRANGER, Pensée formelle et sciences de l´homme, p. 76
30
SAUSSURE, Curso de lingüística geral, p. 80
contexto, é a representação psíquica de um som, então devemos nos perguntar sobre
qual o dispositivo que poderá responder pela relação entre o conceito e a referência. No
entanto, de uma certa forma, um dos eixos do trabalho de Saussure consiste em
procurar esvaziar tal questão. Isto implica, é claro, em uma teoria não-correspondencial
da linguagem que, em última análise, articula uma teoria convencionalista da linguagem
que insiste no fato de que: “todo meio de expressão aceito em uma sociedade repousa
em princípio em um hábito coletivo ou, o que vem a dar na mesma, em convenção”31.
Devemos pois analisar este ponto com mais calma. O signo é pois a união entre
um conceito e uma imagem acústica. Conceito é exatamente o que Saussure chama de
“significado” (a dimensão do inteligível) e imagem acústica recebe a denominação de
“significante” (a dimensão do sensível). Esta articulação entre significante e significado
não nos diz nada a respeito do mundo tal como ele seria independentemente da nossa
linguagem. “Em lingüística, os dados naturais não têm nenhum valor”32, dirá claramente
Saussure. Um lingüista estruturalista, Jean-Claude Milner, percebeu que isto nos levaria
a uma tese, de moldes kantianos, segundo a qual: “a ligação que articula as coisas
enquanto coisas não pode ter nada em comum com a ligação que as articula enquanto
faces de um signo. Nenhuma causa relevante para a primeira pode operar sobre a
segunda”33. De fato, encontramos tal perspectiva em afirmações de Saussure como: “O
que é afinal uma entidade gramatical? Nós precedemos exatamente como um geômetra
que gostaria de demonstrar as propriedades do círculo e da elipse sem ter dito o que ele
designa por círculo e elipse”34.
É neste ponto que Saussure insiste no princípio fundamental a respeito do signo:
sua arbitrariedade. Mas, a princípio, através do problema da arbitrariedade do signo,
Saussure pareceria estar indicando um problema interno à língua, e não um problema
externo à mesma. Pois em momento algum ele afirma que o signo é arbitrário na sua
relação com a referência, mas que a relação entre significado e significante é arbitrária:
“o significante é imotivado, isto é, arbitrário em relação ao significado, com o qual não
tem nenhum laço natural na realidade”35. Tanto b-ö-f quanto o-k-s representam o mesmo
conceito (significado), o que indicaria o caráter arbitrário da relação. E sendo
absolutamente arbitrária, a língua perderia um dos motores de seu processo de mudança,
pois não há razão alguma para preferir boef ou Ochs: “Justamente porque o signo é
arbitrário, não conhece outra lei senão a da tradição”36.
No entanto, como sabemos, em filosofia, expulsar um problema pela porta da
frente não nos garante que ele não irá retornar pela porta dos fundos. De fato, Saussure
procura a todo momento esvaziar o problema da relação entre linguagem e referência.
No entanto, ela acaba voltando nesta discussão a respeito do arbitrário do signo. Pois,
afirmar que a relação significado/significante é arbitrária nos leva necessariamente a
afirmar que a relação signo/referência é arbitrária. Os significantes são arbitrários
porque eles se referem ao mesmo conceito. Mas o conceito sempre sustenta-se em uma
expectativa de denotação da referência37. Não falamos apenas algo, queremos sempre
falar sobre algo. Eles são arbitrários porque se referem à mesma realidade linguística.
Ou seja, não é possível abstrair o problema do arbitrário de uma perspectiva
externalista. Tudo se passa como se pudéssemos identificar a existência de uma espécie
31
idem, p. 82
32
idem, p. 93
33
MILNER, L´amour de la langue, p. 58
34
SAUSSURE, Écrits de linguistique générale, Paris: Gallimard, 2002, p. 51
35
SAUSSURE, Curso, p. 81
36
idem, p. 88
37
Neste sentido, a diferença entre sensível e intelegível no signo sustenta-se em uma idealidade não-posta
do sentido.
natural (natural kind) a fim de afirmar que ela pode ser representada tanto por b-ö-f, por
o-k-s ou por qualquer som.
A noção de arbitrário pressupõe a possibilidade de uma comparação entre os
conteúdos de representações mentais e objetos, propriedade e relações existentes em um
mundo que seria largamente independente de nosso discurso. Entramos aqui no famoso
paradoxo presente na questão profissional posta pelo ceticismo, tal qual ela foi
formulada por Richard Rorty: “Como sabemos nós que tudo aquilo o que é mental
representa algo que não é mental ? Como sabemos nós se aquilo que o Olho da Mente
vê é um espelho (ainda que distorcido - um vidro encantado) ou um véu ?”38.
De qualquer forma, a questão central aqui é: a arbitrariedade do signo indica, no
fundo, uma arbitrariedade na relação entre linguagem e referência, facilmente legível no
interior de uma teoria convencionalista da linguagem. Isto, Jean Claude Milner
compreendeu claramente ao afirmar, sobre Saussure: “O arbitrário recobre, de maneira
extremamente ajustada, uma questão que não será posta : o que é o signo quando ele
não é o signo ? o que é a língua antes de ser a língua ? – ou seja, a questão que
exprimimos corriqueiramente em termos de origem. Dizer que o signo é arbitrário, é pôr
a tese primitiva : há língua"39.
Na verdade, Saussure procurava esvaziar a questão a respeito da referência e da
designação, ou seja, a questão da exterioridade da linguagem. Mas esvaziar o problema
da referência nos leva necessariamente a explicar como as significações são produzidas,
para além de uma confrontação entre linguagem e referência. E é aqui que entrava a
noção central de “sistema”, já que será a organização da língua como um sistema
fechado (Saussure falará da língua como sistema arbitrário de signos) que responderá
pelo processo de produção de significações. A significação não é resultado da
confrontação entre palavra e coisa, mas é o resultado de uma articulação posicional-
opositiva dos signos entre si, como em um sistema fechado. É da noção saussureana de
“sistema” que nascerá o conceito de “estrutura”: “ A língua é um sistema do qual todas
as partes podem e devem ser consideradas em sua solidariedade sincrônica” 40. Sendo
que sincronia quer dizer aqui aquilo que nos dá a configuração de um estado mais ou
menos estável da língua (diacronia como a percepção histórica dos processos de
modificação dos elementos que compõem a língua).
Dizer que a língua organiza-se como um sistema significa insistir que devemos
compreende-la a partir do seu interior, ou seja, a partir de suas leis estruturais de
funcionamento. “Cumpre pois partir da totalidade solidária para obter, por análise, os
elementos que encerra”41. O modelo desta totalidade foi fornecido a Saussure pelo modo
de organização dos fonemas no interior da língua: unidades elementares que não tem
nenhuma realidade para além de suas relações no interior de um sistema. Era tal
analogia que permitia a Saussure afirmar: “Na língua, só existem diferenças. E mais
ainda: uma diferença supõe em geral termos positivos entre os quais ela se estabelece,
mas na língua há apenas diferenças sem termos positivos”42.
Esta noção da linguagem como sistema fechado cujos processos de
determinação de valor não obedece nenhuma visada externalista, pois organizados a
partir de regras internas que têm posição transcendental, podia ser melhor compreendida
através da metáfora do jogo. A noção da linguagem como jogo, noção central para a
filosofia do século XX (Wittgenstein principalmente), deve aqui ser levada a sério. Pois
o jogo é instauração de um espaço no qual todos os acontecimentos são produzidos e
38
RORTY, Richard; A filosofia e o espelho da natureza, pag. 46..
39
MILNER, L'amour de la langue, Paris: Seuil, 1978, p. 59
40
SAUSSURE, idem, p. 102
41
SAUSSURE, idem, p. 132
42
SAUSSURE, idem, p. 139
significados sem referência à exterioridade do que não se submete às regras de
organização do seu espaço. De uma certa maneira, os jogos produzem acontecimentos a
partir das regras que compõem a estrutura. Saussure tenta levar tal situação ao extremo
ao afirmar que a linguagem é como um jogo de xadrez que é jogado por jogadores
inconscientes; como se, de uma certa forma, fossem as regras que jogassem o jogo, e
não os sujeitos. Derrida compreendeu claramente as conseqüências desta perspectiva ao
afirmar:

Há pois duas interpretações da interpretação, da estrutura, do signo e do jogo.


Uma procura decifrar, sonha decifrar uma origem que escapa ao jogo e à ordem
do signo, e vive a necessidade de interpretação como um exílio [trata-se de
perguntar : o que há fora do jogo?]. A outra, que não está mais voltada à origem,
afirma o jogo e tenta passar para além do homem e do humanismo, o nome do
homem sendo o nome deste ser que, através da história da metafísica ou da onto-
teologia, sonhou a presença plena, o fundamento assegurador, a origem e o fim
do jogo43.

Ou seja, a primeira vê o “jogo de linguagem” como aquilo que oblitera uma


exterioridade na qual se leria a verdadeira matriz do sentido (a confrontação realista
com a referência, as determinações sócio-econômicas da linguagem, a história etc.). A
outra insistiria na irredutibilidade arbitrária do jogo, na impossibilidade de fazer apelo a
uma referência exterior que poderia fundamentar o jogo. É neste segundo via que
encontramos Claude Lévi-Strauss.

Lévi-Strauss e o kantismo sem sujeito transcendental

Nome fundamental para a transformação da lingüística estrutural em padrão de


racionalidade das ciências humanas, Lévi-Strauss procurava implementar um programa
de reorientação do parâmetro de racionalidade das ciências humanas através de um
esforço de formalização do fato social em chave estrutural. Seguindo uma trilha aberta
por Durkheim, Lévi-Strauss determinava a estrutura como o verdadeiro fato social.
Lembremos do que Durkheim diz a respeito do fato social:

“Quando desempenho meus deveres de irmão, de esposo, de cidadão, quando me


desincumbo de encargos que contraí, pratico deveres que estão definidos fora de
mim e de meus atos, no direito e nos costumes. Mesmo estando de acordo com
sentimentos que me são próprios, sentido-lhes interiormente a realidade, esta não
deixa de ser objetiva; pois não fui eu quem os criou, mas recebi-os através da
educação (...) estamos, pois, diante de uma ordem de fatos que apresenta
caracteres muito especiais: consistem em maneiras de agir, de pensar e de sentir
exteriores ao indivíduo, dotadas de um poder de coerção em virtude do qual se
lhe impõem”44.

Ou seja, trata-se de compreender que não é o campo fenomênico da ação dos indivíduos
que realmente interessa, mas a determinação desta estrutura prévia que coage os
sujeitos, a partir do exterior, a agir de certa forma e a assumir certos lugares na vida
social. Estrutura que totaliza e unifica a multiplicidade de fatos dispersos na vida social.
No caso de Lévi-Strauss, esta estrutura social que não era composta exatamente por um
43
DERRIDA, L´écriture et la différence, p. 427
44
DURKHEIM, O que é fato social?, p. 48
conjunto positivo de regras, mas por relações diferenciais e opositivas que determinam
possibilidades de combinatória e interditos de transposição, tal como as relações que
organizariam os fonemas.
Por sua vez, Lévi-Strauss insistia também no caráter inconsciente da estrutura.
Isto era o resultado da posição, sintetizada por Merleau-Ponty, a respeito de Lévi-
Strauss: “A função simbólica antecede o dado”45. Ou seja, ela não se conforma aos
dados naturais, ao contrário, ela estabelece previamente o campo possível de
experiências no interior do qual a própria noção se disponibilizará. Daí porque Lévi-
Strauss poderá afirmar: “os símbolos são mais reais do que aquilo que simbolizam” 46.
Notamos assim que a anterioridade da estrutura em relação ao dado é uma anterioridade
que indica uma força formadora, força formadora que pode ser esclarecida se
compreendermos a natureza transcendental da estrutura na sua função de determinar
previamente a configuração do campo de experiências possíveis. Proposição que parte
da determinação da função simbólica como função transcendental de constituição dos
objetos de toda experiência possível para afirmar que o universo simbólico engendra um
estado naturalizado de coisas. Desta forma, o convencionalismo da teoria saussureana
da linguagem acabava por validar, em Lévi-Strauss uma “teoria criacionista do
símbolo”. Para Lévi-Strauss, isto significava que a função simbólica determinava até
mesmo as coordenadas da experiência que os sujeito têm de si mesmos e de seus
próprios corpos. Como lembrará Lacan: “A função simbólica constitui um universo no
interior do qual tudo o que é humano tem de ordenar-se” 47. De uma certa forma, os
sujeito “são agidos” pela estrutura. Era isto que Derrida tinha em mente ao afirmar que
há uma maneira de pensar o jogo como dispositivo fechado cujas regras determinam a
configuração do campo de acontecimentos possíveis.que nos leva para além de todo
humanismo, ou seja, para além do homem como referência positiva da presença do
sentido. E era isto que nos explicava porque Paul Ricoeur forneceu esta definição
absolutamente precisa do estruturalismo: “kantismo sem sujeito transcendental”.
Afirmação que, longe de incomodar Lévi-Strauss, levou-lhe a dizer:

Reconheço perfeitamente esse aspecto de nossa tentativa nas palavras de Paul


Ricoeur, quando a qualifica, com razão, de “kantismo sem sujeito
transcendental”. Mas tal restrição, longe de nos parecer sinal de uma lacuna, se
nos apresente como a consequências inevitável, no plano filosófico, da escolha
que fizemos em uma perspectiva etnográfica. Como nos pusemos em busca das
condições para que sistemas de verdades se tornem mutuamente convertíveis,
podendo, pois, ser simultamente admissíveis por vários sujeitos, o conjunto
dessas condições adquire o caráter de objeto dotado de uma realidade própria, e
independente de todo e qualquer sujeito48.

Um exemplo do método estruturalista de Lévi-Strauss em operação está presente


em um texto célebre intitulado: “A estrutura dos mitos”. Este texto parte da seguinte
constatação:

Se o conteúdo do mito é inteiramente contingente, como compreender que, de


um canto a outro da terra, os mitos se pareçam tanto? É somente com a condição
de tomar consciência desta antinomia fundamental, que provém da natureza do

45
MERLEAU-PONTY, signos, p. 133
46
LÉVI-STRAUSS, Introdução à obra de Marcel Mauss, p. 29
47
LACAN, Jacques; Seminário II, p. 44
48
LÉVI-STRAUSS, Claude; O cru e o conzido, São Paulo: Cosac e Naif, 2004, p. 30
mito, que se pode esperar resolvê-la. Com efeito, esta contradição se parece com
aquela que descobriram os primeiros filósofos que se interessaram pela
linguagem, e, para que a lingüística pudesse constituir-se como ciência, foi
necessário primeiro resolver esse problema49.

Ou seja, para que os mitos ganhem legibilidade não devemos partir da análise individual
dos mitos em suas contingências inumeráveis. Devemos estabelecer primeiramente um
esforço de abstração que permita selecionar as regularidades que aparecem na extensão
dos mitos geograficamente e temporalmente dispersos. Este estabelecimento de
regularidades como condição para a compreensão da significação leva a antropologia a
caminhar juntamente com a lingüística e a abandonar toda idéia de arquétipo para a
compreensão das formações míticas. Pois se trata de insistir que a significação não é
imanente a cada representação, mas é dependente das relações das representações entre
si. As regularidades não são de símbolos, mas de significantes.
Assim, da mesma forma que a lingüística procura compreender o processo de
determinação do valor lingüístico através da reconstrução dos modos de relação entre
unidades diferenciais elementares (fonemas), o estudo dos mitos deverá partir desta
determinação de unidades elementares. A elas, Lévi-Strauss fornece o nome de
mitemas. Estes mitemas são “feixes de relações” 50 que determinam os modos de
atribuição de um predicado a um sujeito, o que nada mais é do que derivação da noção
de Lévi-Strauss do mito como um “modelo lógico para a resolução de uma contradição”
(resolução de contradições que significa aqui posição de relações). É por ser um
conjunto de mitemas que:

O lugar do mito, na escala dos modos de expressão lingüística, é oposto ao da


poesia, não importando o que se tenha dito para aproximá-los. A poesia é uma
forma de linguagem sumamente difícil de ser traduzida para uma linguagem
estrangeira, e qualquer tradução acarreta múltiplas deformações. Ao contrário, o
valor do mito como mito persiste, a despeito da pior tradução51.

A tradutibilidade integral dos mitos é resultado da possibilidade de sua


decomposição integral em unidades elementares. Vemos então, no decorrer do texto,
Lévi-Strauss operar uma decomposição dos mitos em seus mitemas, partindo do mito de
Édipo. Cada mitema indica um conjunto de modos de relação (“Cadmo procura sua irmã
Europa, raptada por Zeus”, “Édipo mata seu pai Laio”, “Etéocles mata seu irmão
Polinices”) que, por sua vez, podem ser agrupados em conjuntos mais extensos
(“relações de parentesco superestimadas”, “relações de parentesco subestimadas”).
Desta forma, duas grandes relações ganham visibilidade: aquelas vinculadas às relações
de parentesco e aquelas vinculadas a autoctonia. Lévi-Strauss aplica o processo de
decomposição a outros mitos até alcançar uma formalização que permite reconstituir a
totalidade de relações fornecidas pelo mito: “Aplicando sistematicamente este método
de análise estrutural, chega-se a ordenar todas as variantes conhecidas de um mito em
uma série, formando uma espécie de grupo de permutações, onde as variantes situadas
em ambas as extremidades da série oferecem, uma em relação a outra, uma estrutura
simétrica, mas inversa”52. Lévi-Strauss chega assim a uma correlação geral que afirma:
a superestimação do parentesco consangüíneo está para a subestimação deste da mesma

49
idem, p. 239
50
idem, p. 245
51
idem, p. 242
52
idem, 258
forma que o esforço para escapar à autoctonia está para a impossibilidade de conseguí-
lo. Isto nos permite seguir a idéia de que: “a explicação estruturalista parece remeter
sempre à constituição de totalidades, que revelam relações complexas, e que reduzem a
simples aparência à dispersão dos elementos, ou à simplicidade inicial de suas
relações”53.
De fato, algo desta redução da multiplicidade a determinações estruturais gerais
é a chave de compreensão de um projeto como As palavras e as coisas com suas
análises de epistemes. Não é por outra razão que esse texto começa com a descrição,
fornecida por Jorge Luis Borges, a respeito de uma certa enciclopédia chinesa na qual
está escrito que: "os animais dividem-se em : a) pertencentes ao Imperador, b)
embalsamados, c) enjaulados, d) leitões, e) sereias, f) fabulosos, g) cães em liberdade, j)
incluídos na presente classificação, i) que se agitam como loucos, j) inumeráveis, k)
desenhados com um pincel muito fino de pêlo de camelo, l) etc., m) que acabam de
quebrar o bebedouro, n) que, de longe, parecem moscas".
A descrição de Borges permite a Foucault iniciar uma longa digressão a respeito
de qual é o dispositivo realmente constitutivo das operações de conhecimento. Um
ponto da descrição de Borges logo chama a atenção de Foucault. O caráter fantástico da
ordenação não está no acréscimo de seres monstruosos. Mesmo se encontramos lá
sereias, por exemplo, é forçoso reconhecer que: "Borges não acrescenta nenhuma figura
ao atlas do impossível". Dado importante por lembrar que a verdadeira operação feita
por Borges é uma certa subtração do lugar no qual estes seres poderiam encontrar-se, ou
seja, o quadro que permite ao pensamento ordenar os seres. O que transgride a
imaginação é simplesmente a série alfabética que liga categorias incompatíveis. Esta
destruição do lugar de ordenamento dos seres, da sintaxe de classificação que permite o
estabelecimento seguro de operações de identidade e diferença, através da profusão de
"erros de categorias" permite a Foucault introduzir a questão arqueológica maior. Esta
questão poderia ser enunciada da seguinte forma: "como se constitui o espaço de
ordenamento dos seres?". Pois, se Foucault estiver certo, e se o riso provocado por
Borges :"é sem dúvida aparentado ao profundo mal-estar destes cuja linguagem está
arruinada: ter perdido o comum do lugar e do nome", ruína que aparece de maneira
privilegiada nesta categoria “incluídos na presente classificação” que visa desarticular
as distinções entre caso e estrutura, então o verdadeiro esforço de compreensão deve nos
levar ao ser bruto da ordem, esta região mediana que entrega a ordem em seu ser
próprio.
Já é possível aqui intuir o peso de um raciocínio estruturalista guiando tal
questão arqueológica. Da mesma forma como o estruturalismo procurava definir este
conjunto de regras e sistemas que organizavam, de maneira transcendental, o campo
possível de experiências possíveis, Foucault procura demonstrar como os saberes
positivos de uma época configuram-se a partir de uma matriz comum de racionalidade,
ou seja, de definição das ordens com suas relações de diferença e de identidade.
Notemos, inclusive, como a noção foucaultiana de "ordem" é eminentemente
estruturalista:

A ordem, é ao mesmo tempo o que se oferece nas coisas como sua lei interior, a
rede secreta segundo a qual elas, de uma certa forma, se olham entre si e que só
existe através da grelha de um olhar, de uma atenção, de uma linguagem; e é
apenas nas casas brancas deste esquadrinhamento que ela manifesta-se como
algo que já está lá, esperando em silêncio o momento de ser enunciada"54.
53
FAUSTO, Dialética marxista, dialética hegeliana, p. 142
54
FOUCAULT, Les mots et les choses, p. 11
Jacques Derrida
Aula 3

Na aula passada, vimos alguns traços gerais do pensamento estruturalista.


Programa interdisciplinar de pesquisa que partiu da tentativa de redefinir por completo o
padrão de racionalidade das ciências humanas, o estruturalismo procurava realizar tal
programa através da defesa da lingüística como “ciência ideal”. Lembremos mais uma
vez, por exemplo, do tom ditirâmbico que animava a afirmação de Lévi-Strauss :

No conjunto das ciências sociais ao qual pertence indiscutivelmente, a


lingüística ocupa, entretanto, um lugar excepcional; ela não é uma ciência social
como as outras, mas a que, de há muito, realizou os maiores progressos: a única,
sem dúvida, que pode reivindicar o nome de ciência e que chegou, ao mesmo
tempo, a formular um método positivo e a conhecer a natureza dos fatos
submetidos à sua análise55.

Este primado da lingüística implicava em um duplo efeito. Primeiro, como vemos na


afirmação de Lévi-Strauss, tratava-se de uma questão de método. A lingüística
estrutural inspirada por Saussure havia realizado um amplo processo de formalização de
seu objeto, o fato lingüístico, através da compreensão da linguagem como sistema
diferencial-opositivo de unidades elementares (fonemas). Não se tratava de uma
matematização no sentido próprio àquela implementada no campo das ciências físicas,
ou seja, redução dos objetos a uma unidade comum de medida que permite a
implementação de processos de quantificação e comparação. Tratava-se de uma
formalização estrutural, ou seja, sistematização de “elementos que se especificam
reciprocamente em relações”56 e que não tem nenhuma realidade intrínseca para além
deste campo de relações.
Tal formalização visava compreender a organização da língua como um sistema
fechado (Saussure falará da língua como sistema arbitrário de signos), que responderá
pelo processo de produção de significações. Isto significava dizer que a significação não
era o resultado da confrontação entre palavra e coisa, mas de uma articulação
posicional-opositiva dos signos entre si, como em um sistema fechado. É da noção
saussureana de “sistema” que nascerá o conceito de “estrutura”: “ A língua é um
sistema do qual todas as partes podem e devem ser consideradas em sua solidariedade
sincrônica”57.
Por outro lado, a estrutura não é dada de maneira imanente no campo fenomenal.
Ao contrário, ela determina de maneira transcendente este campo e seus atores, que
agem de maneira inconsciente. Ao falar, os sujeito não têm consciência da estrutura
fonemática que determina seus usos da língua, da mesma maneira que, ao operar
escolhas matrimoniais, os sujeitos não têm consciência dos sistemas de parentesco que
determinam tais escolhas. Este caráter inconsciente da estrutura será um dado
fundamental para a objetividade do pensamento estruturalista, assim como para o seu
anti-humanismo. Para um pensamento estruturalista estrito os sujeito não falam, eles são
55
LÉVI-STRAUSS, Antropologia estrutural, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, p. 45. Ou ainda, como
nos diz Granger : “A tentativa de transformar o acontecimento vivido em objeto abstrato, essencialmente
definido por suas correlações a outros objetos em um sistema formal, parece ter sido levada ao extremo
pela lingüística estrutural e apresenta-se como uma verdadeira provocação aos olhos dos hábitos do
conhecimento científico” (GRANGER, Pensée formelle et sciences de l´homme, p. 74)
56
DELEUZE, Em que se pode reconhecer o estruturalismo?, p. 280
57
SAUSSURE, idem, p. 102
falados pela linguagem. De onde se segue a afirmação clássica de Lévi-Strauss: “Não
pretendemos mostrar como os homens pensam nos mitos, mas como os mitos se pensam
nos homens, e à sua revelia. E. como sugerimos, talvez convenha ir ainda mais longe,
abstraindo todo sujeito para considerar que, de um certo modo, os mitos se pensam entre
si”58. Daí a afirmação de que o verdadeiro objeto das ciências humanas não era o
homem, mas as estruturas que o determinam. Michel Foucault compreendeu isto
claramente ao afirmar que: “Há ciências humanas não em todo lugar onde é questão do
homem, mas em todo lugar onde analisamos, na dimensão própria do inconsciente, as
normas, regras, conjuntos significantes que desvelam à consciência as condições de suas
formas e de suas condutas”59.
Uma terceira característica do estruturalismo, além de seu método de
formalização estrutural a partir da determinação de sistemas onde todos os elementos
têm uma profunda relação de solidariedade entre si e da defesa da natureza inconsciente
das regras de ordenamento do sistema social, era o caráter transcendental de seu
encaminhamento. Lembremos de como Saussure determinava, como tarefa geral da
lingüística nascente, estabelecer leis gerais, permanentes, universais e incondicionadas
que determinariam os fatos lingüísticos. Pois se tratava, na verdade, de determinar as
condições a priori para a existência de fatos lingüísticos. Um questionamento
transcendental a respeito da linguagem como elemento de estruturação do pensamento
se insinuava aqui. Tal questionamento deveria dar conta, entre outras coisas, da maneira
com que a linguagem estrutura o pensável e como ela se relaciona com a referência do
pensamento.
A natureza desse processo de estruturação estava claramente enunciada na
afirmação de que “A função simbólica antecede o dado” 60. Ou seja, ela não se conforma
aos dados naturais, ao contrário, ela estabelece previamente o campo possível de
experiências no interior do qual a própria noção de dado se disponibilizará. Daí porque
alguém como Lévi-Strauss poderá afirmar: “os símbolos são mais reais do que aquilo
que simbolizam”61. Notamos assim que a anterioridade da estrutura em relação ao dado
é uma anterioridade que indica uma força formadora, força formadora que pode ser
esclarecida se compreendermos a natureza transcendental da estrutura na sua função de
determinar previamente a configuração do campo de experiências possíveis.
No entanto, esta articulação entre a transcendentalidade e a posição da estrutura
como inconsciente, entre inconsciente e transcendental, acabava por criar aquilo que um
dia Paul Ricoeur chamou de “kantismo sem sujeito transcendental”. Programa cujas
conseqüências forma claramente expostas por Gilles-Gaston Granger através desta
afirmação que vale a pena retomar.

Seria inexato caracterizar este encaminhamento preliminar como simples


abstração. A estrutura lingüística aqui visada não é apenas um abstrato em
relação ao fato da linguagem; ela é aquilo que, na ausência de termo melhor,
chamaremos com Husserl de essência, ou seja, um esboço transcendental de
objeto, para além de toda ontologia. Transcendental aqui não conserva nenhuma
significação propriamente idealista, na medida em que não se trata de exposição
de uma condição imutável de conhecimento de objeto fundada na natureza de
um eu abstrato (...) A palavra transcendental justifica-se precisamente porque o
esboço não se reduz a um empobrecimento do vivido por abstração. Não importa

58
LÉVI-STRAUSS, o cru e o cozido, p. 31
59
FOUCAULT, Les mots et les choses, Paris : Seuil, 1966, p. 376
60
MERLEAU-PONTY, signos, p. 133
61
LÉVI-STRAUSS, Introdução à obra de Marcel Mauss, p. 29
qual seja seu estatuto genérico, o esboço constitui o guia de um conhecimento
conceitual possibilitando as contribuições de uma experiência controlada e o
desenvolvimento de uma combinatória.62

Para além do estruturalismo

Devemos levar em conta tais características do estruturalismo se quisermos


compreender as críticas de Derrida. De fato, a posição de Derrida é peculiar no interior
do cenário intelectual francês. Sem deixar de reconhecer, no estruturalismo, “uma
aventura do olhar, uma conversão na maneira de questionar todo objeto” 63 da mais alta
importância, Derrida nunca chegou a assumir para si o programa estruturalista, como
fizeram Michel Foucault, Jacques Lacan e, em menor grau, Gilles Deleuze. Sua postura
sempre foi marcada pela análise crítica que podemos encontrar, principalmente, em dois
textos de A escritura e a diferença: “Força e significação” e “A estrutura, o signo e o
jogo no discurso das ciências humanas” e em Da gramatologia. De fato, muito
contribuiu para isto a formação inicial de Derrida no campo da fenomenologia. Em
1954, ele defende uma dissertação para a obtenção de um diploma de estudos superiores
cujo título era: “O problema da gênese na filosofia de Husserl”. Tal trabalho só será
publicado em 1990.
No entanto, Derrida não fará algo como uma crítica ao estruturalismo a partir da
fenomenologia ou de temas maiores da fenomenologia francesa de então, como o
vínculo entre sujeito e intenção significativa, o que traz, por conseqüência, a
irredutibilidade do problema lingüístico da expressão. Lembremos, a este respeito, da
maneira como Merleau-Ponty afirmava que: “Do ponto de vista fenomenológico, ou
seja, para o sujeito falante que utiliza sua língua com um meio de comunicação com
uma comunidade viva, a língua reencontra a sua unidade: já não é o resultado de um
passado caótico de fatos lingüísticos independentes, e sim um sistema cujos elementos
concorrem todos para um esforço de expressão único voltado para o presente ou para o
futuro, e assim governado por uma lógica atual”64.
Na verdade, como dissera na primeira aula, a crítica de Derrida será, ao mesmo
tempo contra o estruturalismo e contra a fenomenologia. Gostaria, na aula de hoje,
mostrar como se dá a vertente da crítica ao estruturalismo. O primeiro aspecto desta
crítica está claramente enunciado na seguinte afirmação:

A estrutura, ou melhor, a estruturalidade da estrutura, mesmo que estivesse


sempre presente, encontrou-se sempre neutralizada, reduzida por um gesto que
consistia em dar-lhe um centro, a reportá-la a um ponto de presença, a uma
origem fixa. Este centro não tinha por função apenas orientar e equilibrar,
organizar a estrutura – de fato, não é possível pensar uma estrutura
desorganizada – mas, sobretudo, fazer com que o princípio de organização da
estrutura limitasse o que poderíamos chamar de jogo da estrutura65.

Analisemos detalhadamente esta afirmação. Primeiro, o que pode significar


exatamente o “centro” de uma estrutura? Grosso modo, podemos falar que se trata de
definir a natureza do elemento capaz de fundamentar a estrutura, de ser sua condição de
produção de sentido. Diz Derrida: este fundamento (que o filósofo chegará a chamar de

62
GRANGER, Pensée formelle et sciences de l´homme, p. 76
63
DERRIDA, L´écriture et la différence, Paris: Seuil, 1967, p. 9
64
MERLEAU-PONTY, Signos, São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 91
65
DERRIDA, ibidem, p. 409
“significado transcendental” por aparecer como garantia da inteligibilidade do discurso)
visa assegurar as operações de sentido no interior da estrutura, mas ele mesmo não pode
estar sob as condições daquilo que ele deveria fundar. Por isto, seu estatuto é paradoxal.
Pois a regra tem uma posição absolutamente peculiar no interior da estrutura. De um
lado, ela é aquilo que articula a estrutura. Mas, por outro, ela é exatamente aquilo que
não pode ser articulado no interior da mesma. Até porque, a condição de existência de
elementos do tipo X não pode ser ela também um elemento do tipo X. A regra pede
então um lugar-Outro no qual ela poderia ser apresentada em sua fundamentação. Se
não fôssemos estruturalistas, diríamos que o fundamento para um sistema determinado
de signos poderia ser ou uma metaestrutura (como se houvesse uma estrutura
estruturante e uma estrutura estruturada) ou uma designação ostensiva de uma
referência naturalizada. Mas o problema da metaestrutura nos levaria a uma certa
regressão ao infinito. A saída pela designação ostensiva não parece suportar as críticas
feitas por Quine a respeito da indeterminação da referência.
Como o estruturalismo procura resolver este problema? Tomemos Lévi-Strauss
como exemplo a partir de uma discussão importante referente ao sentido do que
antropólogos encontraram em certas tribos sob o nome de mana, manitou, hau, orenda,
entre outros. Grosso modo, podemos dizer que mana é uma noção que encontramos na
Melanésia e que “escapa da categoria rígida de nossa linguagem e de nossa razão” 66.
Ela visa designar uma quantidade de idéias que poderíamos designar por: poder de
feiticeiro, qualidade mágica de uma coisa, magia, ser mágico, ter poder mágico, estar
encantado, agir magicamente. Esta confusão do agente, do rito e das coisas é
fundamental em magia. No interior do pensamento mágico, o mana é o que produz o
valor das coisas e das pessoas, valor mágico, religioso e mesmo social. Mauss afirma
que ele é a força por excelência, a verdadeira eficácia das coisas.
Ao discutir a natureza deste processo de determinação de valor que permite a
constituição de sistemas de trocas, Lévi-Strauss desenvolve uma importante teoria a
respeito de uma classe particular de significantes da qual mana faria parte. Tal teoria,
não por acaso refere-se à origem da linguagem e da estrutura:

Quaisquer que tenham sido o momento e as circunstâncias de seu aparecimento


na escala da vida animal, a linguagem só pôde nascer repentinamente. As coisas
não puderam passar a significar de forma progressiva. Em conseqüência de uma
transformação cujo estudo não compete às ciências sociais, mas à biologia e à
psicologia, uma passagem efetuou-se, de um estágio em que nada tinha um
sentido a um outro em que tudo o possuía. Ora, essa observação, aparentemente
banal, é importante, porque essa mudança radical não tem contrapartida no
domínio do conhecimento, que se elabora lenta e progressivamente. Dito de
outro modo, no momento em que o Universo interior, de uma só vez, tornou-se
significativo, nem por isso ele foi melhor conhecido, mesmo sendo verdade que
o aparecimento da linguagem haveria de precipitar o ritmo do desenvolvimento
do conhecimento. (...) É que as duas categorias do significante e do significado
se constituíram simultânea e solidariamente, como dois blocos complementares;
mas que o conhecimento, isto é, o processo intelectual que permite identificar
uns em relação aos outros, alguns aspectos do significante e alguns aspectos do
significado (...) só se pôs a caminho muito lentamente (...) o homem dispõe
desde sua origem de uma integralidade de significante que lhe é muito difícil
alocar a um significado, dado como tal sem ser no entanto conhecido67.

66
MAUSS, Sociologia e filosofia,. p. 142
Este é um trecho que revela questões maiores do pensamento de Lévi-Strauss.
Não é difícil notar como a questão da origem trabalha toda esta reflexão, isto em um
pensamento, como o estruturalista, que teria, a princípio, livrado-se de questões sobre a
origem e a proveniência como fundamento. No entanto, a maneira que Lévi-Strauss
conjuga o problema da origem é peculiar. Ele diz: a origem é marcada por um excesso
de significante, por uma superabundância em relação às possibilidades de significado, o
que encontramos na origem é uma experiência radical de inadequação. Há assim, em
todo sistema simbólico, significantes flutuantes (como os significantes do tipo mana,
aos quais se acrescenta os nossos trem, troço, coisa) que apenas formalizam a
inadequação entre significante e significado. Por isto, eles são “símbolos em estado
puro”, suscetíveis de assumir qualquer conteúdo simbólico, “valor simbólico zero”, ou
ainda “valor indeterminado de significação, em si mesmo vazio de sentido e portanto
suscetível de receber qualquer sentido, cuja única função é preencher uma distância
entre o significante e o significado”68.
Esse elemento paradoxal, que está ao mesmo tempo dentro e fora do sistema
simbólico é o que, à sua maneira, forneceria um centro para a estrutura, estabilizando
sua produção de sentido através de uma inscrição, no interior do próprio sistema, de
uma inadequação interna ao sistema69. Mesmo através desta astúcia que parece
transformar o fundamento em um suplemento sem significação positiva, Derrida
insistirá que o problema do fundamento da estrutura arrisca-se a continuar sendo, no
fundo, uma versão do problema da origem. Um problema que, por sua vez, deve ser
compreendido como relevante apenas a partir da determinação do ser como presença
(mesmo que esta presença apareça como a inscrição de uma ausência, o importância é
que a ausência pode ser localizada, inscrita, controlada). Por isto, Derrida precisa dizer:
“Poderíamos mostrar que todos os nomes do fundamento, do princípio ou do centro
sempre designaram a invariante de uma presença (eidos, arché, telos, energeia, ousia
(essência, existência, substância, sujeito) aletheia, transcendentalidade, consciência,
homem, Deus, etc.)”70.
Como vemos, a lista é grande e heteróclita. Já encontramos aqui um dispositivo
importante de relação entre o pensamento de Derrida e a história da filosofia. Trata-se
de procurar uma espécie de solo comum pretensamente pressuposto por posições
distintas no interior da história da filosofia, embora sempre possamos nos perguntar se
afinal este solo existe, se ele é realmente uma chave profícua de análise da dispersão da
discursividade filosófica, se realmente precisamos de uma chave-geral para pensar a
história da filosofia.
No entanto, Derrida é suficientemente astuto para procurar recompor a noção
mesma de “chave-geral”. Daí a necessidade de repensar a relação entre história da
metafísica e destruição da história da metafísica afirmando:

não há sentido algum em abandonar os conceitos da metafísica para abalar a


metafísica; nós não dispomos de linguagem alguma – de sintaxe e léxico algum
67
LÉVI-STRAUSS, Introdução à obra de Marcel Mauss In: MAUSS, Sociologia e antropologia, São
Paulo: Cosac e Naif, 2006, p. 42
68
Idem, p. 39
69
Outros, como Jacques Lacan, utilizaram esta mesma noção de um elemento paradoxal para descrever o
seria o fundamento da estrutura significante. No caso de Lacan, este elemento recebe o nome de Falo,
enquanto “significante destinado a designar no seu conjunto os efeitos de significado” (LACAN, Ecrits,
Paris: Seuil, 1966, p. 690). Deleuze também insistirá neste elemento paradoxal (a seu ver, presente tanto
em Lacan quanto em Lévi-Strauss, afirmando que ele: “assegura a convergência de duas séries que ele
percorre, mas à condição precisamente de fazê-las divergir incessantemente” (DELEUZE, Logique du
sens, Paris: Minuit, 1969, p. 55)
70
DERRIDA, ibidem, p. 411
– que seja estrangeiro a esta história; não podemos enunciar proposição
destrutiva alguma que não tenha já se deslizado na forma, na lógica e nos
postulados implícitos disto mesmo que queremos contestar71.

Por isto, a posição “tática” da perspectiva de Derrida bem descrito da seguinte


forma:

Nosso discurso pertence irredutivelmente ao sistema de oposições metafísicas.


Só podemos anunciar a ruptura deste pertencimento através de uma certa
organização, uma certa organização estratégica que, no interior do campo e de
seus poderes próprios, viram contra ele seus próprios estratagemas, produzem
uma força de deslocamento propagando-se através de todo o sistema,
provocando fissuras em todos os sentidos e de-limitando-os de cima abaixo72.

Ou seja, trata-se de forçar os conceitos e operações que serão criticados a


exporem este momento no qual eles estão prestes a dizer o contrário do que deveriam
dizer. É este tipo de leitura que Derrida irá impor aos textos de Lévi-Strauss.

O lugar privilegiado da etnologia

Derrida começa lembrando que a etnologia ocupa um lugar privilegiado no


campo das ciências humanas, pois ela é uma ciência que nasce a partir de um
descentramento. “Podemos dizer em toda segurança que não há nada de fortuito no fato
da crítica do etnocentrismo, condição para a etnologia, ser sistemáticamente e
historicamente contemporânea da destruição da história da metafísica. Todas as duas
pertencem a uma mesma época”73. Mesmo partilhando um discurso e uma
conceitografia forjada no interior de tradições etnocêntricas, a etnologia procura,
estrategicamente, estabelecer uma relação crítica à história da metafísica e aos conceitos
dela herdados. A esta relação crítica, Derrida chama “desconstrução”.
Um exemplo fornecido pelo filósofo francês é a distinção natureza/cultura, tal
como aparece desde “As estruturas elementares de parentesco”, de Lévi-Strauss.
Distinção que acompanha a filosofia ocidental, diz Derrida, desde antes de Platão.
Como tal distinção aparece em Lévi-Strauss?
Primeiro, encontramos uma definição tradicional que vê a natureza como o que é
universal e necessário, enquanto a cultura seria um sistema de normas e regras que
podem variar de contexto a outro. A cultura é a esfera da contingência. No entanto,
Lévi-Strauss lembra como esta definição parece encontrar um problema ao confrontar-
se com a lei do incesto. Questão delicada, já que a lei do incesto marca exatamente a
passagem, no ser humano, da natureza à cultura. Na realidade: “A proibição do incesto é
o processo pelo qual a natureza se ultrapassa a si mesma (...) [Tal proibição] realiza, e
constitui por si mesma, o advento de uma nova ordem” 74. É por tal razão que ela possui,
ao mesmo tempo, o caráter coercitivo das leis e das instituições (ela é uma regra) e tem
o caráter universal das tendências e dos instintos. No fundo, tal proibição marca a
passagem do fato natural da consaguinidade ao fato cultural da aliança. Submetendo-se
ao tabu do incesto, o homem insere-se, de uma vez por todas, em um sistema de trocas,
ou ainda, em um sistema de comunicação onde as mulheres são tratadas da mesma

71
Idem, p. 412
72
Idem, p. 34
73
Idem, p. 414
74
idém, pag. 63
forma que sinais lingüísticos. Assim, desde a instauração da proibição do incesto, a
conduta humana é coordenada por um sistema cultural de regras que forma uma
estrutura capaz de ser analisada a partir da utilização do mesmo paradigma que serve ao
estudo da linguagem.
Desta forma, a ordem das descobertas empíricas é mobilizada para, ao mesmo
tempo, conservar e denunciar os limites de conceitos herdados da tradição metafísica.
“Enquanto esperamos, explora-se a eficácia relativa [destes conceitos] utilizando-os
para destruir a antiga máquina à qual eles pertencem e a respeito da qual eles são peças.
É assim que se critica a linguagem das ciências humanas” 75. Como se fosse possível
separar questão de método (ou questão de validade) e questão de verdade.
Tal perspectiva leva o discurso etnográfico a aproximar-se daquilo que o próprio
Lévi-Strauss chamou de bricolage. Em algumas páginas célebres de O pensamento
selvagem, Lévi-Strauss abandona a antiga categoria do pensamento primitivo (ou
pensamento mágico) a fim de expor, em novo patamar, a distinção entre a razão
ocidental e seu outro histórico-geográfico, o pensamento moderno e estas formas de
pensar na qual a modernidade teima em não se reconhecer. Normalmente, define-se o
“pensamento primitivo” a partir de duas características maiores: um modo de pensar
projetivo animado pelo medo e pela ignorância, assim como a incapacidade de operar
com simbolizações e abstrações. A primeira característica mostra o pensamento
primitivo (o fetichismo aqui é um ótimo exemplo) como modo elementar de defesa
contra um afeto: o medo diante do caráter imprevisível dos fenômenos naturais. Projetar
qualidades humanas em objetos naturais aparece como móbile de um pensamento
assombrado pelo medo, pensamento que ainda não se tornou “senhor da natureza”
através do desvelamento da estrutura causal dos fenômenos.
Por outro lado, “o progresso natural das idéias humanas” seria resultado de um
movimento de abstração que consistiria em: passar dos objetos sensíveis aos
conhecimentos abstratos. As sociedades primitivas seriam estranhas a formas de
pensamento que se abstraem das determinações sensíveis imediatas a fim de construir
conceitos e símbolos genéricos. Ou seja, elas desconheceriam o pensamento conceitual,
tomando por atributo imediato da coisa particular o que é próprio de sua espécie,
gênero, ou da estrutural causal da qual ela faz parte.
Lévi-Strauss rompe com esta tradição a fim de mostrar de que o “pensamento
primitivo” implica operações intelectuais e métodos de observação comparáveis àqueles
próprios a nosso conhecimento científico. Ele passa então à descrição destas extensas
taxionomias zoológicas e botânicas encontradas nos EUA e Canadá onde os elementos
são distinguidos pela sua eficácia e causalidade. Maneira de evidenciar a força de
abstração própria ao chamado pensamento primitivo. E aqui, diz Lévi-Strauss: “Ao
invés de opor magia e ciência, valeria mais a pena colocá-las em paralelo, como modos
de conhecimento, desiguais quanto aos resultados teóricos e práticos (...), mas não
quanto ao gênero de operações mentais que supõem e que diferem menos pela natureza
do que em função dos tipos de fenômeno aos quais eles se aplicam” 76. Isto permite ao
antropólogo dizer que o dito pensamento primitivo é, na verdade, uma “ciência do
concreto” que em muito se assemelha à ação de um bricoleur. Por isto: “o que é próprio
ao pensamento mítico é exprimir-se através de um repertório cuja composição é
heteróclita e que, ainda que extenso, continua limitado; no entanto, faz-se necessário
que o pensamento o utilize, não importa qual tarefa ele precise realizar, pois o
pensamento não tem mais nada à mão. Ele aparece assim como uma espécie de

75
Idem, p. 417
76
LÉVI-STRAUSS, La pensée sauvage, Paris: Plon, 1962, p. 26
bricolagem intelectual”77. Por isto, o bricoleur fica sempre entre o percepto e o conceito.
Ele fica preso ao universo do signo, sem aceder completamente ao conceito. Daí a idéia
lévi-straussiana de contrapor o bricoleur ao engenheiro. Figura metafórica deste que
operaria com a capacidade global de reorganização e de instauração própria ao conceito.
Como se ele fosse capaz de reconstruir a totalidade de sua linguagem, sintaxe e léxico
através de um corte epistemológico.
No entanto, dirá Derrida: “o engenheiro é um mito: um sujeito que seria a
origem absoluta de seu próprio discurso e o construiria ´peça por peça´ seria o criador
do verbo, o próprio verbo”78. O engenheiro seria o mito produzido pelo bricoleur.
Derrida não se contenta em denunciar a divisão, mas quer afirmar que o próprio
discurso etnológico de Lévi-Strauss opera por bricolagens. O uso da distinção
natureza/cultura seria aqui um exemplo privilegiado. Este uso seria apenas um exemplo
de um problema mais geral referente ao estatuto da estrutura interpretativa da etnologia.
Não seria ela um mito que se acrescenta à série infinita de transformações e
reconstruções dos mitos entre si? Não seria ela uma maneira dos mitos “pensarem entre
si”, como vimos na aula passada?
É o próprio Lévi-Strauss que levanta tais questões. Para Derrida, trata-se de
indicar estes momentos decisivos nos quais as próprias dicotomias sintetizadas pelo seu
pensamento parecem a ponto de desmoronar. Neste sentido: “o que parece mais sedutor
nessa procura crítica de um novo estatuto do discurso é o abandono declarado de toda
referência a um centro, a um sujeito, a uma referência privilegiada, a uma origem ou a
uma arché absoluta”79.
No entanto, este pensamento bricoleur ao qual Derrida parece querer reduzir o
antropólogo não seria, por sua vez, uma forma de bloquear totalizações necessárias para
todo saber? Maneira de entificar um certo empirismo que se contentaria em descrever
fatos e registrar modificações sem nunca chegar a uma visão sistemática de conjunto.
Aqui, entra em cena o problema do recurso à totalidade. Problema ainda mais
interessante se lembrarmos da função manifesta da noção de “sistema fechado” no
estruturalismo.
Neste ponto, Derrida afirmar existir duas maneiras de compreender o que pode
ser um sistema. Podemos imaginar que o sistema determina previamente o sentido de
todos os acontecimentos. Neste caso, teremos uma: “totalidade abandonada por suas
forças, mesmo se ela é totalidade da forma e do sentido, pois se trata então do sentido
repensado na forma, e a estrutura é unidade formal da forma e do sentido”80. Mas
podemos compreendê-lo também sob a forma de um jogo que permite substituições
infinitas entre elementos finitos. Trata-se aqui, no entanto, de um jogo peculiar. Não
algo como um jogo de xadrez com suas regras regulativas (metáfora maior para a
compreensão da linguagem em Saussure). Mas de um jogo que problematiza, que traz
para dentro de seu sistema, o problema da relação entre o que é interno ao jogo e o que
lhe é externo (como, por exemplo, a história).
A metáfora do jogo é sempre uma metáfora da instauração que neutraliza o
tempo e a história. Para que um jogo funcione bem, não devemos nos perguntar o que
existia antes do jogo. Por isto, diz de maneira perspicaz Derrida, Lévi-Strauss: “como
Rousseau, deve sempre pensar a origem de uma estrutura nova a partir do modelo da
catástrofe – desordenamento da natureza na natureza, interrupção natural do
encadeamento natural, separação da natureza”81. Essa ausência da história é, segundo
77
Idem, p. 30
78
DERRIDA, ibidem, p. 418
79
Idem, p. 419
80
Idem, p. 13
81
Idem, p. 426
Derrida, compensada no pensamento estrutural por uma nostalgia da origem, da pura
presença e da imediaticidade rompida (Derrida dedicará páginas fundamentais ao
problema da origem e das sociedades sem história em Lévi-Strauss).
No entanto, seria possível pensar algo como uma história sem origem, isto em
uma chave muito próxima da noção nietzscheana de devir. História que afirmaria “a
indeterminação genética, a aventura seminal do traço”. Neste ponto, Derrida não está
longe do Foucault de “Nietzsche, a origem e a história” (1971). Ou seja, há um
momento no pensamento francês onde a noção nietzscheana de devir aparece como
horizonte de orientação para a discussão das relações entre pensamento e história. Mas o
que nos ensinaria Nietzsche a este respeito? Que: “procurar a origem é tentar encontrar
´o que já estava lá´, o ´isto mesmo´ de uma imagem exatamente adequada a si (...) “
Mas o que aprendemos? “Que atrás das coisas, há ´algo totalmente outro´; não seu
segredo essencial, sem data, mas o segredo que elas são sem essência, ou que sua
essência foi construída peça por peça a partir de figuras que lhes eram estrangeiras”82.
Uma das estratégias de Derrida, que veremos mais claramente quando
comentarmos Da gramatologia, consiste em dizer que estes significantes flutuantes que
Lévi-Strauss apresentou ao comentar as noções de mana, hau, manitou etc.,
significantes que vinham suplementar uma inadequação radical entre significante e
significado, poderiam nos abrir a uma outra forma de compreender o que está no lugar
do fundamento. Eu havia dito que, mesmo através desta astúcia que parece transformar
o fundamento em um suplemento sem significação positiva, Derrida insistirá que o
problema do fundamento da estrutura arrisca-se a continuar sendo, no fundo, uma
versão do problema da origem. No entanto, devemos entender como Derrida irá
procurar isolar este fundamento, pensá-lo como suplemento (criticando inclusive alguns
usos do mesmo, como a noção lacaniana de “Falo”). Mas para tanto, será necessário
afirmar que:

Há pois duas interpretações da interpretação, da estrutura, do signo e do jogo.


Uma procura decifrar, sonha decifrar uma origem que escapa ao jogo e à ordem
do signo, e vive a necessidade de interpretação como um exílio [trata-se de
perguntar : o que há fora do jogo?]. A outra, que não está mais voltada à origem,
afirma o jogo e tenta passar para além do homem e do humanismo, o nome do
homem sendo o nome deste ser que, através da história da metafísica ou da onto-
teologia, sonhou a presença plena, o fundamento assegurador, a origem e o fim
do jogo83.

Ou seja, a primeira vê o “jogo de linguagem” como aquilo que, ou oblitera uma


exterioridade na qual se leria a verdadeira matriz do sentido, ou sente esta
imediaticidade como possibilidade perdida (e já o termo “perdido”, neste contexto, diz e
pressupõe muito mais do que gostaria). A outra insistiria na irredutibilidade arbitrária do
jogo, na impossibilidade de fazer apelo a uma referência exterior que poderia
fundamentar o jogo, impossibilidade vinculada (e ainda não sabemos nada sobre a razão
desse vínculo, o que podemos fazer com ele) à presença do homem. Essas duas vias
fariam parte do projeto estruturalista. Liberar uma via da outra é um exercício que
Derrida procurará fazer, mas através de uma perspectiva que lhe colocará para além do
estruturalismo e que o levará, durante um certo momento, a acreditar na possibilidade
de constituir um outro campo de pesquisas, chamado de “gramatologia”.

82
FOUCAULT, Dits et écrits I, Paris: Gallimard (Quarto), p. 1006
83
DERRIDA, L´écriture et la différence, p. 427
Jacques Derrida
Aula 4

Na aula de hoje, começaremos com o módulo dedicado às relações entre Jacques


Derrida e a fenomenologia de Husserl. Relação fundamental, já que foi a partir dela que
se constituiu a experiência intelectual do filósofo francês. Se acrescentarmos as relações
de Derrida com o pensamento heideggeriano, teremos um quadro extenso de debate
entre a desconstrução e a fenomenologia alemã. No caso da relação entre Derrida e
Husserl, os textos principais são: a dissertação de mestrado de 1954, defendida sob a
orientação de Maurice de Gandillac e intitulada O problema da gênese na filosofia de
Husserl, a longa introdução e tradução do texto husserliano A origem da geometria, de
1962 e, principalmente, o livro A voz e o fenômeno: introdução ao problema do signo
na fenomenologia de Husserl, de 1966. Há ainda um importante texto em Escritura e
diferença, intitulado “’Gênese e estrutura’ e a fenomenologia”.
Depois desta primeira fase de confrontação com a fenomenologia, Derrida
escreverá, principalmente na década de setenta e oitenta, textos importantes sobre
Heidegger como, por exemplo, Heidegger e a questão, de 1987 e os textos de Margens
da filosofia dedicados a Heidegger ou escritos a partir de problemas suscitados pelo
texto heideggeriano (como “Ousia e gramme: nota sobre uma nota de Sein und Zeit” e
“Os fins do homem”).
Antes de iniciar a análise da leitura derridiana de Husserl, vale a pena procurar
contextualizar o sentido da abordagem peculiar que Derrida impõe ao projeto
fenomenológico. Notemos, inicialmente, que a leitura de Derrida parece relativamente
distante daquela que podemos encontrar na fenomenologia francesa de então. Por
exemplo, não encontramos em Derrida algo como uma crítica ao estruturalismo
(corrente intelectual dominante na França dos anos cinqüenta e sessenta) a partir de
temas maiores da fenomenologia francesa de então, como o vínculo entre sujeito e
intenção significativa, o que traz, por conseqüência, a irredutibilidade do problema
lingüístico da expressão. Lembremos, a este respeito, da maneira como Merleau-Ponty
afirmava que: “Do ponto de vista fenomenológico, ou seja, para o sujeito falante que
utiliza sua língua como um meio de comunicação com uma comunidade viva, a língua
reencontra a sua unidade: já não é o resultado de um passado caótico de fatos
lingüísticos independentes, e sim um sistema cujos elementos concorrem todos para um
esforço de expressão único voltado para o presente ou para o futuro, e assim governado
por uma lógica atual”84.
Na verdade, como dissera na primeira aula, a crítica de Derrida será, ao mesmo
tempo contra o estruturalismo e contra a fenomenologia. Esta crítica dupla será animada
pelo reconhecimento da importância das questões ligadas à fundamentação da
objetividade, presentes tanto em Husserl quanto no estruturalismo. No entanto, Derrida
age como quem está interessado, principalmente, no que há de impensado em tal
fundamentação, no que, no interior mesmo do processo de fundamentação, parece
exceder as promessas de segurança ontológica no agir e no julgar enunciadas pelo
fundamento. Vimos, na aula passada, como Derrida procurava tematizar tal impensado
no interior do estruturalismo. Retomemos rapidamente tal discussão a partir da
afirmação de Derrida:

A estrutura, ou melhor, a estruturalidade da estrutura, mesmo que estivesse


sempre presente, encontrou-se sempre neutralizada, reduzida por um gesto que
84
MERLEAU-PONTY, Signos, São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 91
consistia em dar-lhe um centro, a reportá-la a um ponto de presença, a uma
origem fixa. Este centro não tinha por função apenas orientar e equilibrar,
organizar a estrutura – de fato, não é possível pensar uma estrutura
desorganizada – mas, sobretudo, fazer com que o princípio de organização da
estrutura limitasse o que poderíamos chamar de jogo da estrutura85.

Vimos como o “centro” de uma estrutura deveria ser compreendido como o


elemento capaz de fundamentá-la, de ser sua condição da sua produção de sentido. Diz
Derrida: este fundamento (que o filósofo chegará a chamar de “significado
transcendental” por aparecer como garantia da inteligibilidade do discurso) visa
assegurar as operações de sentido no interior da estrutura, mas ele mesmo não pode
estar sob as condições daquilo que ele deveria fundar. Por isto, seu estatuto é paradoxal.
Pois a regra tem uma posição absolutamente peculiar no interior da estrutura. De um
lado, ela é aquilo que articula a estrutura. Mas, por outro, ela é exatamente aquilo que
não pode ser articulado no interior da mesma. Até porque, a condição de existência de
elementos do tipo X não pode ser ela também um elemento do tipo X. A regra pede
então um lugar-Outro no qual ela poderia ser apresentada em sua fundamentação. Se
não fôssemos estruturalistas, diríamos que o fundamento para um sistema determinado
de signos poderia ser ou uma metaestrutura.
Vimos como o estruturalismo procurava resolver este problema. Lembremos da
discussão a respeito do sentido do que antropólogos encontraram em certas tribos sob o
nome de mana, manitou, hau, orenda, entre outros. Grosso modo, podemos dizer que
mana é uma noção que encontramos na Melanésia e que “escapa da categoria rígida de
nossa linguagem e de nossa razão”86. Ela visa designar uma quantidade de idéias que
poderíamos designar por: poder de feiticeiro, qualidade mágica de uma coisa, coisa
mágica, ser mágico, ter poder mágico, estar encantado, agir magicamente. Esta confusão
do agente, do rito e das coisas é fundamental em magia. No interior do pensamento
mágico, o mana é o que produz o valor das coisas e das pessoas, valor mágico, religioso
e mesmo social. Ao discutir a natureza deste processo de determinação de valor que
permite a constituição de sistemas de trocas, Lévi-Strauss desenvolve uma importante
teoria a respeito de uma classe particular de significantes da qual mana faria parte.
Tal teoria, como vimos, não por acaso referia-se à origem da linguagem e da
estrutura. Lèvi-Strauss afirma que a origem seria marcada por um excesso de
significante, por uma superabundância em relação às possibilidades de significado. O
que encontraríamos na origem seria uma experiência radical de inadequação. Haveria
assim, em todo sistema simbólico, significantes flutuantes (como os significantes do
tipo mana, aos quais se acrescenta os nossos trem, troço, coisa) que apenas formalizam
a inadequação entre significante e significado. Por isto, eles seriam “símbolos em estado
puro”, suscetíveis de assumir qualquer conteúdo simbólico, “valor simbólico zero”, ou
ainda “valor indeterminado de significação, em si mesmo vazio de sentido e portanto
suscetível de receber qualquer sentido, cuja única função é preencher uma distância
entre o significante e o significado”87.
Esse elemento paradoxal, que está ao mesmo tempo dentro e fora do sistema
simbólico é o que, à sua maneira, forneceria um centro para a estrutura, estabilizando
sua produção de sentido através de uma inscrição, no interior do próprio sistema, de
uma inadequação interna ao sistema. A aposta de Derrida consistirá em liberar este
suplemento ao fundamento de uma certa metafísica cuja melhor descrição encontra-se

85
DERRIDA, L´écriture et la différence, p. 409
86
MAUSS, Sociologia e filosofia,. p. 142
87
LÉVI-STRAUSS, Introdução à obra de Marcel Mauss, p. 39
exatamente nos textos dedicados à Husserl. Esta metafísica estaria presente no
estruturalismo através de uma nostalgia da origem, da pura presença e da imediaticidade
rompida. Metafísica radicalmente vinculada aos usos da noção de signo. Há uma
metafísica do signo a respeito da qual Derrida fará uma crítica radical. Devemos
compreendê-la melhor para afinal entrarmos no cerne da crítica derridiana ao
estruturalismo. Mas para isto, faz-se necessário irmos à Husserl.

Qual a origem da geometria?

De fato, a tese fundamental de Derrida é: “Em todo o lugar onde é questão do uso da
noção de signo, encontramos sempre o vínculo fundamental de um regime de
pensamento à metafísica”. Haveria assim uma unidade ontológica da noção de signo, o
que permite a unificação da crítica a todo regime de pensar para o qual a noção de signo
é peça fundamental. Podemos mesmo dizer que esta é a função de A voz e o fenômeno, a
saber, fornecer um dispositivo geral de crítica à noção de signo, compreendendo-o como
peça fundamental daquilo que devemos definir como “metafísica”. De uma certa forma,
para Derrida, toda metafísica é uma metafísica do signo, é uma redução da linguagem à
dimensão do signo.
Mas qual o problema com a noção de “signo”? Responder de maneira adequada
esta pergunta irá nos exigir não apenas discutir A voz e o fenômeno, mas também Da
gramatologia. Uma discussão que exigirá também a leitura de um capítulo das
Investigações lógicas, de Husserl, intitulado: “Expressão e significado” (Ausdruck und
Bedeutung). Leitura que pediria para a aula que vem.
Por enquanto, gostaria de dar um passo atrás de expor as coordenadas gerais de
um texto que, em vários pontos, adianta e prepara a discussão que encontraremos em A
voz e o fenômeno, a saber, a Introdução à Origem da geometria, de Husserl. A origem
da geometria é um pequeno texto que pertence ao projeto geral do incompleto A crise
das ciências européias e a fenomenologia transcendental, que aparecerá em 1936.
Grosso modo, Husserl diagnostica uma situação de crise devido a uma “alienação
objetivista” que ameaçaria a ciência européia. De onde se seguiria a necessidade de uma
reflexão capaz de regredir (Rückfragen) em direção ao sentido original da ciência.
Antes de começarmos a discussão do texto de Derrida, vale a pena sublinhar que
não se trata de discutir aqui a adequação ou não da leitura por ele proposta. Trata-se de
compreender como, através do comentário de um texto da tradição filosófica, as peças
centrais do seu próprio programa filosófico foram desenhadas.
De fato, o comentário deste pequeno texto de Husserl serve a Derrida de ocasião
para uma discussão inaugural a respeito do problema da fundamentação da objetividade
através do recurso à noção de “origem”. Uma origem que não deixará de se articular ao
problema da exigência estruturalista que conduz à descrição compreensiva de uma
totalidade segundo uma legalidade interna, que não deixará de ser a reflexão sobre o
fundamento de tal estrutura.
Por sua vez, o problema husserliano da origem só poderá ser corretamente
compreendido se posto no interior de uma reflexão sobre a linguagem e seus
mecanismos de produção de sentido. Pensar o problema da produção do sentido a partir
da reflexão sobre a geometria permite a Derrida perguntar: “Como se passa de um
estado individual ante-predicativo originário à existência de um ser geométrico em sua
objetividade ideal?”88. Que a idealidade seja aqui inquirida a partir do objeto
geométrico, eis algo que não poderia ser diferente. Pois o objeto geométrico, assim

88
DERRIDA, Le problème de la génèse chez Husserl, Paris: PUF, 1990, p. 267
como o objeto matemático, é o exemplo ideal devido à sua pureza em relação à
empiricidade:

Seu ser se esgota e transparece integralmente em sua fenomenalidade.


Absolutamente objetivo, ou seja, totalmente liberado da subjetividade empírica,
ele, no entanto, não é o que ele aparenta. Ele está sempre já reduzido a seu
sentido fenomenal e seu ser é, desde o início do jogo, ser-objeto para uma
consciência pura89.

Ou como dirá Husserl:

Assim, na geometria pura nós em regra não fazemos juízos sobre o eidos ‘reta’,
‘ângulo’, ‘triângulo’, ‘seção cônica’ e tc., mas sobre reta e ângulo em geral ou
‘como tal’, sobre triângulos individuais em geral, sobre seções cônicas em geral.
Tais juízos universais possuem o caráter da generalidade eidética, da
generalidade pra ou, como também se diz, da generalidade ‘rigorosa’, pura e
simplesmente ‘incondicionada’90.

Esta definição do objeto matemático em sua independência em relação á


subjetividade empírica parece colocá-lo em uma relação de completa exterioridade em
relação à história e sua faticidade. Este é um ponto importante pois Derrida inicia seu
texto lembrando que, para a fenomenologia, a tematização da historicidade sempre foi
ligada à condenação tanto do genetismo historicista quanto do psicologismo. Todas as
duas posições seriam figuras de um certo materialismo para o qual a dimensão das
empiricidades forneceriam o fundamento para aquilo que procura ter validade
incondicional. Contra elas, faz-se necessário insistir no vínculo entre fenomenologia e
filosofia transcendental. Vínculo que não significaria anular toda questão relativa à
historicidade. Pois os objetos transcendentais que assegurariam a possibilidade de
história, seu telos, não pertenceriam ao eidos do Ego concreto. Como se a história,
como experiência empírica, estivesse na dependência de um fundo de pressuposições
eidéticas revelado pela fenomenologia. É neste sentido que devemos interpretar a
afirmação:

Necessidade de proceder a partir de fato da ciência constituída, regressão em


direção às origens não empíricas que são, ao mesmo tempo, condições de
possibilidade; eis, nós sabemos, os imperativos de toda filosofia transcendental
[e da fenomenologia de Husserl] em face de algo como a história das
matemáticas91.

Mas contrariamente a Kant, para quem a construção própria à atividade do


matemático e do geômetra seria a explicitação de um conceito já constituído que ele
encontraria em si mesmo, os objetos visados pela intuição husserliana não existiriam
antes dela. Conhecemos a dissociação radical entre história e geometria que Kant
apresenta logo na introdução à Crítica da razão pura: “Aquele que primeiro
demonstrou o triângulo isósceles (fosse ele Tales ou como quer que se chamasse) teve
uma iluminação (ging ein Licht auf)”92 que consistiu em compreender que ele deveria

89
Idem, Introduction à L´origine de la géométrie, Paris: PUF, 2004, p. 6
90
HUSSERL, Idéias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica, p. 39
91
Idem, p. 20
92
KANT, Crítica da razão pura, B XII
trazer à luz (hervorbringen) a partir de conceitos pensados e já presentes a priori. Uma
iluminação nada tem a ver com o processo da constituição histórica, mas com o
processo analítico da apreensão do que já se encontra diante de nós.
No entanto, para Husserl, mesmo que a geometria em seu caráter normativo seja
independente da história, há a necessidade de descrever o processo através do qual as
idealidades geométricas surgem em um solo de experiências não-geométricas, solo
ligado ao mundo da cultura. Ou seja: “para Husserl, as objetividades geométricas ideais,
como a triangularidade, devem advir de objetividades não-geométricas, elas não existem
como tais antes desta experiência”93. Derrida chegará a dizer que a intuição husserliana,
no que concerne os objetos ideais das matemáticas, é absolutamente constituinte e
criadora. Na verdade, ao invés da simples autonomia da idealidade lógica em relação a
toda consciência em geral, Husserl quer: “manter ao mesmo tempo a autonomia
normativa da idealidade lógica ou matemática em relação a toda consciência factual e as
dependência originária a uma subjetividade em geral; em geral mas concreta”94.
Concreta, mas não empírica, como uma “experiência transcendental”.
No entanto, esta primeira experiência em solo ‘pré-científico” não pode colocar
em causa a unidade de sentido do que deve ser pensado como “geometria”:

A axiomática em geral, a partir da qual todo ideal de dedutividade exaustiva e


exata pode ganhar sentido, a partir da qual todo problema de decidibilidade pode
em seguida surgir, já supõe uma sedimentação do sentido, ou seja, uma
evidência originária, um fundamento radical, que é também um passado95.

Este passado não é a determinação factual de um acontecimento empírico que


colocaria a geometria nas vias da relatividade e da contingência dos fatos. Ele é uma
espécie de “pré-história transcendental” sempre vivenciada como distância e acontecido.
Husserl nos diz haver “proto-materiais”, “arqui-premissas” no mundo pré-científico da
cultura, como se seu desvelamento fornecesse as coordenadas de tal pré-história.”Toda
história factual permanece na não-inteligibilidade enquanto ela, concluindo sempre
diretamente e de maneira ingênua a partir de fatos, não tematizar o solo de sentido
universal sobre o qual repousam o conjunto de tais conclusões, enquanto ela nunca
explorou o potente a priori estrutural que lhe é próprio” 96. Neste sentido, a história não
pode ser outra coisa que a recondução das formas de sentido históricas dadas no
presente à dimensão dissimulada das arqui-premissas fundadoras.
Por outro lado, isto exige uma forma cultural que não seja específica de cultura
particular alguma: “A idéia da ciência é o index da cultura pura em geral, ela designa o
eidos da cultura por excelência” 97. A este respeito, Derrida chega a falar de cultura da
verdade no interior da qual a idealidade é absolutamente normativa.
De fato, a fenomenologia, e isto desde Hegel, descreve um movimento da
verdade no qual esta aparece como uma história concreta cujo fundamento são atos de
uma subjetividade temporal, atos fundados no mundo da vida como mundo da cultura.
No entanto, esta subjetividade não é uma subjetividade egológica; ela é uma
subjetividade comunitária ou, se quisermos utilizar um termo mais apropriado, uma
intersubjetividade:

93
LAWLOR, Konyv; Derrida amd Husserl : the basic problems of phenomenology, p. 107
94
DERRIDA, L´écriture et la différence, p. 235
95
DERRIDA, Introduction ..., p. 42
96
HUSSERL, idem, p. 202
97
Idem, p. 46
Cada cientista não se sente ligado a todos os outros apenas pela unidade de um
objeto ou de uma tarefa. Sua própria subjetividade de cientista é constituída pela
idéia ou horizonte desta subjetividade total que se torna responsável, nele e
através dele, de cada um de seus atos de cientista98.

Vê-se assim como Husserl, segundo Derrida, faria apelo às tramas de uma
intersubjetividade transcendental enraizada em um mundo da vida onde encontraríamos
uma forma cultural que não seria específica de cultura particular alguma. Aqui,
encontramos um dos pontos fundamentais da leitura derridiana: esta forma cultural pura
nos remete à concepção fenomenológica de linguagem. Pois ela implica na
neutralização espontânea da existência factícia do sujeito falante de uma língua
particular (daí a insistência na tradutibilidade absoluta dos objetos geométricos), das
palavras e da coisa designada. Por isto, Derrida deve afirmar que: “a objetividade desta
verdade não poderia se constituir sem a possibilidade pura de uma informação em uma
linguagem pura em geral. Sem esta possibilidade pura e essencial, a formação
geométrica seria inefável e solitária” 99. Esta linguagem pura é própria de uma
intersubjetividade transcendental como condição da objetividade. Desta forma, o
problema da origem da geometria nos remete, necessariamente, ao problema da
constituição da intersubjetividade e da origem fenomenológica da linguagem. O que não
poderia ser diferente já que o modelo da linguagem, para Husserl, é a linguagem
objetiva da ciência. Uma linguagem poética cujas significações não seriam objetos
nunca teria, a seus olhos, valor transcendental.
No entanto, Derrida é sensível ao “fundamento empírico” desta
intersubjetividade transcendental. Não lhe escapa uma afirmação como esta, de Husserl:
“Na dimensão da consciência, a humanidade normal e adulta (excluindo o mundo dos
anormais e das crianças) é privilegiada como horizonte de humanidade e como
comunidade de linguagem”100. Pois se a maturidade do homem adulto e sua normalidade
permitem uma determinação eidético-transcendental rigorosa da consciência, então: “o
privilégio de Husserl implica que uma modificação factual e empírica – a normalidade
adulta – pretenda ser uma norma transcendental universal” 101. Se quisermos utilizar uma
palavra proibida, podemos dizer que tal modificação factual e empírica não seria outra
coisa que uma certa recaída na dimensão do psicológico. É ela que permitiria assim a
fundamentação da consciência de se estar diante da mesma coisa, da consciência de um
nós puro e pré-cultural.
Tudo se passa como se Derrida procurasse mostrar como a liberação da
intersubjetividade de um fundamento empírico acabasse por transformá-la,
necessariamente, em uma forma de “infra-ideal inacessível”, de natureza pré-cultural
que sempre nos escapa. E aqui encontramos a origem de uma temática maior que
atravessará toda a experiência intelectual de Derrida, a saber, o primado da escritura
como modo de ser de uma linguagem liberada do peso da metafísica.

Para introduzir o problema da escritura

Para que a intersubjetividade seja algo como uma relação não-empírica entre egos faz-se
necessária que ela libere-se de todo vínculo a modificações empírico-factuais. Da
mesma forma, para que o objeto seja absolutamente ideal, ele deve ser liberado de todo

98
Idem, p. 50
99
Idem, p. 70
100
HUSSERL, L´origine de la géométrie, p. 182
101
LAWLOR, ibidem, p. 112
vínculo a uma subjetividade atual, ao modo de descrição próprio a uma subjetividade
atual, a saber, a palavra falada com suas contingências. Por isto, é a possibilidade de um
outro modo de ser da linguagem, ou seja, a escritura, que garantirá a objetividade ideal
absoluta na pureza de sua relação a uma subjetividade transcendental universal:

Sem a última objetivação que a escritura permite, toda linguagem estaria ainda
cativa da intencionalidade factícia e atual de um sujeito falante ou de uma
comunidade de sujeitos falantes. Ao virtualizar absolutamente o diálogo, a
escritura cria uma forma de campo transcendental autônomo a respeito do qual
todo sujeito atual pode se abster102.

Notemos aqui dois pontos centrais. Primeiro, a problemática derridiana da


escritura nasce da reflexão a respeito da condição de possibilidade para a
fundamentação da objetividade e da universalidade. Para um autor que passou à
posteridade como defensor do relativismo e do nivelamento geral entre ciência e
literatura, o mínimo que podemos dizer é que se trata de um ponto de partida
inesperado. Ainda mais porque, em certos momentos, Derrida reconhece que esta
temática da escritura não deixa de ter relações com a noção kantiana de “Idéia”,
compreendida como “irrupção do infinito aos pés da consciência, que a permite unificar
o fluxo temporal como ela unifica o objeto e o mundo, por antecipação e a despeito de
um inacabamento irredutível”103. A Idéia se dá na evidência fenomenológica como
evidência de um “transbordamento essencial em relação à evidência atual e
adequada”104. Enquanto transbordamento, ela impede o aprisionamento da gênese do ser
e do sentido em um valor estático e plenamente determinado. Como veremos, esta
característica da Idéia será fundamental para o advento da idealidade do objeto
geométrico.
Segundo, através do problema da escritura, Derrida procura atualizar uma
temática cara ao pensamento francês contemporâneo ao menos desde um pequeno texto
de Sartre, de 1936, intitulado A transcendência do Ego, a saber, a discussão a respeito
das condições de possibilidade e das conseqüências de um campo transcendental
impessoal. Neste sentido, encontramos uma proximidade bastante importante entre
Derrida e Deleuze. Todos os dois procuram realizar uma premissa maior : fundar uma
filosofia transcendental liberada de uma noção identitária de subjetividade. Como se a
afirmação de Paul Ricoeur a respeito do estruturalismo como um “kantismo sem sujeito
transcendental” fornecesse, involuntariamente, a chave que marcará os próximos passos
da filosofia francesa contemporânea. Pois tudo se passa como se Derrida e Deleuze
dissessem algo como: “Franceses, só mais um esforço se quiserem realmente escapar do
psicologismo”. Pois é deste problema que se trata : uma certa dependência subreptícia
de temática empíricas na determinação do transcendental como campo. E será através
de uma linguagem não mais pensada como expressão de uma subjetividade, seja ela
atual seja ela transcendental, uma linguagem originada pela escritura, que Derrida
procurará realizar tal tarefa. Mesmo o recurso à Idéia kantiana como potência de
indeterminação não será estranha a nenhum dos dois. Basta estarmos atentos a páginas
decisivas de Diferença e repetição, de Deleuze.
Mas para tanto, Derrida precisará voltar-se contra Husserl, voltar-se em direção
ao impensado da axiomática da fenomenologia husserliana e, com isto, ir a uma região
que não poderia ser tematizada no interior da fenomenologia, já que uma região para

102
DERRIDA, ibidem, p. 84
103
DERRIDA, L´écriture et la différence, p. 242
104
Idem, p. 250
além da filosofia da consciência. Pois Husserl nunca questionará o fato deste campo
transcendental exigir a possibilidade jurídica de ser inteligível para um sujeito
transcendental em geral. Por isto, o ato de escritura aparece como uma redução
transcendental. Através desta redução, abre-se uma origem no qual encontramos o “a
priori universal da história”105. Um a priori que não é outra coisa que a noção mesma de
escritura. Esta relação entre história e escritura voltará com toda a força, como veremos,
em Da gramatologia. Lá, será o caso de problematizar esta relação comumente aceita
entre povos sem história e povos sem escritura, isto a fim de abrir o espaço para uma
noção renovada de história.
Na sua Introdução à Origem da geometria, Derrida aludirá a duas formas de
pensar a escritura. Uma, a de Husserl, visa reduzir ou empobrecer metodicamente a
língua empírica até a transparência atual de seus elementos universais e tradutíveis. A
outra, vinda da literatura, em especial da literatura de vanguarda (Derrida cita James
Joyce), mostraria a unidade estrutural da cultura empírica total através do equívoco
generalizado de uma escritura que circula por todas as línguas, que se instala no campo
labiríntico da cultura encadeada por seus equívocos. Como vocês podem imaginar, é
pelos caminhos desta segunda forma de escritura que Derrida irá trilhar. Não por acaso
seu primeiro projeto de tese de doutorado, apresentado em 1957 para Jean Hyppolite,
terá por título : “A idealidade do objeto literário”.
Mas ainda não respondemos a questão colocada no início da nossa aula, a saber:
como a idealidade geométrica procede de sua origem primária intrapessoal (do primeiro
geômetra) para sua idealidade objetiva? Esta discussão sobre a escritura já nos fornece a
resposta. Pois é certo que o primeiro estágio de transição á objetividade ocorre no meio
da intersubjetividade lingüística. No entanto, esta linguagem não pode limitar-se à
dimensão da comunicação atual entre o inventor e os outros cientistas, ou seja, ela não
pode se limitar à dimensão da fala. “É neste ponto que a importância da escritura, que
Husserl descreve como ´comunicação que advém virtual´, fica evidente. É apenas
através da liberação em relação a toda subjetividade atual permitida pela escritura que a
objetividade e comunicabilidade do conhecimento científico pode ser finalmente
asseguradas”106.
Esta dicotomia entre escritura e fala, entre inscrição e expressão, será de grande
importância para Derrida. Pois notemos um dentre vários pontos centrais. A
possibilidade do advento da escritura, enquanto espaço no qual a idealidade da verdade
poderia se afirmar e a constituição da objetividade poderia ser assegurada, é solidária de
uma certa anulação, de uma certa negação sem retorno do modo de presença e de
recuperação do sentido próprio à fala. Nos limites da fala, temos sempre a possibilidade
de direito de recuperar o sentido, isto através da atualização da intencionalidade do
falante. Nos limites da escritura, essa possibilidade se esvai. Por isto, Derrida precisa
afirmar:

O silêncio das arcanas pré-históricas e das civilizações desaparecidas, o


sepultamento das intenções perdidas e dos segredos guardados, a ilisibilidade da
inscrição lapidar revelam o sentido transcendental da morte, naquilo que a une
ao absoluto do direito intencional na instância mesma de seu fracasso107.

Este estatuto paradoxal da escritura, ao mesmo tempo o que constitui o sentido e


o que marca a possibilidade do desaparecimento do sentido, da não recuperação do

105
Idem, L´introduction..., p. 112
106
DEWS, Peter; Logic of disintegration, p. 9
107
DERRIDA, L´introduction..., p. 85
sentido por uma consciência, será o dado maior a ser revelado pela desconstrução.
Derrida tende, neste momento, a vincular o advento da escritura à instauração da
geometria como ato filosófico de inauguração da atitude teórica, da ultrapassagem do
finito. “Nós estamos na infinitude matemática por termos definitivamente idealizado e
ultrapassado as finitudes sensíveis e factícias”108.Há uma passagem ao limite
constitutiva do advento da geometria que Derrida descreve como “ato idealizador”,
“liberdade radical e disruptiva”, “descontinuidade decisória”. Esta passagem é a
revelação de um a priori que já se anuncia no próprio mundo da vida. Já no interior da
vida há algo que ultrapassa a simples faticidade, que se impõe como diferença em
relação àquilo que é objeto de uma consciência empírica. Isto permite a Derrida dizer
que, sob o conceito de transcendental, sempre houve a diferença originária da origem
absoluta que deve anunciar indefinidamente sua pura forma concreta como um para
além de toda profusão factícia:

Transcendental seria a certeza pura de um Pensamento que, só podendo alcançar


o Telos que já se anuncia avançando sobre a Origem que indefinidamente se
reserva, nunca deveria ter aprendido que ela seria sempre a vir109.

Resta ainda procurar compreender como esta questão da escritura e da diferença


servirá como fundamento para uma crítica extensiva a todas as filosofias dependentes de
uma teoria da linguagem baseada na centralidade da noção de signo. Mas para isto
deveremos adentrar a leitura de A voz e o fenômeno.

108
Idem, p. 140
109
Idme, p. 171
Curso Jacques Derrida
Aula 5

Na aula de hoje, daremos continuidade ao módulo dedicado à leitura de A voz e o


fenômeno. Na aula passada, foi questão de apresentar as linhas gerais do longo texto de
introdução que Derrida escreveu à Origem da geometria. Hoje, gostaria de começar a
leitura de A voz e o fenômeno através do comentário de seus quatro primeiros capítulos.
Na aula que vem, terminaremos o comentário do livro.
Vimos na aula passada, como Derrida partia das discussões de Husserl a respeito
da natureza da idealidade própria aos objetos geométricos, isto a fim de tentar responder
a pergunta: “Como se passa de um estado individual ante-predicativo originário à
existência de um ser geométrico em sua objetividade ideal?” 110. Uma pergunta desta
natureza implicava o reconhecimento de certa “passagem” necessária, de um certo
enraizamento entre a idealidade e aquilo que não aparece imediatamente como
idealidade. Pergunta importante pois estamos acostumados a definir o objeto
matemático em geral e o objeto geométrico em particular em sua independência em
relação á subjetividade empírica. O que parece colocá-lo em uma relação de completa
exterioridade em relação à história e sua faticidade.
Este é um ponto importante pois Derrida inicia seu texto lembrando que, para a
fenomenologia, a tematização da historicidade sempre foi ligada à condenação tanto do
genetismo historicista quanto do psicologismo. Todas as duas posições seriam figuras
de um certo materialismo para o qual a dimensão das empiricidades forneceria o
fundamento para aquilo que procura ter validade incondicional. Contra elas, faz-se
necessário insistir no vínculo entre fenomenologia e filosofia transcendental. No
entanto, Derrida insiste que este vínculo não significaria anular toda questão relativa à
historicidade. Pois tratava-se de lembrar que a história, como experiência empírica,
estaria na dependência de um fundo de pressuposições eidéticas revelado pela
fenomenologia.
Para tanto, vimos como era necessário descrever o processo através do qual as
idealidades geométricas surgem em um solo de experiências não-geométricas, solo
ligado ao mundo da cultura. Maneira de dizer que: “para Husserl, as objetividades
geométricas ideais, como a triangularidade, devem advir de objetividades não-
geométricas, eles não existem como tais antes desta experiência” 111. Derrida chegará a
dizer que a intuição husserliana, no que concerne os objetos ideais das matemáticas, é
absolutamente constituinte e criadora. Na verdade, ao invés da simples autonomia da
idealidade lógica em relação a toda consciência, Husserl quer: “manter ao mesmo tempo
a autonomia normativa da idealidade lógica ou matemática em relação a toda
consciência factual e a dependência originária a uma subjetividade em geral; em geral
mas concreta”112. Concreta, mas não empírica, como uma “experiência transcendental”.
Neste sentido, a historicidade implicada na geometria não seria outra coisa que a
recondução das formas de sentido históricas dadas no presente à dimensão dissimulada
de arqui-premissas fundadoras presentes no mundo da cultura.
Vimos como esta subjetividade em geral, constituinte e criadora, a respeito da
qual alude Derrida, não era uma subjetividade egológica; ela era uma subjetividade
comunitária ou, ainda, uma intersubjetividade:

110
DERRIDA, Le problème de la génèse chez Husserl, Paris: PUF, 1990, p. 267
111
LAWLOR, Konyv; Derrida amd Husserl : the basic problems of phenomenology, p. 107
112
DERRIDA, L´écriture et la différence, p. 235
Cada cientista não se sente ligado a todos os outros apenas pela unidade de um
objeto ou de uma tarefa. Sua própria subjetividade de cientista é constituída pela
ideia ou horizonte desta subjetividade total que se torna responsável, nele e
através dele, de cada um de seus atos de cientista113.

Vê-se assim como Husserl, segundo Derrida, faria apelo às tramas de uma
intersubjetividade transcendental enraizada em um mundo da vida onde encontraríamos
uma forma cultural que não seria específica de cultura particular alguma. Aqui,
encontramos um dos pontos fundamentais da leitura derridiana: esta forma cultural pura
nos remete à concepção fenomenológica de linguagem. Desta forma, o problema da
origem da geometria nos remete, necessariamente, ao problema da constituição da
intersubjetividade e da origem fenomenológica da linguagem. O que não poderia ser
diferente já que o modelo da linguagem, para Husserl, é a linguagem objetiva da
ciência. Uma linguagem poética cujas significações não seriam objetos nunca teria, a
seus olhos, valor transcendental.
No entanto, para que a intersubjetividade seja algo como uma relação não-
empírica entre egos faz-se necessária que ela libere-se de todo vínculo a modificações
empírico-factuais. Da mesma forma, para que o objeto seja absolutamente ideal, ele
deve ser liberado de todo vínculo a uma subjetividade atual, ao modo de descrição
próprio a uma subjetividade atual, a saber, a palavra falada com suas contingências. Por
isto, é a possibilidade de um outro modo de ser da linguagem, ou seja, a escritura, que
garantirá a objetividade ideal absoluta na pureza de sua relação a uma subjetividade
transcendental universal:

Sem a última objetivação que a escritura permite, toda linguagem estaria ainda
cativa da intencionalidade factícia e atual de um sujeito falante ou de uma
comunidade de sujeitos falantes. Ao virtualizar absolutamente o diálogo, a
escritura cria uma forma de campo transcendental autônomo a respeito do qual
todo sujeito atual pode se abster114.

Ou, ainda, como Derrida dirá em A voz e o fenômeno:

O proto-geômetra deve produzir em pensamento, por passagem ao limite, a pura


idealidade do objeto geométrico puro, assegurar a transmissibilidade pela
palavra e enfim confia-la a uma escritura através da qual poder-se-à sempre
repetir o sentido dirigido, ou seja, o ato de pensamento puro que criou a
idealidade do sentido115.

Desta forma, vimos como Derrida, leitor de Husserl, podia responder a questão
sobre a maneira através da qual a idealidade geométrica procede de sua origem primária
intrapessoal (do primeiro geômetra) para sua idealidade objetiva. É certo que o primeiro
estágio de transição à objetividade ocorre no meio da intersubjetividade lingüística. No
entanto, esta linguagem não pode limitar-se à dimensão da comunicação atual entre o
inventor e os outros cientistas, ou seja, ela não pode se limitar à dimensão da fala. “É
neste ponto que a importância da escritura, que Husserl descreve como ´comunicação
que advém virtual´, fica evidente. É apenas através da liberação em relação a toda

113
Idem, p. 50
114
DERRIDA, ibidem, p. 84
115
Idem, La voix et le phénomène, p. 91
subjetividade atual permitida pela escritura que a objetividade e comunicabilidade do
conhecimento científico pode ser finalmente asseguradas”116.
Esta dicotomia entre escritura e fala, entre inscrição e expressão, será de grande
importância para Derrida. Pois notemos um dentre vários pontos centrais. A
possibilidade do advento da escritura, enquanto espaço no qual a idealidade da verdade
pode se afirmar e a constituição da objetividade pode ser assegurada, é solidária de uma
certa anulação, de uma certa negação sem retorno do modo de presença e de
recuperação do sentido próprio à fala. Nos limites da fala, temos sempre a possibilidade
de direito de recuperar o sentido, isto através da atualização da intencionalidade do
falante. Nos limites da escritura, essa possibilidade se esvai. É tendo em vista um
programa de constituição de um modelo de reflexão sobre a linguagem baseado na
noção de escritura que Derrida passará à redação de A voz e o fenômeno.

A vida transcendental

Derrida escreve A voz e o fenômeno para mostrar as premissas conceituais que


estariam presentes em A origem da geometria. Trata-se, na verdade, de perguntar: “A
necessidade fenomenológica, o rigor e a sutileza da análise husserliana não
dissimulariam, no entanto, une pressuposição metafísica?” 117. A pergunta é posta tendo
em vista a temática presente já no subtítulo do livro, a saber, o problema do signo na
fenomenologia de Husserl. Como vimos na aula passada, Derrida acredita que em todo
o lugar onde a linguagem é pensada a partir da noção de signo, evidencia sua
dependência em relação à metafísica. Pois a metafísica não seria outra coisa que o
discurso que precisa da noção de signo para fundamentar seu modo de relação ao
sentido. É por isto que Derrida diz ser possível partir do conceito de signo para
compreender a própria crítica fenomenológica à metafísica como momento interno à
história da metafísica, como realização histórica do projeto metafísico.
Todas estas proposições são ousadas e Derrida é cônscio disto. No entanto, ele
entende que colocá-las em operação é a condição para ultrapassar o quadro regulador da
filosofia da consciência. Digamos que, neste contexto, a consciência é,
fundamentalmente, um modo de presença dos objetos diante de mim. Neste sentido,
poderíamos simplesmente seguir Heidegger para quem a fundação do conceito moderno
de consciência, através do cogito cartesiano, está organicamente vinculado a uma noção
de pensar como representação, como Vorstellung. Uma representação que é pôr-diante-
de-si, Vor-sich-stellen. Heidegger insiste que a estrutura da reflexão que nasce com o
princípio moderno de subjetividade é fundamentalmente posicional. Refletir é por
diante de si no interior da representação, como se colocássemos algo diante de um “olho
da mente”. Pensar, aqui, só poderá ser então: “tomar posse de algo, apoderar-se
(bemächtigen) de uma coisa, e aqui no sentido de dispor-para-si (Sich-zu-stellen)
[lembremos que Sicherstellen é confiscar] na maneira de um dispor-diante-de-si (Vor-
sich-stellen), de um re-presentar (Vor-stellen)”118.
Provavelmente, é por pensar nesta chave que Derrida poderá dizer que a
idealidade da idealidade, ou seja, o que determina o caráter da idealidade, é o presente
vivo, a presença a si de um conceito peculiar de vida que Derrida define como “vida
transcendental”. O que nos explica uma definição de consciência como: “a possibilidade
da presença a si do presente no presente vivo” 119. Pois, como já vimos na Origem da

116
DEWS, Peter; Logic of disintegration, p. 9
117
DERRIDA, ibidem, p. 3
118
HEIDEGGER, Nietzsche II
119
DERRIDA, ibidem, p. 8
geometria, o mundo da vida que serve de fundamento para a constituição das
idealidades geométricas não é o mundo de uma vida puramente factícia e empírica, mas
de uma vida que guarda no seu interior traços daquilo que tem validade transcendental e
trans-individual. Por outro lado, a própria “idealidade” será definida como a forma na
qual a presença de um objeto em geral pode ser indefinidamente repetida como o
mesmo. E aqui o conceito de “repetição do mesmo” é fundamental. Pois ele mostra
como a presença não é presença de algo que existe no mundo, mas é o nome que damos
à simples correlação com atos de repetição, eles mesmos ideais.
Mas Derrida não é indiferente a uma tensão no projeto husserliano. Pois esta
vida transcendental nunca conseguiria abstrair-se completamente do domínio da
facticidade e isto, de uma certa forma, acaba por interferir nos usos gerais do próprio
conceito de transcendental. Assim, Derrida pode, por exemplo, fazer uma afirmação
como:

Husserl nunca colocou a questão do logos transcendental, da linguagem herdada


na qual a fenomenologia produz e exibe os resultados de suas operações de
redução. Entre a linguagem ordinária (ou a linguagem da metafísica tradicional)
e a linguagem fenomenológica, a unidade nunca é rompida apesar das
precauções, da aspas, das renovações ou das inovações120.

Esta afirmação é decisiva. Primeiro, notemos a peculiaridade desta enunciação:


“a linguagem ordinária (ou a linguagem da metafísica tradicional)”. Ou seja, tudo se
passa como se Derrida estivesse a dizer que a linguagem da vida comum, esta
linguagem que utilizamos em nossas operações mais elementares fosse prenhe de
posições metafísicas. Como se ela fosse condição essencial para a constituição
transcendental. Mas isto significa sustentar a proposição de que devemos elevar as
relações entre linguagem filosófica e linguagem pré-filosófica à condição de problema
filosófico maior. Pois a linguagem pré-filosófica, esta linguagem “ordinária” própria ao
senso comum, forneceria ao pensar filosófico seu conjunto tácito de pressuposições não
problematizadas. Trata-se de afirmar que nossa linguagem pré-filosófica naturaliza
categorias filosóficas como unidade, substância, duração, causa, ser, atribuição,
identidade, diferença e, principalmente, sujeito (e veremos de onde vem esta
centralidade do conceito de “sujeito”) devido simplesmente à sua gramática. Este é um
dado fundamental : o senso comum é uma gramática, entendendo aqui por “gramática”
a articulação sistemática de princípios e regras de estruturação e validação de
enunciados. E não há gramática neutra do ponto de vista de suas implicações
metafísicas. Como se Derrida creditasse certos impasses da filosofia husserliana à sua
pretensa incapacidade de colocar em questão estruturas normativas e lógicas herdadas
de uma gramática naturalizada. Por isto que ele dirá que o logos transcendental depende
de uma certa linguagem herdada, para ser mais específico, herdada do mundo da vida.
Neste sentido, Derrida denuncia a dependência da linguagem filosófica aos pressupostos
da linguagem ordinária elevados à condição de uma “gramática pura lógica”.
Isto talvez nos explique porque Derrida insistirá, por exemplo, que entre meu Eu
transcendental e meu Eu natural e humano, há uma diferença radical. No entanto, eles
não se distinguem em nada que possa ser determinado no sentido natural da distinção.
Pois o Eu transcendental não é o fantasma metafísico ou formal do Eu empírico. Aceitar
isto nos levaria à assumir a metáfora do Eu espectador absoluto de seu próprio Eu
empírico.

120
DERRIDA, ibidem, p. 6
Mas este “nada” que distingue o Eu transcendental e o Eu empírico não implica,
por sua vez, alguma forma de adequação, o que só poderia nos levar à confusão de um
verdadeiro “psicologismo transcendental”. Na verdade, só seria possível “salvar” o
transcendental à condição de relativizar seu caráter constituinte a fim de compreendê-lo
principalmente como “inquietude transcendental” que impõe uma diferença que não
pode ser substancializada. Veremos como esta noção particular de transcendental, longe
de assegurar a fundamentação das condições de possibilidade de toda experiência,
acabará por servir de peça de desconstrução da noção mesma de “fundar”.
Por outro lado, é o conceito de vida que servirá para pensar esta relação de
paralelismo: “Mas a estranha unidade destes dois paralelos, o que os remete um ao
outro, não se deixa partilhar por eles e, dividindo-se a si mesmo, cola finalmente o
transcendental a seu outro, é a vida” 121. Esta vida não é apreendida em sua ingenuidade
pré-transcendental, na linguagem da vida ordinária ou na ciência biológica. Na verdade,
a vida empírica é colocada em parênteses para o aparecimento de uma espécie de “vida
transcendental”.
Para entender tal vida transcendental, devemos partir da indiscernibilidade entre
consciência e linguisticidade e, com isto, do “vínculo essencial” entre logos e phonè.
Como dirá Giorgio Agamben: “A linguagem humana é a ‘voz da consciência’, nela a
consciência existe e se dá realidade, porque a linguagem é a voz articulada” 122. No
entanto, Derrida lembrará que não é com a substância sonora ou com a voz física que
Husserl reconhecerá uma afinidade de origem entre logos e phonè: “mas à voz
fenomenológica, à voz na sua carne transcendental, ao sopro, à animação intencional
que transforma o corpo da palavra em carne, que faz do Körper um Leib, um geistige
Leiblichkeit”123.
Notemos aqui um dado essencial: a voz indica necessariamente o primado da
enunciação, indica que a linguagem tem lugar através do dizer o mundo. Mas este dizer,
antes de falar sobre o mundo, é dizer sobre si mesmo, é o movimento que expõe a
presença de uma linguagem que impõe ao mundo uma ordem através do dizer. Pois a
enunciação diz os objetos do mundo, mas ela os diz a partir da realização da presença
do enunciador, ela os diz como objetos diante do enunciador. Por isto, antes de
comunicar algo, a enunciação comunica a presença de alguém para um Outro. Ou, se
quisermos dar um passo arriscado, mas necessário no interior do argumento derridiano,
a enunciação não comunica algo, ela comunica fundamentalmente a presença do
enunciador. Se tomarmos o puro acontecimento da enunciação, se tomarmos a
manifestação irredutível da voz (e sempre podemos ouvir, para além da palavra que diz
a coisa, a pura voz que se mostra a si mesma), veremos que ela é não mais um puro
som, já que ela porta a expressividade da presença. No entanto, ela ainda não é o
significado de uma exterioridade.
Neste sentido, digamos que a pura enunciação traz inscrita em seu seio a
possibilidade de anular todo e qualquer “algo” para que a pura enunciação, o puro
querer-dizer possa se fazer ouvir. Um puro querer-dizer que : “indicando o puro ter-
lugar de uma instância de linguagem sem nenhum determinado advento de significado
[aqui no sentido de relação à referência], apresenta-se como uma espécie de ‘categoria
das categorias’ que subjaz desde sempre a todo pronunciamento verbal, sendo, portanto,
singularmente próxima da dimensão de significado do puro ser” 124. Talvez um dos
pensadores que melhor compreendeu esta natureza própria à linguagem baseada na

121
DERRIDA, ibidem, p. 14
122
AGAMBEN, Giorgio; A linguagem e a morte, p. 65
123
DERRIDA, ibidem, p. 15
124
AGAMBEN, ibidem, p. 55
enunciação foi Jacques Lacan. O mesmo Lacan que, partindo da experiência da fala no
interior da situação analítica, dirá : “A função da linguagem não é de informar [a
estrutura de um objeto pré-linguístico], mas de evocar [a presença de alguém para
alguém]. O que eu procuro na palavra é a resposta do outro [ainda com a minúscula]. O
que me constitui como sujeito é a minha questão”125.
A afirmação é clara: a função da linguagem não estaria na representação de um
dado natural ou no comunicar um sentido pré-existente à comunicação. Sua função
estaria fundamentalmente vinculada ao ato de presentificar um sujeito, ele mesmo
reduzido ao puro fato de falar, de se comunicar com um outro. Mas isto significa, e
Derrida saberá jogar com este problema até o final, que no próprio advento da
linguagem como instância de enunciação estará inscrita a possibilidade de negar toda
referencialidade, toda capacidade de fazer referência a “algo”.

A voz do signo

A fim de discutir a natureza particular da enunciação, Derrida volta-se à


discussão central de seu livro, a saber, o conceito husserliano de signo. Derrida parte do
comentário de um capítulo central do segundo volume das Investigações lógicas,
intitulado : “Expressão e significado” (Ausdruck und Bedeutung). Lá, Husserl afirma
existir uma certa confusão no uso da palavra “signo” (Zeichen). Por vezes, ele significa
“expressão” (Ausdruck), por vezes “indicação” (Anzeigen). A confusão nos faz esquecer
que “todo signo é signo de algo, mas nem todos tem um significado (Bedeutung) do
qual o signo seria a expressão”126. Pois “signos no sentido de índices (Anzeichen) nada
expressam”; eles seriam bedeutunglos, sinnlos. O que não significa um signo
desprovido de significação, um signo que nada diz .
Husserl usa como exemplos de índice a relação entre a bandeira e a nação, o
stigma e o escravo. A respeito destes exemplos, Husserl dirá que é índice tudo o que
serve para indicar algo para uma essência pensante. Tal definição é muito próxima da
noção tradicional de signo como aquilo que designa algo para alguém. Não é difícil
perceber como estas definições não são claras a respeito do que, afinal, devemos
entender por “indicar algo” ou “designar algo”. Mais a frente, Husserl falará de “indicar
algo”, neste contexto, como uma relação de motivação que se apresenta de maneira
objetiva em processos associativos. Esta motivação pode ser operada pelo dedo que
indica a coisa não-vista ou por um estado de coisas que nos remete a outro estado de
coisas. Husserl recoloca o problema da indicação no interior da discussão sobre
associação de idéias (já que mesmo a designação ostensiva não é outra coisa que uma
forma elaborada de associação).
Contrariamente a Frege, Husserl não distingue Bedeutung e Sinn, ou seja, a
relação à referência e o sentido da proposição [“O homem que se chamava Josef Stalin”
é a Bedeutung, é a denotação das proposições “O guia genial dos povos” e “O coveiro
da revolução”; proposições que, como podemos ver, têm sentidos, têm conotações
absolutamente diferentes]. Mesmo quando esta distinção aparece, ela não desempenha a
mesma função que desempenha em Frege. Esta recusa em operar com tal distinção trará
conseqüências para a dicotomia expressão/indicação. Pois ela implica em anular o
problema da relação à referência extra-linguística enquanto problema central na
definição de operações de significação.
Neste sentido, a expressão sempre pressuporia a idealidade de uma Bedeutung.
No entanto: “poderíamos talvez, sem forçar a intenção de Husserl, definir, ou mesmo
125
LACAN, Jacques; Ecrits, Paris: Seuil, 1966, p. 299
126
HUSSERL, Logische Untersuchungen vol II Teil I, p. 23
traduzir, bedeuten por querer-dizer, ao mesmo tempo no sentido de um sujeito falante
“exprimindo-se”, como diz Husserl, “sobre algo”, quer dizer, e no sentido do que uma
expressão quer dizer”127. Trata-se pois de pôr uma idealidade objetiva como Bedeutung,
como objeto da intenção de um querer-dizer. Como dirá Derrida, a expressão deve ser
compreendida como o signo animado por um querer-dizer (sendo que o querer-dizer,
devido à natureza da relação de intencionalidade, será sempre o ato de visar uma
relação de objeto). Esta definição da Bedeutung pode nos explicar porque Derrida
afirma que, no final das contas, a diferença entre índice e expressão aparece como uma
diferença funcional, e não exatamente substancial. Dependendo da vivência intencional
que o anima, um mesmo fenômeno lingüístico pode ser apreendida como expressão ou
como índice. Por isto, Derrida deve dizer:

O idealismo transcendental fenomenológico responde à necessidade de


descrever a objetividade do objeto (Gegenstand) e a presença do presente
(Gegenwart) – e a objetividade na presença – a partir de uma interioridade, ou
melhor, de uma proximidade a si, de um próprio (Eigenheit) que não
simplesmente um dentro, mas a possibilidade íntima da relação a um lá e a um
fora em geral128.

Como já sabemos, não se trata simplesmente de fundar as operações de


significação na interioridade de uma disposição psicológica do falante. Esta intenção
própria ao querer-dizer nos levaria ao puro solipsismo se fosse conjugada tendo em
vista a individualidade do sujeito psicológico. Ou ainda, ela nos levaria a dizer que a
expressão subordina-se à capacidade de indicar uma vivência psíquica através de um
estado físico (tom de fala, gestos, ritmo das palavras, etc.) e um conjunto de ações
sociais. Fato que, para Husserl, equivaleria a confundir expressão e indicação própria à
tentativa, sempre falha, de comunicação da presença do vivido do outro. Daí porque
Derrida deve afirmar que: “A relação ao outro como não-presença é a impureza da
expressão. Para reduzir a indicação na linguagem e alcançar enfim a pura
expressividade, faz-se necessário suspender a relação ao outro”129.
Na verdade, o querer-dizer é o modo de presença, intersubjetivamente partilhado
(mas de uma intersubjetividade transcendental, para além da interelação entre Eus
empíricos], que o sujeito encontra quando opera uma redução fenomenológica. Ele é a
demonstração de que o próprio conteúdo do sentido não é outro que esta modalidade de
presença. Daí porque Husserl afirma não ser possível admitir que um solilóquio seja
uma comunicação por signos, pois: “em um discurso (Rede) monológico, não podemos
nos servir da palavra como índice para o ser de um ato psíquico” 130. Em um monólogo,
não há possibilidade de dissociação entre a palavra e o estado psíquico que é por ela
expressado. As palavras daquele que fala a si mesmo não podem lhe servir de signos, de
índices de suas próprias vivência psíquica. Na fala que endereço a mim mesmo quando
digo, por exemplo: “Você agiu mal”, a palavra aparece como desprovida de distância,
sua intenção me é completamente transparente (de direito, não haveria espaço para uma
intenção inconsciente aqui). Por isto, segundo Husserl, seria necessário abrir o campo
da vida solitária da alma a fim de apreender a natureza da expressividade. Uma
expressividade que aparece como pura voz. Uma vida que será posteriormente definida
como a esfera noético-noemática da consciência. [noema : o objeto enquanto idealidade

127
DERRIDA, ibidem, p. 18
128
DERRIDA, ibidem, p. 23
129
Idem, p. 44
130
HUSSERL, ibidem, p. 36
presente à consciência, o correlato intencional / noese : o ato que permite a apreensão
de significações pela subjetividade constituinte]
Abrir este campo exige uma forma de redução do domínio da indicação. Só
assim seria possível retornar à constituição ativa do sentido e do valor, à atividade de
uma vida produzindo a verdade e o valor em geral através dos signos. De fato, a
significação indicativa recobrirá tudo o que, na linguagem, será objeto de redução: a
factualidade, a existência mundana, a não-evidência etc. Ou seja, toda a camada de
efetividade empírica pertence a esta indicação que deve ser reduzida. Como se a
redução, antes mesmo de advir método se confundisse com o ato mais espontâneo do
discurso falado, a simples prática da palavra, o poder da expressão.
Mas se voltarmos à expressão, veremos que ela é, antes de tudo, a impressão, em
um certa exterioridade, de um sentido que se encontra inicialmente em uma certa
interioridade. Mas o exterior visado aqui é este de um objeto ideal, ele é a esfera
noético-noemática da consciência. Maneira de lembrar que não há expressão sem a
intenção de um sujeito fornecendo ao signo uma espiritualidade (Geistigkeit). Não há
expressão sem intenção voluntária, como se um ato involuntário ou, como dirá outro
aluno de Brentano, Freud, à mesma época de Husserl, um ato falho, não pudesse
expressar algo. Como se consciência intencional e consciência voluntária devessem ser
tratadas como sinônimos. Por isto, Derrida pode dizer que, apesar de todos os temas
relativos à intencionalidade receptiva ou intuitiva, assim como da gênese passiva, o
conceito de intencionalidade estaria aprisionado à tradição de uma metafísica
voluntarista: “o sentido quer se significar, ele só se exprime em um querer-dizer que e
apenas um querer-se-dizer da presença do sentido”131. Ou ainda:

Faz-se necessário reconhecer que o critério de distinção entre a expressão e a


indicação é finalmente confiado a uma descrição bem sumária da ‘vida interior’.
Nesta vida interior , não haveria comunicação porque não há alter ego132.

Isto talvez nos explique porque tudo o que escapa da pura intenção espiritual é
excluído da expressão: o jogo da fisionomia, o gesto, a totalidade do corpo e da
inscrição mundana etc. mesmo o corpo só pode comparecer à expressão ao ser
transformado de Körper em Leib. A essência da linguagem é seu telos, e seu telos é a
consciência voluntária como querer-dizer. Neste sentido, podemos mesmo dizer que
aquilo que separa a expressão do índice é o que podemos chamar de não-presença
imediata de si do presente vivo. Pois há indicação toda vez que o ato que confere o
sentido, que a intenção animadora, a espiritualidade viva do querer-dizer não está
plenamente presente. Toda vez que a presença imediata e plena do significado não
estiver presente, o significante será de natureza indicativa e, por isto, inexpressivo.
Mas este presente é, até agora, presente a uma intuição ou a uma percepção
“interna”. Por isto, para recuperar a pura expressividade, faz-se necessário suspender a
relação ao outro. “Pois somente quando a comunicação é suspensa que a pura
expressividade pode aparecer”133. O que significa dizer que, de uma certa forma, a
expressão plena escapa ao conceito de signo, como vimos no exemplo do monólogo,
isto se pensarmos na definição clássica de signo: aquilo que representa alguma coisa
para alguém.
No entanto: “Derrida sugere que a tentativa husserliana de apagar as funções
externas e indicativas da linguagem através de uma série de reduções que culminam em

131
DERRIDA, ibidem, p. 37
132
Idem, p. 78
133
Idem, p. 41
uma fala interior auto-endereçada, está condenada ao fracasso”134. Ainda não sabemos
porque tal tentativa irá fracassar, nem sabemos claramente o que Derrida pretende
colocar em seu lugar. Para tanto, precisaremos esperar até a próxima aula.

134
DEWS, ibidem, p. 19
Curso Jacques Derrida
Aula 6

Nesta aula, gostaria de terminar a apresentação de A voz e o fenômeno. Vimos na aula


passada, como Derrida escreve A voz e o fenômeno a fim de mostrar as premissas
conceituais que estariam presentes em A origem da geometria. Já o título não deixa de
fazer alusão à uma tentativa de decompor a fenomenologia ao analisar o phainomenon e
o logos (voz). Tratava-se, na verdade, de perguntar: “A necessidade fenomenológica, o
rigor e a sutileza da análise husserliana não dissimulariam, no entanto, une
pressuposição metafísica?”135. A pergunta é posta tendo em vista a temática presente já
no subtítulo do livro, a saber, o problema do signo na fenomenologia de Husserl. Como
vimos, Derrida acredita que em todo o lugar onde a linguagem é pensada a partir da
noção de signo, evidencia sua dependência em relação à metafísica. Pois a metafísica
não seria outra coisa que o discurso que precisa da noção de signo para fundamentar seu
modo de relação àquilo que poderíamos chamar de “sentido do ser” ou, ainda, de
origem. É por isto que Derrida diz ser possível partir do conceito de signo para
compreender a própria crítica fenomenológica à metafísica como momento interno à
história da metafísica, como realização histórica do projeto metafísico. Na verdade,
talvez Habermas tenha razão quando afirma: “Um vez que o logos é sempre inerente à
palavra falada, Derrida quer atingir o logocentrismo do ocidente na figura do
fonocentrismo”136.
Todas estas proposições são ousadas e Derrida é cônscio disto. No entanto, ele
entende que colocá-las em operação é a condição para ultrapassar o quadro regulador da
filosofia da consciência. Digamos que, neste contexto, a consciência é,
fundamentalmente, um modo de presença dos objetos diante de mim. Neste sentido,
sugeri que deveríamos, por exemplo, seguir Heidegger para quem a fundação do
conceito moderno de consciência, através do cogito cartesiano, está organicamente
vinculado a uma noção de pensar como representação, como Vorstellung. Uma
representação que é pôr-diante-de-si, Vor-sich-stellen. Heidegger insiste que a estrutura
da reflexão que nasce com o princípio moderno de subjetividade é fundamentalmente
posicional. Refletir é por diante de si no interior da representação, como se
colocássemos algo diante de um “olho da mente”. Pensar, aqui, só poderá ser então:
“tomar posse de algo, apoderar-se (bemächtigen) de uma coisa, e aqui no sentido de
dispor-para-si (Sich-zu-stellen) [lembremos que Sicherstellen é confiscar] na maneira de
um dispor-diante-de-si (Vor-sich-stellen), de um re-presentar (Vor-stellen)”137.
Provavelmente, é por pensar nesta chave que Derrida poderá dizer que o que
determina o caráter próprio da idealidade é o presente vivo, a presença a si de um
conceito peculiar de vida que Derrida define como “vida transcendental”. O presente
vivo é a forma última, mais bem acabada, da idealidade. O que nos explica uma
definição de consciência como: “a possibilidade da presença a si do presente no
presente vivo”138. Pois, como já vimos na Origem da geometria, o mundo da vida que
serve de fundamento para a constituição das idealidades geométricas não é o mundo de
uma vida puramente factícia e empírica, mas de uma vida que guarda no seu interior
traços daquilo que tem validade transcendental e trans-individual. Por outro lado, a
própria “idealidade” será definida como a forma na qual a presença de um objeto em

135
DERRIDA, La voix et le phénomène, p. 3
136
HABERMAS, O discurso filosófico da modernidade, Lisboa, Dom Quixote, p. 160
137
HEIDEGGER, Nietzsche II
138
DERRIDA, ibidem, p. 8
geral pode ser indefinidamente repetida como o mesmo. E aqui o conceito de “repetição
do mesmo” é fundamental. Pois ele mostra como a presença não é presença de algo que
existe no mundo, mas é o nome que damos à simples correlação com atos de repetição,
eles mesmos ideais.
Para entender o regime de presença próprio à tal vida transcendental, devemos
partir da indiscernibilidade entre consciência e linguisticidade e, com isto, do “vínculo
essencial” entre logos e phonè. Como dirá Giorgio Agamben: “A linguagem humana é a
‘voz da consciência’, nela a consciência existe e se dá realidade, porque a linguagem é a
voz articulada”139. No entanto, Derrida lembrará que não é com a substância sonora ou
com a voz física que Husserl reconhecerá uma afinidade de origem entre logos e phonè:
“mas à voz fenomenológica, à voz na sua carne transcendental, ao sopro, à animação
intencional que transforma o corpo da palavra em carne, que faz do Körper um Leib, um
geistige Leiblichkeit”140.
Notemos aqui um dado essencial: a voz indica necessariamente o primado da
enunciação, indica que a linguagem tem lugar através do dizer o mundo. Mas este dizer,
antes de falar sobre o mundo, é dizer sobre si mesmo, é o movimento que expõe a
presença de uma linguagem que impõe ao mundo uma ordem através do dizer. Pois a
enunciação diz os objetos do mundo, mas ela os diz a partir da realização da presença
do enunciador, ela os diz como objetos diante do enunciador. Por isto, antes de
comunicar algo, a enunciação comunica a presença de alguém para um Outro. Ou, se
quisermos dar um passo arriscado, mas necessário no interior do argumento derridiano,
a enunciação não comunica algo, ela comunica fundamentalmente a presença do
enunciador. Se tomarmos o puro acontecimento da enunciação, se tomarmos a
manifestação irredutível da voz (e sempre podemos ouvir, para além da palavra que diz
a coisa, a pura voz que se mostra a si mesma), veremos que ela é não mais um puro
som, já que ela porta a expressividade da presença. No entanto, ela ainda não é o
significado de uma exterioridade.
Neste sentido, digamos que a pura enunciação traz inscrita em seu seio a
possibilidade de anular todo e qualquer “algo” para que a pura enunciação, o puro
querer-dizer possa se fazer ouvir. Um puro querer-dizer que : “indicando o puro ter-
lugar de uma instância de linguagem sem nenhum determinado advento de significado
[aqui no sentido de relação à referência], apresenta-se como uma espécie de ‘categoria
das categorias’ que subjaz desde sempre a todo pronunciamento verbal, sendo, portanto,
singularmente próxima da dimensão de significado do puro ser” 141. Mas isto significa, e
Derrida saberá jogar com este problema até o final, que no próprio advento da
linguagem como instância de enunciação estará inscrita a possibilidade de negar toda
referencialidade, toda capacidade de fazer referência a “algo”. Haverá sempre, na
linguagem de signos, a possibilidade da palavra ser, como gostava de dizer Alexandre
Kojève, o assassinato da coisa.
Vimos, na aula passada, como Derrida procurava discutir esta natureza
particular da enunciação voltando-se se à discussão central de seu livro, a saber, o
conceito husserliano de signo. Derrida parte do comentário de um capítulo central do
das Investigações lógicas, intitulado : “Expressão e significado” (Ausdruck und
Bedeutung). Lá, Husserl afirma existir uma certa confusão no uso da palavra “signo”
(Zeichen). Por vezes, ele significa “expressão” (Ausdruck), por vezes “indicação”
(Anzeigen). A confusão nos faz esquecer que “todo signo e signo de algo, mas nem

139
AGAMBEN, Giorgio; A linguagem e a morte, p. 65
140
DERRIDA, ibidem, p. 15
141
AGAMBEN, ibidem, p. 55
todos tem um significado (Bedeutung) do qual o signo seria a expressão” 142. Pois
“signos no sentido de índices (Anzeichen) nada expressam”; eles seriam bedeutunglos,
sinnlos. O que não significa um signo desprovido de significação, um signo que nada
diz.
Husserl usa como exemplos de índice a relação entre a bandeira e a nação,
fósseis e animais pré-históricos, o stigma e o escravo. A respeito destes exemplos,
Husserl dirá que é índice tudo o que serve para indicar algo para uma essência pensante.
Tal definição é muito próxima da noção tradicional de signo como aquilo que designa
algo para alguém. Não é difícil perceber como estas definições não são claras a respeito
do que, afinal, devemos entender por “indicar algo” ou “designar algo”. Mais a frente,
Husserl falará de “indicar algo”, neste contexto, como uma relação de motivação que se
apresenta de maneira objetiva em processos associativos. Assim, Husserl recoloca o
problema da indicação no interior da discussão sobre associação de idéias que nos
remetem a estados de coisas, já a expressão não se submete à esta dinâmica de
associações.
Contrariamente a Frege, Husserl não distingue Bedeutung e Sinn, ou seja, a
relação à referência e o sentido da proposição [“O homem que se chamava Josef Stalin”
é a Bedeutung, é a denotação das proposições “O guia genial dos povos” e “O coveiro
da revolução”; proposições que, como podemos ver, têm sentidos, têm conotações
absolutamente diferentes]. Mesmo quando esta distinção aparece, ela não desempenha a
mesma função que desempenha em Frege. Esta recusa em operar com tal distinção trará
conseqüências para a dicotomia expressão/indicação. Pois ela implica em anular o
problema da relação à referência extra-linguística enquanto problema central na
definição de operações de significação.
Neste sentido, a expressão sempre pressuporia a idealidade de uma Bedeutung.
No entanto: “poderíamos talvez, sem forçar a intenção de Husserl, definir, ou mesmo
traduzir, bedeuten por querer-dizer, ao mesmo tempo no sentido de um sujeito falante
“exprimindo-se”, como diz Husserl, “sobre algo”, quer dizer, e no sentido do que uma
expressão quer dizer”143. Trata-se pois de pôr uma idealidade objetiva como Bedeutung,
como objeto da intenção de um querer-dizer. Como dirá Derrida, a expressão deve ser
compreendida como o signo animando por um querer-dizer (sendo que o querer-dizer,
devido à natureza da relação de intencionalidade, será sempre o ato de visar uma
relação de objeto).
Este querer-dizer é modo de presença, intersubjetivamente partilhado, que o
sujeito encontra quando opera uma redução fenomenológica. Ele é a demonstração de
que o próprio conteúdo do sentido não é outro que a pura presença. Daí porque Husserl
afirma não ser possível admitir que um solilóquio seja uma comunicação por signos,
pois: “em um discurso (Rede) monológico, não podemos nos servir da palavra como
índice para o ser de um ato psíquico”144. Em um monólogo, não há possibilidade de
dissociação entre a palavra e o estado psíquico que é por ela expressado. Na fala que
endereço a mim mesmo quando digo, por exemplo: “Você agiu mal”, a palavra aparece
como desprovida de distância, sua intenção me é completamente transparente (de
direito, não haveria espaço para uma intenção inconsciente aqui). Por isto, segundo
Husserl, seria necessário abrir o campo da vida solitária da alma a fim de apreender a
natureza da expressividade. Notemos como a hipótese da vida solitária da alma visa
provar que uma expressão sem indicação é possível. Como se a distinção entre

142
HUSSERL, Logische Untersuchungen vol II Teil I, p. 23
143
DERRIDA, ibidem, p. 18
144
HUSSERL, ibidem, p. 36
indicação e expressão acabasse por ser fundamentada na idéia de “vida interior” 145. Na
verdade, tudo o que é exterior será atribuído ao índice. Por outro lado, ela mostraria
como: “O significado (Bedeutung) de uma expressão está fundamentado nos atos da
intenção significante e da consumação intuitiva desta intenção – isto, claro está, não de
um modo psicológico, mas no sentido de uma fundamentação transcendental”146. Isto
nos leva a esta afirmação maior de Derrida:

O telos da expressão integral é a restituição, na forma da presença, da totalidade


de um sentido atualmente dado à intuição. Estando este sentido determinado a
partir de uma relação ao objeto, o médium da expressão deve proteger, respeito,
restituir a presença do sentido ao mesmo tempo como estar-diante do objeto
disponível à um olhar e como proximidade a si na interioridade147.

Por outro lado, isto significaria dizer que, de uma certa forma, a expressão plena
escapa ao conceito de signo, isto se pensarmos na definição clássica de signo: aquilo
que representa alguma coisa para alguém. No entanto: “Derrida sugere que a tentativa
husserliana de apagar as funções externas e indicativas da linguagem através de uma
série de reduções que culminam em uma fala interior auto-endereçada, está condenada
ao fracasso”148.

O querer-dizer e a representação

Voltemos pois ao comentário do nosso texto no ponto em que o deixamos na aula


passada, a saber, o capítulo IV. Derrida compreende que o “nervo” da demonstração da
diferença entre expressão e indicação encontra-se nesta discussão referente à vida
solitária da alma:

A função pura da expressão e do querer-dizer não é de comunicar, de informar,


de manifestar, ou seja, de indicar. Ora, a vida solitária da alma provará que uma
expressão sem indicação é possível. No discurso solitário, o sujeito aprende nada
sobre si mesmo, não se manifesta a si mesmo149.

Alguns comentadores afirmarão que isto demonstra como: “A interpretação de


Derrida compreende que o significado (Bedeutung) é apenas a função de um signo
expressivo, expressividade que é obtida através da representação (Vorstellung)
idealizada de um sentido (Sinn) primordial dado como completamente ou simplesmente
presente (...) O resultado é a redução da expressão e de seu ‘medium’, a linguagem, à
auto-afecção de um discurso imaginado, como determinado em um solilóquio”150. Mas
devemos desdobrar mais demoradamente as conseqüências desta operação.
Esta função do monólogo é essencial por nos revelar afinal o que devemos
entender por representação. Se Husserl pode dizer que, no monólogo, “não se comunica
nada a si mesmo, apenas representa-se a si mesmo como falando e comunicando”, é
porque a representação não está sendo entendida aqui como a presença de uma ausência,
145
DERRIDA, ibidem, p. 79
146
HABERMAS, O discurso filosófico da modernidade, p. 166
147
DERRIDA, ibidem, p. 83
148
DEWS, Logic of disintegration, p. 19
149
DERRIDA, ibidem, p. 53
150
HOPKINS, Burt; Derrida's reading of Hussed in Speech and Phenomena: Ontologism and the
metaphysics of presence, Husserl Studies 2:193-214 (1985), p. 203
mas como uma re-presentação, uma repetição da presença. Neste sentido, a
representação é o modo de repetição, sempre renovável, da presença no interior da
idealidade da consciência. É devido a este conceito de representação que podemos dizer
que a idealidade absoluta, própria à pura expressão, será o correlato de uma
possibilidade de repetição indefinida, o que só é possível devido ao fato da
representação aparecer como a forma geral da presença:

A idealidade da forma da presença implica, com efeito, que ela possa se re-petir
ao infinito, que seu retorno, como retorno do mesmo, seja infinitamente
necessário e inscrito na presença como tal; que o retorno seja retorno de um
presente que se reterá em um movimento finito de retenção151.

Signo, representação e idealidade são definidos a partir da noção de


iterabilidade. Um signo é constituído por um conjunto de elementos iterativos. No
entanto, esta possibilidade de repetição infinita é, ao mesmo tempo, o fundamento do
signo e sua dissolução. Ela é fundamento porque um fonema ou grafema só pode
funcionar como signo: “se uma identidade formal permite reeditá-lo e reconhecê-lo”.
Mas, como vimos, a pura expressividade desta presença fundamental pressuposta pela
repetição infinita implica dissolução da natureza comunicativa do signo enquanto
capacidade sua de presentificar algo ausente, de, através da palavra “cão”, atualizar o
animal que não está no hic et nunc. Como se no processo de clarificação da presença, a
relação à empiricidade da referência ausente fosse sendo apagada. Como se a referência
à idealidade em sua pureza fosse indissociável de uma certa forma de dissolução bem
enunciada nesta longa afirmação de Derrida:

Posso esvaziar todo conteúdo empírico, imaginar uma modificação absoluta do


conteúdo de toda experiência possível, uma transformação radical do mundo : a
forma universal da presença (tenho uma certeza estranha e única pois ela não
concerne estado determinado algum) não será afetada. É pois a relação à minha
morte (ao meu desaparecimento em geral) que se esconde nesta determinação do
ser como presença, idealidade, possibilidade absoluta de repetição. A
possibilidade do signo é esta relação à morte. A determinação e a dissolução do
signo na metafísica é a dissimulação desta relação à morte que, no entanto,
produziria a significação152.

Este tema é central. Se a possibilidade do signo é esta relação à morte, outro


nome possível ao processo de esvaziamento do conteúdo empírico, de confrontação da
palavra com um certo vazio de objeto, então somos obrigados a admitir uma tensão
interna à determinação mesma da noção de presença. Pois a relação à desaparição em
geral, à morte, encontra-se paradoxalmente no cerne da determinação do ser como
presença. Como se a possibilidade da minha desaparição em geral devesse ser
vivenciada para que uma relação à presença em geral pudesse ser instituída. Daí esta
passagem famosa onde Derrida aproxima o cogito cartesiano à enunciação de um “Eu
estou presente”, “Eu estou sempre presente na possibilidade incessante de repetição da
minha enunciação”. Proposição que Derrida não deixa de aproximar da enunciação do
Sr. Valdemar, personagem do conto de Edgar Allan Poe : “Eu estou morto”, “Esta
presença que nasce através do cogito implica minha desaparição como empiricidade”. O
que Derrida diz ao falar da determinação de meu ser como res cogitans como: “o
151
Idem, p. 76
152
DERRIDA, ibidem, p. 60
movimento através do qual a origem da presença e da idealidade se oculta na presença e
na idealidade que ela possibilita” 153. Questão que nos remete à discussão entre Foucault
e Derrida a respeito da natureza própria à fundamentação propiciada pelo cogito.
Isto leva, por exemplo, alguém como Giorgio Agamben a dizer que: “A
centralidade da relação entre ser e presença na história da filosofia ocidental tem o seu
fundamento no fato de que temporalidade e ser têm a sua fonte comum no ´presente
incessante´ da instância de discurso. Mas – justamente por isso – a presença não é algo
simples, mas conserva em si, em vez disso o secreto poder do negativo” 154. Agamben
chegará mesmo a dizer que isto demonstra como a Voz fenomênica se estabelece como
“fundamento ontológico negativo”, como ela já teria uma função que, mais a frente,
Derrida reconhecerá na escritura155.
Talvez possamos dizer que Derrida reconhece esta estranha negatividade no
interior mesmo da noção de presença. Ela aparece na maneira com que o filósofo
francês procura mostrar a coexistência tensa entre dois paradigmas da temporalidade em
Husserl: um, pontilhista, que privilegia a noção de instante, e outro, próprio à
consciência interna do tempo, que nos leva a discutir a noção de “retenção”.
Sobre o primeiro paradigma, sua necessidade vem do fato da presença a si dever
se produzir na unidade indivisa de um presente temporal. Derrida insiste que a evidência
da consciência está necessariamente vinculada à predominância do “agora” na
determinação da experiência do tempo. O tempo é uma sucessão de “agoras”, uma
sucessão de instantes. Esta dominância do “agora” nos remete àquilo que Heidegger
chamou de “conceito vulgar de tempo”: “Para a compreensão vulgar do tempo, este se
mostra como uma seqüência de agoras, sempre ‘simplesmente dados’, que, igualmente,
vêm e passam. O tempo é compreendido como o um após outro, como o ‘fluxo’ dos
agora, como ‘correr do tempo’. (...) Os agora são, por assim dizer, enquadrados nessas
remissões e se enfileiram simplesmente um ao outro para constituir a fila de um após
outro”156. Esta “representação natural do tempo”, que teria um direito natural na
dimensão do ser cotidiano, estaria presente quando Husserl diz: “O agora atual é
necessariamente e permanece algo pontual, uma forma que persiste para sempre nova
matéria”157..
Derrida compreende que este conceito vulgar de tempo está, por exemplo, na
base da rejeição husserliana da estrutura freudiana do tempo. Pois o tempo em Freud é
caracterizada pelo fato de conteúdos mentais inconscientes só advirem consciente a
posteriori (nachträglich). Ou seja, estamos diante de um tempo que só é presente a
posteriori, que em última instância nunca foi presente, que sempre foi vivenciado como
passado, como uma espécie de “passado puro”158. Ao contrário, para Husserl é um
verdadeiro absurdo falar de conteúdo inconsciente que só adviria consciente a
posteriori, pois a consciência é necessariamente ser consciente em todas as suas fases e
momentos. Derrida chega mesmo a lembrar como, para Husserl, o agora pontual é a
“arqui-forma” (Urform) da consciência. O que talvez fique claro em afirmações como:
153
Idem, p. 61
154
AGAMBEN, A linguagem e a morte, p. 58
155
Daí porque Agamben deve afirmar, criticando Derrida, que: Identificar o horizonte da metafísica
simplesmente na supremacia da phonè e crer, então, poder ultrapassar este horizonte por meio do grámma
significa pensar a metafísica sem a negatividade que lhe é coessencial” (AGAMBEN, ibidem. P. 61)
156
HEIDEGGER, Ser e tempo, § 81
157
HUSSERL, Idéias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica, §81
158
Ver, neste sentido, a idéia central de Gilles Deleuze: “Os personagens parentais não são termos últimos
de um sujeito, mas os termos médios de uma intersubjetividade, as formas de comunicação e de
mascaramento de uma série à outra para sujeitos diferentes, na medida que estas formas são determinadas
pelo transporte do objeto virtual. Atrás das máscaras á sempre máscaras e o mais escondido é ainda um
esconderijo, ao infinito” (DELEUZE, Différence et répétition, p. 140)
“Todo agora do vivido, mesmo o da fase inicial de um vivido que acaba de surgir, tem
necessariamente seu horizonte do antes. Mas este não pode ser, por princípio, um antes
vazio, uma forma vazia sem conteúdo, um nonsense. Ele tem necessariamente a
significação de um agora passado, que capta nessa forma um algo passado, um vivido
passado”159.
No entanto, Derrida vê uma contradição entre esta concepção de tempo e uma
outra, pressuposta pelas operações de retenção e protensão. Pois, apesar desta temática
do instante e do “agora”, Husserl nos impede de falar de uma simples identidade
imediata a si do presente. A presença do presente percebido compõe com uma não-
presença e uma não-percepção, a saber, com a lembrança e a experiência primárias
(retenção e protensão). A retenção, por exemplo, aparece como caso de uma percepção
cujo percebido não é ou foi um presente, mas um passado como modificação do
presente, como uma “não-percepção”, termo que Husserl utiliza na seção XVI das
Lições sobre a consciência interna do tempo. Isto permite a Derrida falar que tudo se
passa como se existisse uma continuidade, entre o agora e não-agora que destruiria toda
a possibilidade de identidade a si na simplicidade. Derrida pode estar também a pensar
em afirmações de Husserl segundo as quais:

todo vivo está num nexo de vividos essencialmente fechado em si não apenas do
ponto-de-vista da seqüência temporal, mas também do ponto de vista da
simultaneidade [neste sentido, o passado é, de uma certa forma, simultâneo ao
presente, ele é a distância do presente em relação a si mesmo]. Isso quer dizer
que todo agora de vivido possui um horizonte de vividos que também têm
justamente a forma originário do “agora”, e como tais constituem um único
horizonte de originariedade do eu puro, o seu agora de consciência completo e
originário [no entanto, este horizonte único de originariedade, deve nos lembrar
como “todo vivido carece de complemento” , como todo vivido está entre
retenção e representação]160.

Derrida vê assim uma contradição entre duas possibilidades irreconciliáveis,


como se fosse questão de encontrar uma outra lógica do tempo sob o paradigma
instantaneista : a) manter a idéia de que o agora vivo só se constitui como fonte
perceptiva absoluta em continuidade com a retenção enquanto não-percepção (Derrida
chegará a falar que estamos aqui diante da différance no interior do próprio processo de
auto-afecção; como ele mesmo lembrará: “O próprio Husserl evocou a analogia entre a
relação ao alter ego tal como ele se constitui no interior da mônada absoluta do ego e a
relação ao outro presente (passado) tal qual ela se constitui na atualidade absoluta do
presente vivo”161); b) conservar a originareidade do presente vivo através do agora.
Alguns comentadores verão nesta leitura de Derrida uma certa confusão entre o “agora”
do fluxo de consciência (onde as três dimensões do tempo estão em simultaneidade) e o
“agora” do presente vivo. Sem entrar no mérito da questão, gostaria apenas de salientar
que esta contradição é fundamental para a leitura feita por Derrida pois ela demonstra a
possibilidade de uma diferença irredutível no interior mesmo da experiência da
presença.

Voz e escritura

159
HUSSERl, ibidem, § 82
160
HUSSERL, ibidem, p. §82
161
DERRIDA, La voix et le phénoméne, p. 77
Os dois últimos capítulos são talvez os mais importantes do nosso livro. Neles, Derrida
expõe mais claramente as funções de sua dicotomia entre uma concepção de linguagem
onde a idealidade do significado está assentada na expressividade da voz e outra
concepção cuja disseminação do significado está assentada na noção de escritura.
A respeito do primeiro caso, Derrida dirá claramente que toda crítica da razão
deve começar por uma crítica do fonocentrismo, já que :

A metafísica, a filosofia, a determinação do ser como presença são a época da


voz como domínio técnico do ser-objeto, para bem compreender a unidade da
tecné e da phoné, faz-se necessário pensar a objetividade do objeto. O objeto
ideal é o mais objetivo dos objetos: independentemente do hic et nunc dos
acontecimentos e dos atos da subjetividade empírica que lhe visa, ele pode ser
indefinidamente repetido, continuando sempre o mesmo162.

Aqui, encontramos novamente a idéia de que falar das coisas é necessariamente


impor um domínio técnico sobre o que falo, sobre o que se submete à estrutura da
minha fala. Falar das coisas é colocá-las diante de mim, é colocá-las neste espaço virtual
a respeito do qual eu sou o fundamento. Neste sentido, a objetividade do objeto é aquilo
que, no objeto, submete-se à minha fala, porque, em um peculiar giro copernicano
(talvez o mais astuto de todos, talvez o capítulo mais insidioso do idealismo), foi minha
fala que o instituiu. A fala arranca os objetos do hic et nunc, do aqui e do agora, para
colocá-los em um espaço que não teria a forma da mundaneidade. Neste espaço virtual
de pura presença, descubro que: “minhas palavras são ‘vivas’ porque elas parecem não
me deixar, não sair de mim, fora de meu sopro, em um distanciamento visível, não
cessar de me pertencer, de estar à minha disposição ‘sem acessório’”163.
Talvez seja por isto que Derrida pode dizer que a dissolução do corpo sensível e
da exterioridade é, para a consciência, a forma mesma da presença imediata do
significado. Pois o significado só pode ser aquilo que se dá na abertura da
transcendência. E nesta transcendência aberta pela fala está sempre implicado que eu
posso me escutar falando, que posso escutar minha própria voz, sentir minha própria
presença em uma auto-afecção de tipo absolutamente único. Assim, nasce não só a
subjetividade ou o para si, mas principalmente a identidade indissociável de um certo
regime de funcionamento da linguagem.
No entanto (e esse “no entanto” é aqui decisivo), esta auto-afecção coloca em
operação mais do que gostaria, ela dissemina algo que ela mesma não é capaz de
controlar inteiramente. Ela mostra como “a escritura habitava o interior da palavra”,
como ela já estava em trabalho na intimidade do pensamento. Pois Derrida não esquece
que, se minhas palavras parecem não me deixar, elas só podem ser vivas à condição de
fundar uma idealidade sempre negadora da minha empiricidade, ou seja, que só existe
como negação incessante de minha empiricidade. Pois: “Como o ideal sempre é
pensado por Husserl sob a forma da idéia kantiana, esta substituição da não-idealidade à
idealidade, da não-objetividade à objetividade é diferida ao infinito”164. A univocidade
da expressão objetiva aparece como ideal inacessível, e esta inacessibilidade à
consciência de algo que, de uma certa forma, me constitui não e outra coisa que aquilo
que Derrida entende por différance.
Esta différance não é a diferença entre dois termos opostos (Um e múltiplo,
transcendental e psicológico, vivo e morto etc.). Ela não é uma diferença estruturada,

162
DERRIDA, ibidem, p. 84
163
Idem, p. 85
164
Idem, p. 112
mas é uma diferença que, ao invés de aparecer na relação entre um termo e seu oposto, é
a diferença que aparece na relação entre fundamento e fundado. Não por acaso,
encontramos uma temática similar em outros autores franceses da época, como Deleuze
(Différence et répétition) e Lyotard (Le différend). Por isto, Derrida pode dizer que o
movimento da différance não é objeto a um sujeito transcendental, ele produz toda e
qualquer figura do sujeito. O sujeito é o que está no lugar da différance como
movimento em direção ao fundamento.
Por outro lado, différance é o nome do efeito produzido pela escritura. Já
sabemos como a escritura : “torna o que foi dito independente do espírito do autor e da
respiração do destinatário, bem como da presença dos objetos discutidos. O médium da
escritura confere ao texto uma autonomia lítica em face de todos os contextos vivos” 165.
Derrida encontra algo disto em Husserl através de sua “última exclusão”, esta que
distingue querer-dizer e intuição, já que a unidade da intuição e da intenção nunca é
homogênea. É ela que me lembra como a ausência total de sujeito e de objeto de um
enunciado – a morte do escritor e a desaparição dos objetos que ele descreveu – não
impedem um texto de “querer-dizer”. Mas o que é uma escritura, um puro traço que se
impõe lá onde nenhum sujeito da consciência está mais presente, lá onde nenhum objeto
já foi engendrado? Para entender melhor a cena desta escritura, nós devemos passar de
Husserl a um outro autor que Derrida não cessará de se confrontar, vindo da mesma
época: Sigmund Freud.

165
HABERMAS, ibidem, p. 342
Curso Derrida
Aula 7

Na aula de hoje, iniciaremos o módulo dedicado à relação entre Derrida e a psicanálise,


em especial através da leitura do texto Freud e a cena da escritura, de 1966. Trata-se,
na verdade, do fragmento de uma conferência pronunciada no Instituto de psicanálise,
no interior do seminário do psicanalista André Green. Texto fundamental não apenas
por permitir a introdução de uma das articulações maiores do pensamento de Jacques
Derrida, a saber, o reconhecimento da centralidade da relação entre psicanálise e
filosofia. Este texto é fundamental principalmente por fornecer, através da teoria
freudiana da mente, o modelo de um aparelho psíquico para além da filosofia da
consciência. Podemos mesmo dizer que, em Freud, Derrida encontra uma reflexão que
lhe permite mostrar uma psique que não se submeteria mais às críticas que vimos à
ocasião de seus comentários sobre Husserl e os limites da fenomenologia. Mais do que
uma psique, temos através desta leitura de Freud as bases de uma “escritura psíquica”
que fornece a Derrida uma relação entre escritura e experiência de si para além dos
móbiles da filosofia da consciência. Uma relação baseada principalmente no trabalho da
memória e do sonho.
A este respeito, lembremos rapidamente como Derrida insistia no vínculo
essencial entre consciência e linguisticidade, entre consciência e estrutura da linguagem.
Vimos também como o filósofo francês elevara o “fonocentrismo” a uma espécie de
modelo hegemônico da linguagem no ocidente. Entendamos por “fonocentrismo”, neste
contexto, uma linguagem no interior da qual a enunciação e a possibilidade, de direito,
da expressibilidade integral da intenção fornecem o fundamento para os processos de
esclarecimento do sentido. De direito, a enunciação sempre pode expressar
integralmente a intenção. Expressão integral de uma intenção que não é apenas querer-
dizer, mas também visada em direção a um objeto transcendental. È isto que podemos
derivar de afirmações de Derrida como:

O telos da expressão integral é a restituição, na forma da presença, da totalidade


de um sentido atualmente dado à intuição. Estando este sentido determinado a
partir de uma relação ao objeto, o médium da expressão deve proteger, respeitar,
restituir a presença do sentido ao mesmo tempo como estar-diante do objeto
disponível à um olhar e como proximidade a si na interioridade166.

Tentemos desdobrar, em um outro quadro teórico, os pressupostos disto que


Derrida chama de fonocentrismo. Digamos que o aspecto mais importante de todo
fonocentrismo é a pressuposição de uma sólida identidade entre intencionalidade e força
perlocucionária do ato de fala, ou seja, força de modificação de estados de coisas,
modificação do campo de experiência no qual sujeitos estão inseridos. Isto significa
que, no momento em que se engaja em um ato de fala intencionalmente orientado, o
sujeito sempre pode, de direito mas nem sempre de fato, partir da pressuposição prévia
de saber o que quer dizer e como deve agir socialmente para fazer o que quer dizer. Este
saber o que se quer-dizer funda-se na pressuposição da presença, idealmente repetível,
do objeto à mim. Em outras palavras, podemos dizer que essa presença ideal me
assegura que, em situações de performatividade, terei uma representação prévia e
fundamentada não apenas do conteúdo intencional de meu ato de fala, mas também das
condições objetivas de satisfação de tal conteúdo. Este último ponto é o mais complexo.
166
DERRIDA, La voix et lê phenomène, p. 83
Por ser a fala, antes de mais nada, um modo de comportamento governado por regras e
pelo meu conhecimento sobre falar uma língua envolver, necessariamente, o domínio de
um sistema de regras de ação social, seguiria daí que o sujeito que fala teria sempre, de
direito e previamente, a possibilidade de saber como tal sistema de regras determina a
produção do sentido da ação em geral e dos atos de fala em particular.
Tal pressuposição é uma conseqüência derivada, entre outras coisas, do que está
em jogo naquilo que os pragmáticos chamam de "princípio de expressibilidade" com
sua definição de que sempre haverá um conjunto de proposições intersubjetivamente
partilhadas capaz de ser a exata formulação de um determinado conteúdo intencional 167.
Princípio que vale também para a regulação das expectativas referenciais dos usos da
linguagem, já que o fazer referência a algo ou a um estado de coisas implica na
capacidade performativa e intencional de identificar este algo através de uma expressão
de sentido intersubjetivamente partilhado.
Neste sentido, o recurso a Freud quebra o que seria o regime fonocêntrico, isto
na medida em que o psicanalista nos obrigaria a aceitar a existência de conteúdos
intencionais inconscientes. De uma certa forma, o que Freud diz é: há conteúdos
intencionais que não se submetem ao regime de presença e disponibilidade próprios à
consciência. A este respeito, lembremos como eu disse na quinta aula que Derrida
criticava o fato de que, para Husserl, não haveria expressão sem intenção voluntária,
como se um ato involuntário ou, como dirá Freud, à mesma época de Husserl, um ato
falho, não pudesse expressar algo. Como se consciência intencional e consciência
voluntária devessem ser tratadas como sinônimos. Por isto, Derrida podia dizer que,
apesar de todos os temas relativos à intencionalidade receptiva ou intuitiva, assim como
da gênese passiva, o conceito de intencionalidade estaria aprisionado à tradição de uma
metafísica voluntarista: “o sentido quer se significar, ele só se exprime em um querer-
dizer que é apenas um querer-se-dizer da presença do sentido”168.
Estas proposições são fundamentais e devem ser compreendidas em toda sua
extensão. Derrida quer dizer que, com a noção freudiana de inconsciente, não se trata
simplesmente de dizer que haveriam conteúdos intencionais expulsos da consciências,
alojados em outra cena e acessíveis novamente à consciência após operações complexas
de rememoração, de simbolização e de verbalização. Como se o inconsciente fosse uma
espécie de depósito de conteúdos mentais recalcados e de pulsões não-socializadas que
poderiam ser, depois dos processos analíticos, enfim acessíveis à consciência. Na
verdade, Freud teria trazido algo de natureza totalmente diferente. Sua noção de
inconsciente nos obrigaria a admitir que existem conteúdos e processos intencionais que
não se submetem à forma da consciência, o que no nosso caso só pode significar, que
não se deixam pensar a partir do regime de linguisticidade próprio à consciência. Por
isto, a análise de tais processos, ou seja, a análise do inconsciente e de suas formações
(sonhos, sintomas, atos falhos etc.) só é possível à condição de assumirmos que eles
implicam um outro regime de linguisticidade. Ou seja, o inconsciente não pressupõe
apenas uma outra cena de enunciação, mas uma outra forma de produção do sentido, um
outro regime de linguisticidade. É este outro regime que Derrida procura nos textos de
Freud. Por isto, Derrida precisa insistir:

167
Por « princípio de expressibilidade » entende-se que : « para qualquer sentido X e qualquer falante S,
não importa o que S queira dizer com X (intenções a expor, desejos a comunicação em um sentença, etc.),
é possível haver alguma expressão E de maneira que E seja a exata expressão ou formulação de X.
Simbolicamente : (S) (X) (S significa X P ( E) (E é a expressão exata de X)) » (SEARLE, Speech
acts, p. 20)
168
DERRIDA, ibidem, p. 37
Não é um acaso que Freud, em momentos decisivos de seu itinerário, recorra a
modelos metafóricos que não são emprestados da linguagem falada, das formas
verbais, nem mesmo da escritura fonética, mas de uma grafia que nunca é
assujeitada, exterior e posterior à palavra falada. Freud faz apelo a signos que
não vem transcrever uma palavra viva e plena, presente a si e segura de si169.

Neste sentido, a importância do recurso à Freud é clara. Ela fornece o modelo


para pensar uma vida que não é mais a vida transcendental que vimos em Husserl, vida
do presente vivo, mas é agora uma espécie de vida pensada sob o signo da escritura,
vida que não precisa mais fazer apelo à centralidade do conceito de presença, vida para
além da metafísica da presença. Freud fornece à Derrida o modelo de uma psique
radicalmente distinta do horizonte regulador do conceito de consciência.

Sobre a relação entre filosofia e psicanálise em Derrida

Antes de iniciar a leitura de nosso texto, faz-se necessário contextualizar esta operação
peculiar de recurso filosófico à psicanálise. Pois, por um lado, ela não será realmente
uma novidade no interior da experiência intelectual francesa do século XX. Desde a
fenomenologia de Sartre e de Merleau-Ponty, o recurso filosófico à psicanálise era uma
constante. Basta lembrar da maneira com que Sartre, após uma crítica conhecida à
pretensa inconsistência da noção freudiana de um inconsciente pensado principalmente
a partir das operações de recalcamento, termina O ser e o nada exatamente através da
proposição de uma psicanálise existencial. Pensemos ainda a maneira com que a
psicanálise acompanha Merleau-Ponty desde a Fenomenologia da percepção,
dedicando várias sessões de seus cursos no Collège de Franca à psicanálise, chegando a
propor, em seu O visível e o invisível, fazer não uma psicanálise existencial, mas uma
psicanálise ontológica.
Após a fenomenologia, a psicanálise será peça maior dos debates em torno do
estruturalismo graças a Lacan. Lévi-Strauss havia desenvolvido uma noção de
inconsciente estrutural fundamental para o psicanalista francês. Lacan não só absorverá
este programa estrutural proposto por Lévi-Strauss como constituirá uma incessante
interface entre filosofia e psicanálise, entre tradição filosófica e problemas clínicos
ligados às ditas doenças mentais que aparecerá de maneira promissora para toda uma
grande geração de filósofos franceses. Desta conjunção entre antropologia estrutural e
psicanálise, sairá um programa influente de pesquisa que alcançará Foucault e Louis
Althusser. Por exemplo, em As palavras e as coisas, livro que sai praticamente na
mesma época que o texto de Derrida sobre Freud, Foucault reconhecerá a função central
da psicanálise na ultrapassagem de uma epistème ainda presa à filosofia do sujeito e na
reconstituição do campo das chamadas “ciências humanas”. A este respeito, ele dirá
que:

no horizonte de toda ciência humana, há o projeto de trazer a consciência dos


homens às suas condições reais, de restituí-la aos conteúdos e formas que a
fizeram nascer e que nela se esquivam: é por isto que o problema do
inconsciente (...) não é simplesmente um problema interno às ciências humanas
(...) mas é um problema coextensivo à sua própria existência170.

169
DERRIDA, Ecriture et différence, p. 296
170
FOUCAULT, Les mots et les choses, pp. 375-376
Mesmo que os desdobramentos do pensamento de Michel Foucault lhe levarão a ver, na
psicanálise, um astuto dispositivo disciplinar, é inegável que a frequentação de textos e
questões psicanalíticas foi fundamental para a constituição de seu próprio programa
filosófico.
Por outro lado, filósofos como Deleuze e Lyotard não figuram à regra. Deleuze,
por exemplo, sempre teve grande proximidade com certos campos empíricos das
ciências humanas, como a psicologia e a psicanálise. Já a escolha de escrever
dissertações sobre Hume e Bergson tinha um pano de fundo ligado a epistemologia da
psicologia. Hume é um teórico fundamental para o associacionismo (corrente maior da
psicologia do início do século XX e bastante criticada pela psiquiatria fenomenológica
hegemônica em solo francês nos anos 50). Por sua vez, Bergson era tratado como
antípoda de uma perspectiva associada em psicologia à crítica do chamado “mito da
vida interior” (Politzer). Já sobre a psicanálise, Deleuze se mostrará um leitor atento de
Freud e Lacan. Isto é visível desde “Apresentação de Sacher-Masoch”. Há uma
recorrência constante à psicanálise em Diferença e repetição e Lógica do sentindo,
principalmente através da teoria das pulsões e do fantasma com sua noção de objeto do
fantasma.
No entanto, O anti-Édipo representa uma ruptura brutal em relação a tal
perspectiva de aproximação. Em larga medida, a resposta a tal ruptura (que também
pode ser encontrada em Foucault) concerne o impacto filosófico de maio de 68. O anti-
Édipo acabou conhecido com o livro que mais claramente sustentou as aspirações
libertárias globais que animaram a revolta de 68. Tais aspirações foram patrocinadas em
larga medida pela recuperação de uma crítica às instituições que se voltou
necessariamente contra a maneira com que a psicanálise seria dependente da inscrição
do desejo no interior das regras do núcleo familiar, da perpetuação de estruturas
normativas burguesas de socialização que seriam os verdadeiros núcleos de reprodução
do capitalismo como forma de vida.
O caso da relação entre Derrida e a psicanálise segue, no entanto, uma
coreografia distinta destas relações de proximidade e distância que animam as
experiências intelectuais de Foucault e Deleuze. Derrida sempre verá em Freud um
interlocutor maior, isto a ponto de dizer: “seria inútil lembrar que desde Da
gramatologia e Freud e a cena da escritura todos meus textos inscreveram o que
chamaria de seu “alcance” psicanalítico?” 171. Maneira de reconhecer que toda a
discussão sobre a definição mesmo de “escritura’ encontrava na obra freudiana um
apoio fundamental. Por outro lado, Derrida sempre verá em Lacan um risco de retorno
da psicanálise às vias de uma filosofia do sujeito e à uma teoria da linguagem
claramente fonocêntrica. Sua leitura de Freud será, assim, em larga medida, autônoma e
distante de certas elaborações maiores de Lacan (a grande referência na psicanálise
francesa da época). Pois ela se inscreve na sua estratégia de fornecer uma dupla crítica a
duas continuações possíveis do fonocentrismo: a fenomenologia e o estruturalismo. Na
verdade, o esforço de Derrida poderá ser descrito como a tentativa de evidenciar, contra
Lacan, que as elaborações freudianas abrem o espaço para uma consideração sobre a
relação entre linguagem e inconsciente radicalmente estranha ao primado estruturalista e
fora de considerações antropológicas sobre o homem, filosóficas sobre a consciência e
lacanianas sobre o sujeito.
Se quisermos organizar os vários momentos de confrontação entre Derrida e a
psicanálise, encontraremos quatro momentos relativamente distintos. O primeiro é
fornecido por Freud e a cena da escritura. Aqui, trata-se principalmente de se apoiar na
teoria freudiana do inconsciente, da memória e da temporalidade (lembremos como o
171
DERRIDA, Positions, p. 110
problema da temporalidade e da memória já eram apresentados, à ocasião do
comentário dos textos de Husserl, como caminho para a crítica da metafísica da
presença), isto a fim de fornecer as coordenadas gerais de uma reconstrução da psique
para além da filosofia da consciência.
Quase quinze anos depois, em 1981, Derrida retornará a Freud e a Lacan no
livro O cartão-postal: de Sócrates a Freud e além. Neste livro onde é questão da
natureza da escritura e do endereçamento, encontramos uma longa parte intitulada
“Especular – sobre “Freud”” onde é questão, principalmente, das conseqüências da
teoria freudiana das pulsões para a desconstrução. Uma leitura do texto Para além do
princípio do prazer é sugerida. Nela, Derrida mostra-se bastante cônscio da operação
que faz. A teoria das pulsões é o núcleo daquilo que Freud chamou de “metapsicologia”
e que deve ser compreendido como uma espécie de núcleo conceitual “especulativo”
onde, a meu ver, encontramos algo muito próximo de uma verdadeira ontologia do
conflito (entre vida e morte, se quisermos utilizar os termos empregados por Freud).
Derrida serve-se desta teoria para pensar uma “intencionalidade pulsional”, uma
disposição em direção aos objetos enraizada em uma concepção peculiar de impulso.
Neste sentido, estas elaborações visam complementar o que já se apresentava em Freud
e a cena da escritura.
Um terceiro momento vem, novamente, quase quinze anos depois, com o
lançamento do livro Mal de arquivo, em 1995. Nesta época, Derrida também copila
alguns de seus textos dedicados à psicanálise em outro livro : Resistências à
psicanálise, de 1996. Servindo-se da metáfora da memória como arquivamento, Derrida
procura aprofundar as conseqüências de pensar operações de memória partindo da
existência de uma pulsão de morte, ou seja, de uma pulsão de dissolução e anulação do
que a memória procura arquivar. No fundo, trata-se de procurar pensar em profundidade
o paradoxo de um aparelho psíquico, como o proposto por Freud, onde a pulsão de
morte não é um mero entulho metafísico, mas um dispositivo central no funcionamento
do aparelho.
Por fim, um último momento pode ser encontrado no livro Estados de alma da
psicanálise, de 2000. Se admitirmos uma certa leitura que procura definir os últimos
textos de Derrida como animados por algo que poderíamos chamar de “guinada ética”,
veremos que a psicanálise aparecerá como um regime de discurso capaz de pensar as
antinomias entre soberania e crueldade. Antinomias que, segundo Derrida, seriam peças
fundamentais para toda e qualquer reflexão ética.
Como vemos, o recurso à psicanálise é periodicamente renovado por Derrida,
não se limitando a momentos específicos e restritos de sua experiência intelectual. Esta
constância demonstra a centralidade da operação, aliando a psicanálise a outros
discursos (como a literatura) que permitiram a Derrida integrar a filosofia em um
movimento de tensão com outras áreas da cultura. Esta aproximação funcional entre
psicanálise e literatura, longe de ser compreendida como uma depreciação à
objetividade analítica, significa para Derrida reconhecimento da similitude entre
discursos capazes de não se submeterem ao regime fonocentrico da linguagem.

Escritura psíquica

Freud e a cena da escritura é um texto que procura apresentar as bases daquilo


que Derrida chama de “escritura psíquica”. Para tanto, Derrida propõe uma leitura
peculiar dos textos freudianos. Não será questão nem do comentário de conceitos
metapsicológicos maiores, nem da análise dos textos principais de Freud. Sobre o
primeiro ponto, Derrida insistirá na “reticência teórica em utilizar os conceitos
freudianos sem aspas: eles pertencem todos, sem nenhuma exceção à história da
metafísica”172. Ou seja, mais uma vez, não se tratará (e Derrida é totalmente cônscio
disto) de um comentário de texto, mas de uma desconstrução que visa expor aquilo que
“da psicanálise, não se deixar conter no interior da clausura logocêntrica”. Ou seja,
aquilo que Freud produz contra seus próprios conceitos, herdados de uma filosofia da
consciência e de uma psicologia da representação. Por isto, Derrida se baseia em três
textos “marginais”, à margem : um rascunho não-publicado (Projeto para uma
psicologia científica), uma carta (Carta n. 52, endereçada à Wilheim Fliess) e um
pequeno texto que até então passara praticamente desapercebido (Nota sobre o bloco
mágico). Derrida vê, no encadeamento dos três textos, uma progressão em direção à
compreensão do aparelho psíquico como uma máquina de escritura. Maneira de
mostrar como: “não há psíquico sem texto”173.
Comecemos com o Projeto para uma psicologia científica. Na aula que vem,
falaremos dos outros dois textos, a saber, a carta n. 52 a Fliess e a Nota sobre o bloco
mágico. Escrito em 1895 (ou seja, antes do texto fundador da psicanálise, a saber, A
interpretação dos sonhos, de 1900), este texto foi abandonado por Freud por considerar
seu programa, em larga medida, um fracasso. Sua intenção, diz Freud, era: ‘fornecer
uma psicologia como ciência natural, ou seja, apresentar os processos psíquicos como
estados quantitativamente determinados de partes materiais determináveis e, com isto,
livra-los de contradição”174. Neste sentido, o Projeto é a versão mais bem acabada da
tentativa freudiana de adequar as elaborações por ele desenvolvidas na clínica das
neuroses (principalmente após os Estudos sobre a histeria, de 1895) à neurologia. O que
encontraremos aqui é, entre outras coisas, a tentativa de descrever o aparelho psíquico
através de partes materiais que são, na verdade, neurônios. Derrida toma as descrições
neuronais de Freud como metáforas, o que, é claro, está longe das reais intenções de
Freud. De fato, Freud nunca deixará de ver a psicanálise como um setor avançado das
ciências naturais, mesmo que ele acabe rapidamente por abandonar o modelo neuronal
em prol de modelos do aparelho psíquico autônomos em relação às estruturas do
cérebro. No entanto, é inegável que elaborações presentes no Projeto serão absorvidas
pelos trabalhos posteriores de Freud.
No Projeto, Freud tem pois dois conceitos fundamentais: neurônios e
quantidade. Seguindo a tradição da psicologia experimental, a quantidade em questão
aqui é fundamentalmente quantidade de excitação (Erregung) que exige do aparelho
psíquico alguma forma específica de reação. Por isto, Freud pode falar que a quantidade
é o que diferencia a atividade do repouso175. Esta excitação pode vir tanto do meio
ambiente externo quanto ser endógena (neste caso, Freud pensa naquilo que ele chama
de Not des Leben – a fome, a respiração e a sexualidade).
O aparelho psíquico, por sua vez, estaria constituído a partir de um princípio
fundamental de funcionamento : o princípio de inércia. Este princípio de inércia faz com
que os neurônios tendam normalmente a se desembaraçar das quantidades de excitação
a fim de conservar um estado anterior, o que demonstra como é a excitação que leva o
aparelho psíquico a abandonar sua tendência original ao repouso. Ao se desembaraçar
de tais quantidades, os neurônios voltariam ao seu estado original. Assim, o processo de
descarga (Abfuhr) aparece como a função primária do sistema nervoso. Se no caso das
excitações vindas do mundo externo, o aparelho psíquico pode se desembaraçar do
172
DERRIDA, Ecriture et différence, p. 294
173
DERRIDA, Jacques; L’écriture et la différence, p. 297
174
FREUD, Nachtragsband, p. 387
175
Em As psiconeuroses de defesa, Freud compara quantidade, soma de excitação e a carga elétrica
espalhada pela superfície de um corpo. Em Estudos sobre a histeria ela estabelece analogias entre quota
de afeto e excitação elétrica nas vias condutoras do encéfalo.
aumento da excitação através da motricidade, ou seja, fazendo o organismo afastar-se da
fonte de excitação, no caso das excitações endógenas, a descarga só pode significar
satisfazer as exigências ligadas à fome e à sexualidade, já que a motricidade neste caso é
sem conseqüência.
No entanto, esta satisfação exige que o aparelho psíquico seja apto a realizar
funções específicas. Funções estas que exigem a existência de algo como a memória
que, por sua vez, depende da capacidade de “armazenamento (Aufspeicherung) de
quantidades” de energia. Para que exista memória, faz-se necessário que as excitações
deixem marcas, traços duráveis176. Mas se a memória depende da capacidade de
armazenamento, ela implica também uma capacidade de conservar modificações que
aparentemente entra em contradição com a tendência à descarga. Neste sentido, a
explicação da existência da memória aparece como uma das funções fundamentais do
manuscrito freudiano.
Freud lembra como toda teoria psicológica digna deste nome deve ser capaz de
explicar um fenômeno como a memória. Como dirá Derrida: “a memória não é uma
propriedade entre outras do psiquismo, ela é a própria essência do psiquismo” 177. No
entanto, explicar a memória não será algo simples para Freud. Pois ele não quer aceitar
versões de alguma teoria localizacionista da atividade cerebral, teoria que afirma ter o
cérebro neurônios qualitativamente distintos, dispostos em regiões cerebrais precisas e
responsáveis por funções específicas. Ou seja, ele não pode apelar à existência de um
conjunto de neurônios, qualitativamente distintos, responsáveis pela memória. Neste
sentido, sua perspectiva é profundamente distinta daquela presente nos estudos do
cérebro desde Franz Joseph Gall. Foi Gall que, no começo do século XIX, propôs
primeiramente que a funções específicas da atividade mental tem sua sede em
localizações específicas da estrutura cerebral (Gall chega a identificar 27 localizações
que responderiam por 27 faculdades mentais como : esperança, sublimidade, idealidade,
tempo, causalidade, auto-estima, entre outros).
A solução freudiana consistirá em dizer que o aparelho psíquico conheceria, ao
menos, duas categorias de neurônios que se distinguem devido simplesmente ao nível
de resistência produzida nos pontos de contato entre um neurônio e outro. Para designar
tais pontos, Freud utiliza o termo “barreira de contato” (Kontaktschranken). Se estas
barreiras permitem a passagem sem entraves de quantidades, então temos “neurônios
permeáveis”. Se, ao contrário, tais barreiras dificultam a passagem de quantidades,
então teremos “neurônios impermeáveis”, resistentes e retentores de quantidades. A
memória depende destes últimos, que Freud chamará de neurônios ψ. Os primeiros
seriam responsáveis pela percepção, recebendo o nome de neurônios φ. Que a
percepção seja caracterizada por neurônios permeáveis, isto se explica pelo fato da
recepção a novas sensações e excitações ser condição maior para a sobrevivência do
organismo e para a plasticidade de sua relação ao meio ambiente. Esta distinção entre a
passividade da percepção que recebe as impressões externas e a atividade da memória
será uma constante na teoria freudiana da mente.
A descrição de Freud segue, em larga medida o seguinte esquema: uma
quantidade Q de excitação passa pelos neurônios φ e atingem os neurônios responsáveis
176
Joel Birman resume bem o conceito de memória no Projeto: “A memória seria um conjunto de marcas
neurobiológicas, denominadas e engramas, nas quais tais marcas seriam as resultantes das resistências que
se oporiam à livre circulação das excitações. Neste contexto, o organismo visaria a descarga total das
excitações, pela sua tendência fundamental à inércia. Porém, como tal descarga absoluta implicaria na
morte do organismo, a “urgência da vida” se oporia então à dita descarga total. Com isso, a descarga seria
apenas parcial, de forma somente que uma parcela das excitações se manteria circulante no organismo”.
(BIRMAN, Escritura e psicanálise: Derrida, leitor de Freud)
177
DERRIDA, ibidem, p. 299
pela memória. Se ela for muito intensa, se sua repetição for freqüente, ela abrirá
caminhos entre as barreiras de contato. Senão, elas não modificarão o contato entre
neurônios. Este ato de abrir caminhos, que Freud associa à dor, é o que ele chama de
Bahnung (que, em português traduzimos ou por “facilitação” ou por “trilhamento”). A
memória é, de fato, representada por estes caminhos de condução de excitações que
encontramos nos neurônios ψ. Como vemos, trata-se aparentemente de um mero jogo de
forças entre pressão de quantidades de excitação e resistência. Como se a significação,
evento necessário aos fenômenos da memória, nascesse da força pressuposta pela
intensidade, pela repetição e pela resistência.
Neste ponto, podemos entender melhor o que Derrida tem em vista ao afirmar
que: “a vida psíquica não é nem a transparência do sentido, nem a opacidade da força,
mas a diferença no trabalho das forças. Nietzsche já havia dito isto” 178. Há uma longa
tradição de leituras sobre a psicanálise freudiana que insiste em uma dicotomia entre a
linguagem da força e a linguagem do sentido presente na metapsicologia. Por um lado,
Freud seria ainda dependente das expectativas científicas da psicologia experimental do
final do século XIX e das Naturwisseschaften. Por isto, os processos psíquicos deveriam
ser descritos a partir de um vocabulário onde se mistura neurologia e metáforas
científicas vindas da termodinâmica (força, energia, pressão, descarga etc.). Mas, por
outro, sua experiência intelectual abriria espaço para uma hermenêutica do sentido,
onde a cura seria pensada a partir do modelo de interpretações de uma consciência que
paulatinamente apreenderia reflexivamente suas próprias produções. Neste sentido,
Freud se aproximaria das Geistwisseschaften. Como dirá, por exemplo, Paul Ricoeur:
“O discurso de Freud se apresenta como um discurso misto, às vezes, ambíguo, que
tanto enuncia conflitos de força passíveis de uma energética, tanto enuncia relações de
sentido passíveis de uma hermenêutica”179.
Derrida procura, na verdade, mostrar como, em larga medida, o pensamento
freudiano mostra a primazia dos puros jogos de força, daí a aproximação sugerida entre
Freud e Nietzsche. A aproximação serve para demonstrar que a aceitação do
vocabulário da força não pode ser compreendida como a aceitação de uma certa
inscrição do freudismo em alguma forma de naturalismo. Na verdade, Derrida vê nisto a
figura de uma memória que funciona como escritura sem consciência, escritura que
mostra, à contracorrente do que poderíamos esperar, que a memória não é um atributo
da consciência. De fato, Derrida precisa insistir que, em Freud, encontramos
inicialmente a idéia da memória como um sistema de Bahnungen, de ligações neuronais
ou, se quisermos utilizar um termo caro a Derrida, de traços que foram constituídos
levando em conta apenas diferenças entre jogos de forças. A este respeito, Derrida
falará de “topografia de traços”, “mapa de trilhamentos”, “espaçamento”.
Por outro lado, ao introduzir a ideia de que a vida psíquica é a diferença no
trabalho das forças, Derrida lembra como os trilhamentos mostram como as resistências
entre os neurônios não podem ser todas equivalentes. Caso assim fosse, a memória seria
paralisada já que não existiria diferença alguma na escolha dos itinerários. Isto permite a
Derrida insistir que uma diferença de intensidades, sem inscrição qualitativa, é o que
funda a vida psíquica. Isto nos permite pensar a vida como traço, antes de tentar
determinar o ser como presença.
Neste sentido, Derrida pode ainda se apoiar no fato de, no Projeto para uma
psicologia científica, Freud introduzir a consciência apenas como uma terceira categoria
de neurônios, por ele chamada de neurônios ω. Todo processo que vai da percepção à
memória seria feito sem apelo à consciência. Caberia à consciência apenas a
178
Idem, p. 299
179
RICOEUR, De l´interpretation, p. 78
transformação de relações de quantidade em diferenças de qualidade. Em especial,
caberia à consciência operar as distinções qualitativas próprias às sensações conscientes
de prazer e desprazer, base para a construção de julgamentos. Mesmo neste caso, a
distinção qualitativa entre prazer e desprazer será compreendida a partir da noção de
assimilação do período de uma excitação, do tempo de retorno de uma excitação.
Curso Jacques Derrida
Aula 8

Nesta aula, continuaremos a leitura de “Freud e a cena da escritura”. Vimos na


aula passada como o recurso derridiano a Freud visava quebrar o regime fonocêntrico
de funcionamento da linguagem, isto na medida em que Freud insistia na existência de
conteúdos intencionais inconscientes. De uma certa forma, o que Freud diz é: há
conteúdos intencionais que não se submetem ao regime de presença e disponibilidade
próprios à consciência. A este respeito, pedi que vocês lembrassem como eu dissera, na
aula 5, que Derrida criticava o fato de que, para Husserl, não haveria expressão sem
intenção voluntária, como se um ato involuntário ou, como dirá Freud, à mesma época
de Husserl, um ato falho, não pudesse expressar algo. Como se consciência intencional
e consciência voluntária devessem ser tratadas como sinônimos. Por isto, Derrida podia
dizer que, apesar de todos os temas relativos à intencionalidade receptiva ou intuitiva,
assim como da gênese passiva, o conceito de intencionalidade estaria aprisionado à
tradição de uma metafísica voluntarista: “o sentido quer se significar, ele só se exprime
em um querer-dizer que é apenas um querer-se-dizer da presença do sentido”180.
Estas proposições são fundamentais e devem ser compreendidas em toda sua
extensão. Derrida quer dizer que, com a noção freudiana de inconsciente, não se trata
simplesmente de dizer que haveriam conteúdos intencionais expulsos da consciências,
alojados em outra cena e acessíveis novamente à consciência após operações complexas
de rememoração, de simbolização e de verbalização. Como se o inconsciente fosse uma
espécie de depósito de conteúdos mentais recalcados e de pulsões não-socializadas que
poderiam ser, depois dos processos analíticos, enfim acessíveis à consciência. Uma
noção de inconsciente construída a partir o modelo de eventos passados que foram, em
dado momento, presentes à consciência mas que, devido à forte excitação que eles
produziram, deveriam ser expulsos da consciência.
No entanto, Freud teria trazido algo de natureza totalmente diferente. Sua noção
de inconsciente nos obrigaria a admitir que existem conteúdos e processos intencionais
que não se submetem à forma da consciência, o que no nosso caso só pode significar,
que não se deixam pensar a partir do regime de linguisticidade próprio à consciência.
Eventos que, neste sentido, nunca foram conscientes. Por isto, a análise de tais
processos, ou seja, a análise do inconsciente e de suas formações (sonhos, sintomas,
atos falhos etc.) só é possível à condição de assumirmos que eles implicam um outro
regime de linguisticidade. É este outro regime que Derrida procura nos textos de Freud.
Neste sentido, o texto é uma reflexão sobre a especificidade do conceito freudiano de
inconsciente, assim como sobre a maneira com que o inconsciente freudiano nos
permitir nos livrarmos do amálgama entre vida psíquica e metafísica da presença. Isto
implica, como veremos, uma reconsideração sobre a temporalidade própria à vida
psíquica, assim como uma profunda reflexão sobre as relações entre linguagem e
operações mentais. Derrida partirá das considerações freudianas de operações mentais
como a memória e os sonhos, isto a fim de mostrar como elas nos colocam diante de um
funcionamento da linguagem muito próximo daquele que a desconstrução pressupõe.
Isto talvez nos explique melhor porque o conceito central em Freud e a cena da
escritura é “escritura psíquica”. Ou seja, o regime de escritura pressuposto pelas
operações do psiquismo. Aqui, devemos levar em conta como Derrida procura mostrar,
em Freud, o advento de uma metáfora radicalmente nova na compreensão do mental : a
metáfora da máquina de escritura não fonética : “O conteúdo mental será representado
180
DERRIDA, ibidem, p. 37
por um texto de essência irredutivelmente gráfica. A estrutura do aparelho psíquico
será representada por uma máquina de escritura”181. No entanto, esta metáfora freudiana
do psiquismo não é idêntica a outras metáforas que conhecemos, como as metáforas
óticas da consciência (com seus termos óticos como: reflexão, especulação,
clarividência, auto-observação, luz natural da razão) ou, mais recentemente, as
metáforas computacionais. Se toda descrição possível do psiquismo deve operar por
metáforas, nem todas as metáforas se equivalem. Pois há metáforas que, longe de serem
a comparação entre dois conhecidos (como quando digo “Seu discurso foi leonino” e
coloco em relação dois termos de sistemas distintos, mas previamente conhecidos), são
a desconstrução do conhecido: “Através da insistência de seu investimento metafórico,
Freud transforma em enigmático aquilo que conhecemos sob o nome de escritura” 182.
Um pouco como se certa metáforas não visassem, através de analogias, clarificar o que
elas procuram descrever, mas reconstruir a linguagem a partir de um fundamento que
não é, em si, claro. È assim que podemos compreender uma afirmação como:

Não deveremos nos perguntar se um aparelho de escritura, como este descrito na


Nota sobre o bloco mágico, é uma boa metáfora para representar o
funcionamento do psiquismo; mas qual aparelho devemos criar para representar
a escritura psíquica, e o que significa, quanto ao aparelho e quanto ao psiquismo,
a imitação projetada e liberada em uma máquina, de algo como a escritura
psíquica183.

Em que condições podemos projetar a escritura psíquica, o que ela impõe para a
própria compreensão do que é uma metáfora? Certamente, e esta é uma frase
fundamental, “não há psíquico sem texto”, nem há texto sem origem psíquica. Mas nada
disto significa dizer que o psíquico seja um “mero” texto. Antes, seria correto dizer que
o psíquico reconstrói nossa noção trivial de texto, abrindo-nos para “o sentido da
escritura no sentido corrente”.
Três são os passos dados por Derrida na análise do que seria o conceito
freudiano de escritura psíquica. Em todos estes passos, vemos o aprofundamento de um
problema central que derivaria dos textos freudianos, a saber, o problema da memória.
Derrida chega a afirmar que: “A memória não é uma propriedade do psíquico entre
outras, ela é a essência mesma do psíquico” 184. No fundo, Freud e a cena da escritura é
um texto sobre como o conceito freudiano de memória nos obriga a sair dos limites de
uma filosofia da consciência.
Vimos, na aula passada, como Derrida iniciava seu trajeto comentando um
manuscrito de Freud, datado de 1895: Projeto para uma psicologia científica. Este texto
foi abandonado por Freud por considerar seu programa, em larga medida, um fracasso.
Sua intenção, diz Freud, era: ‘fornecer uma psicologia como ciência natural, ou seja,
apresentar os processos psíquicos como estados quantitativamente determinados de
partes materiais determináveis e, com isto, livra-los de contradição” 185. Neste sentido, o
Projeto é a versão mais bem acabada da tentativa freudiana de adequar as elaborações
por ele desenvolvidas na clínica das neuroses (principalmente após os Estudos sobre a
histeria, de 1895) à neurologia. O que encontraremos aqui é, entre outras coisas, a
tentativa de descrever o aparelho psíquico através de partes materiais que são, na
verdade, neurônios. Derrida toma as descrições neuronais de Freud como metáforas, o
181
DERRIDA, Ecriture et différence, p.297
182
Idem, p. 296
183
Idem, p. 297
184
Idem, p. 299
185
FREUD, Nachtragsband, p. 387
que, é claro, está longe das reais intenções de Freud. Na verdade, ele as toma como os
rudimentos da construção metafórica de uma máquina de escritura.
O aparelho psíquico, por sua vez, estaria constituído a partir de um princípio
fundamental de funcionamento : o princípio de inércia. Este princípio de inércia faz com
que os neurônios tendam normalmente a se desembaraçar das quantidades de excitação
a fim de conservar um estado anterior, o que demonstra como é a excitação que leva o
aparelho psíquico a abandonar sua tendência original ao repouso. Ao se desembaraçar
de tais quantidade, os neurônios voltariam ao seu estado original. Assim, o processo de
descarga (Abfuhr) – pensado principalmente como descarga através da fuga - aparece
como a função primária do sistema nervoso. Se no caso das excitações vindas do mundo
externo, o aparelho psíquico pode se desembaraçar do aumento da excitação através da
motricidade, ou seja, fazendo o organismo afastar-se da fonte de excitação, no caso das
excitações endógenas, a descarga só pode significar satisfazer as exigências ligadas à
fome e à sexualidade, já que a motricidade neste caso é sem conseqüência.
No entanto, esta satisfação exige que o aparelho psíquico seja apto a realizar
funções específicas. Temos então duas funções : funções primárias (ligadas à tendência
à descarga) e funções secundárias (ligadas às ações específicas). Tais funções
secundárias exigiriam a existência de algo como a memória que, por sua vez, depende
da capacidade de “armazenamento (Aufspeicherung) de quantidades” de energia. Para
que exista memória, faz-se necessário que as excitações deixem marcas, traços
duráveis186. Mas se a memória depende da capacidade de armazenamento, ela implica
também uma capacidade de conservar modificações; o que aparentemente entra em
contradição com a tendência à descarga. Neste sentido, a explicação da existência da
memória aparece como uma das funções fundamentais do manuscrito freudiano.
A solução freudiana consistirá em dizer que o aparelho psíquico conheceria, ao
menos, duas categorias de neurônios que se distinguem devido simplesmente ao nível
de resistência produzida nos pontos de contato entre um neurônio e outro. Para designar
tais pontos, Freud utiliza o termo “barreira de contato” (Kontaktschranken). Se estas
barreiras permitem a passagem sem entraves de quantidades, então temos “neurônios
permeáveis”. Se, ao contrário, tais barreiras dificultam a passagem de quantidades,
então teremos “neurônios impermeáveis”, resistentes e retentores de quantidades. A
memória depende destes últimos, que Freud chamará de neurônios ψ. Os primeiros
seriam responsáveis pela percepção, recebendo o nome de neurônios φ. Que a
percepção seja caracterizada por neurônios permeáveis, isto se explica pelo fato da
recepção a novas sensações e excitações ser condição maior para a sobrevivência do
organismo e para a plasticidade de sua relação ao meio ambiente. Esta distinção entre a
passividade da percepção que recebe as impressões externas e a atividade da memória
será uma constante na teoria freudiana da mente.
A descrição de Freud segue, em larga medida o seguinte esquema: uma
quantidade Q de excitação passa pelos neurônios φ e atingem os neurônios responsáveis
pela memória. Se ela for muito intensa, se sua repetição for freqüente, ela abrirá
caminhos entre as barreiras de contato. Senão, elas não modificarão o contato entre
neurônios. Este ato de abrir caminhos, que Freud associa à dor (pois a dor é o que indica
a irrupção de grandes quantidades em ψ; daí porque, diz Freud, ela seria “o mais
186
Joel Birman resume bem o conceito de memória no Projeto: “A memória seria um conjunto de marcas
neurobiológicas, denominadas e engramas, nas quais tais marcas seriam as resultantes das resistências que
se oporiam à livre circulação das excitações. Neste contexto, o organismo visaria a descarga total das
excitações, pela sua tendência fundamental à inércia. Porém, como tal descarga absoluta implicaria na
morte do organismo, a “urgência da vida” se oporia então à dita descarga total. Com isso, a descarga seria
apenas parcial, de forma somente que uma parcela das excitações se manteria circulante no organismo”.
(BIRMAN, Escritura e psicanálise: Derrida, leitor de Freud)
imperioso de todos os processos”) , é o que ele chama de Bahnung (que, em português
traduzimos ou por “facilitação” ou por “trilhamento”). A memória é, de fato,
representada por estes caminhos de condução de excitações que encontramos nos
neurônios ψ. Como vemos, trata-se aparentemente de um mero jogo de forças entre
pressão de quantidades de excitação e resistência. Como se a significação, evento
necessário aos fenômenos da memória, nascesse da força pressuposta pela intensidade,
pela repetição e pela resistência. Como se a “força produzisse o sentido”187.
Vimos, na aula passada, como podíamos, a partir daí, entender melhor o que
Derrida tem em vista ao afirmar que: “a vida psíquica não é nem a transparência do
sentido, nem a opacidade da força, mas a diferença no trabalho das forças. Nietzsche já
havia dito isto”188. Há uma longa tradição de leituras sobre a psicanálise freudiana que
insista em uma dicotomia entre a linguagem da força e a linguagem do sentido presente
na metapsicologia. Por um lado, Freud seria ainda dependente das expectativas
científicas da psicologia experimental do final do século XIX e das Naturwisseschaften.
Por isto, os processos psíquicos deveriam ser descritos a partir de um vocabulário onde
se mistura neurologia e metáforas científicas vindas da termodinâmica (força, energia,
pressão, descarga etc.). Mas, por outro, sua experiência intelectual abriria espaço para
uma hermenêutica do sentido, onde a cura seria pensada a partir do modelo de
interpretações de uma consciência que paulatinamente apreenderia reflexivamente suas
próprias produções. Neste sentido, Freud se aproximaria das Geistwisseschaften.
Derrida procura, na verdade, mostrar como, em larga medida, o pensamento
freudiano mostra a primazia dos puros jogos de força, daí a aproximação sugerida entre
Freud e Nietzsche. A aproximação serve para expor a figura de uma memória que
funciona como escritura sem consciência, escritura que mostra, à contracorrente do que
poderíamos esperar, que a memória não é um atributo da consciência. De fato, Derrida
precisa insistir que, em Freud, encontramos inicialmente a idéia da memória como um
sistema de Bahnungen, de ligações neuronais ou, se quisermos utilizar um termo caro a
Derrida, de traços que foram constituídos levando em conta apenas diferenças entre
jogos de forças. A este respeito, Derrida falará de “topografia de traços”, “mapa de
trilhamentos”, “espaçamento”.
Neste sentido, Derrida pode ainda se apoiar no fato de, no Projeto para uma
psicologia científica, Freud introduzir a consciência apenas como uma terceira categoria
de neurônios, por ele chamada de neurônios ω. Todo processo que vai da percepção à
memória seria feito sem apelo à consciência. Caberia à consciência apenas a
transformação de relações de quantidade em diferenças de qualidade. Em especial,
caberia à consciência operar as distinções qualitativas próprias às sensações conscientes
de prazer e desprazer, base para a construção de julgamentos. Mesmo neste caso, a
distinção qualitativa entre prazer e desprazer será compreendida a partir da noção de
assimilação do período de uma excitação, do tempo de retorno de uma excitação.
Esta posição extemporânea da consciência fica ainda mais clara em uma carta de
Freud a Fliess (n.52). Aqui, Freud apresenta um esquema onde descreve mais
claramente o que seria o trajeto que vai da percepção de um estímulo à formação de
uma representação consciente a ele associado. No Projeto, entre a percepção e a
consciência, havia a memória. Na carta, Freud descreve a memória através de três
estratos distintos que se formam sucessivamente : os signos de percepção (I), o
inconsciente (II) e o pré-consciente (III). Esta estratificação é fundamental por indicar
as sucessivas modificações das inscrições geradas pelo estímulo até alcançar a
representação consciente. Pois, como dirá o próprio Freud: “o que há de essencialmente
187
Idem, p. 316
188
Idem, p. 299
novo em minha teoria é a ideia de que a memória está presente não apenas uma, mas
várias vezes e que se compõe de diversas formas de “signos””189.
O que há de essencialmente novo aqui é a ideia de que a memória produz
inscrições em um sistema estratificado onde a passagem de um estrato a outro nunca é
uma simples tradução, mas uma transcrição (Umschrift). Através destas reinscrições em
estratos, os traços mnésicos são periodicamente reordenados. Toda nova inscrição
modifica a inscrição precedente. Por outro lado, muitas vezes a passagem de certos
traços, de um estrato a outro, é bloqueada através de recalques. Assim, o que chega à
representação da consciência muito pouco tem a ver com o estímulo que apareceu no
nível da percepção.
De fato, Israel Rosenfield mostrou como Freud havia reconhecido o caráter
fragmentário e ambíguo das imagens da memória. Pois elas não são arquivadas como
impressões de coisas. Seu caráter fragmentário é o que permite, inclusive, os processos
de deslocamento e de condensação presentes nas formações oníricas. Não é a ausência
de contexto que faz o sonho retrabalhar a lembrança, sobredeterminá-la. Antes, as
próprias lembranças foram armazenadas como fragmentos. Neste sentido, a atualização
de uma lembrança nunca poderá ser a mera apresentação de um conteúdo previamente
arquivado. Ela é a construção de um sentido a partir das exigências do presente. Derrida
alude a isto ao afirmar:

O texto consciente não é uma transcrição porque ele não teve que transpor, que
transportar um texto presente em outro lugar, sob a forma do inconsciente (...)
Não há verdade inconsciente a encontrar como se ela estivesse escrita em outro
lugar. Não há texto presente e escrito em outro lugar, que daria lugar, sem ser
modificado, a um trabalho e a uma temporalização (esta pertencendo, se
seguimos a literalidade freudiana, à consciência) que lhes seria exterior e
flutuaria em sua superfície190.

Se não há texto presente em outro lugar, é porque a memória não é um


arquivamento, mas uma contínua e incessante interpretação. Pois as lembranças não são
imutáveis, mas são reconstituições operadas sobre o passado e em contínuo
remanejamento. Não se trata de unidades discretas perpetuando-se através do tempo. O
que temos é um sistema dinâmico que, a partir do presente, integra traços mnésicos em
relações que se constituem a posteriori (nachträglich). Isto levou Ronselfield a afirmar,
sobre Freud:

Na verdade, nós todos recriamos o passado, e uma repetição não deve ser
compreendida como um ato simbolizando um acontecimento que já ocorreu, mas
como uma história global de esforços desdobrados para reaprender o passado,
história situada em um contexto dado, em um certo momento, que é este própria
à repetição191.

O que demonstra como, fora do presente, a memória não existe. Ela faz da tríade
passado/presente/futuro não uma sucessão, mas uma conexão que, muitas vezes, se
justapõe. Como não é apenas uma retenção, mas atividade, a memória não conhece
passado estático, ou futuro não-realizado. A este respeito, lembremos, como dirá
Loewald, que esta reinscrição do passado a partir do presente não modifica “o que

189
FREUD, Carta 52
190
DERRIDA, ibidem, p. 313
191
ROSENFIELD, L´invention de la mémoire, p. 90
objetivamente aconteceu no passado”, mas modifica o passado que o paciente carrega
consigo em sua história vivida. No entanto, vale a pena meditar sobre o fato de que:

Qualquer verdade histórica – independente do que Freud tenha pensado a


respeito do estatuto da realidade objetiva e da verdade da objetividade – é uma
reconstrução ou construção que reestrutura de uma maneira nova o que já no
tempo no qual isto realmente ocorreu foi uma construção mental, uma estrutura
mnésica inconscientemente construída pelos agentes temporais da mente192.

Ou seja, “o que objetivamente aconteceu no passado” já era, desde sempre uma


construção mental, pois já foi, desde sempre, uma interpretação que visava decidir a
natureza do sentido do fato. Não conhecemos nada como um “fato bruto” cujo sentido
esteja para além de conflitos de interpretação. No processo de interpretação social,
mobilizamos repetições, expectativas, medos que organizam os julgamentos
enunciados. O que temos desde o início é um conjunto de discursos que são
reatualizados a partir de acontecimentos que, por sua vez, pedem inscrições simbólicas.
Neste sentido, a modificação de como sujeitos vivem fatos passados já é, de alguma
forma, a modificação do que objetivamente aconteceu. Se a psicanálise foi sensível a
força de reinscrição, é porque:

A memória, na psicanálise, não é apenas uma faculdade ou função do intelecto


através da qual a mente registra, retém e procura lembra-se de experiências,
acontecimentos e objetos. Para ela, a memória tem a ver como separação, perda,
luto, restituição e geralmente traz consigo o sentido de nostalgia, especialmente
quando ficamos velhos193.

Esta é uma colocação importante que ultrapassa o quadro estrito das técnicas de
intervenção clínica. Da mesma forma como não há percepção bruta, ou seja, a
percepção não é apenas o registro da presença de objetos, mas toda percepção é juízo
carregado da memória das percepções passadas, há faculdades conceituais em operação
na mais simples percepção, o rememorado nunca é um mero fato, pois de nada nos
interessam fatos. Rememoramos experiências como separação, luto e perdas;
experiências que, por sua vez, são continuamente recompreendidas através de sua
articulação contínua com acontecimentos posteriores. Um pouco como estas cadeias
significantes em Lacan nas quais o acréscimo de um elemento tem a capacidade de
mudar retroativamente o sentido de todos os demais.
Lembremos, por exemplo, de como funciona o trabalho de luto. Freud tem um
descrição clara do processo:

A prova de realidade mostrou que o objeto amado já não existe mais e agora
exige que toda a libido seja retirada de suas ligações com esse objeto. Contra
isso se levanta uma compreensível oposição: em geral se observa que o homem
não abandona de bom grado uma posição da libido, nem mesmo quando um
substituto já se lhe acena. Essa oposição pode ser tão intensa que ocorre um
afastamento da realidade e uma adesão ao objeto por meio de uma psicose
alucinatória de desejo. O normal é que vença o respeito à realidade. Mas sua
incumbência não pode ser imediatamente atendida. Ela será cumprida pouco a
pouco com grande dispêndio de tempo e de energia de investimento, e enquanto
192
LOEWALD, Hans, idem, p. 146
193
LOEWALD, idem, p. 148
isso a existência do objeto de investimento é psiquicamente prolongada. Uma a
uma, as lembranças e expectativas pelas quais a libido se ligava ao objeto são
focalizadas e superinvestidas e nelas se realiza o desligamento da libido194.

Freud descreve um processo de fixação da memória em um objeto perdido


reativa a deslocamentos. Uma leitura rápida do trecho pode nos dar a impressão de que
o luto se trata de alguma forma de resignação diante do caráter inelutável da realidade.
Resignação cujo preço psíquico será sempre alto. No entanto, não compreenderemos
com isto o tipo de trabalho que se desenvolve no período de luto que permite um
desligamento da libido. Para compreendê-lo lembremos como tal trabalho de luto não
opera por substituição do objeto perdido através do deslocamento da libido. Dar a tal
deslocamento o estatuto de uma substituição equivaleria a colocar os objetos em um
regime de intercambialidade estrutural, regime no interior do qual a falta produzida pelo
objeto perdido poderia ser suplementada em sua integralidade pela construção de um
objeto substituto a ocupar seu lugar. Um mundo de balcão de trocas sem prazo de
vencimento. Se o homem não abandona antigas posições da libido mesmo quando um
substituto lhe acena é porque não se trata simplesmente de substituição. No entanto, o
tempo do luto não é o tempo da reversibilidade absoluta. Vincular o luto a uma
operação de esquecimento seria, por sua vez, elevar a lobotomia a ideal de vida.
Nem substituição, nem esquecimento, o luto não significa deixar de amar objetos
perdidos. O desligamento a respeito do qual fala Freud não é um esquecimento, mas
uma “operação de compromisso” a respeito da qual, infelizmente, o psicanalista não diz
muito, da mesma forma como não diz muito a propósito de um processo estruturalmente
semelhante ao luto, a saber, a sublimação. Talvez seja o caso de afirmar que tal
operação de compromisso própria ao trabalho de luto é indissociável da abertura a uma
outra forma de existência, da abertura de uma outra forma de realidade, entre a presença
e a ausência, entre a permanência e a duração. Uma existência espectral que, longe de
ser um flerte com o irreal, é existência objetiva do que habita em um espaço que força
as determinações presentes através de ressonâncias temporais 195. Existência descritível
apenas em uma linguagem de espectros que animam os vivos, que dão à realidade uma
espessura espectral pois é vida daquilo que, nos objetos mortos, nunca estava destinado
à desaparição, vida do que ainda pulsa tomando o espírito de outros objetos em uma
metamorfose contínua. É assim que desaparece a desaparição e é assim que o luto se
afirma como processo de conversão absoluta da violência das perdas e separações em
ampliação do presente. Pois esse espaço de metamorfoses produzido pelo luto é uma
figura privilegiada da linguagem de temporalidades múltiplas que se interpenetram. Por
isto, podemos dizer que o trabalho de luto não é construção de processos de substituição
próprias a uma lógica compensatória. Ele é produção de uma temporalidade que pode se
dispor em um presente absoluto

O bloco mágico

Todas estas conseqüências estão sintetizadas na metáfora freudiana do aparelho


psíquico como um bloco mágico. Trata-se de um pequeno brinquedo composto de um
bloco de resina e duas folhas, uma de celulóide transparente e outra de papel encerado
translúcido. Ao escrever no papel, a resina marca as duas folhas permitindo a

194
FREUD, Sigmund; Luto e melancolia, São Paulo: Cosac e Naify, 2011, p. 49
195
Ver, por exemplo, os ensaios de Jeanne Marie Gagnebin sobre a “experiência liminar” em
GAGNEBIN, Jeanne Marie; Limiar, aura e rememoração: ensaios sobre Walter Benjamin, São Paulo:
Editora 34, 2014
constituição de uma escrita. A segunda folha, aquela que realmente recebe as
impressões, serve como proteção para a primeira. Se esta estivesse diretamente em
contato com o bloco de resina, ela se rasgaria facilmente. Ao retirar o contato das folhas
com o bloco, ela volta a ficar vazia, enquanto todas as marcas passam para a resina.
Com o tempo, as marcas vão se acumulando, transformando-se em traços
incompreensíveis e interferindo na superfície de contato das folhas.
Freud encontra neste brinquedo uma metáfora para pensar a articulação entre
receptividade ilimitada da percepção e conservação de traços duráveis pela memória.
Articulação que lhe fez sustentar a existência de dois tipos de neurônios; um vinculado à
percepção e outro a memória. Ele ainda serve para figurar este processo de “suspensão
do contato” entre consciência e inconsciente através da separação periódica entre as
folhas e o bloco.
O fato de estarmos diante de uma máquina de escritura é algo que não deve ser
negligenciado. Que a mente tenha como metáfora privilegiada um sistema de escrita e
de conservação de traços é algo que diz muito a respeito de como entendemos a
atividade da memória, para além da ideia clássica do arquivamento de imagens. Falta à
metáfora do bloco mágico, no entanto, a capacidade de não apenas receber impressões
de fora, mas também de escrever a partir de dentro, como se a escritura pudesse se
reproduzida do bloco em direção às folhas. Caso isto ocorresse, ou seja, caso a
percepção pudesse se deixar marcar pela memória, então teríamos uma representação
perfeita do aparelho psíquico.
Curso Derrida
Aula 9

A unidade de tudo o que se deixa visar hoje através dos conceitos os mais
diversos da ciência e da escritura é inicialmente, mais ou menos de forma secreta
mas sempre, determinada por uma época histórico-metafísica da qual apenas
entrevemos o encerramento (...) O futuro só pode se antecipar na forma do
perigo absoluto. Ele é o que rompe absolutamente com a normalidade
constituída e só pode se anunciar, se apresentar, sob a forma da monstruosidade.
Para este mundo por vir e para o que nele teria feito tremer os valores do signo,
da fala e da escritura, para o que conduz aqui nosso futuro anterior, não há ainda
epígrafe196.

É assim que se inicia a “epígrafe” de Da gramatologia. Como se vê, Derrida se


compreendia em um limiar histórico no qual toda uma época histórico-metafísica
indicava seu encerramento. Seu esforço filosófico mais relevante se coloca assim como
a tentativa de ultrapassar tal época, reconhendo que uma ultrapassagem desta natureza
só poderia equivaler a aproximar-se do que se antecipa apenas na forma do perigo
absoluto. De que perigo fala exatamente Derrida? Que monstruosidade é esta própria a
tal mundo por vir?
O que vem depois desta época histórico-metafísica terminal ainda não pode ser
pensado, a não ser de forma monstruosa. Ou seja, não temos ainda figura. A filosofia
crítica irá pois procurar abrir o espaço ao que não tem figura, a uma experiência da
diferença que ainda não terá figura e que se abrirá a uma ciência peculiar chamada aqui
de “gramatologia”.
Notemos como o livro começa colocando-se sob a égide de uma certa crítica da
metafísica definida como era histórica de um modo de ser da linguagem definido como
“logocentrismo”, ou seja, linguagem que tem, na palavra falada, seu modelo
fundamental. Derrida insiste que a história da metafísica sempre foi vinculada à
operação de recalcamento da escritura para fora dos limites da palavra falada. O regime
de presença e de objetividade constituinte desta larga época histórica que Derrida chama
de “metafísica ocidental” seria profundamente dependente da elevação da palavra falada
à condição de modelo fundamental e originário da linguagem. Pois o privilégio dado à
phoné respondeu a uma necessidade profunda. O sistema do ‘escutar-se falando’ através
da substância fônica produziu a ideia de mundo a partir da diferença entre o dentro e o
fora, a idealidade e não-idealidade, o transcendental e o empírico. Este sistema procurou
reduzir a escritura a uma função segunda: mera tradução de uma palavra plena e
plenamente pronta. No entanto, a anterioridade da escritura em relação à palavra expõe
os motivos de um esquecimento que tem a idade da metafísica e de sua preparação ao
advento da disponibilização dos objetos pela técnica.
Neste sentido, criticar a metafísica só poderia ser possível à condição de criticar
o modo de ser da linguagem que a suporta. Isto implicaria abrir caminhos para uma
linguagem que reverta a predominância da fala sobre a escritura e que, com isto, nos
libere dos regimes de objetividade e presença que marcam a essência dos modos de
determinação do sentido hegemônicos na metafísica ocidental. Pois aqui já deve ter
ficado claro como a escritura tematizada por Derrida teria, ao menos para o filósofo
francês, um potencial desarticulador de noções maiores como: origem, presença,
idealidade do sentido, entre outras. Ela marca, na verdade, propriedades estruturais
196
DERRIDA, De la grammatologie, p. 14
presentes tanto na palavra falada quanto na palavra escrita. Propriedades que, se
liberadas do regime fonocêntrico que procura colonizá-las, poderiam instaurar uma
linguagem capaz de abrir as portas para o encerramento desta longa era histórica
definida, por Derrida, como era da metafísica ocidental. Esta escritura seria composta
por traços que devem ser compreendidos como inscrições que não são organizadas em
sistemas, como no caso dos significantes. Tal como no texto de Derrida sobre Freud,
esta escritura de traços está em contínua reconfiguração a partir de uma temporalidade
que remete a “um passado que não pode mais ser compreendido sob a forma da
presença modificada, como um presente-passado”197.
Este é o contexto de enunciação do projeto de uma gramatologia. A
gramatologia não seria apenas uma espécie de “ciência da escritura” e de suas
propriedades, setor a ser acrescentado ao campo das ciências humanas. Antes, ela seria
um regime de reflexão sobre a linguagem que nos abriria as portas para a
problematização daquilo que serviria de fundamento às ciências humanas, a saber, o
homem. Daí uma afirmação central como: “Ela [a gramatologia] não deve ser uma das
ciências do homem, pois ela coloca inicialmente, como sua questão própria, a questão
do nome do homem”198.
No entanto, não é certo que esta ciência verá o dia, já que a unidade de tudo o
que se deixa visar atualmente através dos conceitos os mais diversos da ciência e da
escritura é determinada por esta época histórico-metafísica da qual vemos o
encerramento. Neste sentido, a gramatologia acaba por se apresentar como um projeto
negativo face ao estabelecimento da ciência e da filosofia. Daí porque ela só pode se
aproximar no perigo absoluto.
Mas podemos compreender melhor esta afirmação decisiva sobre a gramatologia
como o que coloca em questão o próprio nome do homem, recorrendo a certas
colocações já presente à ocasião da publicação de A voz e o fenômeno. Lá, vimos como
Derrida insistia no vínculo entre a linguagem pensada a partir da palavra falada e a
centralidade da consciência enquanto modo de presença dos objetos, maneira de
radicalizar a noção constitutiva da subjetividade transcendental. O regime de presença
determinado pela linguagem encontra na consciência (tal como pensada pela
fenomenologia de Husserl) seu espaço fundador. O que nos explica uma definição de
consciência como: “a possibilidade da presença à si no presente vivo”199.
Vimos, por outro lado, como a consciência era indissociável do fenômeno da
voz como puro querer-dizer que:

indicando o puro ter-lugar de uma instância de linguagem sem nenhum


determinado advento de significado [aqui no sentido de relação à referência],
apresenta-se como uma espécie de ‘categoria das categorias’ que subjaz desde
sempre a todo pronunciamento verbal, sendo, portanto, singularmente próxima
da dimensão de significado do puro ser200.

Pois haveria uma proximidade absoluta entre a voz e o ser, a voz e o sentido do ser, a
voz e a idealidade do sentido.
Por outro lado, devemos lembrar como Derrida insiste que mesmo um conceito
transcendental de consciência (como o que encontraríamos na fenomenologia de
Husserl) não pode deixar de se sustentar em uma certa antropologia. Daí porque Derrida

197
DERRIDA, De la grammatologie, p. 97
198
Idem, p. 124
199
Idem, La voix et le phénomène, p. 8
200
AGAMBEN, A linguagem e a morte, p. 55
era sensível a afirmações como: “Na dimensão da consciência, a humanidade normal e
adulta (excluindo o mundo dos anormais e das crianças) é privilegiada como horizonte
de humanidade e como comunidade de linguagem” 201. Pois se a maturidade do homem
adulto e sua normalidade permitem uma determinação eidético-transcendental rigorosa
da consciência, então: “o privilégio de Husserl implica que uma modificação factual e
empírica – a normalidade adulta – pretenda ser uma norma transcendental universal”202.
Se quisermos utilizar uma palavra proibida, podemos dizer que tal modificação factual e
empírica não seria outra coisa que uma certa recaída na dimensão do psicológico.
Assim, quando Derrida afirmava que a gramatologia poderia colocar em questão
o nome do homem, tratava-se de ver, em uma reflexão sobre a linguagem que parte do
primado da escritura, a possibilidade de tematizar a dependência das ciências humanas a
um campo transcendental anterior à constituição de todo e qualquer sujeito. Daí uma
afirmação central como:

Sem a última objetivação que a escritura permite, toda linguagem estaria ainda
cativa da intencionalidade factícia e atual de um sujeito falante ou de uma
comunidade de sujeitos falantes. Ao virtualizar absolutamente o diálogo, a
escritura cria uma forma de campo transcendental autônomo a respeito do qual
todo sujeito atual pode se abster203.

Pois: “a escritura é esse esquecimento de si, esta exteriorização, o contrário da


memória interiorisante, da Erinnerung que abre a história do espírito”204. Este campo
transcendental poderia ser apreendido apenas através de uma história da escritura que,
longe de nos fornecer a arqueologia de uma episteme determinada, nos fornecia: “uma
possibilidade comum e radical que nenhuma ciência determinada, nenhuma disciplina
abstrata, não pode pensar como tal”205. Esta história da escritura que forneceria a
possibilidade de desconstrução dos motivos metafísicos presentes em nossa linguagem
seria o verdadeiro sentido da gramatologia.

A escritura habita a fala desde sempre

Vimos no início de nosso curso como, em todo lugar onde é questão do signo,
Derrida acredita encontrar sempre a mesma metafísica. Para ele, a era histórica da
determinação do sentido do ser como presença é a era do signo. Para Derrida, esta era
histórica do signo encontra seu ponto de maturidade no momento em que a
determinação da presença absoluta aparecer como presença à si no interior da
subjetividade. Ou seja, ele tem inicialmente em mente o grande racionalismo do século
XVII. No entanto, sua crítica ao signo terá, em Da gramatologia, dois personagens
principais. Dois personagens aparentemente totalmente distantes um do outro, a saber, o
lingüista Ferdinand de Saussure e o filósofo Jean-Jacques Rousseau. Neste amálgama,
vemos a tentativa derridiana de desenvolver uma crítica do signo que dê conta, em um
movimento duplo complementar, tanto da “ciência ideal” que visava animar um
processo de racionalização do quadro interdisciplinar das ciências humanas (lingüística
estrutural de Saussure), quanto de uma crítica da razão moderna que forneceu um dos
quadros mais duradouros de reflexão da crítica do progresso. Por outro lado, Derrida vê
em Rousseau uma expressão maior do sujeito moderno através de sua crítica da
201
HUSSERL, L´origine de la géométrie, p. 182
202
LAWLOR, ibidem, p. 112
203
DERRIDA, Introduction à l´Origine de la géométrie, de Husserl, p. 84
204
Idem, De la grammatologie, p. 39
205
Idem, p. 141
escritura representativa, decaída, segunda, instituída, isto em prol da voz e da palavra.
Voz que funda a consciência e o corpo (as paixões como a voz do corpo). Por isto, boa
parte de Da gramatologia será dedicada ao comentário do Ensaio sobre a origem das
línguas.
Derrida apoiava-se em trechos de Saussure a respeito da relação entre linguagem
escrita e linguagem falada a fim de mostrar o vínculo da lingüística estrutural à
metafísica. De fato, Saussure afirma que a única razão da existência da escrita seria a de
representar a linguagem falada. Esta submissão da escrita à fala seria apenas mais um
capítulo a demonstrar que:

O pecado sempre foi definido – entre outros por Malebranche e por Kant – como
a inversão das relações naturais entre a alma e o corpo nas paixões. Saussure
acusa aqui a inversão das relações naturais entre a fala e a escritura. Não é uma
simples analogia: a escritura, a letra, a inscrição sensível sempre foram
consideradas pela tradição ocidental como o corpo e a matéria exteriores ao
espírito, ao sopro, ao verbo e ao logos. E o problema da alma e do corpo é sem
dúvida derivado do problema da escritura. Problema a respeito do qual –
inversamente – ele parece emprestar suas metáforas206.

Ou seja, as dicotomias que impõem ao pensar a necessidade de distinguir o


sensível e o inteligível, a matéria e a forma, a natureza e a cultura encontram no
rebaixamento da escritura em relação à fala um fundamento suplementar.
No entanto, Saussure reconhece que a palavra escrita se mistura tanto à palavra
falada que ela acaba por usurpar-lhe o papel principal: “É como se acreditássemos que,
para conhecer alguém, seria melhor olhar sua fotografia ao invés de seu rosto” 207. Essa
usurpação abre a linguística à gramatologia, dirá Derrida. Ou seja, ela libera o devir a
uma gramatologia geral no interior da qual a fonologia será apenas uma região
circunscrita. Saussure insiste em lembrar que a língua falada tem uma tradição e um
desenvolvimento normalmente independente da língua escrita. Na verdade, a língua
falada evolui constantemente e mais rapidamente do que a língua escrita. Ao final, a
grafia acaba por não corresponder ao que ela deveria representar. Assim, no século XIII
os franceses pronunciavam “roi” e “loi”, enquanto se escrevia também “roi” e “loi”. No
século XIV, a pronúncia modifica-se para “roé” e “loè” e, no século XIX, para “rwa” e
“lwa”. No entanto, a escrita sempre continuou como “roi” e “loi”. Mas o que seria
realmente problemático para Saussure são situações nas quais nos deparamos com a
“tirania da letra” que, à força de se impor à massa, influencia a língua falada e a
modifica: “Isto só acontece em idiomas muito literários nos quais o documento escrito
desempenha um papel considerável”208. Saussure traz como exemplo a maneira com que
os parisienses falavam “sept femmes” fazendo soar o “t”.
Derrida encontrará nesta temática da usurpação dos direitos da língua falada pela
escrita ecos da noção de progresso como esquecimento de uma origem simples. Como
se a escrita fosse a dissimulação da presença natural, primeira e imediata do sentido.
“Sempre acabamos por esquecer que aprendemos a falar antes de aprendermos a
escrever, e a relação natural é invertida”, dirá Saussure. Derrida quer, no entanto,
mostrar como a linguagem é, desde o início, escritura: “A usurpação começou desde
sempre”209. A usurpação começou desde sempre porque a linguagem natural nunca teria

206
Idem, p. 52
207
SAUSSURE, Cours de linguistique générale, p. 45
208
Idem, p. 53
209
DERRIDA, De la grammatologie, p. 55
existido, ela nunca estaria intacta, já que sempre foi uma arqui-escritura. A escritura
habita a fala desde sempre.
Para insistir em tal caráter, Derrida fala da escritura como “traço instituído”,
como inscrição ainda não organizada em sistema. Um traço que é pura diferença, pois
não vale como originário, assim como vimos nos traços mnésicos freudianos.
A fim de mostrar como a escritura habita a fala desde sempre, Derrida se propõe
criticar o conceito saussureano de signo. Tal como no caso do conceito de signo na
fenomenologia de Husserl, Derrida quer mostrar como há algo no interior do signo que
não pode mais ser compreendido no interior dos limites da metafísica da presença. Por
isto, o destino do signo seria procurar recalcar algo que, no limite, lhe ultrapassa.
Saussure definia o signo como a união de um conceito e de uma imagem
acústica, ou seja, de um significado e de um significante. Notemos inicialmente como o
“conceito” ao qual Saussure refere-se é apresentado como uma imagem genérica de
objeto ou, se quisermos utilizar uma descrição de Heidegger, “vista de um objeto
qualquer”. Esta imagem está em posição de esquema e permite ao esquema pôr-se como
"conceito sensível de um objeto", como transposição sensível do conceito. Para que haja
uma transposição sensível do conceito, faz-se necessário uma regra capaz de prescrever
a inserção do sensível em uma vista possível, prescrição que cria uma imagem do
conceito de um objeto, e não imagem de um objeto particular. Daí a afirmação:

A percepção imediata de um dado, por exemplo, desta casa, já contém


necessariamente uma vista prévia esquematizadora da visão em geral, é apenas
através desta vista prévia [Vor-stellung] que o ente reencontrado pode se
manifestar como casa, pode oferecer a vista de uma 'casa dada'210.

É pensando em uma perspectiva desta natureza que Derrida pode ver, na noção
saussureana de significado, uma “idealidade de sentido”211.
Por outro lado, lembremos como Saussure não define o significante como uma
substância sonora, como a realidade fática imediata da palavra falada. Antes, ele é a
representação psíquica de um som, uma imagem acústica, imagem que aparece quando
dizemos uma palavra em um monólogo interior. Isto não deixa de nos remeter à leitura
que Derrida propôs de Husserl, onde o recurso à vida interior, ao solilóquio, aparecia
como fundamento para o sentido compreendido como expressão. Tendo em vista as
temáticas apresentadas em seus estudos sobre Husserl, Derrida se mostra bastante
advertido em relação à maneira com que o recurso à noção de imagem acústica procura
livrar a sistematicidade da língua da dependência à empiricidade da fala efetiva, pois:

A imagem acústica é o escutado (l´entendu / que também pode ser “o


compreendido”), não o som escutado, mas o ser-escutado do som. O ser-
escutado é estruturalmente fenomenal e pertence a uma ordem radicalmente
heterogênea em relação ao som real no mundo212.

Pois esta representação psíquica do som não pode ser compreendida como uma
realidade interna simplesmente copiando uma realidade externa. Por trazer no seu bojo a
diferença irredutível em relação à substância fônica, ela nos remete ao problema da
idealidade da expressão em Husserl. A diferença se dá aqui, de uma certa forma, como
diferença ontológica entre a faticidade da substância fônica e a idealidade da imagem

210
HEIDEGGER, idem, p. 159
211
DERRIDA, De la gramamtologie, p. 93
212
Idem, p. 93
acústica. Derrida chega a falar da diferença entre o “sensível aparecendo” e o “aparecer
vivido” (que Saussure chama de “impressão psíquica” /empreinte psychique). Esta
imagem acústica que não é exatamente minha fala, que é fala de ninguém, já que é
idealidade que funda a possibilidade do som organizar-se em sistema.
No entanto, Derrida baseia-se nesta noção de idealidade presente no sistema de
significantes para interpretar a afirmação de Saussure: “A língua não é uma função do
falante, ela é o produto que o indivíduo registra passivamente” 213. Se o indivíduo
registra passivamente a língua como produto é porque ela se impõe a ele em sua
sistematicidade. Na verdade, ele deve, no limite anulá-lo, anular a faticidade de sua fala,
para poder impor-se em sua realidade transcendental. Como se no processo de
clarificação da presença, a relação à empiricidade fosse sendo apagada. Como se a
referência à idealidade em sua pureza fosse indissociável de uma certa forma de
dissolução bem enunciada nesta longa afirmação de Derrida:

Posso esvaziar todo conteúdo empírico, imaginar uma modificação absoluta do


conteúdo de toda experiência possível, uma transformação radical do mundo : a
forma universal da presença (tenho uma certeza estranha e única pois ela não
concerne estado determinado algum) não será afetada. É pois a relação à minha
morte (ao meu desaparecimento em geral) que se esconde nesta determinação do
ser como presença, idealidade, possibilidade absoluta de repetição. A
possibilidade do signo é esta relação à morte. A determinação e a dissolução do
signo na metafísica é a dissimulação desta relação à morte que, no entanto,
produziria a significação214.

Vimos em aulas passadas como este tema era central. Ele volta em nosso texto
através da afirmação canônica: “Todo grafema é testamentário. E a ausência original do
sujeito da escritura é também esta da coisa ou do referente” 215. Se a possibilidade do
signo é esta relação à morte, outro nome possível ao processo de confrontação da
palavra com um certo vazio de objeto, então somos obrigados a admitir uma tensão
interna à determinação mesma da noção de presença. Pois a relação à desaparição em
geral, à morte, encontra-se paradoxalmente no cerne da determinação do ser como
presença. Como se a possibilidade da minha desaparição em geral devesse ser
vivenciada para que uma relação à presença em geral pudesse ser instituída. Como
Derrida não admite um sujeito transcendental que deixe de ter sua gênese em uma
antropologia que tem medo de dizer seu nome, ficamos com a situação paradoxal de nos
confrontarmos com um sistema de significantes que se afirma anulando a possibilidade
de sua recuperação por uma consciência. Desta forma, Derrida espera realizar a
desconstrução da noção e signo a fim de que o advento de uma arqui-escritura
desprovida de sujeito possa aparecer.

Afinal, sabem os Nambikwaras escrever?

No interior desta desconstrução da história geral da escritura, Derrida parte para


a crítica à idéia de uma origem na qual encontraríamos povos sem escritura e sem
história. Derrida vê nesta estratégia um etnocentrismo para o qual povos sem história
estariam ou aquém de um conceito realizado de “homem” ou além de um conceito

213
SAUSSURE, ibidem, p. 30
214
DERRIDA, La voix et le phénoméne, p. 60
215
Idem, De la grammatologie, p. 101
decaído de “homem”. Nos dois casos, encontramos uma exclusão intransponível entre
nossas formas de vida e o que teria ficado adormecido na origem.
A fim de realizar tal projeto de desconstrução, a gramatologia deve livrar-se de
três preconceitos insistentemente presentes em reflexões sobre a história da escritura. O
primeiro é um certo preconceito “teológico” que assume o mito de uma escritura
primitiva e natural dada por Deus. O segundo deveria ser chamado de “preconceito
chinês”. Pois todos os projetos filosóficos de escritura e de linguagem universal nos
séculos XVII e XVIII encorajaram a ver na escrita chinesa então descoberta, um caso
exemplar de uma escrita não-fonética, um modelo de língua subtraída à história. Derrida
lembra de Leibniz que via, na língua chinesa, uma profunda arbitrariedade ligada à
essência não-fonética de sua escrita e não-imitativa de seus caracteres. Essa
arbitrariedade implicaria em estaticidade e ausência de historicidade, já que a fala seria
o motor das mudanças que se dão na história. Por fim, Derrida fala do “preconceito
hieróglifista” que transforma o desprezo etnocêntrico pela escrita não-fonética em
admiração hiperbólica.
Esta desconstrução da história geral da escritura assume, como seu ponto de
partida, a história da origem das línguas, de Rousseau. Derrida compreende Rousseau
como um momento maior no estabelecimento da história da metafísica enquanto
determinação do ser como presença. Derrida então esboça algumas estações disto que
seria sua leitura de tal história. Com Platão, a idealidade da presença oferecida à
repetição fora constituída sob a forma objetiva da idealidade do eidos e da
substancialidade da ousia. Com Descartes, tal objetividade tomava a forma da
representação (onde se vê uma clara influência da história heideggeriana da filosofia),
da idéia como modificação de uma substância presente à si, consciente e certa de si no
momento de sua relação à si. A idealidade e a substancialidade se relacionariam à si no
elemento de uma consciência que aparece como experiência da pura auto-afecção. Mas,
por outro lado, Derrida insiste que esta experiência de auto-afecção só pode se realizar
através da voz, já que a voz é exatamente o meio da auto-afecção, o meio do “escutar-se
falando”. Neste sentido, Rousseau teria sido um caso exemplar de filósofo que
compreendeu como a experiência da voz funda a presença imediata da substância à si
mesma. Para tanto, bastaria lermos Ensaio sobre a origem das línguas. Daí seu lugar
central no interior do projeto de Da gramatologia.
Mas, como já foi dito, Rousseau tem ainda um interesse suplementar. Pois ele
nos relevaria certos pressupostos em operação no interior deste projeto maior de
racionalização do campo das ciências humanas na segunda metade do século XX, a
saber, o estruturalismo. De fato, Lévi-Strauss chega a afirmar que Rousseau teria
fundado a etnologia em particular e as ciências humanas em geral. Segundo Lèvi-
Strauss, enquanto Descartes seria prisioneiro das pretensas evidências do Eu, passando
diretamente da interioridade de um homem à exterioridade do mundo sem ver que entre
os dois extremos encontram-se sociedades, civilizações, Rousseau nos teria mostrado
que: “para chegar a se aceitar nos outros, objetivo que o etnólogo impõe ao
conhecimento do homem, faz-se necessário inicialmente se recusar à si mesmo” 216. Ou
seja, para construir a categoria genérica do homem, faz-se necessário recusar o domínio
das auto-evidências imediatas, mostrar que existe um “ele” que se pensa em mim e que
me faz duvidar que seja Eu que pensa. Um “ele” no qual encontramos as marcas de uma
natureza comum recalcada pelo advento da modernidade.
No entanto, a leitura de Derrida é bastante diferente desta sugerida por Lévi-
Strauss. Ele quer mostrar como o estruturalismo partilha, juntamente como Rousseau,
uma metafísica incapaz de se livrar do fantasma da identidade imediata perdida e
216
LÉVI-STRAUSS, Anthropologie struturale II, p. 48
decaída. Identidade que estaria definitivamente exilada e violentada devido ao advento
da escritura e da história. O que permite a Derrida colocar esta questão maior: “O que
liga a escritura à violência? O que deve ser a violência para que algo nela se iguale à
operação do traço?”217.
Derrida propõe-se então a analisar um pequeno capítulo de “Tristes trópicos”
dedicado aos Nambikwaras, ‘pequeno grupo de índios nômades que estaria dentre os
mais primitivos que podemos encontrar no mundo”, índios aparentemente próximos de
uma “infância da humanidade”. Neste capítulo, Lévi-Strauss narra como os
Nambikwara teriam tido acesso, pela primeira vez, à escrita. Tal experiência de acesso à
escrita apareceria como uma ruptura em relação à infância, um exílio em relação à
presença. No entanto, Derrida quer corrigir esta história da queda através do acesso à
escrita ao lembrar que:

Há escritura a partir do momento em que o nome próprio é rasurado em um


sistema, há “sujeito” a partir do momento que esta obliteração do próprio se
produz, ou seja, a partir do momento do aparecer do próprio e da primeira
manhã da linguagem218.

Ou seja, trata-se de vincular a escritura não apenas a um sistema codificado de


caracteres em número limitado que serviriam para procedimentos elementares de
comunicação. A escritura já está presente a partir do momento que o nome próprio é
enunciado. Esta é uma idéia fundamental. Pois o nome próprio não pode ser
compreendido como a apelação única reservada à presença de um ser único, ele não
pode ser compreendido como o dispositivo que asseguraria a indexação do singular em
um regime de transparência pura. Para Derrida, e aqui seguindo explicitamente Lévi-
Strauss, todo ato de nomeação é necessariamente ato de classificação, inscrição no
interior de um sistema sócio-simbólico. O nome que se dá ao filho, por exemplo,
classifica-o de acordo com sua linhagem, inscreve-o em uma repetição que lhe faz
continuar o nome do avô, os ideais do pai, etc. Neste sentido, ele é necessariamente
rasura do que o particular poderia aspirar de particularidade irredutível. Desta forma,
podemos dizer que o nome próprio: “defines ambiguity because it is the point where
ambiguity and determinacy coincide. The suggestion that the conditions for the
possibility of proper names are also the conditions for their impossibility is typical of
Derrida’s deconstructive strategies. He always aims to show that the conditions of
possibility are necessarily the conditions of impossibility”219.

217
DERRIDA, Da gramatologia, p. 149
218
DERRIDA, Da gramatologia, p. 159
219
STOCKER, Barry, Derrida on deconstruction, p.
Curso Derrida
Aula 10

Na aula de hoje, daremos continuidade a nossa leitura de Da Gramatologia. Vimos na


aula passada como a gramatologia aparecia como uma desconstrução da história geral
da escritura. No interior desta história, Derrida parte da crítica à ideia de uma origem na
qual encontraríamos povos sem escritura e sem história. Derrida vê nesta estratégia um
etnocentrismo para o qual povos sem história estariam ou aquém de um conceito
realizado de “homem” ou além de um conceito decaído de “homem”. Nos dois casos,
encontramos uma exclusão intransponível entre nossas formas de vida e o que teria
ficado adormecido na origem.
Na verdade, neste ponto vemos a ligação entre a desconstrução e crítica do
colonialismo. A discussão a respeito de povos sem escrita é um setor importante da
crítica a uma visão colonial do progresso histórico. Povos sem escritura estariam presos
ainda à oralidade, a um horizonte originário, desconhecendo o tempo e suas
transformações. Por isto, estaríamos a falar de sociedades pretensamente estáticas.
Neste sentido, a generalização da escritura para toda e qualquer sociedade implica
reconhecimento de uma temporalidade múltipla sem h ierarquia, de um processo
histórico sem origem, atraso e desenvolvimento. Há uma generalização da história
trazida pela gramatologia.
Vimos como, a fim de realizar tal projeto de desconstrução, a gramatologia
deveria livrar-se de três preconceitos insistentemente presentes em reflexões sobre a
história da escritura. O primeiro é um certo preconceito “teológico” que assume o mito
de uma escritura primitiva e natural dada por Deus. O segundo deveria ser chamado de
“preconceito chinês”. Pois todos os projetos filosóficos de escritura e de linguagem
universal nos séculos XVII e XVIII encorajaram a ver na escrita chinesa então
descoberta, um caso exemplar de uma escrita não-fonética, um modelo de língua
subtraída à história. Derrida lembra de Leibniz que via, na língua chinesa, uma profunda
arbitrariedade ligada à essência não-fonética de sua escrita e não-imitativa de seus
caracteres. Essa arbitrariedade implicaria em estaticidade e ausência de historicidade, já
que a fala seria o motor das mudanças que se dão na história. Por fim, Derrida fala do
“preconceito hieróglifista” que transforma o desprezo etnocêntrico pela escrita não-
fonética em admiração hiperbólica.
Esta desconstrução da história geral da escritura assume, como seu ponto de
partida, a história da origem das línguas, de Rousseau. Derrida compreende Rousseau
como um momento maior no estabelecimento da história da metafísica enquanto
determinação do ser como presença. Derrida então esboça algumas estações disto que
seria sua leitura de tal história. Com Platão, a idealidade da presença oferecida à
repetição fora constituída sob a forma objetiva da idealidade do eidos e da
substancialidade da ousia. Com Descartes, tal objetividade tomava a forma da
representação (onde se vê uma clara influência da história heideggeriana da filosofia),
da ideia como modificação de uma substância presente à si, consciente e certa de si no
momento de sua relação à si. A idealidade e a substancialidade se relacionariam à si no
elemento de uma consciência que aparece como experiência da pura auto-afecção. Mas,
por outro lado, Derrida insiste que esta experiência de auto-afecção só pode se realizar
através da voz, já que a voz é exatamente o meio da auto-afecção, o meio do “escutar-se
falando”. Neste sentido, Rousseau teria sido um caso exemplar de filósofo que
compreendeu como a experiência da voz funda a presença imediata da substância à si
mesma. Para tanto, bastaria lermos Ensaio sobre a origem das línguas. Daí seu lugar
central no interior do projeto de Da gramatologia.
Mas, como já foi dito, Rousseau tem ainda um interesse suplementar. Pois ele
nos relevaria certos pressupostos em operação no interior deste projeto maior de
racionalização do campo das ciências humanas na segunda metade do século XX, a
saber, o estruturalismo. De fato, Lévi-Strauss chega a afirmar que Rousseau teria
fundado a etnologia em particular e as ciências humanas em geral. Segundo Lèvi-
Strauss, enquanto Descartes seria prisioneiro das pretensas evidências do Eu, passando
diretamente da interioridade de um homem à exterioridade do mundo sem ver que entre
os dois extremos encontram-se sociedades, civilizações, Rousseau nos teria mostrado
que: “para chegar a se aceitar nos outros, objetivo que o etnólogo impõe ao
conhecimento do homem, faz-se necessário inicialmente se recusar à si mesmo” 220. Ou
seja, para construir a categoria genérica do humano, faz-se necessário recusar o domínio
das auto-evidências imediatas, mostrar que existe um “ele” que se pensa em mim e que
me faz duvidar que seja Eu que pensa. Um “ele” no qual encontramos as marcas de uma
natureza comum recalcada pelo advento da modernidade.
No entanto, a leitura de Derrida é bastante diferente desta sugerida por Lévi-
Strauss. Ele quer mostrar como o estruturalismo partilha, juntamente como Rousseau,
uma metafísica incapaz de se livrar do fantasma da identidade imediata perdida e
decaída. Identidade que estaria definitivamente exilada e violentada devido ao advento
da escritura e da história. O que permite a Derrida colocar esta questão maior: “O que
liga a escritura à violência? O que deve ser a violência para que algo nela se iguale à
operação do traço?”221.
Derrida propõe-se então a analisar um pequeno capítulo de “Tristes trópicos”
dedicado aos Nambikwaras, “pequeno grupo de índios nômades que estaria dentre os
mais primitivos que podemos encontrar no mundo”, índios aparentemente próximos de
uma “infância da humanidade”. Neste capítulo, Lévi-Strauss narra como os
Nambikwara teriam tido acesso, pela primeira vez, à escrita. Tal experiência de acesso à
escrita apareceria como uma ruptura em relação à infância, um exílio em relação à
presença. No entanto, Derrida quer corrigir esta história da queda através do acesso à
escrita ao lembrar que:

Há escritura a partir do momento em que o nome próprio é rasurado em um


sistema, há “sujeito” a partir do momento que esta obliteração do próprio se
produz, ou seja, a partir do momento do aparecer do próprio e da primeira
manhã da linguagem222.

Derrida alude ao fato de que, entre os Nambikwaras, o emprego do nome próprio


era proibido. Lévi-Strauss conta, por exemplo, um jogo no qual as crianças acabavam
por lhe contar o nome próprio da outra, provocando raiva naquela que teve seu nome
revelado. Este ato de esconder o nome, de rasura-lo no uso social é, para Derrida, prova
de que estamos diante de uma nomeação que porta em si mesma a consciência de sua
ausência de imanência.
O fato do nome próprio ser assim solidário de sua rasura implica que ele rompe
com o mito da origem de uma lisibilidade transparente e imediatamente presente. Isto é
apenas a consequência do fato de nunca apenas nomearmos, nós classificamos o outro
ou nos classificamos a nós mesmos. Ou seja, trata-se de vincular a escritura não apenas

220
LÉVI-STRAUSS, Anthropologie struturale II, p. 48
221
DERRIDA, Da gramatologia, p. 149
222
DERRIDA, Da gramatologia, p. 159
a um sistema codificado de caracteres em número limitado que serviriam para
procedimentos elementares de comunicação. A escritura já está presente a partir do
momento que o nome próprio é enunciado. Esta é uma ideia fundamental. Pois o nome
próprio não pode ser compreendido como a apelação única reservada à presença de um
ser único, ele não pode ser compreendido como o dispositivo que asseguraria a
indexação do singular em um regime de transparência pura. Para Derrida, e aqui
seguindo explicitamente Lévi-Strauss, todo ato de nomeação é necessariamente ato de
classificação, inscrição no interior de um sistema sócio-simbólico. O nome que se dá ao
filho, por exemplo, classifica-o de acordo com sua linhagem, inscreve-o em uma
repetição que lhe faz continuar o nome do avô, os ideais do pai, etc. Neste sentido, ele é
necessariamente rasura do que o particular poderia aspirar de particularidade irredutível.
A linguagem sempre será solidária de uma violência:

A violência originária da linguagem que consiste em inscrever uma diferença,


em classificar, em suspender o vocativo absoluto. Pensar o único no sistema,
inscreve-lo, tal é o gesto da arqui-escritura: arqui-violência, perda do próprio, da
proximidade absoluta, da presença a si, perda em realidade do que nunca teve
lugar, presença a si que nunca foi dada mas sonhada e sempre já desdobrada,
repetida, incapaz de aparecer de outra forma que através da sua própria
desaparição223.

Esta violência já é o movimento de uma história, de uma temporalização


caracterizada pela consciência da inconsistência do originário. Por isto, toda arqui-
escritura traz também uma arqui-violência. Mas não porque a escritura marca a perda
das relações próprias, de proximidade absoluta. Sua violência é a paradoxal
decomposição do que nunca teve lugar, do que nunca foi dado, do que era incapaz de
aparecer de outra forma que através da sua própria desaparição. Por isto, Derrida pode
afirmar que : “a différance em seu movimento ativo – o que é compreendido, sem
esgotá-lo, no conceito de différance – é o que não apenas precede a metafísica, mas
também transborda o pensamento do ser”224. Pois esta arqui-escritura produzida pela
defférance impede a consolidação das relações entre ser e sentido . Daí porque Derrida
poderá dizer:

Nisto que chamamos a vida real de suas existências em “carne e osso”, para
além do que podemos circunscrever como a obra de Rousseau, e atrás dela,
houve apenas escritura, houve apenas suplementos, significações substitutivas
que só puderam aparecer em uma cadeia de reenvios diferenciais, o “real” só
aparecendo, só se acrescentando ao tomar sentido a partir de um traço de um
chamado de suplemento, etc.225,

A origem das línguas

Derrida procura aproximar a leitura que Lévi-Strauss faz dos Nambikwaras do


Ensaio sobre a origem das línguas, de Rousseau. O Ensaio é uma reflexão política e
antropológica que funda uma forma de crítica social da modernidade baseada na
compreensão das relações sociais modernas como a generalização dos processos de
alienação. Rousseau ainda terminará seu texto insistindo na maneira com que a

223
DERRIDA; Da gramatologia, p. 165
224
Idem, p. 206
225
Idem, p. 228
emergência de uma outra linguagem é condição fundamental para a emancipação
política, no que reencontramos algumas pressuposições fundamentais de Derrida. Pois a
degradação da línguagem é o sintoma de uma degradação social e política. Para
Rousseau, ela tem sua origem na aristocracia e na capital.
Derrida insiste no fato de Rousseau compreender a passagem à escritura como
uma disruptura das relações, um meio perigoso e uma resposta crítica a uma situação de
desamparo. Lembremos do que fala Rousseau: “as línguas são feitas para serem faladas,
a escritura serve apenas de suplemento à fala”. Esta posição de suplemento é
fundamental para Derrida. Ele insistirá como o suplemento tem necessariamente duas
funções. Primeiro, o suplemento se soma, ele é um a mais, uma plenitude que enriquece
outra plenitude. Mas o suplemento também substitui o suplementado, ele se insinua no
lugar de. Neste sentido, ele é exterior, fora da positividade à qual ele se acrescenta. Há
uma perversão própria ao suplemento. Há um engano, um ato de enganar a natureza
primeira. Ele é aquilo que suplementa uma falta na natureza, uma voz que suplemente a
voz da natureza.
Mas esta compreensão da relação entre fala e escritura em Rousseau vincula-se a
uma metafísica que consiste em excluir a não-presença ao determinar o suplemento
como exterioridade simples, como pura adição ou pura ausência. Esta determinação
será, no entanto, contraditória em Rousseau. Derrida tentará mostrar como a todo
momento ela parece caminhar para outra direção. Por exemplo, no Ensaio sobre a
origem das línguas, Rousseau fará uma distinção entre as línguas do sul, expressivas,
cantadas e próximas da origem musical da linguagem, e as línguas do norte,
informativas, marcadas pela falta de musicalidade e pela distância, linguagem mais apta
à escritura. Esta língua é habitada pela proximidade à morte, à carência. A escrita
aparece como expressão da morte, mas também tour de force para guardar a vida.

Isolamento e compaixão no estado de natureza

Guardemos de confundir o homem selvagem com os homens que temos diante


de nossos olhos. A natureza trata todos os animais abandonados a seus cuidados
com uma predileção tal que parece assim mostrar como ela é ciumenta deste
direito226.

Esta é uma das primeiras características do estado de natureza, segundo Rousseau, a


saber, a ausência de falta. Rousseau não partilha a visão do estado de natureza como
estado de penúria no interior do qual seria necessário lutar para sobreviver, pois
estaríamos sempre as voltas com a experiência da finitude da vida. De certa maneira,
não seria errado dizer que a experiência da falta é uma criação da vida social. Se a
natureza fornece este horizonte de amparo que dá aos animais e aos humanos o espaço
potencial de realização de seus desejos e necessidades, então a falta não pode ser uma
condição contínua de um desejo que está sempre a procura de novos objetos. Essa
ausência de falta se repete na concepção rousseauista de infância: “a criança para
Rousseau é o nome do que não deveria ter relação alguma com um significante
separado”227.
De fato, há um traço distintivo central entre os humanos em estado de natureza e
estes que fazem parte da vida social, um traço que explica em larga medida como é
possível que a falta não seja o princípio regulador da experiência do desejo. Se o

226
ROUSSEAU, Jean-Jacques; Discours sur l’origine de l’inegalité, in: Oeuvres complètes, La Pléiade, p.
139
227
DERRIDA, Jacques; Da gramatologia, p. 291
humano pode ser “só, despreocupado (oisif) e sempre vizinho do perigo” sem que isto
seja fonte de ansiedade é porque no estado de natureza não se conhece a propriedade.
Não temos indivíduos vinculados a propriedades, nem indivíduos vinculados a
necessidade e ao desejo de se fazer reconhecer em suas propriedades. Os humanos são
sós, seus encontros são intermitentes, suas preocupações se vinculam a auto-
conservação em um espaço natural vasto no interior do qual eles estão em contínua
mobilidade. Mas para tanto eles podem contar com sua força e habilidade. Por isto, os
humanos aparecem inicialmente como nômades solitários.
Mas, sendo assim, poderíamos nos perguntar como se dá a saída do estado de
natureza, o que significa a instauração da vida social. Rousseau se serve de dois
fenômenos para descrever a emergência da vida social e da corrupção desta relação
imanente à natureza. O primeiro é aquilo que ele chama de “faculdade de
aperfeiçoamento”. Só os humanos teriam esta faculdade que nos empurra a um
aperfeiçoamento constante, enquanto os animais se desenvolveriam apenas até os
limites de seus próprios instintos. No entanto, se na aurora do iluminismo a
perfectibilidade era vista como a fonte da criação e felicidade humana, em Rousseau ela
é a causa de todos seus males:

Esta faculdade distintiva e quase ilimitada é a fonte de todos os males do


homem. É ela que o tira, à força do tempo, desta condição originária na qual
corriam dias tranquilos e inocentes. É ela que, fazendo eclodir com os séculos
suas luzes e erros, seus vícios e virtudes, o transforma ao fim e ao cabo em
tirano de si mesmo e da natureza228.

Ou seja, Rousseau fornece aqui alguns dos temas fundadores da crítica do


progresso, pois seu Discurso sobre a origem da desigualdade será uma “história da
civilização como progresso da negação do dado natural” 229. O primeiro destes temas
consiste em dizer que o desenvolvimento não era apenas uma forma de conhecimento
da natureza e de si, mas de uma dominação técnica de si e do mundo que nos distancia,
que marca com um véu, esta condição originária que seria o espaço de afirmação da
emergência do sentido. O advento da vida social é algo como uma queda:

Porque o homem é perfectível, não cessou de acrescentar suas invenções aos


dons da natureza. E desde então a história universal, embaraçada pelo peso
continuamente crescente de nossos artifícios e de nosso orgulho, adquire o
andamento de uma queda acelerada na corrupção: abrimos os olhos com horror
para um mundo de máscaras e de ilusões mortais, e nada assegura ao observador
(ou ao acusador) de que ele próprio seja poupado pela doença universal230.

Isto faz da história da técnica a história do afastamento do sentido, uma história da


alienação no sentido mais forte do termo, a saber, tomar-se por um outro, estar preso ao
olhar de um outro.
Neste ponto, lembremos de outro fenômeno responsável pela saída do estado de
natureza, um fenômeno ligado ao exercício da faculdade de perfectibilidade, a saber, a
emergência do trabalho cooperativo. Em Rousseau, o trabalho cooperativo não é fonte
de emancipação, mas uma das principais fontes de alienação. Pois o trabalho

228
Idem, p. 142
229
STAROBINSKI, Jean: Rousseau: a transparência e o obstáculo, p. 36
230
Idem, p. 23
cooperativo é expressão de relações de dependência e com tais relações de dependência
aparecem a necessidade do artifício, da conquista do olhar e da estima do outro:

Enquanto os homens se aplicavam apenas a obras que podiam ser realizadas por
um e a artes que não necessitavam do concurso de várias mãos eles viveram
livres, saudáveis, bons e felizes tanto quanto podia ser por sua própria natureza e
continuaram a gozar entre eles das doçuras de um comércio independente. Mas
desde que um homem teve necessidade do socorro de outro, desde que se
percebeu que seria útil a um ter provisões para dois, a igualdade desapareceu, a
propriedade foi introduzida, o trabalho adveio necessário e as vastas florestas se
transformaram em campos rudes que deveriam ser arados com o suor dos
homens e nos quais vimos rapidamente a miséria e a escravidão germinar e
crescer como musgos231.

A indústria e o trabalho impõem um regime de atividade baseado na cooperação


dos esforços, na previsão e calculo, no acúmulo tendo em vista a luta prévia contra
situações desfavoráveis no futuro. Desta forma, o trabalho quebra a imanência à
natureza, impondo uma atividade que não é mais atividade imediata. Por outro lado, o
estabelecimento de relações de trabalho e produção se funda em tendências imanentes
de exploração e dominação. Pois, com as relações de produção, não estamos apenas a
falar do advento da propriedade, mas principalmente do reconhecimento da importância
da sanção do outro, a necessidade de reconhecimento do outro como condição para a
justificação de minha atividade. Isto é indissociável, para Rousseau, do avento de um
ser-para-outro que implica perda de si. Assim, Rousseau espera articular de forma
profunda problema moral e problema econômico.
Em suma, o espaço de reconhecimento social é sempre o espaço da perda de si já
que o advento da vida social é a alienação da potência normativa da origem, isto devido
à indissociabilidade entre vida social e propriedade. A vida social implica dependência e
esta dependência leva os homens a garantir a estima dos outros, a cultivar a aparência e
a sempre preocupar-se com ela. Eles se tornam então: “enganadores e artificiais”232 ao
submeterem seus desejos a demandas de reconhecimento. Abre-se assim o espaço à
imitação, a uma potência mimética que é também a perda de si.

Música e reconhecimento

Mas compreendamos o que é possível fazer após a saída do estado de natureza:

Este que ousa empreender a instituição de um povo deve se sentir em estado de


mudar, por assim dizer, a natureza humana; de transformar cada individuo que,
por si mesmo, é um todo perfeito e solitário em parte de um todo maior do qual
os indivíduos receberão de certa maneira sua vida e seu ser; de substituir uma
existência física e independente que todos nós recebemos da natureza por uma
existência parcial e moral233.

O que acontece com esta natureza humana deixada para trás? Ela ainda terá
alguma força de implicar o campo de experiência humana? Pois podemos nos perguntar
se esta transformação produzida pelo legislador, se esta mudança da própria natureza

231
ROUSSEAU, Idem, p. 171
232
Idem, p.173
233
Idem, p. 381
humana não seria sem produzir uma certa nostalgia social. A vida política parece não
pode dar conta desta nostalgia. No máximo, ela transmuta a experiência de auto-
pertencimento própria ao estado de natureza em desejo de igualdade (forma única de
impedir a servidão) e de autonomia. Por isto, em algum nível, ela ainda fala aos
humanos como indivíduos marcados pela experiência do individualidade possessivo
No entanto, há um ponto no qual a vida política se deixa aproximar da voz da
natureza, no qual esta nostalgia se transmuta em proximidade a uma linguagem de pura
presença. A política procura uma linguagem da pura presença, ela procura dar à voz sua
força de direito. Tal linguagem, Rousseau a encontra na música e no uso da música
como paradigma para a reinstauração da ordem social.
A fim de compreender a configuração do paradigma musical em Rousseau,
lembremo-nos do sentido de uma das querelas mais importantes das quais ele
participou, a saber, a chamada querela dos bufões. Grosso modo, trata-se de uma
contraposição entre, de um lado, uma noção de modernidade musical vinculada ao
primado da harmonia e das regras estritas de uma progressão harmônica derivada da
teoria fisicalista do som, harmonia que abria as portas para uma polifonia
contrapontística controlada pelo centro harmônico e para uma definição de estruturação
da forma musical absolutamente autônoma em relação a tudo o que seria extra-musical
(Jean-Phillipe Rameau); de outro, uma reação que insistia no primado da melodia e da
simplicidade monofônica inspirada no canto. Posição rousseauista que Dahlhaus
caracterizou bem: “Um sentimentalismo que ama ver-se estimulado pela música, um
racionalismo que quer programas, uma pintura musical na música instrumental e a
nostalgia de uma antiguidade que opõe, à polifonia moderna, confusa e savant, uma
simplicidade tocante da monofonia grega – eis os compostos da estética musical de
Rousseau”234.
Para Rousseau, tratava-se de, através da defesa da centralidade da melodia,
sustentar a estrutura mimética da racionalidade musical. Mimetismo que não se refere
aos modos de imitação no interior da vida social, mas no vínculo exterior entre
sociedade e natureza. Vínculo que se faz sentir na relação entre música e a expressão
natural da linguagem com suas entonações e acentos. Isto o permitia vincular a música à
uma pedagogia da arte capaz de servir de veículo de formação moral por recuperar o
vínculo entre natureza e cultura. Lembremos do que diz Rousseau :

Quando pensamos que, de todos os povos da terra, todos o que têm uma música
e um canto, os europeus são os únicos que têm uma harmonia, acordes, achando
esta mistura agradável ; quando pensamos que o modo durou tantos séculos sem
que, em todas as nações que cultivaram as belas-artes, nenhuma tenha conhecido
esta harmonia, que nenhum animal ou pássaro, nenhum ser na natureza produziu
outro acorde que o uníssono ou outra musical que a melodia ; que as línguas
orientais, tão sonoras, tão musicais, exercidas com tanta arte, nunca guiaram
estes povos voluptosos e apaixonados em direção à nossa harmonia ; que sem
ela suas músicas tiveram efeitos tão prodigiosos ; que com ela a nossa tenha
efeitos tão fracos ; que, enfím, estava reservado aos povos do norte, cujos órgãos
duros e grosseiros são mais tocados pelos ruídos e explosões de vozes do que
pela doçura dos acentos e melodias das inflexões, fazerem esta grande
descoberta e defini-la como princípio a todas regras da arte ; quando, digo eu,
levamos tudo isto em consideração, é muito difícil não desconfiar que toda nossa
harmonia é uma invenção gótica e bárbara a respeito da qual nunca seríamos

234
DAHLHAUS, L´idée de la musique absolue, p. 49
avisados se fôssemos mais sensíveis as verdadeiras belezas da arte e à música
realmente natural 235.

A discussão de Rousseau vincula a expressão musical à “voz da natureza” que se


expressa sem afetação através da objetividade própria à entonação e aos acentos da fala
comum. O que explica porque Rousseau insistirá no canto (raiz de toda fala) como
fundamento da expressão musical. Esta expressão musical próxima da fala instaura, por
sua vez, um regime de presença garantido pela partilha de um fundamento ancorado no
seio da natureza, pensada aqui como polo positivo doador de sentido, como
transparência e proximidade. Proximidade que deve a todo momento saber livrar-se de
um “princípio corruptor, ligado ao espaçamento , a regularidade calculável e analógica
dos intervalos”236.
Tal proximidade, e este ponto é decisivo, teria a força de instaurar um espaço
político comum baseado na autenticidade dos costumes e na limitação da disseminação
da representação devido ao ideal estético de clareza. Esse naturalismo musical, que
submete a música ao “prazer moral da imitação” 237 enquanto sonha com o advento de
uma comunidade política por vir (ou seja, há uma submissão completa entre música e
moral em Rousseau, tal como houvera antes em Platão), faz da expressão do compositor
o uso consciente de efeitos objetivamente determinados. Ou seja, faz da expressão do
compositor a mera imitação dos afetos objetivamente dispostos. Ou seja, a imitação é,
em Rousseau, ao mesmo tempo, a vida e a morte da arte.
Notemos como a crítica da alienação em Rousseau serve-se da música como
horizonte de reconstrução da capacidade instauradora da linguagem e recuperação de
dimensões sociais de autenticidade. Rousseau é consciente de que a alienação social é
indissociável da degradação da linguagem no espaço político. Lembremos de como
termina seu Ensaio sobre a origem das línguas: “toda língua com a qual não nos
fazemos escutar pelo povo em assembleia é uma língua servil; é impossível que o povo
seja livre e fale uma língua destas”238. Uma língua que o povo em assembleia não escuta
é aquela desprovida de eloquência, afastada da persuasão por separar o povo, por ser
apenas uma fala em nome próprio, reduzida a sua condição instrumental de descrição de
interesses. “A primeira máxima da política moderna”, dirá Rousseau, é: “os sujeitos
devem permanecer separados” e é a língua degradada à sua dimensão instrumental e
comunicacional que os separa. Lembremos do que diz Rousseau: “as necessidades
ditaram os primeiros gestos e as paixões arrancaram as primeiras palavras”239. Ou seja, a
fala que expressa apenas sistemas de necessidades é uma fala muda, mais próxima da
pura gestualidade. Ela separa os humanos pois os coloca em relação de concorrência e
de defesa. Mas:

a força da linguagem não reside no poder de fornecer imagens das coisas, mas
no poder de pôr a alma em movimento, de colocá-la numa disposição que torne
visível a ordem da natureza. A linguagem imita a natureza quando colabora com
a ordem, quando restitui, no interior da humanidade, a ordem que seu
nascimento tinha contribuído para apagar”240.

235
ROUSSEAU, Dictionnaire de musique
236
DERRIDA, Jacques; Da gramatologia, p. 304
237
ROUSSEAU, Jean-Jacques; Dictionnaire de musique, Paris: Actes Sud, 2007, p. 208
238
Idem, Essai sur l’origine des langues,
239
ROUSEEAU; Idem, p. 380
240
PRADO JR., Bento; A retórica de Rousseau, p. 161
As paixões, por sua vez, são implicativas. Elas nunca dizem respeito apenas a um, elas
mudam o outro quando enunciadas. Por isto, a linguagem das paixões é aquela que
realmente produz laços. A língua do povo em assembleia é aquela mais próxima do
canto, da poesia e da música. De certa forma, para Rousseau, não há assembleia sem
música e poesia. Pois o estar em assembleia não é apenas o ato de estar em um mesmo
espaço e de procurar um consenso entre interesses distintos. Estar em assembleia é o ato
de falar outra língua, estranha à língua dos interesses e das estratégias. Por isto, as
verdadeiras assembleias são algo raro.
Faz parte do poder não exatamente mobilizar por paixões, e sempre será o mais
profundo dos enganos imaginar que o poder mobiliza uma linguagem das paixões. Na
verdade, ele sempre irá procurar esvaziar a língua de sua força de expressão, fazer dela
ou o mero espaço de descrição desafetada ou o mero espaço de afirmação de minhas
propriedades, daquilo que me separa de outros sujeitos. Por isto, a primeira revolta
sempre será uma revolta da linguagem contra sua degradação, uma procura da
linguagem em parar um processo descrito por Rousseau da seguinte forma:

A medida que as necessidades crescem, que os negócios se confundem, que as


luzem se estendem a linguagem muda de caráter, ela se torna mais ajustada e
menos apaixonada; ela substitui os sentimentos por ideias, ela não fala mais ao
coração, mas à razão. Por isto, o acento se apaga, a articulação se estende, a
língua se torna mais exata, mais clara, mas mais surda e fria241.

A recuperação da força expressiva da linguagem é assim a condição para a


política pois ela permite a emergência da proximidade e o fim da separação. Neste
sentido, podemos dizer que a forma fundamental de sujeição é a eliminação da força
expressiva da linguagem (o que nos coloca uma questão importante e que não será de
fácil resposta, a saber, o que significa “expressão” neste contexto). Pois o progresso
natural das “línguas letradas” consiste em perder a força a fim de ganhar clareza, o que
só pode significar para Rousseau uma forma de sujeição.

241
ROUSSEAU; Idem, p. 384
Falta a aula 10 que finalizava a leitura de Da gramatologia
Curso Derrida
Aula 12

Em uma entrevista de 1972, Derrida afirma: “nada do que tento seria possível sem a
abertura das questões heideggerianas”242. Tal afirmação não poderia ser diferente, já que
sabemos como o projeto mesmo de desconstrução da metafísica encontra suas raízes em
Heidegger. No parágrafo 6 de Ser e tempo, Heidegger fala da necessidade de uma
destruição (Destruktion) da ontologia nos seguintes termos:

Deve-se obter para a própria questão do ser a transparência de sua própria


história, então é preciso dar fluidez à tradição empedernida e remover os
encobrimentos que dela resultaram. Nós entendemos esta tarefa como a
destruição do conteúdo transmitido pela antiga ontologia, tarefa a ser levada a
cabo pelo fio condutor da questão do ser até chegar às experiências originárias
em que se obtiveram as primeiras e, a partir de então, diretoras determinações do
ser243.

Ou seja, a possibilidade do desvelamento da questão do ser passa por remover os


encobrimentos produzidos por uma tradição na qual encontramos a história da
ontologia. Tal tradição deve ser destruída para que experiências originárias possa ser
recuperadas. Esta destruição não se comporta de maneira simplesmente negativa em
relação ao passado, mas visa o “hoje”, o modo predominante de definir a história da
ontologia. Isto significa que esta destruição é forma de operar uma genealogia que possa
revelar o que tal história comporta de obscuro. Uma obscuridade que viria do fato de tal
história ser fundada na produção de conceitos que marcam com o selo do esquecimento
o “sentido do ser”. Sentido este que exigiria a recuperação de uma historicidade própria
ao ser.
A este respeito, lembremos como Heidegger afirma: “O ente é em seu ser
apreendido como ‘presença’, ou seja, é entendido em referência a um modo temporal
determinado, o ‘presente’”244. Se o ente apreende-se enquanto presença, o ser exige um
modo temporal que seja de uma ordem distinta daquilo que se concebe como presença
para um sujeito. O que demonstra como a destruição a qual alude Heidegger passa
principalmente pelo conceito de tempo. Trata-se de se perguntar pela mutação pela qual
passou o conceito de tempo para que ele acabasse por produzir o encobrimento da
temporalidade originária do ser. Isto exige o reconhecimento de uma diferença
ontológica fundamental entre a temporalidade dos entes, própria ao presente, e este que
seria própria do ser.
A sua maneira, Derrida tentará mostrar como esta diferença ontológica ainda
está aprisionada no interior da metafísica. Daí a tarefa de: “abrir-se a uma diferança que
não seja ainda determinada, na língua do ocidente, como diferença entre o ser e o
ente”245. Isto implica afirmar que a diferença entre ser e ente ainda não é diferença que
animaria a própria procura de Heidegger. O que exige que a desconstrução de Derrida

242
DERRIDA, Jacques; Positions, p. 18
243
HEIDEGGER, Martin; Ser e Tempo, p. 87
244
Idem, p. 95
245
DERRIDA, idem, p. 19
volte-se, de forma privilegiada, contra o conceito heideggeriano de ser. É esta crítica,
como vemos uma crítica central ao projeto da desconstrução, que encontraremos em um
texto como Os fins do homem.
Mas antes de começarmos a discutir nosso texto, tentemos sistematizar aquilo
que Derrida compreende como a estratégia geral da desconstrução:

Deve-se pois avançar um duplo gesto, segundo uma unidade ao mesmo tempo
sistemática e como que separada dela mesma, uma escritura desdobrada, ou seja,
ela mesmo multiplicada, o que chamei em A dupla sessão de uma ‘dupla
ciência’: de uma parte, atravessar uma fase de inversão (renversement). Insisto
muito e a todo momento na necessidade desta fase de inversão que se procura
rapidamente desqualificar. Reconhecer esta necessidade, é reconhecer que, em
uma oposição filosófica clássica, não estamos nos referindo à coexistência
pacífica de um face a face, mas a uma hierarquia violenta. Um dos dois termos
comanda outro (axiologicamente, logicamente etc.), ocupa o lugar acima.
Desconstruir a oposição é inicialmente, em um dado momento, inverter a
hierarquia. Negligenciar esta fase de inversão é esquecer a estrutura conflitual e
subordinadora da oposição246.

Não se trata pois de simplesmente procurar suspender a estrutura binária que


constitui a história da ontologia (inteligível e sensível, forma e matéria, um e múltiplo,
essência e aparência, movimento e repouso, etc.). Tal oposição é sempre uma
hierarquia, uma submissão e não haverá nenhuma possibilidade de transformação de
nossas formas de pensar sem que, antes, tal hierarquia seja quebrada. No entanto, não se
quebra uma hierarquia suspendendo-a por procuração. Uma hierarquia é quebrada
quando ela é inicialmente invertida, em um processo que em muito lembra a tópica
nietzscheana da transvaloração de valores. A inversão da hierarquia quebra a aderência
natural de certas posições ao poder, mostrando como os lugares de poder não estão
naturalmente vinculados a seus portadores, expondo assim a violência que sustentou a
perenidade de tal configuração. No entanto, Derrida reconhece:

Dito isto – e por outro lado – permanecer nesta fase é ainda operar sobre o
terreno e no interior do sistema desconstruído. Faz-se necessário também,
através desta escritura dupla, estratificada, defasada e defasante, marcar a
distância entre a inversão que coloca a baixo o que estava no alto,
desconstruindo a genealogia sublimante ou idealisante, e a emergência
disruptiva de um novo ‘conceito’, conceito do que não se deixa mais, nunca se
deixou, compreender no regime anterior247.

Os procedimentos de inversão não são feitos tendo em vista a preservação dos


lugares. Eles são uma estratégia de decomposição. Assim, as relações subalternas são
tematizadas não para garantir lugares de poder àquilo que até então fora excluído,
recalcado e reprimido. Na verdade, elas são recompostas para permitir a emergência do
que nunca se deixou compreender no regime anterior de determinação conceitual. Mas
esta emergência não implica alguma forma de superação dialética da oposição binária
em direção a um terceiro termo.
Derrida lembrará, por exemplo, que a noção de pharmakon não é nem o remédio
nem o veneno, nem o bem nem o mal; o suplemento não é nem um mais nem um
246
DERRIDA, Jacques; idem, p. 57
247
Idem, p. 57
menos, nem o fora nem o complemento de um dentro, nem o acidente nem a essência; o
grama não é nem o significante nem o significado, nem um signo nem uma coisa, nem
uma presença nem uma ausência. Esses são conceitos produzidos pela desconstrução
que visam fazer emergir um horizonte pós-metafísico.

Crítica da metafísica e antropologia

Mas esta emergência de um horizonte pós-metafísico exige retomar a crítica daquilo que
seria o fundamento da metafísica. Neste caso, Derrida insistirá na seguinte equação:
toda metafísica encontra seu fundamento em uma antropologia. Ela sempre será
solidária de um modo de ser do humano, de uma imagem atual do humano. Há uma
espécie de sono antropológico a marcar a metafísica ocidental. Um sono do qual
devemos acordar. Gostaria de dar alguns passos atrás a fim de discutir de maneira mais
adequada este ponto.
Comecemos por lembrar mais uma vez como, da gramatologia, Derrida diz que
ela “ não deve ser uma das ciências do homem, porque coloca de início, como sua
questão própria, a questão do nome do homem” (Derrida, 2008, p.104). Esta frase é
altamente significativa, pois anuncia a « questão própria » da gramatologia, aquilo que
determina o seu campo. Se uma reflexão do tipo gramatológico deve necessariamente
colocar em questão o nome do homem, é porque, até agora, todo esforço para conceber
as condições de possibilidade de uma objetividade em geral e de uma ciência capaz de
satisfazer certas normas de validade, encontrou necessariamente seu fundamento em
uma certa antropologia.
Sabemos que a Gramatologia se esforça em mostrar que as noções
estruturalistas de signo e significante (entendido como imagem acústica) são
profundamente ligadas a uma “época histórico-metafísica” que se trata de ultrapassar.
De fato, Derrida acredita que onde quer que seja feito o uso da noção de signo,
encontraremos sempre um elo fundamental com a metafísica. Podemos dizer que para
Derrida qualquer metafísica é uma metafísica do signo, sendo sempre uma redução da
linguagem à dimensão do signo, o que nos leva a afirmar que há uma antropologia
subjacente ao conceito de signo. Mas se é preciso responder brevemente à complexa
questão acerca do que Derrida entende por “signo”, talvez possamos simplesmente
antecipar: o signo é um modo de presença das coisas. Donde a tese: “A metafísica
ocidental, como limitação do sentido do ser no campo da presença, produz-se como a
dominação de uma forma linguística [ligada ao império do signo] ” (idem, p.28).
É conhecida a definição clássica que vê, no signo, aquilo que representa alguma
coisa para alguém. Tudo se passa como se Derrida nos lembrasse de que esta re-
presentação é, na verdade, a constituição do regime geral de visibilidade dos objetos, a
constituição de uma forma “de presença em geral” (Derrida, 1994, p.64) a partir das
idealidades responsáveis pela produção do sentido. Esta forma geral é, por outro lado, a
maneira através da qual “alguém” pode aparecer como fundamento para a determinação
de “alguma coisa”. Isso nos explicaria a razão pela qual a reflexão sobre o signo
privilegia sempre a linguagem falada. Seja no estruturalismo, seja na fenomenologia, o
signo é fundamentalmente o signo falado. Pois falar das coisas é necessariamente impor
um domínio técnico sobre o objeto do qual eu falo. Falar das coisas significa colocá-las
diante de mim, pô-las em uma espécie de espaço virtual do qual eu sou o fundamento.
Neste sentido, a objetividade do objeto seria aquilo que, no objeto, submete-se a meu
discurso, como se o meu discurso (que não é apenas o discurso de uma consciência
empírica, mas o de um sujeito transcendental) fosse o meio de instituição da
objetividade. Pois o discurso tira as coisas do aqui e agora para colocá-las em um
espaço ideal de pura presença, que deixa de possuir a forma da mundaneidade. Neste
espaço, eu descubro que “minhas palavras são ‘vivas’, porque parece que elas não me
deixam: não caem fora de mim, para fora de minha respiração, em um afastamento
visível; não deixam de me pertencer, de estar à minha disposição, ‘sem acessório’”
(idem, p.86) .
Neste sentido, o “nome do homem” que a gramatologia quer colocar em questão
designa este “alguém” capaz de fundar um modo de presença e de constituição da
objetividade. Além dos atributos que normalmente determinam a humanidade do
homem (como autonomia, autenticidade, unidade, etc.), o “homem” que fala essa
linguagem dos signos, é, necessariamente, o nome de um modo de ser, o nome de um
regime que constitui a presença dos objetos e da auto-afecção. Esse homem pode
procurar incessantemente seu fim, ele pode incessantemente tentar superar sua finitude
ou fazer-se desaparecer, mas seus movimentos serão sempre dependentes desta
linguagem da qual ele é o suporte. Assim, para Derrida, nós não acordaríamos de um
certo “sono antropológico” que assombrou o pensamento francês dos anos sessenta, a
não ser com a condição de que se aprenda a criticar a linguagem que protege esse sono
contra a aurora de um para além do humanismo.
Podemos identificar aqui o que constitui a peculiaridade de Derrida. Por um
lado, parece que Derrida apenas retoma uma temática corriqueira ao pensamento francês
dos anos sessenta. Considerem-se, por exemplo, três livros publicados no decorrer dos
anos de 1966-1967: As palavras e as coisas de Michel Foucault, Escritos de Jacques
Lacan e a Gramatologia. É inegável que a problemática comum concernente às ciências
do homem parece ter êxito, ainda que essa problemática conduza a programas muito
diferentes. Sendo assim Lacan dirá “não há ciência do homem, porque o homem da
ciência não existe, mas apenas seu sujeito” (Lacan, 1998, p.873). Donde a ideia que “o
objeto da psicanálise não é o homem; é aquilo que lhe falta” (Lacan, 2003, p.218).
Em um artigo que não passou despercebido, Georges Canguilhem quanto a ele 
afirmava: « É inevitável que, ao se propor como teoria geral da conduta, a psicologia
tome para si alguma ideia de homem. Deve-se então permitir à filosofia perguntar à
psicologia de onde ela tira esta ideia e se não seria, no fundo, de alguma filosofia »248.
Tudo se passa como se Lacan tivesse entendido que esta ideia de homem no coração da
psicologia fosse o núcleo de uma normatividade fundadora de uma “época histórico-
metafísica”, para falar como Derrida. Época nomeada por Lacan “era história do Eu” 249,
a qual a psicanálise desejaria superar.
De sua parte, Foucault se perguntava se não seria necessário “renunciar a pensar
o homem, ou, para ser mais rigoroso, pensar mais de perto este desaparecimento do
homem — e o solo de possibilidade de todas as ciências do homem — na sua correlação
com nossa preocupação com a linguagem?” (Foucault, 2000, p. 535). Uma renúncia que
para o Foucault arqueólogo das ciências humanas já estaria em marcha na psicanálise e
na etnologia. Pois a psicanálise e a etnologia eram os modelos de uma episteme por vir
que já se anunciava, uma episteme liberada da figura normativa do homem, uma
episteme das ciências do inconsciente “não porque atingem no homem o que está por
sob a sua consciência, mas porque se dirigem ao que, fora do homem, permite que se
saiba, com um saber positivo, o que se dá ou escapa à sua consciência” (idem, p. 524-
525). O inconsciente proveria assim o sistema estrutural das regras, normas e leis que
determinam a “constituição originária da objetividade”.

248
Canguilhem, Georges; Etudes d’histoire et de philosophie des sciences concernant les vivants et la vie,
Paris: Vrin, 2002
249
Lacan, 1966, p. 283
Ora, para Derrida, falta ao Lacan dos Escritos e ao Foucault das Palavras e as
coisas uma compreensão mais clara do regime de linguagem pressuposto pelo
inconsciente freudiano. Pode-se dizer que Derrida aceita a ideia lacaniana segundo a
qual o inconsciente é estruturado como linguagem. Mas ele quer mostrar de que
maneira, em Freud, esta linguagem que estrutura o inconsciente não se organiza
segundo o modelo estruturalista, isto é, segundo o primado do significante, do discurso
e da voz. Ao contrário, Freud nos obrigaria a desenvolver um conceito de linguagem
próximo do que Derrida tenta pensar na Gramatologia: um conceito de linguagem
fundado na noção de “escritura psíquica”. Escritura presente nos sonhos e na memória,
capaz de “tornar enigmático o que se julga conhecer pelo nome de escritura” (Derrida,
2009, p.293); escritura capaz de sustentar o fundamento crítico do regime de presença e
de auto-afecção arraigado em nossa época histórico-metafísica, fundamento crítico disto
que nos aparece como procedimento de “constituição originária da objetividade”.
Contudo, a fim de melhor compreender a aposta de Derrida, é antes necessário
retornar às intenções daqueles que, numerosos nos anos 60, viam no nome do homem o
resultado mais visível da metafísica oculta no coração das ciências humanas. Isso
permitirá que a peculiaridade de Derrida seja melhor compreendida.

Franceses, ainda um esforço se quiseres sair do psicologismo

Duas problemáticas mesclam-se intimamente no interior do debate francês da


época: a do transcendental e a do inconsciente. O pensamento francês dos anos sessenta
resulta, na verdade, de uma convergência de programas que têm em comum a vontade
de liberar a reflexão transcendental dos limites de uma filosofia da consciência através
do questionamento sobre o nome do homem. Isso exigiria, por um lado, a denúncia do
psicologismo e do antropologismo presentes nos projetos classicamente transcendentais
ainda dependentes do âmbito das filosofias da consciência. A reflexão transcendental
teria sido contaminada por uma “confusão entre o empírico e o transcendental” onde “a
análise pré-crítica do que é o homem em sua essência converte-se na analítica de tudo o
que pode dar-se em geral à experiência do homem” (Foucault, 2000, p. 472).
A crítica dessa confusão pode surgir, em Derrida, como uma necessidade de
apagamento. Assim, ele escreve: “ é preciso talvez pensar que o que descrevemos aqui
como trabalho da escritura elimina a diferença transcendental entre origem do mundo e
estar-no-mundo. Elimina-a produzindo-a” (Derrida, 2009, p.312). Compreendemos que
o trabalho da escritura apaga a diferença transcendental na medida em que expõe a
confusão genética entre o ôntico e o ontológico. A escritura demonstra os pressupostos
ônticos que determinam a forma da ontologia.
Por outro lado, o esgotamento das filosofias da consciência conduz a uma
reflexão sistemática acerca do inconsciente. Esse esgotamento dar-se-ia, na verdade,
devido à sua incapacidade de levar em conta o caráter fundador de uma dimensão
propriamente inconsciente capaz de determinar a forma do pensamento ( há toda uma
discussão à propósito do que devemos compreender aqui por “determinar”).
Este contexto explica por que é encontrada, na antessala do projeto
gramatológico, uma renovação da interrogação transcendental através do recurso,
dentre outros, a uma reconstrução filosófica do conceito freudiano de inconsciente.
Alguns leitores de Derrida talvez se surpreendam com esta afirmação. Eles se
recordarão da intenção de Derrida de “esgotar seriamente a problemática ontológica e
transcendental, atravessar paciente e rigorosamente a questão do sentido do ser, do ser
do ente e da origem transcendental do mundo” (Derrida, 2008, p.61). Mas não se pode
esquecer que esse esgotamento foi realizado em vista da abertura para o que “comanda
toda objetividade do objeto e toda relação de saber” (idem, p. 69), isto é, para a
“formação da forma” (idem, p. 77). Ocorre à Derrida falar da meditação da escritura
como uma “ metarracionalidade” ou “metacientificidade” (idem, p. 109). Sendo assim,
tudo se passa como se o esgotamento de um determinado regime de questionamento
transcendental pudesse e devesse abrir a via em direção a uma região capaz de indicar,
ao mesmo tempo, um fundamento para a crítica da razão e de regimes de saber, e de
fornecer um método de constituição dos objetos da experiência que deixam de
depender das estruturas formais de síntese, unidade e identidade, inicialmente acessíveis
através da auto-afecção da consciência de si. Região onde podemos encontrar “um
campo transcendental autônomo do qual todo sujeito atual pode abster-se” ( Derrida,
1999, p.84). Região em que podemos dizer:

“Transcendental seria a Diferença (...) Transcendental seria a


certeza pura de um Pensamento que, não podendo se colocar em
direção a um Telos que se anuncia já avançando sobre a Origem
que indefinidamente se reserva, não aprendeu jamais que ele
seria sempre porvir ” (idem, p.171)

Estamos, certamente, bastante longe da clássica definição do transcendental


como o conjunto de determinações formais das condições de possibilidade de toda
objetividade possível, isto é, das condições que permitem estabelecer o regime de
validade de toda representação do objeto por uma consciência ideal. Se o transcendental
aparece como a “Diferença”, se ele aparece como um campo do qual todo sujeito atual
pode abster-se, é porque ele não mais permite a categorização e a constituição dos
objetos da experiência a partir das estruturas formais presentes na auto-afecção da
consciência de si. A auto-afecção da consciência de si não mais provê o princípio que
permite a ligação (Verbindung) do diverso da intuição sensível nas representações do
objeto. Este transcendental que podemos derivar do projeto da gramatologia poderia
apenas abrir um regime de disseminação sem retorno ou, se quisermos nos servir de um
termo de Derrida, um regime “de inquietude transcendental” (Derrida, 2003, p. 13) que
fragiliza a identidade dos sujeitos e dos objetos.
Dessa forma, Derrida pode defender que a vida psíquica é instaurada pela
constituição de uma cena além de qualquer divisão entre sujeito ( pois “o conceito de
sujeito (consciente ou inconsciente) remete necessariamente para o de substância – e
portanto de presença” (Derrida, 2009, p. 336)) e objeto, entre proximidade e distância,
entre significado e significante. Uma cena “que não se deixa ler a partir de nenhum
código” (idem, p. 307) pois ela é a manifestação absoluta da irredutibilidade de uma
diferença que não mais poderá ser controlada pelos métodos de codificação.

Os fins do homem

Voltemos então nossos olhos a Os fins do homem. Mas nos voltemos lembrando desta
afirmação de Derrida: “Tenho muitas vezes o sentimento de que a problemática
heideggeriana é a defesa a mais ‘profunda’ e mais ‘potente’ do que tento colocar em
questão sob o título de pensamento da presença”250.
O texto de Derrida começa através da constatação de que o humanismo tornara-
se, logo após o pós-guerra, um eixo dominante do pensamento francês. Humanismo este
que, sob a figura principal de Sartre, insistia que a realidade humana fornecia uma certa
unidade àquilo que seria o fundamento do pensar. No entanto: “a história do conceito de
250
DERRIDA, Jacques; Positions, p. 75
homem nunca é interrogada. Tudo se passa como se o signo ’homem’ não tivesse
qualquer origem, qualquer limite histórico, cultural, linguístico. Nem mesmo qualquer
limite metafísico251.
Derrida insiste que esta vaga humanista se apoiava na leitura antropológica, e
equivocada, de três autores: Heidegger, Hegel e Husserl. No entanto, a desconstrução da
metafísica proposta por Heidegger visava, de forma explícita, o humanismo:

Todo humanismo se funda sobre uma metafísica ou torna-se ele próprio o


fundamento dela. Toda determinação da essência do homem que já pressupõe,
quer ela o saiba ou não, a interpretação do ente sem colocar a questão relativa à
verdade do Ser é metafísica. É por isso que, se se considera a maneira como é
determinada a essência do homem, o próprio de toda a metafísica revela-se no
fato de ela ser ‘humanista’. De igual modo, todo o humanismo permanece
metafísico252.

Esta é uma forma de afirmar que não pode haver metafísica sem uma
antropologia de base, que a metafísica é na verdade a realização de uma forma de vida
cujas coordenadas encontram-se marcadas no interior de uma antropologia. Neste
sentido, é evidente que Derrida assume explicitamente o postulado de Heidegger. Seu
projeto de desconstrução irá seguir as coordenadas deste modelo de crítica da metafísica
consolidadas por Heidegger. Mas Derrida insistirá na tarefa de pensar o fim do homem
para além da maneira hegeliana de superar a finitude do homem em uma dialética do
reconhecimento com sua “teleologia na primeira pessoa do plural”253.
Isto implica criticar o próprio Heidegger por ele ter sido pretensamente incapaz
de desvincular o pensamento do próprio do homem da questão da verdade do ser. Ou
seja, trata-se de afirmar que uma certa antropologia insidiosa de fato permanece em
Heidegger e que a desconstrução deve ser capaz de nos levar para fora dela, como
condição necessária para a efetivação de um pensamento da diferença que não se reduza
à diferença ontológica. Derrida afirmará que o pensamento de Heidegger será guiado
pelos motivos do ser como presença e da proximidade do ser à essência do homem. Ou
seja, o sono antropológico também embalaria a filosofia do Dasein. Não é apenas o
ente que é constituído à imagem do homem. Também o ser em sua proximidade, em seu
acesso ainda segue as coordenadas de uma antropologia que não tem coragem de dizer
seu nome.
O que é ameaçado na extensão da metafísica e da técnica, diz Heidegger, é a
essência do homem. Ou seja, para além do humanismo e de sua associação à metafísica,
é a essência do homem que acaba sendo marcada pelo selo do esquecimento. Trata-se
de reinstaurar o homem em sua essência. Por isto, Heidegger poderá afirmar:

Assim a humanitas permanece no coração deste pensamento, porque o


humanismo consiste nisto: refletir e velar (Sinnen und Sorgen) para que o
homem seja humano e não inumano (unmenschlich), isto é, fora da sua
essência254.

Esta é uma maneira de dizer, ao menos segundo Derrida, que se pensamos


contra o humanismo, é porque o humanismo não situa suficientemente alto a humanitas

251
DERRIDA, Jacques; Margens da filosofia, p. 155
252
HEIDEGGER, Martin; Carta sobre o humanismo, p. 47
253
DERRIDA, Jacques; idem, p. 161
254
HEIDEGGER, Martin; Carta sobre o humanismo
do homem. Pois a autenticidade do homem é o relacionar-se com o sentido do ser. Por
isto, Derrida pode jogar com o duplo sentido da palavra “fim” e dizer que o fim do
homem era, na verdade, sua finalidade, sua real destinação enquanto homem.
Esta é uma maneira de insistir na solidariedade entre a crítica heideggeriana e
aquilo que ela procura criticar. Sabemos que, contra a temporalidade decaída que marca
a metafísica, Heidegger acredita poder mobilizar a temporalidade originária: “Ora,
oposição do original e do derivado não é ainda metafísica? A reclamação da arquia em
geral, quaisquer que sejam as precauções de que rodeemos este conceito, não é a
operação ‘essencial’ da metafísica?”255. Pois esta é a maneira que Derrida encontra de
afirmar que a delimitação heideggeriana consiste a elevar-se do presente a um
pensamento mais original do ser como presença.

255
DERRIDA, Jacques; Margens da filosofia, p. 101
Curso Derrida
Aula 13

Na aula de hoje, gostaria de discutir o texto “Força de Lei : o fundamento místico da


autoridade”. Editado em 1994, o texto representa certamente a versão mais bem acabada
das possibilidades abertas pelo pensamento derridiano no campo do político. A sua
maneira, ele dá início a uma longa digressão de Derrida referente a temas ligados à ética
e á política, como a hospitalidade, a memória, o perdão, a soberania, entre outros. A
estratégia derridiana para abordar tais temas só pode ser bem compreendida se levarmos
em conta a maneira que eles nascem das discussões presentes em “Força de Lei”. Por
isto, podemos dizer que este é um texto maior da experiência intelectual de Jacques
Derrida.
“Força de Lei” começa com uma questão maior: “Será que a desconstrução
assegura, permite, autoriza a possibilidade da justiça? Será que ela torna possível a
justiça ou um discurso consequente sobre a justiça e sobre as possibilidades da
justiça?”256. Para uma prática filosófica acusada várias vezes de abrir as portas para o
mais completo relativismo, perguntar-se sobre as possibilidades da justiça equivale a
discutir a solidez daquilo que deveria servir de fundamento para a ação racional no
campo da ética, da política e do direito. O que a desconstrução teria a dizer a respeito
disto que não pode ser desconstruído, a saber, a urgência da justiça?
Logo de início, Derrida coloca em circulação uma distinção que não poderia nos
deixar indiferentes, distinção que, como gostaria de mostrar, é uma das bases
fundamentais para pensarmos, de maneira adequada, o que afinal se insinua no interior
deste conceito nebuloso mas que não conseguimos abandonar, a saber, democracia. A
distinção de que falo é entre direito e justiça. Ela está claramente enunciada na
afirmação: “Quero logo reservar a possibilidade de uma justiça, ou de uma lei, que não
apenas exceda ou contradiga o direito, mas que talvez não tenha relação com o direito,
ou mantenha com ele uma relação tão estranha que pode tanto exigir o direito quanto
excluí-lo”257.
Vale a pena, antes de continuarmos o comentário do texto, meditarmos
demoradamente a respeito desta possibilidade, de antemão reservada por Derrida.
Possibilidade de uma justiça que se coloca em um ponto de excesso em relação ao
direito, um ponto de excesso tal que parece instaurar a justiça em uma indiferença
soberana para com o direito. Pois coloquemos a questão em seus termos corretos: pode
a justiça estar para além do Estado de direito? Colocar uma questão desta natureza (e é
ela afinal que Derrida coloca) nos leva a operações aparentemente arriscadas como
perguntar-se se a democracia pode não ter relações diretas e imediatas com o
ordenamento jurídico legal do Estado de direito. No fundo, ao colocar esta questão,
Derrida abre espaço para pensarmos uma frase maior de Claude Lefort, a saber: “Mas o
Estado democrático excede os limites tradicionalmente atribuídos ao Estado de direito.
Experimenta direitos que ainda não lhe estão incorporados, é o teatro de uma
contestação cujo objeto não se reduz à conservação de um pacto tacitamente
estabelecido mas que se forma a partir de focos que o poder não pode dominar
inteiramente”258.
Notem que quem diz estas frases não é um adepto da esquerda revolucionária
que estaria à procura do melhor momento para solapar as bases do Estado de direito.

256
DERRIDA, Jacques; Força de Lei, São Paulo, Martins Fontes, p. 4
257
Idem, p. 8
258
LEFORT, Claude; A invenção democrática, São paulo, Braziliense,
Estas são frases de Claude Lefort em A invenção democrática : um livro largamente
dedicado, ao contrario, à crítica das sociedades burocráticas no antigo Leste europeu.
Nessas frases, estão sintetizadas algumas reflexões maiores sobre a relação intrincada
entre justiça e direito. Relação que ultimamente tendemos a ignorar, como se tudo
aquilo que acontecesse à margem do Estado de direito fosse necessariamente ilegal e
profundamente animado de premissas anti-democráticas. Pois talvez tenhamos perdido a
capacidade de pensar qual o sentido desta democracia que “excede os limites
tradicionalmente atribuídos ao Estado de direito”. Um ponto de excesso que se mostrou,
ao longo da histórica contemporânea, como motor fundamental das dinâmicas do
político.
Talvez tenhamos perdido a capacidade de pensar a democracia como ponto de
excesso em relação ao Estado de direito porque acreditamos que tudo o que se coloca
fora do Estado de direito só poderia ter parte com o mais claro totalitarismo. Quem está
fora do Estado de direito parece se colocar em uma posição soberana, posição destes
que poderiam não se submeter à lei, modificar continuamente a lei ao bel prazer dos
casuísmos e circunstâncias. Vemos apenas dois candidatos a ocupar esta posição
soberana : o criminoso que viola abertamente a lei que garante a segurança do Estado de
direito ou (e aí as coisas começam a se complicar) o legislador que afirma que, em
situações de exceção, como em caso de guerra (mas sabemos hoje como é cada vez mais
complicado distinguir estado de guerra e estado de paz), de crise (mas sabemos hoje
como há sempre uma crise grave à espreita) certos dispositivos legais podem ser
suspensos.
No entanto, é possível que exista um terceiro caso de excesso em relação ao
Estado de direito, um excesso onde encontramos a justiça. Mas o que Derrida quer
exatamente dizer com esta exceção da justiça? O que ele quer dizer ao reconhecer que à
justiça cabe sempre uma força que é sua própria realização, uma violência claramente
presente na palavra alemã Gewalt que significa, ao mesmo tempo, “a violência e o
poder legìtimo, a autoridade justificada”? Em dado momento de seu texto, Derrida
reconhece que, em numerosos textos ditos desconstrucionistas, o recurso à palavra
“força” é frequente e decisivo. Vimos em alguns momentos Derrida insistir, por
exemplo, que a força produz o sentido. No entanto, Derrida precisa dizer se sentir
“pouco à vontade com a palavra “força”, mesmo que muitas vezes a julgasse
indispensável”259. Mas de onde vem este desconforto com uma palavra que muitas vezes
aparece como indispensável? Coloquemos uma hipótese e digamos que o desconforto
vem da necessidade de se confrontar com uma força que se quer instauradora. Mas
quem fala em nome desta instauração? Quem pode falar em nome da justiça quando ela
excede o Estado de direito?
Notemos que a questão de Derrida é mais complexa do que uma certa situação
padrão na qual a justiça se dissocia do direito. Tratam-se de situações onde nos
deparamos com um “estado ilegal”. Mesmo a tradição política liberal admite, ao menos
desde John Locke, o direito que todo cidadão tem de se contrapor ao tirano, de lutar de
todas as formas contra aquele que usurpa o poder e impõe um estado de terror, de
censura, de suspensão das garantias de integridade social. Nestas situações, a justiça
reconhece o direito à violência, já que toda ação contra um governo ilegal é uma ação
legal.
Vale a pena insistir nesta questão. Podemos dizer que um dos princípios maiores
que constitui a tradição de modernização política da qual fazemos parte afirma que o
direito fundamental de todo cidadão é o direito à rebelião. Não creio ser necessário aqui
fazer a gênese da consciência da indissociabilidade entre defesa do Estado livre e direito
259
Idem, p. 11
à violência contra um estado ilegal. No que diz respeito ao ocidente, é bem provável que
sua consciência nasça da reforma protestante com a noção de que os valores maiores
presentes na vida social podem ser objeto de problematização e crítica. Ela esta
presente, por sua vez, no artigo 27 da Declaração dos direitos do Homem e do Cidadão
de 1793, documento fundador da modernidade política. Artigo que afirma : “que todo
indivíduo que usurpe a soberania seja assassinado imediatamente pelos homens livres”.
Ainda hoje, ela aparece no artigo 20, parágrafo 4 da Constituição alemã como “direito à
resistência” (Recht zum Widerstreit). Encontramos um direito similar enunciado em
várias constituições de estados norte-americanos (New Hampshire, Kentucky, Tennesse,
Carolina do Norte, entre outros). De maneira sintomática, e gostaria de aproveitar este
momento para dizer algo que me é bastante caro, isto demonstra como aqueles que
procuram transformar os que participaram da luta armada contra o regime militar
brasileiro em “terroristas” colocam-se aquém de um conceito substancial de
democracia.
No entanto, não devemos compreender a idéia fundamental deste direito à
resistência simplesmente como o núcleo de defesa contra a dissolução dos conjuntos
liberais de valores (direito à propriedade, afirmação do individualismo e da integridade
individual que estaria em cheque com o advento da tirania do estado ilegal).
Dificilmente poderíamos compreender, por exemplo, o artigo 27 da Declaração dos
direitos do Homem e do Cidadão como defesa dos conjuntos liberais de valores. Na
verdade, em seu interior encontramos a idéia fundamental de que o bloqueio da
soberania popular (e temos todo o direito de discutir o que devemos compreender por
“soberania popular”) deve ser respondido pela demonstração soberana da força. Que a
democracia deva, através deste problema, confrontar-se com aquilo que Giorgio
Agamben chama de “o problema do significado jurídico de uma esfera de ação em si
extrajurídica”, ou ainda, com a “existência de uma esfera da ação humana que escapa
totalmente ao direito”260, que ela deva se confrontar com uma esfera extrajurídica, mas
nem por isto ilegal, eis algo claro. Pois devemos insistir aqui (e Derrida não cansa de
pensar este problema) que, mesmo em situações onde não estamos diante de um “estado
ilegal” o problema da dissociação entre justiça e direito se coloca. Pois o direito é
essencialmente “descontrutível”, pois constituído sobre camadas textuais interpretáveis
e transformáveis. No entanto: “a justiça nela mesma, se algo como tal existe, fora ou
para além do direito, não é desconstrutível” 261. Ou ainda: “O direito não é a justiça. O
direito é o elemento do cálculo, é justo que haja um direito, mas a justiça é
incalculável”262.
Muitos gostam de dizer que, no interior da democracia, toda forma de violação
contra o Estado de direito é inaceitável. Mas e se, longe ser de um aparato monolítico, o
direito em sociedades democráticas for uma construção heteróclita, onde leis de várias
matizes convivem formando um conjunto profundamente instável e inseguro? Por
exemplo, nossa constituição de 1988 não teve força para mudar vários dispositivos
legais criados pela constituição totalitária de 1967. Ainda somos julgados por tais
dispositivos. Neste sentido, não seriam certas “violações” do Estado de direito
condições para que exigências mais amplas de justiça se façam sentir? Foi pensando em
situações desta natureza que Derrida afirmava ser o direito objeto possível de uma
desconstrução que visa expor as superestruturas que: “ocultam e refletem, ao mesmo
tempo, os interesse econômicos e políticos das forças dominantes da sociedade”. Quem
pode dizer em sã consciência que tais forças não agiram e agem para criar, reformar e

260
AGAMBEN, Giorgio; Estado de exceção,
261
DERRIDA, ibidem, p. 27
262
Idem, p. 30
suspender o direito? Quem pode dizer em sã consciência que o embate social de forças
na determinação do direito termina necessariamente da maneira mais justa?
Por estas razões, a democracia admite o caráter “desconstrutivel” do direito, e
ela o admite através do reconhecimento daquilo que poderíamos chamar de legalidade
da “violação política”. Pacifistas que sentam na frente de bases militares a fim de
impedir que armamentos sejam deslocados (afrontando assim a liberdade de circulação),
ecologistas que seguem navios cheios de lixo radioativo a fim de impedir que ele seja
despejado no mar, trabalhadores que fazem piquetes em frente a fábricas para criar
situações que lhes permitam negociar com mais força exigências de melhoria de
condições de trabalho, cidadãos que protegem imigrantes sem-papéis, ocupações de
prédios públicos feitas em nome de novas formas de atuação estatal, Antígona que
enterra seu irmão : em todos estes casos o Estado de direito é quebrado em nome de um
embate em torno da justiça. No entanto, é graças a ações como estas que direitos são
ampliados, que a noção de liberdade ganha novas matizes. Sem elas, certamente nossa
situação de exclusão social seria significativamente pior. Nestes momentos,
encontramos o ponto de excesso da democracia em relação ao direito. Uma sociedade
que tem medo destes momentos, que não é mais capaz de compreendê-los, é uma
sociedade que procura reduzir a política a um mero acordo referente às leis que
atualmente temos e aos modos que atualmente temos para mudá-las (como se a forma
atual da estrutura política fosse a melhor possível – levando em conta o que é o sistema
político brasileiro, pode-se claramente compreender o caráter absurdo da colocação). No
fundo, esta é uma sociedade que tem medo da política e que gostaria de substituir a
política pela polícia. Pois a violação política nada tem a ver com a tentativa de
destruição física ou simbólica do outro, do opositor, como vemos na violência estatal
contra setores descontentes da população ou em golpes de estado. Antes, ela é a força da
urgência de exigências de justiça.

Força e justiça

Mas se retirarmos o quadro normativo do Estado de direito, se estivermos


dispostos a seguir Derrida e desconstruir o Estado de direito, então estaremos diante de
uma situação aparentemente explosiva todas as vezes que tentarmos responder a
pergunta: “Que diferença existe entre, por um lado, a força que pode ser justa, em todo
o caso julgada legítima (não apenas o instrumento a serviço do direito, mas a própria
realização, a essência do direito), e, por outro lado, a violência que julgamos
injusta?”263. Pois é fato que, como dizia Pascal nesta afirmação decisiva para
compreendermos Força de Lei, não há justiça sem força :

A justiça sem a força é impotente; a força sem a justiça é tirânica. A justiça sem
a força será contestada, porque há sempre maus; a força sem a justiça será
acusada. É preciso, pois, reunir a justiça e a força; e, dessa forma, fazer com que
o que é justo seja forte, e o que é forte seja justo”. No entanto: ”A justiça é
sujeita a disputas; a força é muito reconhecível e sem disputa. Assim, não se
pôde dar a força à justiça, porque a força contradisse a justiça, dizendo que esta
era injusta, e que ela é que era justa; e assim, não podendo fazer com o que é
justo fosse forte, fez-se com o que é forte fosse justo”264.

263
Idem, p. 9
264
PASCAL, Pensamentos, par. 298
O raciocínio de Pascal parte, na verdade, da constatação da impotência da
justiça, da dificuldade em reconhecê-la e em identificar quem, de fato, fala em nome
dela. Daí esta exigência moral, que não descreve uma situação de fato: “’É preciso
reunir força e justiça”. Temos que encontrar uma forma de reuni-las. No entanto, a
força, predicado necessário da justiça, embora seja reconhecível e sem disputa (ela se
faz imediatamente sentir), tem esta estranha capacidade de ser um predicado que se faz
valer pelo seu sujeito, de se impor como justiça, anulando assim aquilo que o termo
“justiça” nos obrigaria a pensar.
Derrida lembra então que duas idéias parecem presentes nesta maneira
pascaliana de pensar as relações entre força e justiça. A primeira, mais clássica , nos
levaria a uma: “crítica da ideologia jurídica, uma dessedimentação das superestruturas do direito
que ocultam e refletem, ao mesmo tempo, os interesses econômicos e políticos das forças
dominantes da sociedade”265. Esta vertente nos remete à crítica ao convencionalismo
jurídico e sua sedimentação de interesses de grupos sociais hegemônicos. Mas há outra
idéia, esta sim mais inesperada. Ela consiste em dizer que a justiça, em seu ato de
surgimento, em sua origem, aparece como pura força. Vejamos esta afirmação central:

A operação de fundar, inaugurar, justificar o direito, fazer a lei, consistiria num


golpe de força, numa violência performativa e portanto interpretativa que, nela
mesma, não é nem justa nem injusta, e que nenhuma justiça, nenhum direito
prévio e anteriormente fundador, nenhuma fundação preexistente, por definição,
poderia nem garantir nem contradizer ou invalidar266.

Há uma performatividade da linguagem instituinte que não pode ser assegurada


por metalinguagem alguma. Derrida chega mesmo a falar que o discurso encontra ali o
seu limite, um limite que ele encontra em seu próprio poder performativo. Novamente,
voltamos ao problema da impossibilidade de fundar a partir do recurso à origem
asseguradora. Problema que encontramos desde os textos de Derrida sobre a
fenomenologia de Husserl. Novamente encontramos uma gênese que, longe de
assegurar aquilo que ela gera, apenas o fragiliza e o desconstrói. Essa impossibilidade
de fundar, no caso da reflexão sobre o direito e a justiça, ganha o nome de “fundamento
místico da autoridade”. Pois se a origem da autoridade, o fundamento, não podem por
definição apoiar-se senão em si mesmos, eles mesmos seriam uma “violência sem
fundamento”.
Pode parecer com isto que Derrida faria alguma forma de apologia da violência
instauradora, um pouco como uma espécie de teoria do fato consumado que afirma algo
como dizia o chanceler Otto Von Bismarck: “Leis são como salsichas. Melhor não ver
como são feitas”. No entanto, notemos como esta violência sem fundamento não se
volta contra aqueles que se perguntam de onde vem as salsichas, ou seja, contra aqueles
que questionam o direito. Ao contrário, esta violência própria ao fundamento volta-se
contra o fundado, contra o próprio direito. Pois ela é o que nos lembra que : “não se
pode falar diretamente da justiça, tematizar ou objetivar a justiça, dizer “isto é justo” e,
ainda menos, “eu sou justo”, sem trair imediatamente a justiça, senão o direito” 267. Ou
ainda: “sei que sou justo? Eu gostaria de mostrar que tal certeza é essencialmente
impossível, fora da figura da boa consciência e da mistificação” 268. Podemos lembrar,
no entanto, que é exatamente isto que faz o direito. O direito procura falar diretamente
da justiça, objetivá-la, enunciar a lei a fim de mostrar o que é justo. Mas (e devemos
265
DERRIDA, ibidem, p. 21
266
Idem, p. 24
267
Idem, p. 17
268
Idem, p. 32
meditar com calma esta afirmação central): “A desconstrução é a justiça” 269. Como se o
verdadeiro ato de justiça só pudesse se manifestar como desconstrução do direito, como
afirmação do caráter essencialmente desconstrutivel do direito. Por isto, só podemos
concordar com Simon Critchley quando este afirma:

“É importante notar que esta noção de indesconstrutibilidade – a justiça, o a


priori messiânico – não funciona como seria o caso na tradição kantiana que
inspira Habermas, ou seja, como base, no interior da ética, para um
procedimento de decisão, um mecanismo de imperativo categórico a luz do qual
é possível propor e testar máximas específicas”270.

Este é um ponto fundamental. A justiça não funda um procedimento de decisão,


como no caso do imperativo categórico kantiano, com sua exigência de universalidade
da forma geral da ação. Ela não nos assegura no interior da ação, permitindo que eu
sustente a crença de que, por exemplo, a ação justa produz necessariamente
conseqüências boas. Antes, a dimensão da justiça inaugura uma certa insegurança
ontológica no interior da ação. “Em política, não há garantias. A política deve estar
aberta à dimensão do “talvez”, que aparece como um leitmotiv nos dois primeiros terços
de Políticas da amizade. Para Derrida, nada seria mais irresponsável e totalitário do que
tentar excluir a priori o monstruoso e o terrível” 271, excluir que a boa ação possa se
inverter em catástrofe. Por esta razão, ao nos confrontarmos com a estrutura aporética
de afirmações como: a justiça é a experiência daquilo que não podemos experimentar, a
justiça é uma experiência do impossível, devemos compreendê-las com maneiras de
dizer que as experiências da justiça são: “momentos em que a decisão entre o justo e o
injusto nunca é garantida por uma regra”272.

Decisão como responsabilidade infinita

Aqui, entramos em um ponto central do texto. Pois trata-se, no fundo, de se


perguntar se as condições para a decisão justa ou, se quisermos, para a deliberação
racional, podem ser postas a partir da figura da regra, da norma, do princípio. Pode a
decisão encontrar seu fundamento em uma regra, em uma norma, em um princípio? Mas
o que significa exatamente esta pergunta? Ao menos para Derrida, ela é indissociável de
um conceito “comunicacional” de racionalidade. Uma decisão legítima e racional é
aquela que pode garantir sua justificação no interior de uma argumentação que respeite
um conjunto de regras não-coercitivas. Uma decisão legítima pode ser justificada em
uma conversação.
No entanto, Derrida é extremamente sensível à idéia de que a primeira violência
bruta consiste em dizer que posso ouvir o que você tem a dizer, mas desde que seja em
minha própria língua, desde que seja respeitando as regras da minha gramática. Por isto,
Derrida precisa dizer: “é injusto julgar alguém que não compreende seus direitos nem a
língua em que a lei está escrita (...) a violência de uma injustiça começa quando todos os
parceiros de uma comunidade não compartilham totalmente o mesmo idioma” 273. Mas
não compartilhar o mesmo idioma não significa falar uma língua estranha. Significa
falar uma língua na qual valores que julgo inquestionáveis, indesconstrutíveis em seu
sentido (como liberdade, democracia, segurança, identidade, entre tantos outros que
269
Idem, p. 27
270
CRITCHLEY, Simon; Déconstructions et communication,, p. 64
271
Idem, p. 64
272
DERRIDA, ibidem, p. 30
273
Idem, p. 33
circulam em nossa vida política), não podem mais ser objeto por uma batalha em
relação à seu sentido. Esta injustiça supõe que o outro seja capaz de uma língua em
geral, a saber, esta que eu falo.
Digamos que esta estratégia de eliminar a língua do outro é a essência maior de
todo e qualquer totalitarismo. Pois o totalitarismo não é apenas o aparato político
fundado na operação de uma violência estatal que visa a eliminação de todo e qualquer
setor da população que questiona a legalidade do poder, violência que visa criminalizar
sistematicamente todo discurso de questionamento. Na verdade, o totalitarismo é
fundado nesta violência muito mais brutal do que a eliminação física: a violência da
eliminação simbólica. Neste sentido, ele é a violência da imposição do desaparecimento
do nome. No cerne de todo totalitarismo, haverá sempre a operação sistemática de
retirar o nome daquele que a mim se opõe, de transformá-lo em um inominável cuja
voz, cuja demanda encarnada em sua voz não será mais objeto de referencia alguma.
Este inominável pode, inclusive, receber, não um nome, mas uma designação que visa
isolá-lo: “subversivo”, “terrorista”. A partir da designação aceita, do designado nada
falaremos, porque simplesmente não é possível falar com ele, porque ele, no fundo,
nada fala, há muito “fanatismo” nestes simulacros de sons e argumentos que ele chama
de “fala”, há muito “ressentimento” em suas intenções, há muito “niilismo” em suas
ações. Ou seja, há muito “nada”. Claro está que este inominável nada tem a ver com as
estratégias (tão presentes na política do século XX) de recusar o nome atual, o regime
atual de nomeação, isto a fim de abrir espaço a um nome por vir 274. Antes, ele é redução
daquele que é colocado na exterioridade à condição de um inominável sem recuperação
ou retorno.
Mas colocar em cheque a universalidade de nosso aparelho conceitual, teórico
ou normativo em torno da justiça não seria um convite ao relativismo, à neutralização
do interesse pela justiça ou a um decisionismo primário ? Derrida coloca esta questão
para insistir que, longe de ser um apelo ao relativismo, a desconstrução do direito é uma
abertura à uma renovação do conceito de responsabilidade moral.
Vemos, até agora, como calcular sem regras é a verdadeira situação daquele que
se vê diante da iminência de produzir uma decisão. Por isto, a falibilidade da decisão é
traço essencial: o ato moral é aquele que deve ser assumido enquanto falível, como se
racional fosse saber agir sem garantias de orientação na conduta. Mas este
reconhecimento da opacidade de todo ato que se queira moral não implica em aporia
nem em niilismo. Trata-se, na verdade, de redimensionar a noção de responsabilidade
moral.
Retirada a garantia ontológica de alguma forma de identidade imediata no
interior da ação moral, de presença imanente no interior da intencionalidade moral, ou,
se quisermos, retirada a garantia de que a ação moral não se inverterá em catástrofe, em
amoralidade, minha responsabilidade em relação ao ato é uma responsabilidade
infinita. Trata-se, na verdade, de um “aumento hiperbólico na exigência de justiça” 275.
Mesmo que todas as conseqüências da ação não dependam do meu controle, o
engajamento em relação á ação exige que o cálculo seja infinitamente refeito a partir do
desdobrar de suas conseqüências, a partir da maneira com que o Outro interpretará e
reagirá à minha ação. Pois: “quem pretenderá ser justo poupando-se da angústia?” 276.
Desta forma, nos confrontamos com uma ação que, por saber-se falível e patológica,
deve-se reorientar continuamente a partir do seu desdobramento em contextos que
nunca serão completamente legíveis.

274
Para esta discussão, ver BADIOU, Alain; Ethique, Paris:
275
DERRIDA, ibidem, p. 37
276
Idem, p. 39
No entanto, há um problema suplementar nesta estratégia. Pois não é claro quais
são os limites de um contexto. À verdadeira ação não cabe apenas interpretar
infinitamente os contextos aos quais ela se refere. Ela precisa determinar e limitar seus
contextos. Tarefa particularmente complicada. Pois poderíamos lembrar desta afirmação
de Merleau-Ponty em um texto maior sobre Machiavel: “na ação histórica, a bondade é
por vezes catastrófica e a crueldade menos cruel do que o temperamento bonachão” 277.
No entanto, se a crueldade atual pode revelar-se amanhã como bondade, se não é
possível dissociar moral e história, de qual perspectiva posso avaliar as reais
consequências da crueldade e da bondade em ações que se desenrolam na história a não
ser á partir da perspectiva totalizante de um observador onisciente da história? E o que
acontece quando concluímos, como era o caso de Derrida, que esta perspectiva não nos
é dada278?
Talvez seja o caso de insistir que há uma modificação qualitativa na dimensão
moral quando os sujeitos admitem a opacidade constitutiva da decisão e do ato moral. O
sujeito que reconhece tal opacidade (sem se deixar levar à posição hegeliana da bela
alma) é capaz de pensar contra si mesmo e reconhecer que o engajamento significa não
exatamente ser fiel a um princípio, por mais claro que tal princípio possa lhe parecer,
mas ser fiel ao esforço infinito de pensar e rever as conseqüências que se seguem do
que, em um dado momento, é claro para nós. Isto pode parecer pouco. Mas talvez seja
muito mais do imaginamos.

Três aporias

Por fim, nosso texto termina lembrando como tudo seria simples se essa distinção entre
justiça e direito fosse uma verdadeira distinção intransponível. No entanto, o direito
pretende exercer-se em nome da justiça e a justiça exige ser instalada em um direito.
Tais pretensões e exigências acabam por configurarem três aporias.
A primeira delas diz respeito à regra. Diz Derrida: “Para ser justa, a decisão de
um juiz deve não apenas seguir uma regra de direito ou uma lei geral, mas deve assumi-
la, aprová-la, confirmar seu valor, por um ato de interpretação reinstaurador, como se a
lei não existisse anteriormente, como se o juiz a inventasse ele mesmo em cada caso” 279.
Como se houvesse um paradoxo na noção mesma de aplicar uma regra.
No entanto, poderíamos contra-argumentar afirmando que problemas de
aplicação podem ser normalmente resolvidos a partir de procedimentos similares à
noção jurídica de “criar jurisprudência”, ou seja, decisões anteriores aparecem como
campo de constituição de um núcleo de experiências que tendem a direcionar decisões
posteriores, criando assim um processo, no sentido forte do termo. Esta tendência não
277
MERLEAU-PONTY, Maurice; “Notas sobre Machiavel”, In: Signos, op. cit., p. 242
278
Conhecemos todos este trecho maior de A decisão, de Bertolt Brecht: “O indivíduo tem dois olhos/ O
Partido tem milhares de olhos/ O Partido vê sete países/ O indivíduo vê uma cidade/ O indivíduo tem a
sua hora/ Mas o Partido tem muitas horas/ O indivíduo pode ser aniquilado/ Mas o Partido não pode ser
aniquilado”. Este trecho causava especial aversão a Adorno por esquecer que há sim situações nas quais
os dois olhos do indivíduo vêem mais do que os mil olhos do partido. Na verdade, no momento histórico
que é o nosso, poderíamos mesmo dizer que o século XX cansou de nos mostrar isto. Pois, se Brecht
tivesse realmente seguido a dialética, ele teria compreendido que o indivíduo nunca é apenas o indivíduo.
Ele é o ponto a partir do qual os mil olhos do partido podem se voltar contra si mesmo. Nestes casos, o
indivíduo pode desvelar o ponto cego no interior da fascinação pela força de justificação integral de
processos que se colocam na perspectiva onisciente da realização da história. O indivíduo sabe que a
violência da justificação é a maneira mais segura de tais processos não se realizarem. Por isto, ele é a
função que nos lembra que não devemos (no sentido radicalmente moral) recorrer à perspectiva de um
observador onisciente da história.
279
DERRIDA, ibidem, p. 44
implica ignorar toda possibilidade posterior de redirecionar, através do “uso público da
razão”, tal processo de determinação dos modos de indexação de critérios, valores e
fatos.
Contra este modo de tentar resolver a questão, devemos mostrar que o campo
pressuposto por decisões passadas não tem estruturalmente a força de retirar a
indeterminação de decisões futuras porque as indeterminações não foram resolvidas
sequer nas decisões passadas. Para que tais indeterminações estivessem ausentes seria
necessário aceitar que decisões passadas, além de terem sido produzidas em contexto de
partilha intersubjetiva, isto no sentido de terem sido vistas como modos bem sucedidos
de aplicação de regras, construíram procedimentos e critérios não-problemáticos de
inferência e universalização, a não ser que estejamos dispostos a “naturalizar” tais
critérios, como se tivéssemos uma gramática natural dos modos de relação. Ou seja,
para que a noção de “criar jurisprudência” seja operativa, é necessário afirmar que um
caso é análogo a um outro caso, paradigmático. Ficamos assim dependentes de
raciocínios analógicos. No entanto, tais raciocínios são marcados por fragilidades e
inseguranças epistêmicas profundas pois, de um certa perspectiva, qualquer coisa pode
tecer relações de analogia com qualquer outra coisa. No fundo, tais situações apenas
servem para nos lembrar que tomar uma decisão reconhecidamente legítima é um
processo ligado a um princípio de soberania, e não a um princípio de adequação
normativa.
Aqui, entramos no segundo paradoxo levantado por Derrida. Um paradoxo que
nos leva diretamente ao problema do conceito de soberania (que será objeto de nossa
próxima aula): “Nenhuma justiça se exerce, nenhuma justiça é feita, nenhuma justiça se
torna efetiva, sem uma decisão indiscutível” 280. No entanto, uma decisão, em seu caráter
instaurador dá-se sempre no interior de um espaço indecidível e “a memória da
indecidibilidade deve conservar um rastro vivo que marque, para sempre, uma decisão
como tal”281. Como vimos, toda decisão e um salto (como dizia Kierkegaard), uma
aposta (como dizia Pascal). Este indecidível é como um fantasma a assombrar todo ato e
toda decisão, um fantasma que visa desconstruir esta crença de que podemos ter uma
presença ideal do objeto da ação moral garantindo assim nossa idéia de
responsabilidade, de consciência moral, de intencionalidade moral, entre outros. Isto
significa: decidir sem apelar à metafísica da presença.
Por fim, Derrida insiste que sua posição não pode ser confundida com a tentativa
de transformar a justiça em um horizonte regulador do tipo kantiano. Pois a justiça
obriga a pensarmos a dimensão da imediaticidade. Embora ela possa se dar como
alteridade absoluta em relação ao presente, embora ela tenha que se dar desta forma,
abrindo com isto a pressão para uma democracia por vir, ela exige presentificar-se
criando sempre um descompasso no interior do próprio direito. Veremos melhor este
ponto na aula que vem.

280
DERRIDA, ibidiem, p. 46
281
Idem, p. 47

Você também pode gostar