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Departamento de Filosofia
Estes são trechos de um obituário publicado pelo jornal The New York Times,
logo após o falecimento de Derrida, em 2004. Se resolvi começar por ele um curso de
introdução à experiência intelectual de Jacques Derrida, é, primeiro, para lembrar a
vocês como toda verdadeira instauração filosófica é medida pelo desconforto e pela
1
KANDELL, Jonathan, In: New York Times, 10/10/2004
violência que ela é capaz de causar. Pois esse simpático obituário sintetiza, de maneira
violenta e polêmica, todo o desconforto que nossa época sentiu diante do filósofo
francês. Ele diz, de maneira intelectualmente mais ingênua e tosca, o que boa parte do
meio acadêmico ainda pensa a respeito de Jacques Derrida. Filósofo que teria inventado
um “método de análise” que não é um, pois não passaria de uma estratégia relativista
visando quebrar a ordem das razões de um texto, ignorar contextos de produção,
fazendo assim todo e qualquer texto dizer aquilo que ele decididamente não disse.
Regime de leitura que esconde, na verdade, uma operação mistificadora que se serviria
de um estilo “empolado e desconcertante” apenas como estratégia diversionista de um
“niilismo” estilizado. Regime responsável por um nivelamento perigoso da diferença
genérica entre filosofia e literatura, entre reflexão conceitual e metáfora poética. Jürgen
Habermas, por exemplo, dirá que o programa de Derrida não seria mais do que a
tentativa de “estetização da linguagem, que é resgatada através da dupla negação do
sentido próprio do discurso normal e poético” 2. O que significa dizer que Derrida seria
incapaz de compreender a diferença de sentido entre um texto filosófico em suas
expectativas descritivas de verdade e validade e um texto literário em suas exigências de
expressão estética.
Por fim, last but not least, Derrida teria cometido o pecado maior de ignorar o
regime de clareza geométrica própria à natureza argumentativa da escrita conceitual.
Como se para falar sobre alguns objetos fosse necessário torcer a estilística filosófica
até que ela fique no limite do reconhecível, até que ela adquira a monstruosidade destas
frases de três páginas e notas cancerígenas que parecem querer tomar de assalto o texto
principal. Este pecado de atentado contra a clareza chegará a ser chamado por alguns de
“terrorismo”. Lembremos, a este respeito, do que diz o filósofo norte-americano John
Searle:
“Com Derrida, como ele é tão obscuro, você dificilmente pode interpretá-lo mal.
Cada vez que você diz: “Ele disse tal e tal”. Ele sempre diz: “Você não entendeu
nada”. Mas se você tenta imaginar a interpretação correta, não será tão fácil.
Uma vez disse isto a Foucault, que era ainda mais hostil a Derrida do que eu, e
ele disse que Derrida praticava o método do ‘obscurantismo terrorista’. Como
estávamos falando em francês, perguntei: “O que você quer exatamente dizer
com isto?”. Ele disse: “Derrida escreve de maneira tão obscura que você não
pode definir sobre o que ele está falando, esta é a parte obscurantista; e quando
você o critica, ele sempre pode dizer: ‘Você não entendeu nada, você é um
idiota’. Esta é a parte terrorista3.
Não deixa de ser desprovido de interesse lembrar que este tipo de argumento
(“seu uso da linguagem é tal, ele é tão distante do senso comum, que não se sabe do que
ele está falando”) não é exatamente novo. Se vocês quiserem, poderíamos fazer aqui
uma pequena “genealogia do obscurantismo terrorista” em filosofia. Começaríamos, por
exemplo, com Hegel, o mesmo Hegel que não temerá em dizer, por exemplo:
2
HABERMAS, O discurso filosófico da modernidade, Lisboa: Dom Quixote, p. 194
3
SEARLE, John; Realities principle : na interview with John Searle, In:
http://www.reason.com/news/show/27599.html
matéria. É por isto que ele é particular à matemática e devemos deixá-lo à
matemática4.
Pensando nisto, Adorno chegou a sintetizar bem a vertigem que se sente diante da
linguagem hegeliana, com suas “frases de três páginas”: “Hegel é sem dúvida o único
dentre os grandes filósofos que, em alguns momentos, não sabemos e não podemos
decidir sobre o que ele fala exatamente, o único a respeito de quem a própria
possibilidade de tal decisão não é assegurada”5.
Mas poderíamos aqui lembrar também de Heidegger, que ouviu do Círculo
positivista lógico de Viena o mesmo tipo de acusação que Searle endereçava a Derrida:
“suas proposições eram simplesmente desprovidas de sentido”. Quando ele diz: “o nada
nadifica”, “o espaço espaça” ele não quer dizer nada. “Terrorista” porque, em suas
mãos, o solo seguro das certezas da linguagem ordinária se dissolve. Mas, não seria esta
a obrigação de toda verdadeira filosofia? Nos retirar o solo seguro das certezas da
linguagem ordinária. Como dirá alguém para quem estas questões de estilo e escrita
eram da maior importância: “A filosofia do senso comum [e vocês compreenderão mais
a frente porque devemos falar do senso comum e de suas exigências de clareza como
uma “filosofia’] quer que pensemos como pensamos. A questão da filosofia é outra: -
por que pensamento assim? – Mais precisamente: - por que já não podemos pensar
exatamente assim?”6.
Esta é talvez uma boa questão inicial para abordar a experiência intelectual de
Jacques Derrida: a natureza da discursividade própria à filosofia, do regime de escrita
que realmente lhe convém, não seria uma questão filosófica da mais alta grandeza? Se
colocarmos a questão “Como os filósofos escrevem?” talvez ficaremos impressionados
com a profunda dispersão estilística que faz com que cada experiência filosófica
fundamental venha necessariamente acompanhada de uma instauração discursiva
singular. Como se cada experiência filosófica fundamental sempre repetisse a
proposição: “Não é mais possível escrever como até agora se escreveu”. Montaigne e os
Ensaios, Descartes e a perspectiva experimental da primeira pessoa nas Meditações,
Hegel e a escrita de experiências que vão dissolvendo as certezas gramaticais
elementares da consciência na Fenomenologia, Nietzsche e o perspectivismo herdado
dos moralistas franceses. Todos eles dizem, à sua maneira: “Não é mais possível
escrever como até agora se escreveu”. É necessário passar a uma instauração discursiva.
A primeira condição para ler Derrida talvez seja então partir desta proposição e, assim,
colocar a questão: “Por que, para Derrida, não é mais possível escrever como até agora
se escreveu?”.
Margens
Eis proposições bastante claras para um autor com fama de obscuro. O que diz
afinal Derrida? Primeiro, que a própria discursividade filosófica, seu estilo, seu modo de
expor e definir problemas, sua textualidade não é construída através de uma gramática
neutra e desinflacionada do ponto de vista metafísico. Enquanto discurso, a filosofia é
uma episteme e depende de uma episteme. O termo, tal como Derrida o utiliza, vem de
Michel Foucault, em especial de seu livro As palavras e as coisas. Ele indica a idéia de
que os múltiplos discursos que se entrelaçam em uma dada época histórica estão todos
submetidos a uma mesma matriz comum de racionalidade, a uma mesma episteme. Ou
seja, episteme deve ser aqui entendida como conjunto de regras e sistemas que
organizam o campo de experiências possíveis e de possibilidades de saberes. A partir
disto, Foucault procurava demonstrar como os saberes positivos de uma época
configuram-se a partir da definição de regimes gerais de ordenamento com suas relações
de diferença e de identidade. Isto lhe permitia dizer que: “a filosofia não é nem
historicamente nem logicamente fundadora de conhecimento, mas existem condições e
regras de formação do saber aos quais o discurso filosófico encontra-se submetido a
cada época, como toda forma de discurso com pretensões racionais”. Pois haveria uma
espécie de “inconsciente do saber que tem suas próprias formas e regras específicas”8.
O que diz então Derrida? Ele diz querer fazer filosofia no limite do discurso
filosófico, colocando-se à margem do que funda a episteme da qual a filosofia como
discurso é tributária. Mas aqui uma pergunta deve ser imediatamente posta? Haveria
afinal uma episteme, uma matriz comum do logos a respeito da qual a filosofia como
discurso seria tributária? Notemos quão estranha é esta pergunta. Pois trata-se de dizer
que haveria algo de fundamental, um certo projeto a unificar vários momentos da
filosofia (e vemos como, afinal, Derrida lê filósofos tão diferentes como Platão, Husserl,
Hegel, Heidegger mostrando a mesma dificuldade em escapar de um projeto que muitas
vezes está prestes a se quebrar, que acaba por abrir outros possíveis, mas que, graças a
uma astúcia de múltiplas faces, retoma a palavra final). Qual é este projeto que Derrida
nomeia (e ainda não sabemos nada sobre esse nome, o que ele pode bem significar, qual
a estrutura de parentesco que ele sustenta com outros modelos de crítica) de “metafísica
da presença”? Que regime de discursividade é este fundado em um conjunto de
pressupostos, de exclusões e de tensões cujo nome correto, ao menos segundo Derrida,
seria “metafísica da presença”? Quais são seus verdadeiros pressupostos, ou ainda, o
que deve acontecer à história da filosofia para que ela possa aparecer como a história da
hegemonia de uma metafísica da presença? Tais questões serão respondidas no decorrer
deste curso.
Mas, por enquanto, lembremos como essas perguntas chamam outras com as
quais também teremos que nos confrontar constantemente. Pois o que pode significar
fazer a crítica desta discursividade, desta metafísica que se confundiria com a própria
instauração da filosofia como lugar que pensa as expectativas de validade presentes na
multiplicidade dos saberes e práticas ou, se quisermos, que se confundiria com o que
normalmente entendemos por “razão”? “Poder-se-á, em todo rigor, marcar um lugar
não-filosófico, um lugar de exterioridade ou de alteridade a partir do qual se pode ainda
tratar da filosofia? Esse lugar não terá sido sempre, previamente, ocupado pela
7
DERRIDA, Jacques; Positions, Paris : Seuil, 1972, pp. 14-15
8
FOUCAULT, Dits e écrits, p. 1152
filosofia?”. Até porque: “A exterioridade, a alteridade, são conceitos que, por si só,
nunca surpreenderam o discurso filosófico” 9. Proposição decisiva, pois, desde ao menos
a História da Loucura, de Foucault, uma problemática não cessava de se inscrever no
interior do debate filosófico francês : se quisermos fazer uma crítica da razão,
mostrando todos estes pontos nos quais ela configura seu Outro (a loucura, o irracional,
a infância, etc.), de nada adianta deixar o Outro falar, pois ele falará mimetizando nossa
língua. Não é possível deixar a loucura falar, dirá o próprio Derrida em ‘Cogito e
história da loucura”, porque o reconhecimento de sua alteridade é modo de sua inscrição
no interior da minha gramática. E não há gramática neutra do ponto de vista de suas
implicações metafísicas. Como dirá Nietzsche, em uma colocação da maior importância
para nossa compreensão do que estava realmente em jogo neste momento do
pensamento filosófico francês: “Temo não nos desvencilharmos de Deus enquanto
continuarmos a acreditar na gramática”10.
Se vocês me permitem, diria temer não compreendermos Derrida enquanto não
meditarmos de maneira demorada esta frase. Pois voltemos um pouco atrás e
recoloquemos mais uma vez a questão: “Poder-se-á, em todo rigor, marcar um lugar
não-filosófico, um lugar de exterioridade ou de alteridade a partir do qual se pode ainda
tratar da filosofia?”. Alguns dariam de ombros para tal questão e diriam: “Claro, o lugar
não-filosófico a partir do qual se pode tratar da filosofia (e, talvez também, tratar a
filosofia, no sentido clínico de alguém que trata de doenças e ilusões) é a linguagem pré-
filosófica do senso comum com suas certezas imediatas. O senso comum sadio nos
fornece uma linguagem desinflacionada do ponto de vista metafísico, linguagem
presente no mundo cotidiano da vida, linguagem que todos nós aceitaríamos sem
reservas.
Este é talvez um dos pontos fundamentais que aproximam o que
convencionamos chamar de crítica pós-estruturalista da razão (e insistiria neste
aspecto, há uma crítica da razão que aproxima autores como Derrida, Deleuze e
Foucault, mesmo que ela seja conjugada de maneira diferente, a partir de referências
filosóficas distintas e com resultados não homogêneos). Pois todos eles dirão,
juntamente com Nietzsche, que nossa linguagem pré-filosófica naturaliza categorias
filosóficas como unidade, substância, duração, causa, realidade, ser e, principalmente,
sujeito (e veremos, em outras aulas, de onde vem esta centralidade do conceito de
“sujeito”) devido simplesmente à sua gramática. Deleuze compreendeu isto de maneira
exemplar ao falar da relação entre filosofia e “imagem do pensamento”. Neste contexto,
“imagem” significa o que determina o regime de visibilidade do pensamento, aquilo que
o pensamento é capaz de ver, de dispor e determinar, um pouco como determinamos e
diferenciamos coisas no espaço. Esta condição de visibilidade do pensar está ligada aos
pressupostos implícitos que colocam o pensamento em uma boa direção “natural”. Isto
significa elevar as relações entre linguagem filosófica e linguagem pré-filosófica à
condição de problema filosófico maior. Pois é a linguagem pré-filosófica, esta
linguagem “ordinária” própria ao senso comum, que forneceria ao pensar filosófico seu
conjunto tácito de pressuposições não problematizadas. Neste sentido, a crítica à
imagem do pensar é, no fundo, avaliação crítica das relações entre filosofia e senso
comum. Isto fica claro em afirmações como:
No fundo, Deleuze quer insistir que o bom senso e o senso comum são imagens
ortodoxas do pensamento e, neste sentido, carregadas de implicações metafísicas e
morais. É exatamente devido a perspectivas como estas que Derrida insistirá não ser
mais possível escrever como até então se escreveu:
Mas que tipo de escrita é esta ou, ao menos, que tipo de escrita ela quer ser?
Voltemos a esta explicação fundamental: “‘Desconstruir’ a filosofia seria pensar a
genealogia estruturada de seus conceitos da maneira a mais fiel, a mais interior, mas ao
mesmo tempo desde um certo exterior inqualificável para ela, inominável, determinar o
que essa história pôde dissimular ou proibir, fazendo-se história exatamente através
dessa repressão, de uma certa forma, interessada”. Desconstruir a gramática que suporta
a filosofia como discurso equivaleria a operar uma certa genealogia. O termo
nietzscheano indicava este modo de se perguntar sobre a gênese do que estamos
dispostos a contar como incondicional e universalmente válido. Qual a gênese do que
aparece como pressuposto para nossa forma de pensar? Gênese que nos leva a uma
história dissimulada, reprimida que não é outra que a história da razão e de nossos
modos de racionalização.
No entanto, podemos dizer (e este dizer é apenas inicial, ele será corrigido, mas
devemos partir dele) que a desconstrução é uma genealogia. Uma forma muito peculiar
de genealogia. Sua peculiaridade vem da compreensão que tem Jacques Derrida a
respeito do que é um texto filosófico.
Estrutura do curso
“a unidade de tudo o que se deixa visar atualmente através dos conceitos mais
diversos da ciência e da escritura é, a princípio, mais ou menos secretamente
mas sempre, determinada por uma época histórico-metafísica a respeito da qual
entrevemos seu término. (...) O futuro só pode ser antecipado na forma do perigo
absoluto. Ele é o que rompe absolutamente com a normalidade constituída e só
pode anunciar-se, apresentar-se, sob a forma da monstruosidade. Para este
mundo por vir e para aquilo que, nele, teria feito tremer os valores do signo, da
palavra e da escritura, para aquilo que aqui conduz nosso futuro anterior, não há
ainda epígrafe” 17.
Na aula de hoje, gostaria de fazer uma apresentação geral do estruturalismo. Ela nos
servirá para compreendermos as discussões que Derrida procura desenvolver em A
estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas e em momentos centrais
de Da gramatologia.
Raros foram os momentos históricos que viram configurar uma experiência
intelectual como aquela que se colocou sob a égide do estruturalismo. Experiência que
realizou, à sua maneira, um verdadeiro “programa crítico interdisciplinar” nascido da
articulação cerrada entre antropologia, psicanálise, lingüística, crítica literária e reflexão
filosófica. Programa que, de uma certa forma, aliava sob protocolos comuns nomes
como Claude Lévi-Strauss, Jacques Lacan, Louis Althusser, Roland Barthes, Michel
Foucault, Roman Jakobson, entre outros.
Digamos, inicialmente, que analisar com calma o estruturalismo e seus projetos,
significa deparar-se com uma tentativa singular de procurar redefinir por completo o
parâmetro de racionalidade e os métodos das chamadas ciências humanas. Tentativa
com conseqüências filosóficas absolutamente evidentes. Tal redefinição partiu da defesa
da lingüística como “ciência ideal” que deveria guiar a reconfiguração do campo das
ciências humanas. Notemos, por exemplo, o tom ditirâmbico que anima a seguinte
afirmação de Lévi-Strauss :
Por outro lado, a estrutura não é dada de maneira imanente no campo fenomenal. Ao
contrário, ela determina de maneira transcendente este campo e seus atores, que agem
de maneira inconsciente. Ao falar, os sujeito não têm consciência da estrutura
fonemática que determina seus usos da língua, da mesma maneira que, ao operar
escolhas matrimoniais, os sujeitos não têm consciência dos sistemas de parentesco que
determinam tais escolhas. Este caráter inconsciente da estrutura será um dado
fundamental para a objetividade do pensamento estruturalista, assim como para o seu
anti-humanismo. Para um pensamento estruturalista estrito os sujeito não falam, eles são
falados pela linguagem. De onde se segue a afirmação clássica de Lévi-Strauss: “Não
pretendemos mostrar como os homens pensam nos mitos, mas como os mitos se pensam
nos homens, e à sua revelia. E. como sugerimos, talvez convenha ir ainda mais longe,
abstraindo todo sujeito para considerar que, de um certo modo, os mitos se pensam entre
si”22.
Mas se o primeiro efeito do primado da lingüística era esta reconfiguração da
racionalidade das ciências humanas através do programa de formalização estrutural, o
segundo efeito estava na compreensão de que o verdadeiro objeto das ciências humanas
não era o homem, mas as estruturas que o determinam. Michel Foucault compreendeu
isto claramente ao afirmar que: “Há ciências humanas não em todo lugar onde é questão
do homem, mas em todo lugar onde analisamos, na dimensão própria do inconsciente,
as normas, regras, conjuntos significantes que desvelam à consciências as condições de
suas formas e de suas condutas”23.
Tal recompreensão do objeto das ciências humanas implicava, necessariamente
em uma teoria da sociedade que transformava a linguagem no fato social central, já que
todos os fatos sociais : trocas matrimoniais, processos de determinação de valor de
mercadorias, articulação do ordenamento jurídico, seriam todos estruturados como uma
linguagem. Assim como a filosofia anglo-saxã do início do século XX defrontou-se com
uma certa guinada lingüística que reorientou os problemas ontológicos para o campo da
análise da linguagem, as ciências humanas francesas da segunda metade do século XX
reconstruíram seu objeto e seu campo ao usar a análise da linguagem como método e
parâmetro. Podemos ver claramente tal estratégia em ação na seguinte afirmação de
Lévi-Strauss :
20
SAUSSURE, Curso de lingüística geral, p. 104
21
idem, Essais de linguistique générale, p. 65
22
LÉVI-STRAUSS, o cru e o cozido, p. 31
23
FOUCAULT, Les mots et les choses, Paris : Seuil, 1966, p. 376
fonológicos´, são elaborados pelo espírito no estágio do pensamento
inconsciente; enfim a recorrência, em regiões afastadas do mundo e em
sociedades profundamente diferentes, de formas de parentesco, regras de
casamento, atitudes identicamente prescritas, entre certos tipos de parentes etc.
faz crer que, em ambos os casos, os fenômenos observáveis resultam do jogo de
leis gerais, mas ocultas24.
Esta recompreensão dos fatos sociais como fatos estruturados como uma
linguagem permitirá, por exemplo, o re-enquadramento do campo da política e da crítica
da ideologia no interior de um campo de análise do discurso (lembremos de Foucault
com sua noção de “práticas discursivas”, de Lacan com sua teoria do vínculo social a
partir de uma tipologia de discursos e de Derrida com seus procedimentos de
desconstrução como substituto dos protocolos de crítica da ideologia). Mas devemos
aproveitar este momento para levar a cabo uma apresentação, mesmo que panorâmica,
de alguns pressupostos maiores do estruturalismo. Três aspectos são centrais no
estruturalismo: a noção de ordem estrutural como elemento transcendental de
determinação do sentido, o caráter inconsciente de tal ordem e, por conseqüência, a
noção determinista do sujeito como suporte da estrutura.
27
idem, p. 10
28
idem, p. 13
29
GRANGER, Pensée formelle et sciences de l´homme, p. 76
30
SAUSSURE, Curso de lingüística geral, p. 80
contexto, é a representação psíquica de um som, então devemos nos perguntar sobre
qual o dispositivo que poderá responder pela relação entre o conceito e a referência. No
entanto, de uma certa forma, um dos eixos do trabalho de Saussure consiste em
procurar esvaziar tal questão. Isto implica, é claro, em uma teoria não-correspondencial
da linguagem que, em última análise, articula uma teoria convencionalista da linguagem
que insiste no fato de que: “todo meio de expressão aceito em uma sociedade repousa
em princípio em um hábito coletivo ou, o que vem a dar na mesma, em convenção”31.
Devemos pois analisar este ponto com mais calma. O signo é pois a união entre
um conceito e uma imagem acústica. Conceito é exatamente o que Saussure chama de
“significado” (a dimensão do inteligível) e imagem acústica recebe a denominação de
“significante” (a dimensão do sensível). Esta articulação entre significante e significado
não nos diz nada a respeito do mundo tal como ele seria independentemente da nossa
linguagem. “Em lingüística, os dados naturais não têm nenhum valor”32, dirá claramente
Saussure. Um lingüista estruturalista, Jean-Claude Milner, percebeu que isto nos levaria
a uma tese, de moldes kantianos, segundo a qual: “a ligação que articula as coisas
enquanto coisas não pode ter nada em comum com a ligação que as articula enquanto
faces de um signo. Nenhuma causa relevante para a primeira pode operar sobre a
segunda”33. De fato, encontramos tal perspectiva em afirmações de Saussure como: “O
que é afinal uma entidade gramatical? Nós precedemos exatamente como um geômetra
que gostaria de demonstrar as propriedades do círculo e da elipse sem ter dito o que ele
designa por círculo e elipse”34.
É neste ponto que Saussure insiste no princípio fundamental a respeito do signo:
sua arbitrariedade. Mas, a princípio, através do problema da arbitrariedade do signo,
Saussure pareceria estar indicando um problema interno à língua, e não um problema
externo à mesma. Pois em momento algum ele afirma que o signo é arbitrário na sua
relação com a referência, mas que a relação entre significado e significante é arbitrária:
“o significante é imotivado, isto é, arbitrário em relação ao significado, com o qual não
tem nenhum laço natural na realidade”35. Tanto b-ö-f quanto o-k-s representam o mesmo
conceito (significado), o que indicaria o caráter arbitrário da relação. E sendo
absolutamente arbitrária, a língua perderia um dos motores de seu processo de mudança,
pois não há razão alguma para preferir boef ou Ochs: “Justamente porque o signo é
arbitrário, não conhece outra lei senão a da tradição”36.
No entanto, como sabemos, em filosofia, expulsar um problema pela porta da
frente não nos garante que ele não irá retornar pela porta dos fundos. De fato, Saussure
procura a todo momento esvaziar o problema da relação entre linguagem e referência.
No entanto, ela acaba voltando nesta discussão a respeito do arbitrário do signo. Pois,
afirmar que a relação significado/significante é arbitrária nos leva necessariamente a
afirmar que a relação signo/referência é arbitrária. Os significantes são arbitrários
porque eles se referem ao mesmo conceito. Mas o conceito sempre sustenta-se em uma
expectativa de denotação da referência37. Não falamos apenas algo, queremos sempre
falar sobre algo. Eles são arbitrários porque se referem à mesma realidade linguística.
Ou seja, não é possível abstrair o problema do arbitrário de uma perspectiva
externalista. Tudo se passa como se pudéssemos identificar a existência de uma espécie
31
idem, p. 82
32
idem, p. 93
33
MILNER, L´amour de la langue, p. 58
34
SAUSSURE, Écrits de linguistique générale, Paris: Gallimard, 2002, p. 51
35
SAUSSURE, Curso, p. 81
36
idem, p. 88
37
Neste sentido, a diferença entre sensível e intelegível no signo sustenta-se em uma idealidade não-posta
do sentido.
natural (natural kind) a fim de afirmar que ela pode ser representada tanto por b-ö-f, por
o-k-s ou por qualquer som.
A noção de arbitrário pressupõe a possibilidade de uma comparação entre os
conteúdos de representações mentais e objetos, propriedade e relações existentes em um
mundo que seria largamente independente de nosso discurso. Entramos aqui no famoso
paradoxo presente na questão profissional posta pelo ceticismo, tal qual ela foi
formulada por Richard Rorty: “Como sabemos nós que tudo aquilo o que é mental
representa algo que não é mental ? Como sabemos nós se aquilo que o Olho da Mente
vê é um espelho (ainda que distorcido - um vidro encantado) ou um véu ?”38.
De qualquer forma, a questão central aqui é: a arbitrariedade do signo indica, no
fundo, uma arbitrariedade na relação entre linguagem e referência, facilmente legível no
interior de uma teoria convencionalista da linguagem. Isto, Jean Claude Milner
compreendeu claramente ao afirmar, sobre Saussure: “O arbitrário recobre, de maneira
extremamente ajustada, uma questão que não será posta : o que é o signo quando ele
não é o signo ? o que é a língua antes de ser a língua ? – ou seja, a questão que
exprimimos corriqueiramente em termos de origem. Dizer que o signo é arbitrário, é pôr
a tese primitiva : há língua"39.
Na verdade, Saussure procurava esvaziar a questão a respeito da referência e da
designação, ou seja, a questão da exterioridade da linguagem. Mas esvaziar o problema
da referência nos leva necessariamente a explicar como as significações são produzidas,
para além de uma confrontação entre linguagem e referência. E é aqui que entrava a
noção central de “sistema”, já que será a organização da língua como um sistema
fechado (Saussure falará da língua como sistema arbitrário de signos) que responderá
pelo processo de produção de significações. A significação não é resultado da
confrontação entre palavra e coisa, mas é o resultado de uma articulação posicional-
opositiva dos signos entre si, como em um sistema fechado. É da noção saussureana de
“sistema” que nascerá o conceito de “estrutura”: “ A língua é um sistema do qual todas
as partes podem e devem ser consideradas em sua solidariedade sincrônica” 40. Sendo
que sincronia quer dizer aqui aquilo que nos dá a configuração de um estado mais ou
menos estável da língua (diacronia como a percepção histórica dos processos de
modificação dos elementos que compõem a língua).
Dizer que a língua organiza-se como um sistema significa insistir que devemos
compreende-la a partir do seu interior, ou seja, a partir de suas leis estruturais de
funcionamento. “Cumpre pois partir da totalidade solidária para obter, por análise, os
elementos que encerra”41. O modelo desta totalidade foi fornecido a Saussure pelo modo
de organização dos fonemas no interior da língua: unidades elementares que não tem
nenhuma realidade para além de suas relações no interior de um sistema. Era tal
analogia que permitia a Saussure afirmar: “Na língua, só existem diferenças. E mais
ainda: uma diferença supõe em geral termos positivos entre os quais ela se estabelece,
mas na língua há apenas diferenças sem termos positivos”42.
Esta noção da linguagem como sistema fechado cujos processos de
determinação de valor não obedece nenhuma visada externalista, pois organizados a
partir de regras internas que têm posição transcendental, podia ser melhor compreendida
através da metáfora do jogo. A noção da linguagem como jogo, noção central para a
filosofia do século XX (Wittgenstein principalmente), deve aqui ser levada a sério. Pois
o jogo é instauração de um espaço no qual todos os acontecimentos são produzidos e
38
RORTY, Richard; A filosofia e o espelho da natureza, pag. 46..
39
MILNER, L'amour de la langue, Paris: Seuil, 1978, p. 59
40
SAUSSURE, idem, p. 102
41
SAUSSURE, idem, p. 132
42
SAUSSURE, idem, p. 139
significados sem referência à exterioridade do que não se submete às regras de
organização do seu espaço. De uma certa maneira, os jogos produzem acontecimentos a
partir das regras que compõem a estrutura. Saussure tenta levar tal situação ao extremo
ao afirmar que a linguagem é como um jogo de xadrez que é jogado por jogadores
inconscientes; como se, de uma certa forma, fossem as regras que jogassem o jogo, e
não os sujeitos. Derrida compreendeu claramente as conseqüências desta perspectiva ao
afirmar:
Ou seja, trata-se de compreender que não é o campo fenomênico da ação dos indivíduos
que realmente interessa, mas a determinação desta estrutura prévia que coage os
sujeitos, a partir do exterior, a agir de certa forma e a assumir certos lugares na vida
social. Estrutura que totaliza e unifica a multiplicidade de fatos dispersos na vida social.
No caso de Lévi-Strauss, esta estrutura social que não era composta exatamente por um
43
DERRIDA, L´écriture et la différence, p. 427
44
DURKHEIM, O que é fato social?, p. 48
conjunto positivo de regras, mas por relações diferenciais e opositivas que determinam
possibilidades de combinatória e interditos de transposição, tal como as relações que
organizariam os fonemas.
Por sua vez, Lévi-Strauss insistia também no caráter inconsciente da estrutura.
Isto era o resultado da posição, sintetizada por Merleau-Ponty, a respeito de Lévi-
Strauss: “A função simbólica antecede o dado”45. Ou seja, ela não se conforma aos
dados naturais, ao contrário, ela estabelece previamente o campo possível de
experiências no interior do qual a própria noção se disponibilizará. Daí porque Lévi-
Strauss poderá afirmar: “os símbolos são mais reais do que aquilo que simbolizam” 46.
Notamos assim que a anterioridade da estrutura em relação ao dado é uma anterioridade
que indica uma força formadora, força formadora que pode ser esclarecida se
compreendermos a natureza transcendental da estrutura na sua função de determinar
previamente a configuração do campo de experiências possíveis. Proposição que parte
da determinação da função simbólica como função transcendental de constituição dos
objetos de toda experiência possível para afirmar que o universo simbólico engendra um
estado naturalizado de coisas. Desta forma, o convencionalismo da teoria saussureana
da linguagem acabava por validar, em Lévi-Strauss uma “teoria criacionista do
símbolo”. Para Lévi-Strauss, isto significava que a função simbólica determinava até
mesmo as coordenadas da experiência que os sujeito têm de si mesmos e de seus
próprios corpos. Como lembrará Lacan: “A função simbólica constitui um universo no
interior do qual tudo o que é humano tem de ordenar-se” 47. De uma certa forma, os
sujeito “são agidos” pela estrutura. Era isto que Derrida tinha em mente ao afirmar que
há uma maneira de pensar o jogo como dispositivo fechado cujas regras determinam a
configuração do campo de acontecimentos possíveis.que nos leva para além de todo
humanismo, ou seja, para além do homem como referência positiva da presença do
sentido. E era isto que nos explicava porque Paul Ricoeur forneceu esta definição
absolutamente precisa do estruturalismo: “kantismo sem sujeito transcendental”.
Afirmação que, longe de incomodar Lévi-Strauss, levou-lhe a dizer:
45
MERLEAU-PONTY, signos, p. 133
46
LÉVI-STRAUSS, Introdução à obra de Marcel Mauss, p. 29
47
LACAN, Jacques; Seminário II, p. 44
48
LÉVI-STRAUSS, Claude; O cru e o conzido, São Paulo: Cosac e Naif, 2004, p. 30
mito, que se pode esperar resolvê-la. Com efeito, esta contradição se parece com
aquela que descobriram os primeiros filósofos que se interessaram pela
linguagem, e, para que a lingüística pudesse constituir-se como ciência, foi
necessário primeiro resolver esse problema49.
Ou seja, para que os mitos ganhem legibilidade não devemos partir da análise individual
dos mitos em suas contingências inumeráveis. Devemos estabelecer primeiramente um
esforço de abstração que permita selecionar as regularidades que aparecem na extensão
dos mitos geograficamente e temporalmente dispersos. Este estabelecimento de
regularidades como condição para a compreensão da significação leva a antropologia a
caminhar juntamente com a lingüística e a abandonar toda idéia de arquétipo para a
compreensão das formações míticas. Pois se trata de insistir que a significação não é
imanente a cada representação, mas é dependente das relações das representações entre
si. As regularidades não são de símbolos, mas de significantes.
Assim, da mesma forma que a lingüística procura compreender o processo de
determinação do valor lingüístico através da reconstrução dos modos de relação entre
unidades diferenciais elementares (fonemas), o estudo dos mitos deverá partir desta
determinação de unidades elementares. A elas, Lévi-Strauss fornece o nome de
mitemas. Estes mitemas são “feixes de relações” 50 que determinam os modos de
atribuição de um predicado a um sujeito, o que nada mais é do que derivação da noção
de Lévi-Strauss do mito como um “modelo lógico para a resolução de uma contradição”
(resolução de contradições que significa aqui posição de relações). É por ser um
conjunto de mitemas que:
49
idem, p. 239
50
idem, p. 245
51
idem, p. 242
52
idem, 258
forma que o esforço para escapar à autoctonia está para a impossibilidade de conseguí-
lo. Isto nos permite seguir a idéia de que: “a explicação estruturalista parece remeter
sempre à constituição de totalidades, que revelam relações complexas, e que reduzem a
simples aparência à dispersão dos elementos, ou à simplicidade inicial de suas
relações”53.
De fato, algo desta redução da multiplicidade a determinações estruturais gerais
é a chave de compreensão de um projeto como As palavras e as coisas com suas
análises de epistemes. Não é por outra razão que esse texto começa com a descrição,
fornecida por Jorge Luis Borges, a respeito de uma certa enciclopédia chinesa na qual
está escrito que: "os animais dividem-se em : a) pertencentes ao Imperador, b)
embalsamados, c) enjaulados, d) leitões, e) sereias, f) fabulosos, g) cães em liberdade, j)
incluídos na presente classificação, i) que se agitam como loucos, j) inumeráveis, k)
desenhados com um pincel muito fino de pêlo de camelo, l) etc., m) que acabam de
quebrar o bebedouro, n) que, de longe, parecem moscas".
A descrição de Borges permite a Foucault iniciar uma longa digressão a respeito
de qual é o dispositivo realmente constitutivo das operações de conhecimento. Um
ponto da descrição de Borges logo chama a atenção de Foucault. O caráter fantástico da
ordenação não está no acréscimo de seres monstruosos. Mesmo se encontramos lá
sereias, por exemplo, é forçoso reconhecer que: "Borges não acrescenta nenhuma figura
ao atlas do impossível". Dado importante por lembrar que a verdadeira operação feita
por Borges é uma certa subtração do lugar no qual estes seres poderiam encontrar-se, ou
seja, o quadro que permite ao pensamento ordenar os seres. O que transgride a
imaginação é simplesmente a série alfabética que liga categorias incompatíveis. Esta
destruição do lugar de ordenamento dos seres, da sintaxe de classificação que permite o
estabelecimento seguro de operações de identidade e diferença, através da profusão de
"erros de categorias" permite a Foucault introduzir a questão arqueológica maior. Esta
questão poderia ser enunciada da seguinte forma: "como se constitui o espaço de
ordenamento dos seres?". Pois, se Foucault estiver certo, e se o riso provocado por
Borges :"é sem dúvida aparentado ao profundo mal-estar destes cuja linguagem está
arruinada: ter perdido o comum do lugar e do nome", ruína que aparece de maneira
privilegiada nesta categoria “incluídos na presente classificação” que visa desarticular
as distinções entre caso e estrutura, então o verdadeiro esforço de compreensão deve nos
levar ao ser bruto da ordem, esta região mediana que entrega a ordem em seu ser
próprio.
Já é possível aqui intuir o peso de um raciocínio estruturalista guiando tal
questão arqueológica. Da mesma forma como o estruturalismo procurava definir este
conjunto de regras e sistemas que organizavam, de maneira transcendental, o campo
possível de experiências possíveis, Foucault procura demonstrar como os saberes
positivos de uma época configuram-se a partir de uma matriz comum de racionalidade,
ou seja, de definição das ordens com suas relações de diferença e de identidade.
Notemos, inclusive, como a noção foucaultiana de "ordem" é eminentemente
estruturalista:
A ordem, é ao mesmo tempo o que se oferece nas coisas como sua lei interior, a
rede secreta segundo a qual elas, de uma certa forma, se olham entre si e que só
existe através da grelha de um olhar, de uma atenção, de uma linguagem; e é
apenas nas casas brancas deste esquadrinhamento que ela manifesta-se como
algo que já está lá, esperando em silêncio o momento de ser enunciada"54.
53
FAUSTO, Dialética marxista, dialética hegeliana, p. 142
54
FOUCAULT, Les mots et les choses, p. 11
Jacques Derrida
Aula 3
58
LÉVI-STRAUSS, o cru e o cozido, p. 31
59
FOUCAULT, Les mots et les choses, Paris : Seuil, 1966, p. 376
60
MERLEAU-PONTY, signos, p. 133
61
LÉVI-STRAUSS, Introdução à obra de Marcel Mauss, p. 29
qual seja seu estatuto genérico, o esboço constitui o guia de um conhecimento
conceitual possibilitando as contribuições de uma experiência controlada e o
desenvolvimento de uma combinatória.62
62
GRANGER, Pensée formelle et sciences de l´homme, p. 76
63
DERRIDA, L´écriture et la différence, Paris: Seuil, 1967, p. 9
64
MERLEAU-PONTY, Signos, São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 91
65
DERRIDA, ibidem, p. 409
“significado transcendental” por aparecer como garantia da inteligibilidade do discurso)
visa assegurar as operações de sentido no interior da estrutura, mas ele mesmo não pode
estar sob as condições daquilo que ele deveria fundar. Por isto, seu estatuto é paradoxal.
Pois a regra tem uma posição absolutamente peculiar no interior da estrutura. De um
lado, ela é aquilo que articula a estrutura. Mas, por outro, ela é exatamente aquilo que
não pode ser articulado no interior da mesma. Até porque, a condição de existência de
elementos do tipo X não pode ser ela também um elemento do tipo X. A regra pede
então um lugar-Outro no qual ela poderia ser apresentada em sua fundamentação. Se
não fôssemos estruturalistas, diríamos que o fundamento para um sistema determinado
de signos poderia ser ou uma metaestrutura (como se houvesse uma estrutura
estruturante e uma estrutura estruturada) ou uma designação ostensiva de uma
referência naturalizada. Mas o problema da metaestrutura nos levaria a uma certa
regressão ao infinito. A saída pela designação ostensiva não parece suportar as críticas
feitas por Quine a respeito da indeterminação da referência.
Como o estruturalismo procura resolver este problema? Tomemos Lévi-Strauss
como exemplo a partir de uma discussão importante referente ao sentido do que
antropólogos encontraram em certas tribos sob o nome de mana, manitou, hau, orenda,
entre outros. Grosso modo, podemos dizer que mana é uma noção que encontramos na
Melanésia e que “escapa da categoria rígida de nossa linguagem e de nossa razão” 66.
Ela visa designar uma quantidade de idéias que poderíamos designar por: poder de
feiticeiro, qualidade mágica de uma coisa, magia, ser mágico, ter poder mágico, estar
encantado, agir magicamente. Esta confusão do agente, do rito e das coisas é
fundamental em magia. No interior do pensamento mágico, o mana é o que produz o
valor das coisas e das pessoas, valor mágico, religioso e mesmo social. Mauss afirma
que ele é a força por excelência, a verdadeira eficácia das coisas.
Ao discutir a natureza deste processo de determinação de valor que permite a
constituição de sistemas de trocas, Lévi-Strauss desenvolve uma importante teoria a
respeito de uma classe particular de significantes da qual mana faria parte. Tal teoria,
não por acaso refere-se à origem da linguagem e da estrutura:
66
MAUSS, Sociologia e filosofia,. p. 142
Este é um trecho que revela questões maiores do pensamento de Lévi-Strauss.
Não é difícil notar como a questão da origem trabalha toda esta reflexão, isto em um
pensamento, como o estruturalista, que teria, a princípio, livrado-se de questões sobre a
origem e a proveniência como fundamento. No entanto, a maneira que Lévi-Strauss
conjuga o problema da origem é peculiar. Ele diz: a origem é marcada por um excesso
de significante, por uma superabundância em relação às possibilidades de significado, o
que encontramos na origem é uma experiência radical de inadequação. Há assim, em
todo sistema simbólico, significantes flutuantes (como os significantes do tipo mana,
aos quais se acrescenta os nossos trem, troço, coisa) que apenas formalizam a
inadequação entre significante e significado. Por isto, eles são “símbolos em estado
puro”, suscetíveis de assumir qualquer conteúdo simbólico, “valor simbólico zero”, ou
ainda “valor indeterminado de significação, em si mesmo vazio de sentido e portanto
suscetível de receber qualquer sentido, cuja única função é preencher uma distância
entre o significante e o significado”68.
Esse elemento paradoxal, que está ao mesmo tempo dentro e fora do sistema
simbólico é o que, à sua maneira, forneceria um centro para a estrutura, estabilizando
sua produção de sentido através de uma inscrição, no interior do próprio sistema, de
uma inadequação interna ao sistema69. Mesmo através desta astúcia que parece
transformar o fundamento em um suplemento sem significação positiva, Derrida
insistirá que o problema do fundamento da estrutura arrisca-se a continuar sendo, no
fundo, uma versão do problema da origem. Um problema que, por sua vez, deve ser
compreendido como relevante apenas a partir da determinação do ser como presença
(mesmo que esta presença apareça como a inscrição de uma ausência, o importância é
que a ausência pode ser localizada, inscrita, controlada). Por isto, Derrida precisa dizer:
“Poderíamos mostrar que todos os nomes do fundamento, do princípio ou do centro
sempre designaram a invariante de uma presença (eidos, arché, telos, energeia, ousia
(essência, existência, substância, sujeito) aletheia, transcendentalidade, consciência,
homem, Deus, etc.)”70.
Como vemos, a lista é grande e heteróclita. Já encontramos aqui um dispositivo
importante de relação entre o pensamento de Derrida e a história da filosofia. Trata-se
de procurar uma espécie de solo comum pretensamente pressuposto por posições
distintas no interior da história da filosofia, embora sempre possamos nos perguntar se
afinal este solo existe, se ele é realmente uma chave profícua de análise da dispersão da
discursividade filosófica, se realmente precisamos de uma chave-geral para pensar a
história da filosofia.
No entanto, Derrida é suficientemente astuto para procurar recompor a noção
mesma de “chave-geral”. Daí a necessidade de repensar a relação entre história da
metafísica e destruição da história da metafísica afirmando:
71
Idem, p. 412
72
Idem, p. 34
73
Idem, p. 414
74
idém, pag. 63
forma que sinais lingüísticos. Assim, desde a instauração da proibição do incesto, a
conduta humana é coordenada por um sistema cultural de regras que forma uma
estrutura capaz de ser analisada a partir da utilização do mesmo paradigma que serve ao
estudo da linguagem.
Desta forma, a ordem das descobertas empíricas é mobilizada para, ao mesmo
tempo, conservar e denunciar os limites de conceitos herdados da tradição metafísica.
“Enquanto esperamos, explora-se a eficácia relativa [destes conceitos] utilizando-os
para destruir a antiga máquina à qual eles pertencem e a respeito da qual eles são peças.
É assim que se critica a linguagem das ciências humanas” 75. Como se fosse possível
separar questão de método (ou questão de validade) e questão de verdade.
Tal perspectiva leva o discurso etnográfico a aproximar-se daquilo que o próprio
Lévi-Strauss chamou de bricolage. Em algumas páginas célebres de O pensamento
selvagem, Lévi-Strauss abandona a antiga categoria do pensamento primitivo (ou
pensamento mágico) a fim de expor, em novo patamar, a distinção entre a razão
ocidental e seu outro histórico-geográfico, o pensamento moderno e estas formas de
pensar na qual a modernidade teima em não se reconhecer. Normalmente, define-se o
“pensamento primitivo” a partir de duas características maiores: um modo de pensar
projetivo animado pelo medo e pela ignorância, assim como a incapacidade de operar
com simbolizações e abstrações. A primeira característica mostra o pensamento
primitivo (o fetichismo aqui é um ótimo exemplo) como modo elementar de defesa
contra um afeto: o medo diante do caráter imprevisível dos fenômenos naturais. Projetar
qualidades humanas em objetos naturais aparece como móbile de um pensamento
assombrado pelo medo, pensamento que ainda não se tornou “senhor da natureza”
através do desvelamento da estrutura causal dos fenômenos.
Por outro lado, “o progresso natural das idéias humanas” seria resultado de um
movimento de abstração que consistiria em: passar dos objetos sensíveis aos
conhecimentos abstratos. As sociedades primitivas seriam estranhas a formas de
pensamento que se abstraem das determinações sensíveis imediatas a fim de construir
conceitos e símbolos genéricos. Ou seja, elas desconheceriam o pensamento conceitual,
tomando por atributo imediato da coisa particular o que é próprio de sua espécie,
gênero, ou da estrutural causal da qual ela faz parte.
Lévi-Strauss rompe com esta tradição a fim de mostrar de que o “pensamento
primitivo” implica operações intelectuais e métodos de observação comparáveis àqueles
próprios a nosso conhecimento científico. Ele passa então à descrição destas extensas
taxionomias zoológicas e botânicas encontradas nos EUA e Canadá onde os elementos
são distinguidos pela sua eficácia e causalidade. Maneira de evidenciar a força de
abstração própria ao chamado pensamento primitivo. E aqui, diz Lévi-Strauss: “Ao
invés de opor magia e ciência, valeria mais a pena colocá-las em paralelo, como modos
de conhecimento, desiguais quanto aos resultados teóricos e práticos (...), mas não
quanto ao gênero de operações mentais que supõem e que diferem menos pela natureza
do que em função dos tipos de fenômeno aos quais eles se aplicam” 76. Isto permite ao
antropólogo dizer que o dito pensamento primitivo é, na verdade, uma “ciência do
concreto” que em muito se assemelha à ação de um bricoleur. Por isto: “o que é próprio
ao pensamento mítico é exprimir-se através de um repertório cuja composição é
heteróclita e que, ainda que extenso, continua limitado; no entanto, faz-se necessário
que o pensamento o utilize, não importa qual tarefa ele precise realizar, pois o
pensamento não tem mais nada à mão. Ele aparece assim como uma espécie de
75
Idem, p. 417
76
LÉVI-STRAUSS, La pensée sauvage, Paris: Plon, 1962, p. 26
bricolagem intelectual”77. Por isto, o bricoleur fica sempre entre o percepto e o conceito.
Ele fica preso ao universo do signo, sem aceder completamente ao conceito. Daí a idéia
lévi-straussiana de contrapor o bricoleur ao engenheiro. Figura metafórica deste que
operaria com a capacidade global de reorganização e de instauração própria ao conceito.
Como se ele fosse capaz de reconstruir a totalidade de sua linguagem, sintaxe e léxico
através de um corte epistemológico.
No entanto, dirá Derrida: “o engenheiro é um mito: um sujeito que seria a
origem absoluta de seu próprio discurso e o construiria ´peça por peça´ seria o criador
do verbo, o próprio verbo”78. O engenheiro seria o mito produzido pelo bricoleur.
Derrida não se contenta em denunciar a divisão, mas quer afirmar que o próprio
discurso etnológico de Lévi-Strauss opera por bricolagens. O uso da distinção
natureza/cultura seria aqui um exemplo privilegiado. Este uso seria apenas um exemplo
de um problema mais geral referente ao estatuto da estrutura interpretativa da etnologia.
Não seria ela um mito que se acrescenta à série infinita de transformações e
reconstruções dos mitos entre si? Não seria ela uma maneira dos mitos “pensarem entre
si”, como vimos na aula passada?
É o próprio Lévi-Strauss que levanta tais questões. Para Derrida, trata-se de
indicar estes momentos decisivos nos quais as próprias dicotomias sintetizadas pelo seu
pensamento parecem a ponto de desmoronar. Neste sentido: “o que parece mais sedutor
nessa procura crítica de um novo estatuto do discurso é o abandono declarado de toda
referência a um centro, a um sujeito, a uma referência privilegiada, a uma origem ou a
uma arché absoluta”79.
No entanto, este pensamento bricoleur ao qual Derrida parece querer reduzir o
antropólogo não seria, por sua vez, uma forma de bloquear totalizações necessárias para
todo saber? Maneira de entificar um certo empirismo que se contentaria em descrever
fatos e registrar modificações sem nunca chegar a uma visão sistemática de conjunto.
Aqui, entra em cena o problema do recurso à totalidade. Problema ainda mais
interessante se lembrarmos da função manifesta da noção de “sistema fechado” no
estruturalismo.
Neste ponto, Derrida afirmar existir duas maneiras de compreender o que pode
ser um sistema. Podemos imaginar que o sistema determina previamente o sentido de
todos os acontecimentos. Neste caso, teremos uma: “totalidade abandonada por suas
forças, mesmo se ela é totalidade da forma e do sentido, pois se trata então do sentido
repensado na forma, e a estrutura é unidade formal da forma e do sentido”80. Mas
podemos compreendê-lo também sob a forma de um jogo que permite substituições
infinitas entre elementos finitos. Trata-se aqui, no entanto, de um jogo peculiar. Não
algo como um jogo de xadrez com suas regras regulativas (metáfora maior para a
compreensão da linguagem em Saussure). Mas de um jogo que problematiza, que traz
para dentro de seu sistema, o problema da relação entre o que é interno ao jogo e o que
lhe é externo (como, por exemplo, a história).
A metáfora do jogo é sempre uma metáfora da instauração que neutraliza o
tempo e a história. Para que um jogo funcione bem, não devemos nos perguntar o que
existia antes do jogo. Por isto, diz de maneira perspicaz Derrida, Lévi-Strauss: “como
Rousseau, deve sempre pensar a origem de uma estrutura nova a partir do modelo da
catástrofe – desordenamento da natureza na natureza, interrupção natural do
encadeamento natural, separação da natureza”81. Essa ausência da história é, segundo
77
Idem, p. 30
78
DERRIDA, ibidem, p. 418
79
Idem, p. 419
80
Idem, p. 13
81
Idem, p. 426
Derrida, compensada no pensamento estrutural por uma nostalgia da origem, da pura
presença e da imediaticidade rompida (Derrida dedicará páginas fundamentais ao
problema da origem e das sociedades sem história em Lévi-Strauss).
No entanto, seria possível pensar algo como uma história sem origem, isto em
uma chave muito próxima da noção nietzscheana de devir. História que afirmaria “a
indeterminação genética, a aventura seminal do traço”. Neste ponto, Derrida não está
longe do Foucault de “Nietzsche, a origem e a história” (1971). Ou seja, há um
momento no pensamento francês onde a noção nietzscheana de devir aparece como
horizonte de orientação para a discussão das relações entre pensamento e história. Mas o
que nos ensinaria Nietzsche a este respeito? Que: “procurar a origem é tentar encontrar
´o que já estava lá´, o ´isto mesmo´ de uma imagem exatamente adequada a si (...) “
Mas o que aprendemos? “Que atrás das coisas, há ´algo totalmente outro´; não seu
segredo essencial, sem data, mas o segredo que elas são sem essência, ou que sua
essência foi construída peça por peça a partir de figuras que lhes eram estrangeiras”82.
Uma das estratégias de Derrida, que veremos mais claramente quando
comentarmos Da gramatologia, consiste em dizer que estes significantes flutuantes que
Lévi-Strauss apresentou ao comentar as noções de mana, hau, manitou etc.,
significantes que vinham suplementar uma inadequação radical entre significante e
significado, poderiam nos abrir a uma outra forma de compreender o que está no lugar
do fundamento. Eu havia dito que, mesmo através desta astúcia que parece transformar
o fundamento em um suplemento sem significação positiva, Derrida insistirá que o
problema do fundamento da estrutura arrisca-se a continuar sendo, no fundo, uma
versão do problema da origem. No entanto, devemos entender como Derrida irá
procurar isolar este fundamento, pensá-lo como suplemento (criticando inclusive alguns
usos do mesmo, como a noção lacaniana de “Falo”). Mas para tanto, será necessário
afirmar que:
82
FOUCAULT, Dits et écrits I, Paris: Gallimard (Quarto), p. 1006
83
DERRIDA, L´écriture et la différence, p. 427
Jacques Derrida
Aula 4
85
DERRIDA, L´écriture et la différence, p. 409
86
MAUSS, Sociologia e filosofia,. p. 142
87
LÉVI-STRAUSS, Introdução à obra de Marcel Mauss, p. 39
exatamente nos textos dedicados à Husserl. Esta metafísica estaria presente no
estruturalismo através de uma nostalgia da origem, da pura presença e da imediaticidade
rompida. Metafísica radicalmente vinculada aos usos da noção de signo. Há uma
metafísica do signo a respeito da qual Derrida fará uma crítica radical. Devemos
compreendê-la melhor para afinal entrarmos no cerne da crítica derridiana ao
estruturalismo. Mas para isto, faz-se necessário irmos à Husserl.
De fato, a tese fundamental de Derrida é: “Em todo o lugar onde é questão do uso da
noção de signo, encontramos sempre o vínculo fundamental de um regime de
pensamento à metafísica”. Haveria assim uma unidade ontológica da noção de signo, o
que permite a unificação da crítica a todo regime de pensar para o qual a noção de signo
é peça fundamental. Podemos mesmo dizer que esta é a função de A voz e o fenômeno, a
saber, fornecer um dispositivo geral de crítica à noção de signo, compreendendo-o como
peça fundamental daquilo que devemos definir como “metafísica”. De uma certa forma,
para Derrida, toda metafísica é uma metafísica do signo, é uma redução da linguagem à
dimensão do signo.
Mas qual o problema com a noção de “signo”? Responder de maneira adequada
esta pergunta irá nos exigir não apenas discutir A voz e o fenômeno, mas também Da
gramatologia. Uma discussão que exigirá também a leitura de um capítulo das
Investigações lógicas, de Husserl, intitulado: “Expressão e significado” (Ausdruck und
Bedeutung). Leitura que pediria para a aula que vem.
Por enquanto, gostaria de dar um passo atrás de expor as coordenadas gerais de
um texto que, em vários pontos, adianta e prepara a discussão que encontraremos em A
voz e o fenômeno, a saber, a Introdução à Origem da geometria, de Husserl. A origem
da geometria é um pequeno texto que pertence ao projeto geral do incompleto A crise
das ciências européias e a fenomenologia transcendental, que aparecerá em 1936.
Grosso modo, Husserl diagnostica uma situação de crise devido a uma “alienação
objetivista” que ameaçaria a ciência européia. De onde se seguiria a necessidade de uma
reflexão capaz de regredir (Rückfragen) em direção ao sentido original da ciência.
Antes de começarmos a discussão do texto de Derrida, vale a pena sublinhar que
não se trata de discutir aqui a adequação ou não da leitura por ele proposta. Trata-se de
compreender como, através do comentário de um texto da tradição filosófica, as peças
centrais do seu próprio programa filosófico foram desenhadas.
De fato, o comentário deste pequeno texto de Husserl serve a Derrida de ocasião
para uma discussão inaugural a respeito do problema da fundamentação da objetividade
através do recurso à noção de “origem”. Uma origem que não deixará de se articular ao
problema da exigência estruturalista que conduz à descrição compreensiva de uma
totalidade segundo uma legalidade interna, que não deixará de ser a reflexão sobre o
fundamento de tal estrutura.
Por sua vez, o problema husserliano da origem só poderá ser corretamente
compreendido se posto no interior de uma reflexão sobre a linguagem e seus
mecanismos de produção de sentido. Pensar o problema da produção do sentido a partir
da reflexão sobre a geometria permite a Derrida perguntar: “Como se passa de um
estado individual ante-predicativo originário à existência de um ser geométrico em sua
objetividade ideal?”88. Que a idealidade seja aqui inquirida a partir do objeto
geométrico, eis algo que não poderia ser diferente. Pois o objeto geométrico, assim
88
DERRIDA, Le problème de la génèse chez Husserl, Paris: PUF, 1990, p. 267
como o objeto matemático, é o exemplo ideal devido à sua pureza em relação à
empiricidade:
Assim, na geometria pura nós em regra não fazemos juízos sobre o eidos ‘reta’,
‘ângulo’, ‘triângulo’, ‘seção cônica’ e tc., mas sobre reta e ângulo em geral ou
‘como tal’, sobre triângulos individuais em geral, sobre seções cônicas em geral.
Tais juízos universais possuem o caráter da generalidade eidética, da
generalidade pra ou, como também se diz, da generalidade ‘rigorosa’, pura e
simplesmente ‘incondicionada’90.
89
Idem, Introduction à L´origine de la géométrie, Paris: PUF, 2004, p. 6
90
HUSSERL, Idéias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica, p. 39
91
Idem, p. 20
92
KANT, Crítica da razão pura, B XII
trazer à luz (hervorbringen) a partir de conceitos pensados e já presentes a priori. Uma
iluminação nada tem a ver com o processo da constituição histórica, mas com o
processo analítico da apreensão do que já se encontra diante de nós.
No entanto, para Husserl, mesmo que a geometria em seu caráter normativo seja
independente da história, há a necessidade de descrever o processo através do qual as
idealidades geométricas surgem em um solo de experiências não-geométricas, solo
ligado ao mundo da cultura. Ou seja: “para Husserl, as objetividades geométricas ideais,
como a triangularidade, devem advir de objetividades não-geométricas, elas não existem
como tais antes desta experiência”93. Derrida chegará a dizer que a intuição husserliana,
no que concerne os objetos ideais das matemáticas, é absolutamente constituinte e
criadora. Na verdade, ao invés da simples autonomia da idealidade lógica em relação a
toda consciência em geral, Husserl quer: “manter ao mesmo tempo a autonomia
normativa da idealidade lógica ou matemática em relação a toda consciência factual e as
dependência originária a uma subjetividade em geral; em geral mas concreta”94.
Concreta, mas não empírica, como uma “experiência transcendental”.
No entanto, esta primeira experiência em solo ‘pré-científico” não pode colocar
em causa a unidade de sentido do que deve ser pensado como “geometria”:
93
LAWLOR, Konyv; Derrida amd Husserl : the basic problems of phenomenology, p. 107
94
DERRIDA, L´écriture et la différence, p. 235
95
DERRIDA, Introduction ..., p. 42
96
HUSSERL, idem, p. 202
97
Idem, p. 46
Cada cientista não se sente ligado a todos os outros apenas pela unidade de um
objeto ou de uma tarefa. Sua própria subjetividade de cientista é constituída pela
idéia ou horizonte desta subjetividade total que se torna responsável, nele e
através dele, de cada um de seus atos de cientista98.
Vê-se assim como Husserl, segundo Derrida, faria apelo às tramas de uma
intersubjetividade transcendental enraizada em um mundo da vida onde encontraríamos
uma forma cultural que não seria específica de cultura particular alguma. Aqui,
encontramos um dos pontos fundamentais da leitura derridiana: esta forma cultural pura
nos remete à concepção fenomenológica de linguagem. Pois ela implica na
neutralização espontânea da existência factícia do sujeito falante de uma língua
particular (daí a insistência na tradutibilidade absoluta dos objetos geométricos), das
palavras e da coisa designada. Por isto, Derrida deve afirmar que: “a objetividade desta
verdade não poderia se constituir sem a possibilidade pura de uma informação em uma
linguagem pura em geral. Sem esta possibilidade pura e essencial, a formação
geométrica seria inefável e solitária” 99. Esta linguagem pura é própria de uma
intersubjetividade transcendental como condição da objetividade. Desta forma, o
problema da origem da geometria nos remete, necessariamente, ao problema da
constituição da intersubjetividade e da origem fenomenológica da linguagem. O que não
poderia ser diferente já que o modelo da linguagem, para Husserl, é a linguagem
objetiva da ciência. Uma linguagem poética cujas significações não seriam objetos
nunca teria, a seus olhos, valor transcendental.
No entanto, Derrida é sensível ao “fundamento empírico” desta
intersubjetividade transcendental. Não lhe escapa uma afirmação como esta, de Husserl:
“Na dimensão da consciência, a humanidade normal e adulta (excluindo o mundo dos
anormais e das crianças) é privilegiada como horizonte de humanidade e como
comunidade de linguagem”100. Pois se a maturidade do homem adulto e sua normalidade
permitem uma determinação eidético-transcendental rigorosa da consciência, então: “o
privilégio de Husserl implica que uma modificação factual e empírica – a normalidade
adulta – pretenda ser uma norma transcendental universal” 101. Se quisermos utilizar uma
palavra proibida, podemos dizer que tal modificação factual e empírica não seria outra
coisa que uma certa recaída na dimensão do psicológico. É ela que permitiria assim a
fundamentação da consciência de se estar diante da mesma coisa, da consciência de um
nós puro e pré-cultural.
Tudo se passa como se Derrida procurasse mostrar como a liberação da
intersubjetividade de um fundamento empírico acabasse por transformá-la,
necessariamente, em uma forma de “infra-ideal inacessível”, de natureza pré-cultural
que sempre nos escapa. E aqui encontramos a origem de uma temática maior que
atravessará toda a experiência intelectual de Derrida, a saber, o primado da escritura
como modo de ser de uma linguagem liberada do peso da metafísica.
Para que a intersubjetividade seja algo como uma relação não-empírica entre egos faz-se
necessária que ela libere-se de todo vínculo a modificações empírico-factuais. Da
mesma forma, para que o objeto seja absolutamente ideal, ele deve ser liberado de todo
98
Idem, p. 50
99
Idem, p. 70
100
HUSSERL, L´origine de la géométrie, p. 182
101
LAWLOR, ibidem, p. 112
vínculo a uma subjetividade atual, ao modo de descrição próprio a uma subjetividade
atual, a saber, a palavra falada com suas contingências. Por isto, é a possibilidade de um
outro modo de ser da linguagem, ou seja, a escritura, que garantirá a objetividade ideal
absoluta na pureza de sua relação a uma subjetividade transcendental universal:
Sem a última objetivação que a escritura permite, toda linguagem estaria ainda
cativa da intencionalidade factícia e atual de um sujeito falante ou de uma
comunidade de sujeitos falantes. Ao virtualizar absolutamente o diálogo, a
escritura cria uma forma de campo transcendental autônomo a respeito do qual
todo sujeito atual pode se abster102.
102
DERRIDA, ibidem, p. 84
103
DERRIDA, L´écriture et la différence, p. 242
104
Idem, p. 250
além da filosofia da consciência. Pois Husserl nunca questionará o fato deste campo
transcendental exigir a possibilidade jurídica de ser inteligível para um sujeito
transcendental em geral. Por isto, o ato de escritura aparece como uma redução
transcendental. Através desta redução, abre-se uma origem no qual encontramos o “a
priori universal da história”105. Um a priori que não é outra coisa que a noção mesma de
escritura. Esta relação entre história e escritura voltará com toda a força, como veremos,
em Da gramatologia. Lá, será o caso de problematizar esta relação comumente aceita
entre povos sem história e povos sem escritura, isto a fim de abrir o espaço para uma
noção renovada de história.
Na sua Introdução à Origem da geometria, Derrida aludirá a duas formas de
pensar a escritura. Uma, a de Husserl, visa reduzir ou empobrecer metodicamente a
língua empírica até a transparência atual de seus elementos universais e tradutíveis. A
outra, vinda da literatura, em especial da literatura de vanguarda (Derrida cita James
Joyce), mostraria a unidade estrutural da cultura empírica total através do equívoco
generalizado de uma escritura que circula por todas as línguas, que se instala no campo
labiríntico da cultura encadeada por seus equívocos. Como vocês podem imaginar, é
pelos caminhos desta segunda forma de escritura que Derrida irá trilhar. Não por acaso
seu primeiro projeto de tese de doutorado, apresentado em 1957 para Jean Hyppolite,
terá por título : “A idealidade do objeto literário”.
Mas ainda não respondemos a questão colocada no início da nossa aula, a saber:
como a idealidade geométrica procede de sua origem primária intrapessoal (do primeiro
geômetra) para sua idealidade objetiva? Esta discussão sobre a escritura já nos fornece a
resposta. Pois é certo que o primeiro estágio de transição á objetividade ocorre no meio
da intersubjetividade lingüística. No entanto, esta linguagem não pode limitar-se à
dimensão da comunicação atual entre o inventor e os outros cientistas, ou seja, ela não
pode se limitar à dimensão da fala. “É neste ponto que a importância da escritura, que
Husserl descreve como ´comunicação que advém virtual´, fica evidente. É apenas
através da liberação em relação a toda subjetividade atual permitida pela escritura que a
objetividade e comunicabilidade do conhecimento científico pode ser finalmente
asseguradas”106.
Esta dicotomia entre escritura e fala, entre inscrição e expressão, será de grande
importância para Derrida. Pois notemos um dentre vários pontos centrais. A
possibilidade do advento da escritura, enquanto espaço no qual a idealidade da verdade
poderia se afirmar e a constituição da objetividade poderia ser assegurada, é solidária de
uma certa anulação, de uma certa negação sem retorno do modo de presença e de
recuperação do sentido próprio à fala. Nos limites da fala, temos sempre a possibilidade
de direito de recuperar o sentido, isto através da atualização da intencionalidade do
falante. Nos limites da escritura, essa possibilidade se esvai. Por isto, Derrida precisa
afirmar:
105
Idem, L´introduction..., p. 112
106
DEWS, Peter; Logic of disintegration, p. 9
107
DERRIDA, L´introduction..., p. 85
sentido por uma consciência, será o dado maior a ser revelado pela desconstrução.
Derrida tende, neste momento, a vincular o advento da escritura à instauração da
geometria como ato filosófico de inauguração da atitude teórica, da ultrapassagem do
finito. “Nós estamos na infinitude matemática por termos definitivamente idealizado e
ultrapassado as finitudes sensíveis e factícias”108.Há uma passagem ao limite
constitutiva do advento da geometria que Derrida descreve como “ato idealizador”,
“liberdade radical e disruptiva”, “descontinuidade decisória”. Esta passagem é a
revelação de um a priori que já se anuncia no próprio mundo da vida. Já no interior da
vida há algo que ultrapassa a simples faticidade, que se impõe como diferença em
relação àquilo que é objeto de uma consciência empírica. Isto permite a Derrida dizer
que, sob o conceito de transcendental, sempre houve a diferença originária da origem
absoluta que deve anunciar indefinidamente sua pura forma concreta como um para
além de toda profusão factícia:
108
Idem, p. 140
109
Idme, p. 171
Curso Jacques Derrida
Aula 5
110
DERRIDA, Le problème de la génèse chez Husserl, Paris: PUF, 1990, p. 267
111
LAWLOR, Konyv; Derrida amd Husserl : the basic problems of phenomenology, p. 107
112
DERRIDA, L´écriture et la différence, p. 235
Cada cientista não se sente ligado a todos os outros apenas pela unidade de um
objeto ou de uma tarefa. Sua própria subjetividade de cientista é constituída pela
ideia ou horizonte desta subjetividade total que se torna responsável, nele e
através dele, de cada um de seus atos de cientista113.
Vê-se assim como Husserl, segundo Derrida, faria apelo às tramas de uma
intersubjetividade transcendental enraizada em um mundo da vida onde encontraríamos
uma forma cultural que não seria específica de cultura particular alguma. Aqui,
encontramos um dos pontos fundamentais da leitura derridiana: esta forma cultural pura
nos remete à concepção fenomenológica de linguagem. Desta forma, o problema da
origem da geometria nos remete, necessariamente, ao problema da constituição da
intersubjetividade e da origem fenomenológica da linguagem. O que não poderia ser
diferente já que o modelo da linguagem, para Husserl, é a linguagem objetiva da
ciência. Uma linguagem poética cujas significações não seriam objetos nunca teria, a
seus olhos, valor transcendental.
No entanto, para que a intersubjetividade seja algo como uma relação não-
empírica entre egos faz-se necessária que ela libere-se de todo vínculo a modificações
empírico-factuais. Da mesma forma, para que o objeto seja absolutamente ideal, ele
deve ser liberado de todo vínculo a uma subjetividade atual, ao modo de descrição
próprio a uma subjetividade atual, a saber, a palavra falada com suas contingências. Por
isto, é a possibilidade de um outro modo de ser da linguagem, ou seja, a escritura, que
garantirá a objetividade ideal absoluta na pureza de sua relação a uma subjetividade
transcendental universal:
Sem a última objetivação que a escritura permite, toda linguagem estaria ainda
cativa da intencionalidade factícia e atual de um sujeito falante ou de uma
comunidade de sujeitos falantes. Ao virtualizar absolutamente o diálogo, a
escritura cria uma forma de campo transcendental autônomo a respeito do qual
todo sujeito atual pode se abster114.
Desta forma, vimos como Derrida, leitor de Husserl, podia responder a questão
sobre a maneira através da qual a idealidade geométrica procede de sua origem primária
intrapessoal (do primeiro geômetra) para sua idealidade objetiva. É certo que o primeiro
estágio de transição à objetividade ocorre no meio da intersubjetividade lingüística. No
entanto, esta linguagem não pode limitar-se à dimensão da comunicação atual entre o
inventor e os outros cientistas, ou seja, ela não pode se limitar à dimensão da fala. “É
neste ponto que a importância da escritura, que Husserl descreve como ´comunicação
que advém virtual´, fica evidente. É apenas através da liberação em relação a toda
113
Idem, p. 50
114
DERRIDA, ibidem, p. 84
115
Idem, La voix et le phénomène, p. 91
subjetividade atual permitida pela escritura que a objetividade e comunicabilidade do
conhecimento científico pode ser finalmente asseguradas”116.
Esta dicotomia entre escritura e fala, entre inscrição e expressão, será de grande
importância para Derrida. Pois notemos um dentre vários pontos centrais. A
possibilidade do advento da escritura, enquanto espaço no qual a idealidade da verdade
pode se afirmar e a constituição da objetividade pode ser assegurada, é solidária de uma
certa anulação, de uma certa negação sem retorno do modo de presença e de
recuperação do sentido próprio à fala. Nos limites da fala, temos sempre a possibilidade
de direito de recuperar o sentido, isto através da atualização da intencionalidade do
falante. Nos limites da escritura, essa possibilidade se esvai. É tendo em vista um
programa de constituição de um modelo de reflexão sobre a linguagem baseado na
noção de escritura que Derrida passará à redação de A voz e o fenômeno.
A vida transcendental
116
DEWS, Peter; Logic of disintegration, p. 9
117
DERRIDA, ibidem, p. 3
118
HEIDEGGER, Nietzsche II
119
DERRIDA, ibidem, p. 8
geometria, o mundo da vida que serve de fundamento para a constituição das
idealidades geométricas não é o mundo de uma vida puramente factícia e empírica, mas
de uma vida que guarda no seu interior traços daquilo que tem validade transcendental e
trans-individual. Por outro lado, a própria “idealidade” será definida como a forma na
qual a presença de um objeto em geral pode ser indefinidamente repetida como o
mesmo. E aqui o conceito de “repetição do mesmo” é fundamental. Pois ele mostra
como a presença não é presença de algo que existe no mundo, mas é o nome que damos
à simples correlação com atos de repetição, eles mesmos ideais.
Mas Derrida não é indiferente a uma tensão no projeto husserliano. Pois esta
vida transcendental nunca conseguiria abstrair-se completamente do domínio da
facticidade e isto, de uma certa forma, acaba por interferir nos usos gerais do próprio
conceito de transcendental. Assim, Derrida pode, por exemplo, fazer uma afirmação
como:
120
DERRIDA, ibidem, p. 6
Mas este “nada” que distingue o Eu transcendental e o Eu empírico não implica,
por sua vez, alguma forma de adequação, o que só poderia nos levar à confusão de um
verdadeiro “psicologismo transcendental”. Na verdade, só seria possível “salvar” o
transcendental à condição de relativizar seu caráter constituinte a fim de compreendê-lo
principalmente como “inquietude transcendental” que impõe uma diferença que não
pode ser substancializada. Veremos como esta noção particular de transcendental, longe
de assegurar a fundamentação das condições de possibilidade de toda experiência,
acabará por servir de peça de desconstrução da noção mesma de “fundar”.
Por outro lado, é o conceito de vida que servirá para pensar esta relação de
paralelismo: “Mas a estranha unidade destes dois paralelos, o que os remete um ao
outro, não se deixa partilhar por eles e, dividindo-se a si mesmo, cola finalmente o
transcendental a seu outro, é a vida” 121. Esta vida não é apreendida em sua ingenuidade
pré-transcendental, na linguagem da vida ordinária ou na ciência biológica. Na verdade,
a vida empírica é colocada em parênteses para o aparecimento de uma espécie de “vida
transcendental”.
Para entender tal vida transcendental, devemos partir da indiscernibilidade entre
consciência e linguisticidade e, com isto, do “vínculo essencial” entre logos e phonè.
Como dirá Giorgio Agamben: “A linguagem humana é a ‘voz da consciência’, nela a
consciência existe e se dá realidade, porque a linguagem é a voz articulada” 122. No
entanto, Derrida lembrará que não é com a substância sonora ou com a voz física que
Husserl reconhecerá uma afinidade de origem entre logos e phonè: “mas à voz
fenomenológica, à voz na sua carne transcendental, ao sopro, à animação intencional
que transforma o corpo da palavra em carne, que faz do Körper um Leib, um geistige
Leiblichkeit”123.
Notemos aqui um dado essencial: a voz indica necessariamente o primado da
enunciação, indica que a linguagem tem lugar através do dizer o mundo. Mas este dizer,
antes de falar sobre o mundo, é dizer sobre si mesmo, é o movimento que expõe a
presença de uma linguagem que impõe ao mundo uma ordem através do dizer. Pois a
enunciação diz os objetos do mundo, mas ela os diz a partir da realização da presença
do enunciador, ela os diz como objetos diante do enunciador. Por isto, antes de
comunicar algo, a enunciação comunica a presença de alguém para um Outro. Ou, se
quisermos dar um passo arriscado, mas necessário no interior do argumento derridiano,
a enunciação não comunica algo, ela comunica fundamentalmente a presença do
enunciador. Se tomarmos o puro acontecimento da enunciação, se tomarmos a
manifestação irredutível da voz (e sempre podemos ouvir, para além da palavra que diz
a coisa, a pura voz que se mostra a si mesma), veremos que ela é não mais um puro
som, já que ela porta a expressividade da presença. No entanto, ela ainda não é o
significado de uma exterioridade.
Neste sentido, digamos que a pura enunciação traz inscrita em seu seio a
possibilidade de anular todo e qualquer “algo” para que a pura enunciação, o puro
querer-dizer possa se fazer ouvir. Um puro querer-dizer que : “indicando o puro ter-
lugar de uma instância de linguagem sem nenhum determinado advento de significado
[aqui no sentido de relação à referência], apresenta-se como uma espécie de ‘categoria
das categorias’ que subjaz desde sempre a todo pronunciamento verbal, sendo, portanto,
singularmente próxima da dimensão de significado do puro ser” 124. Talvez um dos
pensadores que melhor compreendeu esta natureza própria à linguagem baseada na
121
DERRIDA, ibidem, p. 14
122
AGAMBEN, Giorgio; A linguagem e a morte, p. 65
123
DERRIDA, ibidem, p. 15
124
AGAMBEN, ibidem, p. 55
enunciação foi Jacques Lacan. O mesmo Lacan que, partindo da experiência da fala no
interior da situação analítica, dirá : “A função da linguagem não é de informar [a
estrutura de um objeto pré-linguístico], mas de evocar [a presença de alguém para
alguém]. O que eu procuro na palavra é a resposta do outro [ainda com a minúscula]. O
que me constitui como sujeito é a minha questão”125.
A afirmação é clara: a função da linguagem não estaria na representação de um
dado natural ou no comunicar um sentido pré-existente à comunicação. Sua função
estaria fundamentalmente vinculada ao ato de presentificar um sujeito, ele mesmo
reduzido ao puro fato de falar, de se comunicar com um outro. Mas isto significa, e
Derrida saberá jogar com este problema até o final, que no próprio advento da
linguagem como instância de enunciação estará inscrita a possibilidade de negar toda
referencialidade, toda capacidade de fazer referência a “algo”.
A voz do signo
127
DERRIDA, ibidem, p. 18
128
DERRIDA, ibidem, p. 23
129
Idem, p. 44
130
HUSSERL, ibidem, p. 36
presente à consciência, o correlato intencional / noese : o ato que permite a apreensão
de significações pela subjetividade constituinte]
Abrir este campo exige uma forma de redução do domínio da indicação. Só
assim seria possível retornar à constituição ativa do sentido e do valor, à atividade de
uma vida produzindo a verdade e o valor em geral através dos signos. De fato, a
significação indicativa recobrirá tudo o que, na linguagem, será objeto de redução: a
factualidade, a existência mundana, a não-evidência etc. Ou seja, toda a camada de
efetividade empírica pertence a esta indicação que deve ser reduzida. Como se a
redução, antes mesmo de advir método se confundisse com o ato mais espontâneo do
discurso falado, a simples prática da palavra, o poder da expressão.
Mas se voltarmos à expressão, veremos que ela é, antes de tudo, a impressão, em
um certa exterioridade, de um sentido que se encontra inicialmente em uma certa
interioridade. Mas o exterior visado aqui é este de um objeto ideal, ele é a esfera
noético-noemática da consciência. Maneira de lembrar que não há expressão sem a
intenção de um sujeito fornecendo ao signo uma espiritualidade (Geistigkeit). Não há
expressão sem intenção voluntária, como se um ato involuntário ou, como dirá outro
aluno de Brentano, Freud, à mesma época de Husserl, um ato falho, não pudesse
expressar algo. Como se consciência intencional e consciência voluntária devessem ser
tratadas como sinônimos. Por isto, Derrida pode dizer que, apesar de todos os temas
relativos à intencionalidade receptiva ou intuitiva, assim como da gênese passiva, o
conceito de intencionalidade estaria aprisionado à tradição de uma metafísica
voluntarista: “o sentido quer se significar, ele só se exprime em um querer-dizer que e
apenas um querer-se-dizer da presença do sentido”131. Ou ainda:
Isto talvez nos explique porque tudo o que escapa da pura intenção espiritual é
excluído da expressão: o jogo da fisionomia, o gesto, a totalidade do corpo e da
inscrição mundana etc. mesmo o corpo só pode comparecer à expressão ao ser
transformado de Körper em Leib. A essência da linguagem é seu telos, e seu telos é a
consciência voluntária como querer-dizer. Neste sentido, podemos mesmo dizer que
aquilo que separa a expressão do índice é o que podemos chamar de não-presença
imediata de si do presente vivo. Pois há indicação toda vez que o ato que confere o
sentido, que a intenção animadora, a espiritualidade viva do querer-dizer não está
plenamente presente. Toda vez que a presença imediata e plena do significado não
estiver presente, o significante será de natureza indicativa e, por isto, inexpressivo.
Mas este presente é, até agora, presente a uma intuição ou a uma percepção
“interna”. Por isto, para recuperar a pura expressividade, faz-se necessário suspender a
relação ao outro. “Pois somente quando a comunicação é suspensa que a pura
expressividade pode aparecer”133. O que significa dizer que, de uma certa forma, a
expressão plena escapa ao conceito de signo, como vimos no exemplo do monólogo,
isto se pensarmos na definição clássica de signo: aquilo que representa alguma coisa
para alguém.
No entanto: “Derrida sugere que a tentativa husserliana de apagar as funções
externas e indicativas da linguagem através de uma série de reduções que culminam em
131
DERRIDA, ibidem, p. 37
132
Idem, p. 78
133
Idem, p. 41
uma fala interior auto-endereçada, está condenada ao fracasso”134. Ainda não sabemos
porque tal tentativa irá fracassar, nem sabemos claramente o que Derrida pretende
colocar em seu lugar. Para tanto, precisaremos esperar até a próxima aula.
134
DEWS, ibidem, p. 19
Curso Jacques Derrida
Aula 6
135
DERRIDA, La voix et le phénomène, p. 3
136
HABERMAS, O discurso filosófico da modernidade, Lisboa, Dom Quixote, p. 160
137
HEIDEGGER, Nietzsche II
138
DERRIDA, ibidem, p. 8
geral pode ser indefinidamente repetida como o mesmo. E aqui o conceito de “repetição
do mesmo” é fundamental. Pois ele mostra como a presença não é presença de algo que
existe no mundo, mas é o nome que damos à simples correlação com atos de repetição,
eles mesmos ideais.
Para entender o regime de presença próprio à tal vida transcendental, devemos
partir da indiscernibilidade entre consciência e linguisticidade e, com isto, do “vínculo
essencial” entre logos e phonè. Como dirá Giorgio Agamben: “A linguagem humana é a
‘voz da consciência’, nela a consciência existe e se dá realidade, porque a linguagem é a
voz articulada”139. No entanto, Derrida lembrará que não é com a substância sonora ou
com a voz física que Husserl reconhecerá uma afinidade de origem entre logos e phonè:
“mas à voz fenomenológica, à voz na sua carne transcendental, ao sopro, à animação
intencional que transforma o corpo da palavra em carne, que faz do Körper um Leib, um
geistige Leiblichkeit”140.
Notemos aqui um dado essencial: a voz indica necessariamente o primado da
enunciação, indica que a linguagem tem lugar através do dizer o mundo. Mas este dizer,
antes de falar sobre o mundo, é dizer sobre si mesmo, é o movimento que expõe a
presença de uma linguagem que impõe ao mundo uma ordem através do dizer. Pois a
enunciação diz os objetos do mundo, mas ela os diz a partir da realização da presença
do enunciador, ela os diz como objetos diante do enunciador. Por isto, antes de
comunicar algo, a enunciação comunica a presença de alguém para um Outro. Ou, se
quisermos dar um passo arriscado, mas necessário no interior do argumento derridiano,
a enunciação não comunica algo, ela comunica fundamentalmente a presença do
enunciador. Se tomarmos o puro acontecimento da enunciação, se tomarmos a
manifestação irredutível da voz (e sempre podemos ouvir, para além da palavra que diz
a coisa, a pura voz que se mostra a si mesma), veremos que ela é não mais um puro
som, já que ela porta a expressividade da presença. No entanto, ela ainda não é o
significado de uma exterioridade.
Neste sentido, digamos que a pura enunciação traz inscrita em seu seio a
possibilidade de anular todo e qualquer “algo” para que a pura enunciação, o puro
querer-dizer possa se fazer ouvir. Um puro querer-dizer que : “indicando o puro ter-
lugar de uma instância de linguagem sem nenhum determinado advento de significado
[aqui no sentido de relação à referência], apresenta-se como uma espécie de ‘categoria
das categorias’ que subjaz desde sempre a todo pronunciamento verbal, sendo, portanto,
singularmente próxima da dimensão de significado do puro ser” 141. Mas isto significa, e
Derrida saberá jogar com este problema até o final, que no próprio advento da
linguagem como instância de enunciação estará inscrita a possibilidade de negar toda
referencialidade, toda capacidade de fazer referência a “algo”. Haverá sempre, na
linguagem de signos, a possibilidade da palavra ser, como gostava de dizer Alexandre
Kojève, o assassinato da coisa.
Vimos, na aula passada, como Derrida procurava discutir esta natureza
particular da enunciação voltando-se se à discussão central de seu livro, a saber, o
conceito husserliano de signo. Derrida parte do comentário de um capítulo central do
das Investigações lógicas, intitulado : “Expressão e significado” (Ausdruck und
Bedeutung). Lá, Husserl afirma existir uma certa confusão no uso da palavra “signo”
(Zeichen). Por vezes, ele significa “expressão” (Ausdruck), por vezes “indicação”
(Anzeigen). A confusão nos faz esquecer que “todo signo e signo de algo, mas nem
139
AGAMBEN, Giorgio; A linguagem e a morte, p. 65
140
DERRIDA, ibidem, p. 15
141
AGAMBEN, ibidem, p. 55
todos tem um significado (Bedeutung) do qual o signo seria a expressão” 142. Pois
“signos no sentido de índices (Anzeichen) nada expressam”; eles seriam bedeutunglos,
sinnlos. O que não significa um signo desprovido de significação, um signo que nada
diz.
Husserl usa como exemplos de índice a relação entre a bandeira e a nação,
fósseis e animais pré-históricos, o stigma e o escravo. A respeito destes exemplos,
Husserl dirá que é índice tudo o que serve para indicar algo para uma essência pensante.
Tal definição é muito próxima da noção tradicional de signo como aquilo que designa
algo para alguém. Não é difícil perceber como estas definições não são claras a respeito
do que, afinal, devemos entender por “indicar algo” ou “designar algo”. Mais a frente,
Husserl falará de “indicar algo”, neste contexto, como uma relação de motivação que se
apresenta de maneira objetiva em processos associativos. Assim, Husserl recoloca o
problema da indicação no interior da discussão sobre associação de idéias que nos
remetem a estados de coisas, já a expressão não se submete à esta dinâmica de
associações.
Contrariamente a Frege, Husserl não distingue Bedeutung e Sinn, ou seja, a
relação à referência e o sentido da proposição [“O homem que se chamava Josef Stalin”
é a Bedeutung, é a denotação das proposições “O guia genial dos povos” e “O coveiro
da revolução”; proposições que, como podemos ver, têm sentidos, têm conotações
absolutamente diferentes]. Mesmo quando esta distinção aparece, ela não desempenha a
mesma função que desempenha em Frege. Esta recusa em operar com tal distinção trará
conseqüências para a dicotomia expressão/indicação. Pois ela implica em anular o
problema da relação à referência extra-linguística enquanto problema central na
definição de operações de significação.
Neste sentido, a expressão sempre pressuporia a idealidade de uma Bedeutung.
No entanto: “poderíamos talvez, sem forçar a intenção de Husserl, definir, ou mesmo
traduzir, bedeuten por querer-dizer, ao mesmo tempo no sentido de um sujeito falante
“exprimindo-se”, como diz Husserl, “sobre algo”, quer dizer, e no sentido do que uma
expressão quer dizer”143. Trata-se pois de pôr uma idealidade objetiva como Bedeutung,
como objeto da intenção de um querer-dizer. Como dirá Derrida, a expressão deve ser
compreendida como o signo animando por um querer-dizer (sendo que o querer-dizer,
devido à natureza da relação de intencionalidade, será sempre o ato de visar uma
relação de objeto).
Este querer-dizer é modo de presença, intersubjetivamente partilhado, que o
sujeito encontra quando opera uma redução fenomenológica. Ele é a demonstração de
que o próprio conteúdo do sentido não é outro que a pura presença. Daí porque Husserl
afirma não ser possível admitir que um solilóquio seja uma comunicação por signos,
pois: “em um discurso (Rede) monológico, não podemos nos servir da palavra como
índice para o ser de um ato psíquico”144. Em um monólogo, não há possibilidade de
dissociação entre a palavra e o estado psíquico que é por ela expressado. Na fala que
endereço a mim mesmo quando digo, por exemplo: “Você agiu mal”, a palavra aparece
como desprovida de distância, sua intenção me é completamente transparente (de
direito, não haveria espaço para uma intenção inconsciente aqui). Por isto, segundo
Husserl, seria necessário abrir o campo da vida solitária da alma a fim de apreender a
natureza da expressividade. Notemos como a hipótese da vida solitária da alma visa
provar que uma expressão sem indicação é possível. Como se a distinção entre
142
HUSSERL, Logische Untersuchungen vol II Teil I, p. 23
143
DERRIDA, ibidem, p. 18
144
HUSSERL, ibidem, p. 36
indicação e expressão acabasse por ser fundamentada na idéia de “vida interior” 145. Na
verdade, tudo o que é exterior será atribuído ao índice. Por outro lado, ela mostraria
como: “O significado (Bedeutung) de uma expressão está fundamentado nos atos da
intenção significante e da consumação intuitiva desta intenção – isto, claro está, não de
um modo psicológico, mas no sentido de uma fundamentação transcendental”146. Isto
nos leva a esta afirmação maior de Derrida:
Por outro lado, isto significaria dizer que, de uma certa forma, a expressão plena
escapa ao conceito de signo, isto se pensarmos na definição clássica de signo: aquilo
que representa alguma coisa para alguém. No entanto: “Derrida sugere que a tentativa
husserliana de apagar as funções externas e indicativas da linguagem através de uma
série de reduções que culminam em uma fala interior auto-endereçada, está condenada
ao fracasso”148.
O querer-dizer e a representação
A idealidade da forma da presença implica, com efeito, que ela possa se re-petir
ao infinito, que seu retorno, como retorno do mesmo, seja infinitamente
necessário e inscrito na presença como tal; que o retorno seja retorno de um
presente que se reterá em um movimento finito de retenção151.
todo vivo está num nexo de vividos essencialmente fechado em si não apenas do
ponto-de-vista da seqüência temporal, mas também do ponto de vista da
simultaneidade [neste sentido, o passado é, de uma certa forma, simultâneo ao
presente, ele é a distância do presente em relação a si mesmo]. Isso quer dizer
que todo agora de vivido possui um horizonte de vividos que também têm
justamente a forma originário do “agora”, e como tais constituem um único
horizonte de originariedade do eu puro, o seu agora de consciência completo e
originário [no entanto, este horizonte único de originariedade, deve nos lembrar
como “todo vivido carece de complemento” , como todo vivido está entre
retenção e representação]160.
Voz e escritura
159
HUSSERl, ibidem, § 82
160
HUSSERL, ibidem, p. §82
161
DERRIDA, La voix et le phénoméne, p. 77
Os dois últimos capítulos são talvez os mais importantes do nosso livro. Neles, Derrida
expõe mais claramente as funções de sua dicotomia entre uma concepção de linguagem
onde a idealidade do significado está assentada na expressividade da voz e outra
concepção cuja disseminação do significado está assentada na noção de escritura.
A respeito do primeiro caso, Derrida dirá claramente que toda crítica da razão
deve começar por uma crítica do fonocentrismo, já que :
162
DERRIDA, ibidem, p. 84
163
Idem, p. 85
164
Idem, p. 112
mas é uma diferença que, ao invés de aparecer na relação entre um termo e seu oposto, é
a diferença que aparece na relação entre fundamento e fundado. Não por acaso,
encontramos uma temática similar em outros autores franceses da época, como Deleuze
(Différence et répétition) e Lyotard (Le différend). Por isto, Derrida pode dizer que o
movimento da différance não é objeto a um sujeito transcendental, ele produz toda e
qualquer figura do sujeito. O sujeito é o que está no lugar da différance como
movimento em direção ao fundamento.
Por outro lado, différance é o nome do efeito produzido pela escritura. Já
sabemos como a escritura : “torna o que foi dito independente do espírito do autor e da
respiração do destinatário, bem como da presença dos objetos discutidos. O médium da
escritura confere ao texto uma autonomia lítica em face de todos os contextos vivos” 165.
Derrida encontra algo disto em Husserl através de sua “última exclusão”, esta que
distingue querer-dizer e intuição, já que a unidade da intuição e da intenção nunca é
homogênea. É ela que me lembra como a ausência total de sujeito e de objeto de um
enunciado – a morte do escritor e a desaparição dos objetos que ele descreveu – não
impedem um texto de “querer-dizer”. Mas o que é uma escritura, um puro traço que se
impõe lá onde nenhum sujeito da consciência está mais presente, lá onde nenhum objeto
já foi engendrado? Para entender melhor a cena desta escritura, nós devemos passar de
Husserl a um outro autor que Derrida não cessará de se confrontar, vindo da mesma
época: Sigmund Freud.
165
HABERMAS, ibidem, p. 342
Curso Derrida
Aula 7
167
Por « princípio de expressibilidade » entende-se que : « para qualquer sentido X e qualquer falante S,
não importa o que S queira dizer com X (intenções a expor, desejos a comunicação em um sentença, etc.),
é possível haver alguma expressão E de maneira que E seja a exata expressão ou formulação de X.
Simbolicamente : (S) (X) (S significa X P ( E) (E é a expressão exata de X)) » (SEARLE, Speech
acts, p. 20)
168
DERRIDA, ibidem, p. 37
Não é um acaso que Freud, em momentos decisivos de seu itinerário, recorra a
modelos metafóricos que não são emprestados da linguagem falada, das formas
verbais, nem mesmo da escritura fonética, mas de uma grafia que nunca é
assujeitada, exterior e posterior à palavra falada. Freud faz apelo a signos que
não vem transcrever uma palavra viva e plena, presente a si e segura de si169.
Antes de iniciar a leitura de nosso texto, faz-se necessário contextualizar esta operação
peculiar de recurso filosófico à psicanálise. Pois, por um lado, ela não será realmente
uma novidade no interior da experiência intelectual francesa do século XX. Desde a
fenomenologia de Sartre e de Merleau-Ponty, o recurso filosófico à psicanálise era uma
constante. Basta lembrar da maneira com que Sartre, após uma crítica conhecida à
pretensa inconsistência da noção freudiana de um inconsciente pensado principalmente
a partir das operações de recalcamento, termina O ser e o nada exatamente através da
proposição de uma psicanálise existencial. Pensemos ainda a maneira com que a
psicanálise acompanha Merleau-Ponty desde a Fenomenologia da percepção,
dedicando várias sessões de seus cursos no Collège de Franca à psicanálise, chegando a
propor, em seu O visível e o invisível, fazer não uma psicanálise existencial, mas uma
psicanálise ontológica.
Após a fenomenologia, a psicanálise será peça maior dos debates em torno do
estruturalismo graças a Lacan. Lévi-Strauss havia desenvolvido uma noção de
inconsciente estrutural fundamental para o psicanalista francês. Lacan não só absorverá
este programa estrutural proposto por Lévi-Strauss como constituirá uma incessante
interface entre filosofia e psicanálise, entre tradição filosófica e problemas clínicos
ligados às ditas doenças mentais que aparecerá de maneira promissora para toda uma
grande geração de filósofos franceses. Desta conjunção entre antropologia estrutural e
psicanálise, sairá um programa influente de pesquisa que alcançará Foucault e Louis
Althusser. Por exemplo, em As palavras e as coisas, livro que sai praticamente na
mesma época que o texto de Derrida sobre Freud, Foucault reconhecerá a função central
da psicanálise na ultrapassagem de uma epistème ainda presa à filosofia do sujeito e na
reconstituição do campo das chamadas “ciências humanas”. A este respeito, ele dirá
que:
169
DERRIDA, Ecriture et différence, p. 296
170
FOUCAULT, Les mots et les choses, pp. 375-376
Mesmo que os desdobramentos do pensamento de Michel Foucault lhe levarão a ver, na
psicanálise, um astuto dispositivo disciplinar, é inegável que a frequentação de textos e
questões psicanalíticas foi fundamental para a constituição de seu próprio programa
filosófico.
Por outro lado, filósofos como Deleuze e Lyotard não figuram à regra. Deleuze,
por exemplo, sempre teve grande proximidade com certos campos empíricos das
ciências humanas, como a psicologia e a psicanálise. Já a escolha de escrever
dissertações sobre Hume e Bergson tinha um pano de fundo ligado a epistemologia da
psicologia. Hume é um teórico fundamental para o associacionismo (corrente maior da
psicologia do início do século XX e bastante criticada pela psiquiatria fenomenológica
hegemônica em solo francês nos anos 50). Por sua vez, Bergson era tratado como
antípoda de uma perspectiva associada em psicologia à crítica do chamado “mito da
vida interior” (Politzer). Já sobre a psicanálise, Deleuze se mostrará um leitor atento de
Freud e Lacan. Isto é visível desde “Apresentação de Sacher-Masoch”. Há uma
recorrência constante à psicanálise em Diferença e repetição e Lógica do sentindo,
principalmente através da teoria das pulsões e do fantasma com sua noção de objeto do
fantasma.
No entanto, O anti-Édipo representa uma ruptura brutal em relação a tal
perspectiva de aproximação. Em larga medida, a resposta a tal ruptura (que também
pode ser encontrada em Foucault) concerne o impacto filosófico de maio de 68. O anti-
Édipo acabou conhecido com o livro que mais claramente sustentou as aspirações
libertárias globais que animaram a revolta de 68. Tais aspirações foram patrocinadas em
larga medida pela recuperação de uma crítica às instituições que se voltou
necessariamente contra a maneira com que a psicanálise seria dependente da inscrição
do desejo no interior das regras do núcleo familiar, da perpetuação de estruturas
normativas burguesas de socialização que seriam os verdadeiros núcleos de reprodução
do capitalismo como forma de vida.
O caso da relação entre Derrida e a psicanálise segue, no entanto, uma
coreografia distinta destas relações de proximidade e distância que animam as
experiências intelectuais de Foucault e Deleuze. Derrida sempre verá em Freud um
interlocutor maior, isto a ponto de dizer: “seria inútil lembrar que desde Da
gramatologia e Freud e a cena da escritura todos meus textos inscreveram o que
chamaria de seu “alcance” psicanalítico?” 171. Maneira de reconhecer que toda a
discussão sobre a definição mesmo de “escritura’ encontrava na obra freudiana um
apoio fundamental. Por outro lado, Derrida sempre verá em Lacan um risco de retorno
da psicanálise às vias de uma filosofia do sujeito e à uma teoria da linguagem
claramente fonocêntrica. Sua leitura de Freud será, assim, em larga medida, autônoma e
distante de certas elaborações maiores de Lacan (a grande referência na psicanálise
francesa da época). Pois ela se inscreve na sua estratégia de fornecer uma dupla crítica a
duas continuações possíveis do fonocentrismo: a fenomenologia e o estruturalismo. Na
verdade, o esforço de Derrida poderá ser descrito como a tentativa de evidenciar, contra
Lacan, que as elaborações freudianas abrem o espaço para uma consideração sobre a
relação entre linguagem e inconsciente radicalmente estranha ao primado estruturalista e
fora de considerações antropológicas sobre o homem, filosóficas sobre a consciência e
lacanianas sobre o sujeito.
Se quisermos organizar os vários momentos de confrontação entre Derrida e a
psicanálise, encontraremos quatro momentos relativamente distintos. O primeiro é
fornecido por Freud e a cena da escritura. Aqui, trata-se principalmente de se apoiar na
teoria freudiana do inconsciente, da memória e da temporalidade (lembremos como o
171
DERRIDA, Positions, p. 110
problema da temporalidade e da memória já eram apresentados, à ocasião do
comentário dos textos de Husserl, como caminho para a crítica da metafísica da
presença), isto a fim de fornecer as coordenadas gerais de uma reconstrução da psique
para além da filosofia da consciência.
Quase quinze anos depois, em 1981, Derrida retornará a Freud e a Lacan no
livro O cartão-postal: de Sócrates a Freud e além. Neste livro onde é questão da
natureza da escritura e do endereçamento, encontramos uma longa parte intitulada
“Especular – sobre “Freud”” onde é questão, principalmente, das conseqüências da
teoria freudiana das pulsões para a desconstrução. Uma leitura do texto Para além do
princípio do prazer é sugerida. Nela, Derrida mostra-se bastante cônscio da operação
que faz. A teoria das pulsões é o núcleo daquilo que Freud chamou de “metapsicologia”
e que deve ser compreendido como uma espécie de núcleo conceitual “especulativo”
onde, a meu ver, encontramos algo muito próximo de uma verdadeira ontologia do
conflito (entre vida e morte, se quisermos utilizar os termos empregados por Freud).
Derrida serve-se desta teoria para pensar uma “intencionalidade pulsional”, uma
disposição em direção aos objetos enraizada em uma concepção peculiar de impulso.
Neste sentido, estas elaborações visam complementar o que já se apresentava em Freud
e a cena da escritura.
Um terceiro momento vem, novamente, quase quinze anos depois, com o
lançamento do livro Mal de arquivo, em 1995. Nesta época, Derrida também copila
alguns de seus textos dedicados à psicanálise em outro livro : Resistências à
psicanálise, de 1996. Servindo-se da metáfora da memória como arquivamento, Derrida
procura aprofundar as conseqüências de pensar operações de memória partindo da
existência de uma pulsão de morte, ou seja, de uma pulsão de dissolução e anulação do
que a memória procura arquivar. No fundo, trata-se de procurar pensar em profundidade
o paradoxo de um aparelho psíquico, como o proposto por Freud, onde a pulsão de
morte não é um mero entulho metafísico, mas um dispositivo central no funcionamento
do aparelho.
Por fim, um último momento pode ser encontrado no livro Estados de alma da
psicanálise, de 2000. Se admitirmos uma certa leitura que procura definir os últimos
textos de Derrida como animados por algo que poderíamos chamar de “guinada ética”,
veremos que a psicanálise aparecerá como um regime de discurso capaz de pensar as
antinomias entre soberania e crueldade. Antinomias que, segundo Derrida, seriam peças
fundamentais para toda e qualquer reflexão ética.
Como vemos, o recurso à psicanálise é periodicamente renovado por Derrida,
não se limitando a momentos específicos e restritos de sua experiência intelectual. Esta
constância demonstra a centralidade da operação, aliando a psicanálise a outros
discursos (como a literatura) que permitiram a Derrida integrar a filosofia em um
movimento de tensão com outras áreas da cultura. Esta aproximação funcional entre
psicanálise e literatura, longe de ser compreendida como uma depreciação à
objetividade analítica, significa para Derrida reconhecimento da similitude entre
discursos capazes de não se submeterem ao regime fonocentrico da linguagem.
Escritura psíquica
Em que condições podemos projetar a escritura psíquica, o que ela impõe para a
própria compreensão do que é uma metáfora? Certamente, e esta é uma frase
fundamental, “não há psíquico sem texto”, nem há texto sem origem psíquica. Mas nada
disto significa dizer que o psíquico seja um “mero” texto. Antes, seria correto dizer que
o psíquico reconstrói nossa noção trivial de texto, abrindo-nos para “o sentido da
escritura no sentido corrente”.
Três são os passos dados por Derrida na análise do que seria o conceito
freudiano de escritura psíquica. Em todos estes passos, vemos o aprofundamento de um
problema central que derivaria dos textos freudianos, a saber, o problema da memória.
Derrida chega a afirmar que: “A memória não é uma propriedade do psíquico entre
outras, ela é a essência mesma do psíquico” 184. No fundo, Freud e a cena da escritura é
um texto sobre como o conceito freudiano de memória nos obriga a sair dos limites de
uma filosofia da consciência.
Vimos, na aula passada, como Derrida iniciava seu trajeto comentando um
manuscrito de Freud, datado de 1895: Projeto para uma psicologia científica. Este texto
foi abandonado por Freud por considerar seu programa, em larga medida, um fracasso.
Sua intenção, diz Freud, era: ‘fornecer uma psicologia como ciência natural, ou seja,
apresentar os processos psíquicos como estados quantitativamente determinados de
partes materiais determináveis e, com isto, livra-los de contradição” 185. Neste sentido, o
Projeto é a versão mais bem acabada da tentativa freudiana de adequar as elaborações
por ele desenvolvidas na clínica das neuroses (principalmente após os Estudos sobre a
histeria, de 1895) à neurologia. O que encontraremos aqui é, entre outras coisas, a
tentativa de descrever o aparelho psíquico através de partes materiais que são, na
verdade, neurônios. Derrida toma as descrições neuronais de Freud como metáforas, o
181
DERRIDA, Ecriture et différence, p.297
182
Idem, p. 296
183
Idem, p. 297
184
Idem, p. 299
185
FREUD, Nachtragsband, p. 387
que, é claro, está longe das reais intenções de Freud. Na verdade, ele as toma como os
rudimentos da construção metafórica de uma máquina de escritura.
O aparelho psíquico, por sua vez, estaria constituído a partir de um princípio
fundamental de funcionamento : o princípio de inércia. Este princípio de inércia faz com
que os neurônios tendam normalmente a se desembaraçar das quantidades de excitação
a fim de conservar um estado anterior, o que demonstra como é a excitação que leva o
aparelho psíquico a abandonar sua tendência original ao repouso. Ao se desembaraçar
de tais quantidade, os neurônios voltariam ao seu estado original. Assim, o processo de
descarga (Abfuhr) – pensado principalmente como descarga através da fuga - aparece
como a função primária do sistema nervoso. Se no caso das excitações vindas do mundo
externo, o aparelho psíquico pode se desembaraçar do aumento da excitação através da
motricidade, ou seja, fazendo o organismo afastar-se da fonte de excitação, no caso das
excitações endógenas, a descarga só pode significar satisfazer as exigências ligadas à
fome e à sexualidade, já que a motricidade neste caso é sem conseqüência.
No entanto, esta satisfação exige que o aparelho psíquico seja apto a realizar
funções específicas. Temos então duas funções : funções primárias (ligadas à tendência
à descarga) e funções secundárias (ligadas às ações específicas). Tais funções
secundárias exigiriam a existência de algo como a memória que, por sua vez, depende
da capacidade de “armazenamento (Aufspeicherung) de quantidades” de energia. Para
que exista memória, faz-se necessário que as excitações deixem marcas, traços
duráveis186. Mas se a memória depende da capacidade de armazenamento, ela implica
também uma capacidade de conservar modificações; o que aparentemente entra em
contradição com a tendência à descarga. Neste sentido, a explicação da existência da
memória aparece como uma das funções fundamentais do manuscrito freudiano.
A solução freudiana consistirá em dizer que o aparelho psíquico conheceria, ao
menos, duas categorias de neurônios que se distinguem devido simplesmente ao nível
de resistência produzida nos pontos de contato entre um neurônio e outro. Para designar
tais pontos, Freud utiliza o termo “barreira de contato” (Kontaktschranken). Se estas
barreiras permitem a passagem sem entraves de quantidades, então temos “neurônios
permeáveis”. Se, ao contrário, tais barreiras dificultam a passagem de quantidades,
então teremos “neurônios impermeáveis”, resistentes e retentores de quantidades. A
memória depende destes últimos, que Freud chamará de neurônios ψ. Os primeiros
seriam responsáveis pela percepção, recebendo o nome de neurônios φ. Que a
percepção seja caracterizada por neurônios permeáveis, isto se explica pelo fato da
recepção a novas sensações e excitações ser condição maior para a sobrevivência do
organismo e para a plasticidade de sua relação ao meio ambiente. Esta distinção entre a
passividade da percepção que recebe as impressões externas e a atividade da memória
será uma constante na teoria freudiana da mente.
A descrição de Freud segue, em larga medida o seguinte esquema: uma
quantidade Q de excitação passa pelos neurônios φ e atingem os neurônios responsáveis
pela memória. Se ela for muito intensa, se sua repetição for freqüente, ela abrirá
caminhos entre as barreiras de contato. Senão, elas não modificarão o contato entre
neurônios. Este ato de abrir caminhos, que Freud associa à dor (pois a dor é o que indica
a irrupção de grandes quantidades em ψ; daí porque, diz Freud, ela seria “o mais
186
Joel Birman resume bem o conceito de memória no Projeto: “A memória seria um conjunto de marcas
neurobiológicas, denominadas e engramas, nas quais tais marcas seriam as resultantes das resistências que
se oporiam à livre circulação das excitações. Neste contexto, o organismo visaria a descarga total das
excitações, pela sua tendência fundamental à inércia. Porém, como tal descarga absoluta implicaria na
morte do organismo, a “urgência da vida” se oporia então à dita descarga total. Com isso, a descarga seria
apenas parcial, de forma somente que uma parcela das excitações se manteria circulante no organismo”.
(BIRMAN, Escritura e psicanálise: Derrida, leitor de Freud)
imperioso de todos os processos”) , é o que ele chama de Bahnung (que, em português
traduzimos ou por “facilitação” ou por “trilhamento”). A memória é, de fato,
representada por estes caminhos de condução de excitações que encontramos nos
neurônios ψ. Como vemos, trata-se aparentemente de um mero jogo de forças entre
pressão de quantidades de excitação e resistência. Como se a significação, evento
necessário aos fenômenos da memória, nascesse da força pressuposta pela intensidade,
pela repetição e pela resistência. Como se a “força produzisse o sentido”187.
Vimos, na aula passada, como podíamos, a partir daí, entender melhor o que
Derrida tem em vista ao afirmar que: “a vida psíquica não é nem a transparência do
sentido, nem a opacidade da força, mas a diferença no trabalho das forças. Nietzsche já
havia dito isto”188. Há uma longa tradição de leituras sobre a psicanálise freudiana que
insista em uma dicotomia entre a linguagem da força e a linguagem do sentido presente
na metapsicologia. Por um lado, Freud seria ainda dependente das expectativas
científicas da psicologia experimental do final do século XIX e das Naturwisseschaften.
Por isto, os processos psíquicos deveriam ser descritos a partir de um vocabulário onde
se mistura neurologia e metáforas científicas vindas da termodinâmica (força, energia,
pressão, descarga etc.). Mas, por outro, sua experiência intelectual abriria espaço para
uma hermenêutica do sentido, onde a cura seria pensada a partir do modelo de
interpretações de uma consciência que paulatinamente apreenderia reflexivamente suas
próprias produções. Neste sentido, Freud se aproximaria das Geistwisseschaften.
Derrida procura, na verdade, mostrar como, em larga medida, o pensamento
freudiano mostra a primazia dos puros jogos de força, daí a aproximação sugerida entre
Freud e Nietzsche. A aproximação serve para expor a figura de uma memória que
funciona como escritura sem consciência, escritura que mostra, à contracorrente do que
poderíamos esperar, que a memória não é um atributo da consciência. De fato, Derrida
precisa insistir que, em Freud, encontramos inicialmente a idéia da memória como um
sistema de Bahnungen, de ligações neuronais ou, se quisermos utilizar um termo caro a
Derrida, de traços que foram constituídos levando em conta apenas diferenças entre
jogos de forças. A este respeito, Derrida falará de “topografia de traços”, “mapa de
trilhamentos”, “espaçamento”.
Neste sentido, Derrida pode ainda se apoiar no fato de, no Projeto para uma
psicologia científica, Freud introduzir a consciência apenas como uma terceira categoria
de neurônios, por ele chamada de neurônios ω. Todo processo que vai da percepção à
memória seria feito sem apelo à consciência. Caberia à consciência apenas a
transformação de relações de quantidade em diferenças de qualidade. Em especial,
caberia à consciência operar as distinções qualitativas próprias às sensações conscientes
de prazer e desprazer, base para a construção de julgamentos. Mesmo neste caso, a
distinção qualitativa entre prazer e desprazer será compreendida a partir da noção de
assimilação do período de uma excitação, do tempo de retorno de uma excitação.
Esta posição extemporânea da consciência fica ainda mais clara em uma carta de
Freud a Fliess (n.52). Aqui, Freud apresenta um esquema onde descreve mais
claramente o que seria o trajeto que vai da percepção de um estímulo à formação de
uma representação consciente a ele associado. No Projeto, entre a percepção e a
consciência, havia a memória. Na carta, Freud descreve a memória através de três
estratos distintos que se formam sucessivamente : os signos de percepção (I), o
inconsciente (II) e o pré-consciente (III). Esta estratificação é fundamental por indicar
as sucessivas modificações das inscrições geradas pelo estímulo até alcançar a
representação consciente. Pois, como dirá o próprio Freud: “o que há de essencialmente
187
Idem, p. 316
188
Idem, p. 299
novo em minha teoria é a ideia de que a memória está presente não apenas uma, mas
várias vezes e que se compõe de diversas formas de “signos””189.
O que há de essencialmente novo aqui é a ideia de que a memória produz
inscrições em um sistema estratificado onde a passagem de um estrato a outro nunca é
uma simples tradução, mas uma transcrição (Umschrift). Através destas reinscrições em
estratos, os traços mnésicos são periodicamente reordenados. Toda nova inscrição
modifica a inscrição precedente. Por outro lado, muitas vezes a passagem de certos
traços, de um estrato a outro, é bloqueada através de recalques. Assim, o que chega à
representação da consciência muito pouco tem a ver com o estímulo que apareceu no
nível da percepção.
De fato, Israel Rosenfield mostrou como Freud havia reconhecido o caráter
fragmentário e ambíguo das imagens da memória. Pois elas não são arquivadas como
impressões de coisas. Seu caráter fragmentário é o que permite, inclusive, os processos
de deslocamento e de condensação presentes nas formações oníricas. Não é a ausência
de contexto que faz o sonho retrabalhar a lembrança, sobredeterminá-la. Antes, as
próprias lembranças foram armazenadas como fragmentos. Neste sentido, a atualização
de uma lembrança nunca poderá ser a mera apresentação de um conteúdo previamente
arquivado. Ela é a construção de um sentido a partir das exigências do presente. Derrida
alude a isto ao afirmar:
O texto consciente não é uma transcrição porque ele não teve que transpor, que
transportar um texto presente em outro lugar, sob a forma do inconsciente (...)
Não há verdade inconsciente a encontrar como se ela estivesse escrita em outro
lugar. Não há texto presente e escrito em outro lugar, que daria lugar, sem ser
modificado, a um trabalho e a uma temporalização (esta pertencendo, se
seguimos a literalidade freudiana, à consciência) que lhes seria exterior e
flutuaria em sua superfície190.
Na verdade, nós todos recriamos o passado, e uma repetição não deve ser
compreendida como um ato simbolizando um acontecimento que já ocorreu, mas
como uma história global de esforços desdobrados para reaprender o passado,
história situada em um contexto dado, em um certo momento, que é este própria
à repetição191.
O que demonstra como, fora do presente, a memória não existe. Ela faz da tríade
passado/presente/futuro não uma sucessão, mas uma conexão que, muitas vezes, se
justapõe. Como não é apenas uma retenção, mas atividade, a memória não conhece
passado estático, ou futuro não-realizado. A este respeito, lembremos, como dirá
Loewald, que esta reinscrição do passado a partir do presente não modifica “o que
189
FREUD, Carta 52
190
DERRIDA, ibidem, p. 313
191
ROSENFIELD, L´invention de la mémoire, p. 90
objetivamente aconteceu no passado”, mas modifica o passado que o paciente carrega
consigo em sua história vivida. No entanto, vale a pena meditar sobre o fato de que:
Esta é uma colocação importante que ultrapassa o quadro estrito das técnicas de
intervenção clínica. Da mesma forma como não há percepção bruta, ou seja, a
percepção não é apenas o registro da presença de objetos, mas toda percepção é juízo
carregado da memória das percepções passadas, há faculdades conceituais em operação
na mais simples percepção, o rememorado nunca é um mero fato, pois de nada nos
interessam fatos. Rememoramos experiências como separação, luto e perdas;
experiências que, por sua vez, são continuamente recompreendidas através de sua
articulação contínua com acontecimentos posteriores. Um pouco como estas cadeias
significantes em Lacan nas quais o acréscimo de um elemento tem a capacidade de
mudar retroativamente o sentido de todos os demais.
Lembremos, por exemplo, de como funciona o trabalho de luto. Freud tem um
descrição clara do processo:
A prova de realidade mostrou que o objeto amado já não existe mais e agora
exige que toda a libido seja retirada de suas ligações com esse objeto. Contra
isso se levanta uma compreensível oposição: em geral se observa que o homem
não abandona de bom grado uma posição da libido, nem mesmo quando um
substituto já se lhe acena. Essa oposição pode ser tão intensa que ocorre um
afastamento da realidade e uma adesão ao objeto por meio de uma psicose
alucinatória de desejo. O normal é que vença o respeito à realidade. Mas sua
incumbência não pode ser imediatamente atendida. Ela será cumprida pouco a
pouco com grande dispêndio de tempo e de energia de investimento, e enquanto
192
LOEWALD, Hans, idem, p. 146
193
LOEWALD, idem, p. 148
isso a existência do objeto de investimento é psiquicamente prolongada. Uma a
uma, as lembranças e expectativas pelas quais a libido se ligava ao objeto são
focalizadas e superinvestidas e nelas se realiza o desligamento da libido194.
O bloco mágico
194
FREUD, Sigmund; Luto e melancolia, São Paulo: Cosac e Naify, 2011, p. 49
195
Ver, por exemplo, os ensaios de Jeanne Marie Gagnebin sobre a “experiência liminar” em
GAGNEBIN, Jeanne Marie; Limiar, aura e rememoração: ensaios sobre Walter Benjamin, São Paulo:
Editora 34, 2014
constituição de uma escrita. A segunda folha, aquela que realmente recebe as
impressões, serve como proteção para a primeira. Se esta estivesse diretamente em
contato com o bloco de resina, ela se rasgaria facilmente. Ao retirar o contato das folhas
com o bloco, ela volta a ficar vazia, enquanto todas as marcas passam para a resina.
Com o tempo, as marcas vão se acumulando, transformando-se em traços
incompreensíveis e interferindo na superfície de contato das folhas.
Freud encontra neste brinquedo uma metáfora para pensar a articulação entre
receptividade ilimitada da percepção e conservação de traços duráveis pela memória.
Articulação que lhe fez sustentar a existência de dois tipos de neurônios; um vinculado à
percepção e outro a memória. Ele ainda serve para figurar este processo de “suspensão
do contato” entre consciência e inconsciente através da separação periódica entre as
folhas e o bloco.
O fato de estarmos diante de uma máquina de escritura é algo que não deve ser
negligenciado. Que a mente tenha como metáfora privilegiada um sistema de escrita e
de conservação de traços é algo que diz muito a respeito de como entendemos a
atividade da memória, para além da ideia clássica do arquivamento de imagens. Falta à
metáfora do bloco mágico, no entanto, a capacidade de não apenas receber impressões
de fora, mas também de escrever a partir de dentro, como se a escritura pudesse se
reproduzida do bloco em direção às folhas. Caso isto ocorresse, ou seja, caso a
percepção pudesse se deixar marcar pela memória, então teríamos uma representação
perfeita do aparelho psíquico.
Curso Derrida
Aula 9
A unidade de tudo o que se deixa visar hoje através dos conceitos os mais
diversos da ciência e da escritura é inicialmente, mais ou menos de forma secreta
mas sempre, determinada por uma época histórico-metafísica da qual apenas
entrevemos o encerramento (...) O futuro só pode se antecipar na forma do
perigo absoluto. Ele é o que rompe absolutamente com a normalidade
constituída e só pode se anunciar, se apresentar, sob a forma da monstruosidade.
Para este mundo por vir e para o que nele teria feito tremer os valores do signo,
da fala e da escritura, para o que conduz aqui nosso futuro anterior, não há ainda
epígrafe196.
Pois haveria uma proximidade absoluta entre a voz e o ser, a voz e o sentido do ser, a
voz e a idealidade do sentido.
Por outro lado, devemos lembrar como Derrida insiste que mesmo um conceito
transcendental de consciência (como o que encontraríamos na fenomenologia de
Husserl) não pode deixar de se sustentar em uma certa antropologia. Daí porque Derrida
197
DERRIDA, De la grammatologie, p. 97
198
Idem, p. 124
199
Idem, La voix et le phénomène, p. 8
200
AGAMBEN, A linguagem e a morte, p. 55
era sensível a afirmações como: “Na dimensão da consciência, a humanidade normal e
adulta (excluindo o mundo dos anormais e das crianças) é privilegiada como horizonte
de humanidade e como comunidade de linguagem” 201. Pois se a maturidade do homem
adulto e sua normalidade permitem uma determinação eidético-transcendental rigorosa
da consciência, então: “o privilégio de Husserl implica que uma modificação factual e
empírica – a normalidade adulta – pretenda ser uma norma transcendental universal”202.
Se quisermos utilizar uma palavra proibida, podemos dizer que tal modificação factual e
empírica não seria outra coisa que uma certa recaída na dimensão do psicológico.
Assim, quando Derrida afirmava que a gramatologia poderia colocar em questão
o nome do homem, tratava-se de ver, em uma reflexão sobre a linguagem que parte do
primado da escritura, a possibilidade de tematizar a dependência das ciências humanas a
um campo transcendental anterior à constituição de todo e qualquer sujeito. Daí uma
afirmação central como:
Sem a última objetivação que a escritura permite, toda linguagem estaria ainda
cativa da intencionalidade factícia e atual de um sujeito falante ou de uma
comunidade de sujeitos falantes. Ao virtualizar absolutamente o diálogo, a
escritura cria uma forma de campo transcendental autônomo a respeito do qual
todo sujeito atual pode se abster203.
Vimos no início de nosso curso como, em todo lugar onde é questão do signo,
Derrida acredita encontrar sempre a mesma metafísica. Para ele, a era histórica da
determinação do sentido do ser como presença é a era do signo. Para Derrida, esta era
histórica do signo encontra seu ponto de maturidade no momento em que a
determinação da presença absoluta aparecer como presença à si no interior da
subjetividade. Ou seja, ele tem inicialmente em mente o grande racionalismo do século
XVII. No entanto, sua crítica ao signo terá, em Da gramatologia, dois personagens
principais. Dois personagens aparentemente totalmente distantes um do outro, a saber, o
lingüista Ferdinand de Saussure e o filósofo Jean-Jacques Rousseau. Neste amálgama,
vemos a tentativa derridiana de desenvolver uma crítica do signo que dê conta, em um
movimento duplo complementar, tanto da “ciência ideal” que visava animar um
processo de racionalização do quadro interdisciplinar das ciências humanas (lingüística
estrutural de Saussure), quanto de uma crítica da razão moderna que forneceu um dos
quadros mais duradouros de reflexão da crítica do progresso. Por outro lado, Derrida vê
em Rousseau uma expressão maior do sujeito moderno através de sua crítica da
201
HUSSERL, L´origine de la géométrie, p. 182
202
LAWLOR, ibidem, p. 112
203
DERRIDA, Introduction à l´Origine de la géométrie, de Husserl, p. 84
204
Idem, De la grammatologie, p. 39
205
Idem, p. 141
escritura representativa, decaída, segunda, instituída, isto em prol da voz e da palavra.
Voz que funda a consciência e o corpo (as paixões como a voz do corpo). Por isto, boa
parte de Da gramatologia será dedicada ao comentário do Ensaio sobre a origem das
línguas.
Derrida apoiava-se em trechos de Saussure a respeito da relação entre linguagem
escrita e linguagem falada a fim de mostrar o vínculo da lingüística estrutural à
metafísica. De fato, Saussure afirma que a única razão da existência da escrita seria a de
representar a linguagem falada. Esta submissão da escrita à fala seria apenas mais um
capítulo a demonstrar que:
O pecado sempre foi definido – entre outros por Malebranche e por Kant – como
a inversão das relações naturais entre a alma e o corpo nas paixões. Saussure
acusa aqui a inversão das relações naturais entre a fala e a escritura. Não é uma
simples analogia: a escritura, a letra, a inscrição sensível sempre foram
consideradas pela tradição ocidental como o corpo e a matéria exteriores ao
espírito, ao sopro, ao verbo e ao logos. E o problema da alma e do corpo é sem
dúvida derivado do problema da escritura. Problema a respeito do qual –
inversamente – ele parece emprestar suas metáforas206.
206
Idem, p. 52
207
SAUSSURE, Cours de linguistique générale, p. 45
208
Idem, p. 53
209
DERRIDA, De la grammatologie, p. 55
existido, ela nunca estaria intacta, já que sempre foi uma arqui-escritura. A escritura
habita a fala desde sempre.
Para insistir em tal caráter, Derrida fala da escritura como “traço instituído”,
como inscrição ainda não organizada em sistema. Um traço que é pura diferença, pois
não vale como originário, assim como vimos nos traços mnésicos freudianos.
A fim de mostrar como a escritura habita a fala desde sempre, Derrida se propõe
criticar o conceito saussureano de signo. Tal como no caso do conceito de signo na
fenomenologia de Husserl, Derrida quer mostrar como há algo no interior do signo que
não pode mais ser compreendido no interior dos limites da metafísica da presença. Por
isto, o destino do signo seria procurar recalcar algo que, no limite, lhe ultrapassa.
Saussure definia o signo como a união de um conceito e de uma imagem
acústica, ou seja, de um significado e de um significante. Notemos inicialmente como o
“conceito” ao qual Saussure refere-se é apresentado como uma imagem genérica de
objeto ou, se quisermos utilizar uma descrição de Heidegger, “vista de um objeto
qualquer”. Esta imagem está em posição de esquema e permite ao esquema pôr-se como
"conceito sensível de um objeto", como transposição sensível do conceito. Para que haja
uma transposição sensível do conceito, faz-se necessário uma regra capaz de prescrever
a inserção do sensível em uma vista possível, prescrição que cria uma imagem do
conceito de um objeto, e não imagem de um objeto particular. Daí a afirmação:
É pensando em uma perspectiva desta natureza que Derrida pode ver, na noção
saussureana de significado, uma “idealidade de sentido”211.
Por outro lado, lembremos como Saussure não define o significante como uma
substância sonora, como a realidade fática imediata da palavra falada. Antes, ele é a
representação psíquica de um som, uma imagem acústica, imagem que aparece quando
dizemos uma palavra em um monólogo interior. Isto não deixa de nos remeter à leitura
que Derrida propôs de Husserl, onde o recurso à vida interior, ao solilóquio, aparecia
como fundamento para o sentido compreendido como expressão. Tendo em vista as
temáticas apresentadas em seus estudos sobre Husserl, Derrida se mostra bastante
advertido em relação à maneira com que o recurso à noção de imagem acústica procura
livrar a sistematicidade da língua da dependência à empiricidade da fala efetiva, pois:
Pois esta representação psíquica do som não pode ser compreendida como uma
realidade interna simplesmente copiando uma realidade externa. Por trazer no seu bojo a
diferença irredutível em relação à substância fônica, ela nos remete ao problema da
idealidade da expressão em Husserl. A diferença se dá aqui, de uma certa forma, como
diferença ontológica entre a faticidade da substância fônica e a idealidade da imagem
210
HEIDEGGER, idem, p. 159
211
DERRIDA, De la gramamtologie, p. 93
212
Idem, p. 93
acústica. Derrida chega a falar da diferença entre o “sensível aparecendo” e o “aparecer
vivido” (que Saussure chama de “impressão psíquica” /empreinte psychique). Esta
imagem acústica que não é exatamente minha fala, que é fala de ninguém, já que é
idealidade que funda a possibilidade do som organizar-se em sistema.
No entanto, Derrida baseia-se nesta noção de idealidade presente no sistema de
significantes para interpretar a afirmação de Saussure: “A língua não é uma função do
falante, ela é o produto que o indivíduo registra passivamente” 213. Se o indivíduo
registra passivamente a língua como produto é porque ela se impõe a ele em sua
sistematicidade. Na verdade, ele deve, no limite anulá-lo, anular a faticidade de sua fala,
para poder impor-se em sua realidade transcendental. Como se no processo de
clarificação da presença, a relação à empiricidade fosse sendo apagada. Como se a
referência à idealidade em sua pureza fosse indissociável de uma certa forma de
dissolução bem enunciada nesta longa afirmação de Derrida:
Vimos em aulas passadas como este tema era central. Ele volta em nosso texto
através da afirmação canônica: “Todo grafema é testamentário. E a ausência original do
sujeito da escritura é também esta da coisa ou do referente” 215. Se a possibilidade do
signo é esta relação à morte, outro nome possível ao processo de confrontação da
palavra com um certo vazio de objeto, então somos obrigados a admitir uma tensão
interna à determinação mesma da noção de presença. Pois a relação à desaparição em
geral, à morte, encontra-se paradoxalmente no cerne da determinação do ser como
presença. Como se a possibilidade da minha desaparição em geral devesse ser
vivenciada para que uma relação à presença em geral pudesse ser instituída. Como
Derrida não admite um sujeito transcendental que deixe de ter sua gênese em uma
antropologia que tem medo de dizer seu nome, ficamos com a situação paradoxal de nos
confrontarmos com um sistema de significantes que se afirma anulando a possibilidade
de sua recuperação por uma consciência. Desta forma, Derrida espera realizar a
desconstrução da noção e signo a fim de que o advento de uma arqui-escritura
desprovida de sujeito possa aparecer.
213
SAUSSURE, ibidem, p. 30
214
DERRIDA, La voix et le phénoméne, p. 60
215
Idem, De la grammatologie, p. 101
decaído de “homem”. Nos dois casos, encontramos uma exclusão intransponível entre
nossas formas de vida e o que teria ficado adormecido na origem.
A fim de realizar tal projeto de desconstrução, a gramatologia deve livrar-se de
três preconceitos insistentemente presentes em reflexões sobre a história da escritura. O
primeiro é um certo preconceito “teológico” que assume o mito de uma escritura
primitiva e natural dada por Deus. O segundo deveria ser chamado de “preconceito
chinês”. Pois todos os projetos filosóficos de escritura e de linguagem universal nos
séculos XVII e XVIII encorajaram a ver na escrita chinesa então descoberta, um caso
exemplar de uma escrita não-fonética, um modelo de língua subtraída à história. Derrida
lembra de Leibniz que via, na língua chinesa, uma profunda arbitrariedade ligada à
essência não-fonética de sua escrita e não-imitativa de seus caracteres. Essa
arbitrariedade implicaria em estaticidade e ausência de historicidade, já que a fala seria
o motor das mudanças que se dão na história. Por fim, Derrida fala do “preconceito
hieróglifista” que transforma o desprezo etnocêntrico pela escrita não-fonética em
admiração hiperbólica.
Esta desconstrução da história geral da escritura assume, como seu ponto de
partida, a história da origem das línguas, de Rousseau. Derrida compreende Rousseau
como um momento maior no estabelecimento da história da metafísica enquanto
determinação do ser como presença. Derrida então esboça algumas estações disto que
seria sua leitura de tal história. Com Platão, a idealidade da presença oferecida à
repetição fora constituída sob a forma objetiva da idealidade do eidos e da
substancialidade da ousia. Com Descartes, tal objetividade tomava a forma da
representação (onde se vê uma clara influência da história heideggeriana da filosofia),
da idéia como modificação de uma substância presente à si, consciente e certa de si no
momento de sua relação à si. A idealidade e a substancialidade se relacionariam à si no
elemento de uma consciência que aparece como experiência da pura auto-afecção. Mas,
por outro lado, Derrida insiste que esta experiência de auto-afecção só pode se realizar
através da voz, já que a voz é exatamente o meio da auto-afecção, o meio do “escutar-se
falando”. Neste sentido, Rousseau teria sido um caso exemplar de filósofo que
compreendeu como a experiência da voz funda a presença imediata da substância à si
mesma. Para tanto, bastaria lermos Ensaio sobre a origem das línguas. Daí seu lugar
central no interior do projeto de Da gramatologia.
Mas, como já foi dito, Rousseau tem ainda um interesse suplementar. Pois ele
nos relevaria certos pressupostos em operação no interior deste projeto maior de
racionalização do campo das ciências humanas na segunda metade do século XX, a
saber, o estruturalismo. De fato, Lévi-Strauss chega a afirmar que Rousseau teria
fundado a etnologia em particular e as ciências humanas em geral. Segundo Lèvi-
Strauss, enquanto Descartes seria prisioneiro das pretensas evidências do Eu, passando
diretamente da interioridade de um homem à exterioridade do mundo sem ver que entre
os dois extremos encontram-se sociedades, civilizações, Rousseau nos teria mostrado
que: “para chegar a se aceitar nos outros, objetivo que o etnólogo impõe ao
conhecimento do homem, faz-se necessário inicialmente se recusar à si mesmo” 216. Ou
seja, para construir a categoria genérica do homem, faz-se necessário recusar o domínio
das auto-evidências imediatas, mostrar que existe um “ele” que se pensa em mim e que
me faz duvidar que seja Eu que pensa. Um “ele” no qual encontramos as marcas de uma
natureza comum recalcada pelo advento da modernidade.
No entanto, a leitura de Derrida é bastante diferente desta sugerida por Lévi-
Strauss. Ele quer mostrar como o estruturalismo partilha, juntamente como Rousseau,
uma metafísica incapaz de se livrar do fantasma da identidade imediata perdida e
216
LÉVI-STRAUSS, Anthropologie struturale II, p. 48
decaída. Identidade que estaria definitivamente exilada e violentada devido ao advento
da escritura e da história. O que permite a Derrida colocar esta questão maior: “O que
liga a escritura à violência? O que deve ser a violência para que algo nela se iguale à
operação do traço?”217.
Derrida propõe-se então a analisar um pequeno capítulo de “Tristes trópicos”
dedicado aos Nambikwaras, ‘pequeno grupo de índios nômades que estaria dentre os
mais primitivos que podemos encontrar no mundo”, índios aparentemente próximos de
uma “infância da humanidade”. Neste capítulo, Lévi-Strauss narra como os
Nambikwara teriam tido acesso, pela primeira vez, à escrita. Tal experiência de acesso à
escrita apareceria como uma ruptura em relação à infância, um exílio em relação à
presença. No entanto, Derrida quer corrigir esta história da queda através do acesso à
escrita ao lembrar que:
217
DERRIDA, Da gramatologia, p. 149
218
DERRIDA, Da gramatologia, p. 159
219
STOCKER, Barry, Derrida on deconstruction, p.
Curso Derrida
Aula 10
220
LÉVI-STRAUSS, Anthropologie struturale II, p. 48
221
DERRIDA, Da gramatologia, p. 149
222
DERRIDA, Da gramatologia, p. 159
a um sistema codificado de caracteres em número limitado que serviriam para
procedimentos elementares de comunicação. A escritura já está presente a partir do
momento que o nome próprio é enunciado. Esta é uma ideia fundamental. Pois o nome
próprio não pode ser compreendido como a apelação única reservada à presença de um
ser único, ele não pode ser compreendido como o dispositivo que asseguraria a
indexação do singular em um regime de transparência pura. Para Derrida, e aqui
seguindo explicitamente Lévi-Strauss, todo ato de nomeação é necessariamente ato de
classificação, inscrição no interior de um sistema sócio-simbólico. O nome que se dá ao
filho, por exemplo, classifica-o de acordo com sua linhagem, inscreve-o em uma
repetição que lhe faz continuar o nome do avô, os ideais do pai, etc. Neste sentido, ele é
necessariamente rasura do que o particular poderia aspirar de particularidade irredutível.
A linguagem sempre será solidária de uma violência:
Nisto que chamamos a vida real de suas existências em “carne e osso”, para
além do que podemos circunscrever como a obra de Rousseau, e atrás dela,
houve apenas escritura, houve apenas suplementos, significações substitutivas
que só puderam aparecer em uma cadeia de reenvios diferenciais, o “real” só
aparecendo, só se acrescentando ao tomar sentido a partir de um traço de um
chamado de suplemento, etc.225,
223
DERRIDA; Da gramatologia, p. 165
224
Idem, p. 206
225
Idem, p. 228
emergência de uma outra linguagem é condição fundamental para a emancipação
política, no que reencontramos algumas pressuposições fundamentais de Derrida. Pois a
degradação da línguagem é o sintoma de uma degradação social e política. Para
Rousseau, ela tem sua origem na aristocracia e na capital.
Derrida insiste no fato de Rousseau compreender a passagem à escritura como
uma disruptura das relações, um meio perigoso e uma resposta crítica a uma situação de
desamparo. Lembremos do que fala Rousseau: “as línguas são feitas para serem faladas,
a escritura serve apenas de suplemento à fala”. Esta posição de suplemento é
fundamental para Derrida. Ele insistirá como o suplemento tem necessariamente duas
funções. Primeiro, o suplemento se soma, ele é um a mais, uma plenitude que enriquece
outra plenitude. Mas o suplemento também substitui o suplementado, ele se insinua no
lugar de. Neste sentido, ele é exterior, fora da positividade à qual ele se acrescenta. Há
uma perversão própria ao suplemento. Há um engano, um ato de enganar a natureza
primeira. Ele é aquilo que suplementa uma falta na natureza, uma voz que suplemente a
voz da natureza.
Mas esta compreensão da relação entre fala e escritura em Rousseau vincula-se a
uma metafísica que consiste em excluir a não-presença ao determinar o suplemento
como exterioridade simples, como pura adição ou pura ausência. Esta determinação
será, no entanto, contraditória em Rousseau. Derrida tentará mostrar como a todo
momento ela parece caminhar para outra direção. Por exemplo, no Ensaio sobre a
origem das línguas, Rousseau fará uma distinção entre as línguas do sul, expressivas,
cantadas e próximas da origem musical da linguagem, e as línguas do norte,
informativas, marcadas pela falta de musicalidade e pela distância, linguagem mais apta
à escritura. Esta língua é habitada pela proximidade à morte, à carência. A escrita
aparece como expressão da morte, mas também tour de force para guardar a vida.
226
ROUSSEAU, Jean-Jacques; Discours sur l’origine de l’inegalité, in: Oeuvres complètes, La Pléiade, p.
139
227
DERRIDA, Jacques; Da gramatologia, p. 291
humano pode ser “só, despreocupado (oisif) e sempre vizinho do perigo” sem que isto
seja fonte de ansiedade é porque no estado de natureza não se conhece a propriedade.
Não temos indivíduos vinculados a propriedades, nem indivíduos vinculados a
necessidade e ao desejo de se fazer reconhecer em suas propriedades. Os humanos são
sós, seus encontros são intermitentes, suas preocupações se vinculam a auto-
conservação em um espaço natural vasto no interior do qual eles estão em contínua
mobilidade. Mas para tanto eles podem contar com sua força e habilidade. Por isto, os
humanos aparecem inicialmente como nômades solitários.
Mas, sendo assim, poderíamos nos perguntar como se dá a saída do estado de
natureza, o que significa a instauração da vida social. Rousseau se serve de dois
fenômenos para descrever a emergência da vida social e da corrupção desta relação
imanente à natureza. O primeiro é aquilo que ele chama de “faculdade de
aperfeiçoamento”. Só os humanos teriam esta faculdade que nos empurra a um
aperfeiçoamento constante, enquanto os animais se desenvolveriam apenas até os
limites de seus próprios instintos. No entanto, se na aurora do iluminismo a
perfectibilidade era vista como a fonte da criação e felicidade humana, em Rousseau ela
é a causa de todos seus males:
228
Idem, p. 142
229
STAROBINSKI, Jean: Rousseau: a transparência e o obstáculo, p. 36
230
Idem, p. 23
cooperativo é expressão de relações de dependência e com tais relações de dependência
aparecem a necessidade do artifício, da conquista do olhar e da estima do outro:
Enquanto os homens se aplicavam apenas a obras que podiam ser realizadas por
um e a artes que não necessitavam do concurso de várias mãos eles viveram
livres, saudáveis, bons e felizes tanto quanto podia ser por sua própria natureza e
continuaram a gozar entre eles das doçuras de um comércio independente. Mas
desde que um homem teve necessidade do socorro de outro, desde que se
percebeu que seria útil a um ter provisões para dois, a igualdade desapareceu, a
propriedade foi introduzida, o trabalho adveio necessário e as vastas florestas se
transformaram em campos rudes que deveriam ser arados com o suor dos
homens e nos quais vimos rapidamente a miséria e a escravidão germinar e
crescer como musgos231.
Música e reconhecimento
O que acontece com esta natureza humana deixada para trás? Ela ainda terá
alguma força de implicar o campo de experiência humana? Pois podemos nos perguntar
se esta transformação produzida pelo legislador, se esta mudança da própria natureza
231
ROUSSEAU, Idem, p. 171
232
Idem, p.173
233
Idem, p. 381
humana não seria sem produzir uma certa nostalgia social. A vida política parece não
pode dar conta desta nostalgia. No máximo, ela transmuta a experiência de auto-
pertencimento própria ao estado de natureza em desejo de igualdade (forma única de
impedir a servidão) e de autonomia. Por isto, em algum nível, ela ainda fala aos
humanos como indivíduos marcados pela experiência do individualidade possessivo
No entanto, há um ponto no qual a vida política se deixa aproximar da voz da
natureza, no qual esta nostalgia se transmuta em proximidade a uma linguagem de pura
presença. A política procura uma linguagem da pura presença, ela procura dar à voz sua
força de direito. Tal linguagem, Rousseau a encontra na música e no uso da música
como paradigma para a reinstauração da ordem social.
A fim de compreender a configuração do paradigma musical em Rousseau,
lembremo-nos do sentido de uma das querelas mais importantes das quais ele
participou, a saber, a chamada querela dos bufões. Grosso modo, trata-se de uma
contraposição entre, de um lado, uma noção de modernidade musical vinculada ao
primado da harmonia e das regras estritas de uma progressão harmônica derivada da
teoria fisicalista do som, harmonia que abria as portas para uma polifonia
contrapontística controlada pelo centro harmônico e para uma definição de estruturação
da forma musical absolutamente autônoma em relação a tudo o que seria extra-musical
(Jean-Phillipe Rameau); de outro, uma reação que insistia no primado da melodia e da
simplicidade monofônica inspirada no canto. Posição rousseauista que Dahlhaus
caracterizou bem: “Um sentimentalismo que ama ver-se estimulado pela música, um
racionalismo que quer programas, uma pintura musical na música instrumental e a
nostalgia de uma antiguidade que opõe, à polifonia moderna, confusa e savant, uma
simplicidade tocante da monofonia grega – eis os compostos da estética musical de
Rousseau”234.
Para Rousseau, tratava-se de, através da defesa da centralidade da melodia,
sustentar a estrutura mimética da racionalidade musical. Mimetismo que não se refere
aos modos de imitação no interior da vida social, mas no vínculo exterior entre
sociedade e natureza. Vínculo que se faz sentir na relação entre música e a expressão
natural da linguagem com suas entonações e acentos. Isto o permitia vincular a música à
uma pedagogia da arte capaz de servir de veículo de formação moral por recuperar o
vínculo entre natureza e cultura. Lembremos do que diz Rousseau :
Quando pensamos que, de todos os povos da terra, todos o que têm uma música
e um canto, os europeus são os únicos que têm uma harmonia, acordes, achando
esta mistura agradável ; quando pensamos que o modo durou tantos séculos sem
que, em todas as nações que cultivaram as belas-artes, nenhuma tenha conhecido
esta harmonia, que nenhum animal ou pássaro, nenhum ser na natureza produziu
outro acorde que o uníssono ou outra musical que a melodia ; que as línguas
orientais, tão sonoras, tão musicais, exercidas com tanta arte, nunca guiaram
estes povos voluptosos e apaixonados em direção à nossa harmonia ; que sem
ela suas músicas tiveram efeitos tão prodigiosos ; que com ela a nossa tenha
efeitos tão fracos ; que, enfím, estava reservado aos povos do norte, cujos órgãos
duros e grosseiros são mais tocados pelos ruídos e explosões de vozes do que
pela doçura dos acentos e melodias das inflexões, fazerem esta grande
descoberta e defini-la como princípio a todas regras da arte ; quando, digo eu,
levamos tudo isto em consideração, é muito difícil não desconfiar que toda nossa
harmonia é uma invenção gótica e bárbara a respeito da qual nunca seríamos
234
DAHLHAUS, L´idée de la musique absolue, p. 49
avisados se fôssemos mais sensíveis as verdadeiras belezas da arte e à música
realmente natural 235.
a força da linguagem não reside no poder de fornecer imagens das coisas, mas
no poder de pôr a alma em movimento, de colocá-la numa disposição que torne
visível a ordem da natureza. A linguagem imita a natureza quando colabora com
a ordem, quando restitui, no interior da humanidade, a ordem que seu
nascimento tinha contribuído para apagar”240.
235
ROUSSEAU, Dictionnaire de musique
236
DERRIDA, Jacques; Da gramatologia, p. 304
237
ROUSSEAU, Jean-Jacques; Dictionnaire de musique, Paris: Actes Sud, 2007, p. 208
238
Idem, Essai sur l’origine des langues,
239
ROUSEEAU; Idem, p. 380
240
PRADO JR., Bento; A retórica de Rousseau, p. 161
As paixões, por sua vez, são implicativas. Elas nunca dizem respeito apenas a um, elas
mudam o outro quando enunciadas. Por isto, a linguagem das paixões é aquela que
realmente produz laços. A língua do povo em assembleia é aquela mais próxima do
canto, da poesia e da música. De certa forma, para Rousseau, não há assembleia sem
música e poesia. Pois o estar em assembleia não é apenas o ato de estar em um mesmo
espaço e de procurar um consenso entre interesses distintos. Estar em assembleia é o ato
de falar outra língua, estranha à língua dos interesses e das estratégias. Por isto, as
verdadeiras assembleias são algo raro.
Faz parte do poder não exatamente mobilizar por paixões, e sempre será o mais
profundo dos enganos imaginar que o poder mobiliza uma linguagem das paixões. Na
verdade, ele sempre irá procurar esvaziar a língua de sua força de expressão, fazer dela
ou o mero espaço de descrição desafetada ou o mero espaço de afirmação de minhas
propriedades, daquilo que me separa de outros sujeitos. Por isto, a primeira revolta
sempre será uma revolta da linguagem contra sua degradação, uma procura da
linguagem em parar um processo descrito por Rousseau da seguinte forma:
241
ROUSSEAU; Idem, p. 384
Falta a aula 10 que finalizava a leitura de Da gramatologia
Curso Derrida
Aula 12
Em uma entrevista de 1972, Derrida afirma: “nada do que tento seria possível sem a
abertura das questões heideggerianas”242. Tal afirmação não poderia ser diferente, já que
sabemos como o projeto mesmo de desconstrução da metafísica encontra suas raízes em
Heidegger. No parágrafo 6 de Ser e tempo, Heidegger fala da necessidade de uma
destruição (Destruktion) da ontologia nos seguintes termos:
242
DERRIDA, Jacques; Positions, p. 18
243
HEIDEGGER, Martin; Ser e Tempo, p. 87
244
Idem, p. 95
245
DERRIDA, idem, p. 19
volte-se, de forma privilegiada, contra o conceito heideggeriano de ser. É esta crítica,
como vemos uma crítica central ao projeto da desconstrução, que encontraremos em um
texto como Os fins do homem.
Mas antes de começarmos a discutir nosso texto, tentemos sistematizar aquilo
que Derrida compreende como a estratégia geral da desconstrução:
Deve-se pois avançar um duplo gesto, segundo uma unidade ao mesmo tempo
sistemática e como que separada dela mesma, uma escritura desdobrada, ou seja,
ela mesmo multiplicada, o que chamei em A dupla sessão de uma ‘dupla
ciência’: de uma parte, atravessar uma fase de inversão (renversement). Insisto
muito e a todo momento na necessidade desta fase de inversão que se procura
rapidamente desqualificar. Reconhecer esta necessidade, é reconhecer que, em
uma oposição filosófica clássica, não estamos nos referindo à coexistência
pacífica de um face a face, mas a uma hierarquia violenta. Um dos dois termos
comanda outro (axiologicamente, logicamente etc.), ocupa o lugar acima.
Desconstruir a oposição é inicialmente, em um dado momento, inverter a
hierarquia. Negligenciar esta fase de inversão é esquecer a estrutura conflitual e
subordinadora da oposição246.
Dito isto – e por outro lado – permanecer nesta fase é ainda operar sobre o
terreno e no interior do sistema desconstruído. Faz-se necessário também,
através desta escritura dupla, estratificada, defasada e defasante, marcar a
distância entre a inversão que coloca a baixo o que estava no alto,
desconstruindo a genealogia sublimante ou idealisante, e a emergência
disruptiva de um novo ‘conceito’, conceito do que não se deixa mais, nunca se
deixou, compreender no regime anterior247.
Mas esta emergência de um horizonte pós-metafísico exige retomar a crítica daquilo que
seria o fundamento da metafísica. Neste caso, Derrida insistirá na seguinte equação:
toda metafísica encontra seu fundamento em uma antropologia. Ela sempre será
solidária de um modo de ser do humano, de uma imagem atual do humano. Há uma
espécie de sono antropológico a marcar a metafísica ocidental. Um sono do qual
devemos acordar. Gostaria de dar alguns passos atrás a fim de discutir de maneira mais
adequada este ponto.
Comecemos por lembrar mais uma vez como, da gramatologia, Derrida diz que
ela “ não deve ser uma das ciências do homem, porque coloca de início, como sua
questão própria, a questão do nome do homem” (Derrida, 2008, p.104). Esta frase é
altamente significativa, pois anuncia a « questão própria » da gramatologia, aquilo que
determina o seu campo. Se uma reflexão do tipo gramatológico deve necessariamente
colocar em questão o nome do homem, é porque, até agora, todo esforço para conceber
as condições de possibilidade de uma objetividade em geral e de uma ciência capaz de
satisfazer certas normas de validade, encontrou necessariamente seu fundamento em
uma certa antropologia.
Sabemos que a Gramatologia se esforça em mostrar que as noções
estruturalistas de signo e significante (entendido como imagem acústica) são
profundamente ligadas a uma “época histórico-metafísica” que se trata de ultrapassar.
De fato, Derrida acredita que onde quer que seja feito o uso da noção de signo,
encontraremos sempre um elo fundamental com a metafísica. Podemos dizer que para
Derrida qualquer metafísica é uma metafísica do signo, sendo sempre uma redução da
linguagem à dimensão do signo, o que nos leva a afirmar que há uma antropologia
subjacente ao conceito de signo. Mas se é preciso responder brevemente à complexa
questão acerca do que Derrida entende por “signo”, talvez possamos simplesmente
antecipar: o signo é um modo de presença das coisas. Donde a tese: “A metafísica
ocidental, como limitação do sentido do ser no campo da presença, produz-se como a
dominação de uma forma linguística [ligada ao império do signo] ” (idem, p.28).
É conhecida a definição clássica que vê, no signo, aquilo que representa alguma
coisa para alguém. Tudo se passa como se Derrida nos lembrasse de que esta re-
presentação é, na verdade, a constituição do regime geral de visibilidade dos objetos, a
constituição de uma forma “de presença em geral” (Derrida, 1994, p.64) a partir das
idealidades responsáveis pela produção do sentido. Esta forma geral é, por outro lado, a
maneira através da qual “alguém” pode aparecer como fundamento para a determinação
de “alguma coisa”. Isso nos explicaria a razão pela qual a reflexão sobre o signo
privilegia sempre a linguagem falada. Seja no estruturalismo, seja na fenomenologia, o
signo é fundamentalmente o signo falado. Pois falar das coisas é necessariamente impor
um domínio técnico sobre o objeto do qual eu falo. Falar das coisas significa colocá-las
diante de mim, pô-las em uma espécie de espaço virtual do qual eu sou o fundamento.
Neste sentido, a objetividade do objeto seria aquilo que, no objeto, submete-se a meu
discurso, como se o meu discurso (que não é apenas o discurso de uma consciência
empírica, mas o de um sujeito transcendental) fosse o meio de instituição da
objetividade. Pois o discurso tira as coisas do aqui e agora para colocá-las em um
espaço ideal de pura presença, que deixa de possuir a forma da mundaneidade. Neste
espaço, eu descubro que “minhas palavras são ‘vivas’, porque parece que elas não me
deixam: não caem fora de mim, para fora de minha respiração, em um afastamento
visível; não deixam de me pertencer, de estar à minha disposição, ‘sem acessório’”
(idem, p.86) .
Neste sentido, o “nome do homem” que a gramatologia quer colocar em questão
designa este “alguém” capaz de fundar um modo de presença e de constituição da
objetividade. Além dos atributos que normalmente determinam a humanidade do
homem (como autonomia, autenticidade, unidade, etc.), o “homem” que fala essa
linguagem dos signos, é, necessariamente, o nome de um modo de ser, o nome de um
regime que constitui a presença dos objetos e da auto-afecção. Esse homem pode
procurar incessantemente seu fim, ele pode incessantemente tentar superar sua finitude
ou fazer-se desaparecer, mas seus movimentos serão sempre dependentes desta
linguagem da qual ele é o suporte. Assim, para Derrida, nós não acordaríamos de um
certo “sono antropológico” que assombrou o pensamento francês dos anos sessenta, a
não ser com a condição de que se aprenda a criticar a linguagem que protege esse sono
contra a aurora de um para além do humanismo.
Podemos identificar aqui o que constitui a peculiaridade de Derrida. Por um
lado, parece que Derrida apenas retoma uma temática corriqueira ao pensamento francês
dos anos sessenta. Considerem-se, por exemplo, três livros publicados no decorrer dos
anos de 1966-1967: As palavras e as coisas de Michel Foucault, Escritos de Jacques
Lacan e a Gramatologia. É inegável que a problemática comum concernente às ciências
do homem parece ter êxito, ainda que essa problemática conduza a programas muito
diferentes. Sendo assim Lacan dirá “não há ciência do homem, porque o homem da
ciência não existe, mas apenas seu sujeito” (Lacan, 1998, p.873). Donde a ideia que “o
objeto da psicanálise não é o homem; é aquilo que lhe falta” (Lacan, 2003, p.218).
Em um artigo que não passou despercebido, Georges Canguilhem quanto a ele
afirmava: « É inevitável que, ao se propor como teoria geral da conduta, a psicologia
tome para si alguma ideia de homem. Deve-se então permitir à filosofia perguntar à
psicologia de onde ela tira esta ideia e se não seria, no fundo, de alguma filosofia »248.
Tudo se passa como se Lacan tivesse entendido que esta ideia de homem no coração da
psicologia fosse o núcleo de uma normatividade fundadora de uma “época histórico-
metafísica”, para falar como Derrida. Época nomeada por Lacan “era história do Eu” 249,
a qual a psicanálise desejaria superar.
De sua parte, Foucault se perguntava se não seria necessário “renunciar a pensar
o homem, ou, para ser mais rigoroso, pensar mais de perto este desaparecimento do
homem — e o solo de possibilidade de todas as ciências do homem — na sua correlação
com nossa preocupação com a linguagem?” (Foucault, 2000, p. 535). Uma renúncia que
para o Foucault arqueólogo das ciências humanas já estaria em marcha na psicanálise e
na etnologia. Pois a psicanálise e a etnologia eram os modelos de uma episteme por vir
que já se anunciava, uma episteme liberada da figura normativa do homem, uma
episteme das ciências do inconsciente “não porque atingem no homem o que está por
sob a sua consciência, mas porque se dirigem ao que, fora do homem, permite que se
saiba, com um saber positivo, o que se dá ou escapa à sua consciência” (idem, p. 524-
525). O inconsciente proveria assim o sistema estrutural das regras, normas e leis que
determinam a “constituição originária da objetividade”.
248
Canguilhem, Georges; Etudes d’histoire et de philosophie des sciences concernant les vivants et la vie,
Paris: Vrin, 2002
249
Lacan, 1966, p. 283
Ora, para Derrida, falta ao Lacan dos Escritos e ao Foucault das Palavras e as
coisas uma compreensão mais clara do regime de linguagem pressuposto pelo
inconsciente freudiano. Pode-se dizer que Derrida aceita a ideia lacaniana segundo a
qual o inconsciente é estruturado como linguagem. Mas ele quer mostrar de que
maneira, em Freud, esta linguagem que estrutura o inconsciente não se organiza
segundo o modelo estruturalista, isto é, segundo o primado do significante, do discurso
e da voz. Ao contrário, Freud nos obrigaria a desenvolver um conceito de linguagem
próximo do que Derrida tenta pensar na Gramatologia: um conceito de linguagem
fundado na noção de “escritura psíquica”. Escritura presente nos sonhos e na memória,
capaz de “tornar enigmático o que se julga conhecer pelo nome de escritura” (Derrida,
2009, p.293); escritura capaz de sustentar o fundamento crítico do regime de presença e
de auto-afecção arraigado em nossa época histórico-metafísica, fundamento crítico disto
que nos aparece como procedimento de “constituição originária da objetividade”.
Contudo, a fim de melhor compreender a aposta de Derrida, é antes necessário
retornar às intenções daqueles que, numerosos nos anos 60, viam no nome do homem o
resultado mais visível da metafísica oculta no coração das ciências humanas. Isso
permitirá que a peculiaridade de Derrida seja melhor compreendida.
Os fins do homem
Voltemos então nossos olhos a Os fins do homem. Mas nos voltemos lembrando desta
afirmação de Derrida: “Tenho muitas vezes o sentimento de que a problemática
heideggeriana é a defesa a mais ‘profunda’ e mais ‘potente’ do que tento colocar em
questão sob o título de pensamento da presença”250.
O texto de Derrida começa através da constatação de que o humanismo tornara-
se, logo após o pós-guerra, um eixo dominante do pensamento francês. Humanismo este
que, sob a figura principal de Sartre, insistia que a realidade humana fornecia uma certa
unidade àquilo que seria o fundamento do pensar. No entanto: “a história do conceito de
250
DERRIDA, Jacques; Positions, p. 75
homem nunca é interrogada. Tudo se passa como se o signo ’homem’ não tivesse
qualquer origem, qualquer limite histórico, cultural, linguístico. Nem mesmo qualquer
limite metafísico251.
Derrida insiste que esta vaga humanista se apoiava na leitura antropológica, e
equivocada, de três autores: Heidegger, Hegel e Husserl. No entanto, a desconstrução da
metafísica proposta por Heidegger visava, de forma explícita, o humanismo:
Esta é uma forma de afirmar que não pode haver metafísica sem uma
antropologia de base, que a metafísica é na verdade a realização de uma forma de vida
cujas coordenadas encontram-se marcadas no interior de uma antropologia. Neste
sentido, é evidente que Derrida assume explicitamente o postulado de Heidegger. Seu
projeto de desconstrução irá seguir as coordenadas deste modelo de crítica da metafísica
consolidadas por Heidegger. Mas Derrida insistirá na tarefa de pensar o fim do homem
para além da maneira hegeliana de superar a finitude do homem em uma dialética do
reconhecimento com sua “teleologia na primeira pessoa do plural”253.
Isto implica criticar o próprio Heidegger por ele ter sido pretensamente incapaz
de desvincular o pensamento do próprio do homem da questão da verdade do ser. Ou
seja, trata-se de afirmar que uma certa antropologia insidiosa de fato permanece em
Heidegger e que a desconstrução deve ser capaz de nos levar para fora dela, como
condição necessária para a efetivação de um pensamento da diferença que não se reduza
à diferença ontológica. Derrida afirmará que o pensamento de Heidegger será guiado
pelos motivos do ser como presença e da proximidade do ser à essência do homem. Ou
seja, o sono antropológico também embalaria a filosofia do Dasein. Não é apenas o
ente que é constituído à imagem do homem. Também o ser em sua proximidade, em seu
acesso ainda segue as coordenadas de uma antropologia que não tem coragem de dizer
seu nome.
O que é ameaçado na extensão da metafísica e da técnica, diz Heidegger, é a
essência do homem. Ou seja, para além do humanismo e de sua associação à metafísica,
é a essência do homem que acaba sendo marcada pelo selo do esquecimento. Trata-se
de reinstaurar o homem em sua essência. Por isto, Heidegger poderá afirmar:
251
DERRIDA, Jacques; Margens da filosofia, p. 155
252
HEIDEGGER, Martin; Carta sobre o humanismo, p. 47
253
DERRIDA, Jacques; idem, p. 161
254
HEIDEGGER, Martin; Carta sobre o humanismo
do homem. Pois a autenticidade do homem é o relacionar-se com o sentido do ser. Por
isto, Derrida pode jogar com o duplo sentido da palavra “fim” e dizer que o fim do
homem era, na verdade, sua finalidade, sua real destinação enquanto homem.
Esta é uma maneira de insistir na solidariedade entre a crítica heideggeriana e
aquilo que ela procura criticar. Sabemos que, contra a temporalidade decaída que marca
a metafísica, Heidegger acredita poder mobilizar a temporalidade originária: “Ora,
oposição do original e do derivado não é ainda metafísica? A reclamação da arquia em
geral, quaisquer que sejam as precauções de que rodeemos este conceito, não é a
operação ‘essencial’ da metafísica?”255. Pois esta é a maneira que Derrida encontra de
afirmar que a delimitação heideggeriana consiste a elevar-se do presente a um
pensamento mais original do ser como presença.
255
DERRIDA, Jacques; Margens da filosofia, p. 101
Curso Derrida
Aula 13
256
DERRIDA, Jacques; Força de Lei, São Paulo, Martins Fontes, p. 4
257
Idem, p. 8
258
LEFORT, Claude; A invenção democrática, São paulo, Braziliense,
Estas são frases de Claude Lefort em A invenção democrática : um livro largamente
dedicado, ao contrario, à crítica das sociedades burocráticas no antigo Leste europeu.
Nessas frases, estão sintetizadas algumas reflexões maiores sobre a relação intrincada
entre justiça e direito. Relação que ultimamente tendemos a ignorar, como se tudo
aquilo que acontecesse à margem do Estado de direito fosse necessariamente ilegal e
profundamente animado de premissas anti-democráticas. Pois talvez tenhamos perdido a
capacidade de pensar qual o sentido desta democracia que “excede os limites
tradicionalmente atribuídos ao Estado de direito”. Um ponto de excesso que se mostrou,
ao longo da histórica contemporânea, como motor fundamental das dinâmicas do
político.
Talvez tenhamos perdido a capacidade de pensar a democracia como ponto de
excesso em relação ao Estado de direito porque acreditamos que tudo o que se coloca
fora do Estado de direito só poderia ter parte com o mais claro totalitarismo. Quem está
fora do Estado de direito parece se colocar em uma posição soberana, posição destes
que poderiam não se submeter à lei, modificar continuamente a lei ao bel prazer dos
casuísmos e circunstâncias. Vemos apenas dois candidatos a ocupar esta posição
soberana : o criminoso que viola abertamente a lei que garante a segurança do Estado de
direito ou (e aí as coisas começam a se complicar) o legislador que afirma que, em
situações de exceção, como em caso de guerra (mas sabemos hoje como é cada vez mais
complicado distinguir estado de guerra e estado de paz), de crise (mas sabemos hoje
como há sempre uma crise grave à espreita) certos dispositivos legais podem ser
suspensos.
No entanto, é possível que exista um terceiro caso de excesso em relação ao
Estado de direito, um excesso onde encontramos a justiça. Mas o que Derrida quer
exatamente dizer com esta exceção da justiça? O que ele quer dizer ao reconhecer que à
justiça cabe sempre uma força que é sua própria realização, uma violência claramente
presente na palavra alemã Gewalt que significa, ao mesmo tempo, “a violência e o
poder legìtimo, a autoridade justificada”? Em dado momento de seu texto, Derrida
reconhece que, em numerosos textos ditos desconstrucionistas, o recurso à palavra
“força” é frequente e decisivo. Vimos em alguns momentos Derrida insistir, por
exemplo, que a força produz o sentido. No entanto, Derrida precisa dizer se sentir
“pouco à vontade com a palavra “força”, mesmo que muitas vezes a julgasse
indispensável”259. Mas de onde vem este desconforto com uma palavra que muitas vezes
aparece como indispensável? Coloquemos uma hipótese e digamos que o desconforto
vem da necessidade de se confrontar com uma força que se quer instauradora. Mas
quem fala em nome desta instauração? Quem pode falar em nome da justiça quando ela
excede o Estado de direito?
Notemos que a questão de Derrida é mais complexa do que uma certa situação
padrão na qual a justiça se dissocia do direito. Tratam-se de situações onde nos
deparamos com um “estado ilegal”. Mesmo a tradição política liberal admite, ao menos
desde John Locke, o direito que todo cidadão tem de se contrapor ao tirano, de lutar de
todas as formas contra aquele que usurpa o poder e impõe um estado de terror, de
censura, de suspensão das garantias de integridade social. Nestas situações, a justiça
reconhece o direito à violência, já que toda ação contra um governo ilegal é uma ação
legal.
Vale a pena insistir nesta questão. Podemos dizer que um dos princípios maiores
que constitui a tradição de modernização política da qual fazemos parte afirma que o
direito fundamental de todo cidadão é o direito à rebelião. Não creio ser necessário aqui
fazer a gênese da consciência da indissociabilidade entre defesa do Estado livre e direito
259
Idem, p. 11
à violência contra um estado ilegal. No que diz respeito ao ocidente, é bem provável que
sua consciência nasça da reforma protestante com a noção de que os valores maiores
presentes na vida social podem ser objeto de problematização e crítica. Ela esta
presente, por sua vez, no artigo 27 da Declaração dos direitos do Homem e do Cidadão
de 1793, documento fundador da modernidade política. Artigo que afirma : “que todo
indivíduo que usurpe a soberania seja assassinado imediatamente pelos homens livres”.
Ainda hoje, ela aparece no artigo 20, parágrafo 4 da Constituição alemã como “direito à
resistência” (Recht zum Widerstreit). Encontramos um direito similar enunciado em
várias constituições de estados norte-americanos (New Hampshire, Kentucky, Tennesse,
Carolina do Norte, entre outros). De maneira sintomática, e gostaria de aproveitar este
momento para dizer algo que me é bastante caro, isto demonstra como aqueles que
procuram transformar os que participaram da luta armada contra o regime militar
brasileiro em “terroristas” colocam-se aquém de um conceito substancial de
democracia.
No entanto, não devemos compreender a idéia fundamental deste direito à
resistência simplesmente como o núcleo de defesa contra a dissolução dos conjuntos
liberais de valores (direito à propriedade, afirmação do individualismo e da integridade
individual que estaria em cheque com o advento da tirania do estado ilegal).
Dificilmente poderíamos compreender, por exemplo, o artigo 27 da Declaração dos
direitos do Homem e do Cidadão como defesa dos conjuntos liberais de valores. Na
verdade, em seu interior encontramos a idéia fundamental de que o bloqueio da
soberania popular (e temos todo o direito de discutir o que devemos compreender por
“soberania popular”) deve ser respondido pela demonstração soberana da força. Que a
democracia deva, através deste problema, confrontar-se com aquilo que Giorgio
Agamben chama de “o problema do significado jurídico de uma esfera de ação em si
extrajurídica”, ou ainda, com a “existência de uma esfera da ação humana que escapa
totalmente ao direito”260, que ela deva se confrontar com uma esfera extrajurídica, mas
nem por isto ilegal, eis algo claro. Pois devemos insistir aqui (e Derrida não cansa de
pensar este problema) que, mesmo em situações onde não estamos diante de um “estado
ilegal” o problema da dissociação entre justiça e direito se coloca. Pois o direito é
essencialmente “descontrutível”, pois constituído sobre camadas textuais interpretáveis
e transformáveis. No entanto: “a justiça nela mesma, se algo como tal existe, fora ou
para além do direito, não é desconstrutível” 261. Ou ainda: “O direito não é a justiça. O
direito é o elemento do cálculo, é justo que haja um direito, mas a justiça é
incalculável”262.
Muitos gostam de dizer que, no interior da democracia, toda forma de violação
contra o Estado de direito é inaceitável. Mas e se, longe ser de um aparato monolítico, o
direito em sociedades democráticas for uma construção heteróclita, onde leis de várias
matizes convivem formando um conjunto profundamente instável e inseguro? Por
exemplo, nossa constituição de 1988 não teve força para mudar vários dispositivos
legais criados pela constituição totalitária de 1967. Ainda somos julgados por tais
dispositivos. Neste sentido, não seriam certas “violações” do Estado de direito
condições para que exigências mais amplas de justiça se façam sentir? Foi pensando em
situações desta natureza que Derrida afirmava ser o direito objeto possível de uma
desconstrução que visa expor as superestruturas que: “ocultam e refletem, ao mesmo
tempo, os interesse econômicos e políticos das forças dominantes da sociedade”. Quem
pode dizer em sã consciência que tais forças não agiram e agem para criar, reformar e
260
AGAMBEN, Giorgio; Estado de exceção,
261
DERRIDA, ibidem, p. 27
262
Idem, p. 30
suspender o direito? Quem pode dizer em sã consciência que o embate social de forças
na determinação do direito termina necessariamente da maneira mais justa?
Por estas razões, a democracia admite o caráter “desconstrutivel” do direito, e
ela o admite através do reconhecimento daquilo que poderíamos chamar de legalidade
da “violação política”. Pacifistas que sentam na frente de bases militares a fim de
impedir que armamentos sejam deslocados (afrontando assim a liberdade de circulação),
ecologistas que seguem navios cheios de lixo radioativo a fim de impedir que ele seja
despejado no mar, trabalhadores que fazem piquetes em frente a fábricas para criar
situações que lhes permitam negociar com mais força exigências de melhoria de
condições de trabalho, cidadãos que protegem imigrantes sem-papéis, ocupações de
prédios públicos feitas em nome de novas formas de atuação estatal, Antígona que
enterra seu irmão : em todos estes casos o Estado de direito é quebrado em nome de um
embate em torno da justiça. No entanto, é graças a ações como estas que direitos são
ampliados, que a noção de liberdade ganha novas matizes. Sem elas, certamente nossa
situação de exclusão social seria significativamente pior. Nestes momentos,
encontramos o ponto de excesso da democracia em relação ao direito. Uma sociedade
que tem medo destes momentos, que não é mais capaz de compreendê-los, é uma
sociedade que procura reduzir a política a um mero acordo referente às leis que
atualmente temos e aos modos que atualmente temos para mudá-las (como se a forma
atual da estrutura política fosse a melhor possível – levando em conta o que é o sistema
político brasileiro, pode-se claramente compreender o caráter absurdo da colocação). No
fundo, esta é uma sociedade que tem medo da política e que gostaria de substituir a
política pela polícia. Pois a violação política nada tem a ver com a tentativa de
destruição física ou simbólica do outro, do opositor, como vemos na violência estatal
contra setores descontentes da população ou em golpes de estado. Antes, ela é a força da
urgência de exigências de justiça.
Força e justiça
A justiça sem a força é impotente; a força sem a justiça é tirânica. A justiça sem
a força será contestada, porque há sempre maus; a força sem a justiça será
acusada. É preciso, pois, reunir a justiça e a força; e, dessa forma, fazer com que
o que é justo seja forte, e o que é forte seja justo”. No entanto: ”A justiça é
sujeita a disputas; a força é muito reconhecível e sem disputa. Assim, não se
pôde dar a força à justiça, porque a força contradisse a justiça, dizendo que esta
era injusta, e que ela é que era justa; e assim, não podendo fazer com o que é
justo fosse forte, fez-se com o que é forte fosse justo”264.
263
Idem, p. 9
264
PASCAL, Pensamentos, par. 298
O raciocínio de Pascal parte, na verdade, da constatação da impotência da
justiça, da dificuldade em reconhecê-la e em identificar quem, de fato, fala em nome
dela. Daí esta exigência moral, que não descreve uma situação de fato: “’É preciso
reunir força e justiça”. Temos que encontrar uma forma de reuni-las. No entanto, a
força, predicado necessário da justiça, embora seja reconhecível e sem disputa (ela se
faz imediatamente sentir), tem esta estranha capacidade de ser um predicado que se faz
valer pelo seu sujeito, de se impor como justiça, anulando assim aquilo que o termo
“justiça” nos obrigaria a pensar.
Derrida lembra então que duas idéias parecem presentes nesta maneira
pascaliana de pensar as relações entre força e justiça. A primeira, mais clássica , nos
levaria a uma: “crítica da ideologia jurídica, uma dessedimentação das superestruturas do direito
que ocultam e refletem, ao mesmo tempo, os interesses econômicos e políticos das forças
dominantes da sociedade”265. Esta vertente nos remete à crítica ao convencionalismo
jurídico e sua sedimentação de interesses de grupos sociais hegemônicos. Mas há outra
idéia, esta sim mais inesperada. Ela consiste em dizer que a justiça, em seu ato de
surgimento, em sua origem, aparece como pura força. Vejamos esta afirmação central:
274
Para esta discussão, ver BADIOU, Alain; Ethique, Paris:
275
DERRIDA, ibidem, p. 37
276
Idem, p. 39
No entanto, há um problema suplementar nesta estratégia. Pois não é claro quais
são os limites de um contexto. À verdadeira ação não cabe apenas interpretar
infinitamente os contextos aos quais ela se refere. Ela precisa determinar e limitar seus
contextos. Tarefa particularmente complicada. Pois poderíamos lembrar desta afirmação
de Merleau-Ponty em um texto maior sobre Machiavel: “na ação histórica, a bondade é
por vezes catastrófica e a crueldade menos cruel do que o temperamento bonachão” 277.
No entanto, se a crueldade atual pode revelar-se amanhã como bondade, se não é
possível dissociar moral e história, de qual perspectiva posso avaliar as reais
consequências da crueldade e da bondade em ações que se desenrolam na história a não
ser á partir da perspectiva totalizante de um observador onisciente da história? E o que
acontece quando concluímos, como era o caso de Derrida, que esta perspectiva não nos
é dada278?
Talvez seja o caso de insistir que há uma modificação qualitativa na dimensão
moral quando os sujeitos admitem a opacidade constitutiva da decisão e do ato moral. O
sujeito que reconhece tal opacidade (sem se deixar levar à posição hegeliana da bela
alma) é capaz de pensar contra si mesmo e reconhecer que o engajamento significa não
exatamente ser fiel a um princípio, por mais claro que tal princípio possa lhe parecer,
mas ser fiel ao esforço infinito de pensar e rever as conseqüências que se seguem do
que, em um dado momento, é claro para nós. Isto pode parecer pouco. Mas talvez seja
muito mais do imaginamos.
Três aporias
Por fim, nosso texto termina lembrando como tudo seria simples se essa distinção entre
justiça e direito fosse uma verdadeira distinção intransponível. No entanto, o direito
pretende exercer-se em nome da justiça e a justiça exige ser instalada em um direito.
Tais pretensões e exigências acabam por configurarem três aporias.
A primeira delas diz respeito à regra. Diz Derrida: “Para ser justa, a decisão de
um juiz deve não apenas seguir uma regra de direito ou uma lei geral, mas deve assumi-
la, aprová-la, confirmar seu valor, por um ato de interpretação reinstaurador, como se a
lei não existisse anteriormente, como se o juiz a inventasse ele mesmo em cada caso” 279.
Como se houvesse um paradoxo na noção mesma de aplicar uma regra.
No entanto, poderíamos contra-argumentar afirmando que problemas de
aplicação podem ser normalmente resolvidos a partir de procedimentos similares à
noção jurídica de “criar jurisprudência”, ou seja, decisões anteriores aparecem como
campo de constituição de um núcleo de experiências que tendem a direcionar decisões
posteriores, criando assim um processo, no sentido forte do termo. Esta tendência não
277
MERLEAU-PONTY, Maurice; “Notas sobre Machiavel”, In: Signos, op. cit., p. 242
278
Conhecemos todos este trecho maior de A decisão, de Bertolt Brecht: “O indivíduo tem dois olhos/ O
Partido tem milhares de olhos/ O Partido vê sete países/ O indivíduo vê uma cidade/ O indivíduo tem a
sua hora/ Mas o Partido tem muitas horas/ O indivíduo pode ser aniquilado/ Mas o Partido não pode ser
aniquilado”. Este trecho causava especial aversão a Adorno por esquecer que há sim situações nas quais
os dois olhos do indivíduo vêem mais do que os mil olhos do partido. Na verdade, no momento histórico
que é o nosso, poderíamos mesmo dizer que o século XX cansou de nos mostrar isto. Pois, se Brecht
tivesse realmente seguido a dialética, ele teria compreendido que o indivíduo nunca é apenas o indivíduo.
Ele é o ponto a partir do qual os mil olhos do partido podem se voltar contra si mesmo. Nestes casos, o
indivíduo pode desvelar o ponto cego no interior da fascinação pela força de justificação integral de
processos que se colocam na perspectiva onisciente da realização da história. O indivíduo sabe que a
violência da justificação é a maneira mais segura de tais processos não se realizarem. Por isto, ele é a
função que nos lembra que não devemos (no sentido radicalmente moral) recorrer à perspectiva de um
observador onisciente da história.
279
DERRIDA, ibidem, p. 44
implica ignorar toda possibilidade posterior de redirecionar, através do “uso público da
razão”, tal processo de determinação dos modos de indexação de critérios, valores e
fatos.
Contra este modo de tentar resolver a questão, devemos mostrar que o campo
pressuposto por decisões passadas não tem estruturalmente a força de retirar a
indeterminação de decisões futuras porque as indeterminações não foram resolvidas
sequer nas decisões passadas. Para que tais indeterminações estivessem ausentes seria
necessário aceitar que decisões passadas, além de terem sido produzidas em contexto de
partilha intersubjetiva, isto no sentido de terem sido vistas como modos bem sucedidos
de aplicação de regras, construíram procedimentos e critérios não-problemáticos de
inferência e universalização, a não ser que estejamos dispostos a “naturalizar” tais
critérios, como se tivéssemos uma gramática natural dos modos de relação. Ou seja,
para que a noção de “criar jurisprudência” seja operativa, é necessário afirmar que um
caso é análogo a um outro caso, paradigmático. Ficamos assim dependentes de
raciocínios analógicos. No entanto, tais raciocínios são marcados por fragilidades e
inseguranças epistêmicas profundas pois, de um certa perspectiva, qualquer coisa pode
tecer relações de analogia com qualquer outra coisa. No fundo, tais situações apenas
servem para nos lembrar que tomar uma decisão reconhecidamente legítima é um
processo ligado a um princípio de soberania, e não a um princípio de adequação
normativa.
Aqui, entramos no segundo paradoxo levantado por Derrida. Um paradoxo que
nos leva diretamente ao problema do conceito de soberania (que será objeto de nossa
próxima aula): “Nenhuma justiça se exerce, nenhuma justiça é feita, nenhuma justiça se
torna efetiva, sem uma decisão indiscutível” 280. No entanto, uma decisão, em seu caráter
instaurador dá-se sempre no interior de um espaço indecidível e “a memória da
indecidibilidade deve conservar um rastro vivo que marque, para sempre, uma decisão
como tal”281. Como vimos, toda decisão e um salto (como dizia Kierkegaard), uma
aposta (como dizia Pascal). Este indecidível é como um fantasma a assombrar todo ato e
toda decisão, um fantasma que visa desconstruir esta crença de que podemos ter uma
presença ideal do objeto da ação moral garantindo assim nossa idéia de
responsabilidade, de consciência moral, de intencionalidade moral, entre outros. Isto
significa: decidir sem apelar à metafísica da presença.
Por fim, Derrida insiste que sua posição não pode ser confundida com a tentativa
de transformar a justiça em um horizonte regulador do tipo kantiano. Pois a justiça
obriga a pensarmos a dimensão da imediaticidade. Embora ela possa se dar como
alteridade absoluta em relação ao presente, embora ela tenha que se dar desta forma,
abrindo com isto a pressão para uma democracia por vir, ela exige presentificar-se
criando sempre um descompasso no interior do próprio direito. Veremos melhor este
ponto na aula que vem.
280
DERRIDA, ibidiem, p. 46
281
Idem, p. 47