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Ensino oa Psicologia

organizadores
da P s ic o lo g ia
Ensino
Coleção
Hebe Signorini Gonçalves
Eduardo ponte Bran dão
Organização
Hebe Signorini Gonçalves
Eduardo Ponte Brandão

22 Edição
23 Reimpressão

Rio de Janeiro
EDI TORA
2009
Apresentação 7

Pensando a Psicologia aplicada à Justiça 15


Esther Maria de Magalhães Âranles
A ínterlocução com o Direito à luz das práticas
psicológicas em Varas de Família 51
Eduardo Ponte Brandão
O psicólogo e as práticas de adoção 99
Lidia Nafalia Dobriarukyj Weber
O papel da perícia psicológica na execução penal 141
Saio de Carvalho
A atuação dos psicólogos no sistema penal 157
Tania Kolker
(Des)construindo a ‘menoridade’: uma análise crítica
sobre o papel da Psicologia na produção da categoria
“m enor” 205
Érika Piedade da Silva Santos
Em instituições para adolescentes em conflito com a lei,
o que pode a nossa vã psicologia? 249
Marlene Guirado
Violência contra a criança e o adolescente 277
Hebe Signorini Gonçalves
Mulheres em situação de violência doméstica: limites e
possibilidades de enfrentamento 309
Rosana Morgado
Sobre os autores 340
Esse livro é resultado de vários desafios.
O prim eiro deles, sem dúvida central, consistiu em apre-
sentar didaticam ente um ram o da psicologia que está em fran­
ca expansão e desenvolvimento: a Psicologiajurídica. Levando
em conta os objetivos de um público.alvo form ado basicam en­
te por estudantes e interessados erri conhecer esse domínio,
propusem o-nos a com por um livro-texto que se mostrasse ca­
paz de apresentar a área, em toda sua amplitude. O livro que
chega agora ao leitor foge portanto do form ato clássico de um a
coletânea, visto que a proposta didática exige mais que a apre­
sentação dos trabalhos de cada um dos autores; ela torna im ­
perativa a necessidade de desenvolver um a linha de raciocínio
capaz de apresentar a área aos interessados de modo esclarece­
dor, sem no entanto deixar de lado' os inúmeros problem as e
dificuldades que coloca, seja do ponto de vista teórico seja no
cam po de um a prática que já nasce intèrdisciplinar.
C om efeito, a P sicologiajurídica surgiu de um cham a­
m ento ao ingresso do Psicólogo em áreas originariam ente des­
tinadas às práticas jurídicas. Essa dem anda coloca exigências
específicas, ditadas pelo D ireito, mas é mister adm idr que o
ingresso da Psicologia no m undo jurídico precisa encontrar seu
m otor próprio, já que sua impulsão advém de um comprom is­
so com o sujeito que é, p o r excelência, de outra ordem . Não
há conflitos insuperáveis aqui, m as há sem dúvida interseções
de peso que m erecem exame.
A tarefa didática exige ainda que sejam abordados os
muitos e diversos setores e questões de que trata o m undo J u ­
rídico, mesmo porque essas especificidades constroem a dem anda
q u e o Direito remete à Psicologia. Parece haver um denom ina­
dor comum entre os vários setores aos quais a Psicologia se
aplica, visão que o leitor certam ente deverá com partilhar após
a leitura dos diversos textos que compõem este livro. N o en­
tanto, sobre esse denom inador com um ressaltam questões p ar­
ticulares, afeitas a cada área aqui abordada.
Dividimos então os capítulos de acordo com as práticas
que envolvem as instituições jurídicas - Varas de Justiça, C on­
selhos Tutelares, prisões, abrigos, unidades de internação, en­
tre outras - nas quais os psicólogos são chamados a atuar. Tais
práticas se inscrevem nas tutelas jurídicas sobre o adolescente
no cometimento, do ato infracional, nas disputas judiciais entre
famílias, nas adoções, na violência sexual, na violência contra a
mulher, nas instituições de internam ento e, por fim, nas pri­
sões.
' Cadá autor'foi solicitado á traçar lim panoram a históri­
co da área, a lançar luz sobre as diversas tendências, a apontar
os pontos de interlocução entre Direito e Psicologia e, acim a
de tudo, a oferecer uina visão crítica capaz de problem atizar a
atuação do psicólogo, discutindo as implicações de sua prática
e as alternativas que se colocam ém termos técnicos, éticos e
políticos. Eles enfrentaram, finalmente, o desafio de produzir
um texto em que o didaüsmo não sacrifica o rigor crítico, ne­
cessário para retirar 0 leitor de qualquer pretensão de neutra­
lidade científica da Psicologia Jurídica. O êxito dessa em preitada
é agora submetido ao crivo do leitor.
É com o texto de Esther M aria de M agalhães Arantes
que inauguramos essa discussão. Ela busca a resposta na inves­
tigação do objeto, dos. instrumentos e, sobretudo, dos desdo­
bramentos ético-políticos das ciências humanas e sociais e, mais
especialmente, da Psicologia Jurídica. A partir da indagação de

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C anguilhem acerca cia unidade da Psicologia, a autora traça
um cam inho genealógico, debruçando-se sobre as perícias, os
laudos, as questões da loucura e da sanidade, a crim inalidade,
as relações familiares, a cham ada justiça terapêutica e o difícil
tem a da in fan d a e da adolescência. Ela dem onstra como esses
percursos podem ser lidos como técnicas de subjetivação. Em
outras palavras, Esther Arantes vem nos m ostrar o jogo estra­
tégico das instituições jurídicas, jogo que impõe sérios dilemas
à prática do psicólogo.
. Existe neutralidade nas práticas do psicólogo relaciona­
das às Varas de Família? Com essa indagação de fundo, Eduardo
Ponte B randão aponta inicialmente p a ra a colonização recí­
proca entre as leis e as práticas de disciplina e norm alização
que teria havido no Brasil desde o Código Civil de 1916 até as
legislações atuais que regulam as famílias. Corri objetivo de
analisar essas complexas relações, o autor adota como eixo de
investigação os critérios definidores da guarda e suas m odali­
dades nos processos de separação e divórcio. Feito esse pano­
ram a, o autor põe em xeque a prática pericial relacionada aos
litígios familiares. Os argum entos são suficientes p ara estim u­
lar o psicólogo a atuar de forma a não causar mais prejuízos
do que os processos judiciais por si só já acarretam , devendo o
profissional lançar m ão de im portantes contribuições da psica­
nálise, da abordagem sistêmica e das práticas de mediação.
Erika Piedade enfoca as diferenças valorativas entre os
conceitos de "m enor” e de “criança” que foram forjadas ao
longo de nossa história, sobretudo a partir de dispositivos ori­
entados p a ra o controle das parcelas mais desfavorecidas da
população. O hiato entre os bem-nascidos e os potencialm ente
perigosos p a ra a sociedade é perpetuam ente estim ulado desde
o Brasil colonial até os últimos anos, apesar dos avanços teóri­
cos e sociais propostos pelo Estatuto da C riança e do Adoles­
cente. Investigar a complexa teia de determ inações que assevera
a desigualdade entre as infâncias no Brasil, e com isso proble-

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m atizar o lugaV que o psicólogo ocupa frente às dem andas so7
ciojurídicas, é a.tarefa a que a autora se'lança corajosam ente.
A contribuição de M arlene G uirado, psicanalista e ana­
lista institucional, vem m ostrar um a nova form a de pensar a
-Psicologia-Jurídica-para-além -dos-cam pos-e-leituras-nas-quais-
ela j á firm ou sua produção. A autora questiona u m 'saber p u ra ­
m ente acadêm ico, restrito a formas protegidas de proceder, assim
com o u m a concepção de sujeito apartada das trocas sociais.
G uirado dem onstra que a Psicologia não só se transform a como
g an h a potcncia q u ando se dispõe a enfrentar os desafios do
cam po, expor sua p rática e enfrentar efetivam ente os dilemas
éticos dos sujeitos. A autora apresenta certos preceitos m etodo­
lógicos e se p ro p õ e a avaliar sua aplicabilidade em instituições
destinadas a jo v en s em conflito com a lei e subm etidos a m edi­
das de privação de liberdade. No! difícil contexto da FEBEM de
São Paulo, o P rojeto Fique Vivo —por ela supervisionado - é
alvo de um a análise fecuncla e original, que perm ite depreender
que o exercício daP sico lo g ia deve definir-se no cam po das ci­
ências hum anas, assessorar-se delas e buscar a conexão entre o
sujeito e as relações sociais que o cercam e fundam .
A violência contra a criança e o adolescente é discutida
em capítulo de autoria de H ebe Signorini Gonçalves. C om base
cm literatura nacional e internacional, a au to ra faz um apa­
n h ad o dos tipos de violência, dos sinais e indícios a serem ob­
servados e das conseqüências que o ato violento produz na
criança ou no adolescente, assim como na dinâm ica familiar.
Sobre esse p a n o ra m a , a autora faz um a análise crítica do cam ­
po, avalia os alcances dos instrum entos legais e alerta p ara os
limites d a aplicação desses dados aos casos, levando em conta
que eles tendem a ocultar certas singularidades do sujeito. Seus
argum entos invocam os questionam entos mais recentes, sobre­
tudo aqueles derivados de pesquisas desenvolvidas no Brasil, e
conclam am os profissionais a um a ação onde a ética de prote­
ção à criança leve em conta tam bém as necessidades dos de­

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m ais m em bros da família, assim como o contexto social em
que'se inserem.
R osana M orgado fala sobre a violência contra a mulher.
A autora m ostra que a larga incidência dessa form a de violên-
-cia,_na_sociedade. contem porânea, contribui p ara sua naturali­
zação. A leitura crítica de R osana alèHi7^:í õ ~ ^ tã n tõ ^ p a ra '“o~
fato de que certos modelos de análise do problem a term inam
acatando a naturalização da violência. Em contrapartida, ela
busca tratar o gênero como construção social, e m ostra como a
p a rtir daí a m ulher pode ser vista de modo m uito mais com ­
plexo que o estrito lugar de vítima que lhe é atribuído. Sem
negar o lugar de vítima, e sem negar a dependência econômica
tão com um nas ■relações de. casal perm eadas pela violência, a
autora vem nos m ostrar que essas .concepções são insuficientes,
quando não falaciosas , p ara dar conta de um a tem ática que
im plica o sujeito em dimensões mais profundas e complexas.
Escapando do imediatism o que perm eia certos modelos sociais
e jurídicos, a autora propõe um novo olhar sobre a m ulher que
sofre a violência, olhar que permite desvendar suas ambivalências
e conflitos, em prestando nova dim ensão às relações de casal.
Dessa análise, a autora retira implicações importantes p ara as
políticas públicas e as form as jurídicas que tratam das relações
de gênero perm eadas pela violência.
A quem; serve a adoção: aos pais ou à criança adotada?
A resposta a essa questão é buscada na história do instituto da
adoção, história, que antecede os modelos jurídicos tal como
hoje os ^conhecemos. D a Antigüidade ao Brasil contem porâ­
neo, Lidia W eber indica que a Lei e as práticas sociais se inter­
penetram , e que nem sem pre a proposta jurídica encontra eco;
no tecido social. Essa análise histórica das formas de adoção é
ricam ente ilustrada pela mais extensa pesquisa já desenvolvida
no Brasil sobre o tem a, cujos resultados perm item exam inar
não só as motivações p a ra ' adotar como tam bém os critérios
das equipes encarregadas de avaliar - e avalizar — os propo-

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nentes à adoção. A autora sustenta que, para efetivar a propos­
ta legal de privilegiar o interesse da criança, será necessário
que o trabalho do psicólogo busque afastar-se de um modelo
pericial, que visa apenas classificar e descobrir atributos desejá­
veis. em candidatos a pais adotivos, para levar tam bém em conta
o desejo, a motivação, o m edo e a ansiedade, entre os candida­
tos, e privilegiar sua preparação para as funções de paternida­
de e os vínculos de filiação dos quais o instrum ento jurídico é
apenas um recurso.
Para entender o fenômeno da criminalidade, é funda­
mental entender o papel da crim inalização da pobreza, da
demonização das drogas, da espetacularização da violência, da
criação da figura do inimigo interno e da funcionalidade do
fracasso da prisão, especialmente no contexto atual das socie­
dades neoliberais globalizadas. A expressão de T an ia Kolker
anuncia a complexidade do tem a e a amplitude de sua análise.
Ela no entanto não se restringe a essas determinações sociais;
dem onstra ao mesmo tempo como se consolidou a prática de
individualizar as penas, o cálculo de reincidência no delito e, a
mais grave herança positivista, a percepção m aniqueísta da
delinqüência e do delinqüente. Com o m ostra a autora, essa
história de exclusão está até hoje presente na cena prisional, a
despeito de instrumentos de proteção internacional dos direitos
humanos. Em sua análise, Kolker se vale de um a literatura
am pla que contem pla Foucault, Castel, Zafaroni, W acquant,
assim como autores nacionais - Correa, Rauter, Batista - o
que lhe perm ite olhar para nossas prisões e analisar critica-
m ente a função do psicólogo nesse espaço.
Alinhado tam bém à criminologia crítica, escola inspira­
da em Foucault, Saio de Carvalho enfoca a avaliação crimino-
lógica que permeia, a Lei de Execução Penal (LEP). N um a
exposição rigorosa que articula os aspectos jurídicos às práticas
de poder, o autor opõe-se à perspectiva de colocar-na cena
penal a personalidade do apenado, invocando para tanto as

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garantias constitucionais. Seguindo esse raciocínio, Carvalho
desvenda a prática autoritária presente no exame criminológi-
co. Ele interroga a função dos técnicos do sistema penitenciá­
rio, entre os quais o psicólogo, p a ra além da tarefa' de realizar
avaliações e perícias criminológicas. Carvalho' faz assim algu­
mas indicações preciosas, mas que só serão possíveis de se rea­
lizarem m ediante um a perspectiva dita “hum anista” .

Hebe Signorini Gonçalves


Eduardo Ponte Brandão

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P e n s a n d o a f s ic o lo g ia a p lic a d a à-JusIiça

Esther Maria de Magalhães Arantes

Talvez a crítica mais contundente dirigida à Psicologia


tenha sido a form ulada p o r G e o r g e s C a n g u i l h e m , em confe­
rência realizada no Collège Pkilosophique, em dezem bro de 1956.'
À pergunta inicial “O que é Psi- _
coloria?” segue-se “Q uem desig-
° , . ^dorrâasjdé^
n a os p sic ó lo g o sco m o ínstru-
m entos do m strum entalism o? ,
,. fttoritémporâricÒkv.S^
num a apreciação cntica tanto da fyyyamós^enc^
_________ ? _ J _ _! _i-_!-Cl _ J J _ J . J ^

Psicologia como do próprio


zer do psicólogo.
r O Este buscaria,
i cia t VI
saber1ÍT)■'-/i“
i£io rflc' Janeiro:
r":'h WÍI i’Gra*
nT'-
n u m a . eíicacia discutível, a sua i -..í'^ 1
im portância de especialista. N o entanto, e aí está o que de fato
deve nos preocupar n a argum entação de Canguilhem , esta efi­
cácia, ainda que m al fundada, não é ilusória.
Ao dizer da eficácia do psicólogo que ela é discutível, não
se q u e rd iz e r que ela é ilusória; quer-se simplesmente ob­
servar que esta eficácia está 'sem dúvida m al fundada, en­
quan to não se fizer p ro v a de que ela é devida à aplicação
de um a ciência, isto é, en q u an to o estatuto d a psicologia
n ão estiver fixado de tal m an eira que se deve considerá-la

1 U m a tradução de Qu’est-ce que la psychologie?, d e G eorges C an guilhem , foi


pu b licad a no Brasil com o título “O q u e é a psicologia?” . In Epistemologia, 2.
R io de Janeiro: T e m p o Brasileiro, n. 3 0 / 3 1 , jú l./d e z ., 1972.

15
B IB U O T E C A U N IVE R SIT Á R IA j
! PROF R O G ER PATT1 j
como mais e m elhor do que um empirismo com posto, lite­
rariam ente codificado p a ra fins de ensinam ento. D e fato,
de muitos trabalhos de psicologia, se tem a im pressão de
que misturam a um a filosofia sem rigor um a ética sem exi­
gência e um a m edicina sem controle (Canguilhem , 1972:
104-105). ■

O objetivo de Canguilhem nesta conferência foi o de


criticar o program a universitário de seu colega de Ecole Normal
Supérieure, Daniel Lagache, que postulava a unificação dos dife­
rentes ramos da Psicologia, afirmando haver convergência en­
tre a Psicologia experimental, dita “naturalista” e a Psicologia
clínica, dita “hum anista” .2
A questão “Q ue é psicologia?”, pode-se'responder fazendo
aparecer a unidade de seu domínio, apesar d a m ultiplici­
dade dos projetos metodológicos. É a este tipo que perten­
ce a resposta brilhantem ente dada pelo Professor D aniel
Lagache, em 1947, a um a questão colocada, em 1936, p o r
E douard C laparède. A unidade da psicologia é aqui p ro ­
curada na sua definição possível como teoria geral da con­
duta“ síntese da psicologia experim ental, d a psicologia
clínica, da psicanálise, da psicologia social e d a etnologia.
O bservando bem, no entanto, se diz que talvez esta un id a­
de se parece mais a um pacto de coexistência pacífica con­
cluído entre profissionais do que a um a essência lógica,
obtida pela revelação d e'u m a 'constância n úm a variedade
de casos (Canguilhem, 1972: 105-106).

Continuando suas crídcas à Psicologia, C anguilhem , que


aceitara ser o relator de Historie de la folie , tese de doutorado
defendida por M ichel Foucault em 196T, não poupou Lagache,
m ostrando que a pesquisa desenvolvida por Foucault fazia des­
m oronar o grande projeto de unidade da Psicologia (Roudinesco,

2 VU nilê de la Psychologie, Aula Inaugural ministrada por D an iel L agache na


Sorbonne em 1947 e publicada pela P U F , Paris.

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1994: 15-16). Apesar das críticas de Canguilhem e de outros
àutóres, entre os quais Jacques Lacan, a proposta de Lagache
teve am pla repercussão ria França do pós-guerra.
Em dezem bro de 1980, num a conferência intitulada Le
ceroeau et la pensêe, Canguilhem voltou a criticar a. Psicologia,
desta vez por reduzir o pensam ento ao funcionam ento cere­
bral. A firm ando que a Filosofia nada tem a esperar dos servi­
ços da Psicologia, conclam ou os filósofos das novas gerações a
resistirem à “calam idade” psicológica. D iante de críticas tão
duras, Roudinesco observou que, nesta conferência, C angui­
lhem não havia se preocupado em distinguir as querelas e discor-
dâncias internas à própria Psicologia, fazendo um a crítica em
bloco a saberes m uito diferenciados (Roudinesco, 1993). Com o
o próprio Canguilhem havia dito na conferência de 1956, não
há unidade na Psicologia.3 U.
M esm o assim, e ainda se perguntando se não haveria-:
um a certa obstinação por parte de Canguilhem em dem olir os c:
alicerces nos quais se fundam entam a Psicologia, Roudinesco-^
presta um a hom enagem “a um dos m aiores filósofos do nosso
tem po”, reconhecendo a pertinência e a atualidade de suas crí­
ticas, principalm ente porque, segundo a autora, um a a lia n ç a '
vitoriosa entre o organicismo biológico e genético, a ciência da
m ente e a tecnologia estaria ganhando terreno, em tódos os
cam pos do saber.
(...) até o ponto de fazer em ergir u m a nova ilusão cientifi-
cista segundo a qual a intervenção cada vez mais ativa da
ciência no cérebro h um ano p erm itirá conduzir o hom em
à im o rta lid a d e , ou seja, à cu ra d a condição h u m a n a
(Roudinesco, 1993: 144).

N ão advindo, desta form a, a cientificidade da Psicologia


de sua m era rotulação como ciência, seja natural, social ou

3 M ais ad eq u ad o seria falar de Psicologias?


hum ana, ou ciência pura ou aplicada; nem de sua adjetivação
com o Psicologia Jurídica, Social ou Escolar; ou ainda de sua
definição com o estudo da alm a, do psiquismo, da conduta ou
d a subjetividade; sequer do uso de m edidas, restaria à Psicolo­
gia, em geral, e à Psicologia Ju ríd ica, çm _pafticular,-sèrem —
pensadas apénas com o técnicas ou ideologias?
Em prefácio ao livro de, Lei Ia M aria T. de Brito, que
versa sobre a atuação do psicólogo em V aras de Família, escre­
vera o que ainda considero central em se tratando de pensar a
Psicologia Jurídica, e que aqui relem bro em parte (Arantes,
1993).
A indagação form ulada pela autora: “V aras de família:
u m a questão p a ra psicólogos?”,, questão que deve ser entendi­
da tanto como lugar de prática, como prática a ser pensada,
ponderei que se podia responder de diversos modos: sim, se
considerarm os um m ercado de trabalho potencial ou em ex­
pansão p a ra o qual existe, inclusive, justificativa legal; não, se a
um D ireito autoritário e burguês contrapom os um a Psicologia
libertária, exterior ao próprio Direito; outra possibilidade é
considerar a Psicologia com o parte do problem a e, deste m odo,
redesenhar a questão.
N a realidade, a pergunta form ulada p o r Brito, como no
texto de Canguilhem , desdobra-se em várias outras, sendo que
um prim eiro grupo diz respeito a um a problem atização que
podem os cham ar de epistemológica: o que é a Psicologia apli­
cada à ju s d ç a ou Psicologia Jurídica, quais são os seus concei­
tos, em que se fundam enta sua pretensão de prádca científica?
E m artigo dedicado a pensar as Ciências Sociais e a Psi­
cologia Socialj T hom as H erb ert ;(1972) pondera que colocar a
um a ciência as questões “quem és tu ”?, “por que estás aqui?”
e “quais suas intenções?” pode parecer im pertinência à qual
ela tenderia a responder que “está aqui porque existe” e q uan­
to às suas intenções “ela não as tem ” mas apenas “problem as a
resolver”. N o entanto, considera im portante a distinção feita

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por Louis Althusser entre ciência desenvolvida e ciência em
constituição. N a ciência desenvolvida o objeto e o m étodo são
hom ogêneos e se engendram reciprocam ente, o que não acon­
tece com as ciências em desenvolvimento, como a Psicologia.
-Uma-coisa-é-a-tr-a-nsformaçâ© -pr-odutor-a-do-obj eto-cientifico,
outra, a reprodução m etódica deste objeto, que só pode acon­
tecer, rigorosam ente falando, se uma. transform ação produtora
deste objeto já foi realizada. Quanto, à função dos instrum en­
tos, ela não é a m esm a em cada um destes tempos da ciência.
Exem plificando esta diferença, lembra-nos H erbert a transfor­
m ação que a balança sofreu após o advento da Física moderna.
F o ra de seu papel técnico-com ercial, ela servia para inter­
rog ar toda a superfície do real empírico', pesava-se o san­
gue, a urina, a lã, o a r atmosférico etc... e os resultados
forneciam a “realização do real” sob diversas formas bio­
lógicas, m etereológicas etc...
Esta vagabundagem do instrum ento foi detida pelo m o­
m ento galileano, que lhe designou, no interior da ciência
nascente, u m a função nova, definida pela teoria científica
m esm a. ' ,
Isto nos designa o duplo desprezo que não deve ser come­
tido: declarar científico todo uso dos instrum entos, esque­
cer o papel dos instrum entos na prática científica (Herbert,
1 9 7 2 : 31).

Postas estas colocações iniciais, resta dizer que este é um


prim eiro conjunto de questões e que se apresenta como perti­
nente apenas a p artir da reivindicação de cientificidade da Psi­
cologia, e à qual C anguilhem e H erbert, nos textos acim a
m encionados, se.dedicam . N a realidade; mais do que copiar o
m odelo de cientificidade da Física, da Quím ica ou da Biologia,
espera-se que as Ciências H um anas desenvolvam algum tipo
de rigor próprio, adequado ao seu cam po de investigação.
U m segundo conjunto diz respeito a um a Arqueologia e
a um a Genealogia dos saberes sobre o homem, seguindo as
indicações de M ichel Foucault. Isto porque, mesmo do ponto

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de vista de um a certa leitura epistemológicaj no caso aqui as
de Canguilhem e T hom as H erbert, não se trata de negar à
Psicologia, Jurídica ou não, um a existência de fato c um a qual­
quer eficácia. Trata-se, então, de. saber como e porque este
cam po se constituiu, quais os seus procedim entos e de que
natureza é a sua eficácia. Não devemos nos esquecer que as
análises Genealógicas perm itiram a Foucault identificar as p rá ­
ticas jurídicas, ou judiciárias/com o das mais im portantes na
emergência das formas modernas de subjetividade, e que a partir
do século XIX, mais do que punir, buscar-se-á a reform a psi­
cológica e a correção m oral dos indivíduos (Foucault, 1979).
Este segundo conjunto de questões diz respeito, então, a tudo
aquilo que faz com que a Psicologia Jurídica exista como p rá ­
tica em um a sociedade como a nossa, independentem ente de
seu estatuto epistemológico. Corno nos ensinou R oberto M a­
chado, as análises arqueológicas e genealógicas não se norteiam
pelos mesmos princípios que a história epistemológica (M acha­
do, 1982). -
No cáso específico da atuação dos psicólogos em V aras
de Família, de acordo com a pesquisa de Brito já m encionada,
e para continuar utilizando o mesmo fio condutor, constatou-
se o predom ínio das atividades de perícia nos casos de separa­
ções litigiosas, onde havia disputa .pela .guarda dos filhos.
Sabemos que a perícia tem sido um dos procedim entos
mais utilizados na área jurídica, tendo por objetivo fornecer
subsídios p ara a tom ada de um a decisão, dentro do que impõe
a'lei. Em.algumas áreas da justiça a perícia pode ser solicitada
para averiguação de periculosidade, das condições de discerni­
mento ou sanida.de mental das partes em litígio ou em julgamento.
Em bora não possamos rigorosamente dizer de que se
trata quando nos referimos, como psicólogos, a categorias como
estas, pelo rrienos do ponto de vista de uma. ideologia jurídica,
algo da ordem do objeto está apontado. No caso de V aras de
Família, não se trata, pelo menos em princípio, de exam inar

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algum a periculosidadc, algum a ausência ou prejuízo da capa­
cidade cie discernim ento ou sanidade mental. Com o pano de
fundo temos o casal em dissolução e em disputa pela guarda
dos filhos, cada um instruído no processo por seus respectivos
advogados. Sabemos que muitas das alegações p a ra a guarda
dos filhos tem sido im putações de infidelidade, desvios de con­
duta, uso dc drogas, doenças ou mesmo a de possuir o outro
cônjuge m enor renda, trabalhar fora de casa ou não trabalhar,
ou ainda possuir m enor escolaridade.
É sobre tais alegações, motivo da disputa, que trabalha«
rá o juiz, form ulando quesitos a serem investigados pelo perito,
que de certa form a com provará ou não as alegações, form u­
lando um a verdade sobre os sujeitos.
C om o resultado da perícia um a das partes tenderá a ser
apontada como aquela que reúne as melhores condições para-^
a guarda dos filhos, já que tanto o pedido do juiz como a lógi-
ca do processo se dirige e mesmo impõe esta direção. Enganamo-
nos todos ao acreditar que a verdade vem à luz e que se faz .
justiça nesse processo. O resultado parece ser, inevitavelmente,
a fabricação dc um dos cônjuges como não-idôneo, m oralmente
condenável ou, pelo menos, tem porariam ente m enos habilitado. -
N ão se trata, evidentem ente, de lançar aqui um a dú v id a'
generalizada sobre os diversos tipos de perícia e seus usos p e la '
Justiça; tam bém não se trata de negar o sofrim ento ou levantar
suspeitas sobre a sinceridade com que os genitores form ulam
suas queixas, em bora, aqui e aü, os advogados orientem a dire­
ção e a form ulação das alegações, conhecedores que são dos
juizes e das regras, e em bora, vez ou outra, as partes estejam
igualm ente preocupadas com os filhos e o patrim ônio.
Podem os não saber como resolver problem as tão difícil
como este,4 podem os m esm o adm itir que em certos casos e em

4 “C o m o os pais se c o lo ca m frente aos filhos? e C o m o os filhos de colocam


ccrtas circunstâncias um dos progenitores encontra-se em m e­
lhores condições p a ra o exercício responsável da guarda dos
filhos, m as que não se reduza u m a questão tão delicada como
esta aos seus m eros aspectos gerenciais. Pelo m enos, não em
nom e das crianças.5 ~ : ' ~
Seria sábio, neste m om ento, dar mais ouvidos ao filósofo,
que ao adm inistrador: "O nde, querem chegar os psicólogos,
fazendo o que fazem ?” (Cangúilhem , 1972: 122).

A prática dos laudos, pareceres e relatórios técnicos

Constata-se, no exercício profissional dos psicólogos no


âm bito judiciário, a predom inância das atividades de confec­
ções cle laudos, pareceres e relatórios, no pressuposto de que
cabe à Psicologia, neste contexto, um a atividade predom inan­
tem ente avaliativa e de subsídio aos magistrados.
Este pi'essuposto, em bora defendido em textos clássicos
de Psicologia (Jacó-Vilela, 2000) e 1'egulam entado pela legisla­
ção brasileira, tem causado m al-estar entre a nova geração de
psicólogos, que preferiria ter de si um a im agem m enos com ­
prom etida com a m anutenção da ordem social vigente, consi­
d erad a injusta e excludente. Este m al-estar tem sido crescente,
possibilitado, dentre outras razões, pelo advento1de um a litera­
tu ra crítica, dem onstrando que a questão da interseção da Psi­

frente aos pais?” é a questão m ais difícil e central, segun do Pierre L egendre
(1992), q u e todos os sistem as institucionais do planeta devem resolver histó­
rica, p olítica e ju rid icam en te, pois é ai que o princípio da vida está ancora­
do. O u seja: co m o ordenar o p od er genealógico? Q u a l a relação entre o
D ireito e a vida?
5 A C o n v en çã o internacional dos D ireitos da C riança, dc 1989, dispõe sobre
o direito da criança ser ed u cad a por pai e m ãe. A este respeito ver: Brito,
1999.

22
cologia com o Direito não diz respeito apenas ao bo.m ou m au
uso da técnica, à habilidade ou não do perito.
(...) deve-se reco n h ecer que o psicólogo contem porâneo é,
n a m aioria das vezes, um p rático profissional cuja “ciên-
------- ;------- eia—é-totalm ente-inspirada nas “leis” da adaptação a um
m eio sociotécnico - e não a u m m eio natural - o que con­
fere sem pre a estas operações de "m edida” um a significa­
ção de apreciação e um alcance de perícia. (Canguilhem ,
1972: 121) ■
P a ra C anguilhem , ao buscar objetividade, a Psicologia
transform ou-se em instrum entalista, esquecendo-se de se situar
em relação às circunstâncias nas quais se constituiu.
E m b o ra esta observação de Canguilhem se refira apenas
à Psicologia, ela pode ser estendida a outras áreas. Ao discor­
rer sobre a m odernidade, José Am érico Pessanha afirm a ser
um a de suas características a opção p o r um certo tipo de ra­
zão, ou conhecim ento científico, de natureza operante ou ins­
trum ental, capaz de dom inar e m odificar o meio físico. M enos
m al, talvez, se este tipo de racionalidade tivesse se lim itado
apenas a certos usos e a certos propósitos, e não tivesse a p re­
tensão de se constituir com o único m odo legítimo e verdadeiro
de leitura do m undo.
(...) q u an d o o O cidente, através de D escartes e de Bacon,
fez a escolha p o r u m a form a de cientificidade e deixou de
lado tudo que fosse dotado de algum a am bivalência, dei­
xou de lado tam bém as cham adas idéias obscuras. Com
isso tam bém deixou de lado tudo o que n a condição h u ­
m an a é ligada ao corpo, ao tem po, à história e à concretude
(Pessanha, 1993: 26). ■ ‘
N ão se tra ta de negar validade ao m odelo das Ciências
da N atureza ou à M atem ática, m as apenas de reconhecer que
as Ciências H um anas e Sociais não podem se reduzir ao dis­
curso coagente da razão abstrata, pretendendo a produção de
verdades a-históricas e universais. O fecham ento da razão a

23
dem aos vários setores da vida pessoal e social, levando Gastei
a fazer à Psiquiatria pergunta similar à feita por Canguilhem à .
Psicologia: “Sem dúvida nâo é possível estabelecer limite p ara
essé progresso. M as seria o m ínim o ousar perg u n tar ‘quem te
fez re i? a quem te faz sujeito-submisso” (Gastei, 1978: 20).
Assim com o p a ra o louco ie p a ra o prisioneiro, será n e­
cessário encontrar um a nova form a de adm inistrar os conflitos
familiares e tám bém um a nova form a de assistência. No A nti­
go Regim e, em troca de seu grande poder, o chefe de família
devia zelar p a ra que nenhum de seus m em bros perturbasse a
ordem pública. Este m ecanism o de controle se tornará insufici­
ente e inadequado em função do aum ento crescente do núm e­
ro de pessoas “desgarradas” ou que “escapavam ” ao controle
das famílias com o os pobres, os vagabundos, os viciosos e a
infancia abandonada, levando os novos filantropos a um a crí­
tica feroz do arbítrio fam iliar e dos procedim entos da antiga
caridade. Estes filantropos lutavam por um a nova racionalidade
n a assistência e principalm ente p a ra que a ajuda dada à fam í­
lia favorecesse sua prom oção e não sua dependência. Neste
contexto, m ultiplicaram -se as leis sobre o abandono, maus tra ­
tos, trabalho e m ortalidade infantil, surgindo novos profissio­
nais dedicadas ao cam po social: os cham ados “técnicos” ou
“trabalhadores sociais”. A partir;de então, p a ra com preender­
m os o que Jacques D onzelot cham a de “complexo tutelar”,
torna-se necessário entender as form as de agenciam ento entre
as suas principais instâncias: o judiciário, o psiquiátrico e o
educacional (D on 2 elot, 1980).
M as todas estas práticas riao incidem, como nos ensina
M ichel Foucault, sobre u n iv ersa l como “doente m ental”, “de­
linqüente”, “carente” que lhes seriam exteriores, senão que esses
“universais” ou “essências”, são iaquilo m esm o que se produz

vida social, ao postular as degenerescências como desvios em relação ao tipo


normal da humanidade, transmitidos por hereditariedade.

26
nestas práticas. Recusar estas categorias como sendo “natureza
h u m an a” significa, ao mesmo tempo, reconhecer, nas práticas
sociais concretas, a formação de um campo de experiência onde
processos de subjetivação/objetivação têm lugar. Significa tam ­
bém reconhecer o papel que trabalhadores sociais, técnicos e
peritos desem penham neste cam po de poder-saber.

Dos conflitos e do

Até aqui a discussão serviu apenas para estabelecer que


as questões de definição, de sentido e de eficácia de um a ciên­
cia não são questões menores, como tam bém não dizem res­
peito apenas à Psicologia. No entanto, mencionamos também
um certo mal-estar entre os psicólogos brasileiros, insatisfeitos
com certas dem andas e constrangimentos a que, muitas vezes,
são submetidos. Neste sentido, o campo denominado de Psico-
logia Jurídica é particularm ente tenso e contraditório.
Deveria fazer parte do ensino levar os alunos, a com preen­
derem a qualidáde do poder que a ‘especialização5 lhes
confere: encerrar no inferno da Febem um jovem , negar
um a adoção ou facilitar a guarda de crianças, afastar filhos
de pais, lançar um a criança na carreira, sem esperança,
das classes especiais, contribuir para a m orte civil da crian­
ça ou jovem contraventor (Leser de Mello, 1999: 149).

Recentem ente no Brasil, na transição da ditadura mili­


tar p a ra o regime democrático, grupos organizados da socieda­
de, descontentes com situações como as descritas acima, se
organizaram para introduzir na Constituição de 1988 disposi­
tivos que assegurassem o respeito aos direitos hum anos e de
cidadania dos grupos que tradicionalmente se encontravam sob
tutela, como as crianças e os loucos, por exemplo (Arantes e
M otta, 1990). Em que pesem modificações pontuais aqui e ali,
ou m esm o experiências mais ousadas em alguns estados ou
um modelo pretensam ente único e absoluto não traz, como
c o n seq ü ê n c ia , o e n riq u e c im e n to do p e n s a m e n to m as o
irracionalismo e a intolerância à diferença. Nas palavras dc
Pessanha (1993: 31):
Trata-se é de negar a matematização daquilo que ríao é
matematizável, de negar a desumanização daquilo que
precisa se manter humanizado, negar a extração da di­
mensão temporal daquilo que só pode ser compreendido
temporalmente. Tra.ta-se, portanto, de preservar a tempo­
ralidade do tempo, a humanidade do homem, a concretude
do concreto.
Com o se vê, não é apenas da Psicologia que se trata,
mas dc um a problem ática que envolve as cham adas Ciências
H um anas e Sociais. R obert Castcl, ao analisar a questão m o­
derna da loucura, m ostra que o sucesso da M edicina M ental
na França se deu por prover um novo tipo de gestão técnica
dos antagonismos sociais, podendo a Psiquiatria, neste sentido,
ser considerada um a C iência Política, porque respondeu a um
problem a de governo. Ao fazê-lo, no entanto, reduziu a loucu­
ra às condições de sua adm inistração.
E portanto essa constituição de um administrável (poderí­
amos dizer com mais ousadia de um ‘administrativável’)
que se trata de revelar: administrar a loucura no sentido
de reduzir ativamente toda a sua realidade às condições de
sua gestão em um quadro técnico (Castel, 1978: 19).
No Antigo Regim e, a responsabilidade pela internação
dos indivíduos considerados insanos era com partilhada pelo
poder judiciário e executivo. As portas da Revolução Francesa,
qualificado o poder real como arbitrário e abolidas as lettres
de cachet; ou ordenações do rei, como justificar o grande n ú ­
m ero de pessoas seqüestradas que, apesar de tudo, não se que­
ria libertar? E ra im portante p ara a nova ordem solucionar este
impasse, já que não se podia ignorar o ordenam ento jurídico
que disciplinava a m e d id a d e privaçãp_dc_ liberdade. -Ao-p os tu--

24
larem a m inoridade do louco e A L ettue-de-Cachet “não era uma lei ou um de­
creto, mas uma ordem do rei que concernia a
o seu isolam ento corno m edida uma pessoa, individualmente, obrigaudo-a a fa­
terapêutica necessária ao con­ zer alguma coisa. Podia-se até mesmo obrigar
trole de sua pcriculosidade, os alguém a sc casar peia leltre-de-cacheí. Na maioria
das vezes, porém, cia era um instrumento de pu­
alienistas ofereceram um a jus­ nição. Podia-se exilar alguém pela lellre-de-cachet,
privá-lo de alguma função, prendê-lo etc. Ela cra
tificativa m édica à sua repres­ um dos grandes instrumentos dc poder da mo­
são. narquia absoluta” francesa (Foucault, 1979: 76).
M as não eram os loucos Por outro lado, ainda segundo Fouçault, as Uures-
de-cachet eram solicitações diversas dos próprios
os únicos que colocavam pro­ súditos: maridos ultrajados, pais de família des­
blemas de governo, após a abo­ contentes com o comportamento de um de seus
membros, seja por vadiagem, bebedeira, prosti-'
lição das lettres de cachety um a ve 2
que estas serviam tarito p a ra sancionar as condutas considera­
das imorais como as consideradas perigosas. No entanto, antes
de se colocar como fator indispensável ao funcionam ento do
aparelho judiciário e de estender-se em direção a outros gru­
pos, a M edicina necessitou primeiro legitimar-se como um poder
face à Justiça. Em relação ao prisioneiro, por exem plo, a atu­
ação m édica se dará inicialm ente visando à execução da pena,
e só mais tarde se dedicará à avaliação da responsabilidade do
criminoso (Castel, 1978: 38).
Neste m om ento posterior, ao desfazer-se a rígida sepa­
ração entre o norm al e o patológico sobre a qual repousavam
as in tern açõ es dos alienados, d esfazim ento in iciad o pelas
teorizações dè Esquirol sobre as m onom anias6 e as de M orei
sobre as degenerescências,7 as atividades de perícia se esten-

ü D e acordo com a m áxim a dos prim eiros alienistas d e que “n ão existe lou­
cura sem delírio” , surge a dificuldade de se caracterizar a alienação m ental,
para efeitos de dcsresponsabílização jurídica,, n os casos em q u e nao se o b ­
servam a presença de delírios nos indivíduos q u e com eteram crim c ou infra­
ção penal. Em contraposição às m anias, Esquirol postulou ás m on om an ias,
ou loucura sem delírio, am pliando a n oção de alien ação m ental. A m o n o ­
m ania é co m o um delírio parcial, que não subverte inteiram en te a faculda­
de da razão o.u do enten d im en to (V er G astei, 1978:_164^165).._____________ -
7 C om M orei am pliam -se as possibilidades de in terven ção da m ed icin a na

25
municípios, a promessa de um a vida m elhor p a ra todos ainda
não se concretizou. C ontinua a prática de atribuir a determ i­
nados grupos, particularm ente os jovens pobres das periferias
urbanas, características negativas como perigoso, m arginal, in­
frator, deficiente, preguiçoso, como se tais atributos constituís­
sem a sua própria natureza. A R eform a Psiquiátrica, por outro
lado, em bora avance, se vê, às voltas com a difícil questão da
inclusão social dos ex-pacientes, álém de divergências internas
ao próprio movimento.
Com o profissionais que atuam no campo social, os psi­
cólogos têm sido chamados, cada vez mais, a refletirem sobre o
papel estratégico que desem p en h am nestes processos de
objetivação/subjetivação, a próblem atizarem as dem andas que
lhes são feitas e a colocarem em análise a sua condição de
especialista.

Do tratamento que é pena


. Estudando as;internações psiquiátricas de crianças e ado­
lescentes do sexo masculino, realizadas atrayés de M andado
Judicial, no período 1994-1997 e com parando-as com os de­
mais pacientes do mesmo sexo, encam inhados por familiares
oü p élò p ró p rio serviço de saúde, Ana L. S. Bentes constatou
estarem aquelas internações em crescimento, passando de 7%
em 1994 para 33% em 1997 na unidade hospitalar na qual
trabalha, no Rio de Janeiro. U m a vez verificado que os diag­
nósticos das crianças e adolescentes internados por M andado
Judicial não correspondiam aos critérios psiquiátricos adotados
pela unidade, pergunta porque, mesmo após a vigência do
Estatuto da Criança e do Adolescente e do M ovim ento N acio­
nal da Luta Antimanicomial e da Reform a Psiquiátrica, conti­
nuam acontecendo as internações compulsórias de crianças e
adolescentes?

28
Algumas das características destas internações tem sido:
1) a com pulsoriedade;' não se podendo recusar a internação
sob pena de desacato à autoridade; 2) o predom ínio dc q u a ­
dros não psicóticos; 3) a estipulação de prazos para a internação,
a despeito do que pensa a equipe m édica que recebeu a crian­
ça ou o adolescente; 4) a caracterização do tratam ento como
pena, no caso de adolescentes em conflito com a lei; 5) as cri­
anças e adolescentes apresentando-se fortemente medicados com
psicofármacos, no ato da internação; .6) presença de escolta
durante o período da internação; 7) tem po médio- de internação
superior aos dos demais internos admitidos por outros procedi­
mentos; 8) desconhecim ento, pela equipe técnica, dos proces­
sos judiciais referentes aos adolescentes em conflito com a lei.
D adas estas especificidades, o adolescente internado por
esta via judicial tende a não ser considerado paciente “legíti­
m o” pela equipe médica, pois esta não pode opinar sobre a
indicação de internação nem sobre a alta, sentindo-se acuada
entre o Código de Ética M édica e o Penal. Estabelece-se então
um a distinção entre “nossos” adolescentes (da equipe) e adoles­
centes do “ju iz” , sendo estes considerados desobedientes, sem
limites e agressivos. Além do mais, éxiste o m edo de que as
crianças e adolescentes do “ju iz” possam trazer “riscos” p a ra
as outras. A alternativa de separar essas duas clientelas em pátios
ou alas distintas do hospital equivaleria a instituir, na prática,
um a espécie dc m anicôm io judiciário p ara crianças e adoles­
centes.
Procedendo a um detalham ento m aior da clientela, Bentes
constatou que do total de crianças e adolescentes encam inha­
dos ju d ic ia lm e n te , 60% n ã o fo ram diagnosticados com o
“psicóticos”; 42, 9% dos que receberam diagnóstico de “dis­
túrbios do com portam ento” eram adolescentes em conflito com
a lei, encam inhados p o r juizes da C om arca da Capital; e que a
m aior m édia de tem po de internação (55, 6 dias) foi em decor­
rência dc encam inham entos feitos por juizes do interior do
Estado. O utros diagnósticos neste grupo foram dependência
de drogas, epilepsia, distúrbios de emoções na infancia e ado­
lescência, transtorno da personalidade.-
D a entrevista realizada p o r Bentes com um dos juizes,
— onde-buscou-esolareeim entossobre-osencam inham entos-judi---------
ciais, destaco alguns trechos, indicativos do conflito aqui anali-
. , sado:
As M edidas Socioeducativas são impositivas não só para o
.menino com o tam bém p a ra o local cm que ele vai cum pri-
la. (...) Esta é um a questão essencial (..,) se a M edida médica
for um a P ena, que nós cham am os de M edida Socioeduca-
tiva, ela se to rn a imposiriva p a ra todo mundo: p a ra o Juiz,
p a ra a família, p a ra o M inistério Público, p ara a Defesa,
' p a ra o m édico, p a ra o próprio garoto, p ara a equipe técni­
ca do H ospital, enfim ... A gente sabe, p o r exemplo,
que p a ra tra ta r de drogas a O M S, o C onselho'(...) dizem
que tem de ter a adesão voluntária da parte, m as no caso
de adolescente em conflito, com a Lei, é um a M edida, é
contra a vontade de todo , m undo, contra esta- P o rta ria ,"
contra a C onvenção, contra a recom endação, contra a fa­
mília, co n tra o técnico. A m edida não é, vamos dizer as­
sim, um a coisa voltada p ara 'a Proteção; é um a Pena (Bentes,
1 9 9 9 : 1 2 8 -1 3 8 ).

N ão se trata aqui apenas de conflito entre Judiciário e


M edicina m as tam bém de interpretações conflitantes da p ró ­
pria legislação, um a vez que outros operadores do Direito, como
veremos mais adiante, não concordam em considerar o trata­
m ento com o pena; nem creio estariam dispostos a ignorar re­
com endações d a O M S , ou considerar que no Brasil a idade da
responsabilidade penal foi reduzida para 12 anos a partir da
vigência do Estatuto da C riança e do Adolescente, como no
exem plo abaixo. D e qualquer m odo, se estas interpretações
puderam ser apresentadas à pesquisadora é porque represen­
tam um a das correntes de pensam ento existentes no m undo
jurídico.

30
De 1990 para cá, a im putabilidade está em 12 anos. Q uando
as pessoas dizem assim: - “Eu sou a favor de reduzir (a
im putabilidade) p a ra 16 anos” - n a verdade, não estão
reduzindo e sim aum entando de. 12 para 16 (Bentes, 1999:
136-137).

Assim como encontram os interpretação de que a im pu­


tabilidade está em 12 anos, encontram os tam bém aqueles que
consideram que a “m edida socioeducativa” é apenas um eufe­
mismo p a ra “pena” e a “m edida de internação” um eufemis-'
m o p a ra “p risã o ” , sendo a diferença entre o adulto e o
adolescente apenas-o local onde cum prirá a “pena”: prisão de
“m aior” p a ra adultos e prisão de “m enor” para adolescentes.
Com o agravante que, muitas vezes, a “m edida sócio-educativa”
aplicada ao adolescente é um a “pen a” m aior do que a que
receberia se fosse adulto. Devemos nos lem brar que esta foi
um a das críticas mais contundentes feitas ao Código de M eno­
res: a de que infligia à criança e ao adolescente “carente”, pela
imposição de sua internação, em instituição total, um a “pena”
de privação de liberdade freqüentem ente m aior do que rece­
beria um adulto que cometesse um crime. C ontradição do
D ireito, portanto, e ao que parece, insiste em se perpetuar.
Acredito que alguns destes conflitos e divergências pode­
riam ser resolvidos, ou pelo menos minimizados, caso fosse dada
m aior atenção à política de atendim ento. Freqüentem ente o
executivo m unicipal e o estadual são objetos de críticas por
não assegurarem condições p ara o :cum prim ento de direitos
constitucionais básicos. M uitas vezes, feito um diagnóstico ou
detectado um problem a, não h á como dar encam inham ento
ao caso. Alguns juizes reclam am que enviam os adolescentes
p a ra a internação apenas por falta de alternativas para a exe­
cução das m edidas sócio-educativas. Esta insuficiências das
políticas tem sido um dos motivos p ara constantes desentendi­
m entos entre escolas, serviços de saúde, famílias, Conselhos
Tutelares e Justiça da Infância e Juventude. Detectado que a

31
criança encón tra-se fora da escola, por exemplo, o C T a enca­
m inha a um a das escolas da região què, muitas vezes, alega
não poder receber a criança por falta de vaga, o m esm o po­
dendo acontecer com o sistema de saúde ou com os abrigos.
Mas nem sempre os conflitos se devem à precariedade
das condições do atendim ento. A escola pode não querer m a­
tricular a criança, não p o r falta áe vaga, mas porque ela é vista
como “da ru a”, “infratora” ou :‘deficiente”, fugindo do padrão
de norm alidade desejado. Neste caso, a escola alega que não é
sua função óu que não tem os meios para lidar com aquela
criança. O u seja, não crê que o “problem a’5 da criança pode
ou deve ser enfrentado pedagogicamente, preferindo encaminhá-
la ao juiz, ao Conselho T utelar ou ao sistema de saúde, resul­
tando muitas vezes no que M aria Aparecida Affonso Moysés
cham ou de “medicalização da aprendizagem ”, ao estudar cri­
anças que só não aprendiam na escola. (Moysés, 2001)
Configura-se assim, no campo social, um a situação m ui­
tas. vezes complexa e confusa, onde pobreza, abandono e vio­
lência’ se m isturam à ausência ou precariedade dás políticas
públicas, às desconfianças, medos, omissões e acusações m útu­
as. Não é, certam ente, o m elhor dos mundos.

Da justiça que é terapêutica


Segundo estatísticas oficiais, o núm ero de atos infracionais
praticados por adolescentes.no Rio de Janeiro cresceu de 2.675
em 1991 para 6.0Ò4 em 1998. G rande parte desses adolescen­
tes foram acusados de infrações análogas aos crimes previstos
na Lei de Entorpecentes (6.368//76): de 204 infrações em 1991
. para 3.211 em 1998 (Arantes, 2000).
Os adolescentes apreendidos pela polícia e levados à
presença do Juiz da Infância e Juventude têm recebido m edi­
das judiciais, de natureza socioeducativa, consideradas severas:

32
no a n o de 1999, do total dc 11.256 adolescentes que cum pri­
ram m edidas no D epartam ento de Açõés Socioeducativas da
Secretaria de Estado e Justiça do R io de Jan eiro (DEGASE),
■40, 6% eram internações provisórias; 26, 07% m edidas de semi-
liberdade; 14, 8% internáções com sentença judicial e 9, 71%
liberdade assistida, totalizando 91, 18% dos casos —o que sig­
nifica que menos dc 10% receberam m edidas mais brandas,
tam bém previstas na Legislação e consideradas m ais adequa­
das ao adolescente, como a m edida1:de prestação dc serviço à
com unidade, por exemplo. Além do DEGASE, muitos adoles­
centes cum prem m edidas em Program as oferecidos pela pró­
pria Justiça da Infância e Juventude.
E m bora o Rio dc Jan eiro respondesse por 12, 98% do
total de adolescentes privados de liberdade cm todo o país em
3 0 /0 6 /1 9 9 7 , vindo logo abaixo de São Paulo com 44, 87%£*
respondia, no ehtanto, pelo m aior percentual de adolescentes
internados por infrações relacionadas à Lei de Entorpecentes:-
42, 07% (Volpi, 1998: 68-83). P ara termos um a idéia do que*
estes núm eros significam, o Relatório do Ju iz de M enores Saul
de G usm ão, de 1941, m ostra um crescim ento de 127 atos
infracionais em 1924 p a ra 248 em 1941 no Rio de Janeiro'/
sendo que n enhum a criança ou adolescente foi acusado dc
envolvimento com drogas. As infrações apontadas são delitos
de sangue, de furto, roubo e sexuais (Cruz Neto et al., 2001:
58).
No livro Delinqüência juvenil na Guanabara são apresentadas
estatísticas do Juizado de M e n o re s/R J do período 1960 a 1971
(Cavalieri et al., 1973). Nestes registros, verifica-se o início das
apreensões p o r drogas, em bora os núm eros sejam de m agnitu­
de múito. inferior aos atuais: 14 em 1960, do total de 666 atos
infracionais e 192 em 1971, do total de 1.253 atos infracionais.
Esclarece o Juiz de M enores Alyrio Cavallieri, em seu livro
D ireito do M enor, que estes núm eros se referem ao uso e não
à venda de drogas, pois, em suas palavras “raram ente o m enor

33
é tr a f ic a n te ” (C a v a llie ri, 1976: 137). N e ste p e río d o a té o a n o
d e 1 9 9 5 , os m a io re s p e rc e n tu a is d e a to s in fra c io n a is são re la ti­
v o s a o p a tr im ô n io : 2 .0 1 6 casos em 2 .6 2 4 n o a n o d e 1991, sen ­
d o d ro g a s a p e n a s 2 0 4 d e ste total.
_______ Esta_situação_diferenciada-para-o-Rio-de Janeiro-foi-ob—
je to de estudos e de intensos, debates realizados nas universida­
des, n a C o m issã o de D ireito s H u m a n o s da A ssem bléia
Legislativa e no Conselho Estadual de Defesa da C riança e do
A dolescente, ocasiões em que se indagavam sobre os motivos
que estariam propiciando esta situação:
M u d o u a realidade e aum entou a crim inalidade ou a m u­
d a n ç a é apenas o resultado de um a filosofia mais repressora
e policialesca? O u seria fruto de aum ento de operosidade
d a Ju stiça, do M inistério Público e da Polícia? (Relatório:
s/d ).

M uitos destes adolescentes, quando apreendidos pela


prim eira vez, dem onstram esperança de que a passagem pelo
sistema socioeducativo possa ajudá-los, constituindo-se em opor­
tunidade p a ra o reingresso n a escola e preparo p a ra o trabalho
- esperança que acaba quase sempre em frustração, tom ando-
se p o r base o percentual significativo de reincidências. M uitas
vezes sem possibilidade de voltar p ara casa ou p ara a com uni­
dade de origem , após a apreensão, evadido ou expulso da esco­
la, sem trabalho e sem perspectivas de um fúturo m elhor, este
adolescente p eram b u la peias ruas, furtando p a ra viver ou per­
m anecendo com a venda da droga, até ser novam ente apreen­
dido ou m orto em algum cgnfronto com a polícia ou grupo
rival. São estes jovens as m aiores vítimas da cham ada violência
urbana. ,
Segundo a Síntese de Indicadores Sociais do IBGE/2000,
relativa aos anos de 1992 e 1999, observa-se, a partir dos anos
80, o peso crescente das causas externas sobre a estrutura da
m ortalidade p o r idade, afetando principalm ente os adolescen­
tes e jovens brasileiros do sexo masculino na faixa etária entre
15 c 19 anos. Estes índices chegam a quase 70% em muitos
dos Estados brasileiros.
• Em vários fóruns de defesa dos direitos das crianças e
dos adolescentes, onde estas questões são debatidas, pergunta-
-gp-ppln. “acerto” e pela “justiça” destas apreensões e encami-
nham entos. Questiona-se se não estaria havendo rigor excessivo
ná aplicação das m edidas socioeducativas e a própria adequa­
ção do rótulo de traficante dado a alguns destes adolescentes,
que m uitas vezes vendem pequenas quantidades de drogas
apenas p a ra sustentar seu próprio consumo ou como form a de
subsistência. Q uestiona-se tam bém a adesão do Brasil a um
política antidrogas norte-am ericana, favorável à cham ada “to­
lerância zero”, e o papel que os .psicólogos são cham ados a
exercerem nesta nova m odalidade de “pena-tratam ento”, pro­
cedim ento polêm ico denom inado Justiça T erapêutica e im por­
tado das Dmg Courts dos Estados Unidos da Amcrica.’1O próprio
Conselho Federal de Psicologia tem se m anifestado neste sen­
tido, conclam ando os psicólogos a discutirem m elhor o assun­
to, preocupados em que não exerçam atividades que contrariem
o Código de Ética dos Psicólogos.
E m artigo dedicado a p en sar a Justiça T erapêutica,
D am iana de O liveira faz im portantes considerações a respeito
do papel que o psicólogo é cham ado a desem penhar nesta m o­
dalidade de Justiça, a partir de um dos program as existentes
p a ra adolescentes no Rio de Ja n eiro (Oliveira, s/d). Com o foi
dito, a J T se baseia no m odelo norte-am ericano dos Tribunais
para D ependentes Químicos (Cortes de Drogas), e oferece ao
adolescente que for apreendido portando drogas para uso pes­
soal, depois de avaliado e considerado elegível, a opção de tra­
tam ento, ao invés de receber um a M edida Socioeducativa e /
ou M edida Protetiva prevista no Estatuto da C riança e do Ado-

B Para um a apresentação favorável à Justiça Terapêutica, ver: Fernandes, s/d .


lescentc. A inclusão neste Program a deve ser voluntária e im ­
plica, dentre outras coisas, o adolescente concordar em ser sub­
metido a testagem de urina periódicas e aleatórias, um a vez
que o Program a prega abstinência total de drogas ilícitas e de
bebidas- alcoólicas. Oliveira aponta aí um prim eiro conjunto
de dificuldades p ara o psicólogo: a de concordar com o c a r á te r
compulsório do tratam ento e com a testagem de urina, além
de que "usar ou não drogas” passa a ser o centro do acom pa­
nham ento psicológico, podendo o adolescente receber sanções
por descumprir. as regras do Program a. Este tipo de questão
leva freqüentem ente os psicólogos a terem dilemas éticos e a se
perguntarem “Q uem são os clientes da Psicologia?” e “Quais
são os limites da atuação do psicólogo?”.
Falando a futuros juizes e defensores em “A Psicanálise
c a determinação dos fatos nos processos jurídicos”, Freud aponta
um a diferença fundam ental entre' o paciente da Psicanálise e a
pessoa acusada pela Justiça: esta, no caso do com etim ento de
um delito, tem a intenção de ocultar o segredo da Justiça; já o
neurótico não conhece o segredo; que está oculto p a ra ele
mesmo. No caso do neurótico, ele ajuda a com bater a sua p ró ­
pria resistência, porque espera curar-se com o tratam ento en­
quanto que o réu não tem porque cooperar com a justiça
revelando o seu, delito; se o fizer, estará.trabalhando contra ele
mesmo. Além do mais, para os procedimentos da Justiça, basta
que os seus operadores obtenham um a convicção objetiva dos
fatos, independentem ente do que pensa o acusado; o mesmo
não se dá com o tratam ento psicanalítico, onde o paciente tam ­
bém necessita adquirir esta mesma convicção. Lem bra-os, fi­
nalmente, da existência de normas que im pedem que o réu se
submeta a intervenções psicológicas sem ter sido alertado de
que poderá denunciar-se através desta intervenção.
Além, destas, outras perguntas têm sido feitas em rela­
ção aos Programas da J T p ara adolescentes, entre as quais:
um a vez que os tratam entos médico e psicológico já são previs­

36
•V:. :vT

tos no Estatuto da C riança e do Adolescente como M edidas


Protetivas, p o r q u ê 'à existência da Justiça T erapêutica no âm ­
bito da Justiça da Infância e Juventude? No caso de um adoles­
cente que nunca praticou qualquer outro ato infradonal a não
ser o usó eventual de drogas, por quanto tem po será m antido
em tratam ento? E o critério “tolerância;zero” condição de alta
m édica ou psicológica? Neste caso, a Justiça T erap êu d ca teria
como um de seus pressupostos a “crim inalização” do atendi­
m ento m édico e psicológico? (Batista, mim eo, s/d)
D entre os pontos polêmicos de um dos Program as exis­
tentes9 destaco os artigos 6 e 7, que trazem dificuldades especí­
ficas p a ra a atuação do psicólogo, como, por exemplo, o aumento
na freqüência de sessões de tratam ento individual ou familiar c
as entrevistas compulsórias, definidas como m edidas punitivas
por ter o adolescente descum prido algum a regra do Program a.

Artigo 6o - Dos participantes do P rogram a, exige-se:


I- N ão usar ou possuir drogas ilícitas e bebidas alcoólicas e, se
for exigido pela unidade de tratam ento conveniada, não fu­
m a r tabaco nas sessões ou conforme a orientação desta uni­
dade.
II — C om parecer a todas as sessões dc tratam ento determ inadas
III - S er p o n tu a l.
I V ,- ' .N ão fazer am eaças aos participantes, à equipe do program a
ou da unidade de tratam ento, bem como não com portar-se
de m odo violento.
V - Vestir-se apropriadam ente p a ra as sessões dc tratam ento e
audiências no Juizado.
V I — C o o p erar com a. realização dos testes de drogas.

® Pela O rd em de Serviço N ° 0 2 / 0 1 , datada de 27 de ju n h o de 2 0 0 1 , foi


criado o Program a E special para U suários de D rogas (P R O U D ), no âm bito
de co m p etcn cia da 2 a VIJ, C om arca da C ap ita l/R J , de acordo com as nor­
mas gerais previstas no Provim ento N ° 2 0 /2 0 0 1 , da C orregedoria-G eral de
Justiça.

37
V II — C o o p erar p á ra a obtenção de inform ações necessárias à ava­
liação inicial e seqüencial de seu caso.
V III — O s pais ou responsáveis deverão com parecer às audiências
no Ju izad o e às sessões de tratam ento recom endadas.
IX - C om p arecer e d em onstrar desem penho satisfatório n a esco­
la, estágios profissionalizantes e laborativos. '
X - A gir de acordo com as norm as específicas da unidade de
tratam en to p a ra a qual foi feito o encam inham ento” .

A rtigo 7° — As sanções previstas para a falha injustificada no cum ­


p rim en to das norm as ;do Program a são as seguin­
tes:
I - . A dvertência verbal.
II — R etirad a de privilégios (válida p a ra os casos de algum ado­
lescente que esteja, p o r exemplo, em program a de recebi­
m ento de cesta básica, lazer, etc.)
III - A um ento n a freqüência de sessões de tratam ento individual
ou familiar.
IV — R egressão na fase de tratam ento e conseqüente m aior tem po
de p erm an ên cia no Program a.
V — : C om p arecim en to a palestras e. sessões educativas sobre uso
indevido de drogas ou outros tem as considerados úteis pela
equipe de acom panham ento.
V I — M aio r freqüência na realização de testes de drogas.
V II — In tern ação tem porária.
V III - Entrevistas com pulsórias com 'médicos, psicólogos ou inte­
grantes de grupos de auto-ajuda.
IX — Restrições às atividades de íazer,’inclusive nos finais de se­
m ana. ’
X — Prestação de serviços na com unidade ou na sua própria casa,
de acordo com o entendim ento do Juiz.
X I — Lim itação de ho rário de saída cia residência.
X II — Exclusão do P ro g ram a e re to m a d a d o processo inicial.

D iante de tais regras podemos nos perguntar o que fez o


adolescente p a ra m erecer tam anha penalidade? E esta um a
resposta adequada à experim entação do adolescente? Por que
o envolvimento com drogas está se tornando, atualm ente, o

38
responsável por grande parte do contingente dos hospitais psi­
quiátricos, manicômios judiciários, internatos^e prisões? N ao se
tra ta aqui de negar o sofrim ento de pessoas e de famílias
destruídas pela dependência quím ica -e pelo uso abusivo de
drogas. N o entanto, trata-se de perguntar, como faz Luiz Eduar­
do Soares: Por.que circunscrever o uso,de drogas ao cam po da
ilegalidade? Baseado em quais critérios certas drogas são con­
sideradas lícitas e outras ilícitas? Por que difundir a idéia de
que ingerir substâncias psicoativas significa consumí-las em
excesso? (Soares, 1993).
P erguntado se achava possível ou mesmo desejável a
existência de um a .-cultura sem limites e repressões, Foucault
respondeu que o im portante não era a existência de restrições
e sim a possibilidade oferecida, às pessoas a quem afeta, de
modificá-las (Foucault, 2000b: 26).
A juiza M aria Lúcia K aram , contrária aos procedim en­
tos da Justiça Terapêutica, advoga a s.ua inconstitucionalidade.
D ada a im portância da argum entação p ara o tem a tratado,
perm ita o leitor um a longa citação.
E m bora reconhecendo a ausência de culpabilidade e, as­
sim, a inexistência de crime nas condutas daqueles que sc
revelam inim putáveis, o ordenam ento jurídico-penal b ra ­
sileiro, paradoxalm ente, insiste em alcançá-los, ao im por,
com o conseqüência d a realização d a conduta penalm ente
ilícita, as cham adas m edidas de segurança, com base em
- u m a alegada “periculosidade” atribuída a seus inculpáveis
autores.
Aqui, indevidam ente, se ab re: o espaço para manifestação
d a aliança entre o direito penal e a psiquiatria, responsável
' ■ p o r trágicas páginas d a história do sistema penal.(...)
N a realidade, as m edidas de segurança para inimputáveis,
consistindo, com o prevêem as m encionadas regras dos ar­
tigos 96 a 99 do Código Penal e do artigo 29 da Lei 6.368/
76, n a sujeição obrigatória e p o r tem po indeterm inado a
tratam ento m édico (am bulatorial oú m ediante internação),
não passam de formas m al disfarçadas de pena, sua in­

39
compatibilidade com a Constituição Federal, por manifes­
ta vulncraçâo do princípio da culpabilidade é,. conseqüen­
tem ente, p o r m anifesta vulneração d a p ró p ria n o rm a
constitucional, que aponta a dignidade d a pessoa hum ana
como um dos fundam entos da República Federativa do
Brasil, decerto, havendo de ser afirmada.
M as, este inconstitucional tratam ento obrigatório j á vem
sendo aplicado até mesmò p ara aqueles que têm íntegra
sua capacidade psíquica, nas tentativas,' diretam ente veicu­
ladas pelos Estados U nidos da América,- de transportar,
para o Brasil, as cham adas drug court, que, aqui, se preten­
de sejam adotadas, com a tradução literal de “ tribunais de
drogas” , ou sob a denom inação de “justiça terapêutica” ,
esta últim a explicitando a retom ada daquela' nefasta alian­
ça entre o direito penal e a psiquiatria. (...)
Assim, estende-sc o tratam ento médico a imputáveis, o que
já contraria as próprias leis penais ordinárias vigentes. As­
sim, amplia-se o alcance do sistema penal, com a imposi­
ção de verdadeiras penas, negociadas ao preço d a quebra
de diversas garantias do réu, derivadas da cláusula funda­
m ental do devido processo legal, constitucionalm ente con­
sagrado. (...)
Esta im portação das drug court chega, ainda, ao âm bito dos
juizados da infancia e juventude. Ali tam bém , pretende-se
violar a liberdade individual, a intim idade e a vida privada
de adolescentes, através da imposição de um tratam ento
médico obrigatório, sem que sequer seja externado trans­
torno mental que, teoricamente, o pudesse aconselhar. (...).
(K aram , 2002: 210-224).

Não foram por outros motivos que o Grupo de T ra b a ­


lho “Justiça T erapêutica”, coordenado pelo Conselho R egio­
nal de Psicologia 03 e que contou com a participação de
representantes de diversos outros CRPs, recom endou um a dis-
• cussão nacional sobre o problem a das drogas. E m bora a ju s ti-
ça Terapêutica não aconteça em todo o país, diversos outros
. serviços, mesmo sem utilizar esta. denom inação, estão operan-

40
d o so b a m e s m a lóg ica, o q u e ju s tific a a discussão n a c io n a l,
s e g u n d o o R e la tó rio -d e s te G T .
A J T faz parte de um a política nacional de com bate às
drogas, adotada pela SENAD - Secretaria N acional Anti-
drogas, cm p arceria com a E m baixada A m ericana, país
que exporta este m odelo. A SENAD, ao mesmo tem po que
ap ó ia in iciàtivas de re d u ç ã o de danos (ao p re m ia r a
REDUC), incentiva iniciativas do .tipo d a JT (Relatório, CRP:
s/d).
O G T in d ic a u m a p o siç ã o “ c o n tr á ria ao m o d e lo d a J T e
a in s e rç ã o d o p sicó lo g o b a s e a d o n o s seg u in tes e le m e n to s in ic i­
ais” , e n tr e os q u ais: a q u e b r a d o sigilo p rofissio n al, j á q u e d ev e
o p sic ó lo g o p r o d u z ir p r o v a q u e d e p õ e c o n tra o p r ó p r io su jeito ;
q u e b r a d o s d ire ito s in d iv id u a is m ín im o s, p o sto q u e o su je ito
q u e o p ta p e la J T te m d e a b r ir m ã o d o d ire ito d è d efesa , te n d o
d e se c o n fe ssa r c u lp a d o , m e s m o q u e u s u á rio e v e n tu a l; p o r e n ­
te n d e r q u e h á u m a d ife re n ç a e n tr e u su á rio e v e n tu a l e d e p e n ­
d e n te e p o r r e a f ir m a r o c a r á t e r v o lu n tá rio d o tr a ta m e n to ,
c o n d iç ã o f u n d a m e n ta l p a r a su a eficácia; ta m b é m p o r e n te n ­
d e r, c o m o j á foi d ito , ser n e c e s s á ria u m a a m p la discu ssão so b re
a q u e s tã o d a s d ro g a s n o B rasil.
Em 2002, pelas Portarias 336 e 189 do M inistério da
Saúde, foram criados, dentro dos parâm etros da R eform a Psi­
quiátrica, os C entros de A tenção Psicossocial para atendim en­
to de crianças e adolescentes (CAPSi) e para portadores de
transtornos em decorrência do uso e dependência de substân­
cias psicoativas (CAPSad), trazendo esperança de que novas
m odalidades de assistência em saúde m ental possam ter lugar.

Criticando a prática dos psicólogos


Segundo M ichel Foucault, em Vigiar e punir, conhecem os
já todos os inconvenientes e perigos que a prisão oferece e tam -

41
bém a sua inutilidade em relação a um a suposta regeneração
dos prisioneiros, e, no entanto, as nossas sociedades não que­
rem dela a b rir m ão. Sabem os tam bém , pelo menos enquanto
a prisão não se p ro p u n h a a regenerar ou tratar, que a prisão
nào-deveria-sérnadaalém -do^que"a'sim ples'privação_d e iib e r-
dade, m as não é o que acontece. É a este excesso, ao que ex­
cede a pena, que Foucault cham ou o penitenciário. O aparelho
penitenciário, local de cum prim ento da pena, é tam bém lugar
de um a “curiosa substituição”:
(...) das m ãos da justiça ele recebe um condenado; m as
aquilo sobre que ele deve ser aplicado, não é a infração, é
claro, nem m esm o exatam ente o infrator, mas um objeto
um p o uco diferente e definido por variáveis que pelo m e­
nos no início não foram ■levadas em conta n a sentença,
pois só era m pertinentes ’p a ra um a tecnologia corretiva.
Esse outro personagem que o aparelho penitenciário colo-
« ca no lu g ar do infrator condenado, é o delinqüente.
O d elinqüente se distingue do infrator pelo fato de não ser
tanto seu ato quanto sua vida o que mais o caracteriza (...)
O castigo legal se refere a um ato; a técnica punitiva a
u m a vida (..,) Por trás do.infrator a quem o inquérito dos
fatos p ode atribuir a responsabilidade de um delito, reve­
la-se o c a rá te r delinqüente cuja lenta form ação transparece
n a investigação biográfica: A introdução do “biográfico” é
im p o rtan te n a história da penàlidade (Foucault, 1977.: 223-
224).

A p a rtir de sua atuação como psicólogo no sistema só-


cio-educativo do R io de Jan eiro , Adilson Dias Bastos dedicou-
se a pensar como se dá a construção deste “biográfico” na prática
técnica dos psicólogos. N a reconstrução da história de vida dos
sentenciados, incluindo adolescentes, este biográfico visa mos­
tra r com o o indivíduo “já se parecia com seu delito antes m es­
m o de o ter p raticad o ”: o pai é ausente... diz que a m ãe m orreu
no p a r to ... estudou apenas até a 2a série... acha que como está
nesta vida não tem m ais je ito ... foi expulso da escola.'., pouco
sociável... disperso... im p a c ie n te... baixo grau de tolerância à
frustração... vive nas ruas e diz que é m endigo... diz que nas­
ceu p a ra ser lad rão ... disse que conhece mais gente que está
presa do que gente em lib e rd ad e ...'tem um irmão- mais velho
que-j á-foi-preso. ..-(B astos,_20.02115-119).______ _______ ____
Segundo Bastos, esta produção técnica, que além de ser
um discurso de “verdade” e um discurso que no limite “faz
v iv e r e deixa m orrer”, é tam bém ,um discurso que “faz rir” .
Exem plificando, cita laudos periciais colhidos por Isabelle N o­
gueira nos arquivos do M anicôm io Judiciário H eitor Carrilho,
situado no m unicípio do Rio de Janeiro. N ogueira se dedicou
a pesquisar os laudos de pessoas que haviam sido apreendidas
p or motivos banais como brigas, xingameritos, vadiagem, pe­
quenos furtos e desacato a autoridade (Nogueira, 2002). V eja­
mos um pequeno trecho, de um dos exemplos, do ano de 1924.
É elle p o rtad o r de estygmas phisicos de degeneração bem
pronunciados (...) N em m esm o lhe faltam as tatuagens,
estygma physico adquirido .que, com freqüência aparecem
nos degenerados e nos delinqüentes. Vê-se, assim, no seu
. ante-braço direito, um pássaro com um a carta no bico;
um vaso de p lanta e o nom e de Idalina; no braço direito
várias estrellas, um com eta e algumas lettras; no braço es­
querdo as iniciais AP; no peito, iniciais, um pássaro e a
expressão ‘A m o-te1(Bastos, 2002: 120; Nogueira, 2002: 99).

D entre os discursos que “faz chorar” destaco o de um


grupo de médicos, m em bros da Escola N ina Rodrigues, estu­
dado p o r M arisa C orrêa. Este grupo foi im portante na consti­
tuição da M edicina Legal no Brasil, sendo um dos mais atuantes
Leonídio Ribeiro, fundador do Instituto de Idendficação do
R io de Ja n eiro e ganhador do Prêm io Lombroso de 1933. É
dele a citação abaixo:
N a criança de um ano é, às vezes, possível já reconhecer o
futuro criminoso. É n a prim eira infanda, ou na puberda­
de, que se revelam as prim eiras tendências p ara as atitudes

43
an ti-sociais, que se concretizam e agravam progressivamente,
sob a influência geral do am biente. Existem, n a criança, os
cham ados ‘sinais de alarm e’ de tais predisposições e ten­
dências ao crim e, sinais que p o d em ser .de n a tu re z a
morfológica, funcional ou psíquica. Especialmente sobre
estes últimos é que devem estar vigilantes todas as mães,
sabiclo que as crianças perversas, rebeldes, violentas, im ­
pulsivas, indiferentes e desatentas são principalm ente as que
precisam recebcr cuidados especiais para não se. tornarem ,
afinal, elementos perigosos para a sociedade (Corrêa, 1982:
60-61).

Em pesquisa sobre juventude e drogas, V era M alaguti


Batista estudou a evolução, do problem a no Rio de Janeiro, no
período 1968-1988, a 'p a rtir de processos encontrados no ar­
quivo do então Juizado de M enores (Batista, 1998). Além de
análise quantitativa, Batista analisou os conteúdos dos laudos e
pareceres das equipes técnicas formadas por assistentes sociais,
psiquiatras e médicos das Delegacias de Menores, da FUNABEM
e do Juizado de M enores, encontrados nos processos.
Pela análise de Batista é flagrante a construção de este­
reótipos, a partir de olhares cientificistas e preconceituosos,
erigidos na virada do século XIX, e que ainda persistem na
prática de muitas equipes técnicas: o preconceito em relação às
favelas e bairros pobres (“o .local onde reside propicia seu en­
volvimento com pessoas perniciosas à sua form ação”); a atitu­
de suspeita (“estava desempregado, peram bulando em estado
de vadiagem pela Zona Sul quando sua residência se encontra­
va na Zona N òrte”); a criminalização do uso de drogas (“foi
detido cheirando benzina”); a desqualificação familiar (“proce­
de de família desagregada”); serviços que não são considerados
trabalho (“está trabalhando em biscates, pois diz não ter paci­
ência para aturar patrão; não está estudando nem trabalhan­
do”); a hereditariedade (“o pai já fez tratam ento nervoso”); os
distúrbios de conduta (“autuado por práticas anti-sociais”). T al
caracterização leva sempre às.m esm as recom endações: resso-
cializar, reeducar,’recuperar, tratar, profissionalizar, rem eten­
do as faltas e as dificuldades dos adolescentes a eles mesmos ou
às suas famílias. No entanto, conclui Batista, mais do que “doen­
ça m ental”, os processos revelam histórias de miséria c exclu­
são social. . ;;r
Aline Pereira Diniz, estudando um a am ostra de 46 p a ­
receres psicológicos, no período de 1995 a. 1998, encontrados
nos processos de adolescentes evadidos do sistema socioeducadvo
do Rio de Jan eiro enquanto cum priam M edida Socioeducati-
va de Internação, e com M andato de Busca e Apreensão, cons­
tatou que a grande m aioria pertencia ao sexo masculino, com
idades entre 15 e 17 anos e poucos anos de escolaridade. Em
sua m aioria estes adolescentes foram acusados dc infrações
análogas aos crimes contra o patrim ônio e análogas à Lei de
Entorpecentes. D entre os motivos alegados pelos adolescentes
p a ra as fugas, destaco a existência, na m esm a unidade dc aten­
dim ento, de adolescentes pertencentes a grupos ou facções ri­
vais: “fugiu por lá ter encontrado o gerente da boca, que disse
que ele deveria pegar a carga”; “porque lá encontrou m em ­
bros do com ando rival, que estão em guerra, então teve que
fugir de novo” . O utros motivos foram am eaças de estupro, por
sofrer agressões, por ter a roupa furtada; por m edo de ser p u ­
nido ou encam inhado à Delegacia de Polícia por ter sido pego
fum ando m aconha (Diniz, 2001: 50).
Diniz identifica dois “tipos” de adolescentes, a partir dos
pareceres psicológicos: aquele que foi “levado” ao ato infracional
pelas circunstâncias ou pelas amizades e aquele que teria o
“perfil” de infrator, facilitado pela ausência paterna, desestru-
turação fam iliar e por determ inados traços ou caracterísdcas
de personalidade como agressividade, impulsividade, malícia,
dificuldades em lidar com limites, sentimentos de inferioridade
etc. C om o conclusão dos pareceres, a adequação à rotina ins­
titucional e a participação nas atividades propostas aparecem

45
quase sem pre com o critério de que o adolescente está recupe­
rado ou ressocializado.
P a ra concluir, gostaria de dizer que um fator comum
que une os estudos acim a é a busca de alternativas p a ra a atu-
açâo_profissional3_na-esperança~de-quc-a-Psieoiogia-possa-ser—
exercida de um a ou tra form a, além de trazer à luz o enorm e
sofrim ento causado pelo encarceram ento de adolescentes. ^
R etom em os então, de um Outro m odo, a pergunta “Q ue
é a Psicologia?”, possibilitada aqui pelas lem branças de Bastos
(2002): : : í
N u m a de suas belíssimas aülas ele se dirigiu a alguns alu­
nos do curso de psicologia e perguntou: O que vem a
ser a psicologia?” “P ara que ela serve?” A nte a nossa con­
fusão, perplexidade e dem ora, Cláudio U lpiano nos disse:
D epende das forças que se apoderam 'dela!; Coloquem- ■
suas forças em b atalh a p a ra produzirem um a psicologia
afirm ativa.” 10

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U rsu la, A m ais Livraria e Editora e Instituto ínteram ericano dei N ino.

10 N o ta d e esclarecim en to feita por Bastos (2002: 58): “C láudio U lp ian o,


filósofo, ex-professor d a U n iversidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
e da U n iversidade Federal F lum inense (UFF), já falecido. R esp onsável por
introduzir nestes estab elecim en tos o pensam en to de D eleu ze, Bergson,
G uattari, N ietzsch e etc., através de suas aulas e gvupos de estudo que,
inclusive, atraiam pessoas de fora do m undo acadêm ico.”

46
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49
Eduardo Ponte Brandão

A prática do psicólogo em V aras de Fam ília exige o co­


nhecim ento básico dos códigos jurídicos que regulam as famí­
lias no Brasil.
As razões de tam anha, obrigação não são poucas.
Em prim eiro lu g ar,'h á necessidade de um código com­
partilhado entre o psicólogo e os demais m em bros da equipe
interprofissional, incluídos os operadores de Direito.
E de conhecim ento com um que. os arranjos amorosos e
familiares com que esses operadores se. surpreendem hoje em
dia levam a um a interlocução do Direito com outros saberes.
Sem o respaldo da equipe interproíissional, a ação do Juiz é
insuficiente p ara regular as relações entre os sexos e de paren­
tesco.
Em contrapartida, sem a com preensão exata do contex­
to onde se inscreve sua prática, o psicólogo não faz mais do
que se esfalfar com os rem os do barco na areia. De nada adi­
anta se restringir à especificidade de seu campo, se o psicólogo
desconhece, por exemplo, os critériòs jurídicos que norteiam a
decisão de um a guarda ou os deveres e direitos parentais. As
referências usadas pelo psicólogo devem comunicar-se com as
do Juiz, sejam as opiniões convergentes ou não, caso contrário,
ele não poderá contribuir p a ra o desenlace, das dificuldades e
dos conflitos com os quais o Judiciário se em baraça.
Em segunclo lugar, no atendim ento à população o psicó­
logo se depara com argum entos cujos valores já foram revistos
é substituídos em lei. Assim, não é raro escutar país que que­
rem a guarda dos filhos porque o ex-cônjuge não cum priu os
deveres matrimoniais. Ou- que caberia à m ulher os cuidados
infantis e ao hom em tão somente visitar e sustentar os filhos.
Conhecer o que diz a lei torna-se imperativo, mesmo que seja
para inform ar que tais concepções não encontram respaldo
sequer em nossa legislação.
Por sua vez, o conhecim ento da legislação não deve ser
abstraído das condições de possibilidade de seu surgimento.
Interessa ao psicólogo, sobretudo, lançar luz sobre como a
doutrina jurídica se inscreve historicamente e se articula aos
dispositivos modernos de poder.
Como será observado ao longo do texto, as leis e as es­
truturas encarregadas dc aplicá-las não só norm atizam e repri­
mem, mas põem cm funcionamento diversas práticas dc poder
cujo objetivo é menos julgar e punir do que curar, corrigir e
educar cada sujeito a administrar a prÓpriá vida (Fòucault, 1997).
Lançando mão dessa perspectiva, o psicólogo adquire
certo domínio sobre o lugar que lhe é reservado nas institui­
ções judiciárias. Não lhe torna indiferente interrogar se, a cada
‘ vez que fala ou' escreve a respeito de certa situação familiar, ele
está atendendo a mecanismos sutis de poder que, com o apoio
das leis jurídicas, são mascarados pela pretensa isenção política
de sua ciência.

Do Código Civil de 1916 ao Esfatuío da mulher Casada: a


demarcação dos papéis familiares e a questão da guarda

No Brasil do Império, a legislação sobre a família era


regulada pelo Código Civil Português, que, por sua vez, era
inspirado no Código das Ordenações Filipinas (1603).
A transposição do Direito português para a Colônia ti­
n h a o inconveniente de não corresponder à realidade social
brasileira, na m edida em que se aplicava apenas ao casam ento
dos que eram católicos. T anto as Ordenações Filipinas como
praticam ente toda a legislação civil portuguesa perm aneceu em
vigor até 1916, ou seja, quase cem anos após a independência.
D urante esse tem po, protestantes e judeus, por exemplo, não
p o d e ria m te r seus casam entos reconhecidos pelo E stado,
tam pouco as uniões extramatrimoniais.
A proclam ação da República define um m om ento crucial
de desvinculação da Igreja com o Estado. O decreto 181 de
1890 é a principal manifestação legislativa concernente ao D i­
reito de Fam ília nas prim eiras décadas da R epública, até a
publicação do Código Civil. De autoria dc R uy Barbosa, tal
decreto abole a jurisdição eclesiástica, julgando-se como único
casam ento válido o realizado perante as autoridades civis.
Com o Código Civil Brasileiro de 1916, consolida-se a
definição de família como sendo a união legalmente constituí­
da pela via do casam ento civil.
O ra, a conform idade ao modelo jurídico de família é o
que torna as relações entre os sexos legítimas ou não. Desse,
modo, convém observar nessa definição de família a defesa do
casam ento e o repúdio do legislador ao concubinato.1
No Código de 1916, o modelo jurídico dc família está
fundam entado num a concepção de origem rom ano-cristã.
A família é vista como núcleo fundam ental da socieda­
de, legalizada através da ação do Estado, com posta por pai,
mãe e filhos (família nuclear) e, secundariam ente, por outros

1 C om o verem os adiante, o concubin ato vai adquirir proteção estatal, ou


seja, vai ser reconh ecid o definitivam ente com o entidade familiar, na co n d i­
ção de união estável entre hom em c m ulher, som ente na C on stituição F ed e­
ral de 1988, não sem antes ser protegid o por jurisprudência e outras leis a
partir da década de 60.

53
m e m b ro s lig ad o s, p o r laço s c o n sa n g ü ín e o s o u d e d e p e n d ê n c ia
(fam ília extensa).. A o m e sm o te m p o , ela o rg a n iz a -se n u m m o ­
d e lo h ie rá rq u ic o q u e te m o h o m e m c o m o o seu chefe (fam ília
p a tria rc a l).
----------- ô hom em -é o~chefé~da sociedade conjugal“ê“da ãdminis^-
tração dos bens comuns do casal e particulares da m ulher, bem
como detentor da autoridade sobre os filhos è representante
legal da família.
Por sua vez, a m ulher casada é considerada relativamente
incapaz, em oposição à situação jurídica da m ulher solteira maior
de idade. Essa incapacidade retira da m ulher o poder de deci­
dir sobre a prole^e o patrim ônio, cuja com petência pertence ao
hom em . A m ulher casada precisa de autorização do seu m ari­
do p a ra exercer profissão, p a ra com erciar, além de estar fixada
ao domicílio decidido por ele. Os compromissos que assumir
sem autorização m arital não te m ‘eficácia jurídica.
vSomente n a falta ou im pedim ento do pai que caberia à
m ãe a função de exercer o pátrio poder (artigo 380), ao qual os
filhos estariam submetidos até a m aioridade (artigo 379).
Segundo Barros (2001), o fato de o hom em ter o poder
dividido, no caso de sua falta ou iseu im pedim ento, com a es­
posa e lim itado à m enoridade do filho torna-se expressão de
um golpe no pátrio poder, em bora discreto em face da autori­
dade que ele ainda detinha na família.
P or sua vez, cabe frisar que o pátrio poder, oriundo do
D ireito R o m an o , alude a um a figura de autoridade que não
representava o tipo dom inante em território nacional (Almeida,
1987). Seguindo esse raciocínio, â idéia de declínio da autori­
dade p a te rn a n ão parece a mais adequada p ara a com preen­
são dos regim es de aliança e sexo surgidos historicam ente no
Brasil, qu içá no O cidente m oderno (Foucault, 1997), pois está
lim itada à tradição rom ano-cristã.
N o que tange à separação do casal, o Código de 1916
prevê apenas a separação de corpos por ju sta causa, conhecido
p o r . desquite* p re s e rv a n d o assim a in d isso lu b ilid a d e d o m a tr i­
m ô n io . E m o u tra s p a la v ra s , a s e p a ra ç ã o n ã o desfaz o v ín cu lo
m a trim o n ia l.2
C o m o d e s q u ite , d e le g a -se a o in o c e n te n o p ro c e sso de
se p a ra ç ã o o d ire ito d e te r os filhos con sig o . A o c ô n ju g e c u lp a ­
do, é-lh e a ss e g u ra d o o d ire ito d e v isita, salvo im p e d im e n to .
C o n fo rm e p o d e m o s o b s e rv a r, h á u m a re striç ã o d a g u a r d a à
m o n o p a r e n ta lid a d e , d e c id id a a p a r tir d o c rité rio d e fa lta c o n ­
ju g a l.
C a so a m b o s sejam c o n sid e ra d o s cu lp ad o s, a m ã e fica co m
as filhas m e n o re s e c o m os filhos até os seis anos. D e p o is dessa
id a d e , os filhos v ã o p a r a a c o m p a n h ia d o p a i. A lei p re v ê re g u ­
la r, e m c a so d e m o tiv o s g rav es, d e o u tr a m a n e ira a situ a ç ã o
dos p ais c o m os filhos. O b se rv a -se q u e o d e te n to r d a g u a rd a
ex erce o p á tr io p o d e r e m to d a su a e x te n s ã o (G o m es, 1981).

2 A os opositores desse sistem a, C lóvis B eviláqua, redator do anteprojeto do


C ód ígo C ivil, respondia: “O argum ento que se levanta contra o desquite é
que o celibato forçado produ z un iões ilícitas. M as essas uniões ilícitas não
são con seq ü ên cia do desquite e sim da educação falsa dos hom ens. N ão é
co m o divórcio que as com baterem os, e sim com a moral; não é o divórcio
que as evita, e sim a dign id ade de cada um. E é curioso que se lem brem de
evitar as un iões ilícitas com o divórcio •quando este é, principalm ente, o
resultado das un iões ilícitas dos adúlteros. N ã o é o celibato forçado um es­
tado contrário à natureza, p orqu e, nas fam ílias honestas, nele se conservam ,
indefinidam ente, as m ulheres. É, contrário, apenas, à incontinência.” (Gama,
2003)

55
N a definição dos direitos e deveres do m arido e da m u­
lher, pode-se confirmar a valor ação diferenciada dos papéis
sociais. Ao m arido, de acordo com a lei, cabe suprir a m anu­
tenção da família, enquanto à m ulher cabe .velar pela. direção
m oral desta. H á um a tipificação das diferenças que justifica o
código m oral assimétrico e com plem entar como regra de con­
vivência entre os sexos.
Os perfis sociais atribuídos ao hom em , à m ulher e aos
filhos já haviam sido desenhados pela política higienista que,
desde 1830, se inscreveu cpmo micropolítica no tecido social
brasileiro. Com objetivo de salvar as famílias do “caos” higiê­
nico em que elas se encontravam , o saber médico aliou-se às
políticas do Estado e fez surgir o m odelo familiar pequeno-
burguês, expulsando do lar doméstico os.antigos hábitos colo­
niais (Costa, 1999). Assim, as tipificações clas diferenças entre
os sexos, vinculadas pela m edicina à natureza biológica, não
deixaram de ser absorvidas paulatinam ente pela legislação.
Se o Código Civil de 1916 já norm atizava em capítulo
especial as relações familiares, é, por, sua vez, na década de 30,
no m om ento dé criação .de um projeto político nacionalista e
autoritário, que' se desenha um a proposta clara sobre a função
social da família. Trata-se de um projeto familiar articulado ao
nível legal, abrangendo outros aspectos da legislação além das
normas de direito civil. Tal projeto caracteriza-se por um a for­
m a de p e n s a r-a fam ília com o elem ento de um a política
demográfica, tendo como objetivo último a construção da uni­
dade política nacionalista:
Nesse período foram prom ulgadas: a legislação sobre o
trabalho feminino (origem da CLT); sobre casam ento en­
tre colaterais do 3o grau; sobre os efeitos civis do casam en­
to religioso; sobre os incentivos financeiros ao casam ento e
à procriação; sobre o reconhecim ento de filhos naturais e
legislação penal, em especial no tocante aos' crimes contra
a família (Código penal de 1940) (Alves e Barsted, 1987:
169). ■
- Pode-se vislum brar nessas regulamentações a preocupa­
ção do legislador e n f reforçar os padrões de m oralidade já pre­
vistos implícito e explicitamente no Código Civil, tais como: a
valorização do casam ento legal e monogâmico, o incentivo ao
trabalho masculino e à dedicação da m ulher ao lar, o tem or
higienista dos cruzam entos consanguíneos e do uso dà sexuali­
dade fem inina e, em suma, a defesa da harm onia e dos costu­
mes na família (Alves e Barsted, 1987)-:
No período seguinte, de 1946 a -1964, caracterizado po­
liticamente como dem ocrático, destacam-se1a lei de reconheci­
m ento de filhos ilegítimos (lei 883/49) e o "Estatuto da m ulher
casada” de 1962, que outorga capacidade ju ríd ica plena à
mulher.
Com a vigência desse “E statuto”, a decisão sobre a prole ^
e o patrim ônio deixa de ser exclusividade do hom em . Ele revo- U
ga a incapacidade da m ulher casada. Para citar por exemplo
um dos efeitos jurídicos da lei, se a m ulher viúva, casada em
segundas núpcias, perdia o pátrio poder sobre os filhos cio leito
anterior, conforme redação original do Código Civil, com a
vigência do “Estatuto” ela passa a exercer tais direitos sem
qualquer interferência do m arido.
N a hipótese de desquite judicial, em que am bos os côn-
juges são julgados culpados, os filhos menores ficam corri a mãe,
diversam ente do que ocorria no regime anterior, cm que os
filhos varões, acim a de seis anos, ficavam com o pai.
Alves e Barsted (1987) afirmam .que, a despeito de um a
certa liberalização em relação ao casam ento e' regim e de bens,
o “E statuto” não rom pe algumas premissas básicas. O legisla­
dor m antém a assimetria entre os sexos, pendendo a balança
p a ra o poder patriarcal. E reafirm ado no “E statuto” o papel
do hom em como sendo o chefe da família e o da m ulher, co­
laboradora do m arido. Seguindo esse raciocínio, foi criado o
instituto dos bens reservados da m ulher, definidos com o aque­
les oriundos de sua profissão lucrativa e dos quais pode dispor

57
livrem ente. O ra, pressupõe-se então que sua economia própria
é vista com o paralela e dispensável ao sustento do lar, ao passo
que, ao hom em , cabe m antê-lo.
Se o m odelo jurídico de fam ília,nuclear, com laços ex-
te n sosj-patriareal—fu n dada~na-assimetria~sexu al^e_geracio nal
perm anece inalterado do período autoritário ao democrático,
as práticas sociais se afastam cada vez mais do tipo ideal de
família da doutrina jurídica
O final dos anos 60 e a década de 70 foram fecundos
nesse sentido. ■

Novos arranjos e a difusão das práticas psicológicas

O m ovim ento fem inista, a introdução da m ulher no


m ercado de trabalho, a pílula anticoncepcional, a liberação
sexual* aliados aos efeitos do cham ado “milagre econôm ico”,
m arcado pela m obilidade social ascendente dos setores médios
d a população, o desenvolvimento industrial urbano e a abertu­
ra p ara o consum o, são alguns dos fatores que colocam em
xeque o m odelo fam iliar preconizado ;pelas legislações, o que
irá se refletir nas decisões jurisprudenciais e nas propostas de
reform ulação do Código Civil. ;
Em determ inados estratos da sociedade, com eçam a sur­
gir novos arranjos conjugais e familiares que, sobretudo, sao
caracterizados pelo individualism o (Figueira, 1987).
Se até então a m u lh e r estava com prom etida com a im a­
gem de m ãe am orosa e responsável, na família individualizada
ela descola-se em parte do destino "natural” de m aternidade.
“N esta nova fam ília”, escreve Russo; “cabe à dona-de-casa
buscar um a certa independência do m arido, ter sua renda p ró ­
pria, seu próprio carro, além de pro cu rar abandonar o ar de
m atrona ao qual os filhos e o casam ento a condenavam ” (Rus­
so, 1987: 195). !

58
Por sua vez, o homem desvincula-se, ao .menos ideal­
m ente, do papel tradicional de “m achista’V cuja relação privi­
legiada com o trabalho fora de casa e com os próprios interesses
sexuais deixa de ser exclusividade de seu gênero.'
--------- Gom ^a-m udança-dos-arranjosinterpessoais^dissolve^sfa-
hierarquia que dividia as esferas pertencentes a cada sexo e
geração. As individualidades passam a subordinar as relações
entre os m em bros da família, seja entre m arido c m ulher, seja
entre pais e filhos. As roupas, os discursos, òs com portam entos,
os sentimentos, etc. não são mais sinais exclusivos de cada sexo,
posição e idade, de modo que os m arcadores visíveis da dife­
rença passam a ser única e exclusivamente as expressões do
gosto pessoal (Figueira, 1987). !
Os m em bros da família pássam a se perceber como iguais
em suas diferenças pessoais. A ênfase no indivíduo faz-se acom ­
p a n h a r do ideal de igualdade de relacionam ento, apontando
p a ra um a nova m orai no campo das relações interpessoais. A.
tradição e a rede familiar cedem lugar às individualidades e
seus prazeres correlatos; de tal m odo que se torna necessário o
exam e de si mesm o para que as relações entre homens e m u­
lheres, m aridos e esposas, pais e filhos possam ser negociadas a
todo e qualquer m om ento (Figueira, 1987).
N ão sendo por coincidência, é nos anòs 70 que se inicia
um alto consumo da psicanálise (Birman, 1995; Figueira, 1987;
K atz, 1979; Russo, 1987).
N um m om ento em que os papéis tradicionais da m u­
lher, do hom em e das gerações são postos’ em xeque, os sabe­
res psi surgem como coordenadas p ara as relações interpessoais,
m esm o através de conceitos os mais virulentos, tais como, por
exemplo, o de sexualidade. ! .
D onde explode o sucesso das práticas terapêuticas, das
colunas de aconselham ento psicológico em revistas femininas,
do uso quotidiano do vocabulário psicanalítico; em suma, da
necessidade crescente de se pedir a “palavra” de psicólogos e

59
psicanalistas sobre questões que -dizem respeito à família em
geral. Cabe notar que. o imenso consumo da psicanálise e da
psicologia não implica pura e ’simplesmente a subversão de
formas instituídas pela tradição, mas tam bém a multiplicação
de m icropoderes que são mais persuasivos do' que impositivos
(Foucault, 1997). ,
E evidente que todo esse panoram a de m udança nos anos
70 torna extrem am ente frágil não ápenas os deveres correlatos
entre os sexos, mas tam bém o.-ideal de indissolubilidade do'
matrim ônio.
•Vale acrescentar que nessa época o Brasil estava em ple­
no regime militar, sob a presidência do General Ernesto Geisel,
cuja origem protestante luterana admite o divórcio. Ademais,
havia um a certa insatisfação entre os militares na m edida em
que se obstruía a promoção dos desquitados, chegando ao gene-
ralato e até mesmo à Presidência da República, apenas os ca­
sados. Desse m odo, eles influenciaram - ao lado de um a gama
imensa de desquitados com famílias recompostas - o Poder Exe-
cutivo com objetivo de. legitimar e regular o fim do casamento.

Da lei do Divórico à Constituição: o privilégio da maternidade na


atribuição da guarda, a abertura para as novas formas de família e
os direitos da criança

Em 26 de dezembro de 1977, é prom ulgada a Lei 6515,


conhecida como Lei do Divórcio, que regulam enta a dissolu­
ção da sociedade conjugal e do casamento.
A Lei do Divórcio abole o term o “desquite” j á tãò cultu­
ralm ente identificado no país e estabelece a possibilidade de
somente um divórcio pòr cidadão.
• A restrição a um divórcio teve como intuito aplacar a
oposição da Igreja'Católica, cujo receio de que o divórcio ani-
quüaria a família brasileira evidentemente jamais se confirmou.3
Entre os .principais aspectos da lei, convém assinalar o
artigo 15 que regula a guarda dos filhos na dissolução do casal.
Nele, a guarda é conferida a apenas um dos genitores, sendo
que, o outro poderá visitar e ter os filhos em sua com panhia,
segundo fixar o Juiz, bem como fiscalizar sua m anutenção e
educação. Observa-se. que tal perspectiva pode ser equivocada-
m ente interpretada como não cabendo preocupações com o
dia-a-dia do filho ao genitor que n ã o 'd e té m a guarda, cujo
ponto retornarem os adiante.
No caso da separação judicial em que se atribui a um
dos cônjuges a responsabilidade pela dissolução do casam ento,
a guarda dos filhos m enores fica com o cônjuge a que não
houver dado causa (art.10), ou seja, com o cônjuge “inocente”
da separação. M antém -se assim o sistema vigente de definição
da guarda, em que o critério de falta conjugal perm anece incó­
lume.
No tocante aos “alim en to s”, a lei estipula a obrigação
comum dos cônjuges (não só do pai) para a manutenção dos
filhos, além de não discriminar o sexo responsável pela pensão,
inferindo-se a obrigação conforme a necessidade e a possibilidade.

[,:-tó^,l;-^ü[mrzd,.;çtc;;ipòriÍprciçndc^o,';qüè^él;iimpresciü'díy
■;^cs&áno^âhabita<^oV*òltàVamento’m
'sráe^tbie^scy&pêçsiõá^imçnü^
'^I9Ô3)í;Segi^dtf/Üi£LÍz::(L993)ijtò':umai\éhãShÍiaí.tô»Éstí&l&préWdênciàidé!'sé:'iinppí<;ãj«ste;a^
‘. ■ n w f r n ^ n r n r r p r ^ f l r n ^ r p i e g i r a n n f i a > rn v ^ g v H /» n n h h r a g 'g n r t a > t ^ r ; ^ m ? n h < / > h v n H A g f r i a l i v i a r . n £ S .V í *'

■frtíciós^àteríàúí-páraísóbrewerrè.írctorçaíòíp^cípid^dá^soHd^fcdadcíqÜèfdêyéVrcffcr^òs'-';

3 A lim ita ç ã o a um d iv ó r c io .fa z surgir n o v b s p ro b lem a s, tais c o m o o


concubin ato dos que vieram a se separar após n ova u n ião constituída após
o divórcio, e a situação dos q u e se casavam c o m pessoas divorciadas c, por t
tal m otivo, estavam igualm en te im p ed id as da ob ten ção do divórcio. T ais
situações serão reconh ecid as c o m o un ião estável e protegidas p e lo Estado
c om a C onstituição de 1988. ..

61
C ontudo, a força da definição dos papéis sexuais perm a­
nece e revela-se, sobretudo, no tocante aos cuidados e educa­
ção dos filhos. Diz a lei, no artigo 10, Io, que “se pela separação
forem responsáveis ambos os cônjuges; os filhos menores fica­
rão cm poder da m ãe, salvo se o Ju iz verificar que tal solução
possa advir prejuízo de ordem moral p a ra eles” .
Em outras palavras, o cuidado' em relação aos filhos é
visto naturalm ente como sendo responsabilidade da m ulher,
independente de qualquer outra condição, exceto a de ordem
m oral. A m ulher portanto só perde a guarda dos íilhos caso se
conduzir contra os padrões morais, critério bastante nebuloso,
vale dizer, de constatação subjetiva e, ainda mais, deixada à
aferição do juiz.
Para agravar á situação, o privilégio da m aternidade acaba
gerando certas dificuldades p a ra o exercício da paternidade ou,
sim plesm ente, afastando o hom em da esfera de influencia so­
bre os filhos. N o Brasil, há até os dias de hoje um a inclinação
em nossos tribunais de atribuir a guarda à m ãe, cabendo ao
pai a visitação quinzenal, o que limita, u m relacionam ento mais
estreito com os filhos. E quando o pai pleiteia visitas menos
espaças, o Judiciário costum a alegar que tal pedido pode au­
m entar as desavenças entre os ex-cônjuges (Brito, 1999).
C ontudo, observa-se nos últimos anos um a tendência de
crescim ento das solicitações dos hom ens pela custódia dos fi­
lhos (Ridenti, 1998). A reivindicação no judiciário dos hom ens
—em situação de igualdade com a m ulher - pela guarda dos
filhos coloca em p a u ta eis distinções donstruídas sócio-historica-
m ente, que p o r sua vez, como vimos, são naturalizadas pelo
D ireito de fam ília.4

4 S egun do o IB G E , cm 2 0 0 2 , 93,89% dos filhos ficam com as m ães depois da


separação e antes d o divórcio, e, depois do divórcio, cai para 92,37% . C o n ­
tudo, o ín d ice de pais qu e entram na justiça com pedido de guarda aum en­
tou de 5 para 25% e m cin co anos.
O utros aspectos im portantes da Lei do Divórcio em que, |f l
no entanto, não convém nos deter, é a valorização da separa-
ção de fato, a perm issão p a ra o reconhecim ento dos filhos ile­
gítimos na vigência do casam ento e a consagração do direito
ao hom em casado, separado de fato, de requerer autorização
judicial p a ra registro de filho nascido de relação extraconjugal.

legislação
sig n ificativ as m u d a n ç a s no
concerne aos direitos e deveres fam i- 1
liares e a C o n s t it u i ç ã o F e d e r a l de - p ^ A n t c ’- ! ^
1988.
C om a Constituição, o concubinato passa a adquirir pro- ||
teção do Estado, n a condição de união estável (art.226 §3°).
C om efeito, o casam ento deixa de ser a única form a le­
gítima de constituição da família, tal com o era definida no
Código Civil. O conceito de família amplia-se na m edida em
que passa a legitim ar a diversidade de uniões existentes no
contexto brasileiro. Com o afirm am Oliveira e M uniz (1990),
não se pode mais falar num a form a exclusiva de família, e sim
tratar da m atéria no plural, passando-se a considerar tam bém
como entidade familiar a relação extram atrim onial estável, entre
um hom em e um a m ulher, além daquela form ada por qual­
quer dos genitores e seus descendentes, a família m onoparental
(art.226 §3° e §4°).
É evidente que a admissão de novos arranjos amorosos e
familiares fazem surgir novos problem as, de m odo que se tor­
na cada vez mais necessário o atendim ento de equipes interdis;
ciplinares ju n to às V aras de Família.
A Constituição elimina tam bém a chefia familiar, deter­
minando a igualdade de direitos e deveres p ara ambos os cônju­
ges, hom ens e mulheres (art.226, §5°). N o artigo 5, parágrafo I ’
está prescrito que homens e mulheres são iguais perante a lei.

63
É nela que se encontram pela prim eira vez no Brasil os
direitos da criança, expostos no artigo 227, a p artir do concei­
to de proteção integral e do entendim ento da criança como
sujeito de direitos. Assim, diz a lei que “é dever da família, da
sociedade e do Estado assegurar à criança c ao adolescente,
com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alim enta­
ção, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dig­
nidade, ao respeito, à liberdade e à convivência fam iliar e
comunitária, além de colocá-los k salvo de toda form a de ne­
gligência, discrim inação, exploração, violência, crueldade e
opressão”. N o mesmo artigo, §6°, ficam proibidas discrim ina­
ções entre filhos havidos dentro e fora do casamento ,e na adoção.
Ao entendim ento da criança e adolescente como sujeitos
de ,direito, deve-se relacionar a questão da guarda com o texto
da Convenção Internacional dos Direitos da Criança.

Da convenção internacional ao estatuto da criança e do


adolescente: a primazia do interesse da criança, a divisão entre
parentalidade e conjugalidade, os padrões de normalidade e a
inserção das equipes interdisciplinares

Aprovada no Brasil pelo Congresso Nacional e prom ul­


gada em 1990, a Convenção Internacional é um instrum ento
jurídico, pois obriga os países que a assinam .a adaptar suas
legislações às suas normas e apresentar periodicam ente um
relatório sobre suas aplicações. C om efeito, no mesmo ano, a
legislação nacional é alterada com a publicação do Estatuto da
Criança e do Adolescente que, baseado na doutrina da prote­
ção integral, estabelece que crianças e adolescentes devem ser
considerados como sujeitos de direitos, consagrando os direitos
fundamentais da pessoa na legislação referente à infância (Brito,
1996).

64
- A Convenção Internacional situa no. artigo 9 o direito
da criança de ser eduçada^por seus dois pais, exceto quando o
seu m elhor interesse torne necessária a separação. Contudo,
mesmo na situação em que a criança é separada da famílià, ela
tem-o direito de m anter o contato direto-.com os pais.
Reafirm ando tal perspectiva, o Estatuto da C riança e do
Adolescente dispõe o direito de a criança e o adolescente se­
rem criados e educados no seio da família; (art. 19) e estabelece
os deveres dos pais em relação aos filhos ..menores, “cabendo-
lhes ainda, no interesse destes, a obrigação de cum prir e fazer
cum prir as determinações judiciais” (art.‘í22).
Compreende-se que a separação matrimonial de um casal
não deve conduzir à dissolução dos vínculos entre pais e filhos.
Brito (1996) adverte que os direitos representados na C onven­
ção Internacional e no Estatuto da C riança e Adolescente con­
trapõem-se à idéia que o artigo 15 da Lei do Divórcio pode
conduzir, como vimos acim a, de que não cabem preocupações
com o quotidiano infantil ao genitor que naó detém a guarda.
N um a pesquisa juiito às V aras de Família do T ribunal
de Justiça do R io de Janeiro, a autora constata que habitual­
m ente a guarda atribuída a um dos pais contribui p ara o afas­
tam ento do genitor descontínuo - term o usado por Françoise
Dolto —das decisões que visam à educação c ao cuidado dos
filhos (Brito, 1993, 1996).
Em vez do papel de pai de fim de sem ana ao qual é
relegado am iúde o genitor descontínuo, Brito ressalta que a
separação do casal não deve corresponder ao fim ou à dimi­
nuição das funções parentais:
Nestes casos, presencia-se o desaparecim ento do casal con­
jugal, mas deve-se conservar o casal parental, garantindo-
se a continuidade das relações pessoais d a criança, com
seu pai e sua m ãe (Brito, 1996: 141).

O direito de a criança m anter um- relacionam ento pes­


soal com seu pai e sua m ãe não resulta da autoridade e sim da

65
•responsabilidade parental em preservar o vínculo de filiação.
C abe então notar, através da representação dos direitos infan­
tis, um nítido deslocamento do eixo da autoridade para o de
responsabilidade parental (Brito, 1999).
' " ~Ma medida em que os códigos jündiços~passam a priorizar o me-
Ihor interesse da criança, tal critério deve se sobrepor ao de falta conjugal
em toda decisão judicial a respeito da guarda defilhos de pais separados e
divorciados. As falhas no cum prim ento do contrato m atrim onial
não devem ser deslocadas às funções parentais.
N em por isso deixa de existir' em nossa legislação, até a
en trad a em vigor da lei 10.406, conhecida por “Novo Código
Civil” , com o veremos mais adiante,!um a superposição dos cri­
térios de falta conjugal, interesse e direito da criança, contribu­
indo p a ra o apoio da autoridade judiciária nos elementos de
convicção própria (Brito, 1999).
Pode-se dizer que o interesse da criança é um critério .
usado juridicam ente sempre que a situação da m esm a requer a
intervenção do m agistrado, visando a lhe assegui'ar um desen­
volvim ento adequado. . :
T odavia, não deixa de ser ao mesm o tem po um opera­
d or relacionado a um a predição, seguindo certos padrões do
que deva ser um a família ou infância saudável. Para respaldar
suas avaliações, o juiz solicita subsídios da psicologia, entre outras
áreas, cujos estudos correm am iúde o risco de estarem atrela­
dos a um a certa noção standard de norm alidade (Brito, 1999).
Sem desconsiderar a im portância p ara a proteção da
criança, o critério de interesse da criança é de avaliação subje­
tiva, sujeita às máis diversas interpretações, cuja aferição apóia-
se freqüentem ente num a situação de fato e não de direito.5

5 D o n d e surge a necessidade de elencar c^ d ireitos da criança a pardr, com o


vim os a cim a, da n oção de direitos d o h om em . C om efeito, os interesses da
criança universalizam -se e se transform am em direitos, ao m esm o tem po em
q u e a crian ça passa de objeto a sujeito de direitos (Brito, 1999).

66
O critério de interesse da criança junto ao Direito de
Fam ília aponta, inicialmente, p ara a verificação individual de
necessidades infantis perante a separação dos pais, o que exige
por sua vez a intervenção de um aparato interdisciplinar. Seja
-com-a-tarefa-de-r.ealizarJaudosjo_u_p.are.ceres_psicosso.ciais,_seja_
com a de ser “porta-voz” do infante, tal aparato indica o m e­
lhor interesse da criança diante da exclusiva possibilidade da
guarda m onoparental. Nessa perspectiva, o objetivo é, em últi­
m a instância, descobrir se é mais adequado atribuir a gu ard a'
ao pai ou à m ãe.6
E ntretanto, tal objetivo revela-sc inadequado em face das
circunstâncias que envolvem a m aioria das disputas de guarda
e regulam entação de visitas, m arcadas m uitas vezes por acusa­
ções m útuas entre as partes litigantes.
N ão basta definir critérios norteaclores para a. indicação
do genitor que reúne melhores condições, de guarda.

A lógica adversarial, o envolvimento das crianças no coníliio e os


malefícios da perícia
A disputa de guarda num divórcio litigioso está baseada
num a lógica adversarial em que um genitor tenta não somente
m ostrar que é mais apto p ara cuidar e educar os filhos, como
tam bém expor as falhas do outro para tal função.
T al lógica está em butida no conflito de interesses, deno­
m ina-se lide, em que duas pessoas pretendem desfrutar ao

6 M ais do que o interesse da criança, é a doutrina da proteção integral e,


con seq ü en tem en te, a efetivação dos direitos fundam entais de crianças c
adolescentes que está na base da exposição de m otivos para a abertura do I
concurso público para o cargo de psicólogo no Tribunal de Justiça do Rio
d e Jan eiro, não deixando este dc ser citado com o fazendo parte de equipes
intcrdisciplinares.
mesmo tem po daquilo que os processualistas cham am “bem
da vida” (tudo que corresponde à aspiração dc um a pessoa,
seja m aterial, afetiva, etc.). O ra, no litigio a prevalência dos
interesses de um implica em não atendim ento aos interesses do
outro. A medida, que os interesses se contrapõem, o Ju iz tem
que decidir qual pretensão das partes (como são cham adas as
pessoas nos processos) está mais am parada na lei (Suannes, 2000),
• . Abre-se um leque infindável de acusações de um a parte
contra a outra, cujas faltas morais teriam sido, como ambos
argum entam , responsáveis pelo conflito atual. O que antes fa­
zia parte do quotidiano do casal são agora práticas “bizarras”
de um estranho que, por razões “desconhecidas”, foi outrora
objeto de investimento amoroso (não sem um a certa dose de
alienação sobre o fato de que, se o litígio persevera, é porque
há ainda um vínculo entre um e outro, como verernos adiante).
Em face desse panoram a, é com um o psicólogo ser re­
quisitado a responder à difícil dem anda de apontar o genitor
mais qualificado ou analisar o im pedim ento de visitas de um
ou de outro.
A dem anda form ulada pelo juiz tem como fim encon­
trar o genitor “certo” a quem dar a posse e guarda da criança,
baseando-se repetidam ente num a linha divisória entre o bom e
m au pai e mãe ou, em último caso, o menos ruim (Ramos e
Shine, 1999). Mesmo nas situações cuja complexidade im pede
um a visão maniqueísta, não restam muitas alternativas ao juiz
senão sentenciar a favor de um a das partes e negar o pedido
da outra. O que faz recair na. dificuldade acima, a saber, de
que o psicólogo, na condição de perito, é chamado a fornecer
subsídios para a decisão judicial, apontando o genitor que atende
m elhor aos interesses da criança.
Tal- tarefa não deixa de acarretar algumas dificuldades
dignas de um a análise mais cuidadosa.
Em prim eiro' lugar, cabe interrogar se existem instru­
m entos de avaliação que objetivamente possam m edir a capa­
cidade de um genitor ser m elhor do que outro. A arbitrarieda­
de do entendim ento sobre b que é ser bom ou m au genitor,
isolado do contexto em que o conflito se apresenta, pode resul­
tar em definições estereotipadas que dificilmente recobrem a
pluralidade das relações intrafam iliares.7;'
Em segundo lugar, nem por isso m enos im portante, con­
vém n o tar que a definição de um guardião tem como efeito
simbólico a demissão do outro genitor cômo incapaz de exer­
cer tal função. Em inúm eras situações,\é com um o. pai ou a
m ãe se sentir ultrajado na condição de visitante, visto im agina­
riam ente com o sendo não-idôneo, m oralm ente condenável ou,
na m elhor das hipóteses, tem porariam ente menos habilitado, o
que m uitas vezes colabora p a ra o afastam ento de suas respon­
sabilidades.
M uitos pais term inam por acreditar que, por serem visi­
tantes, devem se m anter à distância dos filhos, pois consideram
que a Justiça dá plenos poderes ao detentor da guarda. Sentin­
do-se im potentes com o papel de coadjuvantes, h á pais que
esbarram nas decisões, unilaterais das ex-m ulheres a respeito
da vida dos filhos, assim como há mães que se sentem sobre­
carregadas física, financeira e psicologicamente com o ex-m a­
rido que mal visita as crianças.
Não. é p o r m enos que o laudo ou parecer psicológico
acaba servindo de combustível p a ra o fogo da desavença fam i­
liar, reacendido a cada decisão judicial. Se o psicólogo auxilia
o m agistrado a decidir o “m elhor” guardião, por um lado, por
um outro, ele fornece um poderoso instrum ento —com argu­
m entos técnicos sobre defeitos e virtudes de um e de outro -
p ara as famílias darem prosseguim ento aos processos judiciais.

7 Sobre as tentativas dc aferição p sicológica para definição d a guarda e as


críticas que lhes são relacionadas, cf. Brito, 1999a.

69
O ra , nota-se freqüentem ente que a perpetuação do em ­
bate fam iliar, via poder judiciário, 6 um m odo de dar continui­
dade ao trabalho de luto da separação, às vezes até mesmo da
p e rd a do objeto am ado, ou é sim plesm ente u m meio de m an-
ter o vincu 1o_com^o_ex-compa n h eir.o.__ ______ ' ___________
V ain er afirm a que, nesse último caso, “o litígio está a
serviço de um a busca de reencontro ou aproxim ação daquele
ou daqueles que não se conformam;em estar separados” (Vainer,
1999: 15). E m bora o casal já ,te n h a resolvido legalmente o tér­
m ino d a união, continua atado à relação por meio de ações
pendentes no judiciário. A cada ,vez que se inicia um a ação
judicial, a p arte interpelada é autom aticam ente obrigada a se
envolver com o ex-parceiro, dificultando a efetivação da ru p ­
tu ra consagrada de direito.
P a ra agravar a situação, os filhos são usados como ins­
tru m en to de vingança e constrangim ento, não havendo bom -
senso que faça apelo ao fim do conflito.
É certam ente im próprio indagar à criança com quem
ela deseja ficar, cuja decisão póde acarretar, num outro m o­
m ento, graves sentimentos de culpa por rejeitar um dos genitores
(Brito, 1996).
O s direitos de opinião (art. j12) e de expressão e inform a­
ção (art. 13) da criança, estabelecidos na Convenção Internaci­
onal dos D ireitos da C riança, nãoi im plicam que ela:deva depor
co n tra ou a favor dos pais, e sim que ela tem liberdade de
ob ter inform ações, emitir opiniões e de se expressar sobre os
assuntos que lhe digam respeito, sobretudo o processo de sepa­
ração de seus pais. O ra, isso estái a quilôm etros de distância de
lhe incum bir um a decisão judicial. T rata-se de um erro de in ­
terp retação da lei deslocar à criança responsabilidades que são
co n trad itó rias-a sua condição de sujeito em desenvolvimento
(Brito, 1996).
Além do m ais, é com um a fantasia infantil de que os
pais voltarão a conviver harm oniosam ente no m esm o espaço

70
doméstico. E m bora vivendo nu m lar cujos pais estão infelizes
com o casam ento, as crianças não experim entam o divórcio
como solução ou alívio p a ra tal situação. M uitas preferem o
casam ento infeliz ao divórcio. (W allerstein e Kelly, 1998). Des-
se m odo, pedir p a ra que a criança se posicione em relação ao
divórcio soa inábil e, de certa form a, contrário a seus interesses.
Seguindo esse raciocínio, Brito afir-
ma. cjue ’âcârc&çocs c considcraçocs so- ünjías& ? 4 , ^ cs;‘v^anHóv-
bre o com portam ento dos pais tam bém
, „ m . h~ ~ ~ 1 -~tn\ !íè1p6&iste;êrn1çòlò^
devem ser evitadas (Bnto, 1999a: 178). .
Françoise D oito (1989) afirm a que
a criança deve ser ouvida pelo juiz, o que não pressupõe lhe
im por a escolha dos genitores e seguir o que ela sugere. Escu­
tar a criança tem com o significado o fato de ela ser m em bro da
fam ília e ter vontade de falar sobre o que se passa com ela,
assim com o tirar dúvidas sobre tal situação. Ao final, é im por­
tante a criança saber “q u e ” , diz D olto, “o divórcio dos pais foi
reconhecido como válido pela ju sd ça e que, dali por diante, os
pais terão outros direitos, m as que (...) eles não são liberáveis
de seus deveres de ‘p a re n talid ad e ’” (Dolto, 1989: 26).
Em contrapartida, segundo ainda Dolto, as crianças de­
vem ouvir do Juiz algum as palavras a respeito de seus deveres
filiais, a saber, a preservação das relações pessoais com as fam í­
lias de am bas as linhagens. T a l conversa deve acontecer desde
que o Ju iz saiba conversar com crianças, caso contrário por
um a pessoa encarregada disso p o r ele, não havendo idade m í­
nim a que não se, possa explicar a situação (Dolto, 1989).
N ão é difícil a criança se sentir culpada pelo divórcio,
cuja existência é im aginada com o um peso p a ra os pais (Dolto,
1989). É de fundam ental im portância o psicólogo atentar p ara
esse aspecto, sem deixar de acolher, ao mesmo tempo, o silên­
cio que certas crianças apresentam , durante as entrevistas. Tal
silêncio não deve ser percebido necessariam ente como negati­
vo, podendo ser afirm ado com o um meio de a criança não

71
querer com partilhar das querelas parentais e nem das exigên­
cias judiciais.
•E mesmo que a criança ou o adolescente insista verbalizar
com quem deseja ficar, não se pode perder de vista que há
um a tendência nas situações de litígio de os filhos fazerem ali­
ança com um dos genitores e perceberem o outro como ‘Vi­
lão” da separação. ■
Segundo algumas pesquisas psicológicas, a criança faz
aliança com o genitor que dispõe de sua guarda e que, portan-
> to, está mais próxim a dela, independente clo sexo (Wallerstein
c Kelly, 1998; Brito, 1999a). O tem po de convivência prolon­
gado aproxim a a percepção do filho com a do guardião. Desse
m odo, na m edida em que costum a ser dem orado o intervalo
entre a separação de fato do casal e a formalização jurídica do
divórcio, o tem po transcorrido ju n to ao genitor que perm ane­
ce com a criança ou o adolescente é o bastante p ara a conso­
lidação das alianças. “A valiar com quem a criança q u er
perm anecer, ou com qual dos genitores c mais apegada, pode
ser”, conclui Brito, “interpretado como a pesquisa do óbvio”
(Brito, 1999a: 176).
P ara complicar o quadro, pedir à criança ou ao adoles­
cente p ara expor com qual genitor deseja ficar acaba acirran­
do ainda mais as: posições polarizadas c visões maniqueístas a
respeito do litígio.
O fato de o psicólogo restringir-se à tarefa pericial de
definir o “m elhor” genitor revela aí suas limitações, pois não
contribuí para um a melhor qualidade das relações entre as partes
litigantes, tam pouco coloca em xeque a lógica adversarial pre­
sente nos encam inham entos jurídicos.
Em função do enfrentam ento que se impõe, a lógica
adversarial favorece o aumento de tensão entre os ex-cônjuges,
sem desfazer o entendimento habitual de que ao final do pro­
cesso há sempre vencidos e vencedores (Brito, 1999a).

72
A sugestão do psicólogo ao juiz deve contar, o m áximo
possível, com a- participação da. família, retirando-as do papel
passivo a que são freqüentem ente relegadas no processo de pe­
rícia. P ara tanto, deve-se privilegiar os recursos subjetivos, seja
a partir da tem ática do sujeito,-seja a partir do sistema relacional
da família, para a orientação e o encam inham ento dos impasses.
Tais observações fazem perceber a necessidade de o psicó­
logo am pliar seu raio de ação p ara além -da perícia tccnica.
Vejamos então outras linhas de atuação.

Possibilidades e limites da intervenção psicanalítica:


a importância da fala, o laço conjugal, a questão do desejo

Pereira (2001), advogado especialista em D ireito de F a­


mília, reconhece as contribuições que a psicanálise oferece a
essa m atéria.
N um a pesquisa sobre a jurisprudência na m aioria dos
Estados brasileiros, o autor aponta para os elementos de um a
“m oral sexual” que p erm eia os julgam entos em D ireito de
Fam ília, com provando o envolvimento dos valores de cada
julgador na objetividade dos atos e fatos jurídicos:
O julgador, quando sentencia, coloca ali, p a ra a solução
do conflito, não só os elementos d a ciência juríd ica e da
técnica processual, m as tam bém toda u m a carga de valo­
res, que é variável de juiz para juiz (Pereira, 2001: 250).

Sendo o D ireito de Fam ília um a tentativa de organizar


ju rid ic a m e n te as relaçõ es de afeto e 'suas co n seq ü ên cias
patrim oniais, Pereira contrapõe à m oral-sexual a necessidade
de repensar os paradigm as do Direito a-partir da psicanálise.
C om efeito, considera im portante lançar m ão dos conceitos de
sujeito, sexualidade e desejo:

73
1. O sujeito do D ireito é aqueíe que age consciente de seus
direitos e .deveres e segue leis estabelecidas em um dado
o rdenam ento jurídico; p a ra a Psicanálise, o sujeito está
assujeitado às leis regidas pelo inconsciente. Afinal as m ani­
festações e atos conscientes que tanto interessam ao Direi-
to nãcTsão predeterm inadas pelcTinconsciênte?~2rPara o
D ireito Penal, os crimes de n atureza sexual são tipificados
e investigados buscando-se sua m aterialidade. Por isso, a
sexualidade p a ra o D ireito tem sido sem pre genitalizada,
como expresso no Código Penal (...), que se utiliza sempre
da expressão ‘conjunção carnal’; p a ra a Psicanálise, a se­
xualidade' é da ordem do desejo. Pode o D ireito legislar so­
bre o desejo, ou será o desejo que legisla sobre o D ireito?
(Pereira, 2001: 22).
P ara que tais conceitos se articulem ao cam po da prática
analítica, é necessário que as pessoas se ponham a falar. A psi­
canálise é um a experiência discursiva. Seguindo esse raciocí­
nio, Suannes (2000) propõe que se devolva a fala à pessoa e
aos processos inconscientes que subjazem ao processo judicial.
P ara tanto, convém elucidar as relações entre as deter­
m inações inconscientes e a form alização da ação judicial.
Senão vejamos. N um litígio, os oponentes são incapazes
de resolver o conflito p o r conta própria, de tal m odo que re­
correm a um terceiro, no caso, a autoridade judicial, com ob­
jetivo de satisfazer as suas exigências.
A form alização dessa dem anda ao juiz exige que a fala
de cada sujeito envolvido no conflito seja representada pelo
advogado que, por sua vez, fala de acordo com a lógica do
discurso jurídico. R em ontando o discurso de acordo com a lógica
jurídica, o advogado dem onstra que:os interesses de seu cliente
estão am parados na lei, ao m esm o tem po èm que responsabi­
liza o outro pela ação ou om issão; geradora do conflito. H á
nessa passagem , da vivência de insatisfação do sujeito à e n u n ­
ciação do seu problem a n u m a lógica jurídica, um a m udança

74
•na configuração do conflito, em que o discurso de insatisfação
cede lugar ao discurso de m erecim ento.
A re-configuração do conflito nos moldes jurídicos não
deixa de gerar certos impasses, especialmente nas Varas de
~Fãmília“ onde_a~natureza-do-víncuio-ent-r-é-as-pessoas-é-sufici-
ente p ara resistir a qualquer resolução judicial:
Nas ações de V ara de Família, (...) o ato jurídico não terá
com o conseqüência o rom pim ento dos laços psicológicos
das pessoas envolvidas e, no caso de haver filhos em co­
m um , não levará ao afastam ento,concreto e não im pedirá
a participação de um na vida do outro. Devido à natureza
do vínculo existente entre as ‘partes’, (...) os problem as
explicitados nos autos são, freqüentem ente, deslocamento
de questões que não encontraram outra via de representa­
ção. A m edida que o aparente problem a é resolvido, o
conflito se coloca eni outra questão, reacendendo o impasse.
Este constante deslizam ento de conflitos leva à cronificação
do litígio, (Suannes, 2000: 94) •
Seguindo esse raciocínio, a autora sugere que o objetivo
prim eiro seja “realizar um m ovim ento de direção contrária na
estruturação do problem a jurídico” (Suannes, 2000: 96), ou seja,
fazer falar o sujeito e não seus porta-vozes,
O simples encam inham ento das partes p a ra o estudo
psicológico por si só já tem papel im portante, à' m edida que
nom eia a natureza do problem a em pauta. Isto é, atribui o
“estatuto de psicológico a algo que é vivido pelas famílias como
um problem a jurídico, concreto e externo a cada um deles”
(Suannes, 2000: 95). U m a vez encam inhado o estudo psicoló­
gico, a “questão não se coloca como oposição entre dois pólos,
ou seja” , afirm a Suannes, “não se trata de um conflito de inte­
resses no qual o vínculo com o pai exclua a mãe de seu lugar,
ou vice-versa” (Suannes, 2000: 96).8

u C on vém observar que o encam in ham ento psicológico não é por si só sufi-

75
O rientado por urna escuta analítica; não cabe ao psicó­
logo avaliar qual genitor é>m erecedor da guarda ou da visita
aos filhos, ou, tampouco, detectar qual deles estaria mais apto
para exercer as funções parentais, e sim com preender que “a
questão que faz aquela família sofrer e pedir ajuda no Judiciá­
rio não é, muitas vezes, aquela que está configurada nos autos”
(Suannés, 2000: 96).
Evidentemente, a relação entre o método analítico e. as
circunstâncias de um a ação judicial não é sem dificuldades.
Barros (1999) adverte que num processo litigioso, ao
contrário do que pressupõe a regra técnica fundam ental da
psicanálise, o sujeito não fala o que lhe vem à m ente e sim o
que pode favorecer a sua causa. Ao mesmo tempo, preocupa-
se em não dizer o que pode ser usado contra ele mesmo pela
outra parte e seus advogados. Com efeito, tal depoim ento tor­
na-se prejudicado, '‘pois”, escreve Barros, “o sujeito não está
ali num a posição de quem fala de si” (Barros, 1999: 37). E
mesmo no caso cm que o sujeito libera sua fala, o psicólogo
não pode m anejar os efeitos de sua intervenção após a conclu­
são de seu laudo.’
Nem por isso Barros considera incom patível a práxis
analítica no âm bito jurídico. Ao contrário, é possível prom over
a retificação subjetiva em que o sujeito deixa de se queixar do
‘outro pára reconhecer sua participação no conflito, tendo como
efeito “separar-se desse outro, perder esse casamento, sem ficar
perdido de verdade” (Barros, 1999: 39).
Por sua vez, nos casos em que as pessoas não querem ou
se sentem impedidas de falar, resta somente apontar as dificul­
dades das partes de se reconhecerem ativamente no conflito.

cientc para reconfigurar o conflito. C om o observa Brandão, se “fosse assim,


a prim eira reação frente ao psicólogo não seria sem elhante à m anifestada
em face do juiz, quando testemunhas e docum entos são m encionados a tor­
to e a direito” (Brandão, 2002: 50).

76
Sâo limites de um a práxis em que o sujeito deve passar do
estado de vítima pára. o. de responsável por seus atos e pala­
vras, cujas determinações inconscientes se impõem à sua reve­
lia. Se tais pessoas retornam ao Judiciário, envolyidas com. novas
querelas familiares, perm ite-se então "avançar um pouco e
construir os efeitos da intervenção na vhistória desse sujeito,
obtendo mais elementos p ara refletir c construir esse cam po de
intervenção” (Barros, 1999:40).
Não há previsibilidade sobre o desfecho da intervenção
analítica, na m edida em que não cabe ao analista im por os
seus próprios ideais. Q uerer simplesmente fazer o bem e desfa­
zer os conflitos em que as pessoas se em baraçam , supondo com
isso resolver a relação do sujeito com seu desejo, é por defini­
ção impossível. N ão há nada que ensine o sujeito a em pregar
seu desejo, de modo que na experiência analítica se obtêm
destinos pardeulares p a ra cada dem anda que é form ulada.
Seguindo esse raciocínio, a inscrição da psicanálise no
campo jurídico produz um a diversidade de efeitos, que vão desde
a re-significação do conflito, a resolução dos aspectos processu­
ais, a dissolução de queixas com um simples gesto de oferecer
os ouvidos ou, na pior das hipóteses, nada acontece e continu­
am-se as disputas familiares (Brandão, 2002).
A orientação teórica no interior da psicanálise é que vai
definir se a intervenção põe em jogo o casal ou o sujeito, o que
tem como conseqüência leituras distintas a respeito do laço
conjugal.
Puget e Berenstein (1994) tem com o objeto teórico a
‘'estrutura vincular” que se form a no laço conjugal, cujo dom í­
nio é m arcado por pactos inconscientes, tipologias diferencia­
das, entre outros aspectos. Em vez de com preender esse espaço
vincular como sendo um a relação entre desejo e objeto, os
autores definem -no com o um a relação: entre eu e outro, cujo
objeto não é assimilável a nenhum a interioridade e sim ao ter­
ritório do vínculo estabelecido pelo casal.
O casal então é (...) um a estrutura vincular entre duas pes­
soas de sexo diferentes, isto é, um a relação intersubjetiva
estável enlre um ego e um outro ego, onde tem cabim ento
o m undo intra-subjetivo de cada um, e onde o vínculo,
por sua vez, ocup a um a área diferenciada da estrutura,
objetai (Puget e Berenstein, 1994: 18).

O bservam os autores que o casal não é somente a ori­


gem virtual de um a nova família* mas o desprendim ento da
fam ília de origem, donde provêm as identificações e a trans­
missão dos desejos parentais. A form ação de um novo casal
pressupõe a resolução trabalhosa, .nem sem pre acabada, de
desenlace dos vínculos familiares. A idéia de pertencim ento
contínuo à cadeia de gerações pode ser no casal fonte de p ra ­
zer ou angústia, gerando um a série de conflitos que podem
resultar na separação. E dado seu caráter de contrato inconsci­
ente, pode ocorrer de, na separação, os sujeitos saberem o que
desejam fazer, m as não de quê ou de quem se separar (Puget e
Berenstein, 1994).
P or sua vez, no ponto de vista lacaniano o que está em
jogo na escuta analítica não é o casal, o laço conjugal aí esta­
belecido, e sim o sujeito (Pereira, 1999).
Nessa perspectiva, o laço conjugal configura-se tal como
um a form ação sintom ática na m edida em que pretende fixar o
objeto causa do desejo, cuja tarefa é1impossível. A promessa de
realizar o impossível insinua-se toda vez que no casal o parcei­
ro se faz objeto de desejo do outro (Brasil, 1999). N ã o :há obje­
to capaz de satisfazer integralm ente o desejo. Desejo é por
definição desejo de outra coisa, tornando-se quase inevitável
que ele se alim ente do que está fora da conjugaliclade (Melman,
1999). O que evidentem ente não significa que o laço conjugal
seja impossível, desde que se leve em conta a dimensão da falta
que está na base do desejo.
A dim ensão do desejo tam bém é fundam ental p a ra a
criança ter um acesso norm ativo à sua posição sexual.
O ra , sabe-se que o nascim ento de um a criança gera
m udanças na tram a familiar. Ao mesmo tem po em que ela
une o pai e a mãe, ela os separa, introduzindo um a divisão não
somente entre o casal, mas no próprio campo do desejo (Miller,
■— 1998)—-------------------:------------------— --------- ----------------=— -—
C om o nascimento da criança, o pai angustia-se em face
do desejo da mãe: “Q ue quer ela então?” “Q uem sou eu, pois,
p a ra ela?” (Miller, 1998: 10), cujas interrogações não devem
obstruir o .consentimento de que o desejo feminino é sempre
enigmático.
D o lado da mãe, se a criança é requerida a preencher a
falta em que se apóia o desejo feminino, ela fica, como diz
Lacan, num a relação dual “aberta a todas as capturas fantas-
máticas” e “torna-se ‘objeto5da m ãe” (Lacan, 1998: 1). Ao con­
trário, a criança deve dividir a m ãe, de modo que deseje outras
coisas além dela: “òs cuidados que ela”, a mãe, “dispensa à
criança não a desviam de desejar enquanto m ulher” (Miller,
1998: 7).
D ependendo de como se inscreve o desejo na relação
entre a m ãe e a criança, a ação do analista se torna mais ou
m enos facilitada.
T ais conceitos devem nortear o psicólogo cuja prática
seja inspirada na psicanálise.
N ão obstante, deve o mesmo perm anecer alerta para os
riscos de tal aparato conceituai estar a serviço de mecanismos
disciplinares que, articulados à instituição judiciária, visam a
“norm alizar o quotidiano, fixar papéis sociais e regular relaci­
onam entos” (Brandão, 2002: 38). Mais do que acreditar que o
desejo, a sexualidade e o sujeito estão na origem dos conflitos
judiciais, cabe ao psicólogo interrogar, ao lançar m ão de tais
conceitos, se ele não atende às estratégias persuasivas de po­
der. P ara tanto, basta incitar cada “sujeito” a decifrar os con­
flitos entre sexualidade e aliança, sem se dar conta de que está
reforçando a tutela sobre as famílias (Brandão, 2001).

79
Isso é um problem a que não concerne somente à psica­
nálise, mas às .práticas psicológicas em geral, de m odo que
retornarem os a esse ponto ao final do texto.

Mediação familiar: a diversidade de práticas, a diferença em


relação à arbitragem e à conciliação, o paradigma de
entendimento mútuo, as experiências dos tribunais brasileiros

N um outro enfoque, a prática de m ediação, im plantada


em diversos países e recentem ente no Brasil, é inform ada por
diversas teorias e técnicas, tendo em comum o objetivo de de­
volver ao casal a com petência p ara gerar a própria solução do
conflito.
Alguns juristas adm item que, em certas áreas judicativas,
o tradicional processo litigioso não é o m elhor meio para a
reivindicação efetiva dos direitos. Entende-se então que o m o­
vimento de acesso à justiça encontra razões para cam inhar em
direção a formas alternativas de resolução de conflitos, entre
elas, a mediação. Preservando a relação, n a m edida em que
trata o litígio como perturbação tem porária e não com o ruptu­
ra definitiva, tal procedim ento é mais acessível, rápido, infor­
mal c menos dispendioso (Krüger, 1998).
O entendim ento sobre a resolução de conflitos em V a­
ras de Família comparece na exposição de motivos que o Ilus­
tre Corregedor-G eral de Justiça do Rio de Janeiro escreve, no
Diário Oficial datado em 11 de novembro de 1997, p ara a
abertura do I concurso p ara o cargo de psicólogo no T ribunal
de Justiça;
P erante as V aras de Família, tam bém se faz necessária a
presença dos psicólogos porque existem causas onde o con­
flito entre' o casal litigante, devido a sua profundidade, atinge
■ os filhos. (...) Através de entrevistas com as partes e com os

SO
filhos destas, o serviço de psicologia poderá auxiliar ate c
u m a com posição amigável do litígio, restabelecendo a h a r­
m onia entre as partes e, talvez, prom ovendo um a m udan­
ça de m entalidade dos pais em relação aos filhos,

Nos Estados Unidos, a p artir de 1974, tem-se registro


dos prim eiros trabalhos de m ediaçãocòm o sendo um a alterna­
tiva p a ra lidar com as seqüelas do divórcio e de suas disputas
baseadas no antagonism o, como vimos acima, entre vencedor
e vencido. N o C anadá, existem serviços de m ediação desde os
anos 70, cuja prática entra na legislação relativa ao divórcio
em 1985. Por sua vez, a C hina aplicada m ediação desde 1949,
tanto em nível patrim onial como familiar, reduzindo conside­
ravelm ente o núm ero de casos que chegam aos tribunais como
litígio. O recurso da m ediação é tam bém desenvolvido em países
como França, Israel, Austrália, Japão, entre outros (Vainer, 1999;
Curso, 2000).
N a A m érica do Sul, a Colôm bia, a Bolívia e â A rgentina
antecederam o Brasil no em prego das resoluções alternativas
de disputa. Som ente no início dos anos 90, a m ediação ingres­
sa no Sul do país, tendo sido fundada em 1994 a m atriz da.
instituição brasileira mais antiga de que se tem notícia - o Ins­
tituto de M ediação e A rbitragem do Brasil (IMAB) - cuja sede
é em C uritiba, no Paraná. Desde então, tal recurso passou a
ser em pregado em instituições privadas, chegando às públicas,
em particular, a p artir das Defensorias Públicas. H á hoje em
dia u m Conselho N acional das Instituições de M ediação e A r­
bitragem — CONIMA, fundado em 1997 (Curso, 2000).
D e m odo geral, a m ediação pode envolver todos os pon­
tos do divórcio ou se lim itar som ente às questões da guarda da
criança e de sua visitação. A m ed iação p o d e ser tam bém públi­
ca, privada ou ambos. Alguns program as de m ediação exclu­
em os advogados das partes, enquanto outros estimulam essa
participação. Algumas práticas são liberais e não diretivas, en­
quanto outras são mais restritivas e condutoras (Vainer, 1999).
C ostum a-se ap o n tar que m ediação não é igual à arb itra­
gem ou conciliação. ;
N a arbitragem , a solução é decidida por um terceiro, ao
qual as partes se subm etem . N a conciliação, um terceiro auxi-
Tlia-a-m anter-ou-restabeleeer-a-negoci ação-entre-os -oponentes
reduzindo as anim osidades, opinando e sugerindo novas alter­
nativas. O conciliador atua diretam ente no conflito, visando
ao acordo entre as partes. P o r sua vez, na m ediação o terceiro
tam bém ajuda a com por a negociação, com a diferença de que
as partes devam ser autoras das decisões. O m ediador atua
mais com o facilitador do que interventor ativo, restabelecendo
o diálogo p a ra que surjam das partes as possibilidades de en­
tendim ento e desfecho do conflito, i Ao contrário das outras
práticas, a m ediação deve incidir m enos sobre o acordo do que
o resgate de um canal de com unicação entre os oponentes
(Curso, 2000).

Negociação

- vVkWÇ ’'r; Hl" 1-


‘. ’-'Q uando ,a ls ^ m “im pàssé .difiçúltá a'fíçgbciáçad.su
/ e,,um terceiro ^ipolia; a^mante-Ja.oU' a-restabelece-:^
i-\ía,r' âesd-Ç' 'que-âslíváfiès .sejáifí fautores ^das*:déci^

ví^co annrativn p -na nesronstriic.ao nos:•ímnasses:‘,


’■■'^.‘'i v '^ - ' J v - 1 ' : i \ ■!'■' / '1^ -'"' ’’*■.■■,f.'^ ^,'rCl', '," f. >'''. •-' 'lltv • I,--1|>J.. I; | f| ''CJ.^V'1>h/''"i /
•:!£.©üaBdò::?uM--;têrfe&iro^

Evidentem ente, os propósitos da m ediação diferem de


acordo com o país onde ela é praticada. Se o m étodo norte-
am ericano reduz a m ediação unicam ente à resolução de con­
flitos, a ponto de ser colocada lado a lado com a conciliação e
a arbitragem com o um a das formas alternativas de julgam en­
to, a linha francesa não busca o desfecho im ediato do conflito.
Ao contrário do que recom enda o pragm atism o norte-am eri­
cano, a perspectiva francesa supõe que o m ediador deva criar
co n d iç õ e s p a ra que os a n ta g o n ista s se q u estio n em e se
reposicionem no conflito, visto este m uitas vezes como sendo
positivo e não como algo a ser extirpado^Six e Mussaud, 1998).9

9 D o s E stados U n id o s da A m érica p rovém u m grande núm ero de estudos


relativos à psicoterapia de casal e de sua necessidade no decorrer do proces­
so ju d iciário, sen d o um a obrigação social o atendim ento a situações traum á­
ticas relacionadas à separação. M as de um a m aneira geral o foco prende-se
aos p roblem as adversariais ou à necessidade dd' entendim ento m útuo sem
que sejam verificadas tentativas de sistem atização clínica das determ inações
psíquicas d o problem a, e desse m od o, a atenção acaba se concentrando nas
con seq ü ên cias e nas técnicas para rem ediá-las (Vainer, 1999).
Pode-se dizer que a diversidade de concepções e práticas
rcúne-se à luz de um a m udança de paradigm a, em que .o en­
tendimento m útuo deve prevalecer sobre o antagonism o entre
as partes. A figura do m ediador busca a resolução das contro­
vérsias de forma pacífica, evitando o litígio e indo ao encontro
de acordos que as partes possam com por entre si. Nessa pers­
pectiva, o m ediador evita fazer imposições e traz à discussão
apenas o que o casal quer negotiiar, orientando e buscando
idéias que facilitem a construção de um compromisso favorá­
vel aos antagonistas.
Ao mesmo tempo, o m ediador deve ter o cuidado de
não se deter na análise das determinações psíquicas do conflito
do casa!.. Se não se esquivar dessa tarefa, ele corre o risco dc
prolongar o atendimento para além do tempo disponível no
judiciário, além de dar um caráter terapêutico sem garantir a
resolução dos acordos necessários p ara o fim do litígio.
Na m edida em que o m ediador está atento aos proble­
mas de ordem afetiva, assinalando a im portância das decisões,
do casal e prevenindo-os sobre as conseqüências que elas acar­
retam , ele deixa os advogados livres para concretizar os acor­
dos em term os jurídicos. Em outras palavras, a m ediação
encoraja os oponentes a sé envolverem diretam ente nas nego­
ciações enquanto libera o. advogado para o suporte legal neces­
sário, que muitas vezes não consegue fazer com que o cliente o
ouça quanto áos prejuízos de sua postura (Vainer, 1999).
Semelhante preocupação em devolver às famílias a res­
ponsabilidade pelo desfecho do litígio faz parte tam bém da rotina
do Serviço Psicossocial Forense (SERPP), vinculado ao T rib u ­
nal de Justiça do Distrito Federal.
Com preendendo que o divórcio não é o fim da família e
. sim o início de um a organização bi-nuclear, em que os pais são
co-dependentes, mesmo separados, na tarefa de criar os filhos,
a equipe interprofissional do SERPP tem como im perativo a
distinção entre parentalidade e conjugalidade. Assim, ela evita
que um m em bro da família avalie a com petência parental do
outro pela competência, conjugal. Som ente com o “divórcio
• psíquico”, torna-se possível “ajudar os filhos a aceitar o divór-
çio dos pais e estimulá-los a m anter um contínuo relaciona­
m ento com am bos os cônjuges’’ (Ribeiro, 1999: 165).
^ ^ .N u m a abordagem 'sistêm ica," büsca-sè^então^compreen-
^ der. a/dinâm ica rclacionaLque deu origem ' ao litígio e o papel
de-cada m em bro .do grupo fàmiliarTna,perpetuação_da crise. È
' ’■'W
im p o rtan te,q u e cada m em bro^com preenda- seu^papebem; tal
^.dinâm ica e experim ente situações-que sugiram -m udanças.
A equipe do SERPP realiza tam bém entrevistas com os
advogados das partes, sendo considerados peças chave p ara a
reorganização do sistema familiar. Ao final, faz-se um relatório
que, em vez de apresentar sugestões formuladas unilateralm ente
pelo profissional, expõe as que foram construídas pela família
(Ribeiro, 1999).
O Judiciário gaúcho tem feito tam bém im portantes in­
vestimentos na m odernização do sistema de acesso à Justiça,
através de estruturas como os Juizados de Pequenas Causas, os
Projetos de Conciliação e, por fim, o Projeto de M ediação
Fam iliar, im plantado em 1997, através do Serviço Social J u d i­
ciário (SSJ) do Foro C entral de Porto Alegre.
Esse último projeto trabalha com 'processos encam inha­
dos pelo Projeto Conciliação em Fam ília, tratando-se dc ações
que estão ingressando no Judiciário e, portanto, ainda não
inseridas totalm ente no modelo adversarial. As famílias partici­
pam inicialm ente dc um a audiência de conciliação e não ha­
vendo consenso são informadas pelo Ju iz sobre a possibilidade
de optarem pelo processo de m ediação, dividido em etapas que
« »*
se iniciam com encontros multifamiliaresj passam p o r encon­
tros individuais e term inàm com a construção do entendim en­
to (K rüger, 1998). ■ ^
M esm o acenando-se a m ediação com o um a prática de
profundo interesse do Judiciário, vêem-se pouco problem atizadas

85
as relações de poder entrevistas num a certa pedagogia que ela
parece im plicar, a saber, de que a prevalência do entendim en­
to m útuo e do “sentir-se bem ” cm oposição' às paixões e ao
sofrim ento perm ite ensinar pais e filhos a controlar suas ações,
aperfeiçoar suas capacidades e diminuir a capacidade de revolta.

Os impactos do divórcio, os acordos em relação aos filhos, a nio-


burocratização das visitas, os pontos de reencontro

Faz-se necessário n o tar que é m uito com um a desorien­


tação do casal e da fam ília após a separação, im pondo-se a
cada um a busca de parâm etros p a ra se situar diante da nova
situação.
O desnorteam ento após a separação foi constatado na
pesquisa do Califórnia Children o f Divorce Project, o que m otivou os
profissionais a prom overem encontros sistemáticos com .os pais
e os filhos (W allerstein e Kelly, 1998).
O divórcio é o ápice de um processo que se inicia com
um a crescente perturbação do casam ento e, após sua concreti­
zação, dem oram -se anos até que os ex-cônjuges consigam con­
quistar u m a estabilidade em ocional, O problem a é que um
período de tem po que pode p arecer razoável p a ra os adultos
corresponde a u m a p arte significativa da experiência de vida
da criança.
O s filhos vêem-se com pouco .controle sobre as m u d an ­
ças im postas pelo divórcio. M uitos não têm somente dificulda­
de p a ra se ajustar a novos locais de,residência ou à queda da
situação econôm ica, m as tam bém ao colapso do apoio e da
pro teção que até então esperavam encontrar na família. C om
o divórcio, há um a dim inuição da capacidade parental. Os pais
passam a focar m ais atenção em seus próprios problem as, tor­
nando-se m enos sensíveis às necessidades dos filhos. Ao m esm o

86
tem po, relutam ou .revelam um a inabilidade p ara explicar a
eles a situação que estão vivenciando.'
Os filhos sentem-se vulneráveis, rejeitados, culpados, so­
litários, sendo muitas vezes usados, p ara agravar a situação,
-como-suportc-emocionahde^uiTrou-ambos os genitores, respon-
sabilidade p a ra a qual não se sentem prontos p ara assumir.
Não é por m enos que a criança concentra amiúde seus esfor­
ços p ara reverter a decisão do divórcio o restaurar a harm onia
familiar, sem contudo lograr êxito. ■ '
Em face desse panoram a, os pesquisadores decidiram
incluir um program a de intervenção breve destinado a propor­
cionar atendim ento psicológico e recom endações sociais e edu­
cacionais p a ra as famílias com dificuldades de elaborar a situação
de divórcio (Wallerstein e Kelly, 1998).
H á outro projeto institucional nos EUA - Famílias em
Divórcio - desenvolvido por terapeutas de família e de casal des­
de 1978, que visa a dar atendim ento e suporte-as famílias em
que o divórcio já ocorreu ou está em vias de ocorrer. Atende-
se inicialm ente os ex-cônjuges em separado, até o m om ento de
se sentirem seguros o suficiente p ara a sessão conjunta. U m a
vez ocorrida tal sessão, há um a avaliação em encontros nova­
m ente individuais, reforçando os êxitos conseguidos e estimu-
.lando novas tentativas de diálogo. A discussão a respeito dos
filhos é um ponto fundam ental p a ra a elaboração do divórcio
e a organização da família.
O trabalho com os filhos é um dos pontos mais im por­
tantes desenvolvido no projeto, por meio dos quais se diiui a
postura destrutiva dos pais, lida-se m elhor com as dificuldades
da separação e são fortalecidos os vínculos fraternos, tornando
no fim das contas.o processo de m udança familiar menos dolo­
roso.
De inspiração sistêmica, os autores de tal projeto obser­
vam que as querelas entre as partes não provêm do processo
de divórcio em si e sim dos antecedentes matrimoniais, não
sendo a separação mais do que a continuação dos conflitos
enraizados na união do casal. De diferentes tipos de casam ento
resultam diferentes tipos de divórcio (Isaacs a p u d V ainer, 1999).
Deve-se atentar igualmente p ara a regulam entação de
visitas, evitando-se modelos rígidos e preconcebidos de relacio­
nam ento que, ao fmal, possam criar dificuldades p ara o genitor
descontínuo acom panhar e participar do desenvolvimento dos
filhos. A burocratização das visitas tem o risco de criar um a
rotina às vezes inteiram ente diferente do tem po subjetivo da
criança. Françoisc Dolto (.1989) adverte que a percepção infan­
til do tempo cronológico é diferente da percepção do adulto.
Com efeito, convém ao psicólogo prom over, ju n to aos
demais profissionais, acordos de visitas quepossam m anter, como
é de direito, o estreito relacionamento da criança com seus pais.
P ara tanto, é recomendável que o tribunal informe tam bém
nas audiências sobre a necessidade de visitas do genitor, escla­
recendo e ajudando na definição e execução dos acordos refe­
rentes aos filhos (Brito, 1999a).
Alguns genitores acabam desaparecendo da vida de seus
filhos por não suportarem os constantes desentendim entos cóm
o ex-cônjuge e não concordarem com o papel de visitantes a
que são relegados. M uitos tam bém não suportam pegar os fi­
lhos na casa que um. dia j á foi sua, o que indica a .im portância
de um outro local para a visitação dos filhos.
N a França, a preocupação em proporcionar à criança o
encontro constante com os dois genitores levou à criação de
estabelecimentos chamados dc “pontos de reencontro53. Lança-
se m ão desse recurso somente quando não é possível a atribui­
ção da autoridade parental conjunta, cuja concepção veremos
adiante, ou quando um dos genitores é impedido judicialmente
de perm anecer sozinho com a criança. Os “pontos de reencon­
tro” são então lugares onde podem ocorrer visitas supervisio­
nadas por especialistas, ou ainda um local “neutro”, onde a
criança é deixada por um dos pais e pega pelo outro que lhe
visita (Bastard-e t'C árdia apud Brito, 1999a).
A necessidade de garantir à criança o direito de convi­
vência com ambos os pais é tam bém objeto de preocupação na
Suécia, onde há um projeto de "conversas cooperativas”. D e­
senvolvido com ex-cônjuges e profissionais qualificados, o p ro ­
jeto consiste em esclarecer e prom over a prática de custódia
conjunta, obtendo êxito na m aioria dos casos atendidos (Saldèen,
apud Brito, 1999a).

Guarda compartilhada e novo código civil; as experiências em


outros países, o reforço da responsabilidade parental o fim da
falta conjugal e do pátrio poder

A custódia conjunta é um dispositivo jurídico que está


relacionado, ao direito inalienável da criança de m anter o con­
vívio fam iliar, consagrado, como vimos acim a, na Convenção
Internacional. A criança tem o direito de ser educada por seus
dois pais, salvo quando o interesse torna necessária a separa­
ção, E m outras palavras, o direito prevalece sobre a noção de
interesse, m as não o exclui.
Seguindo esse raciocínio, a legislação de alguns países
estabelece que o exercício da autoridade parental seja conjun­
to após a separação conjugal, não sendo indicada nos casos cm
que o interesse da criança aponta p ara a necessidade de guar­
da m ono-parental (Brito, 1999).
N a França, por exemplo, a legislação estabelece que o
J u iz deve p rio riz a r o exercício em cbm um da autoridade
parental, m esm o nos casos em que a separação não é am igá­
vel. Por sua vez, a autoridade unilateral'só deve ocorrer nos
casos que atendam aos interesses da criança. Observa-se tam ­
bém que, em 1993, o term o “guarda”, ju n to ao Direito de
Fam ília Francês, é substituído pelo de “exercício da autoridade
parental conjunta” , n a m edida em que aquele causava muitos
conflitos. O genitor que possuía a “guarda” era considerado
detentor__de_todos. os direitos sobre a criança, de m odo que,
com a troca do vocábulo, é esperada um a nova atitude dos
genitores (Brito, 1996).
N a Suécia, desde 1973, o cqnceito de guarda conjunta
abrange todas as questões relativas a pessoa da criança. Desse
m odo, atribuir ao pai, que não possui a guarda oficialmente,
um direito ou dever de visita é considerado como limitação ao
direito de tom ar decisões no que diz respeito à criança (Brito,
1996).
O dispositivo de guarda conjunta, ou com partilhada, tem
o objetivo de reforçar os sentimentos de responsabilidade dos
pais separados que não habitam com os filhos. Privilegia-se a
continuidade da relação da criança com os dois genitores que,
sim ultaneam ente, devem se m anter implicados nos cuidados,
relativos aos filhos, evitando-se, como conseqüência da separa­
ção conjugal, a exclusão de um dos pais do processo educativo
de sua prole e a conseqüente sobrecarga do outro.
C onvém notar que tal dispositivo é. inteiram ente distinto
do de guarda alternada, em que a criança passa períodos alter­
nados na com panhia dos ex-cônjuges.
D olto (1989) afirm a que a guarda alternada é prejudicial
até os doze ou treze anos de idade, um a vez que a quebra de
um continuum espacial-social-afetivo leva a criança à dissociação,
à passividade e a estados de devaneio. Não por menos, a guar­
da alternada foi proibida n a F rança em 1984.
P or sua vez, não se trata na guarda conjunta do desloca­
m ento p o r parte da criança entre as casas de seus pais ou qual­
quer outro esquem a rígido de divisão igualitária de tem po de
convivência. Ao contrário, as decisões sobre problem as médi­
cos, escola, viagem, religião, etc. são tom adas por ambos os
genitores, enquanto a criança habita com um deles.

90
Observa-se que a guarda com partilhada, como os outros
modelos, não é panacéia para todos os conflitos-familiares. Como
observa Filho (2003), ao m esm o tem po em que ela é benéfica
para pais cooperativos, ela pode não funcionar p ara outras fa­
mílias —C ontru do - a-gu arda-com p ar-tilhada-tem-a-vantagem-d e—
ser bem -sucedida mesmo quando o diálogo entre os pais não é
bom, m as que são capazes de discrim inar seus conflitos conju­
gais do exercício da parentalidade.
E nquanto nesses e noutros países,'com o os Estados U ni­
dos, a H olanda e a A lem anha, por exemplo, a visão da criança
como sujeito de direitos-promoveu alterações na própria legis­
lação referente ao D ireito de Fam ília,' no Brasil não houve
modificação significativa na referência ià guarda de filhos de
pais separados.
C om a vigência do "Novo Código Civil”, em janeiro de - '
2003, que substitui o Código Civil de 1916, o critério de falta
conjugal na definição da guarda é definitivamente revogado,
sem que, por sua vez, tenha sido contem plado o instituto de
guarda conjunta. Em outras palavras, cai por terra a falta conjugal
mas permanece a guarda mono-parental.
Se antes com a Lei do Divórcio, como vimos acima, no
artigo 10, a m ãe ficava com os filhos em não havendo acordo
e sendo ambos os genitores responsáveis.pelo fim do casam en­
to, com o Novo Código a guarda é atribuída a quem revelar
m elhores condições p ara exercê-la (art. 1.584). Desse modo, as
regras de cessão dai guarda estão diretam ente vinculadas aos
interesses da criança e do adolescente.
O bjeto de críticas desde sua vigência, o Novo Código
não form ula nada sobre assuntos como união entre homosse­
xuais, clonagem , insem inação artificial, proteção do sêmen,
barriga de aluguel, transexualismo, exàme de DNA para inves­
tigação de paternidade, entre outros.
Por sua vez, a legislação inova ao reduzir o grau de pa­
rentesco até quarto grau, legitim ar a falta de am or como mo-

91
tivo para pedir a separação sem perda do' direito de pensão3
conceder efeito civil ao casamento religioso em qualquer culto,
estabelecer a igualdade absoluta de todos os filhos, incluídos os
adotados, abreviar a m aioridade civil de 21 para 18 anos, ne­
gar o adultério como causa preponderante na separação, entre
outros aspectos. •
O Novo Código põe fim ao pátrio poder, cujo conceito
cede lugar ao de poder familiar (art. 1.631). Com efeito, o poder
é estendido à mãe, pressupondo â divisão da responsabilidade
na' guarda, educação c sustento dos filhos. Ê se houver diver­
gência entre m arido e mulher, não prevaleee a vontade do pai,
sendo o Judiciário que concede a solução.
Estabelece1ainda no artigo 1.632 que a separação judici­
al, o divórcio e a dissolução da união estável não alteram as
relações .entre pais e filhos, senão quanto ao direito que aos
prim eiros cabe de terem em sua com panhia os segundos.
Atualmente, encontram -se três projetos de lei em tram i­
tação no Congresso que prevêem a guarda com partilhada, re­
presentando um a"nová m odalidade na posse dos filhos1•com
divisão m útua de tarefas e responsabilidades.10

10 A proposta do projeto dc Ici do D epu tado Federal T ildcn Santiago, do


P T /M G , que altera os artigos 1583 e 1584 do novo C ódigo Civil e institui
a guarda com partilhada, foi protocolada no dia 24 de janeiro de 2002 junto
ao Senador R ainez T eb ct, Presidente da Com issão R epresentativa do C on ­
gresso N acional. N o dia 18-de março dc 2002, o D epu tado Feu R osa apre­
sentou outro Projeto de Lei para instituir a guarda com partilhada, e no dia
07.11.2002 o D epu tado Ricardo Fiúza apresentou nova proposta para ser
discutida nò Congresso. T odos os projetos encontram -se em tram itação no
C ongresso N acional.

92
O m odelo.de família n a legislação brasileira não é.refle­
xo das relações vivenciadas em toda a extensão da sociedade,
muito mais heterogênea do que a lei pode pretender, e sim a
codificação nascida da preocupação do Estado em reconhecer,
nos termos legais,' os laços familiares, a definição do poder marital
e paterno, a regulam entação do regime de bens. Ao regular as
relações .entre pais e filhos, m arido e m ulher e'dependentes de
vários matizes, e ao organizar a estrutura do casam ento e do
regim e dc bens, o legislador cum pre um a função não só
normativa, mas, principalmente, valorativa, que codifica ao nível
do D ireito o lugar que cada m em bro da família e do casal deve
ocupar (Alves e Barsted, 1987).
Por sua vez, no plano das práticas, isto é, ao serem apli­
cadas, as leis apóiam e são apoiadas por m icropoderes, perifé­
ricos ao sistema estatal, que penetram no lar doméstico, invadem
o quotidiano e se multiplicam sob a form a de práticas médicas,
terapêuticas, sociais e educadvas (Foucault, 1997; Fonseca, 2002).
H á um a colonização recíproca entre o Direito e as p rá­
ticas de disciplina e norm alização. Ao mesmo tem po em que a
legislação absorve valores im anentes às práticas de norm aliza­
ção m édica ou psicológica, entre outros saberes, ela serve de
vetor e suporte para procedim entos de vigilância, controle e
exame irredutíveis às regras de Direito e suas respectivas san­
ções (Foucault, 1997; Fonseca, 2002).
A doutrina da proteção integral e a prevalência do inte­
resse da criança na definição da guarda fazem surgir a neces­
sidade de subsídios psicológicos, entre outros saberes, p ara a
decisão judicial.
C ontudo, a restrição do psicólogo ao papel de perito não
fa 2 mais do que perpetuar o conflito que perm eia a m aioria
das ações judiciais, im pondo prejuízos emocionais sobretudo
p ara os filhos envolvidos.

93
O bservam -se outras possibilidades-de atuação que pos­
sam prom over arranjos mais benéficos entre os familiares, além
de atender aos interesses objetivos, da instância judiciária.
São inegáveis as contribuições que a prática psicológica
põdêTõferecer a essa"matéria^d 0~Direit07"haja_vi.sta_a_dificulda--
de de se ab o rd ar hoje em dia as relações hum anas como se
fossem determ inadas pela objetividade jurídica (Pereira, 2001).
T odavia, não se deve perder de vista que o saber psico­
lógico aplicado às V aras de Família não é isento das relações
de poder, cabendo interrogar se ás práticas que visam a resol­
ver os impasses do quotidiano fazem proliferar mecanismos de
tutela cada vez mais sofisticados e menos visíveis.

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M agistratura, de 11 dc novem bro de- 1997.-
§■

Lidia Natalia Oobrianskyj Weber

Fontes históricas, assim como mitos e lendas, m ostram


que a adoção é um a instituição com séculos de existência. Desde
as prim eiras civilizações, costumava-se adotar um a criança como
um a form a de m anutenção da família ou para perpetuar o culto
ancestral doméstico. O objetivo principal desta m edida não era
necessariam ente “proteger a criança”, pois a filosofia do "m e­
lhor interesse p a ra a criança” tem origens recentes em todo o
m undo. N o passado, a adoção tinha somente o objetivo de ser
Aim instrum ento p a ra suprir as necessidades de casais inférteis
c não com o úm m eio que pudesse dar um a família p ara crian­
ças abandonadas; Está m odalidade de adoção é conhecida como
“adoção clássica”, e ainda hoje, no ’B rasil, este tipo de adoção
'" * * T* ff . .
predom ina em detrim ento da cham ada “adoção m oderna” cujo
objetivo é garantir o direito a toda criança de crescer e ser
educada em um a família.
O conceito de adoção tem variado ao longo da história,
tanto de m aneira legal quanto de m aneira informal. Do con­
ceito jurídico de “obtenção de um filho! através "da Lei’^ até a
■^“adoção com reais vantagens.para a .criança” do nosso Estatu­
to da C riança e do Adolescente (EÇA, 1990), um longo cami­
nho foi percorrido em todo o m undo/Transform ar as concepçõe_s
jbessoais em basadas em noções jurídicas, sociais e históricas Jé
um árduo trabalho d e ' conscientização social,' e nem sempre
leis e legisladores são suficientes p a ra a m udança de com porta­
m ento.
Existem diferentes definições de adoção e, entre elas, está
a de R obert (1989: 25), para quem a adoção é "a-criação ju rí­
dica de um laço de filiação-entre duas. pessoas” , sendo que
todas as palavras desta definição são importantes: é a criação,
através da esfera jurídica, e filiação. No Brasil, é bastante conhe­
cido o sistema de ‘'adoção” que foge do processo legal, a cha­
m ada / ‘adoção à brasileira”,8' que ocorre quando um a pessoa
registra como seu filho legítimo um a criança nascida.de outra
mulher. A adoção está em basada em um a realidade biológica,
social, psicológica e afetiva, e essa sua m ultideterm inação tor­
na-a mais complexa, apesar de que, p ara os pais, a adoção
significa simplesmente ter um filho (Weber, 2001).
Além de fontes históricas tradicionais, mitos, lendas, his­
tórias em quadrinhos, filmes e novelas tratam do tem a adoção.
A cultura através de histórias fictícias perm ite às pessoas elabo­
rarem situações afetivas que são desconhecidas e temidas ao
longo dos tempos, instituindo-se pontes conceituais que lhe fa­
vorecem a compreensão. Não é possível esquecer que antes da
adoção, sempre existe um a história que rem ete ào abandono
(mesmo que tenha sido um a ^‘entrega” para adoção) ou a m or-
te de seus pais, e isso jam ais pode ser esquecido quando se
deseja entender a perfilhação (Weber, 2001). M uitos mitos gre­
gos e romanos tratam deste tema: Hércules, um semideus, foi
adotado por Anfitrião que o preparou para a vida como seu
filho de sangue; a deusa Atenea adotou Erictônio, um a criança
nascida da semente que Hefesto, o guerreiro divino, havia der­
ram ado na terra enquanto tentava unir-se a ela através da for­
ça; o épico “Ilíada” de H om ero tam bém traz um a história de
adoção; Páris era o filho do Rei de Tróia, Priarno, foi rejeitado
ao nascer devido ao medo dos pais de um á maldição dos deu­
ses, e foi criado por um fiel colaborador de seu pai em um
local afastado. N a vida adulta, Páris conhece sua história e
procura seus pais genéticos, que acabam por acolhê-lo; a fun­
dação de R om a tam bém envolve uma história de adoção dos

100
gêmeos, R ôm ulo e Rem o, que foram abandonados e “adotados”
por um a loba e, posteriorm ente, educados p o r pastores; a his­
tória de Edipo é um referencial bastante conhecido p a ra a Psi­
cologia; existem ainda m uitas figuras místicas que pàssaram
por fugas, adoções e heroísm o, com o Perseu, H erm es e Pan,
entre outros.
N a Bíblia encontram os a história de nascim ento e da
vida de Moisés, “filho das águas”, retirado do rio pela filha do
Faraó, que decidiu criá-lo; a literatura em geral apresenta in­
contáveis exemplos cle adoções, tais como Tom Jones de H enry
Fielding, G randes esperanças de Dickens,-' M onte Cristo de
A lexandre D um as, Cosette dos Miseráveis, Hucklebeiiy Finn de
M ark T w ain, Les N atchez de C hauteaubriand, entre outros.
T am b ém existem inúm eros personagens infantis contem ­
porâneos que exploram o tem a: M ogli, o “m en in o -lo b o ” ;
Bam bam é filho adotivo de Beth e Barney no desenho “Os
Flinstones” ; “O Rei L eão” trata de questões sobre a origem
biológica e sobre o comprom isso assumido pela família adotiva
q u e e stã o sim b o liz a d a s n o film e; S u p e r-h o m e m é u m sím b o lo
sobre a necessidade dos adotivos de conhecerem suas raízes;
“T a rza n ” é um a bela história de adoções especiais, e “Pinóquio”
tam bém representa um a bonita simbologia da transform ação
de um a criança em filho (para um a revisão mais detalhada de
mitos, lendas e histórias, ver W eber, 2001).

A adoção: história e legislação

A questão de como lidar com crianças órfas e abando­


nadas existe há muitos séculos, e desde a Antigüidade, todos os
povos conviveram com o problem a do abandono e, conseqüen­
tem ente, com atos jurídicos p a ra a criação de laços de paren­
tesco. O mais antigo conjunto de leis sobre adoção foi escrito
no Código de H am m urabi, que reflete a sociedade mesopotâ-

101
m ica d o j l m ilênio a .C. O mais antigo registro de um a adoção
foi o de Sargon I, o rei-fundador da Babylônia, no século 28
a.Ç . B árbaros, os hebreus e os egípcios recolhiam as crianças
sem pais e as assim ilavam aos filhos legítimos e, p o r outro lado,
•TnHos-os-out-ros-pQvos.-par-ticularrnentc os persas, os assírios, os
gregos e os rom anos controlavam a dem ografia com severida­
de. O pai ou o E stado decidiam se deixavam o recém -nascido
viver, ou jogá-lo às ruas, ou m atá-ló.
É sabido que na vida ro m an a o, direito à vida era conce­
dido, geralm ente pelo pai, em um ritual. P ara os gregos a ado­
ção cra resultado de necessidades jurídicas e religiosas, pois
pensavam que um a fam ília e seus costumes domésticos não
deviam extinguir-se, e com o a herança som ente poderia ser
deixada p a ra um descendente direto, era possível adotar um
estranho que se converteria em filho legítimo. Em R om a, o
direito de um pai sobre seus filhos era ilimitado, assim com o
relatam as leis de Justiniano: <cO poder legal que temos sobre
nossos filhos é um atributo especial dos cidadãos rom anos,
porque nenhum outro hom em tem o poder sobre seus filhos
com o nós” (Roig e O chotorena, 1993: 13). Neste ritual, o re­
cém -nascido era colocado aos pés de seus pais. Se o pai dese­
j a v a reconhecê-lo, tom ava-o nos braços, se não, a criança era
levada p a ra fora e colocada na rua. Se a criança não morresse
de frio ou de fome, pertencia a qualquer pessoa que desejasse
cuidar dela p a ra fazê-la sua escrava (Weber, 1999a).
N a Idade M édia o papel da Igreja no que diz respeito a
questões de parentesco formulava um princípio de não superpor
as relações entre duas pessoas. Em virtude deste princípio que
estabelecia o carnal depois do espiritual na criação do vínculo
de parentesco, Leão V I estendeu a capacidade de adotar às
m ulheres e aos eunucos. Porém , a adoção teve um repentino
„ eclipse em toda a Idade M édia p ara reaparecer somente com a
Revolução Francesa, pois o direito feudal considerava im pró­
pria a convivência de senhores com rústicos e plebeus em um a

102
m esm a família (Áries e C hartier, 1991). Borgui (1990) relata
que a Igreja, durante a Idade M édia, não via com muito agra-
• do tal instituto por ele ser o oposto do casamento, pois se pes­
soas podiam gerar filhos não naturais p ara imitação da natureza
,e am paro delas na velhice, podiam por conseguinte dispensar
o m atrim ônio. H avia "tutores” que se encarregavam dos 6r^"~
faos, mas a prática de confiar os cuidados e a educação de
um a criança, órfa ou não, a outra pessoa, continuou. No .caso
desses “pais adotivos” ou “de criação” , os laços de afeto e gra-
ddão prescindiam a consagração legal de um a. nova situação
(Ariès e C hartier, 1991: 474).
N a Idade M oderna, a referência prim eira à adoção é
encontrada na D inam arca no ano de 1683, sendo que houve
influência dessa legislação no Código Napoleônico. Houve o
retorno da adoção com a Revolução Francesa, dessa vez com
interesse um pouco m aior do adotado, e por ocasião da m orte
dos pais. D o ponto de vista estritam ente jurídico, a adoção não
existia na Inglaterra entre os séculos X V III e X IX , mas so­
m ente acontecia através da instituição do “aprendizado”: ór­
fãos abandonados ou crianças cedidas pelos pais genéticos
integravam -se como aprendizes superiores. D urante séculos o
nascim ento de um filho “ilegítimo” era ostensivamente repro-
" vado, ocasionando inúmeros abortos, infanticídios ou nascimen­
tos clandestinos, e o posterior abandono da criança. Tentou-se
criar um m ecanism o social, em bora hipócrita, que solucionas­
se estes escândalos — a R oda dos Enjeitados ou dos Expostos
(Perrot, 1991).
Dessa história inicial sobre a adoção é possível tirar pelo
m enos duas conclusões: a prim eira é que a adoção nos moldes
legais foi um a exceção, e a segunda é que a adoção servia es­
pecialm ente aos interesses dos adultos e não aos^da criança
(W eber, 2001). '
A m aioria dos países europeus, com exceção da Ingla­
terra, construíram sua lei baseada no Código R om ano e, pos-

103
tenorm ente, no Napoleônico. À lei am ericana não foi derivada
do direito rom ano ou napoleônico. -Suas raízes estão nas leis
_ . _ ■ j • ;..— /
inglesas' qüe naõ previam a* adoção. A m aior barreira p ara a
introdução da adoção na lei comum estava em conflito com o
princípio de herança. A terra somente poderia ser transm itida
dejum a pessoa a outra se estivessem-ligadas p q rla ç ò s de sán-
gué, e não poderia ser dada em vida e nem após a m orte por
simples vontade do proprietário. A ádoçãò começou realm ente
a adquirir um sentido mais social, voltando-se ao interesse ,dá
criança/após a Prim eira G uerra M undial, por causa do gran­
de núm ero de crianças órfas e abandonadas, e a adoção com e­
çou a ser entendida como um a solução para a ausênáa de pais e
o ,bem-estar da criança. No entanto, depois da Segunda G uerra
M undial, este renovado interesse público pela adoção foi in->
centivado liòmente a ’recém-nascidos.
Pilotti (1988) descreve que, na América Latina, existem
indícios de que algumas formas de adoção eram praticadas na
época colonial em muitos países, mas ela foi ignorada e omiti­
da nas legislações latino-americanas até princípios do século
atual. Com o passar cío tempo houve a m udança dessa lim ita­
ção legislativa, que seguia o exemplo das legislações sobre ado­
ção dos países europeus que não criavam estado civil entre
adotantes e adotados, m antendo o vínculo de sangue, entre es­
tes últimos e seus pais genéticos. Atualmente, os norte-am eri­
canos .sao, em. todo o m undo, os mais numerosos a recorrer, à
adoção,»e “estima-se que o núm ero de crianças adotadas nos
Estados Unidos esteja em torno de 5 a 9 milhões, e este aspec­
to mostra como é im portante p ara a sociedade am ericana en­
tender e enfrentar as dificuldades nesse tipo de filiação’5(Samuels,
1990: 6).
No Brasil, o abandono de crianças não é um a situação
■ recente. M arcílio (1998: 12) relata que “o ato de expor os fi­
lhos foi introduzido no Brasil pelos brancos europeus, pois o
índio não abandonava os próprios filhos. Nos períodos colonial

104
e im perial, crianças legítimas e ilegítimas eram abandonadas
cm diversos locais "úrbános, na tentativa dos pais de livrarem -sc
do filho indesejado, não am ado ou ilegítimo” . P ara estas crian­
ças denom inadas dè enjeitadas, desvalidas ou expostas, foi copiado
o “m odelo” europeu: a “R o d a dos* Expostos” , que perm itia o
abandono anônim o de bebês. As R odas dos Expostos existiram
ern nosso país até a-década d e -1 9 5 0 ,e fomos o últim o país do
m undo a acab ar com elas. ^ **
As teses da Faculdade de M edicina do R io dc Jan eiro
m ostraram -se, inicialm ente, favoráveis à utilização d a R oda
como m edida m oralizãdora e de proteção à m ulher. Consisti­
am , algum as delas, em argum entar sobre, a fragilidade da na­
tureza fem inina, facilmente levada pelos sentidos e vítimas dos
libertinos e celibatários — hom ens inescrupulosos que não se
continham ante à tentação de seduzirem as m ulheres, tornan­
do-as sem ho n ra e obrigando-as a abandonarem os filhos à
caridade pública (Arantes, 1995: 192).
C osta (1988) fez um a com pleta reconstrução histórica
d a legislação brasileira sobre adoção (até anteriorm ente ao
Estatuto da C riança c do Adolescente), m ostrando que o insti­
tuto introduziu-se no Brasil a partir das O rdenações Filipinas,
e a Lei de 22 de setem bro de 1828 foi o primeiro^ dispositivo
legal a respeito d a adoção. A época, os textos jurídicos eram
recheados de citações rom anas, “ironicam ente m enosprezando
à herança através da tradição judaica e sua influência na ideo­
logia cristã, com o nos exemplos de Moisés e Ester, e o caso da
sabedoria de Salomão na solução de disputa de duas mães p o r
um filho” (Costa, 1988: 28). No entanto, a referência à adoção
nos textos jurídicos era bastante rara anteriorm ente à elabora­
ção do Código Civil de 1916. C osta argum enta que a inclusão
da adoção neste código foi motivo de acirrada polêm ica, e a
m esm a obteve lugar graças à autoridade c pertinácia de Clóvis
Beviláqua que alegou que “a adoção estava m uito em uso em
vários Estados brasileiros” .
As possibilidades de adoção constantes no Código Civil
brasileiro de 1916 assem elhavam -se àquelas ditadas pelo C ódi­
go N apoleônico. E ram excessivam ente rígidas e, conseqüente­
m en te , isto dificultava o seu uso social: som ente podiam adotar
f^-m aiores-deJiC Lanos, sem filhos legítim os ou legitimados.
E m 1927 foi criado o prim eiro Código de Menores brasilei­
ro (e o p rim eiro d a A m érica Latina),- que apresenta definições
^de a b a n d o n o e suspensão de pátrio poder (atualm ente cham a­
do de p o d e r fam iliar), diferença- entre m en o r abandonado e
delinqüente, e um a dupla definição de abandono - físico e moral,
m as n ã o tro u x e n e n h u m a contribuição à questão da adoção e
nem co n tribuiu p a ra dim inuir o núm ero de crianças abando­
nadas no país, apenas enfatizou a institucionalização de crian-^
ças com o u m a form a de “proteção” à infanda.
N o Brasil, no ano de 194-1 foi oficializada a prim eira
A gência de C olocação Fam iliar, na Bahia, que serviu de m o­
delo p a ra outras agências estaduais que se criaram durante esta
d écad a (Costa, 1988). Porém , ao longo do tem po, desvirtua-se
o conceito de “p ro teção ” à criança órfa e abandonada p a ra a
colocação legal de crianças em famílias com o objetivo de se­
rem utilizadas com o serviçais.
■A Lei 3 .1 3 3 /5 7 trouxe algum as modificações im portan­
tes p a ra a adoção, m as ainda estava jlonge de ser um recurso
simples: a idade m ínim a do adotante foi reduzida p ara 30 anos,
e a diferença de idade entre adotante e adotado tam bém foi
dim inuída p a ra 16 anos, perm itindo-se a adoção mesmo se o
adotante tivesse filhos legítimos, legitimados ou reconhecidos.
C om o n a Lei anterior, o vínculo de parentesco restringiu-se ao
adotante e ao adotado, m antendo-se o conceito de filiação
aditiva; os casados somente poderiam adotar depois de trans­
corridos 5 anos do casam ento.
U m passo mais am plo foi dado através da Lei 4.655/65, .
que criou a Legitimação Adotiva, pela qual o adotado ficava quase
com os mesmos direitos e deveres dó filho legítimo, salvo no

106
caso de sucessão, se concorresse com filho legítimo superveniente
à adoção. De acordo com Bulhões de Carvalho (1977), com
esta lei, passaram a coexistir duas m odalidades de adoção,
regidas diferentem ente: suma pelo Código Civil _e outra pela
nova lei: O que distinguia a Legitimação Adotiva era a preocu­
p a ç ã o com o dêstin atari o— a- enança-ab an don ada_o.u_que._j
estivesse h á três anos sob a guarda dos legitimantes e com menos
de 7 anos de idade, ,e com a equiparação em termos de direitos
e deveres com os outros filhos do casal e o desligamento com a
família de origem (excetuando-se os impedimentos matrimonias),
"v Foi som ente'com a Lei 6.697/79, com a instituição do
^ novo Código de M enores, que houve m aior progresso na ques­
tão d a adoção de crianças: passou-se a adm itir um a form a de
adoção simples, que era autorizada pelo juiz e aplicável aos m e­
nores em situação irregular e houve substituição da legitimação
adotiva pela adoção plena. C om a instituição deste Código pas­
sou a haver três procedim entos básicos p ara a adoção: a ado­
ção simples e a adoção plena regidas pelo Código de M enores,
e a adoção do Código Civil, feita através de escritura em car-
4

tório, através de um contrato entre as partes, e denom inada


tam bém de “adoção tradicional ou adoção civil” .
C om o cenário político e socia^do pais ocorrido nos anos
80 em basado pela D eclaração Universal de Direitos da C rian­
ça de 1959 e, posteriorm ente,'com Convenção das Nações
U nidas sobre os Direitos das Crianças de 1989, que previa a
observação dos direitos hum anos das crianças, ocorreu um
m ovim ento significativo em relação à proteção da infancia.
Rizzini (1995: 103) ressalta que, "assim como no início do sé­
culo, a ru p tu ra se deu por interm édio da esfera jurídica com o
advento da revogação do Código de M enores. Desta vez, con­
tudo, através de um m ovim ento social sem precedentes na his­
tória da assistência à infancia, no Brasil, que contou com a
participação de diversos segmentos da sociedade civil. Deste
processo resultaram a elaboração e a aprovação de uma nova

107
lei, o Estatuto da-C riança e.do Adolescente (ECA) (Lei 8.069',
d e ,.13.07.90),, considerada um à dás leis mais avançadas do
"mundo?. À questão da adoção do Estatuto da C riança e do
. Adolescente derivou do art. .227 da Constituição Federal, co­
nhecida como a nossa “Constituição C idadã”:... § 6° “Os fi­
lhos, h avidos ou não da relação do casamento, ou p o r adoção,
terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer
designações discriminatórias relativas à filiação”/ A im portân­
cia do ECA para-o reconhecim ento dos direi tos. d a criança no^‘
Brasil é fundam ental é, em especial, no que diz respeito à ado- ^
ção, pois passa a estabelecer como Lei a igualdade de trata-^
m énto entre filhos-genéticos e adotivos.
O correu nxaior facilitação para realizar um a adoção com
a promulgação do ECA: a idade mínima exigida para o adotante
que, antes era de 30 anos, passou a ser de 20 anos, respeitada
a diferença de 16 anos entre a pessoa que adota e a que é
adotada; aútorizou a adoção por pessoas solteiras, viúvas," con­
viventes e divorciadas; possibilitou a'adoção unilateral, que é
aquela em que o m arido, ou com panheiro, pode adotar o filho
de sua esposa (ou companheira) sem que haja ò rom pim ento
dos laços de família da criança com a sua mãe genética; adm i­
tiu a adoção póstum a, na hipótese de o candidato à adoção
^
f' - . —
T-
falecer no curso do processo*, e garantiu o pleno direito à suces-
+4* - - •>\
. são do filho adotado. No ECA houve o avanço p a ra a teoria
- da proteção integral èm lugar da m era proteção ao menor em situação
irregular. T am bém houve unificação das duas formas de adoção
previstas no Código de M enores: a adoção plena e a adoção sim­
ples, que passam a não existir mais; existe a adoção que é plena
e irrevogável e-será; “deferida quando apresentar reais v a h ta -//
gens para o adotando e fundar:se ’em ,m otivos legítimos”. O
ECA passa a prom over a adoção como prim ordialm ente um
,atò de amorne não simplesmente um a questão dc interesse do
adotante. É im portante ressaltar que, com a im plantação do
Estatuto da C riança.e do Adolescente, o termo “m en o r” caiu ,

108
cm desuso, a partir de m ovim entos de pesquisadores e de defe­
s a dos direitos (Weber, 2001: 61).

No entanto,- apesar dos avanços legislativos, todo o pro­


cesso jurídico p ara a adoção é considèrado^lento ér burocráti-^
co” pela m aioria dos adotantes, tanto aqueles que passaram
pelo processo quanto por aqueles que nunca en traram num
Ju izad o da'Infância e da Juventude (W eber e Cornélio, 1995;
W eber 2001). A percepção destas dificuldades e “burocracias”,
no linguajar dos adotantes, passa a ser, de certa form a, um
incentivo p a ra que ocorram ilegalidades na esfera da adoção,
acrescidas do fato de que os brasileiros, em geral, querem ado­
tar bebês da cor branca, cujo núm ero é reduzido p a ra a ado­
ção (de certa form a porque a m aioria tende a ser acolhido por
um a adoção informal). N o Brasil, é bastante difundida a práti­
ca dc registrar um a criança com o filho legítimo, através de um
registro falso em cartório mas que apresenta sanções civis para
este tipo de adoção:
■ 1. ^Anulação de registro — na “adoção à' brasileira” , registra-se
o filho com o próprio, ou seja, nascido daqueles pais. (...)
T rata-se de um a simulação e a conseqüência é, desde logo
a anulação do Registro Civil que cancela todo ato simula-
do.
2 ., Perda da criança - m esm o tendo em vista o fim nobre,
b' ' ‘-“r*
com o o ato im pugnado se revestiu dc iiicitude, pode ocor-
^ rer, tam bém , desde logo, a tom ada d a criança dos pais
v ’"*V “falsos” ou “postiços”.
%
’V 'Ò 'a r t . 242 do Código Penal estatui: “d ar parto alheio
com o próprio; registrar, como seu, filho de outrem ; ocultar
recém -nascido ou substituí-lo, suprim indo ou alterando direito
inerente ao estado civil. Pena - reclusão de 2 a 6 anos” . Em
1981 foi incluído parágrafo único, que tem a seguinte re d a ç ã o :.
“Se o crime é praticado por motivo de. reconhecida nobreza:
Pena —detenção de um a dois anos, podendo o juiz deixar de
aplicar a p en a”. M esmo dentro desse espírito de “reconhecida

109
n o b re z a ”, o ju iz co ndena c im põe a p en a e, em u m segundo
m om ento, concede o perdão judicial. O réu n ão cu m p re pena
n em se to rn a reincidente, m as h á inscrição do seu norrie no rol
dos culpados. Im p o rtan te se faz a contem plação de cam panhas
de-eselaredm ento-à-população_e_um a: adequ a d a equipe técnica
p a ra lidar com a questão nos Juizados da I n fa n d a e da Ju v e n ­
tude.
N a verdade, o que é preciso é um processo m aior de
esclarecim ento e conscientização acerca da im p o rtân cia da le­
galidade do processo de adoção, assim com o a facilitação e
desentrave burocrático que ainda reveste a questão do ab a n ­
dono de crianças nas instituições, que passam a ser crianças
abandonadas de fato em bora nem sem pre de direito. Além do
m ais inexiste um a definição de “ab an d o n o ” no-E C A , o que
perm ite que crianças perm aneçam longos anos em instituições,
coriíígurando-se em “filhos de ninguém ”, sem condições de
reintegração com sua fam ília de origem e sem possibilidade
legal dé serem adotados, pois o po d er fam iliar ain d a pertence
a seus pais genéticos. Além do mais, parece evidente que o
term o “adoção à brasileira” pertence a um tipo de jarg ão pejo­
rativo, um a m aneira de ironizar o nosso próprio “jeitinho b ra ­
sileiro” : Talvez seja hora de m udarm os essa denom inação; este
processo pode ainda.ser cham ado de “adoção direta” ou m e­
lhor, “adoção inform al” (W eber e Kossobudzki, 1996; W eber,
2001 ).
Eni 15 de abril.de 2002 foi decretada a Lei No. 1.0.42 K
q u e ' e ste n d e 'à m ãe adotiva o direito à licença-m aternidade,
alterando a Consolidação das-Leis do T ra b a lh o , aprovada p e lo ,
D eereto-Lei No. 5.452, de Io. de maio de 1943, e a Lei No.
8.213, de 24 de julho de 1991, designando a devida im portân­
cia da constituição da família p o r adoção. U m resum o dessa
Lei assegura que:
“Art. 392-A., A em pregada que adotar ou obtiver guar­
da judicial p ara fms de adoção de criança será concedida íicen-
ça-m aternidade nos term os do art. 392, observado o disposto
no seu § 5U.
§ Io N o caso de adoção ou guarda judicial de criança até 1
(um) ano de idade, o período de licença será de 120 (cento
e vinte) dias.
'$~2'°~No~caso-de-adoção-Oii,gfuarda judicial de criança a p ard r
de 1 (um) ano até 4 (quatro) anos de idade, o período dè--
licença será de 60 (sessenta) dias.
§ 3o N o caso de adoção ou guarda judicial de criança a partir
de 4- (quatro) anos até 8 (oito) anos de idade, o período de
licença será de '30 (trinta) dias.
§ 4o A licença-m aternidade só será concedida m ediante apre­
sentação do term o judicial de guarda à adotante ou guardiã”
A Lei, em bora extrem am ente oportuna, diferencia e traz
m aiores privilégios para adoção de bebês até um ano de idade,
fazendo com que crianças institucionalizadas continuem en­
contrando poucas oportunidades d e ; adoção pelos brasileiros,
que preferem adotar bebês recém-nascidos, brancos e saudá­
veis (W eber e Kossobudzki, 1996; W eber e Cornélio, 1995;
W eber e Vargas, 1996).
N o dizer de M arcílio (1998: 227), o Estatuto da Criança
e do Adolescente foi tão euforicam ente recebido, que se che­
gou a afirm ar que “ele prom ove, literalmente, um a revolução
copernicana neste cam po”, mas apesar de todo otimismo pre­
visto, a realidade m ostra que ainda há muito chão pela frente
p a ra que os direitos cheguem à vida real.

Perfil das famílias por adoção no Brasil

As estatísticas oficiais em relação ao abandono e à ado­


ção no Brasil não estão agrupadasi em um único cadastro que
possa ser acessado pelos interessados. P ara saber as caracterís-

111
ticas e o perfil de adotantes e adotados no Brasil seria necessá­
rio reportar-se aos mais de 2000 Juizados da Infância e da
Juventude do país. O trabalho mais completo desta natureza
até o m om ento (Weber, 2001) foi um a tese de doutorado que
investigou diversos aspectos da adoção com 400 pessoas em 17
Estados e 105 cidades brasileiras. Desta m aneira, um breve
resum o dos principais dados encontrados p o r W eber será
apresentado a seguir:

Sobre os adotantes

9 Estado civil dos adotantes: casados (89%); solteiros (8%); separa­


dos e viúvos (3%)
0 Idade dos adotantes: a idade m édia da mãe adotiva no m om ento
da adoção era de 32 anos e do pai adotivo, 37 anos;
° Cor da pele dos adotantes: 96% das mães e 86% dos pais são
brancos;
° Religião: predom ina a religião católica (65%); no entanto, os
adotantes protestantes (18%) e os espíritas (15%) estão repre­
sentados nas famílias adotivas pesquisadas em m aior núm ero
do que na população em geral;
®Escolaridade dos pais adotivos'. 50% das mães adotivas c 48% dos
pais adotivos está cursando ou possui curso superior;
6 Renda salarial familiar, variada, encontrando-se famílias cuja
renda é de três salários mínimos mensais até famílias com
mais de 100 salários mínimos mensais. A m aioria das famíli­
as adotantes (73%) possui renda familiar variando entre 3 e
30 salários mínimos mensais;
0 Profissão dos adotantes: as mães adotivas têm profissões que exi­
gem nível superior (34%), em outras profissões de nível prim á­
rio ou secundário (31 %), não exercem atividade rem unerada
fora do lar (27%) ou estão aposentadas (5%). Os pais adoti­
vos exercem advidades profissionais que exigem nível supc-
. rior (31%); 58% têm um a profissão què exige nivel prim ário
ou secundário- e-9% estão aposentados; observa-se que 87%
das m ães "adotivas solteiras têm curso superior e profissão
com patível com a escolaridade;
• Existência defilhos genéticos'. 49% das famílias adotivas têm filhos
genéticos, sendo que 84% dos filhos genéticos foram gerados
antes da adoção;
o Motivo para não ter filhos genéticos: 80% afirm aram que não ge­
raram filhos por questões de infertilidade ou esterilidade; 9%
são solteiros; 7% afirm aram que optaram por não ter filhos
genéticos e 5% relataram “outros motivos”;
• Número de filhos adotados'. 54% adotaram somente um a criança
e 46% adotaram duas ou mais crianças:
• Idade da criança adotada: 71% adotaram um bebe com até três -
meses de idade; 14% adotaram crianças até dois anos de ida-y
de. H ouve, portanto, somente 15% de adoções de crianças
com mais de dois anos de idade (consideradas adoções tardi­
as);
• Cor da criança adotada'. 71% adotaram uma criança de cor branca;
24% adotaram um a criança de cor parda; 4,5% adotaram
u m a criança de cor negra e 0,5% adotou um a criança de cor
am arela. C om o a ad o ção de um a crian ça m estiça p o r
adotantes brancos é considerada, no Brasil, como adoção inter-
racial, houve 28% de adoções inter-raciais se for considerada
a cor da pele da m ãe, e 26% , se for considerada a cor da
pele do pai; desse total de adoções inter-raciais, somente 4%
foram de adotantes brancos e crianças negras;
0 Saúde da criança adotada: a m aioria absoluta de crianças era
perfeitam ente saudável (75%); as outras possuíam algum pro­
blem a de saúde no m om ento da adoção, mas geralmente,
sem gravidade;
0 Gênero da criança adotada. a preferência por meninas (57%) em
relação a meninos (43%) não é estatisticamente significativa;

113
Adoção legal ou informal

• Tipo da adoção: as adoções dividem-se em “legais” (52%), rea­


lizadas através dos Juizados da Iníancia e da Juventude do
pãis f as “inform ais—f4 8 % ^ As-informais ocorrem quando
' um bebê é registrado em cartório como filho genético (42%)
e q u ando um a criança passa a fazer parte da família adotiva
m as sua certidão de nascim ento contínua em nom e dos seus
pais genéticos (6%) - tam bém as conhecidas como “filho de
criação”; ;
’* Tipo das adoções versus avaliação dos Juizados da Infanda e da Juven­
tude: a m aioria absoluta dos adotantes que realizaram um a
adoção legal ou inform al avaliou, negativam ente o trabalho
realizado pelos Juizados da Infancia e da Juventude em rela­
ção à adoção (76% e 89% , respectivamente);
e Tipo das adoções versus nível de escolaridade dos adotantes: adotantes
com nível de escolaridade superior apresentaram m aior ten­
dência em realizar adoções legais. Dos adotantes com nível
superior, 70% dos pais e 80% das mães fizeram adoções le­
gais, enquanto som ente 30% dos .pais e 20% das mães reali­
zaram adoções informais; 51% dos adotantes com .escolaridade
até .1° G rau realizaram adoções informais e somente 26%
dos adotantes com escolaridade de 2“ e 3" Graus fizeram esta
escolha;
c Tipo das adoções versus renda familiar, adotantes com m erior ren ­
da fam iliar apresentaram tendência para realizar adoções
informais. Os dados m ostram que 56% dos adotantes que
têm renda fam iliar até 15 salários mínimos fizeram adoções
informais, enquanto 24% dos adotantes com renda superior
a 15 salários m ínimos fizeram este tipo de adoção;
* Tipo das adoções versus período de tempo passado desde a primeira
adoção: m aior freqüência de adoções informais ocorreu antes
de 1991, ou seja, antes da prom ulgação do Estatuto da C ri­
ança e do Adolescente (1990), que veio p ara facilitar o trâmi-

114
' • te dos processos legais; 64% das ádoções informais ocorre­
ram antes de 1991 è 36%, depois de 1991; por outro lado,
2,1% das adoções legais ocorreram antes de 1991 e 79% das
adoções legais ocorreram depois de 1.991; ■
* Tipo das adoções versus maneira como a criança chegou alè os adotantes:
crianças adotadas legalmente geralmente vêm ^elnstiíuições,
e crianças adotadas inform alm ente vêm através de m ediado­
res. A m aioria absoluta das crianças adotadas legalmente (83%)
veio de instituições e 10% de hospitais, enquanto §2% das
crianças adotadas informalmente chegaram àos adotantes por
meio de m ediadores, e 20% foram entregues pela própria
m ae biológica ou foram deixadas na porta dos adotantes; 12%
das adoções informais vieram diretam ente de hospitais e /o u
i matemidades, pressupondo a intermediação da equipe médica;

Motivação para a adoção

6 Motivação para adoção: a m aioria dos adotantes"(63%) adotou


um a criança p a ra resolver um a necessidade em sua vida: hão
pôde gerar filhos genéticos, ainda era solteiro ou um filho
seu havia falecido; 35% *dos adotantes alegaram motivações
. altruístas (encontrar um a criança abandonada, compromisso
social etc.) quando decidiram adotar, um a criança;
* Motivação para adoção versus rendafamiliar, .a adoção cuja motiva­
ção é altruísta ocorreu com m aior freqüência em famílias com
m enor renda familiar. Enquanto 47% dos adotantes que têm
um a renda salarial'até 30 salários m ínim os'realizaram uma
adoção p o r motivos altruístas, 26% dos adotantes com renda
superior a 30 salários m ínimos realizaram uma adoção altru­
ísta;
* Motivação para adoção versus escolha das características da criança', os
'adotantes cuja m otivação foi a infertilidade fizeram maiores
exigências em relação aos atributos físicos da criança a ser

115
adotadà. Adotantcs que adotaram porque não tinham filhos
genéticos m ostraram m aior preferência por determ inados
atributos físicos da criança (35%) do que aqueles que adota­
ram por motivos altruístas (7%)'.

Opiniões sobre situação atual da adoção no país


0 Pessoa apta para adotar urna criança segundo os filhos adotivos: os
filhos adotivos pensam que um a pessoa apta para adotar um a
criança é aquela que “possui condições financeiras” (28%),
“deve ter muito am or” (19%) e “ser responsável” (15%);
° Fatores para o êxito de uma adoção: a m aioria d os pais adotivos
(39%), dos filhos adotivos (4-8%) e dos filhos, genéticos (48%)
afirm aram que o “am or” é o fator essencial p ara c sucesso
de um a adoção. No entanto, somente os filhos adotivos fala­
ram da necessidade de “diálogo”, e os filhos genéticos ressal­
taram a necessidade de algum tipo de "ação concreta” para
a construção da relação;
• Importância da preparação, para à adoção: apesar de pais adotivos
(58%). filhos adotivos (52%) e filhos genéticos (72%) concor­
darem em m aioria que a preparação é im portante, os pais
adotivos discordaram mais freqüentem ente (32%) e filhos
adotivos e genéticos são os que mais têm dúvidas (21% e
17%, respectivamente);
0 Existência de algum tipo de preparação para a adoção para os adotantes: *
"7 * ^
a m aioria absoluta (79%) dos pais adotivos não teve quai­
s q u e r tipo dè preparação prévia a adoção; 4 2 % os filhos ge­
néticos foram preparados por seus pais e para 42% deles a
adoção foi um a surpresa;
Preparação prévia para a adoção, versus atributos dos filhos adotivos
segundo os adotantes: pais que tiveram algum tipo de prepara­
ção para a adoção citaram , com maior freqüência, atributos
positivos em relação ao seu filho, adotivo: 89% dos adotantes x

116
que tiveram preparação falaram características positivas so-
^bre seus.ülhos,..-.eis,7;0®/p--dos adotantes que não passaram por
preparação,' falaram positivam ente.

Desenvolvimento, educação e relacionamento dos filhos adotivos


° Principais características atribuídas aos filhos adotivos por seus pais: a
m aioria absoluta dos pais adótivos (74%) falou, em prim eiro
lugar, de características positivas de seu filhò adotivo. Entre
todas as características atribuídas ao filho adotivo, as princi­
pais foram "‘ser, afetivo” (2.1). e “ser alegre” (14%);
* Dificuldades na educação dojitíio adotivo segundo seus pais: a m aioria
absoluta dos pais adotivos (69%) afirm ou não-ter encontrado
dificuldades na educação do filho adotivo, ou m encionou que
as dificuldades foram naturais como em qualquer família;
* Dificuldades na educação do filho adotivo versus idade da criança no
momenlo da adoção: pais adotivos que adotaram crianças com
idade acim a de dois anos, relataram maiores dificuldades na
sua educação: 25% dos adotantes que adotaram um a crian­
ça até dois anos, relataram dificuldades na educação, enquanto
38% dos adotantes que adotaram um a criança com mais de
dois anos afirm aram terem experim entado dificuldades;
° Dificuldades na educação dofilho adotivo e dofilho genético: a m aioria
absoluta dos adotantes que têm filhos genéticos afirmou que
as dificuldades encontradas na educação dos seus filhos fo­
ram semelhantes (61%);-
i. ■"-jJ ■v t
a Dificuldades no relacionamento afetivo com ofilho adotivo: a m aioria
absoluta dos pais adotivos (76%) afirma que não encontrou
dificuldades no relacionam ento afetivo com o filho adotívo;
6 Dificuldades no relacionamento afetivo com o filho adotivo versus idade
da criança no momento da adoção: a adoção dc crianças com mais
de dois anos de idade trouxe aos pais maiores dificuldades no
relacionam ento afetivo; 13% dos adotantes que adotaram

117
crianças com m enos de dois anos tiveram dificuldades en­
q u a n to 72% dos adotantes que adotaram crianças com mais
de dois anos relataram dificuldades, com o relacionam ento
afetivo de seu filho adotivo. N o entanto, essas dificuldades
~ fn ra m -su p e rad a s-c-n e n h u m filho que dem onstrou estar insa­
tisfeito com a relação atual foi adotado tardiam ente; .
* Dificuldades no relacionamento efetivo com ofdho adotivo versus moti­
vação para adoção: ter adotado u m á criança p o r infertilidade
. ou p o r altruísm o não tem relação com encontrar dificulda­
des no relacionam ento afetivo com i o filho adotivo; 84% de
adotantes cuja m otivação foi infertilidade não encontraram
dificuldade no relacionam ento afetivo e 78% dos adotantes
cuja m otivação foi altruísm o não encontraram dificuldades
neste tipo de relacionam ento com seu filho adotivo;
• Os adotantes aconselham outras pessoas a adotar uma aiahça? A maioria
absoluta dos pais adotivos (69%) afirm ou que aconselha ou­
tras pessoas a realizarem um a adoção porque se sente feliz
com a sua própria decisão,

i
Preconceito e discriminação social pela família adotiva

* Filhos adotivos pensam que as pessoas tratam de maneira diferente as


pessoas adotadas? A proxim adam ente m etade dos filhos adoti­
vos (51%) afirm ou que, de m aneira geral, os outros tratam
de m aneira diferente e discrim inam as crianças que foram
adotadas;
• Sentimentos dos filhos adotivos em relação à sua possível parecença com
os pais adotivos: a m aioria dos filhos adotivos está satisfeita com
a sua situação, sejam parecidos ou. não com os pais adotivos:
32% acham-se parecidos e gostam da situação, e 25% acham-
se diferentes m as tam bém gostam da situação. Somente 13%
afirm aram que se acham diferentes e gostariam de ser pare­
cidos com seus pais adotivos;

118
• Filhos adotivos indicam as pessoas que os discriminaram: a m aioria
das autudes discriminatórias em relação aos filhos adotivos
•veio de.am igos (37%), da família (33%).ou tanto de amigos
quanto da família (17%);
• Sentimento de vergonha sobre a adoção de membros da família adotiva:
—ést€Tdã"do- re vela-difere nças-entre-os-trêsTgFupos-pesquisados:
a m aioria absoluta dos pais adotivos (63%) afirmou que nun­
ca sentiram vergonha da sua situação ou, ao contrário, sen­
tem orgulho (19%). A m aioria absoluta dos filhos adotivos
respondeu que não sentem vergonha (71%), mas nenhum falou
que tem orgulho desse fato e 26% sentem-se envergonhados
ou procuram não falar.do fato;
8 Sentimento de veigonha dosfilhos adotivos versas idade em que ocorreu a
revelação: filhos adotivos que souberam de sua adoção depois
dos seis anos e /o u por terceiros, sentem mais vergonha da
sua condição;
° Dificuldades na educação do filho adotivo versus discriminações sofridas
pelo filho adotivo: o filho adotivo ter passado por discrim ina­
ções está ligado ao fato de os pais adodvos relatarem dificul­
dades em sua educação; enquanto 21% dos pais que relataram
que o filho adotivo nunca sofreu discrim inação encontraram
dificuldades na educação de seu filho,! 53% dos pais cujos
filhos adotivos já sofreram discriminação, tiveram dificulda-.
des com a sua educação;

Alguns fatores principais da dinâmica da família por adoção


• Pais adotivos revelaram a adoção ao seu filho adotivo? A- m aioria -
absoluta dos pais adotivos contou a origem ao seu filho, e
somente 4% não fizeram e nem pretendem fazer esta revela-
' ção;
“ Filhos adotivos indicam,a pessoa quefe z a revelação, sobre adoção: foi a
mãe quem filou com o filho.sobre a adoção, na m aioria das'

119
vezes (43%) t , em segundo lugar (23%), aparecem .ambos os
pais; . . . .
° Como ocorreu a revelação sobre a adoção ao Jilho: Em prim eiro lu­
gar, os filhos que responderam a essà questão, falam , que a
revelação foi feita de form a/natural (26%); em segundo lugar
(24%) eles disseram que a revelação ocorreu de m aneira'for-
mal, mas em terceiro liTgar (15%). os filhos adotivós afirm a­
ram que souberam da sua adoção em um momento de conflito,
em meio a brigas familiares;
0 Idade em que oJilho adotivo soube de sua adoção: a m aioria absoluta
dós filhos que foram adotados precocemente (79%) afirmou
que soube de sua adoção pela mãe e /o u pai, antes dos seis
anos cíe.idade; 22% souberam sobre sua história de m aneira
pouco adequada: tardiam ente pelos paisj ou por terceiros;
* Idade em que o filho adotivo soube de sua adoção versus. sentimento de
vergonha por ser adotivo: aqueles que souberam depois dos^seis
anos sentem mais vergonha da sua condição de adotivos (46%)
do que aqueles que souberam antes dos seis anos (28%);
0 Tipo de informação que os filhos adotivos têm sobre sua família de
• ongem: a m aioria absoluta dos filhos adotivos (84%) não tem
nenhum a informação sobre sua origem, somente, sabe que
era um a família pobre;
a Os'filhos adotivos desejam ter mais informações sobre sua família de
origem? A maioria absoluta dos filhos adotivos (62%) pénsa'
que ter informações sobre sua família de origem não é im-
- • portante; 32% dos filhos pensam que é bom. conhecer sua
* história;
° Filhos adotivos têm interesse de. conhecer pessoalmente sua família de
. origem? A rhaiòria absoluta dos filKos adotivos (58%) não qüer
conhecer sua família de origem ou não gostou.de conhecê-la;
13% foram fruto de adoção tardia e afirmaram que gosta­
ram de ter conhecido sua família e 18% gostariam realm ente
de conhecê-la pessoalmente; para os, outros isso é indiferente
ou deixaram a questão sem resposta; :

120
• Sentimentos dosfilhos adoduos por seus pais genéticos: 45% dos filhos
adotivos afirm aram -que não tem nenhum tipo de sentim en­
tos p o r sua fám üia de origem; 28% referiram -se a sentim en­
tos negativos e 22% falaram de sentimentos positivos;
° Primeira palavra associada com adoção para pais adotivos, filhos ado­
tivos efilh ó sgenéticos: p a ra os três grupos de sujeitos, a palavra
que sé assòcia à adoção' é “ám ór”;V
? Tratamento dos pais adotivos aosfilhos genéticos e adotivos: a m aioria
‘-.ab so lu ta .d o s filhos adotivos (63%) e genéticos (75% )'acham
que òs^pais trataram todos os filhos da m esm a m aneira, e 9%
dos adotados, pensam que receberam tratam ento m elhor do
que seus irmãos; 1
• Como o filho adotivo estaria mais feliz? A m aioria absoluta dos
filhos adotivos;(83%) .afirm ou q u e 1seu*lugar de felicidadevé
com . os-.pais, adotivos; *16% não responderam ou deu outra
resposta sem relação com família e som ente um filho respon­
deu que estaria m elhor com sua família de origem;
o Sentimento dos filhos adotivos em relação a seus pais adotivos: a m ai­
oria absoluta (93%) afirmou que sente am or e percebe-os como '
. "pais; 5% afirm aram que eles são como estranhos, e 3% dei­
x aram a questão sem resposta.

Os papéis do psicológo nas equipes técnicas dos Juizados da


Infância e da Juventude: algumas considerações sobre seleção e
acompanhamento

A participação do psicólogo em processos de decisão


jurídica está m arcada pelo seu caráter multidisciplinàr^.e é um a
prática cada vez mais. reconhecida. Os critérios p a ra a adoção
não têm sido constantes através dos anos, pois recebem influ­
ência de variáveis legais, psicológicas, sociais, jurídicas etc., que
c o n trib u em p a ra a construção de sua im agem e seu valor atu-
^ al. A im p o rtân cia da intervenção profissional do psicólogo vem
v deteiTnm ada por u m a dupla necessidade de prognosticar o]êxito
e p rev en ir possíveis disfunções. À adoção é sem pre um a situa-
-------- ----- -ç ã o com plexa, pois sua essência consiste em criar.um processo
segundo’o, quãl se realiza a transição de um a criança dãXamí-
lia biológica à fam ília a d o tiy a r Neste processo estão presentes
o u tras tan tas variáveis im portantes p a ra o desenvolvim ento
psicológico e social d a criança, especialm ente com o foram vivi­
das e refle tidas, tais com o abandono, ruptura, institucionalização
etc.

A motivação dos candidatos à adoção .


D ados de pesquisas (W eber, 1999a, 1999b, 2001) reve­
lam que a m aioria dos adotante.s pensou em ad o tar m uito an­
tes de ir a um Ju iz a d o e, no Brasil, quase m etade dos adotantes“
V "realiza adoções:inform ais. Assim,1 é preciso analisar que exis­
tem alguns sinalizadores im portantes p ara que os adotantes
pensem antes em adoção: artigos de jornais, program as de T V ,
e n c o n tro s, congressos etc. O ,p r in c ip a l m otivo a in d a é a
infertilidade, m as a m otivação pelo altruísm o ou a com binação
de ^infertilidade e altruísmo te m ; sido um a característica que
está figurando mais freqüentem ente nos dados de pesquisas. Se
as pesquisas não têm necessariam ente encontrado m aiores difi­
culdades nas famílias adotivas que adotaram por. motivos al­
truístas, então é preciso pensar n o recrutam ento de pessoas,
sendo que as cam panhas p a ra isso deviam entender quem con­
sideraria um a adoção e com o converter a disposição’em um a
►ação. É preciso com preender que, apesar de a infertilidade ser
a principal razão p a ra o desejo de adotar, não necessariam ente
quem realm ente adota é infértil. H á quem já tenha filhos gené­
ticos e não possa mais ter outros filhos, ou pode ter decidido

122
pela adoção de um segundo ou terceiro filho. Existem pessoas
solteiras que não são inférteis mas querem filhos e há verdadei­
ros atos dc generosidade motivados social ou religiosamente,
definidos pelos adotantes como com paixão, em patia, desejo de
contribuir e convicção de que tem algo a dar.
---------- Parker-(-l 999.).áfimia_q.ue. os dados de pesquisas america-
nas revelam que a m elhor com binação p ara que os adotantes
tenham um a avaliação positiva da adoção tem sido a com bina-'
ção de infertilidade e altruísmo, pois a m aioria dos adotantes
nessas condições tem consciência de que há um a m istura de
suas próprias necessidades e as dà criança.JCJm importante grupo
de adotantes nos Estadós Unidos~(cerca de 34%) tem sido os *
fosterparentS) o caso de nossos “p aisjo çiais” das Casas-Lares ou
program as como “pais de pjantão”, e há que se definir e re­
pensar m elhor este tipo de situação. Geralm ente eles são pou­
co considerados em ripssa realidade porque ^são “contratados v
vpara cuidar”- e não estão necessariam ente na “fila” do cadas-
tro, mas o nascim ento dc um vínculo de afeto que certam ente
pode beneficiar a criança não deve ser desprezado. O tem a
. ainda é carregado de polêm ica. H á argum entos que mostram
que a institucionalização da figura dos pais sociais carrega o
risco de perpetuar à situação de abrigo das crianças submetidas
a essa form a de cuidado, e nesse sentido ps “pais sociais” en-
<trariam em conflito com ò que prega o ECA, cuja prioridade é , .
colocar as crianças em condições o mais próximas possível da^
vida familiar. O utros argum entos enfatizam que as Casas-lares
e, conseqüentem ente, os pais sociais, parecem ser um a boa al­
ternativa p a ra um a fase de transição que tenta m inim izar os
efeitos maléficos da institucionalização. N a impossibilidade de
se acabar rapidam ente com as grandes instituições, as casas-
lares, que geralm ente abrigam 10 crianças ao máximo, poderi­
am. ser u m a alternativa viável p a ra que a criança outrora
abrigada em grandes instituições possa ter um a vida mais p ró ­
xim a de um am biente familiar. A polêmica revela que muito
ainda há para se discutir sobre o tem a e planejar pesquisas que
possibilitem a compreensão mais acurada das variáveis im por­
tantes em todo esse processo.
A motivação sempre deve ser um fator de investigação
dos candidatos, em bora ninguém tenha muito claro quais são
os sinalizadores realmente .negativos, a não. ser aqueles que
indiquem casos patológicos. A im portância da m otivação está
ligada ao fato de que ela está fortemente, relacionada às expec­
tativas que os adotantes têm da ádoção, ou seja, reflete no com ­
promisso e satisfação da adoção, mas se falamos em um a
preparação p ara adoção e não apenas um a seleção de candi­
datos “naturalm ente mais aptos”, a situação.m uda de figura.
Técnicos e pesquisadores {tais çomo Jpfré, 1996) indicam casos
em que a adoção não seria indicada pela motivação 3os candi­
datos. tais como a perda recente de um bebê ou famílias que
possam ter filhos genéticos mas optam por um a adoção. Q ues­
tionamos todos os pareceres negativos antecipados, ou seja,
. ninguém deveria ser excluído a priori, antes de ter passado pelo
processo de preparação para a adoção, pelo qual se poderiam
conhecer mais completam ente os motivos é expectativas dos
postulantes. Algumas equipes técnicás têm políticas que exclu­
em os candidatos .em fases m uito precoces, e isso pode fazer
com que muitos candidatos desistam e procurem outra m anei­
ra informal de adotar, ou aparecem nos Juizados com as famo-
,sas “ad o çõ es.prontas'*. De fato, parece existir um a velada
hierarquia p ara se escolher um candidato como aprovado em
alguns casos; por exemplo, os solteiros parecem somente con­
seguir se um casal não for encontrado. Os serviços de adoção
precisam rever seus critérios de tempos em tempos pois há
m udanças sociais pertinentes que devem ser incorporadas.
Ao se falar de candidatos à acloção, não é possível deixar
de lado um outro im portante tem a sempre presente nos deba­
tes:.a adoção por homossexuais; Em bora a legislação brasileira
nao contemple a adoção por casais homossexuais, um a vez que

124
não exista juridicam ente o casam ento entre parceiros hom os­
sexuais, j á existem alguns casos nacionais em que pessoas
declaradam ente homossexuais realizaram um a adoção com o
solteiros. O tem a da orientação sexual de um a pessoa e do
direito ou não de adotar um a criança é essencialm ente polêm i­
co e a discussão está presente até mesm o em outros países.
Lasnik (1979) destaca que um a pessoa hom ossexual p ro cu rar
um a criança p a ra adoção não é sinônim o de consegui-la, m es­
mo nos Estados Unidos c não é sequer possível saber quantos
hom ossexuais já adotaram um a criança. No entanto, em todo
o m undo, m aior núm ero de homossexuais têm-se se subm etido
ao processo de habilitação para adoção, ao contrário do que
ocorria no passado, quando recorriam mais freqüentem ente à
insem inação artificial (Sàmuels, 1990). O núm ero de pesquisas
sobre o assunto ainda é pequeno, m as alguns autores, como
M clntyre (1994), afirm am que a pesquisa sobre crianças serem
criadas p o r pais homossexuais docum enta que pais do mesmo
sexo são tão efetivos quanto casais tradicionais. Patterson (1997)
analisou as evidências da influência na identidade sexual, de­
senvolvim ento pessoal e relacionam ento social em crianças
adotadas. Exam inou o ajustamento de crianças criadas por mães
homossexuais (mães biológicas e adotivas) e os resultados mos­
traram que, tanto os níveis de ajustam ento m aternal quanto a
auto-estim a e o desenvolvimento social e pessoal das crianças
são compatíveis com crianças criadas p or um casal tradicional
O tem a não pode maís ser negado e são necessárias mais pes­
quisas que possam esclarecer a dinâm ica dos relacionam entos,
mas tam bém é preciso refletir que, mais im portante do que a
orientação sexual dos pais adotivos, o aspecto principal ê a
habilidade dos pais em proporcionar p ara a criança um am bi­
ente afetivo, educativo e estável.

125
0 período de espera

O período de espera é um a fase de transição p ara a


p arentalidade, na qual os indivíduos não são nem pais m as
’— tam bém -não-são-llpais em^esp c ra ” como ocorre na gravidez.
Assim, nesse período de espera os candidatos não têm muitcT
ain d a a com em orar e nem' têm sinais positivos de que eles re­
alm ente serão pais de u m a criança. N em os candidatos à ado­
ção nem as outras pessoas têm definidos papéis p ara acom panhar
e ap o iar essa fase de transição p a ra a parentalidade. Além do
m ais, essa transição típica ocorre em um contexto de perdas e
privações associadas com a infertilidade e com o desejo de um a
criança (Brodzinsky e Schechter, 1990). D iferentem ente da gra­
videz, os adotantes esperam um a criança na sua ausência, ou
seja, sem a segurança que ela realm ente venha e sem ter sinais
de sua presença física (Sandelowski, H arris e Holditch-Davis,
1993). Pesquisas m ostram que os candidatos ficam cada vez
m ais inseguros q u an to m aio r o tem po de espera. Gassin e
Ja cq u e m in (2001) afirm am que os pretendentes apresentam tais
ansiedades em função de seu histórico de perdas e suas expec­
tativas sobre a adoção, pois ter filhos é um a determ inação
m acrossocial e, ao m esm o tem po, um dispositivo de poder
m icrossocial. ;
N este período os candidatos ficam usualm ente rum inan­
do sobre com o foi a concepção dessa criança sem a sua real
presença física; pensam sobre o critério de seleção da criança e
em sua história de vida; geralm ente listam um a série de carac­
terísticas da criança, tais com o isexo, idade, estado de saúde e
outros, p o r ocasião de sua candidatura. Nesse caso eles simu­
lam u m a ação de escolha e assim eles podem im aginar com
m ais facilidade essa criança que ainda não existe. Assim como
os pais genéticos sabem o sexo do seu bebê; os pais adotivos às
vezes p o d e m s a b e r o sexo da c ria n ç a q u e p o d e rã o te r
(Sandelowski, H arris e Holditch-Davis, 1993). N ão é possível

126
exigir que todos os candidatos esperem a todo m om ento um a
criança virtual sem sequer im aginar algumas de suas caracte­
rísticas, m ãs o que a equipe deve fazer é encontrar maneiras de
refletir sobre os desejos de cada um e com o eles se coadunam
com as características das crianças que esperam um a família.
— •Q-perÍQdo-de-espera-tem_sido_reIatado por muitos como
difícil e frustrante, e os psicólogos da equipe técnica podem
criar form as de m anter os candidatos como verdadeiros parti­
cipantes do processo; Esse tem po pode ser m uito longo, mas
algum as vezes pode ocorrer ser m uito curto, dependendo de
m uitas variáveis, com o a exigência dos candidatos e as crian­
ças disponíveis. E~importante que os adotantes sejam inform a­
dos do andam ento do seu processo, pois o relato é que os
candidatos sentem-se esquecidos e isolados. Sandelowski, Harris
e H olditch-D avis (1993) concluem em' sua pesquisa que este
período de espera pode ser tão rico quanto o período de espera
de um filho genético, não necessariamente um estado depressivo
e ansioso. Se os candidatos ficam isolados, muitos podem desis­
tir e p a rtir p a ra outro tipo de adoçãó como m ostram os relatos
de W eber (1999a, 1999b, 2001). Pode ocorrer um a espécie de
b arg an h a quando um a criança é proposta. N a dificuldade de
se obter um bebê do sexo feminino, por exemplo, é oferecida
um a o u tra criança, e os adotantes sentem-se pressionados em
concordar, especialmente se estão esperando há muito tempo.
N ão basta pressionar, mas preparar. O longo tempo de espera
pode fazer com que aceitem um a criança somente para acabar
com a ansiedade da espera, e isso pode trazer frustração e de­
sapontam ento.
N a m aioria dos casos de crianças mais velhas considera­
das p a ra adoção é preciso lem brar que suas vidas geralmente
estiveram rodeadas de circunstâncias difíceis, com inúmeras
decepções e privações im portantes. Assim, a equipe profissio­
nal precisa estudar cuidadosam ente o passado da çriança para
d eterm inar suas necessidades específicas e áreas mais vulnerá-

127
veis para procurar um' làr adotivo especialmente adequado às:
necessidades da criança, no qual as pessoas estejam preparadas
p ara recebê-la.

A seleção de candidatos -

A orientação atual sobrç a adoção indica necessidade de


, que o processo adotivo se realize sob a supervisão dé profissio­
nais como a única forma de garantir a pais genéticos e adoti­
vos, e especialmente à criança, que os procedimentos utilizados
correspondem ao mais alto nível técnico e ético. Isso é de vital
im portância pois toda decisão relacionada com o futuro de vima
criança não pode, e nem deve, estar sujeita à improvisação
nem à participação de principiantes nestas áreas. A apreciação
que a equipe profissional faz do caso deveria constituir o ante­
cedente fundam ental para o juiz, que é quem deve resolver a
respeito da conveniência da adoção para uma criança determ i­
nada (Sandelowski, Harris e Holditch-Davis, 1993).
Não é possível esquecer, como relatam Cassin e Jacque-
m in (2001), que co-existem atualm ente um a legislação pós-
m oderna e costumes clássicos* ou seja; a m aioria absoluta das
pessoas no Brasil ainda adota crianças por infertilidade oü di­
ficuldade em gerar filhos genéticos. A equipe, técnica deve ter
consciência de que os adotantes afirmam que é m uito doloroso
falar de sua infertilidade/dificuldade nas entrevistas-. Eles en­
tendem que devem ser questionados a respeito disso, mas sem­
pre com sensibilidade e de um a vez só e uma só pessoa e não
a assistente social, depois a psicóloga, depois o juiz etc. H á
aqueles que querem uma segunda adoção e têm de falar tudo .
. de novo sobre sua infertilidade e com pessoas diferentes (Parker,
. 1999).';
A equipe técnica não deve atuar, apenas nas situações
prontas, mas entender o seu papel profilático, como afirm a

128
Vargas (2000: 59): “U m a das questões técnicas m ais relevantes
no trab alho do psicólogcTcom a adoção é a possibilidade de
atuação preventiva. A obrigatoriedade de um contato inicial
m ediante avaliação p ara o cadastro de candidatos e a observa­
ção dos vínculos fam iliares em form ação, durante o estágio de
convivência, facilitam que a intervenção do psicólogo venha a
ter um caráter mais orientador e de suporte do que perícia’5.
A atuação de um a equipe técnica na qual um psicólogo
faça parte deve levar em conta a reflexão sobre as práticas da
equipe e a constante avaliação dos resultados e satisfação dos
candidatos, p a ra fugir do aspecto essencialmente burocrático
do processo, com o assegura Pilotti (1988: 37):
Se bem que são inegáveis as vantagens que apresenta a
cooperação de instituições especializadas no desenvolvimen­
to de um processo de adoção, não c demais indicar que
não são alheias ao risco de cair em burocradsmos que, em
vez de incentivar a adoção, trazem obstáculos. O desafio
de uma instituição que se dedica à adoção consiste em
cumprir rigorosamente com as normas técnicas que defi­
nem seu funcionamento, mas tratando de evitar processo:?
excessivamente longos e difíceis.
A nteriorm ente, a avaliação de candidatos consistia ape­
nas em critérios de seleção de m oradia, ingresso e composição
familiar. A gora a tendência m ârca a necessidade de estabele­
cer um processo de assessoria constante p a ra as famílias adoti­
vas, tanto antes quanto depois da colocação da criança. Em
vez de ter o objetivo de encontrar pais ideais, a equipe técnica
dos Juizados da Infancia e da Juventude deve saber recrutar
candidatos p a ra o grande núm ero de crianças que precisam de
um a fam ília e ajudar os postulantes a se tornarem pais capazes
de satisfazer as necessidades de um filho a d o tiv a “Os profissi­
onais da adoção tornam -se, assim, agentes transform adores em
potencial, através de um a práxis com os futuros pais adotivos a
p artir de grupos operativos, cuja vivência, aliada ao acesso a

129
inform ações, tran scen d e a avaliação judiciária e propicia no­
vos referenciais, atitudes e conceitos em torno da Família e
adoção” (Cassin e Ja cq u e m in , 2001: 249).
Assim, a p rim eira tarefa de um a e q u ip e ; de adoção é
-garantir,que_os candidatos estejam dentro dos limites das dis­
posições legais em vigor no país e, a sua segunda e im portante
fase, seria iniciar u m program a de trabalho com os postulantes
aceitos, elaborado especialm ente p a ra assessorar, inform ar e
avaliar os interessados e não apenas “selecionar” os mais aptos
(W eber, 1997), Diversos modelos de seleção de candidatos e
aspectos nortead o res deste processo têm sido discutidos e apre­
sentados p o r pesquisadores contem porâneos, e alguns serão
m ostrados a seguir.
Pilotti (1988) apresenta sugestões p a ra n ortear o proces­
so de seleção: 1
1. Os pais adotivos devem ser selecionados de acordo com a
sua capacidade p a ra exercer os;papéis inerentes à paternida­
de e m aternidade, como tam bém se baseando no potencial
que dem onstrarem p a ra se tornar pais capazes de satisfazer
as necessidades de um a criança durante as diferentes etapas
do seu desenvolvim ento;
2. N essa seleção, são sem pre prioritários os interesses da crian-
Ça,
3. A equipe técnica das V aras de Adoção deve definir e infor­
m a r claram ente aos interessados os requisitos e procedim en­
tos que regem o processo de seleção, a fim de evitar possíveis
interpretações errôneas;
4. A posição socio econôm ica dos postulantes ou sua capacida­
de p a ra exercer influências de diversa índole não deve cons­
tituir um elem ento de im portância no processo de adoção.
Em seguida, Piíòtti (1988) m ostra quais aspectos de ava­
liação da idoneidade dos candidatos devem ser investigados,
em bora não indique de que m aneira isso pode ser feito:

130
.1. Investigar a personalidade e m aturidade dos candidatos; o
m odelo de.se relacionar com a própria família; qualidade da
união m atrim onial; adaptação no lugar de trabalho; ativida­
des comunitárias e atitudes perante a tolerância e a disciplina.
M aturidade: capacidade para-dar e receber afeto; habilidade
~“para'assumir"a"rcsponsãbilid ad <Tde cuidar, guiar e proteger ãT
ou tra pessoa; flexibilidade p a ra m udanças segundo as neces­
sidades dos outros; habilidade p a ra enfrentar problemas, de­
silusões e frustrações;
2. V erificar a qualidade da união conjugal e atitudes para com
as crianças. Os futuros pais adotivos devem ser simplesmente
pessoas comuns caracterizadas tanto pelas debilidadcs e ca­
rências quanto pelos aspectos positivos, mas devem ter habi­
lidade e afeto p ára com as crianças. Devem ter a capacidade
de aceitar a criança que adotarão como ela é, sem noções
preconceituosas de como se desenvolverá física e emocional­
m ente. Tolerantes p ara aceitar a realidade dos antecedentes
do filho;
3. V erificar a capacidade de lidar com a infertilidade e reações
quanto a isso;
4. D eterm inar.se as motivações estão baseadas.em necessida­
des em otivam ente sãs: desejo de levar um a existência mais
com pleta c realizada; assumir responsabilidades inerentes à
paternidade e m aternidade; ajudar um a criança; contribuir
p a ra o desenvolvimento de outro ser hum ano e principal­
m ente o desejo de dar e receber afeto.

Em relação às motivações, pesquisas recentes (Weber e


Gprnélio, 1995; W eber, ■1999a; We.ber, 2001) têm dem onstra­
do que não parecç existir um a correlação significativa çntre a
rnotiváção dos candidatos e a satisfação com a a.doção, seja do
ponto de vista dos pais adotivos seja dos filhos adotivos. Assim,
é necessária um a relação m enos dogm ática .em relação a essa
questão.

131
Alguns autores'apresentam as características' que os can­
didatos a pais adotivos deveriam ter valorizando a capacitação
pela equipe técnica. Segundo Sanz (1997) os serviços de ado­
ção deveriam valorizar os candidatos e contribuírem p ara sua
capacitação m ediante um program a quê contenha tanto as­
pectos genéricos como específicos de cada càso, com o objetivo
de desenvolver posições preventivas da intervenção. N esta
capacitação,, os pais' adotivos devem estar dispostos a:
1. Ser os primeiros a revelar a adoção a seu filho e estar dispos­
tos a responder a suas perguntas;
2. Expressar empatia, compreensão e respeito às necessidades
do adotado em conhecer seus antecedentes e as razões pela
quais foi.adotado; ■
3. .Contatar com a instituição ou serviço de adoção p a ra solici­
tar mais dados sobre os antecedentes da criança se as infor­
mações de que dispõem são insuficientes;
4. Comunicar-se abertam ente com seu filho sobre a adoção e
criar uma atmosfera em que a criança se sinta livre para
perguntar o que desejar;
5. Continuar falando da adoção depois de fazer a revelação
inicial;
6. A daptar o nível de conversação ao nível de m aturidade
cognitiva e emocional da criança;
7. Entender os sentimentos da criança e as causas dos mesmos,
• tanto aqueles que têm sua base na adoção, como aqueles que
não têm.

O utros autores entendem que a equipe técnica tem mais


a oferecer e. enfatizam a necessidade de não apenas selecionar
mas fornecer, por meio' de técnicas aprofundadas, um “curso
de preparação” (Amorós, 1987), com òs objetivos de:
l. Ajudar os candidatos a tom arem consciência de sentimentos
e atitudes que surgem durante a adoção;

132
2. A poiar os pais adotivos a aceitarem as diferenças do filho •
adotivo; ,r. . T-
.3. Potencializar a capacidade dos pais p ara enfrentarem de
m aneira adequada a educação da criança adotada;
4. Apoiar-os pais na elaboração e aceitação das origens da cri­
ança adotada;
5. Auxiliar os pais a assum irem a im portância da revelação e
trabalharem os elem entos p a ra facilitar a influência positiva
deste m om ento: quando, o que e como informar.

Segundo Sánz (1997), a finalidade da intervenção com


candidatos e com pais adotivos deve ser a de apoiar o processo
de adoção e não sim plesm ente aten d er situações familiares
disfuncionais que, apesar de serem um risco, têm de ser aten­
didas com outros recursos dentro dos circuitos de saúde, edu­
cação etc.
C oncordam os com Biniés (1997) que relata a sinaliza­
ção de m uitas m udanças nos últimos anos no: que se refere à
seleção de candidatos à adoção, e a prim eira delas é que deve
prevalecer o interesse da criança. Neste sentido, pelo menos
nos países desenvolvidos, foi ultrapassada a quase exclusivida­
de das adoções de bebês saudáveis p ara o desenvolvimento de
um trabalho que possibilitasse a adoção de crianças com certas
particularidades (crianças mais velhas, de raças diferentes, com
problem as de saúde entre outras).
A segunda m udança im portante refere-se ao modelo do
processo de seleção. Inicialm ente eram utilizados modelos de
seleção que tinham som ente o objetivo de classificar e desco­
brir atributos desejáveis em candidatos a pais adotivos, realiza­
dos por meio de diversas entrevistas e baterias de perguntas e
testes. Este m odelo - que ainda é m uito utilizado no Brasil —
m a rc a um claro d ista n c ia m e n to e u m a posição som ente
interrogadora que pouco facilita a troca de atitudes, desejos,
m otivações, m edos e ansiedades entre os candidatos e os p ro ­
fissionais.
A tualm ente dève ser privilegiado o m odelo de p rep a ra ­
ç ã o /e d u c a ç ã o que tem p o r base atividades pedagógicas e trei-
----------- n am en to p a ra o novo p apel de pais adotivos. Neste m odelo,
todos os candidatos’aptos idônea e legalmente passam por um a
série de atividades educativas preparatórias. T em a caracterís­
tica de ser um m odelo aberto e flexível, e as atividades realiza­
das em grupos de vivências auxiliam os candidatos a com pre­
ender m elhor a criança adotada, responder adequadam ente às
suas necessidades e sentim entos e, ao. mesmo tem po, verificar
se é isso m esm o que p en saram sobre úm a adoção, confrontan­
do as suas próprias m otivações e habilidades com as dem andas
da realidade que se lhes apresenta.
D e acordo.com Biniés (1997) os objetivos deste m odelo
são:
a) A judar, os candidatos’a'explorarem a natureza da parentali-
dade p o r adoção e com preendeem seus próprios sentimentos
. e as dificuldades que podem apresentar-se nas relações ado­
tivas;. ■.
b) P re p ara r os candidatos a reconhecerem se são capazes de
aceitar a adoção e mesmo_a renunciaF a ela voluntariam ente
se p erceberem que não é exatam ente o que buscam ;31,.,
c) F acilitar aos candidatos a realização de um a avaliação de
sua p ró p ria m otivação, de suas habilidades e necessidades;
d)!Proporcionar orientações p a ra as habilidades necessárias para
a.^educação da oriança adotiva.
As pesquisas m ostram que, p á ra a com preensão de um
papel novo em nòssa vida ou p ara m udanças de atitudes e
com portam entos im portantes, não basta freqüentar e assistir a
palestras: N este m odelo de prep aração /ed u cação são utiliza­
dos grupos de discussão com atividades e vivências participativas
(treinam ento de papéis, brainstormirig, trabalhos em. pequenos
■ grupos, vídeos, fotografias^ desenhos, treinam ento de habilida-

134

&
.... .... .
cies sociais, treinam ento de práticas educativas) que têm o ob­
jetivo de a te n d e r a"três aspectos dos participantes: •
1. R efletir atitude? e com portam entos emocionais, como a dis-
• posição p a ra aceitar o passado da criança, seus sentimentos e
recordações sobre a sua família; disposição para m ostrar res­
peito pelaTam ília genética as“circunstâncias-que levaram -à-
. separação definitiva; ajudar a criança a conservar e valorizar
a sua própria história; aceitar os sentimentos de ambivalência
e insegurança da criança e seus desejos de conhecer mais
sobre o seu passado etc.;
2. Desenvolver habilidades que perm itam enfrentar de m anei­
ra com petente a tarefa de educar um a criança adotada com
todas as suas características;
3. D iscutir idéias e sentimentos sobre o processo de adoção e
suas im plicações, os problem as mais comuns, os recursos
existentes na com unidade p ara apoiar as famílias etc.

. É preciso entender que sempre existe um a porcentagem


de risco em um processo de.seleção e, portanto, não^é possível
depositar todas as garantias de succsso; neste processo. A equi­
pe técnica tenta im aginar que, fazendo um a seleção ótim a,
estaria garantido o sucesso da relação familiar. Isso é impossí­
vel de saber. No entanto, a passagem de um tipo de seleção
basicam ente de valoração dos atributos dos candidatos para
um processo de seleção no qual se oferece, prim eiram ente, um a
preparação, garante um m arco de reflexão teórica im portante.
Além do mais, outro fator deve ser repensado pelas equipes
técnicas: o acom panham ento e assessoramento posterior das
famílias por adoção, uma. vez que se sabe que a incorporação
de u m a criança em um a família sempre, desencadeia um a es­
pécie de crise familiar, O pensam ento preventivo em um .pro-
cesso de acom panham ento é imprescindível. Jofré (1996) sinaliza
que as equipes técnicas que intervêm no processo de seleção de
candidatos deveriam ser as mesmas que intervenham na sele-

135
ção de um a família p ara um a criançá concreta,' assim com o no
período de adaptação criariça-família e no, acom panham ento
posterior.
Além do mais, não é possível esquecer o trabalho da
equipe técnica que trabalha com adoção dos Juizados, da In-
■fância e da Juventude, que devem estar sistcm aticam cnte
conectados com os Conselhos M unicipais de Direitos da Cri­
ança, os Conselhos Tutelares e as O N G s que tràbalhám com a
inserção da criança na família, como salienta Vargas (2000, p.
139), essa aliança traz diversas vantagens:
a) A prevenção das “adoções prontas” (adoções intuitiipersonae),
ha identificação/orientação pelos Conselhos T u telares e
ONGs, das redes de inform antes/interm ediários não legais
• qué atüam nas m esm as;"
b) A prevenção do abandono, através da identificação das mães
na própria rede que estimula as entregas diretas, trabalhan­
do sua decisão de entrega e prevenindo assim reincidência
ou, avaliando com as mesmas os recursos que possuem ou
que possam obter p ara criar seu filho.
c) A "preparação de candidaturas com potencial para" realizar
as'adoções necessárias —que já vem sendo realizada de for­
ma independente pelas Associações' de Pais e Grupos de Apoio
à Adoção, poderia ter o respáldo rháiòr da Rede de Atendi­
mento, recebendo estrutura p ara um atendim ento mais téc­
nico paütado riá ’orientação preventiva e m elhor instrum en­
talizado para atender a dem andas ináis complexas.
d)fcÓ acom panham ento'durante o estágio de convivência pode­
ria ser mais sistemático^e, efetivamente preventivo caso fosse
realizado por profissionais desvinculados da avaliação do J u ­
diciário em local adequado às necessidades dò grupo em for-
• mação, còmo o próprio am biente domiciliar.
W eber (2001: 247) apresenta um a sugestão de prepara-
'■ção/educação dividida em dois grupos distintos: o prim eiro
grupo seria composto por aqueles que já têm filhos adotivos e /

136
ou genéticos,,e outro p o r aqueles que n ão os têm , pois as habi­
lidades refletidas.nesta p rep a ra çã o podem ser diferentes. No
entanto, é possível p en sar que u m grupo mais heterogêneo tam ­
bém possa trazer vantagens. E sta p rep aração deve necessaria­
m ente incluir a criança, inclusive sob condições que serão apenas
utilizadas no futuro próxim o. Á seguirã o esquem a de W eber
( 2001 ):

•' -G r upo in ic ia n te - , ,- . - '/ G ruposênior •


: Não tem filhos ádofivos ou biológicos-: i-: Tem filhos adolívos e/ou biológicos

Aspfaos ESPECÍFICOS DA AOOÇÍO ,


■ aspectos legais do^processo* ^ v _V')] outra criança na famíliè quáiidb se leni.
.V preajncei ^ :' .(ilhós biológicos oii ádòiivos :.
-herédif ariedá db' ; ; ciúm es;.,'.," ,
divisão de tarefas
arrior pelos filhos -

^déiróímênjoítà^

■■■.■■■. S tíÂBIllttDÓs^^r:^.

Í - G r u p o s ' de "m i s ^ d otí v o s ^ :> FeeóbackPARÂHÃOhabiutaoòs . ••


DÍsfuti moyer^hsci èntiraçSp sob% '• Prevençãodé‘atfdções informais:'.-'j r ; [ ■
\ ã dinâmica daifamfiiàs ádòlivás '-‘.'r ■ •: Proposição de continuar'a participação

P r ep a r a ç ã o d a c r ia n ç a ;> ;
CfílANCA INDICADA 'Quem é a faiiiflla que pretende adolá-lá
Fotos e video; V • . . ; '
. ^Se terá írmSo ou hSo ....
;.í Preparaçãopairâ rafleiSo e conscientização -. -:,
/ . da lamíiia idealizada e a família real £•.
v;;6'príinêirD'encòVifro traz sêmpré aruledade à v
: deve ser preparado ram cuidado ; v •’ v
A criança deve ser esclarecida se siia mudírtça.
Preparação para á crIaíiça písighaoa '.' para unia familiaé definitivaouéuma ftentativá!’
Dossiê da história pessoal a ínsfitcioiíaí; Crianças tém irni passado na Instliuiçaij é devem
Perfil psicológico das criançasmatoras; : . poder íevarseus-pertéricés favoritos 1eobjetos de
Contatolnterpessoál . . ; apego ■ h:-iY - / w ’ ': S r ;-'
Preparar outros (Ilhas àdotiyos ou biológicas ' Cuidado, especial quando a criança freqü enfa e
• trocará de escola; ' ''

Figura 1: Representação gráfica de um possível procedimento para preparação de adotanles e adotados


(Weber, 2001:247).

137
A c o n c lu sã o é a n ecessid ad e de u m a m u d a n ç a de
p arad ig m a, ou seja, de a equipe técnica ter um a conduta p e d a ­
gógica e n ao sim plesm ente avaliativa, “retirando-se o foco de
suas atribuições da perícia p a ra recolocá-las num p a ta m ar mais
am p lo que inclua o p rep aro e a reflexão dos pretendentes”
(Cassin e Ja cq u e m in , 2001: 249)7É preciso aindãTrefletirrsobre
as fam osas “adoções p ro n tas” e se “há pouco a fazer” nestes
casos, p o r que não estabelecer condicionalm ente a p articipa­
ção de tais adotantes em grupos de preparação? G ranato (1996:
107) ressalta que “o tem a da adoção! intuitu personae não tem
sido focalizado pelos estudiosos da adoção, m as é dos mais
angustiantes e p e rtu rb ad o re s p a ra aqueles que efetivam ente
tra b a lh a m nesse cam po e ocorre com um à freqüência m uito
superior à que sc im agina” . N a realidade brasileira que.se apre­
senta, não é possível apenas aguardar candidatos que procu­
ram por um bebê recém -nascido, m as tam bém traçar estratégias
de recru tam en to de pretendentes que ;possam desenvolver h a ­
bilidades p a ra a adoção de crianças com outras características,
que lotam as ^instituições de ábrigam ento. N ão é possível ter
respostas p a ra tudo, m as é possível refletir sistem aticam ente
sóbre nossas p ráticas sociais, profissionais e pessoais, com o
po eticam en te relata M areei Proust: “À verdadeira viagem da
descoberta consiste n ão em buscar novas paisagens, m as em
ter olhos novos” .

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140
Saio de Carvalho

Os Laudos e Perícias Criminológicas na Lei de Execução Penal

A Lei de Execução Penal (LEP) institui a avaliação cri-


m inológica como elem ento daquilo que a doutrina penal de­
n o m in a 'individualização adm inistrativa da p e n a ’. Após a
aplicação da sanção pelo juiz (individualização judicial), cabe­
ria aos agentes do sistema carcerário classificar os condenados
com intuito de determ inar o program a ‘ressocializador’ —-os
condenados serão classificados, segundo os seus antecedentes e personalida-
-de} para orientar a individualização da execução penal (art. 5o, LEP).
Assim, os condenados ao cum prim ento de pena privati­
va de liberdade, principalm ente aqueles que cum prirão em
regim e fechado, serão subm etidos a diagnósticos p a ra obten­
ção de e le m en to s n e c essá rio s à a d e q u a d a classificação,
objetivando estabelecer os parâm etros d o ‘tratam ento penal’.
A Comissão T écnica de Classificação (CTC), p ara ob­
tenção dos dados reveladores da personalidade, poderá requi­
sitar informações, entrevistar pessoas e realizar as diligências
que considerar necessárias (art. 9°, LEP). O, trabalho da CTC é
presidido pelo D iretor da instituição carcerária e sua estrutura
é composta, no m ínim o, por dois chefes de serviço, um psiqui­
atra, um psicólogo e um assistente social (art. 7o, LEP).

141
D eterm in ação legal aditiva à CTC é a de aco m p an h ar a
execução das penas privativas de liberdade (art. 6-, .LEP), de­
vendo p ro p o r, à au to rid ad e com petente, as progressões (art.
112, LEP) e regressões (art. 118, LEP) dos regimes, bem com o
as conversões de penas (art. 180, LEP).
D iferem d a CTC, cujo lab o r'tem como escopo; avaliar o
cotidiano do condenado, os afazeres dos técnicos do C entro de
O b serv ação C rim inológica (C O C ). Este local autônom o da
in stitu iç ã o c a rc e rá ria re a liz a exam es periciais e pesquisas
crim inológicas que retrata rã o o ‘perfil do preso’, fornecendo
instrum entos de auxilio nas decisões judiciais dos incidentes da
execução , n otad am en te livram ento condicional e progressão
de regim e. Logo, en quanto a CTC atua no local da execução,
\ com o observatório do cotidiano
Vé^ínoÍdada\j^o*^jn^pro^ej^yo^4rt^^ d(? aPenado, o C O C tem por fun-
Çã° realizar exames criminológicos
^toVdemm■■determinado;‘períòdfc • r .• j . . ,
mais sofisticados, com intuito de
-v„"per soifali dadéVO£udos;•e''.parecères ) a u x i l i a r OS Órgãos da execução. .
Não obstante, o Código Penal
. . . . .
,fechádo“aoc serrn-;abertoje;deste;a^o,aberto)'.;# p reve q u e O corpo CnminolOglCO
^ t á S ? Í Í Í Í S É É Í I Í . ( G O G ) deverá realizar .prognósticos
de não-dehnqümcia, requisito subje-
concessão .do livram en-
• ^ • ^ ^ o r-pi^vêrí^p^i^íú^ã^è5H^'^^cfc,Jd (^ to coiidicionaL—para o condenado
por crime doloso, cometido com violm-
^;5ííõ;:eiktót^da;njcsma;^^"a5qüc^ ípistem^jfc cia ou grave ameaça à pessoa^ û conces-
são dó livramento ficará também subor-
í^^jàcxiy^po^cípaçâü dttuidçL a constataçao de condxçoes
pessoais quefaçam presumir que o libe-
Wcúçf.Q)Sot‘c onáéhído- pqdcVegrea^/se^ re-* , , - ’ . ... .
rímc'{àit.’. í.^ô/da Lei |,lde7Exccuçãò)í*'>:r/ú'-'tv:,',i- fado nao voltara a delinqinr (art. 83,
luk * i , r , . ot>v A . ,
paragrafo unico, C r). Assim, o le-
. gislador estabeleceu condições especialíssimas p a ra concessão
do direito nos casos da denom inada ‘crim inalidade violenta’: o
: ’ dispositivo se inspira na reclamada defesa social e tem por objetivo a pre-
venção gerai Se após o exame crimino lógico (ou resultar da convicção do
juiz) ainda revelar o condenado sinais de desajustamento aos valores jurí-
dico-criminaiSj deverá continuar a sofrer imposição daquela pena até o seu
limitefin a l se a tantofor necessária em nome da prevenção especial (Fran­
c o etalli, 1993: 535).
— ——O-Cxame fpericial)_entendido còrrió idôneo p ara a prog-
nose seria o de cessação de periculosidade/^õu sêjã^lnstrumen-
to análogo àquele aplicado ao inim putável (art. 175, LEP); caso
contrário, na.ausência do exam e, o juízo será hipotético2 (Cos-
' ta j r .j 1999: '206): '
C onclui Alvino Augusto de Sá, ao discutir a natureza
dos exames crimiriológicos é as form ás de prognose, que o pa-
' recer da CTC deveria voltar-se eminentemente para a execução, para a
terapêutica penal e seu aproveitamento por parte do sentenciado. J á o exa­
me criminológico é peça pericial, analisa o binômio deUto-delinqüente e o
foco central para o qual devem convergir todas-as avaliações é a motivação
criminal, a dinâmica criminal, isto é, o conjunto dosfatores que nos aju­
dam a compreender a origem e desenvolvimento •da conduta criminal do
examinado. Ao se estabelecerem as relações compreensivas entre essa condu-
' ta e esses fatores, se estará fazendo um diagnóstico criminológico, N a dis­
cussão> devem ser sopesados todos os elementos desse diagnóstico e
contrabalanceados como os dados referentes à evolução terapêutico-penal,
deforma a se convergir o trabalho para um prognóstico criminológico, do
qual resultará a conclusão fin a l (Sá, 1993: 43).

1 À guisa de ilustração: a verificação dos requisitos inseridos no art. 83 e seus incisos,


impondo-se também a realização da perícia, para verificar a superação das condições e
circunstâncias que levaram o condenado a delinqüir, consoante o conteúdo do parágrafo
único do mesmo dispositivo, e ressalva, ainda, que a norma, destinada ao sentenciado por
crime violento, caracteriza exigência necessária diante da extinção da medida de segurança
para os .imputáveis ( T A /R S , H C n o 2 8 5 0 3 9 6 2 4 , R ei. T alai Selistrc).
2 N esse sentido, a verificação das condições pessoais e subjetivas do sentenciado não se
f a z só e necessariamente por exame similar ao antigo exame de verificação de cessação de
pericutosidade.' Por outros meios, inclusive sem qualquer tipo de verificação peiicial, pode
concluir-se de tal ausência de perigosidade na devolução do. sentenciada à comunidade (TJ-
R S , R A , R cl. G ilberto N icderau er C orrêá — R T JE 3 6 /3 6 4 ).

143
A atuação, pericial como controle da identidade do preso

A hipótese central do trabalho, de .investigação.-realizado


é a de que os exames e prognósticosvcriminológicos previstos
na LEP redefinem um a m atriz --inquisitiva que .viola os mais
sagrados direitos do cidadão, notadam ente aqueles relativos à
livre manifestação do,pensam ento e. à formação de sua perso­
nalidade, reforçando o estigma de delinqüente.
A afirmativa ganha consistência na análise metodológica
. em pregada pelos técnicos, do sistema penitenciário (psicólogos,
assistentes sociais .e. psiquiatras). . ■. , : ,
\ Percebe Hoenisch que. o.„trabalho do perito, principal-
. m ente do .psicólogo, é fundado, na técnica de ‘reconstituição de
vida pregressa5, que via de regra y.em a confirmar o rótulo de criminoso.
Desta form a, a . .elaboração dos exames, psiquiátricos obedece a um
detenninismo causai\ onde o 'nosólogo’.não só descreve a doença/ delito do
paciente/preso, mas também prescreve a sua conduta futura. (Ibrahim ,
1995: 52-53) . -, •
.. JEm realidade, não apenas o sistema penalógico adotado
• . ‘p s iq u i a t r i z a ’ a d p ç is ã o .- d o - .m a g is t r a d o , d e l e g a n d o a m o t i v a ç ã o
■ do ato decisório ao.peritoj que o realiza a partir ,de julgam en-
.tos morais sobre as opções e condições de vida do condenado,
como estabelece .um mecanismo de (auto)reprodução da vio­
lência pelo reforço da identidade criminosa {selffidlfilling profecy).
Lem bra V era M alaguti Batista, ao estudar a atuação dos
‘operadores secundários’ do sistema, que estes quadros técnicos
■ que entraram no sistema para ‘humanizá-lo3, revelam em seus pareceres
(que instruem e tem. enorme poder sobre as sentenças a serem prof endos)
■ conteúdos ' moralistas, segregadores e racistas, carregados daquele olhar
lombrosiano e danuinista social erigido na virada do século X IX e tão
presente até hoje nos sistemas de controle social (Batista, 1997: 77).
Sabe-se que um. dos mais-perversos modelos de controle
. social é. aquele que funde o discurso do direito com o discurso
da psiquiatria, ou seja, que regride aos modelos positivistas de
coalizão conceituai do ju ríd ico com a crim inologia naturalista.
É que o sonho da. m edição d a periculqsidade, foijado no inte­
rior do paradigm a crim inológico positivista, en co n tra guarida
nesse sistema.
R etom ando conceitos com o propensão ao delito, causas da
delinqüência e personalidade voltada para o crime, o discurso oficial se
rep ro d ú z, condicionando irrefutavelm ente o ato ju d ic ia l ao
exam e clínico-crim inológico ~ psicólogos, psiquiatras, pedagogos,
médicos e assistentes sociais trabalham em seus pareceres, estudos de caso
e diagnósticosy da maneira mais acrítica, com as, mesmas categorias utili­
zadas na introdução das idéias de Lombroso no Brasil (Batista, 1997:
86).
Eugenio R aúl Zaffaroni sustenta que este ideal de m edir
a periculosidade é um a das pretensões mais am biciosas desta
crim inologia etiologico-m dividualista equivocada. O ‘periculo-X*
. . ■■'*

sôm etro , como ironiza o m estre portenho, cientificam ente cha-
m ádo de prognósticos estatísticos, consiste em estudar um a->
quantidade mais ou m enos num erosa de reincidentes, quantificar
suas causas e p ro jetar seu futuro (Zaffaroni, 1988: 244).
Se a despatologização do delito ocorreu com a teoria .....
estrutural-funcionalista de D urkheim no início do século passa- 'í
do, increm entando um giro copernicano na crim inologia que
culm inou com a consolidação acadêm ica do paradigma da rea- ‘i.
ÇÃO social , o reducionism o sociobiológico desse m odelo em
voga no Brasil revela-se obsoleto. -No entanto, m esm o desqua­
lificado epistem ològicam ente, acaba por d itar as regras da exe­
cução da p e n a eni decorrência de sua adesão pelos técnicos da
crim inologia.
A pesar de a instrução p ro b ató ria (cognição) no processo
penal ser sustentada sob prem issas acusatórias vinculadas'a'um _
direito penal do fato, todo processo: de execução das penas e os
procedim entos que requerem avgdiação pericial são balizados
p o r juízos m edicalizados sobre a personalidade, conform ando
um m odelo de direito penal do autor e um modelo criminológico
etiológíco refutado pelo sistem a constitucional de garantias
estruturado na inviolabilidade da intim idade, no respeito à vida
p riv a d a e à liberdade de consciência e de opçãó.3
V ale lem brar, neste m om ento, a sem pre autorizada fala
de R o b erto Lyra: virão laudos que são piores do que devassas a pretexto
de anamnesescóm diagnósticos arbitrários e prognósticosfatalistas. A vida
do réu e, também a da vítima são vasculhadas. 0 anátema atinge a fa m í­
lia por uma conjectura atávica. 0 labéu ultrapassa gerações. Remotos e

3 F oucault, n*Oí Anormais, lem bra q u e o exame pam ite passar do ato à conduta, do
delito à maneira de ser, e de fazer a maneira de ser se mostrar como não sendo outra coisa
que o próprio delito, mas, de certo modo, no estado de generalidade na conduta de um
indivíduo. Em segundo lugar, essa sêiie de noções tem por função deslocar o nivel de
realidade da infração, pois o que essas condutas infringem não é a lei mas, porque nenhu­
ma lei impede ninguém de ser desequilibrado afetivamente, nenhuma lei impede ninguém de
ler distúrbios emocionais, nenhuma lei impede ninguém de ter um orgulha pervertido, e não
há medidas legais contra o erostratismo. M as se não é a lei que essas condutas ínjringem,
é o que? Aquilo contra o que elas aparecem, aquilo em relação ao que elas aparecem, ê um
nível de desenvolvimento átimo: 'imaturidade p sic o ló g ic a [personalidade pouco estruturada1,
''profundo desequilíbrio’. É igualmente um critério de realidade: rmá apreciação do real’.
São qualificações morais, isto é, a modéstia, a fidelidade, São também regrar éticas. Em
suma, o exame psiquiátrico permite constituir um duplo psicolôgico-êlico do delito. Isto é,
deslegalizar a. infração tal camo formulada pelo código, para fazer aparecer por trás dela
seu duplo, que com ela se parece como um irmão, ou uma irmã, nao sei, e quef a z dela não
mais, justamente, uma infração no sentido legal do termo, mas uma irregularidade em
relação a certo número de regras que podem ser fisiológicas, psicológicas, morais, etc.
(F oucault, 2002: 20-21).
ridículos preconceitos distribuem estigmas. 0 processo penal, além de todas
as ocupações e preocupações, será atado ao’torvelinho dos habituais e ten­
denciososfalsários bem pagos, com humilhações'e vexames para o acusado
e sua família, para a vítima e sua família, com base em. ‘quadrinhos3 e
formulários (Lyra, 1977: 132).
Este papel de legitimação das decisões judiciais assumi­
do pela crim inologia oficial foi percebido magistralmente por
M ichel F o u cau lt Ao responder indagação sobre o porquê de
sua crítica à crim inologia ser tão rude, Foucault afirma que os
textos criminológicos não têm pé nem cabeça. .. Tem-se a impressão —
prossegue —de que o discurso 'da criminologia possui uma tal utilidade,
de que é tão fortzmente exigido e tomado necessário pelo funcionamento do
sistema, que não tem nem mesmo necessidade de se justificar teoricamente,
ou mesmo simplesmente ter uma coerência ou uma estrutura. Ele é inteira­
mente utilitário (Foucault, 1986: 138).
.A utilidade ressaltada por Foucault seria fornecer.argu­
m entos ao julgam ento, p.errhitindo aos magistrados um a ‘b o a -:
consciência’.4 '’
O juiz d a execução penal, desde à reforma operada pela
crim inologia clínico-adm inistrativa, deixou de decidir, passan­
do apenas a hom ologar laudos técnicos. Seu julgam ento passa;,
a ser inform ado p o r um conjunto de micro-decisões (micro-
poderes) que sustentarão ‘cientificam ente’ o ato decisório. As-

4 A firm a Foucault: a partir do momento em que{se suprime a idéia de vingança, que


outrora era atributo do soberano, lesado em sua soberania pelo crime, a punição só pode ter
. significação numa tecnologia de reforma. E osjuizes, eles mésmos, sem saber e sem se der
conta, passaram, pouco a pouco, de Um veredito que tinha ainda_conotações punitivas, a
um veredito que não podem justificar em seu próprio vocabulário, a não ser na condição áe
: que seja transformador do indivíduo. M as os instrumentos que lhesforam dados,, a pena
. de morte, outrora o campo de trabalhas forçados, atualmente a reclusão -ou a detenção,
. sabe-se viu i0 bem que não transfonnam. D a i a necessidade de passar a tarefa para
pessoas que vão formular, sobre o crime e sobre os criminosos, um discurso que poderá
justificar as medidas em questão (Foucault: 2 0 0 2 , 139).

147
sim, perdida.no em aranhado burocrático,: a decisão torna-se
impessoal, sendo, inominável-o sujeito prolatòr.-. .
Lem bra Foucault ,qüe o ju iz de nossos dias ~. magistrado ou
jurado ~ fa z outra, coisa, bem diferente. de julgar*: Ele não julga mais
sozinho. Ao longo do processo penal,- e da execução da pena, prolifera toda
uma série de instâncias anexas. Pequenas justiças e juizes paralelos se
multiplicam em tomo do julgamento principal: peritos psiquiátricos e psi­
cólogos, magistrados da aplicação da pena, educadores, funcionários da
administração penitenciária f acionam o poder legal de punir; dir-se-á que
nenhum deles partilha realmente do direito de julgar; que uns, depois das
sentenças, só têm o direito defazer executar a pena fixada pelo tribunal, e
principalmente que o u t r o s o s peritos - não intervêm antes■da ■sentença
para fazer um jidgamento, mas para. esclarecer a decisão dos juizes
(Foucault, 1991: 24).
Ferrajoli afirma, que estes .modelos correcionalistas de
‘reeducação’ - qualquer coisa que se entenda com esta palavra (Ferrajoli,
s/d : 46) ” acabam se tornando, um a aflição aditiva à pena pri­
vativa de liberdade c, sobretudo, um a prática profundam ente
autoritária. Esta comporta - prossegue o autor - uma diminuição da
Liberdade interior do detento, que viola o.primeiro princípio do liberalismo:
o direito de. cada um ser e permanecer ele_ mesmo;- e, portanto, a negação ao
Estado de indagar sobre a personalidade psíquica do cidadão e de transformá-
lo moralmente através de medidas de premiação ou de punição por aquilo
que ele é e não por aquilo que elefe z (Ferrajoli. s/d: 46).
Converge, nesta perspectiva, Fabrizio Ram acci, ao ava­
liar as teorias da em enda desde o processo de filtragem d.a Lei
Penitenciária a partir da Constituição italiana. Leciona que a
exasperação da idéià de correção, ínsita na doutrina de emenda, ê bloque-
’ ada pela proibição constitucional de tratamento contrário ao senso de hu­
manidade, tanto nas.formas de■violência à pessoa, quanto nas de violência
. à.personalidade (v.g. lavagem cerebral) porque contrastante com a dignida­
de humana '(art 3 [dá Constituição) e com. a liberdade de desenvolver e
inclusive manter.a.prõpria personalidade (art. 2 da Constituição) (Ramaci,
1991: 133). ... . ’ •• 1

143
A função dos técnicos do sistema penitenciário (Criminólogos)
desde uma-perspectiva humanista

N ão obstante a legitimação de um m odelo m oralista fun­


dado na recuperação, o discurso clínico-disciplinar, ao atu ar
como suporte ao jurídico e, assim sendo, fundir-se a ele nas
■decisões em sede executiva, cria um terceiro discurso, nãó-jurí-
dico e não-psiquiâtrico, autopro.clamado criminológico, que,
apesar da absoluta carência epistem ológica/é altam ente funcio­
nal.5
Foucault entende este processo como um a técnica de
norm alização do poder que não é apenas"resultado do encon­
tro entre o saber m édico e o poder judiciário, mas da com po­
sição de um cèrto tipo dc poder - nem médico, nem judiciário,
mas outro que colonizou e repeliu tanto o saber médico
como o poder judiciário (Foucault, 2002: 31-32).
A técnica criminológica, ao se colocar como o discurso
da ‘verdade1 no processo de execução, acaba p o r reeditar um
sistema de prova tarifada, típico cios sistemas inquisitivos pré-
m odernos, que incapacita as norm as de garantia, visto obstruir
contraprova (irrefutabilidade das hipóteses).
. Não apenas no plano processual, mas igualmente no plano
m aterial, o discurso clínico altera a face do direito penal. E n­
quanto o objeto de discussão do direito é (deveria ser) o fato
concreto, impossibilitando avaliações sobre.a história de vida
do sujeito, no discurso criminológico é nítida a valorização da
interioridade da pessoa —os diagnósticos são repletos de conteúdo moral
e com duvidosas doses de àentificidade (Bátista, 1997: 84).

■' Sustenta Cristina' R auter que a 'colonização’ do judiciário pelas ciências humanas,
pela via da Criminologia, corresponde a um processo de hnplanlaçào de uma tecnologia
disciplinar\ com efeitos ao nível do discurso e também- das práticas sociais (Rauter,
1982: 80).

149
if-:' •'

Este ‘n ó ’ teórico acarretado pela sobreposição dos dis­


cursos parece ser um dos principais problem as cia execução
penal. As garantias do cidadão; preso são abandonadas em
detrim ento dos juízos técnicos que, segundo V era M aiaguti
Batista, apesar de aparentem ente ‘científicos’, não são nada
neutros, pois se .destacam no processo pela construção^e~conso-
lidação de estereótipos (Batista, 1997: 17).
Assim, tendo com o m áxiína a inadmissibilidade da ne­
gativa de qu alq u er direito com base em avaliações e /o u ju lg a­
m entos da personalidade do condenado, restaria indagar: qual
seria a função dos técnicos (criminólogos) p ara além da de­
m an d a de avaliações/perícias?5 j .
Segundo a LEP, as Comissões e Centros de O bservação
têm p o r função realizar anam neses e prognósticos visando à
reinserção social do apenado. Parece, pois, que a atividade do
técnico não é direcionada à confecção de laudos. O trabalho a
ser realizado seria o de propor (não impor) ao condenado um
p ro g ram a de gradual ‘tratam ento penal’,7 objetivando a redu­
ção dos danos causados pelo cárcere (prisionalização). O labor

5 L em bra M iriam G uind ani, ao avaliar p papel dos técnicos no sistem a peni­
ten ciário, que os profissionais do Serviço Social [psicologia e psiquiatria, inclui-se]
foram relegados à função de tarefeiros para simplesmente atender às demandas de avalia­
ção perícia para fin s de individualização, progressão de regime ou livramento.condicionai:
A ssim , perdeu sua identidade como categoria,ficando relegado; muitas vezes, a um papel
de 1executor de laudos\ A s ações passaram a ocorrer através das equipes de CTC, enquan­
to o tratamento penal previsto em lei tomou-se, com algumas exceções, secundário (Guindani,
2002: 35). N o m esm o sentido enunciam H oen isch e P ach eco ao afirmar que
a desp eito das diversas possibilidades de trabalho do psicólogo, observa-se
u m a restrita atuação à confecção de laudos técnicos (H oenisch & P acheco,
2002: 191-204). !
7 A pesar de entender a categoria ‘tratam ento p en al’ absolutam ente inade­
qu ada, pois um a contradição em term os, utiliza-se entendendo-o não como uma
finalidade em si do cumprimento da pena, mas como um conjunto de práticas educativas
e terapêuticas que podem ter significados efunções diferenciadas no processo de cumprimen­
to da pena, dependendo dos diferentes fatores teóricos, políticos e institucionais, que o
envolvem (WolfT, 2003: 96)..

150
deveria ser outro que o de ‘tarefeiro’ - fornecedor de dados
sobre ‘conduta futura e incerta’, com o escopo de justificar a
decisão judicial.8 . ,
U m a atividade pautada em program as humanistas de
redução de danos.possibilitaria construir com o apenado técni-
___cas_que_possibilitass.enua_minimização;_do„efeito_deletério_do
cárcere (clínica da vulnerabilidade). Constatados problem as de
ordem pessoal ou fam iliar, deveria o. técnico, ju n to .c o m o
apenado, e tendo como. imprescindível sua anuência, colocar
em prática um processo de resolução do problem a, ou seja,
' fornecer elementos p ara superação da crise e não estigmatizá-
lo, potencializando-a.
Elem entar, no entanto,, que qualquer tipo de ‘tratam en­
to ’ pressupõe a voluntariedade do sujeito, sob pena de violação
do princípio da dignidade hum ana.
A im posição de p ro g ram as .de ressocialização, .n ã o .
o b sta n te ferir a m ais e le m en ta r prem issa, do tra tam e n to
(voluntariedade), somente é admissível em sistemas nos quais o
encarcerado é percebido como objeto entregue, ao laboratório
crim inológico do cárcere —objeto de uma tecnologia e de um saber de
reparação, de readaptação, de reinserção, de correção (Foucault, 2002:
26-27).
D esde a perspectiva hum anista, é inconcebível obrigar o
sujeito a qualquer tipo de m edicina,;pois este preserva seu di­
reito de ser e continuar sendo quem deseja, tudo em decorrên­
cia do princípio constitucional da inviolabilidade da consciência
(art. 5o, incisos IV, V I e VIII).

8 M aria P alm a WolíT lem bra q u e. esta disaicionaridade dos profissionais embasada
em critérios, que não são tão neutros e científicos como pretendem ser, f a z com que, muitas
vezes, o parecer técnico afigure-se quase como um .exercício de suposições,. de futurologia.
Isto, a partir de um discurso que j á está dado como única verdade, bastando ajustâ-lo a
cada caso avaliado (VVolíT, 2003: 93).

151
Im portantes, pois, as recomendações do Docum ento Fi­
nal do Program a de Investigação desenvolvido pelo Instituto
Interam ericano de Direitos H um anos (IÍDH).
Diagnostica o relatório que inexiste nos ordenam entos
jurídicos latino-am ericanos q u alq u er tipo dé in tervenção
participativa d'o apenado na eleição do program a de reinser-
ção ao qual estará subordinado. Em regra, os informes sobre o
condenado tendem a ser es tigmatiz antes, agregando expedien­
tes com- sentido infamante altam ente negativo que al par de re­
sultar una agresión a la personálidad, totalmenle contraria a los fines que
■se propone formalmente el sistema, importa en una seria violación a la.
esfera íntima de la persona, que no se encuentra afectada por la pena
privativa de liberdad más que en la estricta medida de lo que, conforme a
la naturaleza de las cosas, se desprende dei mero heclio de la privación de
libertad (Zaííaroni, 1986:'209).
Conclui Zaffaroni que a pena privativa de liberdade não
tem, sob nenhum a justificativa,' o efeito de com prom eter a
personalidade c a intimidade do condenado, de tal sorte que os
técnicos que atuam na execução não estão isentos do segredo
profissional inerente aos seus cargos, isto é, os funcionários não
estão autorizados a divulgar dados relativos à intimidade da
pessoa.
Posto isto, propõe ó relatório (Zaffaroni, 1986: 209-210):

(1) que a observação e a classificação dos condenados ocorra


em um período de.tem po razoavelmente breve, com a in­
tervenção de um a equipe-multidisciplinar controlada pelo
juiz da execução penal, posibilitando a intervenção do
' apenado na estruturação do program a ao qual será subme­
tido;
(2) que os informes das comissões de clasificação se.abstenham
de penetrar em ■aspectos concernentes à esfera íntim a da
. pessoa, baseando-se- em modelos, adequados às característi­
cas culturais de cada com unidade;

152
(3) que os profissionais e.funcionários intervenientes fiquem
subm etidos às regras do segredo profissional ou funcional e
que seus informes não sejam agregados, indiscrim inadam en­
te aos autos do processo. -s

Para finalizar, urge lem brar A nãbela M iranda Rodrigues


quando sustenta que o ftratamento\ quer seja realizado em liberdade,
quer em caso de sua privação, é sempre um direito; do indivíduo e não um
dever que lhe possa ser imposto coativamente, caso em que sempre se abre
a via de uma qualquer manipulação da pessoa humana} redobrada quando
esse tratamento afeta a sua consciência ou a sua escala de valores. O
edireito de não ser traludof é parte integrante do ‘direito de ser diferente3 que
deve ser assegurado em toda sociedade verdadeiramente pluralista e demo­
crática (apud Franco, 1986: 106).

Nota
* O s resultados apresentados neste artigo são fruto: dc pesquisa financiada
pela Pontifícia U n iversidade Católica do R io G rande d o Sul, desenvolvida
ju n t o a o se u P r o g r a m a d e P ó s-g r a d u a ç ã o cm C iê n c ia s C r im in a is
(transdisciplinar) e é parte integrante da versão revista e atualizada do livro
Pena e Garantias (C arvalho, Saio dc. (2003) Pena e Garantias. R io de Janeiro:
L um en Juris, 21 edição - prelo).
T rata-se, em realidade, de reavaliação e atualização de investigação que se
iniciou no ano de 2 0 0 0 , cujos resultados prelim inares foram publicados ao
longo de 2001 e 2002 (N este sentido, conferir, fundam entalm ente, Carva­
lho,- 2002a: 475-4-96; e Cangalho, 2002b: 3-45; 145-174; e 487-500).
Im prescindível, destacar, portanto, o apoio dos integrantes (acadêm icos c
m estrandos) do grupo dc pesquisa em Criminologia- e E xecu ção Penal que
realizaram inestim ável trabalho de coleta de dados docum entais, o qual,
aliado aos férteis debates, deu consistência a inúm eras das conclusões aqui
nom inadas. D esta m aneira, são sujeitos integrantes da pesquisa as mestrandas
Paula-G il Larruscahin, N atália G im encz e Lenora A zevedo de O liveira, e os
acadêm icos dc direito R ainer Hillmarm, M ariana de Assis Brasil e W eigert,
R a fa e l R o d r ig u e s d a S ilv a P in h eiro M a c h a d o , ^R oberta L o n g o n i dc
Vasconcellos, R enata Jardim da Cunha, RaíFaella Pallam olla,1Eduardo Rauber
G onçalves, R ob erto R o ch a Rodrigues, Fernanda Juliano Pasquali e Caroline
Eskenazi.

153
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apresentada aó curso de Pós-G raduação cm Filosofia da P U C -R io para
o b ten ção d o título de m estre. R io de Janeiro.
S á , A lv in o A u g u s to . (1 9 9 3 ) E q u ip e c r im in o ló g ic a : c o n v e r g ê n c ia s e
d ivergências”, in Revista Brasileira de Ciências Criminais (2). São Paulo: R T ,
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-Wolff, M aria Palma. (2003) Antologia de vidas e histórias na piisão, T ese apresentada
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Públicas da U niversidade de Zaragoza para obtenção do título de Doutor.
Z aragoza.
ZafFaroni, Eugênio Raúl. (1988) Criminologia- Aproximadón desde un Margen. Bogotá:
T em is.
________ . (1986) Sistemas Penalesy Derechos, Humanos. B uenos Aires: D epalm a.
 atuação dos psicólogos no;sisfema penal
TaniaKolker

D urante m uito tem po, os saberes e os fazeres dos profis­


sionais de saúde nas prisões estavam quase que irrem ediavel­
m ente alinhados com as teorias mais conservadoras sobre o
crim e, os criminosos e as prisões, cabendo-lhes apenas o papel
de operadores técnicos do poder disciplinar. Esse quadro só
com eça a m udar nas últimas dccadas, quando aparecem os-
prim eiros estudos foucaultianos sobre a prisão e são dados os
prim eiros'passos na construção das bases da escola que viria a'
ser conhecida com o crim inologia critica. À l é m disso, com as
contribuições do m ovim ento da reform a p e n a l i n t e r n a c i o n a l e
com o desenvolvimento da cultura de direitos hum anos o le­
que de contribuições teórico-políticas sobre o tem a amplia-se
consideravelm ente e com eçam a ser criadas as condições para
a form ação de um novo tipo de profissional, quando não mais
engajado politicam ente, pelo menos familiarizado com leituras
mais críticas c desnaturalizadoras.
Sendo, porém , a crim inalidade um fenôm eno tão com ­
plexo e sujeito a múltiplas determ inações, e o tratam ento penal
do crim e objeto de tantas controvérsias, é longo e multifaceta-
do 0 cam inho dos que desejam construir um conhecim ento
mais crítico e transform ador sobre esse cam po de intervenção.
Para tal é preciso estabelecer o diálogo entre saberes tão distin­
tos com o história, sociologia, economia, direito penal, crim ino­
logia, psicologia jurídica, entre outros, É fundam ental entender
o papel da crim inalização da pobreza, da dem onização das
drogas, da espetacularização da violência, da criação da figura
do inim igo interno e da funcionalidade do fracasso da prisão,
especialm ente no contexto atual das sociedades neoliberais
globalizadas. M as é tam bém necessário conhecer os autores
cjue no passado construíram esse objeto que passou a ser visto
com o a causa dos crimes e a razâcTdè~sin*~das“prisõesro-crirni--
noso.
M eu objetivo nesse artigo é delinear um trajeto, propon­
do um percurso p a ra os leitores desejosos de conhecer os prin­
cipais autores e as principais idéias que vêm sendo travadas no
conflagrado território dos discursos sobre as prisões e m anicô­
m ios ju d ic iá rio s e, com isso, fo rn e c e r elem entos p a ra a
problem atização da atuação dos psicólogos nessas instituições.
A prisão, tal qual a conhecem os na atualidade, é um a
instituição que nasce com o capitalismo e desde então, vem
sendo utilizada p ara adm inistrar, seja pela via da correção, seja
p ela via da neutralização, as classes tidas com o perigosas.
E m b o ra hoje seja universalm ente usada como form a de sanci­
o n ar a m aioria dos crimes, durante muitos séculos servia ape­
nas p a ra guardar os criminosos até o julgam ento, ou p ara tornar
possível a aplicação de ouitras penas, como a de trabalho força­
do. Até a sua consagração, em fins do século X V III, diversas
outras formas punitivas foram adotadas, sempre de m aneira
relacionada ao m odelo político-econôm ico vigente, em geral
respondendo à necessidade de form ação, aproveitam ento e /o u
controle da m ão de obra pouco qualificada, ou como instru­
m ento p a ra a gestão das classes; consideradas perigosas (por
sua pobreza e m arginalidade e não apenas p o r sua crim inali­
dade).1 Assim, a escravidão com olpunição esteve p a r a p a r com
a econom ia escravista; as fiánças e indenizações nasceram com

1 Para um a discussão do conceito dc classes perigosas ver G uim arães, 1982 e


C oim b ra, 2001 e para um aprofundam ento da. discussão sobre as novas -
form as de gestão *da p ob reza ver W acqüant, 2001. 1 '

158
a econom ia m onetária; os suplícios e a pena capital foram as
penas preferenciais no período feudal, atingindo apenas aos
extratos mais pobres da população; o trabalho nas galés serviu
para satisfazer a necessidade de rem adores; o banim ento e a
deportação estiveram associados ao processo de exploração
colonial-e-a-prisão^eom-ou-sem-trabalho-forçado-esteve-intima-
m ente ligada à em ergência e ao desenvolvimento do m odo de
produção capitalista.2
P ara m elhor entender a função histórica da prisão e o
papel historicam ente atribuído ao saber médico-psicológico
nessas instituições, convém voltarmos um pouco atrás no tem ­
po, a princípio em com panhia de Foucault e Castel. Com eles
é possível ver como as diferentes formas de assistir e /o u punir
dispensadas aos doentes, deficientes, pobres, desempregados,
marginais e criminosos de nossa história estão relacionadas entre
si, como estas estratégias estão intim am ente relacionadas com
as sucessivas políticas voltadas p ara o controle das classes tra­
balhadoras e como as nossas ações, enquanto técnicos, estão
atravessadas por essas determinações.

- A pena privativa de liberdade veio responder à necessidade de formação de


m ão de obra para alim entar a m áquina capitalística. D esde então, toda a
evolu ção posterior do trabalho nos cárceres (do trabalho produtivo, ao tra­
balho n ã o produtivo e finalm ente à ausência de trabalho) esteve vinculada
ao valor da m ão de obra e do preço dos salários na sociedade livre. Assim,
nos períodos em que a m ão de obra era escassa, os presos eram obrigados
ao trabalho; quando o exército de reserva se expandia e já não havia a
necessidade da m ão de obra d o preso, o trabalho nos cárceres tinha apenas
a função de contribuir para a form ação de um a subjetividade operária e
m ais recentem ente, quando a tecnologia com eçou a tornar os hom ens pres­
cindíveis, o trabalho penal com eçou a desaparecer. Ver em M elossi, e Pavarini,
1980; em Castro,, 1983; em Pavarini, 1996; e em R usche e K irchheim er,
1999.

159
Mendigos, vagabundos, delinqüentes e trabalhadores'

N a obra de Gastei vemos qúe a partir da dissolução da


ordem feudal tem início intenso processo m igratório, que em
pouco tempo vai inchar as cidades, criar extensos bolsões de
pobreza e engrossar ó exército de reserva urbano, aum entando
enorm em ente o núm ero de pessoas involuntariam ente desocu­
padas e sem residência fixa. Forçados a vagar em busca de
trabalho, aqueles que não se enquadram na nova ordem eco­
nômica vão ficando pelas estradas e são em purrados p ara a
miséria, a mendicância, ou o crime. Sem outra alternativa, essas
pessoas passam a com por a clientela dos dois tipos de disposi­
tivos que se firmarão ao longo de todo o século X IV e dos três
seguintes: a assistência, só acessível aos pobres válidos p ara o
trabalho e com residência conhecida, e a internação/reclusão,
nesse momento destinada ao enclausuramento dos doentes vené­
reos, loucos, pobres sem domicílio, mendigos e vagabundos irredu­
tíveis, menores abandonados e moças necessitadas de correção.
N a m edida em que vãó piorando as condições de trabalho,
vão sendo criadas novas leis p ara coagir o povo a aceitá-las e
para punir a recusa ao trabalho. É quando internação3 e reclu­
são se igualam e têm apenas um a função: absorver a massa de
desvi antes, neutralizando-os pelo isolamento e corrigindo-os atra­
vés da tríade trabalho forçado/orações/disciplina (Castel, 1998).
Essa preocupação adm inistrátiva com as populações
pobres logo fará emergir novos sujeitos sociais e novos objetos
de intervenção. Nos.séculos seguintes, e especialmente no perí­
odo que. ficou conhecido como mercantilista, todos os esforços
serão em penhados1pelos Estados, por um lado, p a ra m anter
sob controle a mão de obra disponível, e, por outro, punir os

3 O hospital só se tornará um dispositivo m édico a partir do ftnal do scculo


1 X V III. N esse m om ento, a internação sejá êm hospital, em casa de trabalho
ou em prisão exercerá função m eram ente administrativa.

160
não enquadráveis nessa nova configuração. A pobreza, que nos
séculos anterjor.es era valorizada espiritualm ente, torna-se m o­
tivo de desonra e é*criminalizada. A m endicância, a vagabun­
dagem ou a delinqüência, que até então sé constituíam em
estratégias eventuais de sobrevivência, niuitas vezes p ara fazer
frente a períodos sem trabalho, pouco k pouco vão sc tornando
destinos irreversíveis. M esm o as massas ocupadas são agora
severamente punidas, ao m enor sinal de associação, desobediên­
cia, ou insurreição. Nesse leqiic de- situações facilm ente inter-
cambiáveis, onde segundo Castel, a “crim inalidade representa­
ria ) a franja externa,, alim entada pela área fluida da vagabun­
dagem , ela própria alim entada p o r um a zona de vulnerabilidade
mais am pla, feita da instabilidade das relações cie trabalho e da
fragilidade dos vínculos sociais” (Gastei, 1998: 135), o que, na
verdade, concorrerá p a ra a constituição daqueles que serão os
futuros m endigos, vagabundos ou delinqüentes, serão as pró­
prias instituições criadas p a ra geri-los.
Nesse processo, a figura do m endigo é recortada entre
esses novos objetos e passa a scr percebida “como um a espécie
de povo (que corre o risco de se tornar) independente”, que
não conhece “nem lei, nem religião, nem autoridade, nem
polícia”, tal com o “um a nação libertina e indolente que nunca
tivesse tido regras” (Castel, 1998: 75). A m endicância é, então,
perseguida em toda a E uropa pré-capitalista e p a ra conjurar
tal am eaça, é criado o' dispositivo da internação, constituído
por um a vasta rede de casas de trabalho, casas de detenção e
hospitais cuja função principal será a transform ação, dessas for­
ças inúteis ou potencialm ente perigosas em força de trabalho.4

4 Para as casas dc trabalho eram enviados os m endigos aptos para o trabalho,


os necessitados, os pequ en os ladrões, as crianças e jovens, rebeldes, as viúvas,
os órfeos, etc. S egun do M elossi e Pavarini, essas casas não eram um lugar
de p rodu ção e sim , um lugar on d e se aprendia a disciplina de produção.
Além disso, essas instituições serviam com o am eaça aos dem ais pobres, que
eram obrigados a aceitar qualquer trabalho, sob p en a de serem internados.

161
O u tro personagem que em ergirá dessa nova classifica'
ção e que m erecerá um tratam ento rigoroso é o vagabundo,
que se assem elha aos m endigos por ser pobre e não estar tra­
balhando, mas que deles se diferencia por não ter pertencim ento
com unitário. Esta categoria tão am pla que, segundo Castel, até
o século XVI a b a r c a r á f<pessoas que- m endiguem -sem -m otivo;—
v e lh a c o s, m en d ig o s que sim ulem en ferm id ad es, ociosos,
luxuriqsos,' rufiões, tratantes, imprestáveis, indolentes, m alaba­
ristas, cantores, exibidores de curiosidades, arrancadores de
dentes, vendedores de teriaga, jpgadores de dados, prostitutas,
e até operários, ou rapazes barbeiro”, a partir dos séculos seguin­
tes irá ganhando contornos mais precisos (Gastei, 1998: 120).
Assim, em 1566 um decreto real estabelecerá que:
v a g a b u n d o s sã o p e s s o a s o c io s a s , p r e g u iç o s a s , p e s s o a s q u e
n ã o p e r t e n c e m a n e n h u m s e n h o r , p e ss o a s a b a n d o n a d a s ,
p e s s o a s s e m d o m ic ílio , o ficio e .o c u p a ç ã o (C a stel, 1 998: 121).

E outro de 1701 declarará que:


v a g a b u n d o s e p e s s o a s se m fé n e m lei (são) a q u e le s q u e n ã o
tê m p r o fis s ã o , n e m o fíc io , n e m d o m ic ílio c e r to , n e m lu g a r
p a r a su b sistir e q u e n ã o sã o r e c o n h e c id o s e n ã o p o d e m
v a le r -s e d a r e c o m e n d a ç ã o d e p e ss o a s d ig n a s d e fé q u e a te s­
te m s o b r e a su a b o a c o n d u ta e b o n s c o stu m e s (C a stel, 19 9 8 :
121 ).

N a m esm a época aparecerá farta legislação que deter­


m in ará com o os vagabundos devem ser tratados: n a Inglaterra
de 1547 os que se recusam a trabalhar são entregues a senho­
res com o escravos por dois anos, se reincidem um a vez são
sentenciados à escravidão pelojresto da vida e se voltam a rein­
cidir são condenados à m orté (Castel, 1998). N a França de
m eados do século X V I, os vagabundos são obrigados a trab a­
lh ar na construção de fortalezas e estradas. Em Bruxelas, um
decreto estabelece punição paira os trabalhadores que deixem
seus senhores p a ra to rn arem -se m endigos ou vagabundos
(Rusche e K irchheim er, 1999): Devido a sua situação extrater­

162
ritorial, os vagabundos sâo punidos tam bém com o banim ento,
o trabalho forçado nas galeras, ou a deportação para as colônias.
Gastei nos explica o motivo deste tratam ento especial:
A existência dessas populações instáveis, disponíveis para
todas as aventuras, representa uma ameaça para a ordem
----- ———pública.-(,..)-Não-SÓ_os_vagabundos_individualmente,_co^_
m e te m d e lito s , m a s t a m b é m a in s e g u r a n ç a q u e r e p r e se n ­
ta m p o d e a ss u m ir u m a d im e n s ã o c o le tiv a . P e la fo r m a ç ã o
de g r u p o s q u e e x p o lia m o c a m p o e d e s e m b o c a m às v e z e s
n o r o u b o a m a o a r m a d a o r g a n iz a d o , p o r su a p a r tic ip a ç ã o
n a s e m o ç õ e s e n o s m o tin s p o p u la r e s , o s v a g a b u n d o s , s e p a ­
r a d o s d e tu d o e v in c u la d o s a n a d a , r e p r e se n ta m u m p e r i­
g o , r ea l o u fa n ta s m á tic o , d e d e s e s ta b iliz a ç ã o s o c i a l...
Afinal,
q u e m n a d a te m e n ã o está' lig a d o a n a d a é le v a d o a fazer
c o m q u e a s c o isa s n ã o p e r m a n e ç a m c o m o sã o . Q u e m n a d a
tem p a r a p r e se r v a r c o rr e o risco d e q u e r e r a p r o p r ia r-se d e
tu d o . A fu n ç ã o d a c la sse p e r ig o s a , q u e e m g e ra l é a tr ib u í­
d a a o p r o le ta r ia d o d o s é c u lo X I X , j á é a ss u m id a p e lo s
v a g a b u n d o s . (...) R e a lm e n te , sa b e r q u e a m a io r ia d o s in d i­
v íd u o s r o tu la d o s d e m e n d ig o s o u v a g a b u n d o s e ra , d e fa to ,
fo r m a d a p o r p o b r e s c o ita d o s le v a d o s a tal situ a ç ã o p e la
m isé r ia e p e lo is o la m e n to iso c ia l, p e la fa lta d e tr a b a lh o e
p e la a u s ê n c ia d e su p o r te s s o c ia is , n ã o p o d ia d e se m b o c a r
e m n e n h u m a p o lít ic a c o n c r e ta n o q u a d r o d a s s o c ie d a d e s
p r é -in d u s tr ia is. E m c o n tr a p a r tid a , e s tig m a tiz a n d o a o m á ­
x im o o s v a g a b u n d o s , c r ia v a m -se o s m e io s r e g u la m e n ta r e s
e p o lic ia is p a r a e n fr e n ta r o s tu m u lto s p o n tu a is p r o v o c a d o s
p e la r e d u z id a p r o p o r ç ã o d e v a g a b u n d o s v e r d a d e ir a m e n te
p e r ig o s o s . P o d ia -s e ta n tb é m , s è m d ú v id a , p e sa r u m p o u c o
so b r e o q u e , e n t ã o , fu n c io n a v a c o m o . m e r c a d o d e tr a b a ­
l h o , t e n t a n d o o b r ig a r in a tiv o s .a se é m p r e g a r e m p o r q u a l­
q u e r v a lo r a fim d e fa z e r o s salários^ c a ír e m (C a stel, 1998:
1 3 8 -1 3 9 ). .

M as, precisarem os chegar ao século XVIII p ara assistir


ao processo de especialização das instituições encarregadas do
seqüestro das populações marginalizadas. Nesse m om ento em

163
cjue cresce a população miserável,5 desenvolve-se a produção e
multiplicam-se as riquezas e as propriedades, é preciso aperfei­
çoar os instrumentos de controle social. Com o aparecim ento
dos grandes arm azéns - que estocam m atérias-prim as e m er­
cadorias passíveis cie serem roubadas - e das grandes oficinas -
que reúnem centenas de trabalhadores descontentes, e onde há
máquinas que podém ser danificadas - nasce um a nova neces-
' sidadc de segurança e aparecem os primeiros rudim entos da
Polícia (Foucault, 1993). Os crimes contra a propriedade pas­
sam a prevalecer sobre os crimes de sangue e os criminosos do
século anterior, geralmente ‘hom ens prostrados, mal alim enta­
dos, levados pelos impulsos e pela cólera” (Castel, 1998: 71),
são agora substituídos por bandos profissionalizados e organi-
zados. Para fazer frente a esse novo quadro e ao aparecim ento
de formas embrionárias de organização das massas trabalha­
doras, novas leis repressivas são criadas, e a Justiça -- que du­
rante toda. a alta Idade Média, funcionara através de tribunais
arbitrais - vai sendo progressivamente substituída por um con­
junto de instituições controladas pelo Estado, que terá a fun­
ção de a d m in is tra r as massas revoltosas e asse g u ra r a o rd e m
pública. C om eça,'então, a ser constituído o embrião daquilo
que se tornará o aparelho judiciário.
' A este respeito, Foucault dirá que:
A p a rtir d e u m a c er ta é p o c a , o siste m a p e n a l, q u e tin h a
e s s e n c ia lm e n te u m a fu n ç ã o fisc a l n a Id a d e M é d ia , d c d i-
c o u -s e à lu ta a n ti-se d ic io sa . A rep ressã o d a s r ev o lta s p o p u ­
lares tin h a sid o até e n tã o so b r e tu d o ta refa m ilita r. F o i e m
se g u id a a sse g u r a d a o u m e lh o r , p r e v e n id a , p o r u m s is te m a
c o m p le x o ju s tiç a -p o líc ia -p r isa o (F o u c a u lt, 1 9 9 2 : 5 0 ) ..

Para ele, a Justiça, a serviço da burguesia, assumirá como


um de seus papéis: * ■ '

5 Segundo Castel, no período revolucionário havia na França dez m ilhões de


indigentes, trezentos mil m endigos, cem mil vagabundos, cento e trinta mil
m enores abandonados e alguns m ilhares de loucos.
fa z e r com . q u e ei p le b e n a o p r o le t a n z a d a a p a r e c e s s e aos
o lh o s d o p r o le ta r ia d o c o m o m a r g in a l, p e r ig o s a , im o r a l,
a m e a ç a d o r á 'p á ’r a a s o c ie d a d e in te ir a , a e s c ó r ia d o p o v o , o
r e b o ta lh o , a ‘g a tu n a g e m 5; trata-se p a ra a b u r g u e s ia d e im p o r
a o p r o le ta r ia d o , p e la v ia d a le g is la ç ã o p e n a l, cla p r isã o ,
m a s ta m b é m d o s j o r n a is , d a ‘lite r a tu r a ’, c e r ta s c a te g o r ia s
d a m o r a l d ita ‘u n iv e r s a l’ q u e s e r v ir ã o d e b a r r e ir a id e o ló g i­
c a - e n t r è e la e a p le b e n ã o p r o le t a n z a d a (F o u c a u lt, 1992:
5 0 -5 1 ).

O u ainda nas palavras do áutor:


J á q u e á s o c ie d a d e in d u s tria r e x ig e ' q u e a r iq u e z a e ste ja
d ir e ta m e n te n a s m ã o s n ã o d a q u e le s q u e a p o s s u e m m a s
d a q u e le s q u e p e r m ite m a e x tra ç ã o , d o lu c r o fa z e n d o -o s tra­
b a lh a r, c o m o p r o te g e r esta r iq u eza? E v id e n te m e n te p o r u m a
m o r a l r ig o ro sa : daí esta fo r m id á v e l o fe n s iv a d e m o r a liz a ç ã o
q u e in c id iu so b r e a p o p u la ç ã o d o s é c u lo X I X . (...) F o i a b s o ­
lu t a m e n t e n e c e s s á r io c o n s titu ir o p o v o c o m o u m su je ito
m o r a l, p o r t a n t o s e p a r a n d o - o d a d e lin q ü ê n c ia , p o r t a n to
s e p a r a n d o n itid a m e n t e o g r u p o d c d e lin q ü e n te s , m o s tr a n ­
d o - o s c o m o p e r ig o s o s n ã o a p e n a s p a r a o s r ic o s, m a s ta m ­
b é m p a r a o s p o b r e s , m o s tr a n d o -o s c a r r e g a d o s d c to d o s os
v íc io s c r e s p o n s á v e is p e lo s m a io r e s p e r ig o s (F o u c a u lt, 1992:
1 3 2 -1 3 3 ).

Ao m esm o tem po, na passagem da sociedade feudal-


m onárquica p a ra a nova sociedade capitalista liberal nasce um a
nova form a de punir. Nesse m om ento, que corresponde à for­
m ação de um novo m odo de exercer o poder, o que está em
jogo é a em ergência de um a outra form a de gerir os hom ens
que im plica um a vigilância individual, perpétua e ininterrupta,
ou seja na adoção de um a nova tecnologia, denom inada por
Foucault de disciplina. Esta tecnologia, que será colocada em
prática nas escolas, nos conventos, nas fábricas, nos hospitais e
nos quartéis, atravessará a sociedade de-ponta a p o nta consti­
tuindo quadros administráveis que perm itirão a transform ação
das m ultidões confusas e perigosas em m ulüplicidades organi­

165
zadas e m anipuláveis. Segundo Foucault, c quando as classes
dom inantes descobrem que do ponto de vista da econom ia do
p o d er é “mais eficaz e mais rentável vigiar que pu n ir” (Foucault,
1 9 9 2 :1 3 0 )/
T rata-se, segundo ele
d e e s t a b e le c e r u m a n o v a e c o n o m ia d o p o d e r d c c a stig a r ,
a s s e g u r a r u m a m e lh o r d istr ib u iç ã o d e le , [d e fa z e r c o m q u e]
se ja r e p a r tid o e m c ir c u ito s h o m o g ê n e o s q u e p o s s a m se r
e x e r c id o s e m to d a p a r te d e m a n e ir a c o n t ín u a e a té o m a is
f in o g r a u d o c o r p o s o c ia l, [d e to r n á -lo ] m a is r e g u la r , m a is
e f ic a z , m a is c o n s ta n te c m a is b e m d e ta lh a d o e m se u s e fe i­
tos. (F o u c a u lt, 1 9 9 3 : 75). ■

P ara á nova ordem jurídico-adm inistrativa, fundada no


contrato,, onde a punição dos criminosos deixa de ser um a prer-
. rogativa do rei p a ra tornar-se um direito da sociedade e em
que cidadão é sujeito e ao m esm ç tem po assujeitado,
o p r e j u íz o q u e u m c r im e traz a o c o r p o s o c ia l é a d e s o r d e m
q u e in t r o d u z n e le: o e s c â n d a lo q u e su sc ita , o e x e m p lo q u e
d á , a in c it a ç ã o a r e c o m e ç a r se n ã o é p u n id o , a p o s s ib ilid a ­
d e d e g e n e r a liz a ç ã o q u e traz c o n s ig o . P a r a se r ú til, o c a s­
tig o d e v e te r c o m o o b je tiv o a s c o n s e q ü ê n c ia s d o c r im e ,
e n t e n d id a s c o m o a sé r ie d e d e s o r d e n s q u e e ste é c a p a z d e
a b r ir .... ( D e v e ) c a lc u la r u m a p e n a e m f u n ç ã o n ã o d o c r i­
m e , m a s d e s u a p o s s ív e l r e p e tiç ã o . V is a r n ã o à o fe n s a p a s ­
s a d a m a s a d e s o r d e m fu tu r a (F o u c a u lt, 1 9 9 3 : 85 ).

C om o fim dos suplícios que dom inaram o sistema de


punições no período feudal, nasce um a nova m aneira de con­
ceber a s ;penas que j á não v isa rá la n to ao corpo e sim á alma.
A p artir de então, de acordo com o princípio de igualdade
jurídica, todos devem ser tratados de form a igual perante a lei
e não há crim e se não houver um a lei que o tipifique.6.Aparece

6 N o p eríod o feudal, os castigos nâo estavam definidos em lei, ficando por


con ta da v o n ta d e do senhor.
a noçao de infração, que - diferentem ente do dano ou ofensa
que diziam respeito apenas ao acusado, à vitima e ao soberano
lesado em sua autoridade - im plica o ataque ao próprio esta­
do, à sua lei, e à sociedade. E o : criminoso passa a ser visto
com o alguém que voluntariam ente rom peu o pacto social de-
vendo,por-tanto,-serconsideradocom o_inim igo_dasoçiedade_
(Foucault, 1996). Além disso, a pena passa a ser quantificada e
o tem po se torna a sua m edida principal. P ara essa sociedade
onde a liberdade é um dos m aiores bens, a punição predom i­
nante se rá 'a suspensão tem porária da liberdade. A prisão tor­
na-se a punição p o r excelência,7mas diferente da velha prisao-
m asm orra do período anterior, a prísão-observatório de agora
perm itirá punir e ao mesmo tem po isolar, vigiar, controlar,
conhecer e corrigir. Neste m om ento a obra de enquadrar e
individualizar a população m arginal se verá completa: se para
o senso com um a prisão nasce p ara dar conta da delinqüência,
p a ra esta leitura, que podem os cham ar de genealógica, a delin­
qüência será um efeito-instrum ento da prisão. Dito pelo pró­
prio Foucault:
A té c n ic a p e n ite n c iá r ia e o h o m e m d e lin q ü e n te sã o d e a l­
g u m m o d o ir m ã o s g ê m e o s . N in g u é m c r e ia q u e fo i a d e s c o ­
b e r ta d o d e lin q ü e n te p o r u m a r a c io n a lid a d e c ie n tific a q u e
tr o u x e p a r a a s v e lh a s p r isõ e s o a p e r fe iç o a m e n to d a s té c n i­
c a s p e n ite n c iá r ia s . N e m ta m p o u c o q u e a e la b o r a ç ã o in te r ­
n a d o s m é to d o s p e n ite n c iá r io s te r m in o u tr a z e n d o à luz a
e x is tê n c ia ‘o b je tiv a ’ d e u n ia d e lin q ü ê n c ia q u e a a b stra ç ã o
e a in fle x ib ilid a d e ju d ic iá r ia s n ã o p o d ia m p e r c e b e r . E las
a p a r e c e r a m a s d u a s ju n ta s e n o p r o lo n g a m e n to u m a d a
o u tr a c o m o u m c o n ju n to íte c n o ló g ic o q u e fo r m a e reco rta
o o b je to a q u e a p lica seu s in stru m en to s (F oucault, 1993: 226).

7A té então, a prisão n ão era vista com o um a punição em si, servindo apenas


ao propósito d e m anter sob guarda, evitando a fuga, alguém que se queria
punir por outros m eios.

167
Os infratores, um a vez captados pelas malhas- da lei, se­
rão submetidos a um a operação, que antes.de visar corrigi-los,
vai transformá-los em-delinqüentes. Não im porta se o infrator
em questão foi premido pela necessidade,.ou foi flagrado no
seu único crime. A m áquina penitenciária irá tragá-lo por um a
de. suas entradas- possíveis e quando o. devolver, se um dia o
fizer, já será na qualidade de delinqüente. M arcados p a ra sem­
pre. pela infamia; afastados do seu meio social, em geral por
muitos anos e irreversivelmente; segregados em meio a crimi­
nosos de todos os tipos, com diferentes graus de habitualidade
criminosa; ocupados com um trabalho inútil, que de nada lhes
servirá quando voltarem à liberdade; submetidos a condições
que só estimularão a sua revolta; perseguidos por seu estigma e
por sua folha corrida* recusados no m ercado de trabalho por
seus antecedentes penais e, doravante sob a, vigilância freqüen-
tc da polícia, os condenados à pena de prisão- serão tam bém
condenados à reincidência.
Segundo Foucault:
(O ) a p a r e lh o p e n ite n c iá r io , c o m to d o o p r o g r a m a t e c n o ló ­
g ic o d e q u e e a c o m p a n h a d o , efetu (a) u m a c u r io sa su b sti­
tu ição: d a s m ã o s d a ju s tiç a e3e r e c e b e u m 'c o n d e n a d o ; m a s
aq u ilo, so b re q u e ele d e v e se r a p lic a d o , n a o é a in fr a ç ã o , é
c la r o , n e m m e s m o e x a ta m e n te o in fr a to r, m a s u m o b je to
• u m p o u c o d ife r e n te e d e fin id o p o r v a r iá v e is q u e p e lo m e ­
n o s n o in íc io n ã o fo r a m le v a d a s c m c o n ta n a s e n te n ç a ,
p o is só era m p e r tin e n te s p a r a u m á te c n o lo g ia c o rr etiv a .
E sse o u tr o p e r s o n a g e m , q u e o a p a r e lh o p e n ite n c iá r io c o lo ­
c a n o lu g a r d o in f r a t o r c o n d e n a d o , é o d e l in q ü e n t e .
(F o u ca u lt, 1993: 22 3 )

Foucault nos fala da operação de transformação do in­


frator em delinqüente em sua obra Vigiar e Punir. Destaca-se
neste empreendim ento o papel da investigação biográfica:

8 T erm o que no járgão policial significa atestado de antecedentes policiais.

163
O d e lin q ü e n te se d is tin g u e d o in fr a to r p e lo fa to d e n ã o ser
ta n to se u a t o 'q u à iito . s ü a v id a o q u e m a is o c a r a c te r iz a .
(. . :) p ó r 'trás.d o in fr a to r a q u e m o in q u é r ito d o s fa to s p o d e
a tr ib u ir a r e s p o n s a b ilid a d e d e u m d e lito , r e v e la -s e o c a r á ­
ter d e lin q ü e n te c u ja le n t a fo r m a ç ã o jtr a n s p a r e c e n a in v e s ­
tig a ç ã o b io g r á fic a . A in tr o d u ç ã o d o ‘b io g r á fic o ’ é im p o r ta n te
n a h istó r ia d a p e n a lid a d e . P o r q u e e la fa z e x is tir o ‘c r im i­
n o s o ’ a n te s cio c r im e e, n U m r a c io c fn io -lim ite , fo r a d e s te ” .
(...) “ O d e lin q ü e n te se d is tin g u e ta m b é m d o in fr a to r p e lo
fa to cie n ã o s o m e n t e se r o a u to r d e se u a to (a u to r r e s p o n -
- sá v e l é m fu n ç ã o d e c e r to s c ritér io s d a v o n ta d e liv r e e c o n s ­
c ie n te ), m a s ta m b é m d e esta r a m a r r a d o a s e u d e lito p o r
u m fe ix e d e fios c o m p le x o s (in stin to s, p u ls õ e s , te n d ê n c ia s ,
te m p e r a m e n to ). (F o u c a u lt, 1 993: 2 2 3 :2 2 4 ) ,

' P ara captar, essa nova objetividade, novos sujeitos serão


investidos de poder e novas técnicas de exame serão desenvol­
vidas, m as antes será.preciso esperar pela nova reform a penal,
inspirada pelas doutrinas positivistas. É quando será constituí­
do . fCum conhecim ento positivo dos delinqüentes e de suas es­
pécies, m uito diferente da qualificação jurídica dos delitos c de
su a s c ir c u n s t â n c ia s ” (F o u c a u lt, 1 9 9 3 : 2 2 5 ), q u e s e r á c o n h e c id o
com o criminologia.
Estamos agora no séculoX IX , período caracterizado pelas
grandes revoltas e sublevações populares cuja disseminação deve
ser im pedida a todo custo. Segundo H obsbaw n, <<hunca na his­
tória da E uropa e poucas vezes cm qualquer outro lugar, o
revoiucionarism o foi tão endêm ico, tão .geral, tão capaz de se
espalhar p o r propaganda deliberada como por contágio espon­
tâneo”, como nesse m om ento (Hobsbawn, 1998: 127). N ão por
acaso, aparecem no período, diversos estudos sobre as massas
e sua tendência ■a agir criminosamente, por contágio e irracional­
m ente, levada por impulsos de m om ento.9 A um entam as ri-

3 O s autores que se destacaram a esse respeito foram G abriel T arde c Lc


Bon. V er em Barros, R .D .B ., 1994, um a apresentação dessa discussão e sobre
a constituição do m odo-indivíduo, para a qual concorreram diversas institui­
ções nascidas com a m odernidade, com o a escola, o hospital, a prisão etc.
O s infratores, um a vez captados pelas malhas da lei, se­
rão subm etidos a um a operação que antes de visar corrigi-los,
vai transform á-los ém delinqüentes. N ão im porta se o infrator
em questão foi prém ido pela necessidade, ou foi flagrado no
seu único crim e. A m áquina penitenciária irá tragá-lo por um a
de suas entradas possíveis e quando' o dêvõlvêf7"se_üm—dia~o_
fizer, j á será na qualidade de delinqüente. M arcados p ara sem-
, pre p e la infam ia; afastados do seu meio social, em geral por
m uitos anos e irreversivelm ente; segregados em meio a crim i­
nosos de todos os tipos, com diferentes graus de habitualidade
; crim inosa;, ocupados com um trabalho inútil, que de nada lhes
- servirá q u an d o voltarem à liberdade; submetidos a condições
que só estim ularão a sua revolta; perseguidos por seu estigma e
:p o r sua folha corrida,8 recusados no m ercado de trabalho por
seus antecedentes penais e, doravante sob a vigilância freqüen­
te da polícia, os condenados à pena de prisão serão tam bém
condenados à reincidência.
Segundo Foucault:
(O ) a p a r e lh o p e n ite n c iá r io ,, c o m t o d o o p r o g r a m a t e c n o ló ­
g ic o d e q u e é a c o m p a n h a d o ; e fetu (a ) u m a c u r io s a su b sti­
tu iç ã o : d a s m ã o s d a j u s t iç a e le r e c e b e u m c o n d e n a d o ; m a s
a q u ilo so b r e q u e e le d e v e s e r a p lic a d o , n ã o é a in fr a ç ã o , é
c la r o , n e m m e s m o e x a t a m e n t e o in fr a to r , m a s u m o b je to
u m p o u c o d ife r e n te e d e f in id o p o r v a r iá v e is q u e p e lo m e ­
n o s n o in íc io n ã o fo r a m le v a d a s e m c o n ta n a s e n te n ç a ,
p o is s ó e r a m p e r tin e n te s p a r a u m a te c n o lo g ia c o r r e tiv a .
E ss e o u t r o p e r s o n a g e m , q u e o a p a r e lh o p e n ite n c iá r io c o lo ­
c a n o lu g a r d o in f r a t o r c o n d e n a d o , é o d e l in q ü e n t e .
( F o u c a u lt, 1 9 9 3 : 2 2 3 )

F oucault nos fala da operação de transform ação do in­


fra to r em delinqüente em sua obrai Vigiar e Punir. Destaca-se
neste em preendim ento o papel d a investigação biográfica:

“ T e r m o q u e n o jargão policial significa atestado de antecedentes policiais.

168
.O d e lin q ü e n t e se d istin g u e d o in fr a to r .p elo fato d e n ã o ser
ta n to se u a to q u a n to s.ua v id a o q u e m a is o c a r a c te r iz a .
( . . . ) p o r tr á s d o in fr a to r a q u e m o in q u é r ito d o s fa to s p o d e
a tr ib u ir a r e s p o n s a b ilid a d e d e u m d e lito ,.r e v e la -s c o c a r á ­
ter d e lin q ü e n te c u ja le n ta f o r m a ç ã o tr á n sp a r e c e n a in v e s­
tig a ç ã o b io g r á fic a . A in tr o d u ç ã o d o ‘b io g r á fic o ’ é im p o r ta n te
----------------— n a-h istór-i a -d a _ p e n a lid a d e. F o r q u e c ia fa z e x is tir o ‘c r im i­
n o s o ’ a n te s d o c r im e e , n u m r a c io c ín io -lim ite , fo ra d e s t e ”7"
(...) “ O d e lin q ü e n t e se d is tin g u e ta m b é m d o in fr a to r p e lo
fa to d e não' s o m e n t e se r o a u to r d e se u a to (a u to r respon>
s á v e í e m fu n ç ã o d e c e r to s c r ité r io s d a v o n ta d e liv r e e c o n s ­
c ie n te ), m a s ta m b é m d e esta r a m a r r a d o a se u d e lito p o r
u m -feixe d e fio s c o m p le x o s (in stin to s, p u lsõ e s , te n d ê n c ia s ,
te m p e r a m e n to ). (F o u c a u lt, 1 9 9 3 : 2 2 3 - 2 2 4 )

P ara captar essa nová objetividade, novos sujeitos serão


investidos de poder e novas técnicas de exame serão desenvol­
vidas, m as antes será preciso esperar pela nova reform a penal,
inspirada pelas doutrinas positivistas. É quando será constituí­
do "um conhecim ento positivo dos delinqüentes e de suas es­
pécies,'m uito diferente da qualificação jurídica dos delitos e de
suas circunstâncias” (Foucault, 1993: 225), que será conhecido
com o criminologia.
Estamos agora no século XXX, períodó caracterizado pelas
grandes revoltas e sublevações populares cuja disseminação deve
ser im pedida a todo custo. Segundo Hobsbawn, “nunca n a his­
tória da E uropa e póucas vezes em qualquer outro lugar, o
revolucionarism o foi tão endêm ico, tão geral, tão capaz de se
espalhar p o r propaganda deliberada ;Como por contágio espon­
tâneo”, como nesse m om ento (Hobsbawn, 1998: 127). N ão por
acaso, aparecem no período, diversos estudos sobre as massas
■e ;sua tendência a agir criminosamente,' por contágio e irracional­
m ente, levada por impulsos de m om ento.9 A um entam as ri-

9 .Os autores que se destacaram a esse respeito foram Gabriel T arde c Le


Bon. V er cm Barros, R .D .B ., 1994, um á apresentação dessa discussão e sobre
a constituição do m odo-indivíduo, para a qual concorreram diversas institui­
ções nascidas com a m odernidade, com o a. escola, o hospital, a prisão etc.
^ produtividade, cresccm as cidades.’m as como sem-
ciuC?aS rinqueciment0 Poucos' se ^az com a espoliação e a
fC, 0 ^ - Q dos demais. A m ecànizáção dás fábricas vai dei-
cgrcg‘ v trabalho inúmeros artesãos que antesfiguravam entre
jjiaCi0res.mais qualificados, engrossando ainda mais o
0 5 t r gnte de indigentes. Armazéns, celeiros e fábricas são sa-
c0iitinê rrláquinas são destruídas, as multidões tom am as ruas
^ d0S,a trabalhadora começa a m ostrar cada vez m aior ca-
e 3 ,Tl< , c|e organização. Crescem a indigência e a criminali-
p*1 ^ ílarnsin^0 as discussões ;sobres,o crime e o tratam ento
d ^ c’ .in,jnosos» é a penalidade, antes -vista como um a reação
d°s i n f r a ç ã o ; passa a funcionar como um meio de agir so-
Pe^ aomportan:ient0 C aS disposições infrator. Por sua vez,
bfC ° ’ciência pa:ssa à ser cada vez.m ais debatida nos meios
6 c afins: se em u m p rim e iro m o m e n to o fe n ô m e n o d a
jLir^ . ^ nCja perm itia ver o fracasso, d a p risã o e m seus objeti-
^ corri^ír o crim inoso e p re v e n ir novos crim es, logo essa
.„q s , atribuída ao próprio, d elin q ü e n te , visto c o m o um tip o
fíiÜlílS|.r « 0 efeit° ‘d elin q ü ên cia’ p ro d u z id o p ela p risã o to rn a ­
i s 1" - i m a do delinqüente, ao. q u a l-a p risã o d ev e d a r u m a
se Pr° D& adequada” (Foucault, 1997: 31).
í&?°SÍQ0tf\ a justificativa cie que a punição deve visar a pre-
Hp novos crimes e evitar a reincidência, a pena agora
,-rãO , .
: vel v jeVaI* “em conta o que e o criminoso em sua natureza
^cve . 0 grau.presum ível de su a m a ld a d e , a q u a lid a d e in -
Pf°^Un de sua vontade” (Foucault, 199.3: 90). Dessa forma,
• trfr15 : ' foucau lt. em suas conferências brasileiras,
cW '
fàda a penalidade do século X IX passa a scr u m controle,
■ não tanto sobre se o q u e :fiz e r a m o s in d iv íd u o s e stá e m
conformi.dade,ou n ã o c o m a lei, m a s .a o n ív e l d o q u e p o ­
dem fazer, do que sã o c a p a z e s d e fazer, d o q u e e stã o su jei-
tos a fazer, do qu e e stã o n a im in ê n c ia d e fa z er . [N a s c e ] a
noção de pcriculosidade (que) sig n ifica q u e o in d iv íd u o d e v e
. ser considerado pela so c ied a d e a o n ív e l d e suas v írtu a lid a d es
• ■ e não ao nível de seu s atos; n ã o . a o n ív e l d as in fr a ç õ e s e fe -

170
(.ivas a um a lei efetiva, mas das virtualidadcs de com porta­
m ento que elas representam (Foucault, 1996: 85).
Por, sua;vez, naturalizada a reincidência, esta servirá:
de justificativa p a ra u m a rápida: m odernização das técni­
cas de controle-e repressão utilizadas pelos aparelhos poli­
ciais, dando lugar ao aparecim ento de um a ‘polícia cientí­
fica’. (...) Porém , os efeitos da m odernização da polícia não
se restringiram apenas ao 'muridó do crim e’; logo se fize­
ram sentir p o r todo o tecido social, principalm ente ju nto
às cam adas da população que exigiam rhaiores cuidados
em termos de contenção, vigilância e disciplinarização. (...)
' N o bojo desse processo, apresentando-se inicialm ente como
p anacéia p a ra ò problem a da reincidência crim inal, cons­
tituiu-se u m a das mais im portantes técnicas de controle
que hoje nos atinge a todos: a identificação pessoal através
das im pressões digitais (G arrara, 1998: 64).
P a ra 'Foucault, se anteriorm ente julgar era estabelecer a
verdade de um crim e e apontar o seu autor, agora o objetivo é
ju lg ar tam bém as paixões, as vontades e as disposições. Isto
quer dizer que punem -se as agressões, mas por meio delas as
agressividades; os crimes sexuais, mas ào mesmo tem po, as
perversões; os assassinatos mas através deles os impulsos e de­
sejos (Foucault, 1993: 21). Im porta agora,.não apenas estabele­
cer que lei sanciona esta infração, mas verificar, tam bém , até
que ponto a vontade do réu determ inou o crime, se o infrator
apresenta algum a periculosidade e d e .q u e m aneira ele será
m elhor corrigido. Isso significa que a partir de agora, o juiz já
não julgará sozinho. D e um lado, a m edicina m ental será cha­
m ad a ao tribunal p ara decidir sobre a responsabilidade c a
periculosidade do criminoso, avaliando se ele se encontrava em
estado de loucura n a hora. do ato e se ele é acessível à sanção
penal e de outro, um a nova m odalidade rde técnicos avaliará o
efeito da pena sobre o condenado e se ele merece ou não ser
posto em liberdade. P ara responder a esses novos m andatos,
em ergem diversas instituições, laterais à justiça, com as funções

171
de exam e, vigilância e correção. E com elas, aparecera tam ­
bém os novos atores que doravante se encarregarão de p ro d u ­
zir diagnósticos e prognósticos acerca do preso e de acom panhar
as transform ações que estão se operando em seu com porta­
m ento, tornando possíveis um conhecim ento individualizado
do crim inoso e u m a individualização- dás penas (por^exemplo,
através da abreviação ou o prolongam ento das mesmas) que
funcionarão com o julgam entos adicionais. É quando, segundo
Foucault,
todo aquele ‘arbitrário5 que, no antigo regime penal, per­
mitia aos juizes modular a pena e aos príncipes eventual­
mente dar fim a ela, todo aquele arbitrário que os códigos
modernos retiraram do poder judiciário, vemo-lo se
reconstituir, progressivamente, do lado do poder que gere
e controla a punição (Foucault, 1993: 219-220).
iNo -iiT»çicKdo '«cciilo^X I^êstáj^é^^^m ^i^^V tíçâplBntre^o £ *.

dessas-duas•initituiçÔés r ” ------ r u’ 1- - - = - - - 1 '


r ~ U U ,u f \
saber á a. medicina^

P ara Foucault, essa será a chave de m uitos dos excessos que a


autonom ia da instância carcerária viabilizará. Segundo suas pró­
prias palavras:
*■;
esse excesso é desde muito cedo constatado, desde o nasci­
mento da prisão, seja sob a forma de práticas reais, seja
sob a forma de projetos. Ele não veio, em seguida, como
um efeito secundário. A grande maquinaria carcerária está
ligada ao próprio funcionamento da prisão. Podemos ver
o sinal dessa autonomia nas violências ‘inúteis5 dos guar­
das ou no despotismo de íuma administração que tem o
privilégio das quatro paredes. (Foucault, 1993: 220)
A prisão, en quanto instrum ento de m odulação da pena,
adquire um po d er tal, que além de ser o lugar onde a duração

172
do castigo é decidida.c um certO'saber sobre o criminoso é
produzido, é tam bém o palco onde se definirá, de acordo com
as norm as disciplinares vigentes em cada estabelecimento, que
novas punições se acrescentarão às determ inadas por lei. É
quando a tortura, m uito usada no período feudal p ara fins de
-prova.-será.ressignificada e ga n h a rá novos objetivos. N esse lu­
gar que funcionará como um m icrotribunal, os presos serão
observados dia e npite, avaliados, classificados, punidos ou re­
com pensados. Segundo Foucault, dessa observação se extrairá
um .saber cujo objetivo não é mais determ inar se algum a cois?.
se passou, ou não, com o fazia o inquérito no período anterior,
mas sim avaliar se um indivíduo se com porta de acordo com a
norm a, se está progredindo ou não, se deve ser punido ou merece
ser recom pensado. T rata-se, pois, de:
■ um novo saber, de tipo totalm ente diferente, um saber de
vigilância,; de exam e, organizado em to rno.da norm a p e lo ..
. controle dos indivíduos ao. longo. de sua existência. Esta é
a base do p oder, a form a.de saber-poder que vai d ar lugar .
não às grandes ciências de observação como no caso do
inquérito, mas ao que cham am os de ciências hum anas:
Psiquiatria, Psicologia, Sociologia etc. (Foucault, 1996: 88).

0 dispositivo da periculosidade

O fim do século XIX é m arcado por intensas discussões


sobre o crim e, a. crim inalidade, e as penas. C riticada por não
estar .conseguindo dar um a resposta .eficaz ao aum ento da cri­
m inalidade e da reincidência, a E scola C lássica, que consa-
A E scola. GlXssiga,' baseada nos; ideais do iiuminismo, ;atravessou parte do século -XVIII ;e
.parte jdoséculO/XDpAsobrapriricipais.desse pénqdo.fóriim/)oj:i)í/ítoj. t das;Paias, dc Gesare ••
Bèccari ä\( 17,64)• e Programa 'doCurso de Direito Penalde Fíancesco Garrara (1859). Para os'clâs-.:
sicos, 6. criminoso é. aqueleJqúe| nó^éxèrcíciò;do livrç arbítrio .“ qúe implica na perfeita'capa- ■
cidade de'.entender.a:ilicítudc de'um ato é de'agir pautado por esse entendimento - violá;livrc'
'é'Jcpnisçienteméiite’> norma périál,-..Vendo'.portanto- inteiramente., responsável .por;scusfàtos.
Nesée/momentoi os loucos são colocados forá: do Direito Comum. Para'a maior paite'das
legislações à época.'eles estâo isentos de pena-. , •.. . . u-..;:. -; :

173
grara a igualdade jurídica e a liberdade individual, còmeça' a
p erd e r' espaço para as idéias positivistas. D iferentem ente dos
liberais que'tinham como objeto os delitos, os adeptos da Esco-
]a Positiva de Direito Penal voltarh-se paira o hom em delin­
qüente e as características que os distinguem dos demais. Com
esse objetivo tentam individualizar os fatores que condicionam
o comportamento crim inoso e,- apoiados em pressupostos
deterministas e na noção de hereditariedade,'passarri a criticar
a noção de livre arbítrio e a questionar a responsabilidade dos
criminosos. Segundo eles, a liberdade de escolha não podia ser
considerada relevante no julgamento de um ato criminoso, um a
vez que o comportamento hum ano estava predeterm inado por
causas inatas. No entanto, se os criminosos não podiam ser
considerados, sob esse ponto de vista, m oralmente responsá­
veis, deviam ser tratados como socialmente responsáveis pelo
perigo que podiam representar. Assim, entendendo que a soci­
edade tinha direito de se defender desse perigo e que as leis
não tinham o mesmo efeito cie intimidação sobre os diferentes
homens, os“positivistas, propõem que é preciso criar algum a
sanção para. n e u tra liz a r os delinqüentes natos, reservando as
penas tradicionais aos criminosos ocasionais, susceptíveis de
serem disciplinados e incorporados ao mercado de trabalho.
Na verdade, de acordo com Sérgio Carrara,
(a)través do crime, juristas, criminalistas, criminólogos,
. antropólogos criminais, médico-legistas, psiquiatras, todos
fortemente influenciados p ò r doutrinas positivistas ou
cientificistas, discutiam um a questão política maior: os li­
mites ‘reais’ e necessários da liberdade individual, que ex­
cessivamente protegida nas sociedades liberais, era apontada
como causa de agitações sociais ou, ao menos, como em ­
pecilho à sua resolução. (...) Cumpria então reform ar códi­
gos e leis para assentar as bases jurídico-políticas de um a
. . ampla reforma institucional que fornecesse ao Estado e às
. suas organizações-os instrumentos necessários para. uma
intervenção social mais incisiva e eficaz (Garrara, 1998: 65).

174
A oportunidade foi dada com o dispositivo cia periculo-
sidade e a incorporação, d as.m edidas de segurança ao rol das
.sanções penais. Desde "o século anterior, à m edida em que a
estrutura jurídico-política da sociedade contratual se génerali-
» « ^ ■ *■^ ■
zava, os mendigos, vagabundos e criminosos vinham sendo cada
vez m ais re p rim id o s . C o m o v im o s a c im a , estes e ra m in d isc ri­
m inadam ente captados pelas teias de um a m esm a rede que
cada vez mais se estendia pela sociedade. A p artir do século
X IX , no entanto, essa m alha começa-a se especializar. Pouco a
pouco, repressão e assistência se dissociam, inúm eras prisões
são construídas e.os loucos são internados em locais especiais.
Estes últimos, vistos como incapazes de trabalhar e dc respon­
der por seus atos, ao mesmo tem po inocentes e potencialm ente
perigosos, que não transgride(m) a uma lei precisa, mas pode(m) violar
a todas passam a ser tratados como um foco especial de desor­
dem. Segundo Castel, por sua singular im unidade às regras do
m undo do trabalho e da lei, era como se ameaçassem a p ró ­
pria estrutura que presidia a organização da sociedade. Para
a d m in istrá -lo s, p o rta n to , e r a p reciso c o n stru ir-lh e s u m e sta tu to
diferente. N ão podendo gerir seus bens, deviam s e r tutelados,
não sendo passíveis de sanção, deviam ser subm etidos à
internação. C om o m ovim ento alienista com eçam a ser consti­
tuídas as bases teóricas que justificarão a seqtiestração dos lou­
cos, com base em sua imprevisibilidade, am oralidade e suposta
tendência p ara o crime. Portadores de um a alienação, muitas
vezes só visível aos especialistas, os diagnosticados com o
m onom aníacos passam a ser objetos de suspeição e devem ser
internados p ara evitar que com etam crimes. A loucura é então
crim inalizada e os alienistas passam a ser cham ados aos tribu­
nais p ara atuar nos crimcs sem causa racional aparente. Cabe-
lhes nesse m om ento distinguir o louco do criminoso, o respon­
sável do irresponsável, os passíveis de punição ou necessitados
de tratam ento (Castel, 1978).

175
C om a crise do liberalismo, cresce a contestação da no­
ção de livre arbítrio c a crim inalidade passa a ser considerada
com o u m a realidade ontológica. Os positivistas passam a tra ­
b a lh a r com a tese da predisposição hereditária p a ra o delito e
os tra ç os reveladores da personalidade criminosa passam a ser
procurados na biografia, no meio social e /o u na constituição-
física do réu. O crim e é visto, como .à m anifestação de um a
degeneração, anorm alidade ou atavismo ou como o sintom a
de um a personalidade perigosa. O hom em criminoso torná-se
objeto de investigação científica e passa a ser visto como um
elem ento negativo e disfuncional ao sistema social, p ortador de
lim a especial tendência ao crime, de quem a sociedade deve
defender-se. Assim,, diferentem ente da Escola Clássica que via
na pena um m eio de defesa co n tra'o crim e atuando com o um
dissuasivo, um a contram otivação à repetição da infração, a pena
p a ra a Escola Positivista tem como função a proteção da soci­
edade contra o criminoso. Isso significa que enquanto p a ra a
do u trina anterior, o fim da pen a seria a eliminação do perigo
social qiie adviria da im punidade do delito e a reeducação do
condenado seria um resultado acessório, p ara o Direito Penal
Positivo a p e n a como meio de defesa social, pretende intervir
diretam ente sobre o indivíduo criminoso, reeducando-o, ou pelo
m enos neutralizando-o (Bissoli Filho, 1998).
Em decorrência dessas convicções, os positivistas p ro p u ­
nham que p a ra orientar a boa aplicação da pena as sanções
deveriam ser individualizadas e um a Inova jnodalidade de téc­
nicos devia ser cham ada ao tribunal p a ra exam inar o crim ino­
so e avaliá-lo segundo o tipo de crim inalidade apresentada.
D entre os autores que mais se destacaram nesse período, qua­
tro m erecem , m enção especial:
O prim eiro foi M orei, que apresenta sua tese sobre a
degeneração em 1857. Segundo o autor, esta condição engen­
drava verdadeiros tipos antropológicos desviantes, hereditaria-
m ente destinados a um a vida im oral, à alienação e ao crime.
Conseqüentem ente, um a vez que os degenerados não podiam
escolher não delinqüir e via de regra apresentavam um a ten-'
dência precoce p ara o mal, só podiam ser considerados irres­
ponsáveis. Além disso, como essa anorm alidade costum ava se
m anifestar em diversas formas sintomáticas e com diferentes
gfãusTde-gravidaderhave ria"en tre~o~indivídutrno rm al~e“o-d egè-
nerado um continuum de inúm eras possibilidades.10 Todos os
tipos, no entanto, deveriam ser considerados igualmente alie­
nados.
S eguindo a d ia n te n o século, aparecem as teses de
Lom broso (1870), que propõe a existência dos criminosos na­
tos" e o crime como um fenôm eno atávico. D e form a seme­
lhante aos degenerados, este novo tipo tam bém não podia es­
colher ser honesto, pois o crime fazia parte da sua natureza e
era o resultado de sua inferioridade biológica. Além da nature­
za crim inosa, esses.- hom ens tinham como característica um a
série de sinais e atributos que os identificavam. Destacavam-se
pela ausência de pelos, os braços excessivamente compridos, os
m axilares superdesenvolvidos, a vaidade, a . imprevidência, a
instabilidade emocional, a im prudência, a.impulsividade, a pre­
guiça, o caráter vingativo, a crueldade, a tendência para a obsce­
nidade, p a ra o jogo, p a ra a bebida e p ara o crime, a homosse­
xualidade, a insensibilidade à dor, o gosto pelas gírias e tatuagens,
entre outros. Além disso, como eram incapazes de sentir re­
morso ou culpa, entre eles a reincidência era a regra.

10 M o r d inclu ía entre os degenerad os os gênios^ os imbecis, os excêntricos3 os


loucos, os santos, os suicidas, os im orais, os perversos sexuais, os crim inosos,
entre outros (Carrara, 1998: 81-104).
11 H ou ve tam bém quem propusesse a categoria do vagabundo nato e até de
• pobre nato, A primeira foi proposta pelo Professor Benedikt, em 1891, quando
. ele diz qu e txisletn indivíduos, e também raças inteiras, tios quais a vagabundagem i
congênita, e, a segunda foi proposta por A lfredo'N icefcro, em 1907 (D arm on,
1991: 73).
Por sua vez, Garófaio segue os passos, de Lom broso, mas
orienta sua pesquisa para os aspectos da personalidade envolvidos
no com portam ento criminal. Em sua obra de 1878 propõe que
as causas do delito devem ser procuradas .nò delinqüente, ou
em siias predisposições hereditárias, e atribui a tendência ão
delito á um tipo de anom alia moral, curável óu incurável, que
nos casos mais graves privaria o seu portador dos sentimentos
morais mais elementares. Manifeátando-se contrariam ente ao
estabelecimento dé penas fixas, determ inadas conforme o deli­
to, Garófaio propõe um a diferenciação das penas que leve em
conta os caracteres psicológicos dos delinqüentes. Estabelecen­
do um a distinção entre os delinqüentes típicos e inassimiláveis e os que
são susceptíveis de adaptação, propõe um sistema de penas em que
a eliminação do delinqüente, absoluta (pena de morte) ou rela­
tiva (prisão tem porária, deportação ou relegação), cóbre a m ai­
or parte das sanções. Concordando com Lombroso, què atribui
à pena capital o m érito de m elhoram ento da raça} e afirm ando
■que há indivíduos que são incompatíveis- com a civilização,
defende a pena de m orté para os qué se revelarem destituídos
' do sentimento de piedade'e'refere’que ;
' ' ' esses'delinquentes representam verdadeiras m onstruosida­
des psiquicas'e não podem inspirar a ninguém a sim patia,
'• ' que é o pontó- de partida e o fundam ento da piedade. Es­
ses indivíduos, colocam-se fora .da humanidade-, (...) que
p,or isso mes mó, tem- .o direito de. suprimi-los (Garófaio,
"1997: 163)'.

Para distingui-los e determ inar a m edida punitiva mais ade­


quada a cada caso recom enda a avaliação do grau de temibi-
lidade1' do criminoso qúe ele define como:

'’ Segundo D elgado esse còiVceito aparece peia prim eira ve 2 em Feuerbach,
.no ano dc 1799/referindo-sè a “quáíidadc de um a pessoa que faz presum ir
fundadam ente que violará o D ireito” (D elgado, 1992: 94).
a pçrvçrsidadc constante e ativa do delinqüente c a q uan­
tidade de m al previsto que se deve tem er p o r parte do
m esm o' (Gárófaio apud M ecler, 1996:26).
Chegam os então em Ferri, o mais im portante represen­
tante da Escola Positiva, que atribuindo às diferentes classes
sociais um a natureza específica e tratando as desigualdades
sociais de form a espantosam ente preconceituosa divide as ca­
m adas sociais em três categorias:
a classe m oralm ente mais elevada que não com ete delitos
p orque é honesta p o r sua constituição orgânica, pelo efeito
do senso m oral (...) (pelo) hábito adquirido e hereditaria-
m ente transm itido (...) m antido pelás condições favoráveis
de existência social (...) O u tra classe mais baixa (que) é
com posta de indivíduos refratários á todo sentim ento de
honestidade, porque privados de toda educação c im preg­
nados (...) da miséria m aterial c m oral.(...) (que) herdam dc
seus antepassados (...) A terceira classe (dos que) não nas­
ceram p a ra o delito, m as não são com pletam ente honestos
(Ferri íí/>«í/ R auter, 1982: 29)..
. .. Seguindo os passos dos seus antecessores, Ferri tam bém
p ro cu ra as razões do crim e nos homens, afirm a a anorm alida­
de dos delinqüentes e abraçando a causa da defesa social avan­
ça na proposta de individualização e indeterm inação das sanções
e insiste no estudo da personalidade do criminoso p a ra a ava­
liação de sua periculosidade. Para o autor, som ente a adapta­
ção das sanções à natureza e à periculosidade do delinqüente
pode fornecer à sociedade a arm a necessária ao sucesso da luta
c o n tra o crime. Segundo suas próprias palavras:
n a justiça p en al trata-se de ver não se o delinqüente ofen­
deu ou não ‘um direito5 ou antes 'um bem ju ríd ico ’ e trans­
grediu ou não ‘a proibição’ ou antes ‘a norm a p en a l’, mas
de p ro c u ra r com o e em virtude de que ele com eteu essa
ação crim inosa e qual a periculosidade que revelou ém tal
• ação c quais as probabilidades que apresenta de voltar,
depois da condenação, a u m a vida regular e p o r isso qual

179
sanção repressiva que lhe ó mais conform e, não ‘ao crim e’
p o r ele levado a efeito, mas- à sua ‘personalidade de delin­
q ü en te’ pelo crime praticado.

. . A inda segundo o autor:


_________ Esta distinción de los delincucntes scgún su peligrosidad
deriva de que su conducta antisocial aparece determ inada-
por tendências congénitas o p o r atroüa dei sentido m oral,
o p o r impulsos pasionales, o /e n fm, por influjos prevalentes
dei am biente familiar y social y por las deficiencias y defectos
de los m ism os sistemas carçelarios que son com o estufas
p a ra el cultivo de los m icro bios crim inales. Y sólo en virtud
de esta distinción y clasificación psico-antropológica de los
d elincuentes le será posible ai legislador realizar en la
práctica, con las sanciones rcpresivas, aquel doble objetivo
dê la defensa social y dé la corrección de ios condenados,
qué los sistemas penales hasta a h o ra en uso no h an podido
conseguir, p o r estar orientados y aplicarse siguiendo'el
critério exterior de la gravedad de los delitos y no el de Ia
relación ín d m a de las diferentes condiciones personales de
los culpables (Férri apxid R ibeiro, 1998: -16). ■

Foi grande o efeito que todás essas proposições produzi­


ram nos meios jurídicos e científicos do m undo ocidental. Em
1880 é fundada a U nião Internacional de Direito Penal (UIDP),
que em pouco tem po se torna a m aior difusora dos princípios
da defesa social. Nos congressos que se seguem, .o conceito de
periculosidade é desenvolvido, e em 1905 já se levanta a ques­
tão da periculosidade dos reincidentes. Em 1907-1908 incluem-
se os loucos e deíicientes m entais1entre os perigosos, em 1910
discute-se o problem a da conciliação entre esta noção e as ga­
rantias de liberdade individual, m as no m esm o ano, se decide
pela necessidade de estabelecer m edidas especiais de segurança
contra' os delinqüentes considerados perigosos. No Congresso
de 1913, é feita nova definição das categorias que devem ser
consideradas perigosas, incluindo agora os alcoólicos, os m en­
digos e os.vagabundos (Bruno apiid Bissoli Filho, 1996: 13?).

180
Pouco a pouco, a idéia da periculosidade vai concernindo
a todos os criminosos e delinqüentes potenciais, de tal m aneira
que j á nao é necessário com eter um delito para ser considera­
do perigoso. J á qúe agora o verdadeiro fim do direito penal é
a defesa social, é possível justificar a intervenção no seio das
■_clásses_perigosas“sem -esperar_pelo_delito~('Bissoli~Fillio7~l'996':'
, 136-137).
Crim inalizando a loucura e patologizando o crime, em
pouco tem po este sistema elimina toda a distinção entre penas
e m edidas de segurança e propõe unificá-las por meio das san­
ções por tempo indeterm inado. Segundo Rauter, neste momento
de im plantação da criminologia, não era tanto a recuperação
do crim inoso que im portava, m as a necessidade de defender a
sociedade desses degenerados morais. As sanções passam então
a atuar como um a espécie de seleção artificial, eliminando os
degenerados, os atávicos, que a sèleção natural deixou escapar
(Rauter, 1982: 30).
Q uando, enfim, as idéias positivistas começam a ser com ­
batidas, surge a concepção dualista do Direito Penal (ou siste­
m a do duplo-binário), que, mais dura ainda que a anterior,
fará coexistir, durante algum tem po, os dois tipos de resposta
penal: a pena como retribuição ao crim e.e a m edida de segu­
rança a ser acrescentada à prim eira nos casos considerados peri­
gosos.13 P o r fim, novas m udanças são introduzidas e o-sistema
conhecido como duplo-binário é substituído pelo vicariante. Com
isso, penas e m edidas de segurança passam a ser consideradas
sanções de natureza diversa, aplicadas p ara situações diversas:
as prim eiras p a ra os im putáveis e as; segundas reservadas ape­
nas p a ra òs inimputáveis.

l-J Este sistema foi adotado pelo Código Penal italiano de 1930 e inspirou
diversas outras legislações penais. No nosso país, foi adotado cm 1940, até a
reforma de 1984.

181
1 A s id é ia s p o s itiv is ta s v a o entao peirdendo espaço, as pe­
nas m antêm seu caráter de sanção retributiva, com tem po p re­
estabelecido e calculado de acordo com a gravidade do crime,
e o universo de pessoas passíveis de receberem sanções por tempo
indeterminado reduz-se até se lim itar aos loucos infratores. Mas,
apesar de ter caído em descrédito, a Escola Positiva de Direito
Penal deixará entre, nós várias heranças: continuarão a fazer
p>artc de nossas legislações o princípio de individualização das
penas; os exames que visarão o estudo da personalidade e his-
, tória, de vida dos condenados c que avaliarão a probabilidade
de estes virem a reincidir rio delito (exame que será conhecido
como criminológico); o conceito de periculosidade e as m edi­
das de segurança por tem po indeterm inado. Além disso, como
. legado dessa escola se m a n te rá a tra d iç ã o , in te ira m e n te
. maniqueísta, de perceber os que delinqüem como um outro pe­
rigoso, pernicioso à sociedade, desum ano, verdadeiro m onstro
e por isso incapaz de viver entre os hom ens de bem.. Dessa
m aneira, será sempre possível justificar para' eles os tratam en­
tos mais cruéis e ainda garantir a aprovação da o p in i ã o p ú b li­
c a . Afinal, como n o s d iz Chomsky, “quando você oprime alguém
precisa alegar alguma coisa. A justificativa acaba sendo o nível
de depravação e vicio m oral do oprim ido (...). Exam ine a con­
quista britânica da Irlanda, a p rim eira das conquistas coloniais
ocidentais. Ela foi descrita nos m esm os term os que a conquista
da África. Os irlandeses eram um a raça diferente, não eram
hum anos, não eram como nós. Eles tinham que ser esmagados
e destruídos5’ (Chomsky, apud C oim bra, 2001: 63). É o que

vAs r<ÚTRJ2ESDESTC .vão se're£rodú:zár. nbs’çíiscurç^


.ysoao}!Íçcò;'p^a.,òs;qua^;'.',máscararvdo.o^^^^
.■dü^O;ér.pafàndò':JseX<3á^râ^^^^
.!p?m.aeíinir o;^ue‘sena à.;dcsbrdçm ou/da e:dstênçia-'dç-;úmá;patQÍo$^
■compòrtamcntòs. e-'..sihíações Rociais’ ídesviantes’,, (como'^onvr ;'émi;árpas"imguÍarcsVíexércery
atividades informais:ou. praticar atos.xonstderados deHtuosos),"-o crimc:séria:'então'o!residtadò--'.
s‘‘dc:úm nrnbien'tt'^sfunapnalpatologicoj.como-'um:;^ contágio1; ^
(que1'sc^aiMtiavpàra^asÿ
ÿimimqlô^ca'falharem na sua

132
temos visto, contem poraneam ente, nas doutrinas de segurança
nacional das ditaduras,.militares latino-am ericanas, nas políti­
cas transnacionais de com bate às drogas é na guerra ao ter-
.rorismo.

A subversão e a. droga na América Latina

Chegam os então ao século X X quando, sob o im pacto


das duas grandes guerras mundiais, é criada a O rganização
das Nações Unidas (ONU). Pouco a pouco, são desenvolvidos
diversos instrum entos legais p ara a proteção internacional dos
direitos hum anos, entre os quais viriam a se destacar a D ecla­
ração Universal de Direitos H um anos, os Pactos Internacio­
nais de Direitos Civis e Políticos e de Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais, a Convenção contra a T o rtu ra e outros
T ratam entos, Cruéis, Desum anos e Degradantes, entre outros.14
Paralelam ente, na contram ão desse m ovimento, a p artir dos
a n o s s e s s e n ta , são im plantadas ditaduras militares em diversos
países das Américas. Sob a alegação da necessidade de fortale­
cer o Estado contra o comunismo, mas em verdade p ara ga­
rantir o ambiente necessário ao desenvolvimento do capitalismo,
assiste-se à em ergência de um a nova doutrina de segurança
(D outrina de Segurança Nacional), que elegerá como inimigo

l+ Progressivam ente são tam bém estabelecidos diversos dispositivos internacio­


nais para garantir um tratam ento lega! e hu m ano p a ra 'o s presos. V er as
R egras M ín im as da O N U para o T ratam en to dos Presos;de 1955, o C ódigo
de C on du ta para os Funcionários R esponsáveis peía A plicação da Lei de
1979 e os Princípios para a P roteção de T odas as Pessoas Sujeitas a Q u al­
quer Form a de D eten ção ou Prisão de 1988, em Saúde e Direitos Humanos nas
Prisões, m anual publicado pela Secretaria de D ireitos H u m a n o s-e Sistem a
P enitenciário do Estado do R io de Janeiro em parceria-com o C on selh o da
C om u nidad e da Com arca do Rjo de Janeiro.
núm ero um a figura do subversivo. As polícias são m ilitarizadas
,e aparelhadas p a ra o com bate a um inimigo interno e a tortu­
ra, q u e n u n c a d eixara de ser utilizada co n tra as parcelas
desfavorecidas da 'sociedade, é institucionalizada e passa a ser
ensinada nos quartéis e a ser instrum entalizada p ara o controle
da subversão. As legislações são reform uladas à- luz dà~nova
d outrina e as penas de m orte e de banim ento voltam a fazer
parte dos Códigos Penais.’5
M ais recentem ente, já com as reformas neoliberais, o
capitalism o ganha novo impulso e passa a dispensar os ditado­
res de plantão. As novas regras da econom ia aum entam as ta­
xas de desem prego e em prego precário, tornando sem efeito as
antigas estratégias de luta dos trabalhadores e lançando em
situação de total vulnerabilidade um contingente antes inim a­
ginável de pessoas. N ão tendo mais com o reintegrá-los ao
m ercado form al de trabalho os Estados neoliberais inventam
outra função p a ra as prisões. Segundo B aum an,
nessas condições, o confm am ènto não é nem escola p ara o
em prego nem um m étodo alternativo com pulsório de au­
m en tar as fileiras da m ão-de-obra produtiva q uando fa­
lham os m étodos ‘voluntários’ com uns e preferidos p ara
levar à ó rb ita industrial aquelas categorias particularm ente
rebeldes e relutantes de ‘hom ens livres’. N as atuais circuns­
tâncias, o confinam ento é antes um a alternativa ao em pre­
go, u m a m an eira de utilizar ou neutralizar u m a parcela
considerável d a população que não é necessária à produ­
ção e p a ra a qual não h á trabalho ‘ao qual se reintegrar’
(B aum an, 1998,119-120).
Sem perspectivas de vida, legiões de jovens passam a ser
em purradas p a ra o tráfico, m orrendo antes dos 25 anos ou

15 A esse respeito ver A rquidiocese de S ão P aulo, Brasil: nunca mais. Petrópolis,


RJ: V o z es, 1985 e Clinica t Política: subjetividade e violação dos direitos humanos,
organ izad o por C ristina R auter, E duardo1Passos e R egina B enevides, R io
de J a n e iro , T e C orá, 2 0 0 2 . i

184
engordando as estatísticas penitenciárias.'G Adaptando-se ao
receituário neoliberal, as políticas de segurança latino-amcrica-
.nas m igram da ideologia de segurança nacional p ara a ideolo­
gia da segurança urbana e elegem um .novo inimigo comum,
agora proveniente das cam adas mais pauperizadas da socieda-
de7~N essenovocontexto3 asdrogas-seeonvertem -na-m aÍ5re--
cente justificativa p ara se crim inalizar os pobres e jovens e
alim entam as novas, cam panhas de alarmismo social (Batista,
1997; B aratta, 1998).
P ara esta nova ordem , se revela, m uito mais funcional
alim entar o m edo e o conflito, quebrando todas as antigas for­
mas de sociabilidade e solidariedade. Se como nos diz Bauman,
em breve 20% da força de trabalho será suficiente p ara mover
a econom ia, o que fazer com os outros 80% da faixa vulnerá­
vel ou excluída, que j á não têm mais utilidade? É preciso gerar
novos m ecanism os reguladores da insatisfação da sociedade,
novos in stru m en to s;de controle social, sendo, ós principais o
encarceram ento maciço, e a m anipulação da insegurança e do
m edo (Baum an, 2000). N ão é à toa que em nossas sociedades
volta a crescer tanto o aparelho penal e buscam-se novas opor­
tunidades p a ra a reedição de legislações penais voltadas p ara a
defesa da segurança nacional.17 Com o nos diz Zaífaroni, “o
im portante é ter um pretexto p a ra tornar mais repressivo o
controle social punitivo” (Zaífaroni, 1997: 33-34).

IC D e acordo com os dados do PRODERJ referentes ao ano 2000, 96% da


p op u lação prisional de nosso Estado c constituída por hom ens, 62,61% por
pardos e negros, 67,12% por analfabetos ou apenas alfabetizados, 37,93%
tem idade inferior a 25 anos e 59,4-3% está ;presa por-porte (5,08% ) ou
tráfteo de drogas (54,35% ). ;
17 Para C hom sky as drogas e mais recentem ente o terrorismo seriam as n o­
vas ocasiões para a reedição de legislações penais voltadas para a defesa da
segurança nacional e para a identificação dos novos inim igos com uns.

185
núm ero um a figura do subversivo. As polícias são militarizadas
e aparelhadas para o combate a um inimigo interno e a tortu­
ra, que nunca deixara de ser utilizada contra as parcelas
desfavorecidas da sociedade, é institucionalizada e passa a ser
ensinada nos quartéis e a ser instrum entalizada p ara o controle
da subversão. As legislações são reformuladas à luz da nova
doutrina e as penas de morte e de banim ento voltam a fazer
parte dos Códigos Penais.15
Mais recentem ente, já com as reformas neoliberais, o
capitalismo ganha novo impulso e passa a dispensar os ditado­
res de plantão. As novas regras da economia aum entam as ta­
xas dc desemprego e emprego precário, tornando sem efeito as
antigas estratégias de luta dos trabalhadores c lançando em
situação dc total vulnerabilidade um contingente antes inim a­
ginável de pessoas. Não tendo mais como reintegrá-los ao
m ercado formal de trabalho os Estados neoliberais inventam
outra função para as prisões. Segundo Bauman,
. nessas condições, o confinam ento não é nem escola p a ra o
emprego riem um método alternativo compulsório de au­
m entar as fileiras da m ã o -d e -o b r a p rod u tiva q u a n d o fa­
lham os m étodos ‘voluntários’ comuns e preferidos para
levar à órbita industrial aquelas categorias particularm ente
rebeldes e relutantes de ‘hom ens livres’. Nas atuais circuns­
tâncias, o confinamento é antes um a alternativa ao em pre­
go, um a m aneira de utilizar ou neutralizar um a parcela
considerável da população que não é necessária à produ­
ção e para a qual não há trabalho 'ao quai se reintegrar’
(Bauman, 1998,119-120).

Sem perspectivas de vida, legiões de jovens passam a ser


em purradas para o tráfico, m orrendo antes dos 25 anos ou

15 A esse respeito ver Arquidiocese de São Paulo, Brasil: nunca mais. Petrópolis,
RJ: VpzeSj 1985 e Clínica e Política: subjetividade, e violação dos direitos humanos.
organizado por Cristina Rauter, Eduardo Passos e Regina B enevides, Rio
de Janeiro, T e Corá, 2002.

184
engordando as estatísticas penitenciárias.Ib- A daptando-se ao
receituário neoliberal, as políticas de segurança latino-am erica­
nas m igram da ideologia de segurança nacional p ara a ideolo­
gia da segurança u rb an a e elegem um' novo inimigo comum,
agora proveniente das cam adas mais páuperizadas da socieda­
de. Nesse novo contexto, as drogas se'-convertem na mais re­
cente justificativa piara se crim inalizar os pobres e jovens e
alim entam as novas cam panhas de alarmismo social (Batista,
1997; B aratta, 1998).
P ara esta. nova ordem , se revela muito mais funcional
alim entar o m edo e o conflito, quebrando todas as antigas for­
mas de sociabilidade e solidariedade. Se como nos diz Baum an,
em bre.ve 20% da força de trabalho será suficiente p ara m over
a econom ia, o que fazer com os outros 80% da faixa vulnerá­
vel ou excluída, que já não têm mais utilidade? E preciso gerar
novos m ecanismos reguladores da insatisfação da sociedade,
novos instrum entos de controle social, sendo os principais o
encarceram ento maciço, e a m anipulação da insegurança e do
m edo (Bauman, 2000). N ão é à toa que em nossas sociedades
volta a crescer tánto o aparelho penal e buscam-se novas opor­
tunidades p ara a reedição de legislações penais voltadas para a
defesa da segurança nacional.17 Com o nos diz Zaffaroni, “o
im portante é ter um pretexto p ara tom ar mais repressivo o
controle social punitivo” (Zaffaroni, 1997: 33-34).

16 D e acordo com os'd ad os do P R O D E iy referentes ao ;ano 2 000, 96% da


pop ulação prisional de nosso Estado c constituída por hom ens, 62,61% por
pardos e negros, 67,12% por analfabetos ou apenas alfabetizados, 37,93%
tem idade inferior a 25 anos c 59,43% está presa por porte (5,08% ) ou
tráíico de drogas (54,35% ).
17 Para C hom sky as drogas e m ais recentem ente o terrorismo, seriam as n o ­
vas ocasiões para a reedição de legislações penais voltadas para a defesa da
segurança nacional e para a identificação dos novos inim igos com uns.

185
M ovidas por esses novos desígnios, as políticas de segu­
ran ç a pública intensificam o controle, encarceram ento e até
exterm ínio das classes vistas como perigosas, atingindo icspecial-
m ente os pobres,'jovens e negros, m oradores das áreas pobres.
PãraTsociedades-excludentes-e-elitistas.-onde^segurança públi-
ca não significa segurança e bem -estar do público mas, ao con­
trário, expressa a m anutenção de um a ordem desigual e injusta”,
um a polícia violenta e co rrupta é absolutam ente funcional
(Dornelles, 1997).lKAssim, favelas eibairros popularesjsão inva­
didos a qualquer hora e sob qualquer pretexto por um a polícia
que extorque, forja flagrantes, tortura ou m ata e é neste con­
texto que vai sendo construído o im aginário social que perm ite
que grande parte de nossa população seja percebida como
perigosa e p o r essa razão não sejaivista como benefitiária dos
direitos mais essenciais. Identificá-los, pois, como m onstros in­
desejáveis, faz parte desse grande em preendim ento de reenge-
nharia social.
T endo em vista as novas subjetividades que se querem
produzir, a gestão m idiática do médo e da indiferença cum pre
um papel fundam ental. A violência é oferecida como espetácu­
lo diário aos consum idores em busca de entretenim ento e
adrenalina e a exposição repetida la cenas de violência prom o­
vem ao m esm o tem po o terro r :e a banalização. iPara isso,
espetaculariza-se e cria-se um am biente de pânico è comoção
social generalizados por urri lado, òu banaliza-se e justifica-se a
violência p o r outro. O objetivo ésa aprovação da opinião pú­
blica a um tratam ento m aniqueísta da violência de acordo com
a classe social da vítima ou a posição social do perpetrador.
Segundo Dornelles, utilizando-se do m edo e da insegurança

1(1 N esse novo quadro, a própria, violência passa a ser estratégica, justificando
a m ilitarização dá segurança pública, a; tolerância com as práticas ilegais c
violentas da polícia e com a ação d o s gru pos de exterm ínio, a legalização da
p en a de m orte, a redução da idade passível de responsabilização penal etc.
como operador acirra-se a divisão entre a ‘cidade legal’, bem
cuidada, ordeira e: civilizada onde viyem as pessoas de bem,
cum pridoras de seus deveres, e a ‘cidade ilegal’, da sujeira,
desordem -e da barbárie, onde se ‘escondem 5 os criminosos.
Jdentificam-se os bairros populares e as favelas com o quartel
general do crime e passa-se a temer- a rua e a ver em todo
desconhecido —especialmente se ele for jovem , pobre e negro
- um a am eaça. Desenha-se um a situação absolutamente con­
flagrada, onde os habitantes da cidade ilegal am eaçam os di­
reitos e a vida dos habitantes da cidade legal. Através da lógica
da guerra, os excessos são considerados inevitáveis, e ficam jus­
tificados os cercos das favelas, as detehções a execução de pes­
soas em a titu d e suspeita e a to rtu ra p a ra ob ten ção das
informações (Dornelles, 1997: 114-1T8).
É quando os discursos periculósistas nascidos no século
anterior tornam -se insuficientes. Pará'sustentar as políticas de
encarceram ento em massa que se disseminarão pelo m undo
afora será preciso ;adaptar a noção de periculosidade às novas
estratégias de controle social, que agem mais difusamente. Será
então, form ulado o conceito de risco social, que perm itirá um a
significativa ampliação na escala da .intervenção das medidas
preventivistas. Segundo Pegoraro, a
gestión dei riesgo im plica la ppsibilidad de m ultiplicar las
intervenciones, abarcan d o as.í ya no la ‘peligrosidad1
siem pre en carn ad a en algum individuo - sino factores,
ambientes, situaciones, que se convierten eh blanco de tales
intervenciones ya sea preventivas o represivas (Pegoraro,
1999: 227).
O u, com o nos diz Sotomayor, . .
dado el viraje que se está desarrollando en las sociedades
tardo-capitalistas el control social no se dirige ahora sobre
el suje to-individualm ente considerado, sino sobre grupos
enteros, poblaciones y am bientes, y la peligrosidad va
d ejan d o de ser, en general,; u na noción referida a un

187
-.indivíduo en particular para serio rcspecto dc determ ina­
das ‘situaciones o grupos de riesgo’ (Sotomayor, 1996: 145).

A influência do positivismo nas instituições e legislação penal brasileira


Todas essas discussões sobre periculosidade e risco en­
volveram os meios jurídicos e ..acadêmicos brasileiros, produ­
zindo efeitos significativos em nossas legislações e instituições.
Com a proclamação da República, que permite uma
a b e r tu r a ainda que virtual dos canais de poder à representan­
tes da sociedade civil; a abolição da escravatura, que põe fim
ao impedimento legal à participação dos descendentes africa­
nos na vida urbana; e a imigração estrangeira, que traz para o
Brasil trabalhadores com mais consciência de classe, novas es­
tratégias tornam-se necessárias para deter os reclamos por ci­
dadania dessa parcela da sociedade e justificar o tratam ento
desigual a elas conferido. Não por acaso, a mais importante
delas foi a justificativa científica para o racismo, que vinha le­
gitimar a crença na superioridade da raça branca e m arcar as
discussões sobre o te m a d a d efesa social c m n o sso p a ís ( C o r rê a ,
2001 ).
Nos períodos de crises sociais que se seguiram, primeiro
as teorias positivistas italianas, e posteriorm ente as teorias
eugenistas alemãs,19 vão oferecer as ferramentas teóricas neces­
sárias ao controle social das classes potencialmente perigosas.
Diversos trabalhos são escritos e vários congressos são realiza­
dos demonstrando a periculosidade dos negros e das diversas
categorias marginais como as crianças abandonadas, os loucos,
os homossexuais, os alcoólatras, as prosdtutas e os criminosos.
Um bom exemplar dessa safra foi N ina Rodrigues que,
atribuindo à raça negra a debilidade física e m ental de nosso

1:1 Estas teorias, que felizmente não chegaram a ser coíocadas em prática em
nosso pais, pregavam a eliminação dos infra-homens que a seleção natural
’ deixou escapar.
povo e questionando a noção de livre-arbítrio, define os graus
de irresponsabilidade social de acordo com parâm etros de raça,
idade, sexo e cultura. C oerentem ente cóm os ideais positivistas
verde-amarelos ele afirm a que “a igualdade política não pode
com pensar a desigualdade m oral e física” e pergunta:
Pode-sc exigir que todas estas raças distintas respondam
p or seus atos p erante a lei com igual plenitude de respon­
sabilidade penal? (...) P orventura pode-se conceber que a
consciência do direito e do dever que têm essas raças infe­
riores, seja a m esm a que possui a raça branca civilizada?
(...) A escala vai aqui do produto inteiram ente inaprovcitávcl
e degenerado, ao produto válido e capaz de superior m a­
nifestação de atividade m ental (Corrêa, 2001: 141).

P ara cie, que condenava a “estúpida panacéia da prisão


celular” (Corrêa, 2001: 145), a melhor, m aneira de resolver o
problem a dessas populações consideradas deletérias para o de­
senvolvimento do país era o isolamento em asilos. O utro bom
exemplo desse movim ento foi o acordo firm ado entre os G o­
vernos dos países do C one Sul, estabelecendo a obrigação de
tr o c a r e m in f o r m a ç õ e s a respeito dos dados individuais das pes-;
soas consideradas perigosas.20 Mais do que identificar e classi­
ficar os tipos perigosos a escola positivista brasileira propõe,
portanto, um a espécie de cadastro geral dos perigosos. Os anos'
passam e três décadas depois os positivistas brasileiros ainda
continuam em ação. Apresentando pesquisas que “com provam ”
a possibilidade de se prevenir o crime, Leonídio Ribeiro obser­
va que
(i)sso seria possível desde que se lograsse classificar biotipo-
logicamente, desde a prim eira infancia, todos os indivídu-
. os, especialm ente aqueles que, pela sua constituição e

20 A o que C orrêa indica, o esforço dc transnacionalizaç3Lo das políticas de


segurança pública im posto pelos E U A à A m érica L atina com eçou bem an­
tes da terrível O peração C ondor, qu e nos anos 70 reuniu os governos m ili­
tares do Brasil, Paraguai, U ruguai, A rgentina c Chile.

189
tendências, pudessem ser considerados como pré-delinqüen-
tes2' (G orrêa, 2001: 1B7).j .
Estas idéias que se colocavam contra os ideais liberais
pressionavam 'a favor de legislações que incorporassem as m e­
didas preventivistas. Assim7~So~mesmo_ternpo~em-que—tardia—
m ente, os nossos prim eiros códigos penais introduziam os
princípios liberais, eram introduzidos também os primeiros traços
dos.ideais positivistas. P ara o Código Republicano de 1890,
que antecedeu, a m aior parte dessas discussões, não eram con­
siderados criminosos os indivíduos isentos de culpabilidade em
virtude de qffecção mental, como tam bém estavam livres de pena
os m enores de 9 anos, os maiores de 9 e m enores de 14 que
não tinham discernim ento, os portadores de imbecilidade nata,
enfraquecim ento senil e os surdo-m udo s.22 Em compensação,
p ara os m aiores de 9 e m enores de 14 que houvessem obrado
com discernimento, a legislação previa o recolhim ento em estabe­
lecim entos disciplinares industriais; p ara os vadios e capoeiras
reincidentes, a internação em colônias penais; p ara os toxicô­
m anos, a internação curativa e' p ara os ébrios habituais que
fossem nocivos ou perigosos a si, próprios, a outrem ou à ordem pú­
blica, a internação em estabelecimento correcional (Ribeiro, 1998:
12-13). ;
M as é no Código Penal ide 194-0, inspirado no Código
Italiano de 1930, que verdadeiram ente se pode ver a força da
influência positivista. N a exposição de M otivos1do M inistro
C am pos, lê-se o seguinte: '

21 C o m o resultado dessas discussões foi instituído em nosso país o sistema


n acional de identificação (as carteiras de identidade) e o cadastram ento
datiloscópico. ■■
-J O s loucos, co m o no C ódigo anterior, eram entregues às suas famílias oa
recolhidos a hospitais de alienados, m as som ente se assim o exigisse a segu­
rança da ordem pública.

190
i ': 5. É notório que as m edidas'puram ente repressivas c pro
% ■ pr i amént e penais se revelaram insuficientes n a luta contra 5 ^
í a crim inalidade, em particular contra as suas formas habi-
tuais (rio sentido de reincidentes). Ao lado disto existe a
■vT’ crim inalidade dos' doentes m entais perigosos. Estes, isentos
" de“pena—não-eram -subm etidos-a-nenhum a-m cdida-dc-se______,
•i' ■ gurança ou de custódia, senão nos casos de im ediata peri* ; ®
culosidade. Para corrigir a anom alia, foram instituídas, ao i
lado das penas que têm finalidade repressiva e intim idante, j
í|? as medidas de segurança. Estas, em bora aplicáveis em re- j
gra post delictum, são essencialmente preventivas, destinadas ^
à segregação, vigilância, reeducação e tratam ento dos in-
divíduòs perigosos, ainda que m oralm ente irresponsáveis
(Oliveira, 1987: 7). ^
Este Código, que já incorporará o Princípio de Indivi- ^
dualização das Penas e o sistema do duplo binário, introduzirá ^
tam bém o critério da periculosidade para a aplicação da pena,
consagrará o dispositivo da m edida de segurança a ser cumpri- ^
do em estabelecimento especial e oferecerá aos Juizes a liber­
dade de escolher entre os diversos tipos de sanção23 ou de aplicar
ÏI
cum ulativam ente sanções de espécies diversas. Por outro lado,
I como o seu modelo europeu ^
(e)ntre o mínimo e o máximo, ele (o Juiz) graduará a ®
quantidade de pena de acordo com a personalidade e os
antecedentes do criminoso, os motivos determinantes, as ^
circunstâncias e as conseqüências do crime. Em suma, indi-
vidualizará a pena, adotando a quantidade que lhe pareça 0
mais adequada ao caso concreto (Oliveira, 1987: 7). £
P ara efeitos de individualização, o Código de 1940 dis- ^
tingue os prim ários e os reincidentes, as circunstâncias agra- ^

___________________ _ • -
23
As sanções estabelecidas por esse novo C ódigo são: reclusão, detenção,
m ulta, perda de função pública, interdições de direitos, publicação de sen- ^
tença e m edidas de segurança. !
i • '

rs;
2
v a n te s e a te n u a n t e s e introduz um a aplicação subjetivista da
pena. Assim,, é estabelecido que:
24. O Ju iz , ao fixar a p en a , n âo deve te r cm c o n ta so m e n ­
te o fato crim inoso, nas suas circunstâncias objetivas e c o n ­
seqüências, m as ta m b ém o delin q ü en te, a su a personalidade,
seus antecedentes, a in ten sid ad e do dolo o u g rau de cu lpa
e os m otivos d eterm in a n tes (art. 42). O ré u te rá dc ser
apreciado através de todos os fatores endógenos e exógenos,
de sua individualidade m o ral (...) c da su a m a io r ou m e n o r
desaten ção à disciplina social. Ao Ju iz in c u m b irá investi­
g a r,'ta n to quanto-possível, os elem entos q u e p o ssam c o n ­
trib u ir p a ra o exato co n h ecim en to do c a rá te r ou índole do
réu - o que im p o rta dizer que serão pesq u isad o s o seu
curriculum vitae, as suas condições de vida in d iv id u al, fam ili­
a r e social, a sua c o n d u ta co n te m p o râ n e a ou su b seq ü en te
ao crim e, a sua m a io r ou m e n o r pcriculosidade (p ro b ab ilid a­
de de vir ou to rn a r o agen te a p raticar fato prev isto co m o
crim e). Esta, em certos casos, é p resu m id a p ela lei,24 p a r a
o efeito d a aplicação o b rig ató ria d a m e d id a de seg u ran ça;
m a s'fo ra desses-casos, fica ao p ru d en te arb ítrio do J u iz o
• seu reconhecim ento, (art. 77) '
Im portante para a aplicação deste instrum ento legal é a
avaliação da responsabilidade penal que deverá ser feita m edi­
ante pericia médica. A dotando o sistema biopsicológico de
a v a lia ç ã o o Gódigo estabelecerá, que de acordo com o seu
artigo 22:
18. Ê isento de p e n a o agen te que, p o r d o e n ç a m en tal, ou
desenvolvim ento m e n ta l incom pleto ou re ta rd a d o , era, ao
tem p o d a ação ou d a om issão, in teiram en te in c a p a z de

24 Para os efeitos dessa lei são considerados presum idam ente perigosos: os
inim putáveis e sem i-im putáveis que nos termos do artigo 22 são isentos de
pena; os ébrios habituais condenados por crime com etido em estado dc
embriaguez; os reincidentes em crim e doloso e os condenados por crim e
com etido através dc associação, bando ou quadrilha de m alfeitores.

192
e n te n d e r o c a rá te r crim inoso do fato, ou de d eterm in ar-se
d e 'a c o rd o co m esse en ten d im en to (O liveira, 1987: 15).

A tribuindo á pena’a função de retribuir o dano e corri­


gir o condenado, o Código de 1940 im põe como condição para
a concessão de livram ento condicional não apenas que o preso j
apresente bom com portam ento más, tam bém , que fique de­
m onstrada através de exame a cessação da sua periculosida-
de. P or sua vez, p ara que o internado por m edida de segurança
seja desinternado, a m esm a condição será exigida. As medidas
de segurança, definidas como medidas de prevenção e assistência so­
cial e destinadas para aqueles que, -sendo ou não penalm ente
responsáveis, forem considerados perigosos, serão impostas por
tem po indeterm inado e deverão perd u rar até que fique com ­
provada, através de exam e pericial, a cessação do estado p e ri-.
goso (Oliveira, 1987: 24).
C om a revisão de 1984 e a entrada em vigor da Lei de •'
Execuções Penais, um a nova política crim inal e penitenciária>
com eça a ser desenhada. Segundo a Exposição de M otivos da
N ova Parte Geral, o o b je tiv o é r e s tr in g ir a p e n á " p riv a tiv a de
liberdade aos casos cle verdadeira necessidade. São reconheci- -
dos os altos custos dos estabelecimentos penais e os efeitos d e - .
letérios da prisão p ara os infratores prim ários c ocasionais —
que perdem paulatinam ente a aptidão p ara o trabalho e são
expostos a situações de violência c corrupção altam ente d ano­
sas - e é proposto de form a m anifestam ente cautelosa, um novo
elenco de penas, alternativas à reclusão. O Princípio de Indivi­
dualização das Penas é aperfeiçoado e são estabelecidos os ins­
trum entos e os procedim entos que fornecerão as bases p ara
um tratam ento individualizado do preso. E tam bém aperfeiço­
ado e am pliado o sistema de progressão/regressão das penas,
que agora poderão ser cum pridas em regime fechado, semi­
aberto ou aberto, de acordo com as condições do preso. D esa­
parece da legislação o sistema do duplo binário dispensando a
aplicação da m edida de segurança aos imputáveis, e aos semi-

193
im putáveis passa a ser aplicada a pena ou a m edida de segu­
rança, de acordo com a necessidade de cada caso. Q uanto às
m edidas de segurança p a ra os portadores de transtornos m en­
tais, praticam ente não há nenhum a diferença. Apesar de o Có-
di"go"ter excluído_a'periculosidade presumida-o-conceito-continua-
a ser aplicado aos inim putáveis. Isso significa que osexam es de
verificação de cessação de pericujosidade deixam de ser aplica­
dos aos im putáveis, mas são substituídos pelos exames crimino-
lógicos, que vão ser usados para instruir os pedidos de livramento
condicional e progressão de regime, devendo inform ar se o
interno está em condições de receber o beneficio pleiteado.25
C om a Lei de Execução Ifenal, são estabelecidas as no­
vas condições q u e devem ser garantidas aos presçjs e interna­
dos p a ra o cum prim ento de suas sanções. Estes passam a ter
direito à assistência m aterial, à| saúde, jurídica, educacional,
social e religiosa. Curiosam ente}não há m enção à assistência
psicológica. P a ra orientar a individualização da execução pe­
nal devem ser •classificados, segundo os seus antecedentes e
personalidade. Esta classificação! será feita por Comissão T éc­
nica de Classificação (CTC), presidida pelo D iretor e com pos­
ta, no m ínim o p o r dois chefes de serviço, um psiquiatra, um
psicólogo e um assistente social. Esta Comissão tem como atri­
buições estudar e propor m edidas que aprim orem a execução
penal, aco m p an h ar a execução ;das penas, elaborar o progra­
m a individualizador, ap u rar as infrações disciplinares e avaliar
as condições dos presos com direito a livramentoi condicional
ou progressão de regime. O s condenados à pena iprivativa de
liberdade estão p o r sua vez obrijgados ao trabalho, com finali-

25 D e acord o com o parágrafo único ido artigo 83 deste C ód igo, “para o


co n d en a d o p or crim e doloso, com etido com violência ou grave am eaça à
p essoa, a con cessão do livram ento ficará tam bém subordinada à constatação
de co n d içõ es p essoais que façam presum ir que o liberado não voltará a
d elin qü ir” . ]

194
dade produtiva e educativa, e sob rem uneração. Além disso,
tem o direito de descontar um dia de prisão para cada três dias
trabalhados. Devem tam bém se subm eter à disciplina estabele­
cida e no caso de infringir as regras são sujeitos a sanções dis­
ciplinares. Isto é o que determ ina a lei brasileira.

Prisões e violência

Nossas prisões são m uito diferentes do que estabelece a


lei. D e acordo com o D epartam ento Penitenciário Nacional
( D E P E N ) , temos hoje cerca de 250 mil presos nas delegacias e
prisões brasileiras.26 Por falta de vagas nas unidades penais, di­
versas pessoas literalm ente am ontoadas cumprem suas penas,
parcial ou totalmente, em delegacias ou casas de custódia. Muitas
nunca ouviram falar, em CTC e nunca foram assistidas por
psicólogo ou assistente social. Com o bem o diz Cristina Rauter,
a realidade de nossas prisões é m uito pouco panóptica. Nossas
prisões são na verdade depósitos, mais ou menos caóticos, cuja
finalidade parece ser apenas a exclusão e o castigo (Rauter,
1982: 23-24). Mais de 90% não têm acesso a advogado parti­
cular e por falta de assistência jurídica, ou devido à lentidão da
Justiça brasileira,; muitos continuam ipresos mesmo após term i­
nad a a pena, ou cum prem -na em regime fechado, apesar de
terem direito a livram ento condicional ou a cumpri-la em regi­
me mais brando. Passam meses ou anos em cclas absolutamen­
te desum anas e infestadas de baratas, ratos e fezes de pombos;
são expostos a todo tipo de violência (entre os próprios presos
ou por parte do próprio corpo funcional); geralmente recebem
alimentação insuficiente e de m á qualidade, sem falar nas muitas

,JR D e acord o com o censo de 1995, tínham os 9 5 ,4 presos para cem mil ha­
bitantes. H oje e ssa !cifra j á subiu para 146^5 cm cem mil.

195
•vezes que e s ta 6 deixada intencionalm ente ao sol p ara que es­
trague. O fornecimento de água é precário, as caixas de água
nunca são lavadas c na falta de água corrente, os presos fre­
qüentem ente arm azenam água p ara o banho e preparo de
pequenas refeições em latões enferrujados e imundos. Apesar
de viverem em condições absolutamente insalubres, a assistên­
cia m édica oferecida aos pres.os geralm ente é p re c á ria ,27
obstruída ou até cobrada por a travessado res e com exceção do
Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro não conta com a co­
bertura do SUS. São poucas as unidades penais que oferecem
oportunidade de estudo ou trabalho para os presos, as punições
'por infração disciplinar são m anejadas sádica e arbitrariam en­
te e a tortura individual ou coletiva é cometida im punem ente.
Em nome. da segurança da unidade, freqüentem ente os presos
têm os seus objetos pessoais examinados e destruídos, e seus
familiares, que segundo a lei não podem ser atingidos pela pena,
são freqüentem ente tratados com desrespeito e obrigados a
submeter-se a revistas corporais-15 (Kolker, 2002: 89-97).
Aqui, como na m aioria dos países, vêm aum entando
m u it o os ín d ic e s de e n c a r c e r a m e n t o , a m a io r ia dos d e lito s en­
volve o porte ou o tráfico de drogas e a idade dos presos dimi­
nui cada vez mais. As cam panhas pela lei e pela ordem exigem
cada vez mais rigor (sob suas formas legais ou ilegais) no trato

77 A assistência m édica oferccida aos presos do sistema penitenciário do R io


de Janeiro é a que oferece a m elhor estrutura (ambulatorial e hospitalar),
tem m aior núm ero de program as (DST-Aicls, tuberculose, preven ção ao
câncer ginecológico, etc.) e a que tem mais recursos, que são cobertos pelo
SU S. A inda assim, fazer chegar esses serviços aos presos é um desafio nem
sem pre bem sucedido.
2B Por outro lado, os alojam entos dos guardas - igualm ente desassistidos pelo
Estado - freqüentem ente são p ou co melhores do que os dos presos; a rela­
ção entre o núm ero de guardas e presos é sempre m uitíssim o abaixo da
recom endável, agravando o stress dos funcionários, e é alto o núm ero de
agentes com história de alcoolism o e abuso de drogas, ou que respondem a
processos.

196
com os bandidos c estes respondem com cada vez mais ousa­
dia e violência, inclusive, freqüentem ente executando ou tortu­
rando suas vítimas. A-criatura foge, enfim, ao controle do criador
e o pânico, tornado real, tom a conta das cidades.29'

A atuação dos psicólogos nas unidades prisionais

O dia a dia dos psicólogos nas prisões transcorre em meio


a centenas dc papéis. São infindáveis laudos, relatórios ou pa­
receres, feitos ou por fazer, e mesm o assim, a qualquer hora
que entrem os nas galerias ouvirem os dos presos as eternas
queixas de que ainda não foram cham ados p ara fazer seus
exames. Pudera, as unidades penais de nosso país costum am
alojar cerca de 500 presos, algumas atingem a m arca dos 1.000
e com sorte as equipes técnicas chegam a contar com dois pro­
fissionais da área de psicologia. Além disso, há as inúm eras
sessões da CTC p ara apurar as infrações disciplinares. Assober­
bados dc tarefas disciplinadoras ou de juízos a em itir sobre os
p r e s o s , o s p s ic ó lo g o s das unidades prisionais dificilmente po-
dem realizar algum trabalho mais transform ador nessas comis­
sões ou estabelecer outro tipo de relações institucionais com os
dem ais funcionários, internos e /o u seus familiares.30 No entan­

S egu n d o ZafTaroni, a capacidade reprodutora de violência dos m eios de


com u n icação c enorm e: na necessidade de um a crim inalidade m ais cruel
para m elh or excitar a indignação m oral, basta que a televisão dê exagerada
pu blicidad e a vários casos dc violência ou crueldade gratuita para que, im e­
diatam ente, as dem andas dc papeis vinculados ao estereótipo assum am c o n ­
teúdos de m aior crueldade e, por conseguinte, os que assum em o papel
correspondente ao estereótipo ajustem a sua conduta a esses papeis (ZafTaroni
apud Batista, 1998). '" .■
E xceções são feitas aos casos dos psicólogos que trabalham em unidades
hospitalares, atuam em program as de prevenção a doenças sexualm ente
transm issíveis, ou prestam assistência a presos com dep en d ên cia quím ica.

197
to, um a das atribuições das G T C s é estudar.e p ropor jmedidas
que ap rim orem a execução penal.j Além disso, com o vimos
acim a, sequer está previsto na Lei de Execução Penal a assis­
tência psicológica 'aos reclusos. Por! outro lado, os psicólogos,
assim^como_os_dernais técnicos que trabalham nessas institui-
çÕes, dificilmente têm contacto com o funcionam ento interno
das prisões. Estes, geralm ente por problem as de segurança, ou
p o r falta de tem po, m as m uitas ;vezes por desinform ação ou
desinteresse, não costum am , ter. acesso às galerias - desconhe­
cendo e /o u silenciando acerca dos reais problem as dós estabe­
lecim entos onde' trabalham , inclusive no que diz respeito às
costum eiras sessões de tortura (Kolker, 2002). T odas essas ques­
tões, no entanto, estão ainda à espera de um a discussão mais
profunda, tanto no próprio sistema jpenal, como nos sindicatos
e conselhos profissionais. ;
Falem os pois dos exames. Com o bem o diz R auter, em
artigo fundam ental p a ra os que trabalham no sistema penal, a
p a rtir de 1984, cpm a consagração dó princípio de individua­
lização das penas, “am pliam as oportunidades em que um con­
denado será tornado alvo de um a avaliação técnica” e crescem
em im p o rtân cia “os procedim entos que visam diagnosticar,
analisar oü estudar a personalidade e a história dei vida dos
condenados”, com “o objetivo de adequar o tratam ento peni­
tenciário às características e necessidades de cada preso” ou de
“prever futuros com portam entos delinqüenciais” (Rauter, 1989:
9). Assim, ainda que o propalado tratam ento penitenciário nunca
ten h a chegado a existir em nosso país e que pelo contrário, as
penas de reclusão tenham cada vez mais perdido o caráter de
correção ou tratàm entó, p a ra se converter em m eros instru­
m entos de neutralização e eliminação das classes perigosas, cada
vez mais, desde que ingressar no sistema penitenciário, o des­
tino dos presos estará subordinado aos pareceres técnicos que
sobre eles forem ' emitidos. Isso significa que ao ingressar na
prisão os apenados deverão ser submetidos a um a longa avalia-

198
ção, quando serão colhidos seus antecedentes pessoais c fami- •
liarès, seu grau de escolarização e profissionalização, suas h a ­
bilidades e interesses, seus antecedentes penais e a história de
■seu delito, e a cada m udança de regime ou pedido de livra-
'm ento“ cõndicional_deverão_ser-apuradas“as_m udanças-opera“
das em seu com portam ento e se as condições do apenado fazem
supor que ainda estão presentes as razões que o levaram a
delinqüir. Com o nos aponta R auter, a, qualquer m om ento um
laudo desfavorável do condenado poderá significar o prolonga­
m ento da sua reclusão, a pretexto de.se continuar um trata­
m ento sabidam ente inexistente, mas, ainda assim, como se
acreditassem n a eficácia da prisão como instrum ento de trata­
m ento do preso, os psicólogos devem ;buscar na avaliação do
com portam ento do interno a resposta p ara as suas clássicas
perguntas. .
Buscando identificar os pressupostos em que se baseavam
os antigos Exam es de Verificação de Cessação de Periculosida-
de (EVCP),31 Cristina R au ter concluiu que um determinismo
cego, m ecânico e simplista os caracterizavam . Assim, fatores
como a m orte precoce da mãe, o abandono do pai, a separação
litigiosa dos dois, mães que trabalham fora e deixam os filhos
com os vizinhos, privações financeiras, casos de alcoolismo,
dependência de drogas, ou de antecedentes penais na família,
abandono precoce da escola, falta de profissionalização e pas­
sagem na infancia p o r instituição correcional, vistos em con­
ju n to ou isoladam ente, sem pre derivavam na conclusão de que
o resultado óbvio seria a prática de crime e, enfim, a reclusão.
Segundo as palavras da p rópria autora:
O processo de reconstituição d a histó ria do co n d e n ad o nos
EVCP, p o d e ria ser descrito co m o u m a m ira d a em direção
ao p assad o do indiv íd u o , b u scan d o a -confirm ação de que

31 A tu alm ente, só são subm etidos aos exam es de avaliação da périculosidade,


os internados por m edida de segurança.

199
realm ente existiram aco n tecim en to s em su a v id a q u e p o r
sua p ró p ria n a tu re z a são geradores de crim e. G ircula-se
tautologicam ente sobre este tipo de raciocínio: se te n h o
dian te de m im alguém q ue está preso e c o n d e n a d o , este
alguém só p o d e ser crim inoso e com o crim in o so só p o d e
ter história de crim inoso. Este passado, a ele se tem acesso
pela fala do preso, m as esta n ão é, p o r certo, u m a via to ­
talm ente confiável: acred ita-se ce rtam e n te q u e ele p ro c u ­
ra rá en g an ar, falsear â ‘v e rd a d e ’. L ança-se m ã o dos autos
do processo-crim e.. d a ficha de co m p o rta m e n to ca rcerário
etc. C o m base nestes d ad o s considerados in q u estio n áv eis,32
chega-se ao q u è se desejava: vidas p o n tilh ad a s de indícios
. que só p o d eria m levar ao crim e (R auter, 1989: 13).

Não se leva em conta, portanto, os processos de crim i-


nalização e a seletividade das leis, das polícias e do sistema
judiciário33 que fazem com que determinadas pessoas tenham
maiores chances de estar ali e outras não. Não-se leva em con­
ta, tampouco, os efeitos deletérios da prisão sobre o preso, mesmo
quando o crime que motivou a condenação seja de m enor poder
ofensivo e desproporcional ao dano que a perm anência na prisão
c a u sa rá . T a m b c m , n ã o são e x a m in a d a s as razõ es e x te rn a s ao
preso, que poclem, por exemplo, determ inar a sua reincidên­
cia. Seguindo-se, apenas, critérios técnicos, se buscará no preso
e somente nele as condições que façam presumir que não voltará a
delinqiiir.

J" C om o se pode depreender das análises de Rauter, é necessária m uita in ge­


nuidade, ou em alguns casos m á-fé, para acreditar que o que consta nos
processos é necessariam ente a expressão da verdade, E certo que a m aioria
dos presos alegam inocência, mas tam pouco costum am ser m uito confiáveis
as inform ações constantes nos processos.
33 U m bom exem plo desta ação seletiva c do papel dos diferentes níveis do
• com plexo poUcial-judiciário-psiqjiátrico nesta seleção é o diferente trata­
m ento dado aos joven s que são flagrados portando drogas: para os joven s
das ciasses favorecidas c geralm ente lançado m ão do paradigm a m édico e
aos dem ais, o paradigm a criminal. V e r em Badsta, 1998.

200
Na impossibilidade de concluir..

Inspirando-m e em Pavarini, que contratado p a ra escre­


ver um livro introduzindo os conceitos de crim inologia, preo­
cupou-se m uito mais em colocar proolem as do que propor
definições, chego ao fim de m inha exposição sem ap o n tar n e­
nhum a direção aos psicólogos que desejem experim entar p rá ­
ticas mais transform adoras. Longe de m im tal pretensão. Até
porque não existem fórmulas. Com o o autor italiano, que con­
fessou que “no conseguiria escribir un manual de criminologia porque no
sabria decir con.certeza, que és la criminologia” , mas poderia “ ayudar a
comprender quê qfrecey p ra quê situe esta criminologia'” (Pavarini, 1996:
22), penso que serei mais útil se ajudar o leitor a problem atizar
sua prática e a indagar a serviço de que quer investir seus sa­
beres e com petências. N a impossibilidade de concluir, deixo,
então, um m al-estar, um a inquietação ainda sem form a, um a
provocação ao pensam ento, à problem atização ou quem sab e...
à invenção. Afinal, as práticas verdadeiramente transform adoras
s ó s e f a z e m n a q u e le s m o m e n ­
tos fugidios e ines

m o n u m a prisão. ■
JurancUr Freire
antigo m as ainda
texto, j á nos alertava que é impossível prever o com portam en­
to hum ano como quem prevê a dilatação do m etal pelo calor.
É impossível controlar a imprevisibilidade dos hom ens. P ara
ele, qualquer tentativa neste sentido só pode estar a serviço de
um a m ascarada cum plicidade com as razões de estado. E ava­
liar um a pessoa segundo seu grau de adaptação às norm as so­
ciais não pode ser considerado outra coisa (Freire, 1989). Isso
significa que o m andato dos técnicos da á re a p s i que.trabalham
em prisões,* e dentre eles o dos psicólogos, precisa ser urgente-
m ente repensado. Se vimos acim a que as prisões,produzem
efeitos de subjetivação, que o sistema penal ao configurar a
delinqüência contribui p a ra a produção e reprodução dos de­
linqüentes, o que podem os fazer p ara trabalhar pela descons-
trução-dessas-carreir-as—par-a-a4produção-de~desvios_nessa___
trajetória que se quer preconizar como irreversível? Gomo uti­
lizar nossas' .competências não pai-a reafirm ar destinos, e sim
p a ra ajudar a desviar o desvio p a ra outras direções mais criati­
vas e a favor da vida? 1
P ara ajudar a esquentar essa.discussão, deixo tam bém
algum as palavras de G uattari j á tão repetidas por seus leitores,
m as tão vivas ainda...
d ev e m o s in te rp e la r to d o s laqueies que o c u p a m u m a p o si­
ção d e ensin o nas ciências sociais e psicológicas, ou no
ca m p o do tra b a lh o social {- todos aqueles, enfim cuja p r o ­
fissão consiste em sc in te ressa r p elo discurso do o u tro . Eles
se e n c o n tra m n u m a e n c ru z ilh a d a p o lítica e m icro p o lítica
fu n d a m e n ta l. O u v ão faz er o jo g o dessa re p ro d u ç ã o de
m od elo s qu e n ã o n o s p e rm ite m criar saídas p a r a os p r o ­
cessos de sin g u larização , o u , ao co n trá rio , vão es ta r tr a b a ­
lh a n d o p a r a o fu n c io n a m e n to desses processos n a m e d id a
de suas p ossibilidad es e dps ag e n ciam en to s q ue consigam
p ô r p a r a fu n c io n a r (G u a tta ri, 1986: 29).

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204
(Des)consfruindo a 'menoridade': uma análise
crítica sobre o papel da Psicologia na produção
da categoria "menor".
Érika Piedade da Silva Santos

C ria n ça s e loucos dizem a verdade. P o r isso.as p r im e ir a s


são ed u c ad a s e os segundos, encarcerad o s.
Sofocleto. ;v

A atuação do psicólogo face ao "adolescente em conflito com a


lei": história, impasses e perspectivas. .

Com o profissionais em Psicologia, cedo nos habituamos-


a pensar que o principal. instrum ento de nosso trabalho é a
escuta subjetiva, a atenção ao ‘sujeito’. Esquecemos ou natura­
lizamos, e assim neutralizam os, que cada história pessoal está
profundam ente atravessada por Histórias mais amplas que cons­
tituem a sociedade a que pertencemos.
O presente artigo pretende refletir e problem atizar a
inserção das práticas “psi” sobre determ inada parte da infan­
d a e juventude brasileiras a partir do século X IX , sobretudo,
no que tange a conceitos forjados a partir de dispositivos socio-
jurídicos que- vigoraram desde o Brasil Im pério. Convém ob­
servar que tais dispositivos estão na gênese das diferenças entre
os conceitos de “ M E N O R 55 e de “ CRIANÇA” , cujos desdobra­
m entos exercem influência até os días de: hoje.

205
As prim eiras m enções à expressão “m enor” articulam-se
às leis crim inais do Brasil Im pério, e definem as penas a serem
aplicadas no caso de com etim ento ide crimes “por m enores de
idade” . Assimilada a partir do universo jurídico, a expressão
foi absorvida no discurso so a ã l_ã ^ fin a l_d'o~secuTo~XTX~para
designar as crianças nascidas das cam adas mais baixas da pirâ­
m ide social. Nesse trajeto, do jurídico ao social, a .bxpressão
assum e conotação de controle político, pois ao segm entar cer­
tos setores sociais, criam-se categorias de crianças consideradas
“suspeitas” e potencialm ente “perigosas”.' D urante todo o sé­
culo X X , a expressão “m enor” preencheu a necessidade de di­
ferenciar entre os bem-nascidos e os potencialroente perigosos
p a ra a sociedade, introduzindo um traço diferencial que, num
trajeto que vai do social ao jurídico, culm inou com a: form ação
de subjc.tividades. Em tais modelos, distinguiam -se as “crian­
ças” dos “m enores em situação irregular”, a estes creditando
riscos sociais de ru p tu ra da ordem .
P ara com preender m elhor èsse panoram a, convém co­
nhecer a intrincada e complexa tram a da tutela estatal sobre as
crianças e os jovens brasileiros que se form ou a partir do sécu­
lo X IX . ;

! '

A "descoberta da infância" e a "construção da menoridade" no


Brasil no século XIX , ,
‘ ! j
A história da tutela estatal sòbre as famílias esteve, desde
os seus prim órdios, vinculada ao advento do capitalismo e de
suas dem andas correlatas: um m ercado consumidor e;uma mão-
de-obra adestrada e dócil. No século X IX , as preocupações re­
lativas à preservação e à reserva de m ão-de-obra começam a
integrar o cenário social e político, e é neste contexto que a
infância com eça a ser definida como objeto de ação e interven­
ção públicas em todo o Ocidente:

206
•Tais preocupações,'européias na origem, são trazidas ao
Brasil em 1808, com a vinda da Família Real. D a Europa, são-
nos trazidos os conceitos de trabalho como valor positivo, como
atividade form adora e enobrecedora; e as noções contrastantes
de cidadania (atribuída àqueles que trabalham ) e de vilania e '
ilegalidade (como m arca dõs vagal3ün"dos-e~ociosos)—No-Brasrl,
a sociedade colonial e escravagista pautava-se quase no contrá­
rio daquilo que pregavam os europeus: o trabalho era percebi­
do como traço dem eritório, sendo associado aos escravos ou a
pessoas sem valor nem peso na escala social. Transform ar em
qualidade aquilo que era percebido icomo defeito exigiu redo­
brados esforços do poder soberano no fim do século X IX .
A interferência nos paradigm as sociofamiliares foi o prin­
cipal cam inho escolhido p a ra fazer valer, aqui, valores trazidos
da sociedade européia. P ara ta n to ,;foi necessário acionar um
conjunto de saberes-poderes, tal como definido por Foucault,1
capazes de transform ar as formas de constituição das famílias
e, a p artir daí, a identidade dos sujeitos. E neste contexto que
observamos a em ergência de campos específicos do saber rela­
cionados com a criança: a pediatria^ a pedagogia, a puericultu­
ra (Azevedo, 1989), entre outros que, apropriados de acordo
com os padrões .morais do período, foram as vias de constru­
ção de modelos ideais de conduta.
A tuando especificamente sobre a família, as primeiras
referências às idéias psicológicas que começavam a influenciar
os meios acadêm icos europeus e norte-am ericanos, conceitos
oriundos da M edicina e da Pedagogia criaram ou redefiniram
as formas de funcionam ento esperadas nos indivíduos e institu-

1 F oucault problem atíza a con cep ção de neutralidade dos sistemas de co n h e­


cim ento que para ele estão sem pre relacionados com a história da m odifica­
ção do poder. Assim , as formas de identificação da loucura, sexualidade,
etc, n ão são h om ogên eas no decorrer da história, mas estão articuladas à
em ergên cia de novas formas de funcionam ento da sociedade.

207
iram parâm etros de “norm alidade” e "anorm alidade” , pau tan ­
do as condutas tidas como boas e saudáveis na vida familiar.
Em conseqüência, elegeram-se como norm a alguns modelos
de funcionamento familiar, em detrim ento de outros que pas­
saram, a ser vistos como "clesviantes”, “patológicos” ou “irre­
gulares”.
As famílias provenientes da elite econôm ica e intelectual
foram cooptadas pelos discursos médico e pedagógico, que as
identificaram cpm o modelo que se propunha im plem entar.
Ós ^segmentos mais pobres da população foram atingidos de
form a distinta, através da captura e controle pelos registros
policial e jurídico. É iqríportante que se frise que estas transfor­
mações não aconteceram de modo passivo; houve áreas de atrito
e choque entre os modos de conduta que prevaleciam à época
e os “novos” modelos propostos em sociedade, como a adesão
à imagem de que o trabalho deveria ser aceito e incorporado
em um quotidiano em que era percebido tradicionalmente como
um traço demeritório e identificador de classes mais pobres e a
condenação, e crítica que foram produzidas sobre a m aior libe­
ralidade s e x u a l e a f e tiv a q u e era com um e n t r e os c x -e s c ra v o s e
pessoas pertencentes aos grupos mais baixos do estrato social.
A própria estruturação posterior de um a psicologia dita
‘científica’ estaria diretam ente vinculada às dem andas morais e
jurídicas (Brito, 1992). Com ambição científica de conhecer o
hom em e a sociedade, a psicologia estaria a serviço de distin­
guir o indivíduo “norm al” e controlar o “desviante” .2
A m aneira privilegiada para ingresso dos discursos cien­
tíficos médico e pedagógico na esfera familiar foi a defesa da

2 A própria profissão de psicólogo só foi regulam entada c reconhecida nos


anos de 1960, enquanto a função de psicologista — reconhecida já nas pri­
meiras décadas do século X X - “pòderia ser ocupada por profissionais dc
qualquer especialidade — educador, psiquiatra, enferm eiro'’ em instituições
com o o Laboratório de Biologia Infantil, criado em julho dc 1936 (Jacó-
Vilela, 2001: 239). '

208
infanda; sob o argum ento de que seria necessário estabelecer
os padrões de “cuidado da in fa n d a ” , a ciência enfatizou - no
Brasil da viradà do século X IX p ara o século X X - que era
dever das famílias “p rep arar seus filKos p ara ò futuro” , discipli­
nar e dom esticar as crianças através da criação de ‘bons’ hábi­
tos e adequar seu com portam ento. -
Essa lógica atingiria indiretam ente os adultos, na medi­
da em que os capturaria como atores do enredo d a vida fami­
liar nuclear, tornando-os pais e mães de família. Enfim, toda a
lógica em construção circula sobre os marcos territoriais da
família (a parentalidade e a filiação), assim como sobre os pa­
péis sexuais.
Os modelos, e m . constituição obedeciam em sum a aos
pressupostos dc saneam ento e higienização social, conhecidos >
como m ovim ento higienista. N o entanto, se o percurso i n t e r ­
vencionista do Estado sobre as famílias deve muito ao higienismo, •
nas suas vertentes m édica e pedagógica, a salvaguarda legal foi J
um aspecto decisivo na consecução de um mecanismo eficaz
de tutela sobre as famílias. Para tanto, era n e c e s s á ria a prom ul­
gação de um texto legal que firmasse os marcos jurídicos do
Higienismo.
E de fato, um dos principais propósitos das prim eiras
legislações sobre a infancia no Ocidente moderno foi servir como .
um poderoso instrum ento de penetração e controle das famíli­
as (Coimbra, 2000: 85). Referimo-nos ao controle das wrhialiâades,
apontado por Foucault como exigência das sociedades discipli­
nares, um controle'nâo apenas sobre o que se faz ou o que se
é, “mas sobre o que se pode vir a fazer ou vir a ser (Foucault,
1996). .
Nesse momeríto é im portante que destaquemos que du­
rante todo o século X IX , na constituição do Direito Penal Po­
sitivo, emergiu como principal objeto desta ciência, a importância
de se defmir o que é CR IM E, ou seja, alguma form a de trans­
g ressão efetiva a u m a n o rm a e sc rita e c o d ificad a. Em

209
contrapartida, du ran te o século X I X , outro objeto foi paulati­
nam ente elaborado, qual seja, o valor do cpnhecirnento e da
tipificação da figura do C R IM IN O S O , com o passível da inter­
venção diante do com etim ento dejum a infração. A .análise de
que-um-indivíduó-viesse-a-ser-identificado-comojpotencialrnerv:
te capaz de vir á com eter um delito assume a form a de estra­
tégia de controle e foi efetivam ente sancionado através da
conhecida “apreensão por atitudè suspeita” no Brasil do início
do século X X . ,
C itando o .professor Alessandro B aratta ;
N a lin g u a g em policial, a expressão ‘atitu d e su sp e ita’ n ão
foi n u n c a u sa d a p a r a in d ic a r q ue o jo v e m estivesse fa z e n ­
d o algo suspeito, m as p a r a in d ic a r q u e ele e ra co n sid erad o
a u to m a tic a m e n te suspeito pelos sinais de su a id en tificação
co m u m d e te rm in a d o g ru p o social (B ara tta a/m í/M alag u tti,
1 9 9 8 : 12). '

A assimilação jurídica dos preceitos higienistas realizou-


se, no Brasil, através da construção da D outrina da Situação
Irregular. Essa D outrina foi a prerrogativa legal utilizada p a ra
em basar os dois Códigos de M enores que existiram ;no Estado
Brasileiro, o prim eiro prom ulgado em 1927 e o segundo em
1979. Am bos caracterizavam -se p ;b r partilhar o entendim ento
de que apenas os “m enores” em situação irregular —o que na
prática elegia os m enores “abandonados, delinqüentes, perver­
tidos ou em perigo de ser” —seriam alvo da tutela do Estado. Esta
concepção doutrinária identificava os “m enores” como objeto
do D ireito3 e criou mecanismos que perm itiram ao Estado atuar
diretam ente nos núcleos familiares; a suspensão do pátrio poder

3 A referência à expressão “objeto d e D ireito” explicita a prevalência da lei


sobre aqu eles a q u em ela se aplica, objetaUzando-os na relação que se insti­
tui. A referência às crianças e adolescentes com o “sujeitos de direitos”, pre­
sente no E statu to’da C riança e d o A d olescente, expressa, em contrapartida,
a valorização da autoria dos direitos e dèveres dos sujeitos aos quais a lei se
destina, e sobre os quais a lei não é apenas im posta. A expressão “sujeito de

210
do pai ou da jn ãe que “p o r abuso -de autoridade, negligência,
incapacidade, impossibilidade de exercer o seu poder”, faltasse
“habitualm ente” ao cum prim ento dos deveres paternos (Rizzini,
1985: 131).
A^quiTTToWénTlalientar que a açãõldêstinãclã- á' menori”
dade era reconhecida, no próprio círculo jurídico, como urna
atuação “m enor” pois, segundo alguns juristas, seus parâm e­
tros não correspondiam aos princípios mais basilares do Direi­
to. Essa avaliação serve como crivo analítico da prática proposta
pelo m odelo da Situação Irregular: intervenção sobre o “me­
n o r”, enquanto categoria forjada à! parte da infanda, e sobre
sua família de origem, sem qualquer referência aos direitos de
um ou de outro; em síntese, um a desqualificação da própria
ideologia do Estado D em ocrático de Direito.
Defensores da D outrina da Situação Irregular argum en­
tavam que a intervenção do Poder ;TuteIar, por ser em essên­
cia protetivo, g aran tiria por si m esm o a preservação dos
interesses de seus tutelados, não sendo necessário que as garan­
tias elem entares do Direito fossem anunciadas para essa parce­
la da população. Dessa form a, o direito de representação, a
am pla defesa, os prazos de representação e /o u contestação não
eram identificados como fundam entais em processos que en­
volvessem os menores. Nesses, o poder repousava solitário e
subjetivo na figura do Juiz de M enòrcs, que por definição de­
cidiria em seu beneficio.
N ão por coincidência, as prim eiras referências â utiliza­
ção do discurso “psi” na sociedade brasileira datam das pri­
m eiras décadas do século XX, pouco após a promulgação do

d ireitos” está diretam ente articulada ao m ovim ento de conquista dos D irei­
tos H u m an os, q u e se tornou eloq üente na;m odernidade. Assim, a idéia de
direitos hu m anos tom a por base o pressuposto de que os indivíduos, por sua
própria condição hum ana, são portadores de direitos universais e inalienáveis
q u e d evem ser protegidos de quaisquer violações e arbitrariedades por parte
da socied ad e ou do Estado.

211
C ó d ig o d c M e n o r e s d e 1 9 2 7 , n a c o r r e n te d e p r e o c u p a ç õ e s c o m
o d e s tin o q u e d e v e r ia se r d a d o à “ in f â n c ia d e s a d a p t a d a ” e às
“ c ria n ç a s d ifíc eis” . À p a r ti r d e e n tã o , os in s tr u m e n to s d e a v a lia ­
ç ã o c d ia g n ó s tic o p sic o ló g ic o s f o ra m s e n d o p a u l a ti n a m e n te in ­
c o r p o r a d o s p e l a s in s t itu iç õ e s d e a b r ig o e / o u co rreç ão de
m e n o re s , a d e s p e ito d a p r ó p r i a p ro fis s ã o d e p s ic ó lo g o n ã o s e r
a in d a r e c o n h e c id a à é p o c a .
Dito de outro m odo, o- discurso sobre a infância, e a
prática psicológica a ele correlata, caracterizaram -se no Brasil
como instrumentos de adaptação e controle da “m enoridade”,
emergindo o “m enor” como um dos primeiros objetos de estu­
do que se conhecem na histó ria da psicologia b rasileira
(Coimbra, 1999: 81).
D urante o Império, a sociedade brasileira conheceu im ­
portante influência da Igreja sobre os assuntos do Estado. D a
esfera política ao âmbito jurídico, atravessando á im plem enta­
ção das políticas sociais públicas, a Igreja fazia ver sua influência
(Rizzini, 1985: 195). D atam desse mesmo período as prim eiras
referências ao termo “m enór” nas determinações previstas pelo
Código Criminal de 1 8 3 0 , q u e d e fin ia q u a is s a n ç õ e s deveriam
ser aplicadas no cometimento de crimes por “m enores de ida­
de” . Essa prim eira referência ao termo tem, como se vê, cará-
. ter essencialmente penalista e criminal.
A população de m enor idade não envolvida com atos
criminosos estava, assim, alheia aos preceitos jurídicos do Im ­
pério. Sobre ela, predom inava a ação caritativa da Igreja, na
form a do paradigm a dos “órfãos e expostos da R o d a”,4 a idéia

4 A “roda” era um dispositivo que funcionava desde o Brasil C olôn ia com a


pretensão dc preservar a reputação das familias após o nascim ento de filhos
bastardos e ilegítim os. Tratava-se dc um a abertura no m uro de um a insti­
tuição dc recolhim ento que perm itia, a quem estivesse na rua, colocar um a
criança sem ser identificada por ninguém . Pensava-se que assim se protege­
ria a vida dos infantes que não seriam m ortos por suas m ães na tentativa de
ocultação da “desonra”. N a prática a maioria das crianças morria antes de
com pletar um ano cm decorrência de maus-tratos institucionais.

212
presente neste tipo cie atuação estava diretam ente relacionada
aos princípios religiosos, e fazia crer que era função do “bom
cristão” ajudar aos “ menores desprovidos da sorte”, objetivando-
se o reconhecimento divino por esse auxilio e conseqüentemente
a “ida p ara o céu”. As alianças que destinavam os criminosos
à Justiça e os pobres à Igreja eram a principal característica da
política 'traçada no Brasil Im pério p ara a população infanto-
juvenil. Nessa associação conveniente, a Igreja - falando em
nome do poder estatal - atuava na ausência ou inexistência da
autoridade parental, abstendo-se no entanto de intervir no
âm bito privado da família e preservando o poder do “pai de
fam ília”, onde ele se fizesse presente e atuante.
Esse jogo perm itia preservar o delicado equilíbrio entre
os interesses do Estado e os interesses patriarcais; não havia,
no Brasil Império, qualquer mecanismo de tutela estatal que
interferisse direta e claram ente sobre os grupos familiares. •
Além da ação da Igreja, outros mecanismos assegura­
vam a m anutenção da ordem social sem afrontar o poder p a ­
tr ia r c a l; c o m o e x e m p l o , p o d e s e r c i t a d a a l e g i s l a ç ã o d o I m p é r i o
que obrigava todas as crianças, independente de sua origem
social, à form ação escolar. T al determ inação, reiterada em di­
versos decretos-lei, torna a freqüência escolar obrigatória para
todas as crianças do sexo masculino, maiores de sete anos e
sem im pedim ento físico ou m oral, sob pena de m ulta no caso
de não cum prim ento do disposto legalmente. Sob muitos as­
pectos, esses dispositivos legais ajudam a construir a imagem
do processo de “cultivo, cuidado e vigilância” que a escola se
encarregaria de assum ir. N um contexto cm que discute o
surgimento, do sentim ento de infancia no O cidente m oderno,
no qual podem os incluir o Brasil, Aries escreve:
A despeito de muitas reticências e retardam entos, a crian­
ça foi separada dos adultos e m antida à distância num a
espécie de quarentena, antes de ser solta no m undo. Essa
quarentena foi a escola, o colégio: Começou então um longo

213
processo de enclausuramentp das crianças (como dos lou­
cos, dos pobres e das prostitutas) que se estenderia ate os
dias de hoje, e ao qual sc dá ó nome de escolarização (Ariès,
1981: 11). I
A Lei do V entre Livre, prom ulgada em r87'l7unprim e_a_
necessidade de um novo redirccioriam ento nas políticas da in­
fância. Se antes' a iníancia podia ser tom ada como objeto de
ação no âm bito íntim ista das famílias, a libertação dos filhos de
escravos ainda cativos denunciam ia interferência de medidas
fora do âm bito estrito da família. À iníancia passa assim a re­
querer novas considerações do Estado, e a assumir conotação
de questão social. Além disso, a sociedade brasileira assistiu na
segunda m etade do século XIX a uijn processo de grandes trans­
formações: a urbanização e o início da industrialização, que
dem andavam m udança das m en tali d ades oriundas da tradição
agrário-rural.
T ais exigências exigiram do Estado novas estratégias
políticas, sendo a aliança com o m ovim ento higienista feita sob
m edida p a ra o controle da população. É então que, nesse con­
texto, o conceito de m enor vai extrapolar a esfera \jurídica e
p en etrar o cam po social.

Dos códigos de menores ao estatuto tia criança e do adolescente

N o horizonte do projeto higienista, colocava-se a neces­


sidade do controle de um a enorm e gam a de condutas sociais.
P ara im plem entar tal projeto, era (premente construir estratégi­
as de acesso aos núcleos familiares, compreendidos!com o “cé­
lulas básicas do tecido social” e a criança foi, sem dúvida, o elo
de acesso mais, im ediato às famílias (Freire, 1989).
C om o advento da R epública, da qual decorreu a neces­
sidade de am pla reform ulação dé todo o ordenam ento jurídi­
co, os juristas salientaram a necessidade de criar um a legislação

214}
'especial p a ra m enores de idade. As tdiversas leis sancionadas
no início do período republicano refletem' de um lado a preo­
cupação do país em torno do reordenam ento político-social, e
de outro a preocupação com a infância, que emerge como foco
de preocupações bastante diversas daquelas da época do Im pé­
rio:
1. sobre as crianças integradas a lares considerados apropria­
dos, o Estado constrói estratégias de intervenção que pas­
sam pela incorporação e apropriação de saberes-poderes'
médicos, pedagógicos e a im portação das prim eiras referên­
cias de “discursos psicológicos”; *
2. sobre as crianças sem família, oü com famílias tidas como
“anorm ais, irregulares •ou patológicas” - ressalte-se, “nor­
m alm ente” as originárias dos baixos estratos sociais - incidiam
um a série de ações calcadas no ideal higienista, de cunho
filantrópico e jurídico, através dã intervenção direta do Es-,
tado.
A ssim , in icia-se a in stitu iç ã o d a tu te la so b re as fam ílias
p o b re s . P o d e m o s c o n s id e ra r q u e u m a d as p rin c ip ais c a ra c te rís­
ticas d o sécu lo XX é o su rg im e n to de u m e x tra o rd in á rio a p a r a ­
to j u r í d i c o - i n s t i t u c i o n a l p a r a a t u te l a d o s “ m e n o r e s ” e,
c o n s e q ü e n te m e n te , d á in te rv e n ç ã o so b re suas fam ílias.
A ssim , d iv ersas in stitu içõ es estatais são c ria d a s, b a sic a ­
m e n te n a p e rs e g u iç ã o d o o b je d v o d e a fa sta r os “ m e n o re s” das
ru a s a b rig a n d o -o s , q u a n d o “ c a re n te s ” , o u in te m a n d o -o s em
re f o r m a to r ie s , q u a n d o “in fra to re s ” . ■
Dessa m aneira, podem os entrever que as origens da his­
tória da organização da Justiça de M enores se confundem com
a assistência à Infancia no Brasil através da filantropia.
A filantropia representou um desdobram ento que se pro­
punha científico p a ra as ações de cunho puram ente caritativo
e religioso, ou seja, os teóricos do hígienismo preocuparam -se
em repudiar as ações que eram praticadas pela Igreja, conside­
rado-as pouco técnicas e não-científicas, mas preservando ain­

215
da p o s i c io n a m e n t o s que eram basicamente' assistencialistas.
Assim, evoluiu-se da idéia religiosa de fazer o bem aos pobres para
o conceito cientifico de saber o que deve ser feito com as populações
marginais para se alcançar o melhor possível com as mesmas.
O discurso filantrópico caracterizou-se sobretudo pela
profunda correlação com o ideário positivista, através da ênfa­
se dada à articulação entre as propostas filantrópicas c a cons­
tituição de um projeto “civilizatório” específico: ó projeto da
“psicoprofilaxia social” advogado pelo higienismo.
Por conseguinte, os prim eiros anos do século XX foram
atravessados e marcados pelos desdobram entos históricos das
décadas de 1880 e 1890, que revolucionaram as formas como
a sociedade brasileira se reconhecia e identificava: abolição da
escravatura; assimilação de um grande contingente de ex-escra­
vos no mundo do trabalho livre; mudanças políticas substanciais
com o advento da República em 1889, urbanização do cenário
nacional e europeização dos costumes (Rizzini, 1987: 77).

 feitura dos especialistas na construção da máxima


delinqüência: o "menor" e a prática de delitos.
No início do período republicano, de ebulição'coledva e
efervescência política, a crim inalidade infantil começa a ser
delineada como um a problem ática vital, m erecendo atenção
cada vez m aior da imprensa, que era consumida apenas pelos
círculos letrados e burgueses, fom entando os questionamentos
sobre o que se deveria fazer com o “m enor delinqüente”.
Com o sinal de que essas preocupações não eram neu­
tras, articulando-se à produção de. subjetividades específicas, e
interessante registrar que as prim eiras estatísticas sobre a
crim inalidade juvenil já anunciavam seu aum ento. Curiosa
constatação, sobretudo porque se tratavam de dados iniciais.
Tais estatísticás não faziam mais do . que responsabilizar os

216
“m enores pivetes” pela insegurança e com provar sua parcela
de culpa com dados- m atem áticos - “científicos” portanto - a
respeito dos atos delinqüentes cometidos contra gs “cidadãos
de bem ” (Santos, 2000: 213-215).
A Ciência não se restringia, no.entanto, ao registro esta­
tístico da crim inalidade juvenil. Em Congressos Internacionais,
estudiosos discutiam a hum anização da Justiça assim como a
necessidade de “com preender a pretensa crim inalidade infan­
til” . As medidas propugnadas nos Congressos do início do sé­
culo defendiam em essência que o tratam ento da crim inalidade
juvenil deveria dar-se à m argem da justiça criminai, abrindo
cam in h o p a ra as políticas não-crim inais intervencionistas
(Rizzini, 1987: 82). Em conseqüência, a tem ática da infância
passa a ser tratada nuni duplo registro:, de um lado, a defesa do
“m enor abandonado” - defesa do abandono e da pobreza aos
quais foi lançado - e de outro a defesa da sociedade contra o
“m enor crim inoso ou delinqüente”, portador de um a am eaça
potencial à coletividade.
N e s s a a ltu r a , já é p o s s ív e l d is t in g u ir m a is c la r a m e n t e q u e m
é o “m enor” , em oposição à “criança” . O prim eiro tem origem
nas cam adas sociais mais baixas, refratárias à interiorização dos
códigos normativos tidos como m odelares no processo de m o­
dernização e urbanização social. Estes exigem do Estado for­
m as de captura ostensivas e intervenção do aparato judiciário
e policial. Em contrapartida, a "criançá” tem com o origem os
núcleos familiares burgueses, cujos m embros se identificam mais
facilmente ao ideário dom inante. Assim, em bora a história da
intervenção sobre as duas categorias tenha sido distinta, am bas
foram alvo de políticas que atravessaram seus m odos de funcio­
nam ento e reconhecim ento.
N a análise das discussões que atravessaram a época em
estudo, podem os considerar que um a das razões cruciais para
essa distinção era dada pela necessidade de form ar mão-de-
obra p a ra a economia; grande parte dos argum entos em_prol

217
da necessidade de intervenção ju n tp às famílias pobres invoca­
va o valor m oral do trabalho. A necessidade da preservação da
m ão-de-obra juvenil é destacada em docum entos políticos e
jurídicos, que defendiam não só a ; intim idação da ociosidade
com o a puniçãcTda vagabundagem ídõVl'menores~perámbuTan^
tes” .nas ruas. O Chefe de Polícia do Estado de São Paulo,
A ntônio Godoy, defendia em 1904 que
a p e n a e s p e c ífic a d a v a g a b u n d a g e m é in c o n te s t a v e lm e n t e
o t r a b a lh o c o a t o . E é a p é n a e s p e c ífic a , p o r q u e r e a liz a
c o m p le t a m e n t e a s f u n ç õ e s q u e lh e in c u m b e m : te m e fic á c ia
intim idaliva, p o r q u e o v a g a b u n d o p r e fe r e o tr a b a lh o à fo m e ;
te m p o d e r regenerativo, p o r q u e , s u b m e t id o . a o ijegim e d a s
c o lô n ia s a g r íc o la s o u d a s o fic in a s , o s v a g a b u n d o s; c o rr ig ív e is
a p r e n d e m a c o n h e c e r e a p r e z a r as v a n ta g e n s d o tr a b a lh o
v o lu n ta r ia m e n te a c e ito (S a n to s, 2 0 0 0 : 2 1 6 ).

O valor do tra b a lh o e ra um dos m ais im p o rtan tes


deflagradores da corrente de açõess voltadas p a ra os m enores e
suas famílias, com o intuito de adestrá-los e transform á-los em
trabalhadores produtivos. Os muitps ex-escravos e seus descen­
dentes que resistiam ao ingresso nas linhas de produção indus­
triais e fabris, e preferiam viver às cústas do trabalho tem porário
e inform al ou da prática de pequenos delitos (Santos, 2000:
219), tornavam aquelas ações aincja mais prem entes um a vez
que elas perm itiriam equacionar o tjema do trabalho como valor
positivo e da perm anência nas ruas como conduta censurável.
Im pedir a circülaçao livre de grandes massas era outro precei­
to do higienismo, na esteira dos conflitos de ru a que atravessa­
ram a E uropa do século XIX. N o Brasil a perm anência nos
espaços públicos foram paulatinam ente sendo associados à
pobreza, à desqualificação e à vadiagem: ,
O s e s p a ç o s p ú b lic o s , p o r tò d o sé c u lo X X , p a s sa m a ser
d e s q u a lific a d o s , p e r c e b id o s jc o m o a m e a ç a d o r e s: e , p o r t a n ­
to , p r e c is a r ia m se r e v ita d o s.] D a í, as r e o r d e n a ç õ e s u r b a n a s,
o c o r r id a s e m n o s s o p a ís q u e , d e s d e o in íc io d é ste s é c u lo ,
n o s m o ld e s d o h ig ie n is m o , im p la n ta m u m a te ra p êu tic a p a r a

218
ti a ta i d a s c id a d e s. E sta s, d e stin a d a s 3. v e lo c id a d e , tornam *
sc e s p a ç o s d e c ir c u la ç a o e n a o m a is lu g a r es d e e n c o n tr o s
(...) as r e o r d e n a ç õ e s u r b a n a s tê m se c a r a c te r iz a d o p e la s e ­
g r e g a ç ã o , e x c lu s ã o e is o la m e n to .da p o b r e z a c-orrob oran d o
a c r e n ç a d e q u e c o m e la e s tã o as d o e n ç a s, os p e r ig o s , as
—------ — — a m e a ç a s j-a -v io lê n c ia -(G o im b r a —2 G G G r 8 6 )r ~ -------— — — -

Em síntese, os argum entos clcncados como soluções para


o grave problem a da “ameaça à ordem pública” - representado
pela presença dos “m enores” nas ruas - eram cie.que 0 recolhi­
m ento em depósitos especializados (abrigos e /o u reformatórios)
solucionaria o impasse social da criminalidade infantil, bem como
a questão da proteção contra a pobreza, o abandono e a falta
de assistência familiar. ;
Percebido :como solução de configurações tão díspares
como a delinqüência e o abandono, o asilamento de menores
foi (e ainda é) um a das questões mais discutidas em toda a
história das políticas sociojurídicas sobre o “m enor”. Assim, os
diversos projetos de lei que conduziram ao Código de M enores
de 1927, apresentados no início do século, debateram e refleti­
ram a regularização do internam ento de “m enores”. Até en­
tão, o recolhim ento era feito nas !Casas de D etenção e de
C orreção, m isturando m enores, loucos c criminosos; era de
interesse público e social m anter a exclusão, mas era necessá­
rio “h u m a n iz á - la ” e h ig ie n iz á -la . ,

De "m enor" a "criança e adolescente": a longa distância


ideológica presente nas referências terminológicas

A pximeira lei brasileira sobre a temática do “m enor” ,


conhecida como Código dc M enores, foi prom ulgada em 1927;
um a nova versão foi sancionada em 1979, e ambos elegiam os
“m enores” como objeto de sua ação, 'qualificando-os como
abandonados, delinqüentes ou carentes.
Esses d o i s d is p o s it iv o s legais são frutos de épocas d i s t i n ­
tas e p o s s u e m c a r a c t e r ís t ic a s dos períodos cm que foram con­
cebidos. A se g u ir , vamos nos cletcr na história desses períodos
p a r a compreender m elhor os Códigos de 1927 e de 1979, ele­
mentos importantes da trajetória jurídica brasileira acerca da
infancia dos séculos X I X e X X ; essa análise vai-nos perm itir
com preender a trajetória pela qual a esfera jurídica transita do
conceito de “m enor55 até as n.Oções de criança e adolescente,
na transformação conceituai proposta em 1990 pelo Estatuto
da C riança e do Adolescente (Lei 8069/90), como veremos
adiante.
• Pouco depois da prom ulgação do Código de M enores
de 1927 (também conhecido como Código M ello Mattos), o
país assistiu ao início do processo de transformações sociais que
culminou com a emergência, do Estado Novo. A política gover­
nam ental de Vargas priorizou, desde sua implantação nos anos
30, a infancia e adolescência como parte, fundam ental na estra­
tégia de reformulação do Estado. A política social de Vargas,
fortemente m arcada pelo paternalism o e pelo assistenciaüsmo,
levou à'criação do Serviço de A s s i s t ê n c i a a o M e n o r ( S A M ) e
da Legião Brasileira de Assistência (LBA), eixos em torno do
qual se organizava a rede de proteção à m aternidade, à infan­
cia e à adolescência.
A política paternalista e assistencial de Vargas estava longe
de ser consensual. Especificamente em relação à área, da infan­
cia e da adolescência, críticas foram dirigidas tanto às diretri­
zes estabelecidas pelo Código de M enores quanto às práticas
efetivadas pelas instituições que com punham a rede de assis­
tência à infancia e à adolescência. J á no final dos anos 30,
R oberto Lyra^ em visita à Escola João Luiz Alves (uma das
unidades da rede) após um a das prim eiras revoltas de que se
tem registro, fez um discurso'veemente contra as condições de
vida dos jovens ali alojados, afirm ando que a m era existência
da escola já seria um erro pois, dedicada exclusivamente a cri-

220
minosos, reforçaria a segregação e a exclusão (Rizzini, 1987:
95). . • •
■ Tais críticas 'coincidem com a criação do Laboratório cle
Biologia Infantil, efetivada em 1936. O Laboratório propunha-
se a auxiliar o Juízo dc M enores na form ulação'de critérios
para a institucionalização de menores, assim como a oferecer
subsídios para os program as desenvolvidos nos estabelecim en­
tos correcionais. Em outras palavras, o, Laboratório queria es­
tabelecer as bases científicas para a destinação asilar e para o
tratam ento dos m enores qualificados como “em situação irre­
gular” e submetidos à tutela estatal. N um a época em que a
sociedade conferia grande crédito à ciência, supunha-se que o
L aboratório pudesse sofisticar a leitura moral, apresentando os
fatores psíquicos, sociais, intelectuais e orgânicos que estariam na gênese
clo com portam ento delinqüente (Oliveira, 2001: 239).
E digno de nota que, na composição da equipe do La­
boratório de Biologia Infantil, estivesse representada a nata mais
seleta cla intelectualidade de então; por seu interm édio, a socie-
; dade brasileira foi a p r e s e n t a d a às t e o r ia s mais avançadas da
época, incorporadas do pensam ento europeu com claros pro­
pósitos de controle social. Entre outros saberes, “a psicanálise
(era)”, nas palavras de Nunes (1992: 72), "valorizada enquanto
um saber que poderia se tornar uni instrum ento útil p ara os
program as de eugenia (...), O que interessava era a possibilida­
de que alguns de seus postulados abririam para o projeto dc
controle e transform ação dos indivíduos.”
. Nesse, m ovim ento de apropriação do discurso científico
cm prol do controle, os textos m arcavam a apreensão do ter­
mo “m enor” a p artir das categorias de desvio, patologia, irre­
gularidade e anorm alidade. Evidência gritante disso são as
referências de psiquiatras a estudos psicanalíticos sobre a sexu­
alidade infantil, tomados como base para- afirm ar que os m e­
nores não seriam ingênuos nem inocentes, pois descle a mais

221
tenra idade portariam impulsos de origem sexual que deveri­
am ser contidos, controlados e; se necessário, corrigidos:
O s p s iq u ia tr a s v ã o tratar as fo r m a s de e x p r e s sã o d a s e x u a ­
lid a d e in fa n til e se u s e q u iv a le n te s n a v id a a d u lta c o m o
____________ a n o m a lia s .que d e v e m se r c o m g id a s , g e n e r a liz a n d o -a s p a r a
to d o s o s in d iv íd u o s, q u e j á n a s c e r ia m c o m u m a c o n s titu i­
ç ã o b á s ic a a n o r m a l, q u e d e v e se r p a u la tin a m e n te r e g e n e ­
r a d a ( N u n e s , 1992: 82). ; !

C om a anexação do Laboratório de Biologia Infantil ao


Instituto Sete de Setem bro em 1 9 3 8 torna-se ainda mais claro
seu m odelo de ação: investigar e classificar social, médica, pe­
dagógica e psiquicam ente o “m enor”, como meio dc prom over
o “resgate do desviante, enquadrando-o à norm atividade dos
registros de m ão-de-obra-infanto-juvénil” (Oliveira, 20Ò1: 240).
Vê-se assim que a apropriação de discursos “psicológicos” foi
útil p a ra capturar, cooptar, objetificár e adestrar os “m enores” .
As décadas que se seguiram assistiram à crise do com­
plexo tutelar de assistência à infancia, nos moldes propostos
pelo Código de M enores de 1927. Essa crise tinha raízes tanto
na crítica contundente aos parâm etros de exclusão e repressão
que im peravam nas políticas p a ra a ;infancia; quanto na neces-
; i
sidade de desonerar um sistema que se havia agigantado. O u ­
tra critica relacionava-se à extrapolação da ação dos Juízos de
M enores p ara além da esfera judicial, através da atuação no
que seria (ou deveria ser) de com petência executiva.
N o plano das práticas, as instituições alteraram a form a
de tratam ento destinado às famílias dos internos, passando a
reinvesti-las de autoridade. O discurso oficial passa a defender
a internação com o último recurso e que os m enores fossem
m antidos junto a seus familiares. Paralelam ente, as primeiras
idéias de defesa da im portância da “adoção” de crianças estra­
nhas passam a ser apresentadas socialmente, pela prim eira vez,
desvinculando o projeto de adoção! de um cunho patrim onial,
e dando-lhe caráter assistenciaL

222
N a realidade, a proposta de que as famílias “abrissem
seus corações” a novos m em bros não era habitual entre os
brasileiros das prim eiras décadas do século XX, que norm al­
m ente utilizavam o recurso jurídico da adoção p ara legitimar
filhos—b astard os ^ -d i ante-d a-i-n e-xi stêneia- de-filh os-legí t-iinos,
evitando-se que os bens familiares fossem herdados por outros
que não os m embros do mesmo clã.
Em 1959 a Q N U sanciona a Declaração de Direitos da
Criança, expondo de m aneira inédita os direitos do cidadão
desde a infanda. Em bora os efeitos desse texto não tenham
sido imediatos, sua influência m arcaria as gerações futuras do
pensam ento sociojurídico brasileiro.
Pouco depois ida elaboração da C arta da Assembléia das
Nações Unidas, aconteceu o Golpe M ilitar no Brasil. A Políti­
ca de Segurança Nacional pautava todas as ações federais, c
neste contexto tam bém a m enoridade é alçada à condição de
“problem a de segurança m áxim a”. Em nome da segurança, o
regime m ilitar proclam ava que os grupos de menores, circu­
lando livremente pelas vias públicas, colocavam em risco a se­
gurança coletiva, pois não apenas participavam ostensivamente
de crimes contra o patrim ônio, como tâm bém eram autores de
homicídios (Bazílio, 1985) e por isso, deveriam ser controlados
e contidos. Em conseqüência, o Estado'passa a adotar um con­
ju n to de medidas que têm por alvo a “conduta anti-social” do
m enor, entre elas o recolhim ento de jovens pela polícia e seu
posterior encam inham ento à Fundação Nacional do Bem-Es­
tar do M enor (FUNABEM), criada em 1964.
O segundo Código de Menores (também conhecido como
Código Alyrio Cavallieri) data de 1979..Surge no período em
que se iniciava no Brasil a discussão da abertura política, e
constitui-se num a tentativa de interm ediar o modelo em vigor
e as críticas que então já censuravam o modelo repressivo das
políticas sociais p ara a infância. Cedendo a várias linhas de
debate, o Código de 1979 continuou adotando a D outrina da

223
Situação pois trata ainda o m enor com o objeto de
I r r e g u la r ,
m e d i d a s judiciais. O Código de 1979 abria m ão da classifica­
ção da infância em “a b an d o n ad a” ou “delinqüente”, mas dis­
farçava a categoria "ab an d o n ad o ” n a análise das condições
sociais e econômicas da família, defendendo o abandono m ate­
rial como argum ento jurídico válido p a ra a intervenção estatal
. na família c p ara a cassação — tem porária ou definitiva — do
pátrio poder. C om base em tais paradigm as, o Código de 1979
amplia em m uito o poder dos magistrados, perm itindo-lhes:
° ãtuar legislativamente, com poder de determ inar m edidas
através da instituição das Portarias;
• atuar ex-oficio, caracterizando o Juiz como autoridade que cen­
tralizava ações de caráter pedagógico e adm inistrativo;
• investigar, denunciar, acusar, defender e sentenciar os m eno­
res infratores, constituindo-se ainda o Juiz com o único fiscal
legalmente autorizado de suas próprias decisões;
• aplicar m edidas a m eros acusados de atos infracionais, sem a
necessidade de constituição de provas; na prática, só se ins­
taurava o contraditório quando a família do acusado desig­
nava advo'gado, o que t e r m in a v a por r e tir a r dos m a is p o b r e s
o direito à defesa.
O Direito do C ontraditó-
^Â^u$ti^i?<!sanu:tenza7sc;b0rfíacuac-}‘eaizvamentc,.'i.'%

1988, expressando a garantia


que as inform ações serão
no
tanto no
ni^^úa^ó^d^l^inà^ií^çãb^bD^jâikdèfsic^^i que diz respeito à acusaçao,
quanto à possibilidade da parte
acusada se defender das im putações que lhè foram lançadas. A
ausência do Contraditório nos processos de “m enores” coloca­
va em risco outro Princípio Constitucional pela lei em vigor,
qual seja, a Ampla Defesa, não disponibilizando condições p ara

224
que os acusados pudessem se defender de m aneira tão conside­
rável como acontecia com sua acusação.
Com o o D ireito do Contraditório não era. considerado
como Princípio Constitucional pela Constituição de 1969, apa­
recendo apenas durante o decorrer do processo de investiga­
ção crim inal (ou seja no período da investigação policial), e
não na fase do processo judicial (quando o processo era efeti­
vam ente instaurado no Juizado de M enores)3 a ausência do
Contraditório, à época do Código de 1979 não era ilegal, mas
expressava eloqüentem ente o sistema em que estáva inserido.
As. críticas ao Código de 1979 nasceram descle a sua
prom ulgação e acentuaram -se no decorrer dos anos 80 com o
processo de abertura democrática. Os movimentos sociais, muito
atuantes no período, articularam -se em' torno de um a grande
aliança que ficou'conhecida sob a denom inação de Fórum dós
Direitos da C riança e do Adolescente (o Fórum DCA), cujo
principal alvo político era a R eform a C onstitucional. Esse
movimento conquistou um a vitória política ao inscrever no texto
c o n s t i t u c i o n a l , p e l a p r i m e i r a v e z n a h i s t ó r i a b r a s ile ir a , a con­
cepção da criança e do adolescente como cidadãos e sujeitos
de direitos sociais, políticos e jurídicos. O Estatuto da Criança
e do Adolescente (ECA, Lei 8069/90) é o instrum ento legal
que consolida esses direitos constitucionais.
’ A D outrina da Proteção Integral é a principal inspiração
do ECA. D entre as inúm eras inovações introduzidas pelo ECA,
destaque-se a submissão do texto legal aos princípios, regras,
técnicas c conceitos da ciência jurídica: o Juiz emerge com a
função de prevenir e com por litígios; incum be ao M inistério
Público a fiscalização da lei e a titularidade das ações protetiva
e socioeducativa; o advogado ou o defensor público representa
a criança e o jovem no interior- do processo legalmente consti­
tuído; e. as questões da Política Social passam à responsabilida­
de das administrações locais.
í i > i ' K i ! * ; , * y * *:• i'*WT*<*c w e J r wf i . y t i ' i r , * ,<f*t v ,! 'íh ^ v iv /^ ií pr j n w » x v .* c •% ., i •* *
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víii* r ^ í í - í - - 1 ítvfi-,,''\ «^'"Y.W1^.'y ^ í / . T l V ^ ^ j ■*v K V / - 1í •^ >1,1 ^ J L\ rr í J
\ © u f e i t ò / ; A '! l e n $ l a ç 3 0 ; e m i y i g o r ^ e s f c p u I a s q ü e í a V c n 3 n ç â - ^
r ’ -tfV.55, ,iSí, ,èW ff;vtt:ü’ '“Vrô*' t ^ A ,v^oí? 'V6 ? ^rv./v , Pc A^V/ * \
rr^ ttfT p \^ K A m í> n n C ‘ ^ rc n r ^ ^ ic 'o rçtrfln H n n c . r í M a ^ r ín n c t if iii m c \ 'Trfffneral/^ |i-h í*la .S -iftlS V D ra silC ira S :Í O ^Q ue^.

0 Estatuto da Criança e do Adolescente e as mudanças (propostas


e implementadas) face ao adolescente em conflito com a lei
G om o vimos, a construção da noção de “m en o r” com o
categoria distinta de “criança”, e sua exclusão do ^universo dos
direitos de cidadania, foi eficazmente m odelada durante quase
um século da história social brasileira. A prom ulgação do Esta­
tuto d a C riança e do Adolescente em 1990 só foi possível como
resultado de um a série de lutas populares na década de 80, em
m eio a um cenário favorável de ab ertura política e de.reform as
constitucionais .5 O s novos textos legais instituíram , ao m enos

J O nível de m obilização identificado durante os anos de red em ocratização


da socied ad e brasileira (nos anos de 1980) foi fundam ental na form ulação e
im p lem en tação do texto d o E statuto ida C riança e do A d olescente, que na
realidade recebeu contrib uições de vários m ovim en tos atuantes com a p o­
pu lação infanto-juvenil n aq u ela época, co m o o M ovim en to N a cio n a l de
M en in o s e M en in as de R u a, a Pastoral da C riança, entre outros. D essa
form a, se p od em os apresentar a C onstituição Federal de 1988 com o a “C on s­
tituição C id ad ã” , de igual form a p od em os reiterar que o Estatuto da C rian­
ça e do A d o le sc e n te expressa u m a j histórica con q u ista do e x ercício da
cid adan ia brasileira.

226
na letra da lei, a igualdade entre as crianças e os adolescentes
brasileiros. D ada a igualdade no plano jurídico, cabe agora
questionar as práticas de tratam ento que vêm sendo destinadas
aos “adolescentes em conflito com a lei”.
N a verdade acreditamos que a história das legislações
brasileiras dirigidas à “m enoridade” tradicionalm ente se encar­
regou de criar diferenças entre o "m enor infrator” e o “jovem
de classe m éd ia /a lta que cometesse delitos”, dando-lhes identi­
ficações e destinos singulares.
Assistíamos dessa m aneira a criminalização dos com por­
tam entos transgressores quando cometidos pelas classes mais
baixas do estrato social e a “criminalização dos jovens pobres”
em contrapartida à patologizaçao dos com portam entos delin­
qüentes quando cometidos por adolescentes pertencentes aos
grupos m ais altos da sociedade.
A eleição dos term os dem arca a escolha dos olhares,
análises e interpretações que. serão produzidas. Verificamos dessa
form a que a referência ao "adolescente que usa drogas”, por
exemplo, é m uito distinta da idéia que é construída com a ex­
pressão “m enor m aconheiro’5.
Dessa form a, após o advento, do EGA, alguns teóricos
propõem a substituição term inológica da expressão estigmati-
zante “m en o r 55 pelas expressões consideradas mais positivas
“criança5’ e “adolescente55. Reconhece-se logicamente que a sim­
ples m udança na nom enclatura por termos polidcamente mais
corretos não é suficiente p ara transform ar a realidade instituí­
da, m as se revela um prim eiro passo |na conscientização crítica
dos preconceitos que subjazem às formas que escolhemos para
nom ear e significar o universo social, de que participamos.
E m bora a m ídia e o senso com um continuem ratifican­
do dois universos 1 díspares p ara o “m enor infrator” e para o
“adolescente que com eteu delitos”, a lei instituída e vigente
atualm ente definirá de form a genérica o "adolescente autor de
ato in fra c io n a l” com o alvo de m edidas pro tetiv as e /o u

227
socioeducativas previstas no ECA, a partir da D outrina da Pro­
teção Integral.
- Dessa m aneira, mesmo na verificação do ato infracional
o adolescente apreendido, destinatário de medidas socioedu­
cativas, também pode (e deve) ser alvo de medidas protetivas,
que pugnem pôr sua efetiva ressocialização e pela garantia de
todos os direitos e responsabilidades dispostos nas leis tutelar
(ECA) e constitucional (Constituição Federal de 1988).
O Estatuto da- C riança e do Adolescente compõe-se de
,duas partes fundamentais: a prim eira, nom eada como Parte
Geral, apresenta os sujeitos da lei e os direitos referidos a eles;
na segunda parte, nom eada como Parte Especial, são apresen­
tados os contornos da política de atendim ento; as m edidas
protetivas e socioeducativas aplicáveis à criança e ao adoles­
cente; as medidas aplicáveis aos pais ou responsável; o papel e
definição dos Conselhos Tutelares; da Justiça da Iníancia c
Juventude; dentre outros títulos.
Observamos dessa m aneira, que o escopo da nova legis­
lação apresenta como. traços marcantes:
1 . p r o p o r a d e s c e n t r a l i z a ç ã o j u r í d i c a q u e m a r c a v a o s d o i s C ó­
d ig o s de M enores, pois estes culminavam por caracterizar os
Juizados de M enores como Juizados Executivos, responden­
do por ações que deveriam ser de competência do Executi­
vo. Com isso, conclama-se a maior participação e interlocuçao
dc outros setores sociais diante da. temática, pois os Juizados
atuavam praticam ente sem o protagonism o de outros seto­
res nas ações dirigidas à m enoridade;
2 . responsabilizar outros atores diante da problem ática, defi­
nindo família, sociedade e Estado como participantes ativos
do enredo e ,não. apenas elegendo e culpabilizando o “m e­
nor” (e por extensão sua família) por possíveis dificuldades
na inserção' social;
3. a extensão da população alvo originariam ente atingida pelos
Códigos de M enores: de um a parcela da infância e juventu­
de brasileiras, p ara a totalidade dos adolescentes c cnanças
do país; objetivando-se a não-crim inalização e não-estigma-
tização da: população a qual a lei se. d irige;.
4. pro p o r a criação de um a Política' de Atendim ento que exige,
p a ra seu efetivo funcionamento" e constituição, a participa­
ção e mobilização político-sociais intensas, expressas nas elei­
ções dos Conselhos Tutelares e narrepresentatividade dos
Conselhos M unicipal e Estadual doé Direitos da C riança e
do Adolescente; ' ■ . ' . :
5. criar um nòvo paradigm a social diante do com etim ento.dc
infrações por crianças e adolescentes, ou seja, com base na
D outrina da Proteção Integral, proteger e ressocializar, não
mais punir e sim educar através de atividade específicas como
a Prestação de Serviços a Com unidade; a Liberdade Assisti­
da; a M atrícula e Freqüência O brigatórias em Escola; rà
Requisição de T ratam ento M édico, Psicológico ou Psiquiá­
trico, em Regime H ospitalar ou Am bulatorial, etc. caracte­
rizando a Internação como m edida sujeita aos princípios da
b r e v i d a d e , excepcionalidade e r e s p e i t o à c o n d i ç ã o p e c u l i a r
da pessoa em desenvolvimento. (Artigos 101, 112 e 121 da
Lei 8.069/90 - Estatuto da C riança e do Adolescente)
Apesar do ineditismo e dos avanços teóricos c sociais
propostos pela nova lei, assistimos atualm ente a um 'quadro em
que a utopia preconizada ainda está m uito longe de seu proje­
to original. Quais seriam as possíveis razões subjacentes a tal
dinâmica?
Segundo Bazílio (2003: 26-28), devemos problem atizar
a atm osfera política que circunda a prom ulgação da nova lei
tutelar, pois podem os observar que, apesar do processo de re-
dem ocratização em curso na década de 1980', o período inau­
gurado pelos anos 90 foi caracterizado pelo “avanço dos setores
conservadores e (...) ataque direto [aos] defensores dos direitos
hum anos”. Dessa form a, diante do aum ento dos índices de vio­
lência durante a década de 1990, sentimentos de interiorização

229
da insegurança (notadam ente no convívio com a diferença) vêm
. sendo produzidos e m anipulados por parte da m ídia e da opi­
nião pública, gerando a culpabilização e condenação dos m o­
vim entos de prom oção da cidadania e defesa da paz social e
dos-direitos-humanosj-considerando_q.ue_tais_concepçoes_sãoj_
em essência, defensoras da im punidade daquelas personagens
que tradicionalm ente sempre foram; vistas como “m arginais” e
“perigosas”, como a “figura do m enor-infrator”.
Além disso, tam bém se evidencia nesse período que os
m odelos neoliberais que passam a ocupar a cena política
redim ensionam a política de financiam ento público. A dimi­
nuição e afastam ento do Governo Federal como financiador e
principal provedor dos recursos do setor gera um a grave crise
na área. Nas palavras do professor.Bazílio:
O s fu n d o s q u e , p r e v is to s p e lo E sta tu to , te r ia m p o r o r ig e m
c o n tr ib u iç õ e s c o m o d o a ç õ e s o u r e c u r so s p r o v e n ie n te s d o
o r ç a m e n t o d e e s ta d o s e m u n ic íp io s , e n c o n tr a m -s e d e fa to
.e s v a z ia d o s . N ã o foi p e n s a d o e m fo n te s fix a s, a líq u o ta s d e
a r r e c a d a ç ã o o u ta x a s e im p o s to s p a r a c o b r ir c u sto s d e su a
im p la n ta ç ã o . A s sim , (...) o s p r o g r a m a s e p r o je to s d e ix a m
d e te r c o n tin u id a d e . V iv e m o s a d e sp r o fiss io n a liz a ç ã o e a
d e s c o n tin u id a d e , a in s titu c io n a liz a ç ã o d o p r o v isó r io . A si­
tu a ç ã o q u e h o je é v iv id a (...) é o a u m e n t o d a p o b r e z a e
d im in u iç ã o d o o r ç a m e n to so c ia l (2 0 0 3 : 27 ).
I
Com o decorrência desse quadro de crise de financiamento
c de liberação de recursos públicos, as ONGs, que tiveram
im portante função no quadro de im plem entação do Estatuto,
passam a não ser mais solidárias diante de interesses comuns,
posicionando-se como rivais e concorrentes pelas verbas de finan­
ciam ento, conseqüentem ente produzindo a fragilização da rede.
C om o último argum ento, o professor.Bazílio questiona
o am adorism o no gerenciam ento da coisa pública, pois diante
de m udanças político-partidárias os postos-chave da gerência
da política de atendim ento seriam submetidos a interesses de

230
poder difusos, não se dim ensionando a real im portância da
com petência e conhecim ento na área como critério de escolha
dos responsáveis pelas ações sociais relacionadas à .infância e à
adolescência (Bazilio, 2003: 28).
— ;——Ap esar "d e-avaiiarm os _qu e “crproj eto'utópito"dò- Es tãtütõ
da C riança e do Adolescente ainda encontra-se distante da sua
efetivação pragm ática e m ’ diversos pontos, a participação e
m obilização dos diversos sujeitos que compõem a rede social
poderia significar um im portante avanço na concretização de
m udanças no quadro.
Assim, acreditamos que a trajetória que vem sendo cons­
truída por psicólogos dos diversos Tribunais de Justiça dos es­
tados brasileiros que atuam em V aras de Infância e Juventude
deve estar atenta aos atravessamentos institucionais que fazem
parte da criação do cargo de Psicólogo do Judiciário. .
C om o conhecido, a atuação tradicionalm ente solicitada
é de produção de “laudos periciais” que auxiliem o Juízo em
sua tom ada de decisão; entretanto, observamos que paralela­
m ente a tal pedido, sublim inarm ente é dem andado pelo A pa­
relho Judiciário que “soluções mágicas” sejam produzidas pelo
psicólogo.
*- C om o exemplo apresentam os o texto que define M is­
são do Juizado da Infância, e Juventude do Rio de Janeiro, do.
sítio do T ribunal de Justiça do estado mencionado:
O J u iz a d o d a In fâ n c ia e J u v e n tu d e tem a m issã o , p e r a n te a
s o c ie d a d e , d e p resta r a tu tela ju r isd ic io n a l, a p r o te ç ã o in te ­
gral à c ria n ç a e a o a d o le sc e n te , a c a d a u m e a to d o s, in d is­
tin ta m e n te , c o n fo r m e g a r a n tid a s n a C o n stitu iç ã o F ed era l e
n o E sta tu to d a C r ia n ç a e d o A d o le sc e n te , d istrib u in d o ju s ti­
ç a e atendimento psicológico de modo útil e a tempo, (h t t p : //w w w .tj .ij .
g o v .b r /i n s n t u c / 1 in s ta n c ia /in fa n -ju v e n tu d e /m is s a o jij.h tm )

A referência à “urgência” e “utilidade” do atendim ento


psicológico emerge significativamente como objetivo do T J /
RJ, como proposta “m issionária” dá instituição, que juntam en-

231
te com a justiça, irá assegurar “justam ente” que as partes se­
jam “atendidas” por um profissional “psi”.
A naturalização da prática psicológica em erge com o
possível chave de leitura p ara entendim ento dessa referência,
mas de igual forma, podemos considerar que a com preensão
do Tribunal vem sofisticando a idéia de que apenas a resposta
jurídica revela-se insuficiente diante das “subjetividades” hu ­
m anas, que m erecem ser problem atizadas e “escutadas” na
consecução de real projeto de im plem entação da Justiça.
Significativamente, a escuta psicológica não é utilizada
como termo p ara definição do trabalho a ser em preendido,
rrias a atuação do profissional “psi” não pode deixar de revelar
a fala subjetiva das partes que com põem os processos jurídicos.
Dessa forma, a referência objetalizante às pessoas, que
culm ina por caracterizar a m aioria das ações realizadas pelo
Judiciário, pode ser transformada micro-politicamente pela atua­
ção do profissional “psi” que, se referindo às partes como sujei­
tos (e não como objetos) que compõem e ativam o processo
judicial, pode vir a catalisar novos agenciamentos dos sujeitos
diante d a p r o b l e m á t i c a v iv id a , p e r m i t i n d o que se produzam
novas leituras sobre os enredos narrados pelos próprios sujei-
tos-partes que podem se perceber mais “inteiros” , e portanto
menos fragmentados, diante do poder decisório judicial.
' De igual maneira, a “escuta psi” aos adolescentes auto­
res de ato infracional, deve procurar potencializar a vivência e
a história subjetiva desses jovens, desenvolvendo a possibilida­
de de problem atização das form as com o se' reco n h ecem
identitariam ente e como são referidos socialmente a partir da
apreensão.
Além disso, o labor “psi” pode revelar e problem atizar
igualmente a sujeição e os atravessamentos sociopoiítico-eco-
nômicos que são impostos aos adolescentes que cometem atos
infracionais e que são apreendidos pelo sistema (que obviamente
não são todos os que entram em conflito com a lei); atuando

232
no sentido de pro-vocar (de incitar à fala.; .ao posicionamento)
•tanto os adolescentes em C o n flito com a'lei, n a significação e
ressignificação de.. sen tidos p ara os seus atos como os demais
ato res.envolvidos nessa dinâmica: elenco judiciário (j u iz , pro­
m otor, defensor, advogado, assistente social, comissário da in­
fância e ju v en tu d e , cartorário); tocla a rede de referência
institucional (escolas, hospitais, abrigos, Conselhos T u t e l a r e s ,
Conselhos de Direitos da C riança e do Adolescente, institui*
ções de sem i-liberdade c /o u internação); bem com o a família e
o Poder Público.
D e fato, consideram os que um dos mais interessantes
desdobram entos do Estatuto da Criança e do Adolescente em
suas propostas socioeducativas seja a idéia de responsabilização,
de fom entar pedagogicam ente no adolescente a noção de que
todos os cidadãos são co-responsáveis - ativa ou passivamente '.’
— pela sociedade construída, de form a a que os jovens perce- ;•
bam a sua responsabilidade social.
Constrói-se a imagem, portanto, de que eles são partici­
pantes ativos na sociedade, sendo diretam ente responsáveis por
ela, e que um a vez que cies desrespeitem as regras instituídas
legalmente, serão responsabilizados socialmente por isso. É fun­
dam ental que se frise que a responsabilidade proposta pelo EGA
é de cunho social, ,e não p enal ou criminal.
D e igual m aneira, o Estatuto apresenta m uito claram en­
te que o Estado e a sociedade têm responsabilidades com as
crianças e adolescentes como sujeitos de direitos, e que no
descum prim ento de seus deveres o próprio Estado pode vir a
ser acionado, a ser processado, por exemplo, na falta de' esco­
las e creches p ara crianças, o que é im portante que tam bém
seja problem atizado ju n to aos adolescentes atendidos.
E ntretanto, se a m edida socioedücativa não é referida
em sua função em inentem ente pedagógica, ou seja de aprendi­
zado e ressocialização, sendo alardeada corrio um recurso “puni­
tivo” p a ra os "adolescentes infratores”, a percepção que preva-
lece é a de que, quando o Estado ou a sociedade com etem um
crim e, p o r ação ou p o r omissão, eles perm anecem impunes,
mas ao contrário, se o transgressor for um indivíduo “m enor”
de idade, ele será im putado com uma. “pcna-m edida”, portan-
-t:O-com-uma-leitura-criminal_e_nã 0 socioeducativa. ______
Dessa form a,' avaliamos que as imagens construídas pelo
im aginário social ainda am param e justificam a discrim inação
dos “infratores” , ainda que adolescentes, de outros da mesma
faixa etária e das crianças. N a verdade, parece-nos que as falas
produzidas socialm ente inclinam-se am biguam ente na referên­
cia de que os jovens infratores não são como os outros, sendo
mais “m aduros” do que a m édia, devendo por isso ser mais
responsabilizados, ao mesmo tem po ç m que eles tam bém são
percebidos com o áinda adolescentes, e então não podem se
prevalecer das garantias do universo adulto. O que lhes resta é
um a identidade em que são referidos como adolescentes “maio-
rizados”, m as ao mesm o tem pò são “adultos m enorizados”, não
se beneficiando das positividades de. nenhum dos registros a
que são lançados.
V ejam os a seguir as formas de ingresso dos adolescentes
no A parelho Judiciário.

v^S 'v .Formas, de ingresso do adolescente autor de ato infracional,no 4 '


]] 'Judiciário ‘
^ »»Segundo o -E sta tu to , o adolescente que com etevato
“ínfracional só pode ser apreendido em duas, hipóteses^em fia--*
£ grante delito ou .pór. ordem .escrita eJfundam entada^do Juiz d a r*)
\Infancia e Juventude.
A preendido, o adolescente será conduzido p a ra a oitiva
com o representante do M inistério Público (Prom otor da In-
fància e Juventude), cuja função é representar ao magistrado
os dados que lhe forem apresentados .6

É im portante q u e destaq uem os que todo este ritual é necessário, um a vez

234
Em seguida; o adolescente pode ser conduzido im ediata­
m ente ao Juiz, ou ser levado à audiência após entrevistas com
a equipe técnica (Psicólogo, Assistente Social e Comissário da
Infancia e Juventude).
______E fato conhecido que cada ju izado construirá sua rotina
de procedim entos, não existindo um procedim ento único para
atuação da equipe técnica. Visando facilitar a compreensão didá­
tica, podem os caracterizar as formas de intervenção técnica da
seguinte m an e ira :'
1 . No m om ento anterior à realização da audiência judicial
objetivando a confecção de estudos e laudos que auxiliem o
Ju iz em sua tom ada de decisão;
2. No m om ento posterior à realização da audiência:
a) no acom panham ento técnico dos adolescentes a partir
da determ inação de m edidas protetivas e /o u socio-
educativas pelo Juiz;
b) no encam inham ento às instituições da rede.
A audiência deve contar necessariamente com a presen­
ça do P rom otor e do D efensor Público; preferencialm ente,
devem estar presentes os familiares do adolescente; podem ser
convocados representantes da equipe técnica.

que a Justiça só pode atuar quando provocada, ou seja a partir da dem anda
de um terceiro (que pod e ser o p rom otor público) que dem ande a interven­
ção do Ju iz diante cia configuração de um a dinâm ica específica. Além disso,
é igualm en te digno de destaque que - apesar da figura do Promotor Público
ser associada tradicionalm ente co m o responsável pela representação ao Es­
tado dos atos praticados contra o interesse público - nos processos que en­
volvam crianças e adolescen tes, a Prom otoria Pública deve atuar com o
C uradoria Pública, ou seja defen d en d o e zelando pelos interesses e direitos
das crianças e adolescentes, T a l com preensão entretanto não é irrestrita, e
en contram os partidários convictos do entendim ento de que o M P só deve
atuar co m o “C uradoria” nos processos envolvendo adolescentes “carentes’1
c não com aqueles que são infratores, ou seja na reedição e perpetuação do
antigos posicionam entos estigm atizantes.

235
r N a.audiência,o Juiz pode decidir péla aplicação de quais­
quer das medidas so cio educativas previstas iló artigo 1 1 2 cto
Estãtuto da Criança e do Adolescente; ~
I- ■ a d v e rtê n c ia ^
II - obrigação de reparar o dano;
III - p re sta ç ã o d e serviços à c o m u n id a d e ;
Í.V - \liberdade assistida;
V- inserção em regime de semiliberdadeT“!!'
VI - internação, eríí* estabelecimento educacional;
VII - qualquer um a’das previstas no artigo 101, I a VI,
Cumulativam ente, o Juiz pode decidir pela aplicação de
medidas protetivas, especificadas no artigo 10 1 do ECA.
Dessa forma, verificamos que o adolescente, mesmo que
responsável peia prática de ato infracional, pode scr alvo de
medidas de proteção.
Apesar das mudanças jurídicas propostas, a estigrniatiza-
çào e a crim inalizaçao do adolescente que com ete o ato
infracional ainda decorre freqüentem ente de seu perten cimento
a determinados perfis que o aproxim ariam dos papéis identifi­
cados como “m arginal e perigoso” à sociedade.
Exemplificaremos tal análise a partir do exemplo da ca­
pital do Rio de janeiro no atendim ento a essa clientela.

0 advento do Estatuto da Criança e do Adolescente e a separação


do Juizado de Menores do Rio de Janeiro

Até 1989, o Rio de Janeiro contava com um a única V ara


de M enores/ Em consonância com o espírito do Código de
Menores, todas as crianças e todos os jovens submetidos à tu­
tela jurídica .tinham sua situação exam inada pelo Juiz de M e­

1 A Vara de M enores da C om arca da Capital do Rio de Janeiro foi a prim ei­


ra V ara de M enores do Brasil, tendo sido criada cm 1924 (CODJERJ, 1990).
nores. Às vcsperas cia prom ulgação do Estatuto - já conhcciclo
nos círculos jurídicos e sociais com o um texto revolucionário
no tocante à discussão, reflexão e proposição de políticas con­
cernentes à infancia e juventude - aconteceu o desmembramento
da única V a ra de M enores em dois Juizados com com petência
para analisar, processar e decidir os feitos referentes a essa
m atéria. A separação de competências do Juizados Cariocas
efetivou-se em 24 de. agosto de 1989.
Esse ato tem sido alvo de vári.os questionamentos. Le-:
vando em conta que' um dos principais pressupostos do Estatu­
to é elim inar a distinção histórica entre as categorias “m enor”
e “criança”, alguns autores consideram que a criação de um
Ju izad o com com petência exclusiva de exam inar os feitos rela­
cionados à infração e ao delito term ina por ratificar espaços de
segregação, èstigmatização e exclusão social, rem etendo o jo ­
vem a u to r de infração penal p a ra um atendim ento jurídico
diferenciado.
D e s s a fo rm a , ta l d e s m e m b ra m e n to p o d e ria ser e n te n d i­
d o c o m o u m e v e n to q u e se c h o c a c o m a c o n c e p ç ã o d o u tr in á ­
ria cia P r o te ç ã o I n te g r a l a d v o g a d a p e la lei, c o n s tru in d o (ou
m a n te n d o ) e s tru tu ra s q u e se p a u ta m n o d iscu rso p e n a lis ta e
c rim in a lis ta (Cury, 1996),
O p ró p rio ato de criação da, então, 2UV ara de M enores
torna clara a persistência do enfoque penal sobre o jovem que
ingressa n o sistem a jurídico:
A 2 U V a r a d c E x e c u ç õ e s P e n a is (...) p a s so u a d e n o m in a r - s e
2 il V a r a d e M e n o r e s d a C o m a r c a d a C a p ita l, c o m c o m p e ­
t ê n c ia p a r a fç ito s r e la tiv o s a fa to s d c fm id o s c o m o in fr a ç õ e s
p e n a i s d e a u to r ia o u c o -a u to r ia a tr ib u íd a a m e n o r e s n ã o
s u j e it o s às leis penais (C O D JE R J, 1 9 9 0 :6 8 ; g rifo n o sso ).

A definição das atribuições da I a V ara de M enores da


C ornarca d a C apital, de acordo com o artigo 5Üda Lei 1509/
89, é co lo c a d a como segue:
A atual V ara de M enores d a C om arca d a Capital passa a
denom inar-se 1:' V ara de M enores d a C om arca da C api­
tal, com competência pa ra os fe ito s relativos a menores não compreen­
didos na competência prevalents do ju íz o da 2 n Vara de. Menores da
Comarca àa Capital. (CODJERJ; 1990:68; grifos nossos)

Fica evidente portanto que as com petências da I a V ara


de M enores são definidas negativam ente: constituem-se objeto
de sua intervenção os processos excluídos da alçada da 2a Vara,
ou seja, aqueles não correlatos dos processos criminais.
A definição negativa das competências da I a V ára con­
trapõe-se a afirm ação positiva das com petências da 2[* V ara. O
fato dessa definição positiva pautar-se nas leis penais só vem
reforçar o receio de. que possa prevalecer nessa V ara ò enfoque
crim inal, m antendo na prática um a discrim inação Ique a lei
quis abolir: a opção pela defesa dai criança vilipendiada social­
m ente ou pela defesa da sociedade contra a criança que é apre­
sentada com o um a ‘-‘am eaça à ordem ” . j
A discussão internacional contem porânea-tem ressaltado
a im portância da descrim inalização dos jovens, em particular
no com etim ento de “delitos de bagatela” . Entende-se que deli­
tos m enores, quando praticados por jovens, inscrevem-se em
um processo amplo de descoberta de limites e testagem da
autoridade. Além disso, estudos recentes m ostram que a re ­
pressão do Estado não redu 2 sua incidência, ao contrário faz
com que ela aum ente (Santos, 2000:171).
O Estatuto da C riança e do Adolescente contem pla as
mais m odernas reflexões na área: seus princípios pautam -se na
adoção plena de institutos jurídicos de defesa de direitos; ofere­
cem as diretrizes e os meios p ara a form ulação e a im plem en­
tação de polídcas públicas em prol' da dignidade, da iigualdade
e da.liberdade das crianças e jovens brasileiros; tratam a crimi­
nalidade segundo os mais m odernos parâm etros internacionais.
C ontudo, sua im plem entação efetiva requer condições p ara o
exercício pleno da cidadania. Essas, jainda não estão dadas. Desse

238
contraste decorre o discurso recorrente,segundo o qual não se
instituiu a aplicação.pragm ática e integral do texto legal.
A distância entre as assertivas legais e as práticas em curso
é preenchida pelos diversos atores segundo as formas como a
sociedade consegne assimilar as propostas de m udança. Essa
àssimilaçãorpor-sua-vezTé-atr-avessada-pelo-impacto-da-mídia,-
que fre q ü e n te m e n te co n clam a à pu n ição , à prisão ou à
internação dos jovens infratores, em particular se são pobres,
fom entando a cultura do m edo e a projeção paranóica dos te­
m ores sobre os destituídos.
Assim, acreditamos que apesar de hoje. já ser fato suficien­
tem ente conhecido que as penas privativas de liberdade fracas­
sam de form a reiterad a em suas proposições preventiva e
corretiva - o que na análise do professor Alessandro B aratta
parece estar articulado a objetivos velados .do próprio sistema
penal (Baratta, 1999:100) ~ o. propósito P U N I T I V O ’perm anece
como em blem a-m or da rede penal,“ sendo am plam ente divul­
gado pela m ídia form adora de opinião.
É preciso que profissionais de Psicologia façam de sua
atuação um a expressão eloqüente do compromisso com o me-

8 A rticulados aos objetivos m anifestos pelo sistem a social, considera-se atual­


m ente, n o escopo da crim inologia critica, que a crim inalização de determ i­
n ad os c o m p o rta m en to s e sua captura na rede ju d iciária são processos
construídos seletivam ente; encobrindo — na argum entação da im portância
da PEN A co m o form a de controle dos indivíduos que “rom pem ” o “contra­
to social” — estratégias estigm atizantes sobre as classes mais depauperadas
da socied ade. A p en a atuaria então com o recurso na identificação e form a­
ção de “distâncias sociais entre os sujeitos, agindo com o "sancionador id eoló­
gico da própria seletividade penal. A lém disso, a pena cum pre o papel de
m anter disponível um enorm e contingente dç. m ão-de-obra de reserva para
o m ercado de trabalho legal e, tam bém , pará o m ercado de trabalho ilegal.
(Assim, ex-apenados são recrutados e superexplorados econom icam ente nas
dinâm icas do m ercado de trabalho oficial; com o .ta m b ém são em pregados
nos m ecan ism os de circulação m onetária ilegal: no tráfico,- no m undo do
crim e, nos grupos de exterm ínio, etc.)

239
Ihor c pleno exercício do Direito no encontro real com o ‘'su­
jeito de direitos”,'preconizado pelo ECA, mesmo quando em
conflito com a lei. É preciso servir ao Judiciário mas sobretudo
à Justiça para os sujeitos por nós atendidos, e atuar em busca
da mais plena acepção da ética e do reconhecim ento da auto­
ria dos sujeitos,;no processo legal.

Algumas considerações finais

Á produção desse texto se relacionou com a interroga­


ção que lançamos diariam ente sobre nossas práticas na elabo­
ração de estudos, laudos e pareceres psicológicos em V aras de
Infanda e Juventude no Estado do Rio de Janeiro. Ele se funda­
m enta nà problem atização acerca da im portância do trabalho
do profissional “psi” na m anutenção, reatualizaçao ou efetiva
transformação do panoram a de legitimação de abordagens dife­
renciadas p ara “infandas desiguais”, que estão na base dos
conceitos C R IA N Ç A X M E N O R .
E f e t i v a m e n t e , n ã o s ã o r e c e n t e s as l e it u r a s q u e e n f a t i z a m
q u e o processo de co n stru ção do su rg im en to d a “in fâ n c ia 53, com o
te rre n o específico dc sa b e r c d ize r, e stá re la c io n a d o ao a d v e n to
d a m o d e rn id a d e d o século XVIII, n a co n stitu içã o d e um n o v o
m o d e lo fa m ilia r e social d ia n te d e u m a d e te rm in a d a p ro p o s ta
de exercício e re c o n h e c im e n to d a su b jetiv id ad e, o u seja, é u m
c o n c e ito -p ro d u ç ã o to ta lm e n te d e p e n d e n te d e u m a re a lid a d e
histórico-social específica sem a q u al n ã o faria sentido; n ã o sendo
u m d a d o d a “n a tu r e z a ” , m as u m pro cesso c u ltu ra l (G e rq u e ira
& P ra d o , 1999: 9).
Entretanto, relacionamo-nos com. as concepções dc in­
fan d a e adolescência naturalizando-as e neutralizando as dife­
renças econômicas, sociais, culturais, de classe, que com põem
•e atravessam estas categorias.

240
Poderm os analisar o fenômeno dá “adolescência” artiv
culado à construção do projeto capitalista, talvez nos possibili­
te reconhecer e tornar mais próximos os traços, singulares da
m ultiplicidade de “adolescências” forjadas nas últimas décadas
do século XX, percebendo nesses “adolescentes” produzidos na
pós-m odernidade grande influência midiática.
De igual forma; consideramos que coexistiram, e coexis­
tem , categorias diferentes para um mesmo segmento etário,
deixando evidente que não é “apenas” a idade o elemento
identificador da “infância”, “adolescência” e “m enoridade”.
N a delineação deste quadro, percebe-se com o somos
“apropriados” por determinadas categorias que são naturalizadas
no processo de constituição da; “realidade” que vivemos cotidia-
nam ente, sem atentarm os que fazemos parte fundam ental das^
“engrenagens” que com põem , m ontam e desm ontam identida­
des e subjetividades.
Dessa forma, destacamos a importância dos discursos “psi”
dentre as concepções “científicas” que legitim aram o “m enor”
na- cultura jurídico-social brasileira.
A lem disso, reconhecem os o papel da esfera jurídica na
diferenciação entre as categorias “m enor” e “criança” ; elas se
originaram de fato no contexto jurídico, que definiu os indiví­
duos “m enores de idade” a partir de um viés criminal. M as a
noção de “m enor” extrapolou o espaço jurídico, ancorou-se na
gam a de saberes médico, pedagógico e psicológico e daí fir­
mou-se como estratégia de'controle de determ inados grupos
sociais. Tendem os, no entanto, a neutralizar a força desses sa­
beres na construção e na legitimação da noção de “m enor”.
Tendem os a desconsiderar as formas como a Psicologia contri­
buiu p ara norm atizar, classificar, identificar e segregar o “m e­
n o r” na rede de assistência tutelar.
Pois: enquanto à criança/infante foi determ inado um
lócus social de “ausência de fala”, sendo rep resen tad a no
interjogo com unitário pelos pais e /o u responsáveis que —ades-

241
trados e disciplinados por conceitos psico-médico-pedagógicos
- teriam a função de protegê-los e salvaguardá-los em jseus in­
teresses e bem -estar, “falando por elas”...
A categoria “m enor *5 - que foi sendo paulatinam ente
GOnstituída^a_par.úr_da leitura jurídica penálista dirigida aos
“infratores” m enores de idade, mais .'especialmente evidente no
advento da R epública - foi dem andada a sua expressão e a sua
apresentação no entrechoque com o universo jurídico, fazen­
do-os “falar” de “si” e de sua rede de origem, através da cap­
tu ra pelos discursos jurídicos, com a jobjetalização dos discursos
e falas enunciadas por esses sujeitos.
Segundo Emílio G arcia M endez a emergência, do con- •
ceito de “criança” na consciência coletiva a considera “inca­
p a z ” e sem autonom ia na sua apresentação social, tendo que
• ser protegida e representada juridicam ente na sociedade por
suas famílias (M endez, 1990: 179).
A inda de acordo com M endez a Escola teria um a fun­
ção prim ordial na distinção entre jás “crianças” e os “m eno­
res” , já que com o Aparelho Ideológico do Estado atuaria num
processo de crim inalização prim ária de “m enores”, alijando-os
do processo educacional. '
A s c r ia n ç a s se r ia m a q u e la s p e s s o a s q u e tiv e r a m a p o io fa ­
m ilia r e e s c o la r p a r a su a p r o t e ç ã o c. s o c ia liz a ç ã o ; o s m e n o -.
r es se r ia m a q u e le s q u e fo r a m a b a n d o n a d o s p e la fa m ília e
p e l a e s c o la e q u e e x ig ir ia m , p o r ..esta c o n d iç ã o , p a r a su a
p r o t e ç ã o , u m a o u tr a in s tâ n c ia e s p e c ia l d e c o n tr o le so c ia l
p e n a l: o s trib u n a is d e m e n o r e s (C e rq u e ira e P ra d o , 1 999: 9).

Em outros termos, a própria concepção de m enoridade


configurou-se como um a produção! teórica singular nas últimas
décadas do século X I X , abarcando apenas, um segmento da
totalidade da infância e juventude, considerada em: “situação
irregular” e os discursos psicológicos fizeram parte dessa cons­
trução, servindo como instrum entos diagnósticos em relatórios
enviados ao Juízo de Menores,, na avaliação do nível intelec-
tual do “m en o r” e na investigação da existência, ou não, de
desordens psíquicas. r
T al análise,evidencia-se particularm ente interessante se
considerarm os que a profissão de “psicólogo” só foi regulamen-
t-ada-e-reconhecida-legalmente_na_décadarde_l .9.6.0,_e_a_função
de“psicologista - nas prim eiras décadas do século X X - pode­
ria ser ocupada por profissionais de qualquer especialidade -
educador, psiquiatra, enferm eiro” em instituições como o La­
boratório de Biologia Infantil, criado em julho de 1936 (Jacó-
Vilela, 2001: 239).
A p artir da reflexão da própria “naturalização” da leitu­
ra penal que incide sobre esses jovens, pudemos olhar retros­
pectivam ente sobre a história das nossas práticas enquanto
agentes desse processo, um a vez que, de acordo com a aborda­
gem da crim inologia crítica, a própria eleição do que seja 'des­
vio’ só é possível a partir da construção de um a norm a que
será em princípio atravessada e constituída pelos paradigmas
socioeconômico vigentes, na representação eloqüente dos inte­
resses dom inantes (Baratta, 1999: 60).
N ão é, dessa m aneira, casual, a escolha peia tipificação
infracional como motivo de separaçãp da competência das duas
V aras de.In fa n d a e Ju v en tu d e ,9 existentes na cidade do Rio de
Janeiro, m antendo à parte aqueles que tradicionalm ente sem­
pre foram percebidos segregadamente.
Dessa forma, a oposição im aginária do adolescente como
sujeito de direitos versus o declínio desses mesmos direitos 10 em
função do com etim ento do ato infracional atravessa (e parece

9 T a l separaçao poderia ter se produzido ícom base cm outras alegações,


com o divisão quantitativa ou regional. ;
10 V erifica-se dessa m aneira a referência im aginária ao. “m enor” que os Có­
digos de M en ores de 1927 e 1979, em balados na D outrina da Situação
Irregular, apresentam com o objeto do sistem a tutelar, sendo submetidos
am biguam ente à “proteção” e à “repressão” do Estado.

243
constituir) parte significativa das ações que são produzidas so­
bre o ‘riienor infrator5.
Refletir sobre tais procedimentos, clarificando a im por­
tância dc enfatizarmos a aproxim ação entre o diplom a legal
8.069/90 (ECA) e os discursos sobre direitos hum anos em sua
vertente nacional (constitucional) e internacional, foi um dos
objetivos do texto que construímos, na defesa da cidadania como
laço unificador de um a sociedade mais justa, digna e igualitá­
ria para as crianças e os jovens brasileiros.
Igualm ente propusem os c apostamos na implicação das
práticas profissionais que produzim os, potencializando sua ca­
pacidade dinam izadora e catalisadora de transform ações so­
ciais, e não servindo apenas como mecanismos que servem à
engrenagem de m anutenção do status quo.
Dessa maneira, consideramos que a constituição do com­
plexo de ações sociojurídicas que originou a-T utela em nosso
país já se caracterizou de forma bastante contraditória desde
os seus primórdios através do conjunto de ações que, no enten­
dim ento'do ‘'m enor” como objeto do Direito, eram norteadas
a a t e n d e r aos ideais de: 1. P r o t e ç ã o d a ' m e n o r i d a d e a b a n d o n a ­
da’; 2. Controle e disciplinamento dos ‘corpos desviantes’ e 3.
Repressão social aos ‘com portam entos delinqüentes’ (Pinheiro,
2001: 65),
A proposição de novos modelos para atenção e atuação
sobre a infancia e juventude encontra enorm es dificuldades
diante do fantasma (muito real) das reiteradas práticas de des­
respeito e repressão histórica dos direitos das crianças e adoles­
centes, dos quais a história da psicologia faz parte.
Paradoxalm ente, com a m udança de enfoque doutriná­
rio proposta pela nova lei (ECA),. a própria população alvo dessas
políticas produz falas de estranham ento diante do novo lugar a
que é lançada: o lugar do “sujeito” , referindo-se ainda como
“objeto” de políticas públicas.que espera passivamente a deci­
são sobre sua vida e destino.

244
Parte da equipe do Judiciário tam bém aincla parecc não
se aperceber da. nova. dinâm ica legal proposta no ECA e dos
desdobram entos sociais advindos desse texto, não se im plican­
do na form ação e transform ação dás políticas de atendim ento
à população que chega aos Juizados da Infanciá e Juventude.
Ressaltamos que não se transform a um quadro secular
cm um único instante e sim através da implicação constante de
cada um dos atores do elenco judiciário, da sociedade e do
Estado no reconhecim ento a essa questão.
P or ora, existe m uito a ser feito, pois nos deparam os
ainda com o perfil típico de adolescentes infratores como per­
tencente a um grupo social específico, oriundo de favelas e da
periferia, o que acarreta, em contrapartida, em um reconheci­
m ento imaginário distinto das práticas que são produzidas so­
bre esse grupo, que se configura como m erecedor de um olhar
preponderantem ente penal no topo das ações que serão em ­
preendidas. "
Consideram os que, na construção de um novo p anora­
m a jurídico, necessitamos de um a nóva config-uração social que
possibilite novos encontros, agenciamentos e atritos na rede
coletiva, de form a a atu ar como catalisadora nas discussões e
reflexões críticas sobre o que seja,Justiça, sociedade, crime,
criminoso, vítima, pena, etc.
Apenas na problem atização das representações que pos­
suímos socialmente (e que opostam ente tam bém nos atraves­
sam) c que acreditamos ser viável a- efetivação cle alguns dos
dispositivos propostos pelo ECA: como o pacto político entre
Estado e Cidadãos, que se efetivamente exercido por am bas as
partes possibilitaria a conquista de im portantes espaços públi­
cos na discussão e com prom etim ento de todos p ara defesa de
direitos e p ara constituição cle um a sociedade menos fragm en­
tada, posto que mais igualitária.
Dessa m aneira, realizamos um a análise das representa­
ções im aginárias que atuam como m atrizes no processo de

245
“crim inalização” do “adolescente em conflito com a lei” e que
contribuem na cristalização da rriedida de internação como um
dos principais recursos socioeducativos (“punitivos’:) utilizados.
Partilham os da pressuposição de que exista um a com-
plÉrxOrè‘d e_dè_ãtfavessamentos'ri,a_eleição-e-construção-do-que—
seja o '“com portam ento desvianté” que merece o repúdio soci­
a l assim com o tam bém avaliamos que a construção ’e a carac­
terização do “m enor infrator” (oú adolescente em conflito com
a lei, p a ra utilizarm os a linguagem politicam ente correta) se­
ja m processos que podem ser dem arcados historicam ente.
-A lé m d isso, a c re d ita m o s q u e os p ro fu n d o s im p asses exis­
te n te s p a r a e fe tiv a ç ã o d o E C A n a a tu a lid a d e são u m reflexo
im p o r ta n te d o r e tr a im e n to d o E sta d o c o m o re sp o n sáv e l p elo
f o m e n to e im p la n ta ç ã o d e p o líticas p ú b lic a s b ásica s e m c o n tr a -
d iç ã o e v id e n te c o m os p rin c ip a is p ila re s d e su ste n ta ç ã o d o te x ­
to legal.
N a m edida em que não cum pre sua parcela de respon­
sabilidade na garantia e defesa dos direitos elencádos pelo Es­
tatuto (direito à vida, à saúde, ià alim entação à educação, ao
esporte, ao lazer, ‘profissionalização, à cultura, à dignidade, ao
respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária), o
Estado cria um vácuo referencial impossível de ser contornado.
Finalizando, gostaríamos; de evocar-que oi Estatuto da
C riança e do Adolecente se insere em um a rede de atravessa­
m entos psico-sociopolíticos dirigidos à infancia e juventude, mas
enquanto não considerarm os efetivamente as falas produzidas
p o r esses atores (crianças e jovens) na real concepção de que
sejam eles os S U J E IT O S dessas! práticas e p ara os quais essas
.práticas se destinam , continuarem os a nos rem eter a um a lei
com o “letra m o rta’1’e não como texto vivo capaz ide nos m obi­
lizar a em preender ações todos, os dias em favor da cidadania,
da liberdade e da dignidade hum anas.
Referências bibliográficas

Artigo 5 o da lei 1.509 de 2 4 /0 8 /1 9 8 9 , que altera a estrutura do Juízo das


E xecu ções Penais, cria outros órgãos na Justiça do Estado e dá outras
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248
Marlene Guirado

Escrever num livro sobre Psicologia Jurídica é um a tare­


fa delicada, quando não se trabalha em Fóruns, cm Com arcas
ou V aras de qualquer espécie. O u seja, quando não se trata do
cotidiano das instituições concretas da Justiça, nem do trab a­
lho que, diretam ente, os psicólogos têm desenvolvido nessa área.
D e certo m odo, é o caso deste texto. Pelo título, no en­
tanto, podem os perceber um a relação interessante, que me
caberá dem onstrar nas páginas q u e se s e g u e m : d i s c u t i r o q u e
se pode fazer/pensar, quando a população com que se trabalha é
nom eada, exatam ente pelos discursos e recursos no âm bito do
D ireito e suas práticas institucionais judiciárias. T ratarem os das
práticas, de atenção e custódia p ara jovens, qualificados por
sua condição de conflito com a lei; mais-especificamente, da
FEBEM -SP. T ratarem os dc alcances e limites de nossa prática
profissional, a Psicologia, quando ela é.feita nesse contexto.
T ratarem os, ainda,- de certas coordenadas que podem organi­
zar o m odo de pensar do psicólogo, cm sua ação direta ou, até,
na pesquisa.
E stará sendo proposto, de frente e de fundo, um m odo
de fazer psicologia que independe, em muitos pontos, dc ela
ser adjetivada como judiciária, ou educacional ou clínica. Pois,
esses adjetivos falam mais do tipo de instituição em que ela é
exercida, do que do recorte metodológico com que se a exerce.
C om o se pode notar, estou afirm ando que se pode dizer
que se faz psicologia jurídica quando, por algum motivo, se faz
psicologia nò âm bito da Justiça. N ão há qualquer m arca de
procedim entos específicos que .em seu nome se exerça. O que
h á sim, e é isso que defendo, (é um a possibilidade de leitura,
ta n to de o que é psicologia, como de o que é um a instituição
(e, nesse sentido, a própria psicologia pode ser considerada um a
instituição) e seu discurso.
Essas idéias, eu as desenvolvi extensam ente em outros
escritos a que rem eterei o leitor à m edida que for necessário,
no decorrer do texto. Isto porque, por um lado, temos limites
de espaço agora e, p o r outro; pretendo, em ato, dem onstrar
corno pode ser essa leitura, no desenvolvimento do conteúdo
deste nosso capítulo. !
Em últim a instância, é ésse o alvo: discutir um a estraté­
gia de pensam ento que norteia o fazer do psicólogo, já bastan­
te distante dos procedimentos eitécnicas que se costumam ensinar,
nas universidades e que insistimos em repetir, quando trab a­
lham os em instituições outras', com outros profissionais, com
outros objetos e objetivos, diferentes daqueles que tradicional­
m ente atribuím os à psicologia. !
M ais ainda, o'alvo é dem onstrar que esselmodo de pen­
sar im plica u m a postura éticaina relação com a !clientela, bem
t, i „
com o um a .possibilidade de abrir novos caminhos p ara situa­
ções de impasse com que nos defrontam os, no trabalho fora de
nossas form as protegidas de proceder. Aqueles psicólogos que
trabalham , p o r exemplo, ju n tò a V aras d aju stiç‘a sabem muito
bem do que estou falando... Exercer a psicologia, no interior
dos discursos e dos procedim entos jurídicos, e um constante
desafio ao que se costum a cham ar de “identidade profissio­
n al” . T u d o o que sé faz é atravessado pelas exigências do D i­
reito, de tal form a que o direito da clientela de receber um
atendim ento à altura de sua condição afetiva e hum ana parece
absolutam ente negado; o próprio profissional, às vezes, agarra-

250
se a um a repetição burocrática d e ; entrevistas e testes, onde,
como preposto im aginário do juiz (na sua cabeça e na cabeça
das pessoas que atende), julga encontrar algumas certezas de
um a atuação psicológica, conforme seu contrato de trabalho e
sua-form ação. -Afin al—não -se -diferenei.a-do j-ô u-n ão -s e -b riga
com, o discurso do Direito im punem ente.
Pois bem. Dizia, no início, que o que perm ite incluir
este escrito num: livro de Psicologia Jurídica é a clientela-alvo
do trabalho em psicologia, adolescentes em conflito com a lei.
O cam inho p a ra a apresentação das idéias, no presente
capítulo, seguirá colado a duas experiências concretas, desen­
volvidas em m om entos e com finalidades diferentes: um a pes­
quisa acadêm ica (1985) (G uirado, 1986) e um a supervisão
institucional ao Projeto Fique Vivjo (desde 1999). O que as
aproxim a é um certo m odo de conduzir a análise do que se
ouve, se vê e se vive, nessas práticas, na posição de quem faz
tam bém a instituição, só que na qualidade de um interessado
pesquisador ou de um não menos interessado agente de projèto
especialmente contratado.
Talvez repouse néssa vontade de análise permanente e nos limi­
tes de suas possibilidades as discussões que pretendemos aqui produ­
zir. Procurarem os ser fiéis ao m odo como se foram construindo
i
as descobertas analíticas, num terreno ;onde se miscigenam obser­
vações, pré-concepções e interpretações.
Demos, então, início à tarefa...

0 vínculo com a infração. •


Quando a transgressão e a violência sp tornam a lei1

E m 1985, p ro c u re i e n te n d e r: c o m o in te rn o s d a FEBEM-
SP, n a c o n d iç ã o d e a b a n d o n a d o s ie in fra to res, c o n c e b ia m os

1 N esse m om en to o term o lei está sendo usado não mais no sentido de lega-

251
vínculos afetivos que poderiam (e puderam ) constituir em suas
vidas. Como, por hipótese fundam ental, supunha que a rede
de relações institucionais concretas do contexto FEBEM fazia
parte das relações possíveis e, por isso, teriam papel significati­
vo nos vínculos imaginados, procurei tam bém entender o modo
como os funcionários se viam na lida cotidiana de seu trabalho
com aqueles meninos e meninas, menores, conforme o discurso
da época, apoiado no então Código de M enores.
Naquele momento, já havia, de m inha parte, a preocu­
pação de fazer um estudo em psicologia que acreditasse na
possibilidade de tom ar como objeto, não os com portam entos
observáveis ou um a realidade psíquica inferida por meio de
interpretações psicanalíticas estrito senso. No caso, a situação
era um a instituição social, o que, por um )ado, facilitava que
não se repetissem os estudos tradicionais, mas, de outro, pode­
ria 'conduzir para métodos e recursos da sociologia, tam bém
estrito senso. Com o já vinha, há algum tem po, buscando defi­
nir um objeto à psicologia, na fronteira entre a análise de insti­
tuições concretas (um ram o da sociologia) e a .psicanálise,
colocando no c e n t r o das a t e n ç õ e s u m c e r t o c o n c e i t o de insti­
tuição e a própria psicologia como instituição, conduzi o estudo
no fio da navalha da tentativa de articulação entre um e outro campo
na produção de conhecimento. E, isto, como uma estratégia de pensamento
intencional, como método}
Instrum entada por essas idéias e intenções, por essa es­
tratégia básica de pensar, conduzi um a pesquisa acadêm ica

iidade jurídica, e sim, no sentido de regram ento das condutas, do pensa­


m ento e da subjetividade, que m arca um certo reconhecim ento inconscien­
te, até, do q u e'é considerado, tacitam ente, com o natural e legitim o. Esse
será o uso mais corrente que Faremos do termo. O leitor saberá distinguir,
por certo,.quando for o caso dc outro uso.
* Leiam -se, pará;m aior esclarecim ento In stitu ição e R ela çõ es A fetivas (no
prelo); P sico lo g ia Institu cional (1987); P sica n á lise e A n á lise do D iscu rso -
m a trizes institucionais do su jeito p síq u ic o (2000).

252
im ediatam ente voltada para situações e questões sociais que,
em m uito, extrapolavam os m uros da academ ia .3
Fiz entrevistas com internos e com funcionários, desde
os que m antinham contato direto c o m 'a clientela até os de
direção de U nidades de T riagem e de. Educação. Analisei os
discursos, ali e assim, produzidos c, com isso, configurei o que
se poderia cham ar de subjetividade-efeito das relações constitutivas
das práticas institucionais da F E B E M . .
Desse m odo, pode-se dizer que o estudo não faz, ou não
fez, um a anáíise psicológica das pessoas entrevistadas, mas sim , um a
análise do discurso que é, por suposição teórica, tecido nas malhas
das relações concretas dessa instituição. Portanto, deu-se ênfase às
relações, no e pelo discurso; e qualquer afirmação que se fizesse
sobre os meninos (e mesmo sobre os funcionários) exigiu que se
com preendesse sua estrita fundação no contexto, em questão:'
T an to que, do estudo da subjetividade, derivou a configuração .
de um objeto institucional dessas práticas . 4

3 N o livro Psicologia Institucional (G uirado, 1987), dedico um capitulo, cm espe-


cialj para pensar a Psicologia com o produção de conhecimento e com o prática
profissional, buscando apontar para as relações intrínsecas c inevitáveis entre
essas duas dim ensões. Para tanto, proponho um a definição dc objelo da psico­
logia que não é mais o com portam ento c /o u a mente de um indivíduo, mas
as relações concretas, tal como imaginadas e simbolizadas bor aqueles que as fazem . ,
A ssim , o sujeito psíquico não se definiria pelas qualidades e afetos de um
indivíduo que está nas instituições, mas pela subjelividade-efeilo das relações institucio­
nais] daí, a afirm ação que faço a respeito da dim ensão institucional de toda
realidade psíquica, N ã o se trata, pois, de considerar a subjetividade com o “a
interioridade de um indivíduo", mas .como efeito de relações concretas.
4 Estou cham and o de análise psicológica aquele tipo de interpretação de senti­
dos e afetos com o relativos ao “indivíduo e sua realidade psíquica”, que
desconsid era o con texto .das relações concretas (a dim ensão institucional) de '
toda produ ção de sentidos e subjetividades. Por sua vez, a análise de discurso,
apoiada na definição de objeto da psicologia (que acim a propus), correspon­
de a u m a definição de instituição que só se faz na ação concreta dos atores
insdtucionais, bem com o num a definição de discurso com o instituição. C om
efeito, ela perm itiria deslocar o foco de análise da pessoa para a relação e
para os discursos que nessa relação se produzem .

253
O que se a p r e s e n t a v a , então, como um a pesquisa feita
em psicologia e por um a psicóloga já se m ostrava um curioso
trançado das noções de sujeito ej subjetividade às de grupos e
instituições. E, aquilo que meninos e m eninas m eidiziam nas
entrevistas eu considerava, sempre, como um ponto, como um
nó daqueles bem cegos, na rede;discursiva, em rejação a ou­
tros, com o o do agente-funcionário e, até, o da. agente-pesqui-
sadora. C o n sid e ra v a o que me diziam , com o um a tram a
indissociável de reconhecim entos e desconhecim entos que a
dim ensão discursiva das relações; instituídas perm ite entrever,
ou reconstruir, no discurso analítico. ,
T u d o o que se afirm ou, a partir da análise, sobre o uni-
verso dos vínculos afetivos imaginados comó possíveis pelos
internos não se pensou como um a característica; individual
daqueles jovens, m as como um ajm arca característica da rela­
ção institucional. Em outras palavras: como a subjetividade que
naquela relação se constituía. ,
Essas considerações teórico-metodológicas que estou fa­
zendo são im portantes p a ra que ío leitor se esclareça sobre os
pontos de partida, ou m elhor, solpre o que pensa esta autora a
respeito da psicologia como fornia de conhecim ento, um a vez
que isto tem relação intrínseca com os resultados a que chegou
e com o que julgou conhecer nessas condições. '
A apresentar esses conhecimentos, nos dedicarem os a
p a rtir de agora. C om o o leitor poderá notar, na escritura deste
texto, os tem pos dos verbos se alternarão entre pasàado e pre­
sente, n um a calculada disposição ’das idéias na lem brança e na
teoria.

Sobre o objeto institucional da FEÊEM


: r

Costum a-se dizer que “na prática a teoria éjoutra”, ou


que o discurso é liberal ou politicamente correto, mas as ações
são repressivas e condenáveis. Foi Icurioso, porém , observar que

254 I
essas m áxim as não sobreviveram :à análise que fizemos dos
discursos institucionais. M uitas vezes, o que se.poderia considerar
como prática apenas acentuava u m a das m arcas do discurso. O u
então, n a am bigüidade, era exatam.ente o que se propunha nos
textos -e-falas-mais-elaboradas_de alguns agentes._____________
Isto se dem onstrou quando tom am os p ara estudo os tex­
tos oficiais que definem os objetivqs da Fundação: atendimento e
conservação das crianças e jovens em situação de abandono e infração. A
prim eira vista, algo irrepreensível em se tratando de um a insti­
tuição de prom oção social. N o entanto, a análise dos textos
escritos bem como das falas em entrevistas (não só de atendentes
como de atendidos) perm itiu configurar cenas que levaram a
pensar que o que a Febemfaz é a conservação das crianças ejovens, no
abandono e na infração. O que parece, apenas um jogo de palavras
é, na verdade, um intrincado jogo de forças;e de equívocos que
o discurso arm a, denotando, n a sua construção, os dois lados
da m oeda do objeto institucional. 'Não se pode negar que esse
dito está no miolo do objetivo, tal como o discurso formal da
instituição o apresenta. M as tam bém não se pode negar que o
que aqui se aponta resultou d a articulação das análises dos
discursos de diversos segmentos ou grupos que faziam aquela
prática.

Com o foi possível deduzir tudo isso? Consideremos, como


exemplo, as entrevistas. Os funcionários, com freqüência, rela­
tavam situações em que se m ostravam personagens fortes e
capazes de dom inar um m enino na delegacia e na Unidade
com base em sua astúcia e agressão física; no entanto, em ou­
tros m om entos da m esm a entrevista, diziam se sentir acuados
ao conduzir jovens com boletim de ocorrência por delitos gra-

255
v es, cm carros sem qualquer proteção ou segurança. Os inter­
nos, por sua vez, referiam-se aos riscos de ataques por parte de
outros internos e de funcionários, ao mesmo tem po em que
sinalizavam um certo domínio sobre como conseguir relatórios
de liberação por parte de técnicos e monitores,
A relação cotidiana num a casa de reeducação e de contenção
é, portanto, mais um a ocasião de transgressão e essa é a ordem das
coisas...
Daí se poder pensar que, por todos os poros, naquela
situação, respira-se violência, transgressão e infração. E que, se
a FEBEM. não cria a violência, cia parece ser um nicho privile­
giado para sua reprodução.

Sobre os vínculos

Q uanto à questão dos vínculos imaginados como possí­


veis por esses meninos, outras surpresas nos foram reservadas,
pela análise dos discursos.
A qualidade mais d e s t a c a d á de s u a s f a la s c u m a espécie
d e h a b i l i d a d e cênica imediata, que envolve o interlocutor, ou
melhor, que o supõe. T udo, no entanto, só se denuncia, em
repentes, quando então, ele (o interlocutor) já está enunciado
e... dominado. M inha sensação, nesses momentos, era a de estar
na mira, à revelia de m inha vontade.
■ Cabe lem brar que, no caso das entrevistas da pesquisa,
conta a expectativa que o entrevistador/pesquisador, tam bém
à revelia de sua vontade, tem em relação ao entrevistado. O
fato. de, naquele m om ento, um a jovem m ulher estar frente a
um interno da FEBEM considerado infrator, inevitavelmente se
traduzia num jogo de imagens múltiplas que se enlaçavam às
expectativas sociais comuns p ara essas ocasiões. Configurava-
se concretam ente, ali, um a cena com dois personagens e dois
lugares em constante tensão. O domínio sobre o que acontecia

256
parecia, o tempo todo,, estar nas mãos do mais forte, sendo esse
mais forte o interno que dizia conhecer o mandão lá fora e o
mundinho lá dentro>como a palma de sua mão. O .dizer era, às vezes,
indireto, pelo gingado corporal, pelos meios sorrisos, pelo tom
teatral das falas. As vezes, era direto,'como na resposta dada a
um a pergunta m inha, sobre o significado de alguns códigos
civis que um m enino enunciara por números: “A senhora n u n ­
ca vai entender o que a gente diz”...',.
Esse dom ínio do personagem -infrator tecia outras histó­
rias que contavam os internos, sobre isuas vidas, a p artir do
m om ento em que caíram na m arginalidade (expressão usada
por eles quando se lhes pedia que falassem sobre suas vidas;
todos, sem exceção, diziam que a vida com eçava quando caíam
na marginalidade); histórias a respeito deles com os policiais, com
vítimas, com outros parceiros de transgressões. Os entrevista­
dos eram sempre os que punham os contra-encenadores de qua­
tro, atiravam neles, roubavam -nos e saíam ilesos para a próxima.
De um m odo que o discurso psicanalítico costum a no­
m e a r denegado, um dos m e n i n o s m e disse, em m e i o a um a des­
sas heróicas proezas: “Por exemplo, se eu encontrar a senhora
fora daqui, no m undão, eu não vou estuprar a senhora!”
Se essas falas, ainda p ara o discurso psicanalítico, são
exemplares da transferência, das defesas e da auto-idealização,
p ara quem é concretam ente o interlocutor, têm o efeito de re-
instaurar um gênero discursivo, com tudo o que ele implica de
receios, anseios, esquivas e avanços, absolutam ente inscritos na
pele .5
Além disso, nas histórias que contavam de si, sempre
que se configurava um a situação de proxim idade ou de víncu­
lo, seguia-se algum tipo de violência que interrom pia o clima e

5 Aqui, um a ocasião que exem plifica a diferença entre análise psicológica (e /


ou psicanálise estrito senso) e a análise de discurso que propom os.
a seqüência. Assim, quando o pai yoltava para casa ou quando
se recostava no colo da m ãe, indicando carinho, m orria repen­
tinam ente ou era atingido por algum tipo de infortúnio; o com ­
panheiro de assaltos, com quem dividia espaço p ara viver (e
até o cobertor, roubado à loja ao ládo do estacionam ento para
carros cm que dorm iam ), quis transar com ele, e p ara que isso
não acontecesse, ele arm ou um a espécie de emboscada, atean­
do-lhe fogo enquanto dorm ia. / 1
Ainda: o pai, no discurso desses rapazes, é m oeda forte
nas trocas afetivas. D e algum je ito \p sempre im portante. Q u er
dizer, significativo: ou porque dele! se espera mais do que ele é
ou foi, ou p o rq u e é um ser execrável, abom inável, u m a
teratologia da condição hum ana. Assim o indicou'aipesquisa.
A mãe, pelo contrário,' é alvó de cuidado e tam bém cui­
da. É referida como quem tem força c se esforça p a ra ver o
filho em liberdade; M ãe é referência e cumplicidade! N a estei­
ra dela, vem a m ulher-prostituta, com quem gozam! o sexo li­
vre e “caprichoso”, como prem iação final de um extraordinário
desem penho de sua onipotência. '
O u tra m arca significativa desse discurso é què os opostos
não se opõem\ apenas justapõem -se .1 Assim, vida e m òrte, viver
ou m orrer não se discrim inam na! radicalidade de suas oposi-
ções. Em suas falas, reconstitui-se ium “tanto faz” estar de um
lado ou do outro, nessa polarização. AJém disso, a justeza ou a
justiça do ato de infração ou dè punição (quer seja lo ator em
questão o próprio m enino ou seué contentores) se deixa reger
pela lei do mais forte? Dessa m aneira, se ele fosse pego “rouban­
do a cerca do vizinho p a ra fazer fogueira, ‘tá s no direito dele

6 U m a contraposição ao título d o film e Pixoie - a lei do maisfraco. A idéia c essa


mesm o; dem onstrar, pela análise, o quanto esses m eninos se pautam im agi­
nariam ente pelos regram entos sociais que transgridem; reconhecem parado­
xalm ente, para si, a legalidade que os subm ete. |

25 8
me dar um tiro” (comentário de um m enino que teria atirado
em alguém que levou a cerca da casa dé sua mãe p ara fogueira
de festa junina.). Reconhece-se a lei da- propriedade privada
bem com o a punição à sua transgressão; não im porta por que
mãos .a justiça se faça com legitimidade, o 'direito de proprie-
dade é legítimo.
Com o se pode notar, as oposições entre o reconhecimento
desse direito e da legitimidade da transgressão não existem.
D aí até o reconhecim ento da transgressão como a lei, o passo
é autom ático. Por um a daquelas mágicas do discurso em que
um dos interlocutores faz um deslocam ento absolutam ente
involuntário e, portanto está longe de atinar com o que diz, e
o outro ouve sem defato ouvir, a transgressão vira a lei. Acom pa­
nhem-se os trechos das entrevistas que se seguem:
Se eu e n tr a r n u m a m b ie n te que t e n h a . .. s ó g e n te
tr a b a lh a d e ir a , h o n e s ta , d ir eita , sei c o n v e r s a r ta m b é m . S e m
se r n a gíria, se m ser g in g a n d o . N o m e io d a m a la n d r a g e m
a g e n t e te m q u e c o n v e r sa r n a g íria , c o n v e r sa r d e m a la n ­
d r a g e m . A g o r a ... n u m a m b ie n te , fa m ilia r , v o u c o n v e r sa r
d ife r e n te , c o m o g e n te .
S e in v a d ir m e u te r r e n o e . e u tiv e r c o m u m a a r m a d e fo g o ,
m a to . E u faço! N ã o te n h o d ó não! T e m p o d e fo g u e ir a d e
S . J o ã o , aí. n a v ila , n ã o p o d e m a r c a r c o m c er ca . A tu r m a
- n ã o a r r u m a le n h a n o m e io d o m a to e v ã o r o u b a r a c e r c a
d o s o u tr o s .e p ô r fo g o ... cer to ?

A entrevistadora prossegue no assunto cerca e, perceba-


se, os critérios p ara pontificações um tanto quanto categóricas
sobre o que é certo ou errado vão deslizando, de um pólo ao
seu oposto, sem mais...
E: S e r o u b a r e m a su a v o c ê m a ta ?
B: A h , se e u c a ta r ... :
E: Q u e r d iz er q u e se a lg u é m m a ta r v o c ê o u d e r u m tiro
n a s su a s c o sta s, v o c ê ta m b é m a c h a q u e ele e stá certo ?
B: T á certo! C a to u r o u b a n d o id eie, tá cer to . N ã ò tiro a
r a z ã o d e le , n ã o .

259
E: Q u e r d iz er , r o u b a r é u m a co isa to rta , m e sm o !
B: E coisa errada, mas...
E: Mas...?
B: A gente continua fazendo, né... quer dizer, tenho fé em
Deus de não... mexer mais... na casa dos outros.
(...) Agora, tem uma coisa: partiu do meu portào para den­
tro, ta invadindo minha propriedade, eu mato e não tenho
dó. Ele ta desrespeitando eu e minha mãe, certo!? E ainda
tá... querendo invadir minha propriedade.

Retomando o fio...

Nas situações apresentadas como exemplares, creio ter


sido possível oferecer ao leitor, um a idéia do trabalho de aná­
lise de discurso que configura um a subjetividade, ao mesmo
tempo singular c partilhada, no jogo de forças de relações con­
cretas tal como imaginadas e simbolizadas por aqueles que a
fazem. Apesar de em alguns m omentos nos assentarmos no
estreito fio que distingue o singular do partilhado, foram feitas
afirmações sobre--o discurso em qúe sé tecem as relações imagi­
nadas como p o ssív e is p a r a u m si e p a r a um a vida na margino.lid.ú.de.
V ida na m arginalidade de que faz parte a FEBEM. U m a aná­
lise de discurso que configurou, portanto, um a subjetividade
constituída na rede das. práticas de-atendim ento de custódia a
jovens em conflito com a lei.
Assim, com base nesse modo de pensar e fazer psicolo­
gia, que supõe (a) a articulação entre um a determ inada con­
cepção de discurso, (b) um a concepção de instituição e (c) um a
concepção de análise (ou psicanálise), produziu-se o estudo de
vínculos afetivos nas relações instituídas como de atenção a esse
segmento da população (Guirado, 1995). A psicologia, p o rtan ­
to, na fronteira com outras áreas do conhecimento, alcança
um a tem ática reconhecida como da sociologia, as instituições
sociais.

260
Prosseguindo, então: essas conclusões se sustentariam com o
passar do tempo e dos estudos?
O. teste de sua força pôde ser feito, com a:mesma estratégia
de pensamento e para a mesma situação concreta (FEBEM), por meio
de supervisões feitas a profissionais psicólogos. Claro que a cada
situação concreta, surgiam desafios que. exigiam respostas ou
encam inham entos específicos, mas a base do que o estudo de
doutorado apontou parecia e parece se "confirmar.
U m a dessas supervisões, que acontece já há algum tem­
po, é exem plar, em vários sentidos, de um precioso traçado (ou
trançado) da prática e da produção do conhecim ento em psi­
cologia. É finalidade da escritura do item que se segue dem ons­
trar como as coisas podem acontecer nesse outro contexto.
N ão se esqueça o leitor de nossos propósitos de escritura,
de um texto num livro sobre Psicologia Jurídica: o que pode á,
nossa vã psicologia, p ara além daquilo que habitualm ente se ^
coloca como seu objeto; mais cspecificamentc, o que pode ela,
quando feita nos campos afeitos a questões e populações ou
grupos, no âmbito da Justiça, do Direito. .

Fique Vivo em meio a isso

U m a dezena de anos depois da pesquisa, fui convidada


a dar supervisão institucional p a ra um grupo de psicólogos que
desenvolvia um Projeto com o sugestivo nom e de. Fique Vivo.
Assim o definem seus criadores: um conjunto integrado
de ações educativas, culturais e de prom oção''de saúde que vi­
sam, basicam ente, estimular a expressividade, ■a apropriação
de bens culturais e o exercício de um a gestão dem ocrática do
convívio grupai.
Suas atividades concretas têm sido desenvolvidas em
U nidades da Febem, na qualidade de serviço contratado. A
base dessas atividades são Oficinas de Grafite, produção de

261
Instrum entos de Percussão, D J ., Leitura, Cartas, Jornal, Pa­
ternidade e Prevenção de AIDS. São oficinas de trabalho e
algum as delas têm sido conduzidas como autogestão,.desde a
produção m aterial até a utilização da renda obtida pela venda
-dos_pr odutos._São.coordenadas por profissionais especializados
em cada área (nomeados educadores no quadro de trabalhadores
do Projeto) e acom panhadas p o r psicólogos que se atribuem
função diferenciada daquela do -énsino técnico específico de
cada tipo de atividade. Tais psicólogos, em cada U nidade, são
os mesmos que se ocupam do acom panham ento geral do P ro­
jeto naquela casa, m antendo contato com os outros grupos
institucionais, sobretudo com os internos, em situação de roti­
na, com o pátio e^ dormitórios. i ;
H á, ainda, um plantão psicológico oferecido aos rapazes
internos, de procura livre, conduzido por estagiários 'de psico­
logia, com supervisão feita em conjunto, pelo Serviço ;d e Acon­
selham ento do Instituto de Psicologia da U SP e um pijofissional
destacado do Projeto. , ;
■ ] !

Uma história,..
D izer o que acim a dissemos ê pouco, diante cie tudo o
que este Projeto faz e fez. O Fique Vivo já tem um a história de
cinco ou seis anos; um a história de|trabalhos idealizados e con­
cretizados, sempre movidos a grandes esforços e reflexões, por
parte de toda a equipe, hoje com posta de psicólogos e educa­
dores, em funções de coordenação 1e atividades diretas (oficinas
e contatos com os grupos institucionais, desde internos e
m onitores das U nidades da Febem até diretores da Fundação).
Neste m om ento, correndo 10 risco de ser parcial, mas
garantindo o tem a a que nos propusemos, darei destaque a
alguns aspectos^do conjunto das [ações. Creio, porém , que o

262
leitor, poderá ter um a idéia de' suas principáis características
bem como de sua im portância social. ;
Q uando as supervisões se iniciaram , foi-me possível reco­
nhecer, naquilo que estes profissionais relatavam, marcas daquelas condu-
soes a que chegara com o estudo de 1985. Algo parecia profundam ente
enraizado nessas práticas, de tal m odo .que, infelizmente, ape­
sar de tantas m udanças anunciadas nas instâncias oficiais, a
situação não se alterava.
Talvez caibam aqui algumas considerações sobre m u­
danças. E ntre 1985 e hoje, houve a m udança do Código de
M enores p a ra o Estatuto da C riança e do Adolescente. Claro
que isto é im portante na garantia dos direitos da criança a
atendim ento digno. (Claro que foram criadas instâncias concre­
tas mais coerentes com as necessidades de tratam ento desse
segmento da população, no plano jurídico, social e assistencial.
H á, particularm ente, um a alteração no discurso, que busca
corrigir um a discriminação, que por essa via se fazia das crian­
ças em condição de pobreza, abandono e infrâção, que eram
invariavelm ente referidas como menores, sob .vigência do Códi­
go. Pelo Estatuto, força-se a nom eação por sua condição de
crianças e jovens. Os relatórios psicológico e social bem como
os processos jurídicos parecem constantem ente policiados a
proceder a essa alteração discursiva.' E isso c, em princípio;
correto e bom . No entanto, o que se pode notar é que há algo
de absurdam ente resistente, no plano dos discursos e práticas
concretas, que insiste em perm anecer. Provavelmente porque
as alterações nesse plano têm ritm o lento e exigem que outras
m udanças ainda se processem. As práticas institucionais têm
relação corri um contexto de outras expectativas e instituições
sociais, que continuam dem andandò da FEBEM um a função
específica no trato com a m arginalidade. O fato é que, no pla­
no em que nossos.trabalhos e estudos se dão, pudem os'atestar,
não sem um quê de tristeza, a perm anência, em linhas gerais,
do m esm o quadro.

263
A te ccrto p o n to , tal inércia tende a colocar limites em
nossas p reten sõ es de transform ações radicais: sonho de que o
bom senso não nos livra, e que está na base e no horizonte de
nossas preocupações políticas; sonho bom que nos em purra a
tentar sempre:.. Mas o fato é que lá estava eu acom panhando,
agora com as mãos na massa do trabalho direto, as cenas que
a pesquisa configurara.
Bem. Não preciso dizer ..-que um projeto de intervenção
como o do Fique Vivo coloca-se na contracorrente desse m oto
contínuo da instituição. Daí, com freqüência, sua fluência é
atravessada pelos reveses de um trabalho institucional. São várias
as frentes em que se coloca, são várias as atividades que’desen-
vôlve e sao vários os grupos institucionais que envolve. M uito
embora' a proposta prim eira seja a de trabalhar diretam ente
com os internos, constantem ente, isso implica interferir na ro­
tina da casa para que os meninos possam participar das ofici­
nas, o que, por sua vez, implica ter a anuência de um m onitor
(funcionário da U nidade, responsável pelo contato com os
meninos, para seu cuidado e controle7).
N o início das atividades, e r a esse o e n t r a v e m a i s v is ív e l
a o d e s e n v o l v i m e n t o do trabalho. Como que p ara confirm ar
um a interpretação já desgastada pelo uso, havia um a espécie
de afastamento deliberado de influências estranhas ao cotidia­
no e ao ‘habitual. Freqüentem ente, dificultava-se a ida de m e­
ninos às atividades program adas e as razoes p ara tanto iam
desde a simples afm tiação de que isso atrapalharia a ordem
das coisas, até que teria acontecido algum tipo de equívoco.

•7 C om tudo o que está ai fundido: cu id ad o/con trole, d iscip lin a/ed u cação,
• reedu cação/contenção. Esses pares de oposios não se distinguem no im agi­
nário dos que fazem a FEBEM . E, diga-se, isto não ocorre só na fala dc
agentes e clientela em relação direta, com o tam bém no discurso escrito ofi-,
ciai.

264
M uitos desses entraves nos inipediám dc. avaliar até onde
os próprios internos poderiam estar ou não interessados naqui­
lo que o Projeto propunha. Era como sé; na base d a ação, lhe
fosse ceifada a possibilidade de acontecer. Talvez sç possa apon­
tar aí um a das formas sutis da dimensão perversa da relação,
que norm alm ente se costuma atribuir às práticas de atendi­
m ento tecidas na violência. H á um “ataque ao contrato”, con­
forme o discurso e o entendimento psicanalítiço. Com isto, tudo
estaria com prom etido.
Notávamos, ainda, que além dos tempos, os espaços da casa
eram tom ados com reféns de um a espécie dc estratégia de co­
locação de limites ao Projeto. Com o assim? O pátio da U nida­
de, por exemplo, parecia ser espaço sagrado da instituição; os
coordenadores do Fique Vivo, sobretudo se mulheres, não de­
veriam circular nele e determ inadas atividades foram proibidaá
lá. Justificavam as proibições pelo risco de agressão e, até, re­
belião. No ar, ficava a sugestão dc que as questões sexuais e de
segurança eram explosivas. Em nome de um pressuposto, a
violência se a n u n c i a v a n o v a m e n t e c o m o a m a r c a d a q u e l a r e l a ­
ção. Pelo avesso e pelo direito.
Falamos, aqui, de um jogo dc forças que se trava no e
pelo discurso e que está indissociavelmente enlaçado aos pro­
cedim entos institucionais. Como se pode notar, o contraponto
i v-'
da tensão, assim gerada, eram os procedimentos das oficinas,
c arro-chefe do Projeto que, na luta p o r sobrevida e por
efetivação, tentou descobrir suas formas de resistência, sem se
deixar paralisar, absorver ou perverter nessa ordem discursiva.

Uma supervisão,..
Nesse ponto, ressalta o lugar da supervisão que eu fazia
com o grupo de coordenadores (diretores do Fique Vivo e seus
coordenadores p ara as atividades de cada U nidade em que ele

265
se desenvolvia). Ela era (e continua sendo) um lugar destinado
especialm ente a pensar o conjunto das correlações dei força na
intervenção. Lugar preferente de análise e de execuçãp do tra ­
balho que supõe á necessidade, em situações como essa, de um
co rte-no-eontact 0 -im ediato-e-de-eqrpo-a-G Orpo,-no-cotidiano
das relações instituídas. ;
E, como o Fique Vivo é, nas origens, um projeto em
psicologia, idealizado e coordenado, por psicólogos, cabem al­
gum as palavras, sobre o modo. como encaram os nossa área do
conhecim ento, sobretudo quando ela tam bém se exerce fora
de seu berço histórico, com perspectivas e fundam entos dife­
renciados. i
J\ra supervisão semanal, temos ium m om ento privilegiado
para exercer essa m ágica reciprocidade entre o fazer, e o pen­
sar. C ostum am os ter como pauta, questões e dificuldades, que
surgem no trabalho. M as nosso foco (ou, ponto de partida, o que '
na m aioria das vezes dá no mesmo); ê} sempre, a atenção]às relações
concretas, tom adas na mais absoluta relatividade às condições insti­
tucionais .de sua.produção; ê a atenção ao discurso, tom ado como
ocasião de análise, o que nos remete, inélutavelmente às imbricações
entre os efeitos im aginários e o coritexto e /o u os procedim en­
tos institucionais.“ ■
Só p ara exemplificar: no que diz respeito ao i acom pa­
nham ento que os psicólogos fazem às oficinas, temos discutido,
constantem ente, a necessidade de jse reverem os modelos de
pensar a subjetividade, alvo e objeto do fazer psicológico. Com
cuidado, temos insistido em não tom á-la (a subjetividade) como
sinônim o im ediato de um a história pessoal, de um a afptividade,
de um indivíduo, acim a/ao lado/antes/depois dos espaços/tem ­
pos/procedim entos daquela ordem institucional concreta. T e ­
mos insistido erri considerar que a^ possibilidade de o m enino

c V id e nota de rodapé 3 sobre o objeto da psicologia

266
falar de um si, muitas vezes soterrado pelo discurso corrente,
obviam ente é de inestimável valor; no'entanto, esta é apenas '
• um a das dimensões da subjetividade que se constrói naquele
contexto. N ão se pode negligenciar que quando um m enino
----- nos-fala._ele traz p ara a oficina, ou p ara a conversa, o pátio e
suas densas relações; traz o dorm itório .e o lugar que ele (inter­
no) tem entre os outros colegas de destino social. As regras do
fora da oficina atravessam as posturas e falas no dentro. Este é
o si do e no grupo de que se trata...9.
Exatamente por assim supor serem' aquelas práticas concretas
e p o r assim conceber nossa psicologia, podem os prosseguir
destacando aspectos que m arcariam ^s relações institucionais,
a subjetividade e a psicologia desta tão conhecida instituição
de custódia a jovens em conflito com a lei.

Cenas e metáforas de um cotidiano


A m em ória resgata, agora, cenas que podem elucidar o
•trânsito, ora mais ora menos agitado, das ações do Fique Vivo
e que podem esclarecer o que acima se delineou genericamente.
N um a certa ocasião, um dos coordenadores, relativamente
■ conhecido e b em 1aceito pelos meninos, estava no pátio (onde
já se to rn ara possível “circular”, depois de idas e vindas de
interiocução) e, de m odo espontâneo, comentou com um deles
que notara que sua barba estava por fazer. Surpreendentemente,
o rapaz reagiu, dizendo que o senhor estava fazendo ironia e
que não deveria fazer aquilo. O “clima” denunciou, num repen­
te, um a tensão altíssima: a ameaça sugerida por alguns termos da
fala (e não se sabe quais) tornara-se tão palpável quanto um a

0 V id e notas de rodapé 3 e 4 sobre sujeito psíquico, análise psicológica e


análise de discurso.

267
substância física qualquer., Esclarecer o equívoco, nem pensar,..
Foi prècisò um jogo de “deixa-disso”, por parte de outros rapa­
zes p àfa que .tudo ficasse como se nada tivesse acontecido.
O que cham a a atenção no episódio é a prontidão pára
a anim osidade e a am eaça .de aniquilação do outro; é, tam ­
bém , a desmontagem da cena, sem vestígio de sua ocorrência;
e, ainda, o medo e o estranham ento que tomou conta do su­
posto provocador, incápaz/ím pótente que se sentiu p ara en­
tender o que se passava e sair do cerco. No ar, portanto, está o
risco de sobrevivência, pelo desconhecimento fundam ental das
regras seguras de conduta, naquele contexto; pela força de um
código que pode eventualm ente ser tolerante, mas que, num
golpe-, p o d e tam b ém ser fa to r d e ’su m á ria exclusão do
interlocutor. ■
Os meninos é que são maus? Os m onitores teriam razão
de dificultar, no início, o trânsito do pessoal do Fique Vivo?
N unca foi esse o nosso foco, Nosso ângulo de visão abrange a
relação que o discurso encena.
Vejamos outra situação, agora com os funcionários.
C e r t a v e z , um o u t r o c o o r d e n a d o r d o P r o j e t o c o n v e r s a ­
va, no pátio, com um m onitor e este o provocou, afirmando
que várias tentativas haviam sido feitas por grupos que vinham
cle fora da instituição, com novas e interessantes propostas de
m udança, mas que nada havia de fato m udado. Instado a res­
ponder porque, (será que) isso acontecia, disse qué as pessoas
sempre chegavam lá com ideais de educação dem ocrática e
que aqueles meninos só entendiam a disciplina na base da for­
ça.- Novam ente invertendo a ordem argüidor/argüido e pros­
seguindo com seu desafio, o monitor perguntou o que o psicólogo
faria se estivesse em um a U nidade “desandada”, com jovens
agressivos atacando os mais fracos e os funcionários. Teve como
resposta que, em algumas situações, de fato, é necessária a for­
ça; mas, apenas, para contenção de emergência. E, como se
mudasse de assunto, o coordenador-psicólogo lhe pergunta sobre
o tratam ento que a FEBEM dispensa aos funcionários. De ime­
diato, ouviu que eram m uito m altratados, que havia m uita
arbitrariedade; por exemplo, costumavam acontecer promoções
de recém -adm itidos, em detrim ento de .pessoas qüe estão há
mais tem po no serviço. E, por aí foi a conversa, até que se
falasse sobre os boicotes ás .regras que, muitas vezes, os funcio­
nários fazem, como um m odo de enfraquecer quem deu ás
ordens, como um a represália. Pois bem. Pelos mesmos m oti­
vos, com freqüência, o jovem reage a imposições que não lhe
fazem sentido; pelo menos, fica mais fácil respeitar um a regra
quando se pode reconhecer sua procedência. Assim se o jovem
entendesse que, em algumas situações, o funcionário é enérgi­
co p a ra protegê-lo, talvez entendesse m elhor o funcionário...
Gomo se pode notar, os personagens são diferentes, mas
há um certo'jogo de dom ínio que se repete, nessas cenas.
Em outro setiing, a experiência concreta destaca que,
dentre as oficinas, urna das que mais despertam interesse é a
de paternidade, o que nos rem ete novamente ao estudo de 1985;
lá, já se anunciava a delicadeza do tema p a r a os meninos. E
capaz de revirar a conversa, fazer eclodir, ao vivo, sentimentos
fortes, hostis ou de desprezo. E mais: o psicólogo que coordena
a oficina tem que ser hábil p ara que os funcionários, que acom ­
panham os participantes envolvam-se, como naturalm ente o
fazem, sem contudo abafar a voz dos rapazes. E com um que
todos participem efetivamente, num incrível enlaçam ento de
presente, passado• e futuro, apresentando suas histórias e ex­
pectativas, mazelas e potências, no que diz respeito às suas
condições de filhos e de pais.
M ais ainda: num a das Unidades, produziu-se um jornal,
na oficina de leitura. H avia nele notícias do mundão e de dentro
da casa, como por exemplo entrevistas com o diretor daquela
U nidade. Curiosam ente, houve reação, am eaças mais ou m e­
nos veladas de abortar a cria e não se poder chegar até a fase
de impressão. Ao mesmo tem po, um m ural foi diretam ente

269
proibido. N a s u p e r v i s ã o , procuram os pensar porque esse re­
curso teria provocado tanto mal-estar. Com um certo, toque de
s u r p r e s a , chegam os a um a interpretação, que até agora iparece
c o n v i n c e n t e : a com unicação e o conhecim ento de fatos;sociais
c políticos a que estamos todos de algum m odo submetidos ou
que fãmbém produzim os nãcTdeve ser acessível aos que estão
com sentença de privação de liberdaqle. Nesses casos, a infor­
mação é tem ida como um explosivo. D aqueles tantos que pa­
recem espalhados p o r todos os postosj da relação. Privação de
liberdade, privação de inform ação...
: ■ i

Andando sobre os íios tensos de um código discursivo fectíado


* \
Assim procedendo, por desafiosl e tentativas de entendi­
mento, na corda tensa dos códigos fechados e das exciusões, o
Fique Vivo tem produzido seus efeitos1. Parte desses efeitos são
da o r d e m de desestabilizar as imagens de senso comüm, de
expectativa fácil. E isto, redireciona sempre a ação. U r ia des­
sas imagens reviradas (e não, revisadas) é a da força da cliente­
la de instituições como esta. : !'
A idéia que se faz desses rapazes, clientela da FÉBEM,
n ã o é única. H á os que neles vêem um a natureza torta e'm á (a
p o p u la ç ã o e m geral e grande parte dos funcionários que se
e n c a r r e g a m de sua contenção no i n f e r i o r das práticas asilares).
Há os que defendem sua condição de vítimas da estrutura socio-
e c o n o m ic a , rom antizando um á especie: de bondade congênita,
c o n s t a n t e m e n t e abalroada pelo am biente hostil '{alguns iteóri-
c o s e educadores), 1
Uma coisa, entretanto, que salta aos olhos de quem se
ocupa desse trabalho, num a perspectiva reflexivo-analitica, é a
com plexidade do jogo de forças e afetos daquiló que nom ea­
mos antes como uma relação e /o u discurso perverso. Torna-se
impossível prosseguir com visões m aniqüeístas na linha v ítim a/
agressor ou m aldade/bondade. Desse m odo, é iriegável que os
internos, como grupo institucional, exercem pressão ativa na
violência das relações: ora entre eles, ora com outros grupos da
instituição, conforme ilustramos acima.
Destacam os aí, a violência entre os próprios internos.
São freqüentes, por exemplo, as práticas, jarinstitüídas, dê“segu-
ro que retiram alguns deles do convívio com os outros, para
garantir-lhes a sobrevivência física, um a vez que teriam trans­
gredido algum dos códigos que regem sua vida em comum,
dentro da U nidade. São códigos particulares, que fazem, para
eles, o mais absoluto sentido e que, sob pena de eliminação,
devem ser cumpridos por todos. O u quase todos. Exceção feita
a alguém que tenha posição de reconhecido destaque na lide­
rança dos demais.
Por esses mesmos códigos e suas exceções, regem-se con­
dutas e discursos autorizados ou excluídos, havendo previsões
bastante ciaras de punição em caso de desobediência. Por exem­
plo: em dia de visita, é proibido circular sém camisa pela casa,
um a vez que'ninguém pode ousar insinuar-se a familiares ou
nam oradas dos outros internos. T am bém os espelhos são proi­
bidos nesses dias porque alguém poderia ficar olhando, através
deles, as visitas dos colegas.
Gom o se pode observar e como se afirmou anteriorm en­
te, nada que lem bre um a alm a sem lei... Os critérios, as finali­
dades e as contingências seguem o mais coerente m odo de
funcionam ento de um discurso: o aleatório a serviço dos inte­
resses de determ inada com unidade discursiva.
Lá tudo é forte e definitivo. V enha idc onde (de que gru­
po institucional) vier a ordem , seu destino é o cumprimento.
Em caso de conflito de interesse, vence !o (grupo) mais forte.
N ão é de se espantar, portanto, que a m arca da relação seja a
violência e que ela se reproduza num a indiscutível legitimidade.

271
Quem tem medo da Psicologia?
Está mais do que n a hora de voltarmos à pergunta-título
deste texto: (nisso tudo) o que pode a nossa vã psicologia?
A resposta foi-se construindo em dois níveis; ê, nisso, de
certa fórma, foi-se dem onstrando que, p ara além da brincadei­
ra sugerida pela palavra vã, nossa psicologia podei
U m dos níveis é mais sutil: . tudo o que aqui se escreveu
e afirmou sobré a instituição e a população-alvo do estudo de
1985 e sobre a intervenção do Fique-Vivo (os resultados, por­
tanto) guardam íntim a relação com a estratégia de pensam en­
to que atribui à psicologia um objeto e um alcance determ inados
(a que já nos referimos no decorrer do próprio texto). O outro
nível são as diferentes inserções do psicólogo, no contexto do
Projeto, tal como exercido na FEB EM.
A experiência concreta, no entanto, reservou surpresas e
apontou para outras formas de identificar a potência de nossa
área de atuação e conhecimento. E é com ela, a experiência
concreta, que pretendem os finalizar o capítulo.
P o d e m o s n o ta r q u e o lu g a r q u e a P sico lo g ia o c u p a n o
imaginário social potencializa-a de algum a m aneira. E isto se
configurou num dado m omento na FEBEM , quando o Projeto
iniciou uma de' suas atividades.
Trata-se da ocasião em que começamos o Plantão de
Aconselhamento Psicológico. Estagiários de psicologia fariam
atendim ento individualizado aos rapazes que o solicitassem.
Com o todas as novas formas de intervenção, esta foi apresen­
tada aos funcionários. E sua reação foi absolutam ente inespe­
rada. Afinal, depois das dificuldades iniciais de im plantação dos
trabalhos, os profissionais do Fique-Vivo pareciam gozar d a
confiança da casa-. O trânsito de educadores, psicólogos e ativi­
dades parecia despertar menos ânimos hostis, por parte d a q u e ­
les que tinham cómo tarefa a disciplina dos internos. Talvez,
tivessem se acostumado com o trabalho e nao mais o sentissem

272
com o um a am eaça à sua ordem . Talvez tivessem reconhecido
nele um a possibilidade de convivência pacífica, mesmo na di­
ferença de aíyos. .
O fato, no entanto, é que houve reação de oposição ao
Plantão, p o r meio de várias formas de resistência: as resistênci­
as abertas, com discussões que visavam, outra vez, dem onstrar
que isso poderia indiretam ente causãr rebeliões; resistências não
abertas, com perguntas sobre os procedim entos dos estagiários,
nessas "conversas particulares” com os meninos, sobretudo no
caso de eles falarem sobre violências e agressões feitas pelos
funcionários (o que o estagiário faria nesses casos?; denunciaria
o funcionário?); resistências em ato, com retardam entos de ações
e am eaças (não explícitas, mas caracterizáveis como) de boicote.
É impossível reproduzir, agora, o clima de' tensão que
sc viveu então. N ão cabia u m a interpretação fácil do tipo eles:;
estão se sentindo perseguidos: ela não resultaria em n a d a 'q u e fosse
produtivo p ara o jogo de forças. As vezes, nas supervisões, fica­
va claro, por certas colocações feitas, que todos se sentiam
am eaçados, inclusive os coordenadores do Fique-Vivo. A m ea­
çados cm sua conduta ctica de intolerância diante de atos dc
violência. »
C uriosam ente, inclusive, a pergunta sobre o que o esta­
giário faria não era apenas um a pergunta do funcionário. E ra
de todos os trabalhadores do Projeto, que não se sentiriam à
vontade e sequer coerentes com seus propósitos se, em nom e
do sigilo dos atendim entos, calassem sobre os desm andos de
um grupo institucional.
P arecia, então, ter-se ch eg ad o a um a en c ru z ilh a d a
intransponível, em qualquer direção. Seriam (estagiários, tra ­
balhadores do Fique-Vivo e esta supervisora, inclusive) coni­
ventes com a violência, respeitando o sigilo profissional e
evitando que os meninos que procurassem o atendim ento indi­
vidual corressem ainda mais risco de vida? Com o o leitor pode
notar, a pergunta é um paradoxo; um paradoxo que assim se

273
desdobrava: seriam esses trabalhadores coerentes com seus prin­ relações, fazer do exercício da psicologia um a ocasião cie circu­
cípios de não-tolerância p ara com certos atos qué põem em lação de um outro discurso, esse da intimidade como segredo do
risco a vida da clientela da instituição, e por isso, abririam ao um, que põe em risco o segredo da instituição. Vira-a do avesso.
discurso geral o que alguém lhes confidenciasse?; no entanto, M ostra suas costuras básicas; aquilo que lhe dá consistência e
não seria exatam ente aí que se jporiam em risco ;aquele cuja form as visíveis, pelo lado direito.
vida pretendiam garantir? , | : A psicologia, tal como reconhecida naquelas relãçõcs 7
T ínham os apenas certezaide um a coisa: essas encruzi­ v • trouxe, pelos procedim entos em que seu discurso se produz,
lhadas só se configuram quandojse leva até o limite o alcance 1 ' todo o jogo de tensão e poder na produção de subjetividade,
de um trabalho institucional, cujp objeto e alvo vão na contra­ nessas práticas de cuidado/contenção da delinqüência/violên-
m ão do objeto e alvo da instituição dom inante/contratante. cia dos (e com os) jovens infratores na FEBEM. A psicologia
N aquele m om ento, como sói acontecer quando nos de­ pôs em evidência os impasses de um a ética da intimidade; de
param os com a dim ensão paradoxal de nossas intenções e ges­ u m a ética na produção da subjetividade.
tos, parecia estar havendo engessamento ético do trabalho. Com o Se não pudesse mais, já teria podido muito, nossa psico-
sair disso? O u m elhor, como gaiiantir a vida, como ficar vivo? | logia, não?
A resposta parecia ser um a, apeijas: não paralisando. Exercen­ | C om certeza, o leitor está interessado tam bém em saber
do o básico: o m ovim ento. ; ■ ; I com o as coisas cam inharam , em meio a tantos impasses. Pois
U m esclarecim ento m aior aconteceu quando, nas super­ | bem . As discussões que pudem os fazer sobre esses aspectos
visões, pôderse falar tanto desse engessamento ético>como, tam ­ conduziram -nos a definir um prim eiro passo: prosseguir com o
bém , de um a espécie de ameaça 'da intimidade. O que isto quer jí trabalho de aconselham ento psicológico e, coin base na corn-
dizer? Q ue os trabalhos do Fique-Vivo poderiam fluir enquan­ preensão que dele estávamos tendo, naquele m omento, conti-
to não chegassem m uito perto daquilo que eles (osi grupos que {| n u a r todo o tem po pensando. Afinal, essa era (e tem sido) um a
definem, por sua ação, o objeto da instituição) entendiam como ï possibilidade (talvez a única) de Ficarmos, todos, Vivos...
o mais íntim o das vivências institucionais. Enquanto não levas­ .■t
sem cada um a dizer do que mais o incomodava,; atingia e o Ê
fizesse sofrer. • Referências bibliográficas ■
Assim, tudo indicava, o segredo do um rem etia, sem fron­
teiras, a um segredo institucional. E |a Psicologia seria :o passapor­ 1j ’ Aries, P. (1978) Hislóna social da criança e da.família. R io cle Janeiro: Zahar
te. É interessante que exatam ente a psicologia e seus recursos ! Editores.
de atendim ento individual, tão criticada como sendo alienadora, D o n ze lo t, J. (1980) A polícia das famílias. R io de Janeiro: Graal.

pouCo crítica, p o r certos discursos mais à esquerda de nossas F oucault, M (1980 [1970]) El orden dei Discurso. Barcelona: T usqucts Editores.

vanguardas, viesse a provocar esse ato disparador de tantas I ■ . (1977) Vigiar e punir. Petrópolis, RJ: V ozes. .

tensões, crises, m om entos e discursos críticos. ; ; ! _____________ . (1985) Hislóna da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro:
i G raal.
E que se pôde, por um a de suas práticas, por sua inser­
V. [ G uirad o, M . (2000) A clínica psicanalítica na sombra do discurso. São Paulo: Casa
ção dessa form a no contexto im aginário e político daquelas
; do Psicólogo. ■•

274 275
Guirado M . (1995) Psicanálise e Análise do Discurso: matrizes ínslituáonais do sujeito
psiçuico. Sao Pyuio! Sum m us.
_______ . (1987) Psicologia Institucional. São Paulo: EPU .
________ _, ( 1986) Inslüuição e relações afetivas: o vínculo com o abandono. São
Paulo: Summ us.

_____ . (1981) A Criança e a FEBEM. São Paulo: Perspectiva.


Hebe Signorini Gonçalves

Violência, essa íntima desconhecida

N a sociedade contem porânea, a vivência da violência é


tão usual e cotidiana, anunciada c discutida com tanta freqüên­
cia, que somos levados a crer que sabemos m uito sobre ela. É
tão com um que a experim entem os, na condição de vítimas
diretas ou de ouvintes de um outro mais ou m enos íntim o, que
um impulso de sobrevivência ou autopreservação nos leva a
buscar algum m ínim o de inform ação que nos perm ita enten­
der su a ló g ica, a q u ila ta r sua e x te n sã o e a v a lia r o p e rig o q u e ela
representa, reunindo recursos p ara dela nos protegerm os. Nes­
sa tarefa, temos sido auxiliados pela im prensa, que a discute à
exaustão, e ainda pela literatura especializada, que disseca suas
várias form as de expressão, traz dados de incidência c levanta
hipóteses acerca das causas que a produzem ou das conseqüên­
cias que a ela se sucedem,
Essa proxim idade forçada tende a anular a sensação de
estranham ento que até há pouco dom inava a consciência cole­
tiva. A indagação que ainda persiste ê aquela que visa a encon­
tra r a form a de m inim izar os efeitos perniciosos da violência,
ou os meios de reduzir sua escalada, que parece incontrolávcl.
Em outras palavras, tom am os o evento violento como um mal
necessário e um a condição quase indissociável da vida m oder­
na. D ito de outro m odo, banalizam os a violência. Faço alusão

277
aqui à expressão consagrada por H an n ah Arendí;,.e a tomo em
seu sentido original. P ara Arendt,i a banalização podè ser en­
tendida com o a corrupção da consciência que se sedim enta em
pequenos hábitos do cotidiano e condiciona a form a pela qual
QS-mdivíduos.-suprimindo-a_capacidade de pensar criticam en-
[ j
te, se acostum am e se acom odam ao arbítrio, à barbárie, à
covardia e ao cinismo.
A essa constatação crítica de Arendt, associo um a afir­
m ação m ais recente que nos é trazida p o r Pierre Bourdieu
(Bourdieu et al., 1999). N as ciências, e especialmente nas ciên­
cias hum anas, ensina o autor, é preciso suportar a tensão do
desconhecido e .do estranham ento, pois são eles os motores do
conhecim ento. A banalização, ao anular o estranham ento, refor­
ça a percepção im ediata, coloca jmaior relevo na experiência
vivida, e restringe nossa capacidáde de exercitar ajeom preen-
são p a ra além do que nos é dado a perceber da realidade ob­
jetiva. C om o nos ensina Pierre Bourdieu, osfatos nãofalam\ eles
são u m a evidência da realidade objetiva que o conhecim ento
precisa decifrar.
Essa é a prim eira razão pela qual quero tratar aqui não
apenas daquilo que já se sabe acerca do tem a da violência contra
a criança, m as tam bém das m uitas lacunas e indagações ainda
presentes nesse cam po. A violência contra a criança tem sido
exaustivam ente estudada nos últimos 40 anos, m as um a leitura
aten ta das pesquisas recentes m ostra interpretaçõesjdivergentes
entre os m uitos estudiosos e, mais que responder, lévanta inda­
gações que requerem investigação futura. Em suma, dispomos
de fato de m ais perguntas que jde respostas, o que deve ser
to m ad o com o um convite à m anutenção das sensações de
estranham ento que Bourdieu tanto valoriza.
Além disso, a produção dissses últimos 40 anos na área
d a violência contra a criança está ainda lim itada;a um saber
que é taxonôm ico, C om isso, quero dizer que o saber acum u­
lado até aqui nos perm ite classificar os eventos observáveis, e

278
estabelecer correlações entre eles. No. entanto, os conceitos ainda
não foram adequadam ente estabelecidos nem as relações entre
os diversos fenômenos suficientemente compreendidas (Calhoun
■m e Clark-Jones, 1998). Em conseqüência' 'dispomos de poucos
elementos que nos perm itam com preender a natureza dos even-
f| tos violentos, tanto em term os dos motivos que os desencadei-
;| . am quanto dos efeitos que eles produzem : O u seja: não é possível .
| j fazer referência a causas ou conseqüências da violência, mas
£ som ente das relações verificáveis entre certos eventos.
V! Sj!íi^eb!l!;.j.vGlasbMficatpno;!rcbrísi5tema.rçbnstniçãG;{léi.catceonasi;de,',rnodo,'a.;brE;anizar.-e1suma- •
g I
. 1 í " , v j / í j , 1'ii*k- ?’■«.„ '< „ ,r‘ ' 1 i 'ir <; ;
:^nar'Plcomjpprtamento(obsprvaYer^â:-percepçao:lei.as'exf)cneticias.".t.orTi9|iijcxempLq^pp(íeíser. ■
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i. ■ ■ AvioíçnÉiaírial‘'forniai.feaciçclita «fortemente”' ^jácrçijiià”, f não sabe’'l ''“duvidà" ou “duv\da ■

' ' *"ff^ 1' xf*i*vij^*ii srTf 1]i i 3^A< V'j -31 s 1i ik **■|ii*j. ^ ^i^ * i i1% +^ jy *
X- í J,Nj.vel '2'-^ ^ õ /ió ^ iC p jíum 'esqu^rna que .permite ttyssificar e descrever fenômenos; especiü-
| ^cogtf^sfçâÊcço^asiílpísistcrijattz^^^
■' j Y'àve^^nçiT.cia^.oiqupj}ple m ‘j!itU'tdescrcver|l^^éÍação!jçntrej:elas.>/V‘(^onorma.aiãOíOÍcrece;çxpli^/;l
'■ { H'eaçõtésL :-jmaR»pei^téfdeíinir^''.descreVçr.'çlâiramèntei:OSíevpntos';:' as.:'íituações''çy0s:'ç0mpòrta-;
| .d:;rnento^'mscWndQp^
i léan^isâyaíConformeoícpniuntGídcxatèéonasiioantenor.dO'qual'cadavurudadeje,classificada:..
' I
' - 1<>' n rj,j I.,' i 1j ' ,rrS"s,i f K - * ' *- * *Ví ' ■' • <
^lvel^3'f!C>onÇçitual:;mço^p|t'a'fiQnçeipsjdescnüv^s'quc'sãi<?!Sisternatieameme:insendos:nüma i
; >’y s t r u t u r a í a n g ç n t e , de,ouü os^çonccjtòs^^},;qúal^dçnvajn prcjjposi ç õesinaj s‘ qú menos
■■ ' ‘l’èVpy1Cfías\íA o içòntó^oirJdaí(Itaxononiia,S,'o3! conceitos rs3<^definidoslje as 'relações' çrilreycks

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^Niy^lffi^.iiíreoqbor^reprcsentâ-.ícom binaçõçs âentre.M axonomias ^eí^uadros
:Ã:;combíancluv/de3cnçãq^ie^pl1ÇâÇãose;:.pred4çSoicômbinadas‘..de :jriqdb:sistcm ^acp-:dc,íniodo‘a ,
[ [K >V 'Jí ^5- ^ >r I J »i/4 iVj itj I i4llrJfii y/r 1 111 ^ ^ ’ 1\ny“ 1 l‘‘<, * J" / t ^ ' 4 1•* I L 1 1c A j 'i ‘ , 1
l^cpmprecnder.p'comportaitioiUo.va percepção ouia expenenci^ ^ ^ r,l'> lK
**
'i^n ; í ,'-'v '‘r, V t ii|| d{'
tFontç' Çalhourve,Clark-Jones,'1598 r t '?í, <1-1 7 ’ * > -
^ ' .;Ci íu IJ1'-* L , k 'i1<M t u r1„ 1.

Essas relações ainda estão serido estudadas; cada nova


pesquisa constata correlações novas, que por um lado esclare­
cem e p o r outro problem atizam o que já se sabe. As pesquisas
provêm de cam pos diversos ~ m edicina, psicologia, assistência
social, ciência jurídica, antropologia... — o que coloca além
disso a questão da integração das diversas áreas do conheci­
m ento cuja contribuição é necessária à com preensão dos fenô­
menos da violência.

279
Grande parte dos trabalhos produzidos na área da vio­
lência contra a criança são estudos de perfil epidemiológico.
Q u a n d o a com unidade científica reco n h eceu que certos
ferimentos infligidos aos corpos das crianças tinham como ori­
gem a agressão paterna ou m aterna, rompeu-se o grande ciclo
da civilização que fez da família o centro e o núcleo da prote­
ção à criança (Gonçalves, 1999). A ruptura com essa visão idí­
lica da vida em família gerou grande esforço acadêm ico,
empreendido de início pela com unidade médica, p a ra com pre­
ender quem eram as crianças submetidas ao sofrimento no in­
terior da.fam ília, e quem eram os pais autores das agressões
que a investigação médica constatava. Estabelecer o perfil da
vítima preferencial, e o perfil do agressor mais comum, foi crucial
para traçar estratégias de intervenção que levassem ao diag­
nóstico precoce da violência em família, e às ações de caráter
preventivo que permitissem evitar a ocorrência de novos even­
tos violentos.
O conjunto dessa produção foi sem dúvida valioso p ara
dar a conhecer, a extensão do fenômeno, contribuindo ainda
p a r a e lu c id a r asp ccto s a té e n tã o d esco n h ecid o s; fo ra m esses
trabalhos que, ao detalhar as varáveis correlatas ao evento violen­
to, perm itiram estabelecer que certos eventos próprios da dinâ­
m ica fam iliar - por exemplo, o desgaste ocasionado pelas
dificuldades cotidianas tais como a separação do casal parental
ou as dificuldades fin an ceiras ~ estavam p o sitiv a m e n te
correlacionados à prática de violência contra a prole. Foram os
mesmos estudos de perfil epidemiológico, acom panhando as
vítimas de violência durante algum tem po após a constatação
do abuso, que identificaram, certos efeitos adversos de longo
prazo, que se sucediam ao evento violento e tinham nele sua
causa provável. No entanto, quando esses mesmos estudos fo­
ram reproduzidos em outras culturas, verificou-se que as ca­
racterísticas da dinâmica familiar que precipitavam a violência
eram outros (Korbin, 1988). Constatou-se tam bém que os efei-

280
tos decorrentes da violência eram variados, podendo mesmo
não haver qualquer conseqüência adversa verificável (Levett,
1994).
Ate hoje, tais diferenças não encontraram um a explica­
ção consensual. De fato, os estudos comparativos representam
hoje u m a área. im portante de investigação, pois tudo indica
que a descoberta dessas diferenças, e sua posterior elucidação,
pode lançar luz sobre aspectos ainda desconhecidos da vida
em fam ília, e dos fatores que precipitam ou im pedem a ocor­
rência de eventos violentos contra a criança.
Essa variabilidade é singular e em si m esm a elucidativa.
Ela nos ensina que a questão da violência contra a criança
encerra ainda m uitas surpresas, e se não estivermos atentos a
elas correm os o risco de analisar e agir pautados nas crenças
advindas do senso com um , que tende a reforçar escalas de
valores auto-referentes e a desconhecer a diversidade.
E m resumo, dispomos de um saber provisório, que está
sendo construído, e isso recom enda postura cuidadosa e aban­
dono das certezas. Se essa é um a dificuldade inegável, pode
p o r o u tr o la d o re p re s e n ta r um in stig an te e profícuo desafio para
aqueles que hoje se propõem a investigar, o tem a da violência
contra a criança —pois há m uito ainda a descobrir - e para
todos os que se propõem a atuar em program as de. proteção à
criança vítim a de violência — um a vez que cada caso singular
encerra surpresas e requer que tudo aquilo que sabemos seja
posto sob o crivo crítico do exame j á que a violência contra a
criança não tem causas nem conseqüências necessárias (Belsky,
1993).

281
Definições, indícios, conseqüências e jipologia

Definições

Érimpõssívêrelieger'ii m a_úniç a-deí i niçâo-p ara- o -tem a-d o


qual tratam os. A razão dessa dificuldade é que, a rigor, o con­
ceito não está ainda estabelecido. Em trabalho recente sobre o
tem a, M inayo (2002) afirma que a violência dom éstica contra
a criança e o adolescente podê ser considerada como um a das
formas de m anifestação da violência, caracterizada como aquela
que é exercida contra a criança na esfera privada. Essa form a
estaria, segundo a autora, associada a outras m odalidades de
violência, com o a violência estrutural - entendida còm o aquela
que incide sobre a condição de vida das crianças e adolescentes — e a
delinqüência, caracterizada com o a form a de violência que tem
com o autores crianças e jovens transgressores. 1
N o entender de M aria Cecília M inayo, a violência é um
fenôm eno polissêmico e complexo que pode manifestar-se de
form as as m ais variadas; m as erri vários textos a aútora subli­
n h a que essas form as são conexas; entre si e que na rnedida em
que se realim entam m utuam ente cada um a delas contribui para
u m a escalada global da violênciá, com prejuízos p á ra a saúde
do indivíduo e p a ra a saúde coletiva. !
O utros autores, em bora reconheçam a conexão entre as
várias m odalidades de violência,j defendem que a ívitimização
da criança é um tipo específico; e singular de violência. Por
exemplo, Azevedo (2002) afirm a que a violência estrutural pode
ser com preendida com o um a form a de violência entre classes
sociais, enquanto a violência dom éstica contra a criança é um a
violência intraclasses. T om ando: esse recorte como pressupos­
to, a autora propõe que o com bate a um e outro tipo deve
sustentar-se em diretrizes políticas distintas, assim como em
enquadres m etodológicos diversos entre si. N a m esm a linha,
G u erra (1998).sustenta que a violência dom éstica;tem relação
com a.yiolência estrutural, m as agrega outros determ inantes
além dos sociais; a favor dessa argum entação, a autora lem bra
que a violência dom éstica perm eia todas as classes sociais e é,
em sua natureza, interpessoal. ;
A discussão retratad a acim a, ainda que de form a breve
e resumidã7Terve_para~ilustrar-algumas-das-gr-andes-dific-ulda—
des em definir o : fenôm eno do qual tratam os. Com o o leitor
pode perceber fa.cilmente, há um a enorm e diferença entre as
posições sum ariadas acima. Se não se excluem, elas ao menos
privilegiam estratégias diversas de enfrentam ento. D a prim ei­
ra, deriva um a linha de estudos que coloca ênfase na análise
dos determ inantes socioculturais da violência, e destaca a im­
portância da prevenção à violência ancorada no combate às
desigualdades sociais e aos valores çulturais que endossam ou
sustentam práticas violentas no interior da família. D a segun­
da, depreende-se um a ênfase nos aspectos culturais, interpessoais
e subjetivos, e um a estratégia de intervenção que se apóia so­
bretudo no sujeito.
As divergências de conceituação não se esgotam aí. Dialo­
gando com autores de fora do país, Azevedo (1989) levantou
um a polêm ica que ainda p erco rre:a discussão teórica: o tema
da intencionalidade como diferencial para considerar ou não
um a to c o m o violento. Vejamos co m o essa questão se coloca
nos casos de abuso íisico contra a çriança. Ainda nos anos 60,
K em pe e Helfer propunham definir o abuso como um dano não
acidental, resultante de atos de ação ou omissão dos pais ou res­
p o n sá v eis. N a d é c a d a cle 70, D av id Gil assum e que a
intencionalidade é central na definição do abuso, mas argu­
m enta que ela .nem sempre é clara, e por vezes a violência é
determ inada por elementos intencionais que permanecem inconscientes.
Nos anos 80, G arbarino discute esse argum ento, e levanta os
problem as que aquelas “razões'insconscientes” podem trazer
tanto em termos de amplitude quanto de operacionalidade: para
este últim o autor, a definição de Gil leva a que todo dano seja

283
tratado como produto de um a ação abusiva, inclusive os aci­
dentais, o que pode colocar a necessidade potencial de intervir
em todo e qualquer caso em que seja identificado ferimento na
criança. A definição adotada oficialmente no Brasil, como ve­
remos a seguir, adota a intencionalidade como critério para
qualificar o ato como violento.
O utro aspecto controverso das definições diz respeito ao
grau de com prom etim ento, físico ou psíquico, que decorre do
ato. Aqui, a polêmica m ais im portante pode ser traduzida na
célebre pergunta sobre se um tapa pode ou não ser considera­
do como um ato de violência. E nquanto alguns autores consi­
deram que qualquer agressão ao corpo da criança deve ser
definida e abordada como um ato abusivo, outros acreditam
que um tapa e um espancam ento são fenômenos diversos na
sua natureza, e por isso cada um deles induz ações tam bém
diversas entre si. Por exemplo, Emery e Laumann-Billings (1998)
propõem distinguir entre duas formas de violência em família:
(1) a leve, ou m oderada, que designam como “m aus-tratos em
família”, e (2) a grave, p ara a qual reservam, a classificação de
“v io lên cia fa m ilia r” . O p rim e iro tip o e n g lo b a risco o u d a n o
físico ou sexual mínimo, enquanto que o segundo abarca injú­
rias físicas graves, traum as psicológicos profundos ou violação
sexual. Os próprios autores argum entam que essa distinção
envolve certo grau de arbitrariedade, mas tem alto valor ope­
racional; com base nela, os profissionais teriam mais segurança
para optar por apoiar a família e trabalhar em prol da m elhoria
das relações entre pais e filhos, ou por afastar tem porária ou
definitivam ente d a casa pais excessivam ente violentos ou
abusivos. Símons et ai (1991) tam bém já apresentaram a p ro ­
posta de criar subcategorias de violência, conforme sua gravi­
dade, cada um a das quais abrindo um elenco de alternativas
de ação.
H á ainda um a dificuldade adicional que m erece ser no­
m eada. Com o veremos logo a seguir, as definições incorporam
a referência direta ao dano que a violência produz na criança.
O corre que esse dano só pode ser verificado a posteriori, fre­
qüentem ente transcorrido algum prazo após o evento violento;
além disso os efeitos, da violência sobre o corpo ou a psique da
criança variam em larga escala, tanto em natureza quanto em
intensidade. Caímos portanto num a circularidade. Com o re­
sultado, term inam os por definir o ato como "violento” antes e
independente de qualquer efeito verificável, o que term ina ge­
rando problem as tanto p a ra a pesquisa da violência quanto
p ara a proteção da criança.
Em outro texto (Gonçalves, 1999), j á citei um trabalho
que considero bastante elucidativo. Trata-se de um estudo con­
duzido num a pequena aldeia africana, cm que a iniciação se­
xual de m eninas de cinco ou seis anos de idade é feita por seus
irm ãos, pais ou parentes próximos. Com o faz parte de ritos de
iniciação seculares, essa prática não é vista como violenta nem
produz qualquer dano às m eninas a ela submetidas. Ao con-
trário, é parte im portante de sua identidade e inserção na es­
trutura tribal, e portanto seus efeitos não são danosos, mas
benéficos.- C ham aríam os a isso de violência contra a criança?
Essas dificuldades são próprias do estágio do conheci­
m ento produzido, como já vimos fortemente im pregnado da
constatação empírica. Q uero convidar o leitor a m anter em
m ente tais dificuldades e limites na leitura dos tópicos a seguir,
em que passo a tratar daquilo que já se sabe no cam po da
violência contra a criança.

Indícios
A im portância de reconhecer a violência a partir de si­
nais e indícios deriva de um a situação singular: todo o profissi­
onal que se disponha a trabalhar na área deve estar preparado
p ara lidar com um problem a que não só não é anunciado como

285
eventualm ente pode ser negado, ou escamoteado, pela criança
e pela fam ília. A condenação mora) da violência, e em particu­
lar a condenação m oral da violência de pais contrai filhos, faz
com que o ato cotidiano que implica risco de ser submetido ao
crivo m oral seja sonegado à consciência de seu autor e mais
ainda ao conhecim ento do profissional que o interroga.
Ambroise T ardieu, em 1860, e H enry Kem pe,1em 1961,1
relataram que após exam inarem los corpos m ortos i ou feridos
de crianças dirigiam-se aos pais para buscar entender como o
ferim ento havia sido produzido; as respostas que recebiam dos
pais eram contraditórias entre si, íincoerentes com o dano ob­
servado, e às vezes claram ente fantasiosas. Isso levou-os a reco­
m endar aos m édicos que privilegiassem a evidênpia física e
desconfiassem do discurso, dos pais, que podem ocultar dados,
esconder motivações e com isso com prom eter a recuperação e
a proteção da criança. Desde então, firmou-se a.preocupação,
em identificar sinais e sintomas de m odo a que o diagnóstico
da violência possa ser estabelecido independente da .explicação
dos' pais ou responsáveis. i i
A literatura disponível lista um a série de efeitos que fo­
ram observados em crianças vítimas de violência; esses mesmo
efeitos têm sido tom ados como jindícios, e forami elevados à
categoria de sintomas, que podem auxiliar o diagnóstico retro­
ativo da violência. O u seja: como se sabe que várias crianças
reagiram à violência com os sintomas listados abaixo, o profis­
sional deve suspeitar que ao sintom a corresponda a mesma cau­
sa, e deve por isso investigar se a violência ocorreu na história
de vida passada da criança.
Os textos que abordam sináis e indícios de violência contra
a criança fazem dois alertas: emj prim eiro lugar, recom endam
ao profissiona.1 que se detenha no exame cuidadoso e circuns­
tanciado do caso, sempre que identificar os sinaià e sintomas

1 Para essa hisLÓria, consultar G onçalves, 1999.

286
listados abaixo; em segundo lugar, que o profissional esteja atento
p a ra o fato de que nenhum desses sinais é indício seguro de
que a violência ocorreu.

, Sinais'quçirccofnendaml.inyestigáíão i' y' Hw *-


.;Disc repâficia ,
• .versos Tclatós;
.^/'Dçmorâ^e^'^^c^r atchd^çnto/^A'e^eriênÜa^mdica-'qüe,guando p',dánõ'é;|prbdCizi<ioi,
7 p c là ;;v io lê n p a ;^ ',r !M j^ i^ y c is Ír<e|]AC^xn.. .‘j,. ..3 1 iVj/ivi.iV;:'
■3 ■;Mistó ria|-.-rppc tiHã ..ciéïaçi(iéntcs>ioiivcyidenaas .■d e itrà iïm ^ fre ^
iVde^cnÿoiyij.Tiiwtô'iïis^

é.i-FraturaS'cm'cri^n^s'mcnorcs'de/iSânqsi.mercccmhnvestieaçao'j.naOi'CiCÇmumouc'cnanT;;
;>ças inovas, ijasuaimente J50UC0 ^xpostjW/^aqaentcsÿmpprt^n^es^oiram ir a ^ i^ jim^çrcantesjíi;'
secoxndoló cônïtecimèntô'méyico.^àl^ns'tiposkHe-ÎrâtûraT^àciéntifK^
^ S Q ^ a o s^ ro ^ e^ k n a a ^
'■:7:' Doencas- cromcas,ysem>tratamentOi-podem'jseE«inqiçio':dcÿviolenciiiJ?e:-':os;:pais^tcmi:Cornoà .•
. ;U - -■::i--^ i .\.>y.-s-tí/,
■■'íDrover iO-tratamento':e íse;f oram ®eviaamente.iQnentaaos iquaiuoía <sua^mportanciaíj>:ÍHfiKí ••;.

HO A u s e n c i | ^ ^ n t a ^ ^ i c d ^ m ajçnan^a, autudç di m t e ^ ó ^ p | ^ . o g r è ^ | g r a s ; ^ g

_
■?ausenciardé;rcrò^sta"áõícSõra:òurao5ofnmentO;:da:Críaiiça-sâó"''sih^s7déricoinórúínèúmentQ'^
^ v..__ _ J S i4 r ~
.■Fonte:

É por essa razão que a suspeita de violência deve ser


tratada com parcim ônia, e a investigação de sua ocorrência
deve prescindir de qualquer postura prévia condenatória.

^tçí:nppSj|qüê5jjap{ce^a|^

■: tempo; eidetlara^scivconsqraníido.- .• Explica que,:sabp.\quevxes$&9 '■coi$as;acont_,ecem


* y í ;k ? ï : - v * ' f í í £ £ i-’ - . l i i ! ' ' i r a ; T< * v •: í Í í j í T í 1k í i f * ; ' •? .■ Æ t à i t ^ i r í . f f f r s w V j í v ? í -m m , • /■ - v
#a^nlha.ín.aa;icpnyive|^omv;outo v;m^pjres^
^cMMããvfeõm(âé”^atóqü^3íim&.^üs^^
ivErcme^ppstenòres^çmunarMpç^i^rpvan^^
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287
Conseqüências

A violência em família pode acarretar uma enorm e gama


dc conseqüências para a criança, e esses efeitos variam do físi­
co - ferimentos externos ou internos —ao psíquico ~ distúrbios
mais ou menos graves que podem envolver agressividade, ansi­
edade ou depressão. Como já vimos, cenos eventos que não
hesitamos cm chamar violentos podem não produzir qualquer
conseqüência para a criança,'
Muitos dos efeitos da violência nos são dados a conhecer
com base cm estudos longitudinais; as vítimas de um dado ato
de violência são identificadas e acompanhadas durante largo
tempo, ao longo do qual são observadas suas reações, tentando
ao mesmo tempo discriminar quais delas podem scr atribuídas
ao evento original. Comparativamente, são acom panhadas
outras crianças que não sofreram a mesma violência, para que
possam ser estudadas diferenças e semelhanças entre os- dois
grupos. Como o leitor pode deduzir, os efeitos da violência são
identificados a posteriori, e é comum que um tempo longo (anoss
às vezes) transcorra entre a violência original c o aparecimento
de um efeito observável. Pode ser difícil estabelecer a relação
entre dois fatos distantes entre si na cadeia temporal, até por­
que durante esse intervalo de tempo á criança seguiu o curso
cie seu desenvolvimento, com mudanças importantes ná dinâ­
mica de vida, e pode haver presenciado transformações signifi­
cativas na família ou em seu entorno social mais próximo.
A dificuldade em correlacionar causa e efeito existe até
mesmo quando se trata de eventos fatais. Estudos nacionais c
internacionais (por exemplo, Mello Jorge, Gawryszewski e
Latorre, 1997) são unânimes em afirmar que o número de mortes
qüe têm comò causa a violência são provavelmente subestima­
dos, pois nem sempre é possível estabelecer com segurança a
circunstância precisa do evento que produziu um desfecho fa-

238
tal. O leitor já deve ter observado que as estatísticas disponí­
veis m ostram o crescim ento em todo ó m undo dos índices cle
m ortalidade p ó rc a u sa s externas; deve observar, contudo, que
a denom inação "causas externas” engloba não só os eventos
intencionalm ente produzidos - com um ente relacionados à vio­
lência —como tam bém os eventos acidentais, não intencionais.
A dificuldade em distinguir entre am bos é um em pecilho p ara
determ inar o grau em que os índices de m ortalidade por cau­
sas externas pode ser atribuído à violência. Essa discussão se
aplica aos índices de m ortalidade e é ainda mais im portante na
determ inação dos índices de m orbidade (casos nao fatais).
E m b o ra sejá dlflCll t^;G^u^^ÊOTteN^-'é;.umaidenornináçâ{)vádotada*;pcláv
determ inar o im pacto pre-
. ]<v . . .fzàa.áÇ.^tu^!za^4'el™^ritc^í€ntàJJda^Or§^nlzação•■
CISO q u e â v io lê n c ia vai p r o - : tuídiáLl dà:Saúde./A' e^ressão dc?ignaamv conjunto.
duzir sobre u m a criança, d«; causas/de origem externa aó.coipo,do indi\idua,
. i T i i ^ciué^pÒdcrh produzirjdoençaVou^mdrtCyisejà lpor/áção' '
sabe-se que ele depende de .4njfeífàòn&^)qr.èx^
um conjunto de circunstân-
Tt , ;'viGID:".ç^feferên’cià' internacional' ria; classificação.'dé/áo-'.'
cias. U m levantam ento pu-
blicado p o r E m ery e L au- 'Údaíde) oiiVriaò^ CMÍ1«iic«_^dè;^òrbida l ^ ;'v1
mann-Billings (1998) m ostra que esses efeitos dependem
(a) da p ró p ria n atureza da violência: um a agressão fisica p ro ­
duz efeitos específicos que diferem daqueles gerados pela '■
agressão sexual; essa especificidade será tratad a adiante;
(b) de características individuais d a criança, que pré-existem à
violência; por exemplo, um elevado grau de auto-estima tende
a m inim izar ou m esm o a neutralizar os efeitos adversos da
violência;
(c) da n atureza da relação entre agressor e vítima; com o regra,
sabe-se que á violência praticada p o r um desconhecido, ou
p o r um parente distante, produz m enos dano p a ra a crian­
ça que aquela cujo autor é um parente próxim o; a proxim i­
dade do vínculo deve ser levada em conta;
(d) da resposta social à violência sofrida: o auxílio de profissio­
nais especializados ou a intervenção dos operadores do di-

289
reito são fatores que contribuem p ara reduzir o dano oriun­
do da violência; ; ;
(e) do apoio que a criança recebe ;por parte dos outros signifi­
cativos, em especial no núcleo jfamiliar; a reaçãoí do núcleo
f?Tfhiliar~aos-eventos-violentosJimpacta_ta m b é m ia criança^
m inim izando ou exacerbando o efeito do ato violento, con­
form e a fam ília m an ten h a a capacidade de suportar a cri­
ança ou se desorganize em raízão dos eventos dos quais.tom a
cons/ciência.
j
Em sum a, a reação da criança depende nâq só da vio­
lência per si m as tam bém , e em jgrande m edida, do processo
que tem curso após o evento violento.

Tipologia
i
Violência iísica
A violência física pode serjdefmida como aios violentos com
uso da força jísica deforma intencionalnão acidental, praticada por pais,
responsáveis, familiares ou pessoas próximas da criança ou dó adolescente,
com o objetivo de ferir, lesar ou destruir d vítima, deixando iou não marcas
evidentes em seu-corpo {Brasil, 2002). ;
A definição integra docum ento publicado pelo Governo
federal. Com base nela, som ente serão considerados abusivos
os atos intencionais com propósito lesivo p ara a criança. Des­
cartam -se portanto os danos ocasionados por acidentes, assim
como aqueles cuja finalidade pjode ser considerada educativa.
Esse último aspecto levanta um a polêm ica que não pode ser
ignorada. s
A punição com finalidade educativa institucionalizou-se
na Suméria prim itiva, foi durante muito tem po aceita nas es­
colas americanas, adm itida àtéjrecentem ente nas: escolas ingle­
sas (Guerra, 1985) e ainda é adotada por força de cultura em

290
m uitas famílias em todo o m undo. Historiadores admitem os
castigos severos da Antigüidade foram sendo progressivamente
abandonados, e hoje a punição física, quando adm itida, é mais
b ran d a ou sofre controle mais estrito (Ariès, 1978; DeM ause,
1982). N o Brasil, a punição corporal cóm propósitos educati­
vos é amplãmentê~diss'eminada-e-tem-s6u-uso~iustificadg pela
cultura.
J á vimos que o dano que a violência causa à criança
depende da reação social e fam iliar que se segue ao ato dito
violento; já vimos tam bém que a violência se defme, inclusive,
pelo dano que a ela se sucede. Lazerle (1996) fez um amplo
levantam ento da literatura acerca dos'efeitos da punição cor­
poral com finalidade educativa; segundo ele, 40% das pesqui­
sas m ostram que a punição corporal não produz qualquer dano
à criança; mais que isso, 26% dos trabalhos indicam efeitos
benéficos dessa m odalidade punitiva, entre os quais a introjeção
de valores da cultura. D ay et al (1998) m ostraram ainda que a
qualidade do vínculo entre pais e filhos, e a extensão em que o
casal adota outras técnicas autoritárias de disciplinamento, tem
grande relação com os efeitos que a violência provoca. Esses
dados m ostram que é o contexto social e cultural em que a
punição ocorre, e não a punição per si, que determ ina o dano.
P ara B aum rid (1996), isso indica qué há muito ainda a pensar
nesse cam po.
Levar em conta determ inantes culturais parece essencial
no Brasil, onde a punição corporal é aceita e largam ente p ra­
ticada. A paternidade, e as form as de seu exercício, não nas­
cem nem se esgotam na família nuclear. Antes de sermos filhos
de .nossos pais, somos filhos da construção cultural que os an­
tecedeu, que inform a os modos pelos quais somos educados e
que delim ita opções concretas sobre métodos educativos que
são postos em prática. N enhum a fam ília inventa o sistema de
parentesco e nenhum indivíduo é soberano para fundar regras
ou operá-las (Rébori, 1995). É p o r isso que o trato desse tem a

291
tangencia a questão da identidade cultural, aspecto que não
deve ser relevado.. . -
No Brasil, a autoridade e a hierarquia são fortemente
pautadas na violência, o que contribui para que o uso da puni­
ção corporal com finalidade educativa seja disseminado e co­
mum. É um a ilusão, no entanto, achar que a própria cultura,
não controle seus excessos. J á .foi verificado (Gonçalves, 2001)'
que a punição corporal é aceita apenas dentro de rígidos limi­
tes. Q uando praticada segundo essas regras, cia é endossada
pelo social e por isso seus efeitos são diferentes (e menos dano­
sos) daqueles provocados pela violência severa, que a cultura
condena.
O peso do contexto cultural será tanto m enor quanto
m aior for o dano físico que a violência .provoca. Nas formas
mais severas o contexto tem m enor influencia, e isso parece
óbvio quando pensamos nas formas extremas em que a violên­
cia física leva à morte. Levar em conta esse continuum parece no
entanto sumam ente im portante, pois é ele que recom enda evi-
tár que um a mesma norm a oriente indiscriminadamente as ações
de proteção à criança.

Violência sexual
A conceituação de violência sexual tem estreita relação
com o feminismo. Nos movimentos feministas, o abuso sexual
de mulheres e crianças é concebido como um crescimento dos
valores dom inantes e possessivos do hom em sobre a m ulher ao
longo da história (Bottoms, 1993). De fato, em bora o abuso
sexual atinja crianças de ambos os sexos, as m eninas e as jo ­
vens adolescentes são sem dúvida suas vítimas preferenciais,
enquanto seus autores são quase sempre do sexo masculino
(Berkowitz ei a l , 1994; Silva ,e Dachelet, 1994). H á aí portanto
um. forte viés sexista. N o'entanto, apesar do em penho do femi­
nismo na denúncia da violência sexual contra mulheres e mç-

292
ninas, o abuso sexual contra crianças só foi considerado um
problem a de grande m agnitude nos anos 80 (Bottoms, 1993).
A violência sexual
c o n siste e m to d o a to o u j o g o se x u a l, r e la ç ã o h e te r o s s e x u a l
o u h o m o s s e x u a l c u jo a g r esso r e stá e m e stá g io d e d e s e n v o l­
v im e n to p s ic o s s e x u a l m a is a d ia n ta d o q u e a c r ia n ç a o u o
a d o le s c e n te . T e m p o r in te n ç ã o e stim u lá -la s e x u a lm e n te o u
' u tiliz á -la p a r a o b te r sa tisfa ç ã o se x u a l. A p r e s e n ta -s e s o b a
fo r m a d e p r á tica s e r ó tic a s e se x u a is im p o s ta s à c r ia n ç a o u
a o a d o le s c e n te p e la v io lê n c ia física, a m e a ç a s o u in d u ç ã o
de su a v o n ta d e . E sse fe n ô m e n o v io le n to p o d e v a r ia r d e sd e
a to s c m q u e n ã o se p r o d u z o c o n ta to s e x u a l (v o y e r ism o ,
e x ib ic io n is m o , p r o d u ç ã o d e fo to s), até d ife r e n te s tip o s d e
a ç õ e s q u e in c lu e m c o n ta to se x u a l se m o u c o m p e n e tr a ç ã o .
E n g lo b a a in d a a s itu a ç ã o d è e x p lo r a ç ã o s e x u a l v isa n d o
lu cros c o m o c o c a so d a p r o stitu iç ã o e d a p o r n o g r a fia (Brasil,
2002 ). . *

A definição acim a perm ite circunscrever algumas ques­


tões que m erecem discussão. Em prim eiro lugar, convém ob­
servar que os atos d esig n a d o s como abuso ou v io lê n c ia sexual
podem ou não envolver contato físico com a criança; por isso,
não se deve esperar que essa m odalidade de violência apresen­
te, necessariamente, um sinal corporal visível. Esse alerta pare­
ce im portante porque a concepção de violência sexual firmou-se
historicam ente com base em indícios físicos: a rutura himenal,
ou mesmo as m arcas corporais de defesa, foram os primeiros
indícios que a sociedade aceitou como prova inconteste da vi­
olência sexual (Vigarello, 1998). Permanece ainda, na consci­
ência contem porânea, um a m entalidade de buscar na evidência
corporal a prova do abuso. No entanto, essas só serão encon­
tradas quando houve penetração ou se a violência sexual foi
praticada com o uso da força física (mais freqüente em' casos
dc abuso - extrafamilíar). M ais com um e que o abuso sexual
contra a criança tome a form a de m anipulação ou sexo oral
(Craissati e McClurg,. 1996), ou ocorra no interior de um jogo

293
de sedução gradual, principalm ente quando acontece dentro
da família (Berkowitz et al, 1994). Nesses casos, as m arcas são
m enos visíveis e, do ponto de vista da produção de provas da
ocorrência do abuso, exigência com um nos aparelhos judiciá­
rios, entre esse é um aspecto que deve ser levado em conta.
O u tra questão que m erece destaque é a referência à di-
iere n ça de estágios de desenvolvimentp entre a criança eío autor
da violência sexual. Esse aspecto parece ter grande im portân­
cia pois é ele que perm ite distinguir a violência dos jogos sexu­
ais entre crianças ou entre adolescentes.
Sabe-se que os jogos sexuais fazem parte do desenvolvi-
. m ento da criança, e é tam bém com base neles que a sexualida­
de busca sua expressão mais sadia. Por outro lado,'a consciência
contem porânea condena com veemência toda e qualquer for-
. m a de violência sexual contra a criança. O senso com um con­
sidera essa a form a m ais grave de abuso (Gonçalves, 2001); a
literatura registra que o abuso sexual produz um a sensação de
incôm odo na m aioria das pessoas, e >há autores que defendem
ser esta a form a extrem a da violência contra a criança (Ama-
zarray e Koller, 1998). Essa convergência entre o senso co­
m um e a academ ia, fortalecida além do mais pelas inúm eras
cam panhas que têm sido veiculadas na mídia em todo o m un­
do, contribuem p ara consolidar a percepção de que a violência
sexual contra a criança deve ser alvo de forte condenação moral.
No rastro dessa percepção, podem-se produzir certos
excessos que term inam colocando emjfoco os jogos sexuais entre
iguais. Não falo aqui em tese: de fato, já testem unhei .“suspei­
tas de violência sexual” levantadas p o r pais assustados por des­
cobrirem suas filhas participando de íjogos sexuais com colegas
do sexo oposto, e da m esm a idade, i
Levando esses limites em conta, Finkelhor (1994) reco­
m enda que só seja nom eado-com oj abuso sexual o ato cujos
protagonistas têm entre si um a diferença de 5 anos (quando a
’ vítim a é m enor que 12), ou de 10 anos (se a vítima tiver entre

294
13 e 16 anos). O critério de idade, contudo,-não deve ignorar
o uso da força física ou a exploração de autoridade. Friedm an
(1990) tende a desprezar a idade p ara conceder m aior relevo à
habilidade da vítima em consentir no ato; para ele, isso perm i­
tiria um a análise mais com pleta da situação por parte tanto
das autoridades jurídicas quantõ^õs'té'cnicos'envolvidos-nocaso.
H iperatividade ou retraim ento; baixa auto estima; difi­
culdades de relacionam ento com outras crianças ou com adul­
tos, acom panhada de reações de medo, fobia ;ou vergonha; culpa,
depressão, ansiedade e outros transtornos afetivos; distorção da
im agem corporal; enurese e /o u encoprese; am adurecim ento
sexual precoce, ou m asturbação compulsiva; gravidez e tenta­
tivas de suicídio têm sido associados à violência sexual (Berkowitz
et al, 1994; Banyard e Williams, 1996; Bottoms, 1993).
D e novo, essas reações estão sujeitas a certas condições
de contexto. Se o abuso é acom panhado de violência física, as
conseqüências de curto prazo tendem a ser mais traum áticas,
com ansiedade, depressão e distúrbios do sono (Banyard e
Williams, 1996). H á estudos que indicam que, nestes casos, a
■vivência traum ática da violência tem mais impacto que o cará­
ter sexual da agressão (Vieira, 1990).
A reação da criança vai depender ainda da duração do
abuso (um episódio único é menos traum ático que o abuso
continuado), da presença ou ausência de figuras de apoio para
a criança (familiares., profissionais oú amigos) e da proxim ida­
de do vínculo entre a criança e aquele que a agrediu (agravan­
do a vivência de traição de confiança) (Amazarray e Koller,
1998; Banyard e Williams, 1996).
D uração, apoio e vínculo sãò temas que colocam em
xeque o papel dos adultos significativos, em particular dos
m em bros da família, Não é raro que o abuso sexual intrafamiliar
perdure p o r certo tem po, e seja praticado por adultos com os
quais a criança m antém importante relação afetiva. A isso, soma-
se a dificuldade da família em m anter íntegras suas funções,

295
inclusive sua capacidade de apoiar e proteger a criança. P ara
que se tenha- um a idéia dessa dificuldade, basta constatar que
pouquíssimas denúncias chegam aos tribunais, e a principal razão
para isso é a pressão contrária exercida peia própria família
(Silva e Dachelet, 1994). A ação policial-repressiva ao abuso
sexual intrafamiliar conta com forte oposição do núcleo fami­
liar, o que é em geral atribuído ao. receio de perder o esteio
econômico (se o agressor é o provedor da casa) ou m esm o à
dificuldade em realizar as rupturas afetivas que a revelação do
abuso impõe. Por todas essas razões, Furniss (1993) recom enda
que tanto a criança quanto a família sejam alvo de ação profis­
sional especializada, como forma de m inimizar os sentimentos
de desam paro, perda de controle, autocensura e culpa que
acometem á todos os mem bros quando se revela o abuso se­
xual familiar.
Finalmente, investigações recentes têm m ostrado que a
idade da criança à época do abuso é outro fator que influencia
suas reações. Para um a criança muito nova, o contato sexual
pode ser desagradável ou mesmo, assustador; por outro lado,
cia n ã o a lc a n ç a o p le n o significado sex u al do ato (B a n y a rd e
Williams, 1996), e desconhece por completo sua condenação
moral; essa condenação - que acentua o valor transgressor da
violência sexual e' contribui p ara acentuar a .culpa e a vergo­
nha - só pode ser atribuído pela sociedade c pela família.

Negligência
O termo negligência
d e sig n a as o m issõ e s d o s p a is o u d e o u tr o s r e s p o n s á v e is (in ­
clusive institucionais) p e la crian ça e p e lo a d o le sc e n te , q u a n d o
d e ix a m d e p r o v e r as n e c e s s id a d e s b á sic a s p a r a se u d e s e n ­
v o l v i m e n t o físico, e m o c io n a l c so c ia l. O a b a n d o n o é c o n ­
sid e r a d o u m a fo r m a e x tr e m a de n e g lig ê n c ia . A n e g lig ê n c ia
• sig n ifica a o m issã o d e c u id a d o s b á sic o s c o m o a p r iv a ç ã o
d e m e d ic a m e n to s; a fa lta d e a te n d im e n to a o s c u id a d o s n e -

296
c e s sá r io s c o m a sa ú d e ; a a u s ê n c ia d c p r o t e ç ã o c o n tr a as
in c le m c n c ia s d o m e io c o m o o frio e o calor; o n ã o p r o v i­
m e n t o d e e stím u lo s e c o n d iç õ e s p a r a a fr e q ü ê n c ia à c s c o la
(B rasil, 2 0 0 2 ).

A definição acima faz ressaltar um a dúvida essencial;


como diferenciar entre negligência e pobreza? A negligência se
aproxim a da pobreza e da desigualdade social, e isso pode haver
contribuído p ara que m uito tem po haja transcorrido até que se
iniciassem os estudos sobre ela. Em 1984, W olock e Horowitz
reclam avam da ausência de estudos sobre negligência em terri­
tório am ericano. Em 1994, Dubowitz afirmava que a negligên­
cia recebia menos atenção que qualquer outro tipo de violência,
em bora pudesse ser tão ou mais danosa p ara a criança. G uerra
c Lem e (s/d) sustentam que o fenôm eno da negligência impli­
ca q u e se ponha na mesa a polêm ica discussão acerca da distri- ?■
buição de renda, e a distribuição dc recursos na área social. ;
Barreto Phebo e Suarez O jeda (1996) sugerem um re- •
corte p a ra essa diferenciação: é preciso observar, dizem os au ­
tores, o grau de privação em todos os m em bros da família. Se
a. p r iv a ç ã o —afetiva ou m aterial - acom ete toda a prole, assim
como os pais ou responsáveis, não se trata de violência e sim „
de um com prom etim ento estrutural da dinâm ica da família; se
ao contrário ela atinge apenas a um dos filhos ou unicam ente
a prole, então sim podem os falar em negligência.
O investim ento na inserção social da família, e no forta­
lecim ento dos vínculos comunitários, tem sido defendido como
um a estratégia básica de com bate à violência doméstica contra
a criança. N o caso da negligência, essa parece ser um a ação
fundam ental. Coohey (1996) com parou os vínculos sociais de
famílias negligentes e não negligentes; ela verificou que essas
famílias não diferem nem em termos de m obilidade social nem
em term os de acesso a recursos sociais. N o entanto, as famílias
negligentes percebem seu entorno social como mais pobre em
term os de vínculos afetivos, e referem-se constantem ente à so-

297
lidão a que são' relegadas pela com unidade. A autora supõe
que esse sentim ento de exclusão jsocial, que parece subjetivo
m ais que objetivo, possa resultar 'em apatia, imobilismo e fra­
casso no provim ento das necessidades da criança, desencadeando
Qu-agravando-a-negligência-em_família._P.or_isso, recom enda
que a inserção em redes sociais 'de apoio vise nãó apenas o
fortalecim ento do auxílio efetivo e concreto ~ com ia oferta de
recursos m ateriais —m as tam bém le sobretudo o fortalecim ento
dos vínculos afetivos entre a família e a com unidade.
E m b o ra o Brasil não dispo’n h a de dados estatísticos em
escala nacional, levantam entos pontuais indicam que a negli­
gência é um dos tipos de violência mais detectados nos diversos
serviços estruturados p a ra lidar com a violência contra a crian­
ça. H á poucos estudos que avaliem as razões p a rá tal. U m a
hipótese a ser levantada é que a desigualdade social, que vem
crescendo ao longo da últim a défcada, possa efetivamente h a ­
ver colaborado p a ra que o provim ento das necessidades das
crianças ten h a se tornado m ais difícil, acentuando 'suas neces­
sidades insatisfeitas; nessa hipótese, os índices elevados de ne­
gligência poderiam estar acobertando a dificuldade da distinção
conceituai e prática entre violência e pobreza. O u tra hipótese
é que a vida nas com unidades, tradicionalm ente pautadas pela
solidariedade social e fortem ente ancoradas nas relações de
vizinhança (Aragão, 1983), esteja! sofrendo em razão da ru p tu ­
ra do tecido social que decorre inclusive da escalada da crimi­
nalidade e da delinqüência. As jhipóteses não se lexcluem, e
m erecem verificação.
I
Violência psicológica ;
I
A violência psicológica j |
c o n s titu i to d a fo r m a d e r e je iç ã o , d e p r e c ia ç ã o 1, d is c r im in a ­
ç ã o , d e sr e sp e ito , c o b r a n ç a s e x a g e r a d a s, p u n iç õ e s h u m ilh a n ­
te s e u d liz a ç â o d a c r ia n ç a o u d o a d o le s c e n te p a r a a te n d e r
às n e c e s s id a d e s p s íq u ic a s d o s a d u lto s. T o d a s :essa s fo r m a s

298 !
de m a u s-tra to s psicológicos causam d a n o ao desenvolvi­
m e n to è ao crescim ento biopsicossocial d a cria n ça e do
adolescente, p o d e n d o p ro v o c a r efeitos m u ito deletérios n a
fo rm a çã o de sua p erso n a lid a d e e na sua fo rm a de en c a ra r
a vida. P ela falta de m a teria lid a d e do ato que atinge, so-
— -----------b retu d o ,-o -ca m p o _ e m o cio nal e espiritual d a vítim a e pela
falta de evidências im ed iatas de m au s-trato s, este tipo de
violência é dos m ais difíceis de serem identificados (Brasil,
2002 ). :

O National Clearing House Center, agência am ericana que


norm atiza todo procedim ento n a área da violência contra a
criança, cham a a atenção p a ra o fato de que alguns casos de
violência psicológica são facilmente identificáveis, como por
exemplo os castigos bizarros; outros, menos graves, são extre­
m am ente difíceis de serem identificados, mesmo porque não é
o ato em si que provoca o dano à criança, mas sua repetição e
persistência. Por isso, o N IC H C acredita que as agências de
proteção à criança podem não ser capazes de intervir em mui­
tos casos. De. fato, em bora alguns autores acreditem que a vi­
olência psicológica subjaz a toda e qualquer form a de abuso
(G uerra, 199.8), ela é quase sempre a m odalidade de menor
incidência tanto em outros países como nos diversos serviços
brasileiros que apresentam essas estatísticas, no Brasil.
M ais com um ente, a referência à violência psicológica
sofrida na infância é identificada por indivíduos adultos, o que
Bottoms (1993) atribui a um a interpretação mais sofisticada de
fatos ocorridos na infância, só possível com a m aturidade.

Notificação e as dificuldades da intervenção na família

O Estatuto da C riança e do Adolescente (Lei 8069/90)


estabelece:
A rt. 5 — N e n h u m a c ria n ça ou adolescente será objeto de
q u a lq u e r fo rm a de negligência, discrim inação, exploração,

299
violência, crueldade e opressão, p u n id o na fo rm a d a lei
q u alq u er aten tad o p o r ação o u om issão, aos seus direitos
• fundam entais.
... A rt. 13 - O s casos de suspeita o u confirm ação de m aus-
tratos contra crianças e adolescentes serão o b rig ato riam en te
com unicados ao C onselho T u te la r d a respectiva lo calid a­
de, sem prejuízo de outras providências legais.

A lei determ ina portanto que, ao tom ar ciência ou sus­


peitar de que um a criança esteja sofrendo maus-tratos, o pro­
fissional deve^ notificar a autoridade competente (o Conselho
T utelar da localidade ou, na sua ausência, a autoridade judiciá­
ria). O artigo 245 da Lei 8069/90 estabelece penalidades apli­
cáveis aos profissionais de saúde e educação que dcscum prirem
essa determ inação legal.
Em bora à prim eira vista esse pareça um procedim ento
simples, ele envolve dois aspcctos vitais no trato da violência
contra a criança: o primeiro diz respeito à decisão do profissi­
onal quanto ao ato de notificar;2 o segundo, às ações que se
seguem à notificação.
J á vim os q u e o n o ção de violência c o n tra a crian ça a b a rc a
grande dificuldade técnica e teórica: os conceitos nem sempre
são precisos, a intencionalidade é de difícil determ inação, o ato
é às vezes de difícil detecção, e a diferenciação entre o que
deve ou não ser considerado violência nem sempre é imediata.
Essas questões sem dúvida acodem o profissional quando, à
frente de um a criança e na presença de sua família, deve deci­
dir se aquela é, ou não, um a situação a ser notificada.
A postura mais radical recom enda que o profissional siga
à risca a letra da lei, e notifique o caso tão logo a suspeita o
assalte. Para discutir essa questão, quero agora retom ar um

2 N ão m e refiro aqui à questão do sigilo profissional; a segurança individual


da criança está acim a e limita a confidencialidade da.relação com o p acien ­
te. O s diversos conselhos profissionais j á se pronunciaram sobre isso.
pouco dc história, o que espero possa nos auxiliar a pensar as
implicações colocadas no tão delicado ato de notificar. A histó- -
ria da notificação 'nos rem ete ainda um a vez aos postulados
americanos.
A notificação foi proposta pela prim eira vez nos Estados
Unidos, em 1963. Ao longo daquela década, todos os Estados
am ericanos a adotaram como norm a legal, recom endando que
fossem notificados às autoridades os casos constatados de vio­
lência contra a criança. Nos anos 70, o núm ero de notificações
cresceu significativamente (Bcsharov, 1993). C ontudo, muitos
pais e responsáveis consideraram que a notificação contra eles
equivalia a um a acusação formal; como não foi possível confir­
m ar a ocorrência de violência, esses pais processaram os profis­
sionais, que foram então obrigados a responder em juízo pelos
seus atos; a p artir daí, houve um a queda consistente no núm e­
ro de notificações. A decisão de incluir a possibilidade de noti­
ficar um a “suspeita” foi tom ada com o propósito de solucionar
esse impasse: o registro de um a suspeita não equivale à acusa­
ção, e protege o profissional dos processos jurídicos por difa­
m ação.
A notificação da suspeita de maus-tratos tem sido ques­
tionada por m uitos autores. Argumenta-se que, ao perm itir a
notificação da suspeita, o sistema legal não exige que o profis­
sional a fundam ente, transferindo essa tarefa às agências de
proteção (cuja tarefa de investigar é em certa m edida similar
aos nossos Conselhos Tutelares). Argumenta-se além disso que
a transferência dessa responsabilidade sobrecarrega as agênci­
as de proteção, dificultando em larga m edida seu trabalho. Por
último, levanta-se .um a questão ética: a suspeita, independente
da confirmação posterior, carrega a condenação m oral dos pais,
dos responsáveis ou daqueles contra os quais ela pesa, e impli­
ca um julgam ento m oral que nem mesmo a absolvição jurídica
tem o poder de neutralizar. De fato, o processo p o r violência
contra a criança im prim e um estigma que subm ete igualm ente

301
inocentes e culpados, e causa um dano irreparável às famílias
investigadas p o r falsas denúncias (Besharov, 1993). N ão nos ilu­
dam os: as denúncias não com provadas chegam a 60% nos
Estados U nidos (Besharov, 1993) e 90% no Brasil (Gonçalves et
a l , 1999). i
Alguns autores argum entam : mesmo que, ao estimular a
notificação da suspeita de m aus-tratos, a legislação term ina
pecando contra a proteção da criança. Por sobrecarregar os
operadores do direito com um a sobrecarga de casos1a investi­
gar, to rn a impossível estabelecer prioridades, investigar os ca­
sos de form a m eticulosa ou decidir com mais propriedade o
m elhor encam inham ento de cada caso. Com o resultado disso,
40% dos casos notificados não são objeto de qualquer averi­
guação ou assistência (Emery e Laumann-Billings, 1998), e um a
porcentagem im portante de m ortes por m aus-tratos vitim a cri-
anças cujas situações já haviam sido encam inhadas às agências
de proteção (Besharov, 1993). ’ •
N o que se refere à decisão de notificar, o profissional vê-
se quase elevado à condição de perito, já que sua decisão as­
senta num caráter “técnico” cuja racionalidade condiciona o
destino dos envolvidos. Q uero lem brar aqui que, na definição
de Castel (1978), perito é aquele que define se um problem a
existe ou não, qual é a sua ‘verdadeira1 natureza, e como deve
ser tratado. Pela autoridade que a sociedade confere ao perito
em razão de sua com petência técnica, seu parecer é .como re­
g ra levado em conta e, assim, a p_erícia opera no sentido de
transform ar o julgam ento técnico do especialista em realidade
social. ' ;
Aqui, com eçam os a nos defrontar com os efeitos sociais
e éticos da conceituação de violência e de seu valor social como
instrum ento de intervenção na vida das famílias, e por exten­
são nos modos de construção do social.
Vale determ o-nos nas implicações e nos desdobram en­
tos do trabalho assim cham ado “técnico”. A decisão de notifí-

302
car sucede, ou conclui, um conjuntç de tomadas de posição do
profissional que tem início com a escolha de um ou outro con­
ceito operacional de violência; com base nessa prim eira esco­
lha, vamos verificar se a situação em exam e preenche os
requisitos da definição, e se a situação pode ser qualificada de
violenta; em seguida, o profissional7passaTaxolher um a~série_de
informações que visam desenhar o contexto da situação que
exam ina, trabalhando por vezes sob a difícil recom endação de
suspeitar dos depoim entos que.colhe; finalmente, vai debruçar-
se sobre todos os elementos disponíveis para decidir o que deve
ser privilegiado, de m odo a encerrar sua avaliação.
■ É impossível im aginar que esse percurso possa ser abso­
lutam ente isento dos valores de quem procede à avaliação. Vou
trazer aqui, como ilustração, um estudo feito no C anadá, por
T ourigny e B ouchard (1994). Eles verificaram que enquanto
14% das famílias canadenses são notificadas por abusarem fisi­
cam ente dos filhos, 44% das famílias haitianas residentes no
C an ad á o são pelò mesmo motivo. U m a análise acurada des-,
ses índices m ostrou que eles se deviam menos a diferenças
objetivas' de m étodos educativos e mais ao confronto cultural
en tre a com unidade canadense e os im igrantes haitianos,
desencadeada por fatores externos-ao tema da violência contra
a criança. Assim, um a aparente política de proteção à criança
pode estar contam inada p o r um iconfronto que a excede.
O Conselho T u telar é o órgão encarregado pela legisla­
ção de zelar pelos direitos da criança‘e do adolescente sempre
que eles forem am eaçados ou violados. Os casos de violência
em família estão incluídos nessa atribuição. Ao Conselho T u te­
lar compete receber a notificação e proceder a um a prim eira
avaliação dos- fatos relatados, verificar sua procedência e deci­
dir pelo encam inham ento ao M inistério Público de seu relato.
Observe-se que o Conselho T utelar não determ ina se a violên­
cia ocorreu, nem tam pouco req u er perícia. Nessa investida
prelim inar, o Conselho T utelar tem a atribuição de apurar os

303
fatos e decidir.pelo seu encam inham ento, com autoridade para
aplicar medidas de proteção à criança previstas no art. 101 ( I a
VII) ou de atendimento aos pais ou responsáveis previstas no
art. 129 (I a VII) da Lei 8069/90.
. . A sobrecarga que com prom ete o trabalho dás agências
de proteção americanas atinge tam bém os Conselhos T utela­
res instalados no Brasil. Os Conselhos têm funcionado em con­
dições adversas, enfrentando graves problemas de infra-estrutura;
a aplicação de medidas enfrenta além disso um a enorm e escas­
sez de serviços de retaguarda, o que am plia sua capacidade de
responder à dem anda. Esses motivos aconselham a que a noti­
ficação de violência seja encam inhada com os subsídios que só
um a investigação cuidadosa pode oferecer (Gonçalves e Ferreira,
2002 ).
Mas sobretudo, em nome da proteção à criança, cabe
lem brar que o art. 100 da Lei 8069/90 estipula que, sempre
que possível, deve-se dar preferência à aplicação das medidas
que visem ao fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários. Não
.'bastassem os imperativos teóricos, morais e éticos- que reco­
m endam um a a v a lia ç ã o c r ite r io s a d a p o s s ib ilid a d e de o c o r r ê n ­
cia da violência contra a criança em família, que se afaste do
julgam ento moral, é preciso ter em conta que o enquadre legal
recom enda que se privilegie o convívio familiar.
O respeito aos valores familiares não deve ser interpre­
tado como permissividade ou autorização à prática da violên­
cia, mas antes como regra que recom enda a negociação com
as regras da cultura, e o respeito à autoridade parental, ainda
que seja imperioso transform ar as formas de seu exercício.
, Para isso, e antes de apartar pais e filhos, cabe suprir as
necessidades mais prem entes da família, inclusive aquelas que
dizem respeito a recursos pessoais e sociais que instrumentalizam
sua tarefa de construir, na próxima geração, um ambiente menos
. contam inado pela violência.

304
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t

ï'
V•

• níí**' .
Mulheres em situação de violência doméstica:
limites e possibilidades de enfrentamento
Rosana Morgado

Violência doméstica: o que é?

A pergunta, à prim eira vista} pode parecer simples, mas


apresenta-se como necessária p a ra que possamos estabelecer
um cam po com um de diálogo. Diferentes segmentos da socie­
dade, aqui tom ada em sua representação por instituições de
saúde, educação, assistênciá e do cam po jurídico, veiculam
com preensões diversificadas sobre este fenôm eno social.
O presente artigo tem por objedvo oferecer subsídios que
contribuam p ara um m aior conhecim ento do fenôm eno c ao
m esm o tem po propiciem um am adurecim ento conceituai so­
bre a tem ática (M orgado, 2001). Elementos estes fundam entais
p a ra o exercício profissional com petente. '
A violência doméstica contra a m ulher não é reccnte.
T rata-se de um fenôm eno antigo, presente em todas as classes
sociais e em todas as sociedades, das mais desenvolvidas às mais
vulneráveis econom icam ente, com preendendo um conjunto de
relações sociais que complexificam sua natureza.
Existe um a forte tendência, especialmente em nossa so­
ciedade, de tratá-lo como um fenôm eno de m enor im portância
e restrito ao âm bito das relações interpessoais. U m famoso pro­
vérbio popular nos serve de exemplo: “Em' briga de m arido e
m ulher, não se m ete a colher” .

309
P or esta razão, é im portante enfatizar que a violência
dom éstica contra a m ulher é um fenôm eno social grave, que
traz inúm eras conseqüências físicas e psicológicas p a ra as víti­
m as e tam bém p a ra as crianças e adolescentes que a presen-
ciam “ É -rotineira-e-de-longa-duração,-freqúentem ente_m uito
tem po se passa até que a m ulher denuncie. Desenvolve-se um
processo que alguns autores qualificam de “escalada da violên-
\
cia” , onde se m esclam atos de violência emocional, física e se­
xual.
N o Brasil, som ente a partir da década de 70 foi possível
a publicização deste fenôm eno. Os m ovimentos feministas, ar­
ticulados a outros m ovim entos sociais, puderam de form a mais
enfática denunciar as atrocidades cometidas nos lares de m i­
lhares de m ulheres.
Considera-se que a perspectiva de análise das relações
de gênero, associada aos demais campos de conhecimento, trou­
xe subsídios de extrem a relevância, p ara a com preensão e en-
frentam ento da violência doméstica.
Parte-se, assim, da prem issa de que o lugar historica­
m ente ocupado pela m ulher confere-lhe algumas possibilida­
des, m as lhe im põe fortes lim ites de atuação c o n tra seus
agressores diretos, assim como contra os agressores e abusadores
sexuais de crianças e adolescentes, sob sua responsabilidade.
A sociedade brasileira, herdeira de um a sistema p atriar­
ca], continua conferindo ao hom em um lugar de privilégios,
seja com o m arid o /co m p an h eiro j seja como pai. Assim, a atri­
buição de funções em nossa sociedade, determ inada pelas con­
dições de inserção de classe, gênero e etnia, configura um a
inserção subordinada da m ulher.
Os sujeitos sociais, portadores de relativa autonom ia frente
aos processos soeializadores, incorporam e reproduzem , com
m aior ou m enor autonom ia, as funções que lhes são atribuídas
socialmente.

310
Sobre as m ulheres brasileiras recaem imensas responsa­
bilidades: a de dona-de-casa, de trabalhadora, am ante, com pa­
nheira e mãe. Exige-se, para todas as funções, esmero, dedicação
e com petência. Entretanto, a expectativa do bom desem penho,
q uase que exclusivo, destas funções pelas m ulheres constitui-se
em um a atribuição social, nem sempre visível ou explicitada,
que se modifica de acordo com os embates travados no interi­
or da sociedade, im prim indo-lhe um m ovim ento constante em
direção da m anutenção da ordem vigente e /o u de transform a­
ções sociais.
N a m edida em que a inserção social mais am pla da
m ulher se dá de form a subordinada, sua inserção na família
não poderia fugir a este m odelo. Em bora a mãe figure como a
"rain h a do lar” , a m agnitude de seu reinado tem, por limite, o
poder exercido pelo hom em (marido e pai).
D a perspectiva aqui adotada, sobre o conceito de gêne­
ro, concorda-se com Saífioti, quando afirm a que:
Este conceito (gênero) não se resume a uma categoria de
análise, não obstante apresentar muita utilidade enquanto
tal. Gênero também diz respeito a uma categoria históri­
ca, cuja investigação tem demandado muito investimento.
(...) havendo um campo (...) de acordo.: o gênero é a cons­
trução social do masculino e do feminino. O conceito dc
gênero não explicita necessariamente, desigualdades entre'
homens e mulheres. (...) A desigualdade longe de ser natu­
ral, é posta pela tradição cultural, pelas estruturas de po­
der, pelos agentes envolvidos na trama de relações sociais
(Saífioti, 1999: 83).
Ao enfatizar-se a dimensão relacional da categoria de
gênero, com preende-se que tam bém os hom ens em seu proces­
so de socialização p a ra assum ir sua condição masculina nas
sociedades contem porâneas sofrem enormes prejuízos, pois tam ­
bém a eles é imposto um m odelo do que devem ser socialmente.
Este artigo, contudo, analisa alguns aspectos das condições de
socialização fem inina, aspectos relativos ao cam po jurídico e

311
estratégias de enfrentamento do fenômeno, privilegiando o ponto
de análise das condições subordinadas da inserção da m ulher,
posto que a violência doméstica, historicamente, atinge m ajori-
tariam ente: mulheres.

A socialização feminina

Inúm eros são os casos ém que as mulheres vitimas de


violência doméstica relatafri a convivência por anos em rela­
ções violentas’ seja com ex-companheiros, ou nas famílias de
origem.
Este aspecto merece ser problem atizado, pois se difunde
a idéia, tal qual no que tange à infanda, de que as mulheres
devem tom ar cuidados especiais com estranhos.. Se, por um
lado, diríamos que todos os sujeitos sociais devem tom ar cuida­
dos com desconhecidos, este não tem sido o m aior problem a
enfrentado pelas mulheres (ou crianças e adolescentes) quando
analisamos a violência doméstica.
Por esta razão, SaíBoti e Almeida (1995) enfatizam que
“em bora na socialização fem inina estejam sempre presentes as
suspeitas contra os desconhecidos” de fato os agresores são ge­
ralm ente parentes, especialmente cônjuges, que se aproveitam
da relação de confiança com as vítimas para perpetrarem a
violência.
Os profissionais da Casa Viva M aria, um abrigo para
mulheres vítimas de violência doméstica localizado em Porto
Alegre, identificaram, dentre os prontuários das m ulheres aten­
didas, que em 69 deles (62,7%), “estava registrado que a vio­
lência .é com portam ento usual, freqüente e rotineiro na vida
do casal” (Meneghel et al., 2000:751).
. Diversos depoimentos e o dado acima corroboram estu­
dos nacionais é internacionais que evidenciara^ através de dife­

312
rentes índices, o quanto o lar tem sido um.local extrem am ente
perigoso p a ra as mulheres. ■- ,
Giffin, utilizando-se de índices de violência doméstica
çontra a m ulher debatidos por Heise (1994), analisa dados de
diferentes sociedades, que perm item subsidiar esta perspectiva
cle análise. A autora n o s tra z p ara o debate:
Embora baseados cm definições variadas do fenômeno es­
tudado, 35 estudos.de 24 países revelam que entre 20%
(Colômbia, dados de uma amostra nacional) e 75% (índia,
218 homens e mulheres num estudo local) das mulheres já
foram vítimas de violência física ou sexual dos parceiros.
Em estudos com amostras nacionais dos Estados Unidos e
Canadá, 28% e 25% das mulheres, respectivamente, re­
portam que foram vítimas deste tipo de violência. Em ci­
dades dos Estados Unidos, uma entre cada seis mulheres
grávidas já foi vítima da violência dos parceiros durante
gestação. De 10% a 14% de todas as mulheres norte-ame­
ricanas declararam que os maridos as forçam a fazer sexo
contra a sua vontade (...) (apud.GifFin, 1994: 146).
No que tange à v io lê n c ia física no B ra sil, os dados e x t r a ­
ídos do suplem ento da Pesquisa N acional por A m ostra de
Domicílios (PNAD) de 1988, intitulado Participação Político-
Social —Justiça e Vitimização, apontam que: “Q uase dois ter­
ços (65,8 por cento) das vítimas de violência fisica de parentes
são m ulheres, sendo hom ens apenas 34,2 por cento” (apucl
Saííioti, 1997a: 48).
Q uanto ao. estupro cm geral, baseando-se ainda em Heise,
Giffin destaca que a partir de dados obtidos de centros de aten­
dim ento a vítimas de estupro em sete países m ostram que “ de
36% a 58% das vítimas de estupro ou tentativa de estupro têm
menos de 16 anos; 18% a 32% têm menos de 11 anos; e em
60% a 78% dos casos, o agressor é um a pessoa conhecida”.
No que se refere aos Estados Unidos, “de 27% a 62% das
m ulheres sofrem pelo menos um evento de abuso sexual (não
necessariamente estupro) antes dos 18 anos”. Q uanto ao Ca-

313
nadá “estima-se que 25% das m eninas sofrem algum tipo de
abuso sexual antes dos 17 anos” (GifHn, 1994: 147).
N o Brasil, no que se refere à violência sexual, o relatório
da Com issão P arlam entar de Inquérito destinado a investigar
_a_violência contra a m ulher (C PI, 1992), cobrindo crimes co-
m etidos contra a m ulher no período jan e iro /9 1 - agosto/92,
afirm a existirem “dados com provando que mais de 50% dos
casos de estupro ocorrem dentiro da própria fam ília” (apud
Saffioti, 1997a: 169). \
O im pacto da violência doméstica contra a m ulher e sua
relação, com os diferentes aspectos no campo da saúde vem,
progressivam ente, sendo objeto dé análise de pesquisas e publi­
cações. A título de exemplificar ajgravidade do assunto, m ere­
ce d estaq u e u m dos índices com parativos analisados p o r
Deslandes et al.. Dizem os autores:I “A violência doméstica e o
estupro seriam a sexta causa de anos de vida perdidos por m orte
ou incapacidade fisica em m ulheres de 15 a 44 anos - mais do
que todos os tipos de câncer, acidentes de trânsito e guerras”
. (Deslandes et ál., 2000: 130).
A perspectiva de análise das relações de gênero, ancora­
da dentre outros aspectos nas estatísticas citadas, conduz dife­
rentes autores a esta b e le c e re m ; conexões entre a violência
dom éstica e a dom inação masculina.
Autores ingleses, com o D obash and D obash, propõem
que a violência entre m aridos e iesposas, seja analisada como
extensão da dom inação e do controle dos m aridos sobre as
esposas (apud Pahl, 1985: 12), .
O s dados m undiais disponíveis suscitam a necessidade
de retom ar-se a idéia de que a violência doméstica (seja contra
crianças e adolescentes ou contra a mulher) expressa um con­
ju n to de “relações de violência”, que se desenvolvem a partir
de um a “escalada da violência” . Tal como observam Saflioti e
Almeida; .

314
As relações de violência são extremamente tensas e quase
invariavelmente caminham para o pòlo negativo: a violên­
cia tende a descrever uma escalada, começando por agres­
sões verbais, passando para as físicas e/ou sexuais e podendo
atingir a ameaça de morte e até mesmo o homicídio (Saffioti
________ e Almeida, 1995: 35)._______ ____ _____
O cotidiano de relações violentas vividas entre cônjuges
na Inglaterra, é tam bém discutido por Pahl (1985), realçando o
fato de não serem episódios isolados, mas parte freqüente da
relação do casal.
N esta direção, considera-se fecunda a idéia retom ada por
Almeida, a partir de autoras feministas anglo-saxãs (Mackinnon,
1994-; C opelon, 1994), ao problem atizar a violência doméstica,
como um processo de “terror doméstico” . Segundo a autora:
“passa a se configurar um quadro de terror doméstico, com ­
preendido por um a série de pequenos assassinatos diários da.
m ulher, form ado por cenas de violência cotidianas” (Almeida,
1999 :1 2 ).-
Estas relações, contudo, são perm eadas por sentimentos
e com portam entos contraditórios. As relações de violência com­
portam , ao m esm o tem po, m om entos de violência, sedução,
afeto, presentes, arrependim entos, dentre outros. O u, como
observa Almeida: “a m istura deste clima de afeto e arrependi­
m ento favorece a criação de um a situação propícia à tentativa
de resolução do conflito no in te rio r da relação violenta”
(Almeida, 1999: 11).
O depoim ento abaixo mostra-se exemplar p ara tal dis­
cussão. De acordo com a Sra. L au ra:1
Após a separação, ‘ele (o marido) a cercava tentando o
retorno’; ela diz que embora ele .tenha ‘mudado da água

1 O s depoim entos foram extraídos de casos acom panhados pela ABR A PIA —
“A ssociação Brasileira M ultiprofissional de Proteção à Infância e A dolescên­
cia” utilizados com o fonte para a realização da pesquisa de doutoram ento.
T o d o s os nom es sâo fictícios.

315
para o vinho’, não confia mais nele, ‘nem penso em rea­
tar’. ‘Nao consigo aceitar o que ele fez com nossa filha’,
(Ele havia perpetrado abuso sexual incestuoso) Ele a ame­
açava muito, ‘mandava- bilhetes amorosos, presentes e fa­
lava baixo’. (...) Comportamentos que se alternavam ‘com
muitas ameaças’
O com portam ento, que alterna afeto e violências, nutre-
se, dentre outros fatores, dos sentirrumtos de ambivalência vivi­
dos por estas mulheres. Apesar de referirem-se às inúm eras e
freqüentes violências que m arcam suas relações, muitas delas
afirmam am ar seus com panheiros/agressores.
São exemplos desta ambivalência: “eu gostava e não
gostava dele, quando cie me tratava bem eu esquecia o que ele
fazia de mal pra m im ”; “eu era apaixonada por ele, mas não
gostava dele na cama, pois as relações eram forçadas”; “eu
estava cega porque gostava dele” .
A perspectiva aqui adotada situa-se na com preensão de
que os processos sociais com portam e engendram, sim ultanea­
mente* limites e possibilidades de transformação.
Neste sentido, compreender as histórias de violência destas
mulheres como decorrentes exclusivamente de sua inserção
subordinada, nó atual ordenam ento das relações de gênero, se
por um lado as retira da condição de culpadas, pode, por ou­
tro, situá-las na posição de “vítimas das circunstâncias” . Julga-
se que esta postura é tam bém preocupante, pois revela um a
visão de determ inação da estrutura sobre os sujeitos, que aca­
ba por não percebê-los como capazes de construir possibilida­
des de enfrentam ento e ruptura de tal ordenam ento.
A formulação de Heise (1994) nos parece adequada. Ao
analisar mulheres adultas, q u t na infancia foram vítimas de
abusos (não só o sexual), considera qué elas: “ [têm] menos
possibilidade de se proteger, [são] menos seguras do seu valor
e dos seus limites pessoais, e mais propensas a aceitar a
vitimÍ2 ação como sendo parte da sua condição de m ulher” (apud
Giffin, 1994: 148).

316
Para subsidiar sua análise, Heise identifica que “sessenta
e oito por cento das m ulheres que foram vítimas de [abuso
sexual] incestuoso quando crianças relatam que posteriorm en­
te foram vítimas cle.estupro ou tentativa de estupro, em con­
traste com 17% verificados c m u m grupo de.controle (dados
dos Estados Unidos)” (apud Giffin, 1994: 148).
A convivência prolongada com relações de violência, a
legitimação social p ara sua perpetuação c a form ação de um a
identidade de gênero.subordinada conform am um cam po pro­
pício para a internalização da banalização da violência sofrida,
direta e indiretam ente. Identifica-se, neste cam po, um dos es­
paços desencadêadorcs da minimizaçao do seu próprio sofri­
m ento ou do de sua prole.
A situação descrita a seguir parece nos oferecer estes
subsídios: A Sra. Letícia, separada há dois anos do Sr, Jorge
(pai biológico da filha em comum, da qual abusou sexualm en­
te), relata que, quando estáva casada: “gostava e não gostava
dele, quando ele m e tratava bem eu esquecia o que ele fazia de
mal p ara m im ”. “Ele sempre foi um ótimo pai durante o tempo
em que convivemos juntos5’ (grifo nosso).
A Sra. Letícia refere-se ao Sr. Jorge como um ótimo pai,
mesmo constando do processo as informações, por ela trazidas,
de que o Sr. Jorge perpetrava violência física contra os filhos
em sua presença (seu filho um a vez ficou com um olho roxo e
não foi à escola por 15 dias e em outra ocasião, o pai deu um a
cotovelada no filho que lhe quebrou um dente), que ela já ti­
nha “sofrido am eaça de m orte” e que “não podia nem varrer
a varanda, pois ele era m uito cium ento” . Por estas razões, ela
abandonou o com panheiro, indo p ara outra cidade, deixando
seus filhos com um a irm ã, “pois não agüentava mais”.
A justificativa da dependência econômica para a perm a­
nência na relação, evocada freqüentem ente pela literatura e
presente no senso com um , mostra-se a nosso ver insuficiente e
falaciosa.

317
Pahl (1985:11), ao realizar entrevistas com 4-2 m ulheres
inglesas vítimas de violência dom éstica que haviam procurado
um abrigo, tam bém identifica que, em alguns casos, eram elas
que .supriam m aterialm ente a família. Em um dos depoim en-
tosrSuz-v-descreve-que-seu-marido-ficou-aproximadam ente dois
ou três anos sem trabalhar, não olhava 'as crianças, jogava a
cinza no chão da casa e exigia que ela fizesse xícaras e xícaras
de café, p a ra servir a ele. R elem bra airídá que um dia, grávida
de seis meses, pediu a ele que esperasse p ara receber um a xíca­
ra de chá e que disto resultou que batesse nela, sendo necessá­
rio ser levada ao hospital por um a ambiilância.
O depoim ento acim a, tom ado como exemplo, oferece
os subsídios necessários à posição de D uque-A nazola (1997).
Segundo a autora, devem servir de exemplo os depoim entos
dc m ulheres que m esm o exercendo atividades rem uneradas, e
sendo ao menos cm parte responsáveis pela renda familiar, “sub­
m etem -se à autoridade masculina, mesmo quando falta a esta
o argum ento da provisão do sustento” (Duque-Anazola, 1997:
397).
Ao aceitarm os a im ediaticidade dó argum ento econôm i­
co com o justificativa da m anutenção da relação, trazido por
vezes pelas próprias m ulheres envolvidas, desprezamos as pos­
sibilidades de analisar a. complexidade de seus sentimentos e
atitudes, bem como suas possibilidades je limites de enfrenta-
m ento.
N esta direção percebe-se que rotineiram ente, no trans­
correr dos anos, um dos sentimentos mais dilapidados ao longo
da vida destas m ulheres foi sua auto-estima.
A pesquisa realizada por Deslandcs no C R A M I/C am pi-
nas destaca que “nos seus relatos, term os como trapos, caco e
lixo foram empregados p a ra se autodesignarem nos momentos
dé crise pessoal e familiar” (Deslandes, 1993: 7.3).
A m ulher passa, assim, a auto-representar-se como víti­
m a. Encena, naquele m om ento, como observa Safíioti, o papel

318
de atriz. Escreve a autora:
No momento da queixa, a atriz desempenha um papel,
4 que- a vitimiza. Vitimizar-se significa perceber-se exclusi­
vamente enquanto objeto da ação, no caso violência, do
outro. Isto não quer dizer que a mulher, enquanto sujeito,
seja~Dassiva-ou-nào-suieito-f...).__O s homens dispensam a
mulheres um tratamento de não-sujeitos e, muitas vezes,
as representações que as mulheres têm de si mesmas cami­
nham nesta direção (...) (Saffioti, 1997b: 70).
Esta “atuação” parece se desenvolver visando obter m aior
solidariedade social e am paro jurídico p ara a sua denúncia.

Legitimação social e respaldo jurídico

A perspectiva de análise das relações de gênero, em in-


terlocução com outros campos do conhecimento, tem contri­
buído p ara desvendar os diferentes mecanismos de legitimação
.social que respaldam e prom ovem a-violência doméstica con­
tra a m ulher, bem como contra crianças e adolescentes.
A longa trajetória histórica d e ,legitimação social da vio­
lência doméstica contra m ulheres, face a um período m enor
de repúdio a esta violência, é identificada por Pahl (1985) tam ­
bém na sociedade inglesa. Para a autora, a lei inglesa, que até
o século X IX perm itia ao m arido bater em sua m ulher, reflete
o quanto as estruturas hierárquicas e patriarcais na família são
sustentadas pelas leis.
Considera-se o caso abaixo como ilustrativo do ainda
atual ordenam ento das relações de, gênero que, com portando
um processo de “perm anências e m udanças”, reatualiza o va­
lor da função de m ãe, sobrepondo-o aos direitos da cidadã
m ulher. .
Em Belo H orizonte, em 1980, houve o julgam ento de
um m arido pelo assassinato de sua ex-esposa alegando, como

319
O a c u sa d o (nas situações cle violência doméstica) é convo­
cado para comparecer a um JECRIM - Juizado Especial
Criminal, onde poderá efetuar uma composição civil (re­
paração de darios com o consentimento da vitima) ou uma
transação penal (caso seja frustrada a composição civil).
De um modo gerál a transação penal resulta em pagamen­
to de muita, ou de uma ou mais cestas básicas a uma ins­
tituição assistência!) conforme o delito e o poder aquisitivo
do acusado. Em nenhum dos dois- casos o agressor perde a
primarièdadè.‘Ileso, ele recebe, indiretamente, a informa­
ção de que o preço da violência é baixo. Não custa caro
espancar a mulher. A sociedade, por sua vez, recebe a
mensagem de que a violência pode ser negociada. Como
um bem danificado, ela è conversível em valor monetário
ou em espécie. Ao fim desse percurso, a vítima compreen­
de, então de forma oblíqua e dolorosa, que não vale a pena
pedir ajuda (Musumeci, 2000: 2).
O dilema pode ser assim resumido: “como evitar que
um instrum ento inovador, como os Juizados Especiais, venha a
contribuir para a banálização da violência doméstica, endos­
sando, su b rep ticiam en te a desqualificação das m ulheres
agredidas?” (Musumeci, 200: 3).
>i; ím portante vitória foi obtida em 2002. A aprovação da
Lei 10.455/02, que modifica o parágrafo único da Lei 9 .0 9 9 / .
95, prevê que o juiz possa determinar o afastamento do agressor'
do lar ou local de convivência com a vítima.
Sabemos, contudo, que as leis oferecem respaldo se fo­
rem acionadas p ara a intervenção qualificada dc profissionais,
como form a efetiva de oferecer suporte e desenvolverem
institucionalmente estratégias que enfrentem o fenômeno.

Estratégias de énírentamento: limites e possibilidades

Ao desconsiderar a complexidade do fenômeno, diferen­


tes segmentos da sociedade têm, como expectativa/exigência,

322
a ru p tu ra im ediata da relação, seja diante da violência dom és­
tica contra a própria m ulher, seja diante do abuso sexual inces­
tuoso. O não-rom pim ento imediato da relação tem atuado.com o
um dos principais alicerces p ara que estas m ulheres sèjam con­
s id e r a d a s /d e n o m in a d a s de passivas ou c ú m p lic e s da(s)
relação(ões) de violência(s).
Saííioti e Almeida (1995), ao analisarem diversos proces­
sos de denúncias realizadas por m ulheres que sofreram violên­
cia doméstica, identificaram a existência de um a postura de
enfrentam ento das violências sofridas, e não de passividade.
Em um dos casos analisados pelas autoras, diante da “in­
terrupção do fluxo do num erário para suprir as necessidades
alim entares da família”, Luísa inventou “um a nova form a de
enfrentar o m arido na questão da falta absoluta de dinheiro”.
Diz Luísa: “Primeiro, eu deixei acabar tudo. Acabou tudo, n ã o '
tinha mais nada. Ai, ele veio p a ra corner, botei o prato, a s''
travessas todas na m esa, vazias” . Gom base nos depoim entos
de Luísa, SafFiori e Alm eida reafirm am sua perspectiva de que
"em bora Luísa se submetesse ao p o d e r d is c ric io n a ria m e n te
exercido por seu m arido, sua vontade não deixava de tentar-se
afirm ar, vez por o u tra.” ' (Saffiod e Almeida, 1995: 91).
Em um a outra entrevista concedida às autoras, T â n ia
rem em orou suas dificuldades em concluir a dissertação de
M estrado, pois seu m arido não a “ajudava, com as tarefas do­
mésticas35. Por esta razão, quando foi a vez de' ele realizar sua
dissertação, ela tam bém não o ajudou, ficando “o dia inteiro
em casa, de perna p a ra cima, lendo Agatha C hristie” (Safíioti
e Almeida, 1998: 134).
N este sentido, Saffioti e A lm eida afirm am que “esta
m ulher não com baria a gram ática sexual hegem ônica apenas
do ponto de vista da oratória. Instituía práticas feministas em
sua relação amorosa, atualizando um a nova gram ática de gê­
nero”. (Saffiod e Almeida, 1‘995: 134).

323
A discussão sobre as possibilidades e limites que têm as
m ulheres p a ra enfrentarem e /o u rom perem relações de vio­
lência constitui-se em um cam po prenhe de debates.
.HáfoêsípnjVcipàisitcndêiVtiãs-de^áááljsir-sòbrç^
lencia^A^pnjnpira •asçenta'íe:najpcrçcpçap.vdcíquç;ps>hpj^ens ;jaoientos ■
;5jaq\aIgQ^çs/.e;'as:j[TLu-v

:pórt^^i^iy^c.i^è'di^té-,da8!:,wõIênci^^frida^/^^‘^dcm;.cbnslnHrj::iriividual'c-colctí-
^varnérite^içpj^téjpásídeTupturà/d^^ J’ . f
Identificam -se, n a literatura, três principais tendências
de análise sobre a participação da m ulher nas relações de vio­
lência. A p rim eira assenta-se n a percepção de que os hom ens
violentos são algozes e as m ulheres, subordinadas pelas rela­
ções de dom inação de gênero, as vítimas. Esta perspectiva an­
corou-se, principalm ente, na form ulação de C hauí (1985) sobre
a violência. Escreve a autora:
Entenderemos por violência íuma realização determinada
das relações de força, tanto em termos de classes sociais
quanto em termos de relaç5,es interpessoais. (..-.) Em pri­
meiro lugar, como conversão de uma diferença e de uma
assimetria numa' relação hierárquica de desigualdade com
fins de dominação. Isto é, a'.conversão dos diferentes em
desiguais e a desigualdade em relação entre superior e in­
ferior. Em segundo lugar, como a ação de um ser humano
não como sujeito, mas como uma coisa. Esta se caracteri­
za pela inércia, pela passividade e pelo silêncio, de modo
que, quando a atividade e a fala de outrem são impedidas
ou anuladas, há violência (Chauí, 1985: 35).
A perspectiva acim a, elaborada em um m om ento de for-
. tes confrontos e de denúncia d a opressão e violência masculi-
•; n a, p o r um lad o o fereceu in e q u ív o c a c o n trib u iç ã o p a ra
•rom per-se com o ,m u ro de conivências que cercava o segredo
da violência dom éstica. Possibilitou ainda desnudar o processo
de transform ação das diferenças em desigualdades e seu uso
p a ra efeitos de dom inação. C ontudo,íacabou por favorecer um a
análise “vitim ista” em relação à m ulher, contribuindo p ara que

324
in ú m e ra s m u lh e re s ■v ítim a s de v io lê n c ia d o m éstica a
internalizassem .
Considera-se que esta concepção teve, como principal
base de su sten tação , o fato de tere m sido as D elegacias
Especializadas de A tendim ento a M ulher - DEAM S (assim
cham ãdãs^íõ~R io“de Janeiro)~o-prim eiro_cspaco institucional
público de acolhim ento das denúncias de violência domcstica.
A denúncia da opressão e violência masculinas expressa
na violência doméstica, por exemplo, ao ser encam inhada à
instância jurídica, propiciou de fato a polarização entre culpa­
dos e vítimas.
U m a segunda tendência do .debate é representada por
Gregori (1989; 1993). N a análise da autora, as mulheres não
são vistas como vítimas passivas na relação de violência. No
entanto, ao enfatizar tal com preensão, Gregori acaba por situ­
ar em um mesmo p atam ar de igualdade as violências perpetra­
das pelos hom ens e as formas de reação encontradas pelas
m ulheres, estabelecendo um a dimensão de cumplicidade entre
ambos.
C onsiderando os argum entos trazidos por Saffioti e
Almeida, ao se posicionarem contrariam ente às duas concep­
ções acim a, julgam os a posição adotada pelas autoras como a
mais pertinente p a ra a análise deste processo.
As autoras adotam , parcialm ente, a formulação de Chauí,
m as refutam a idéia de que n a relação de violência a mulher
possa ser considerada como não-sujeito, ou como “coisa”, como
quer C hauí. .
Nas palavras de Saffioti e Almeida:
As vítimas, embora possam sc sentir paralisadas pelo medo
e/ou tratadas como objetos inanimados, não deixam pelo
menos de esboçar reações‘de defesa. (...) A posição vitimista,
na qual a vítima figura como passiva, sem vontade e intei­
ramente heterônoma, alé.m de não dar conta da realidade
histórica, revela um pensamento extraordinariamente au­
toritário (Saffioti e Almeida, 1995: 35).

325
Saffioti, em um artigo posterior, reafirma sua postura.
Escreve a.autora:
- Mesmo quando permanecem na relação por décadas, as
mulheres reagem à violência, variando muito as estratégi­
as. A compreensão desse fenômeno é importante, porquanto
há quem as considere não-sujeitos e, por via de conseqüên­
cia, passivas. (...) Mulheres em geral, e especialmente quando
são vítimas de violência, recebem tratamento de não-sujei-
tos. Isto, todavia, é diferente de ser não-suieito (Saffioti.
1999: 85).'
No que tange à concepção proposta por Gregori, que
implica em cumplicidade entre hom ens e mulheres, SaíHoti
contesta-a veementemente. Segundo a autora, afirm ar que não
há objetos, apenas sujeitos, "não significa dizer que as m ulhe­
res sejam cúmplices de seus agressores (...) P ara que pudessem
ser cúmplices, dar seu consentimento às agressões masculinas,
precisariam desfrutar de igual poder que os homens (...)” (Saffioti,
1999: 86).
Saffioti ao refletir sobre a possível cumplicidade da m u­
lher na violência doméstica afirma que:
Esta discussão, entretanto, não autoriza ninguém a con­
cluir pela cumplicidade da mulher com a violência de gê­
nero. Dada a organização social de gênero, de acordo com
a qual o homem tem poder praticamente de vida ou morte
sobre a mulher (a impunidade de espancadores e homici­
das revela isto) no plano d cfado, a mulher, ao fim e ao
cabo, é vítima, na medida em que desfruta de parcelas de
poder muito menores para mudar a situação. (...) Para po­
der ser cúmplice do homem, a mulher teria de se situar no
mesmo patamar que seu parceiro na estrutura dè poder
(Saffioti, 1997b: 71, grifo no original).
Nesta direção considera-se que a distinção entre ceder e
• consentir oferece potencial heurístico de compreensão dos sen­
timentos, limites e possibilidades das mulheres em situação de
violência doméstica.

326
Com base na análise da história do estupro, Vigarello
(1998) propõe que se discuta, nos dias atuais, sobre o consenti­
m ento dado ou não pela m ulher no m om ento do estupro. Em
sua perspectiva, uo julgam ento do estupro mobiliza a interro­
gação sobre o possível consentimento da vítima, a análise de
suas decisões, de sua vontade c de sua autonom ia”. Enfatiza
ainda que "os juizes ^clássicos só acreditam na queixa cle um a •
m u lh e r se todos os sinais físicos, os objetos quebrados, os
ferimentos visíveis, os testemunhos concordantes confirmam suas
declarações” (Vigarello, 1998: 9).
A relevância desta discussão para o caso brasileiro pode
ser exemplificada através do depoim ento de um policial, regis­
trado em 1991 pelo Centro de Defesa dos Direitos da M ulher
de M inas Gerais, que foi incorporado ao relatório do Américas
W atch (1992: 56), Diz o policial:
N in g u é m c o n s e g u e ab rir as p e r n a s b e m fe c h a d a s d e u m a
m u lh e r , a n ã o ser q u e e la seja a m e a ç a d a c o m u m a a r m a
o u te m a p e la p r ó p r ia v id a . A m a io r ia d o s c a so s a c o n t e c e
p o r q u e a m u lh e r d e ix a , p o r q u e e la q u er . D e p o i s se a r re ­
p e n d e e v e m d a r u m a cle v í t i m a , v e m r e g i s t r a r q u e i x a .
M u ita s m u lh e r e s c r ia m c o n d iç õ e s fa v o r á v eis a o c r im e .

Saffioti e Almeida, baseando-se em M áthieu (1985), ana­


lisam a diferença existente entre consentir c ccder. Dizem as
autoras:
E fe tiv a m e n te , h á u m a d ife r e n ç a q u a lita tiv a e n tr e o c o n ­
se n tim e n to e a c e s sã o . O p r im e ir o c o n c e ito e stá v in c u la d o
à id é ia d e c o n tr a to e p r e su m e q u e a m b a s as p a r te s se situ ­
e m n o m e s m o p a ta m a r d e p o d er . O ú seja , só p o d e m c o n -
- se n tir e m a lg o ou e s ta b e le c e r u m c o n tr a to p e ss o a s
s o c ia lm e n te ig u a is. (...) A fa lo c r a c ia a d m ite a im a tu r id a d e
d a c r ia n ç a . O p r o b le m a resid e n a m u lh e r a d u lta . E sta é
c o n s id e r a d a c a p a z d e d isc e rn ir e n tr e o q u e lh e c o n v é m e o
q u e lh e d e s a g r a d a /p r e ju d ic a . M a s a c o n s id e r a ç ã o c feita
a p e n a s e m te r m o s d e id a d e e e m te r m o s d e ig u a ld a d e fo r ­
m a l e n tr e h o m e n s e m u lh e r e s . N u n c a se p õ e c o m c la r e z a

327
a in f e r io r id a d e -social d a m u lh e r fr en te a o h o m e m . A ssim ,
' a m u lh e r a d ú lta é c a p a z d e c o n se n tir . A rig o r , c o n tu d o , o
c o n s e n t im e n t o lh e e s c a p a , s ó lh e r e s ta n d o a c e s sã o . E la
c e d e a o s d e se jo s d o m a r id o , m a s n ã o c o n s e n te n a r e la ç ã o
s e x u a l, p o is,' n e ste c a s o , o c o n s e n t im e n t o só p o d e e sta r
_____ _______ a lic e r ç a d o n o d e se jo (S a ffio ti e A lm e id a , 1 995: 31).

Co.nsidera-se que o centro desta polêm ica reside no fato


de a violência dom éstica ter como um a de suas características
constituir-sc em um fenôm eno, na m aioria das vezes, de longa
duração, dem andando assim a necessidade de problem atizar
acerca das responsabilidades que têm ;cada um dos sujeitos
envolvidos.
Identifica-se que o am adurecim ento da discussão tem
possibilitado a ruptura com a concepção de oposição binária
entre algozes e vítimas passivas, realçando que o atual ordena­
m ento das relações de gênero com porta e engendra, simulta­
neam ente, os limites e possibilidades de' sua transformação.
Nesta linha de argum entação, Rocha-Couíinho descortina
diferentes estratégias utilizadas pelas m ulheres brasileiras sem,
contudo, deixar de enfatizar, que tais.estratégias estão circuns­
critas a relações de poder desiguais, nas quais o hom em tem
tido prim azia. Observa a autora: “de seu lugar de subordina­
ção na sociedade, [as mulheres] sempre articularam formas de
subsistir e resistir ao poder reconhecido, dos hom ens na socie­
da d e ” (Rocha-C outinho, 1994-: 19). O u ainda: “(...) em bora
ten h a sido negado às m ulheres acesso legítimo a muitas ativi­
dades e recursos im portantes, elas sem dúvida tam bém fazem
uso de certas formas estruturadas p ara;controlar eventos que
as - afetam e que afetam as pessoas próxim as a elas” (Rocha-
C outinho, 1994: 22).
N o sentido de ilustrar as contradições e limites expressos
nessas estratégias, concorda-se com os comentários de Rocha-
C óutinho sobre, por exemplo, a m u lh e r “mostrar-se indefesa”.
O bserva a autora: “a fim de levar o outro, mais especificamen-

328
te o m arido c os filhós, a um com portam ento desejado, a m u­
lher, neste caso, usa um a característica intim am ente associada
a ela — ser frágil, indefesa e incapaz — (...) para obter o que '
alm eja (como em, “Não consigo fazer isto, faz.para mim, faz” .
Á autora, contudo, destaca o quanto o uso desta estratégia ge-
'ra'lmente“situa-seu-usuári 0 -ern-um a-posição _de _mais_baixo_po^_
der e auto-estima. Isto porque, ao usar esta form a de controle,
“freqüentem ente a m ulher está dando a, entender ao outro que
ela não pode fazer uso de outra estratégia porque ela, de fato,
admite ser fraca, indefesa ou não saber nada” (Rocha-Coutinho,
1994: 146).
Realçando as tensões que tais estratégias/comportamentos
engendram , R ocha-Coutinho afirma que a situação é delicada
pois a m ulher, ao agir de acordo com o com portam ento que
tradicionalm ente se espera dela, é julgada fraca, incom petente,
ineficaz. Ao mesmo tem po se ela, não age da forma esperada
“está sujeita a ser criticada por agir como um hom em ” (Ro~
cha-C outinho, 1994: 150).
As afirmações, com as quais concordam os, de que a
m ulher não é vitima passiva e de que dispõe de parcelas de
poder, têm conduzido diferentes segmentos sociais a im puta­
rem unicam ente à m ulher a responsabilidade de superação das
relações de violência. Estas relações passam a ser tratadas como
relações conflituosas, localizando na m ulher a capacidade de,
através do m anejo do conflito, transform ar seus maridos vio­
lentos em com panheiros ideais.
De pronto, recusam-se as idéias de que homens perpe­
tradores de violência não têm “jeito” e de que p ara eles cabe a
“pena m áxim a”. No entanto, ao mesmo tem po, julga-se exces­
sivo alocar na m ulher, vítima, deste hom em violento, a res­
ponsabilidade por sua transform ação:
Esta perspectiva foi recentem ente defendida pela autora
inglesa Arabella Melville (1998) em seu livro intitulado Difficult
men: strategies fo r women who choose not to leave. O título em si já

329
oferece subsídios para depreender-se sobre que bases sê consti­
tuirão as propostas da autora, ela própria vitima de violência
doméstica. >■
Em nossa perspectiva, qualificar um hom em perpetrador
de violência como um hom em difícil, revela um m odo de
relativizar as violências por ele cometidas, contribuindo p a ra a
banalização, do fenômeno.
A entrevista de Cláudia, concedida à revista Maria} M a ­
ria (1999: 7) pode ser tom ada como exemplar, para a discus­
são:
Minha história é complicada e simples ao mesmo tempo,
pois eu fui tentando agüentar, por achar que isso era só
uma fase dele. É .um grande erro da mulher achar que vai
modificar um homem violento; quanto mais ela fica, mais
ela dá forças para a brutalidade dele. Eu me lembro dele
esmurrando a minha cabeça. (...) Eu estava totalmente sob
o controle dele, eu não fazia absolutamente nada, eu esta­
va em pânico. Eu n ã o podia trabalhar direito, tinha que
voltar cedo para casa. (...) Ele fazendo o que fazia e eu
pedindo: por favor, tenha calma. (...),Ele quebrava as mi­
n h a s c o isa s, co rta v a minhas c a lc in h a s , os m e u s v e stid o s.
Eu só consegui sair dessa reiaçao quando, de fato, não
agüentava mais, quando não conseguia me mexer mais,
quando não conseguia sarar de uma violência, porque sem­
pre vinha outra. Eu acho que as mulheres ficam muito
tempo acreditando que a violência do companheiro é ape­
nas uma fase ruim que vai passar.
R ocha-Coutinho, sinalizando p ara contradições ainda
presentes na formação da identidade da mulher, enfatiza que
“a necessidade da m ulher de agradar, de ser perfeita, de se
voltar ppxa os'outros, bem como sua delicadeza e docilidade
continuam presentes (...) no discurso social e, mais que isso,
parecem estar ainda atuando, mesmo que de forma contradi­
tória, no interior destas mulheres” (Rocha-Coutinho, 1994: 150).
Partilha-se pois do pressuposto de que as mulheres não
são vítimas passivas, e que tam bém não se com portam passiva-

330
m ente diante das violências sofridas. Considera-se, que mesmo
enfrentando condições ainda extrem am ente desfavoráveis, elas
podem construir,, individual e coletivamente, estratégias de rup­
tura, face às condições de dom inação ora vigentes.
Neste sentido, m erecem análise dois graves e específicos
limites, que interferem drasticam ente nas possibilidades de rup­
tura da violência doméstica: o “perigo real de m orte” e a au­
sência de políticas públicas.
Diferentes autores e alguns índices estatísticos têm de­
m onstrado que o m om ento em que a m ulher busca rom per ã
relação de violência configura-se como um dos m om entos de
m aior perigo p ara a sua integridade física,' bem como p ara sua
própria vida. ■
O assassinato da jornalista Sandra Gom ide, em 2001,
n a cidade de São Paulo, ocorrido no m om ento de ruptura d a '
relação, oferece indícios sobre a atualidade e urgência do de­
bate.
T am b ém na sociedade inglesa este “perigo real de m or­
te” é assinalado por H ague e M aios (1999).. Segundo estes a u ­
tores, são inúmeras as evidências dem onstrando que o m om ento
mais perigoso para m ulheres vítimas da violência dom éstica é,
justam ente, o m om ento da ruptura. Ressaltam que, tal como
foi docum entado por um dos abrigos ingleses, em vários casos
m ulheres foram m ortas, na frente de seus filhos, dentro ou próxi­
mo aos abrigos.
Neste sentido, impõe-se como urgente ao debate nacio­
nal a construção de propostas que enfrentem o “perigo real de
m orte” , presente no m om ento de ruptura da relação. Conside­
ra-se que a construção de estatísticas, com a abrangência naci­
onal de homicídios, discriminadas por sexo e relacionadas ao
grau de parentesco, pode oferecer um dos subsídios fundam en­
tais para a estruturação de políticas públicas de enfrentam entò
do fenômeno.

331
Esta dim ensão da violência dom éstica possibilita a dis­
cussão de outro aspecto a ela diretam ente associado: o senti­
m ento de posse do h o m em /m a rid o que^ ao ser atingido pela
ru p tu ra, busca a recom posição da relação, a qualquer custo.
:--------- -D_ormindo_corh o inim igo” , u m a ;produção norte-ame-
ricana de. 1991, retrata o longo e incansável percurso d o .h o ­
m e m /m a rid o em busca de sua mulher, que, p a ra escapar à
violência dom éstica, havia forjado a própria m orte, m udado
de cidade e assum ido um a nova identidade. E m bora se trate
de u m a ficção, o filme retrata inúm eros' aspectos da trajetória
de m ulheres e hom ens reais. ■
Este com portam ento dos ho m en s/m arid o s é tam bém
percebido p o r H ague e M aios (1999), na sociedade inglesa. De
acordo com estes autores, os perpetradores de violência do­
m éstica não m edem esforços na procura de suas parceiras.
R ealçam ainda a possibilidade de graves conseqüências, quan­
do eles as encontram .
Nesta direção, vále a pena lem brar o assassinato de Eliane
de G arm m ont. Eliané, no fmal do ano de 1979, concedeu um a
entrevista p a ra a Revista Nova, na quàl relatou os inúmeros
episódios de violência que, ao longo dós treze anos de convi­
vência, m arcaram seu relacionam ento | com Lindom ar. R ela­
tou, tam b ém , com o vinha b u s c a n d o ; reconstruir sua vida,
vislum brando a possibilidade de.gravar (na época um disco),
no ano seguinte. N a entrevista, ainda chegou a afirmar: “ [Ele]
T á percebendo que está me perdendo... é disso que cie está
com m edo...novo papo, faz quatro dia;s, quero ver que bicho
dá: T á bem mais am ável...Eu acho qüe ele tá sendo sincero.
N ão tenho mais m edo dele. Dele me m atar? Não. Hoje sou
m uito mais esperta do que antes...” Em 30 de abril de 1980,
L in d o m a r C abral, m ais conhecido pelo nom e artístico de
L indom ar Castilho, separado de Eliane há três meses, assassi­
nou-a em um Bar-Café, com um revólver com balas p a ra tiros

332
de precisão, com prado por ele fazia pouco tem po (Ardaillon e
D ebert, 1987: 65-68).
O debate acima corrobora a análise de Saffioti quando
observa que, em se tratando do cham ado espaço privado do
lar, estabelecem-se "um território físico e um território simbó­
lico, nos quais~õ~hom em ~detéirrpraticaniente-dom ím o-t:otal—
(Saffioti, 1997b: 46).
O sentim ento de propriedade, a im punidade e a ausên­
cia de políticas públicas atuam , dentre outros, como alicerces
de m anutenção desta violência.
N o que se refere às condições concretas de apoio às
m ulheres/m ães brasileiras que buscam auxílio para rom perem
com o ciclo de violência, um a pergunta pode ser feita: a quem
recorrer?
D e fato, a violência dom éstica, seja; contra a m ulher, seja
contra crianças e adolescentesj ainda não atingiu um “status'’
capaz de desencadear a estruturação de políticas públicas que
a enfrentem . Isto se deve não só às particularidades que m ar­
cam o fenôm eno, mas tam bém à form a como o Estado brasi­
leiro vem enfrentando toda a problem ática social. Percebe-se,
de form a mais contundente, os reflexos da política econômica
im plem entada especialmente nos últimos oito anos. O desm an­
telam ento de direitos socialmente adquiridos, a dilapidação do
patrim ônio público e a progressiva retirada, por parte do Esta­
do, do financiam ento de program as públicos,-exemplificam este
processo.
No que se refere especificamente à violência doméstica,
ressalta Saífioti (1,999: 90), “atualm ente, há m enos de um a
dezena de abrigos p a ra vítimas de violência em todo o país, o
que é, no m ínim o, ridículo” .
Em nossa perspectiva, corroborando a análise desenvol­
vida por Alm eida (1998), a ausência do, Estado na formulação
e im plem entação de políticas públicas ;p ara o enfrentam ento
de fenômenos sociais, dentre eles a violência doméstica, consti­

333
tui-se na escolha de um a m odalidade de gestão, pois “as estra­
tégias de intervenção implem entadas neste âmbito favorecerão
a (ou destruirão a possibilidade) construção de espaços especí­
ficos de sociabilidades e de subjetividades” (Almeida, 1998: 7).
A im punidade para os crimes cometidos contra m ulhe­
res revela um a outra dimensão da forma de gestão do Estado
sobre o fenômeno. Dados contidos no relatório do Americas .
W atch (1992: 60) oferecem subsídios ao debate “(...) dós mais
de 2.000 crimes de violência contra'a m ulher, incluindo o estu­
pro, registrados na delegacia do Rio de Janeiro em 1990, ne­
nhum resultou na punição do acusado”. E ainda “Mais de 70%
de todos os casos registrados de violência contra mulheres no
Brasil acontecem dentro de casa. Desses casos, um núm ero
estatisticamente insignificante resulta na punição do acusado”.
N a perspectiva de SafFioti c Almeida, a im punidade pode
scr assim analisada “(...) a organização social de gênero torna a
sociedade extremamente complacente no julgam ento m oral dos
crimes cometidos por hom ens contra m ulheres” (Saffioti e
Almeida, 1995: 100).
As dificuldades concretas, enfrentadas pelas mulheres ao
buscarem, ajuda para romperem a relação de violência são tam ­
bém percebidas nas relações de consangüinidade tornando, para
elas, extrem am ente dificultoso conseguir algum tipo de ajuda
na própria família.
O depoim ento de uma das m ulheres cla Casa Viva M a­
ria, de Porto Alegre, reafirma as imensas dificuldades enfrenta­
das nesta busca de ajuda. D i 2 ela:
Toda vez-que eu procurava ajuda todo mundo me virava
as costas. Por isso que eu deixei chegar ao ponto que che­
gou, que ele fizesse o que ele fez comigo. O mundo tinha
acabado, eu não ia viver mais, minha vida não tinha mais
valor, eu não tinha mais força. Eu não sabia se valia a
.., pena continuar ou me matar. Eu não consegui me encon­
trar ainda, mas tenho um objetivo: voltar para minha casa,
criar minha filha (Meneghel et al., 2000: 752).

334
Este processo é tam bém identificado por Pahl (1985), na
sociedade inglesa. A autora cham a atenção p ara o fato de que
as m ulheres buscam , em um prim eiro m om ento, apoió na fa­
m ília (especialmente mães e irmãs) e em relações próxim as e só
quando esta ajuda informal se m ostra inadequada é que os
serviços de apoio são procurados.
N este sentido, a discussão sobre o c m p o d eram en to
(“ empowerment”) parece constituir-se em um cam inho tam bém
fecundo p ara subsidiar a form ulação de propostas político-pro-
fissionais, deslocando do cam po individual a exclusividade cla
construção de estratégias de enfrentam ento e ruptura das rela­
ções de violência.
Arilha ressalta que, em bora não se tenha acerca deste
conceito um a com preensão uniforme, ele tem hoje como prin­
cipais objetivos:
o d e s a fio à d o m in a ç ã o m a s c u lin a e su b o r d in a ç ã o fe m in i­
n a , a tr a n sfo r m a ç ã o d a s estru tu r a s e in stitu iç õ e s q u e r efo r ­
çam e p e r p e tu a m a s d is c r im in a ç õ e s d e g ê n e r o e a
d e s ig u a ld a d e s so c ia is, e p o s sib ilita r q u e as m u lh e r e s p o b r e s
[n ã o só] te n h a m a c e s s o e c o n tr o le a se u s r e c u r so s m a te r i­
ais e d e in fo r m a ç õ e s. É se m p r e m o tiv a d o o u a c e le r a d o ,
p e la s p r e ssõ e s e x te r n a s q u e o c o r r e m a tr a v és d e m o v im e n ­
to s d e p e s s o a s , g r u p o s , o u in stitu iç õ e s q u e te n ta m p r o m o ­
v e r m u d a n ç a s d e p e r c e p ç ã o e d e c o n s c iê n c ia . N o c a s o d as
m u ih e r e s isto im p lic a n e c e s s a r ia m e n te a d q u ir ir c o n s c iê n ­
c ia d e g ê n e r o (A r ilh a , 1 9 9 5 : 11),

Ao realçar as contradições que envolvem este processo,


a autora enfatiza ainda que:
o p r o c e s s o d e empowerment n ã o é lin ea r , n ã o a c o n t e c e p o r
e ta p a s, m as' a o c o n tr á r io , é u m p r o c e s so q u e se c o n str ó i d e
fo r m a e sp ira l, r e su lta n te d e u m a in te r a ç ã o c r ític a e c o n s-
. ta n te d a s m u lh e r e s .c o m su as c o n d iç õ e s so c ia is , e c o n ô m i ­
c a s , su a s c o n c e p ç õ e s r e lig io s a s , a s c o n d i ç õ e s l e g a is e
e stru tu r a is d e su a s so c ie d a d e s (A rilh a, 1 995: 11).

335
O investim ento continuado, realizado através de servi­
ços. cie apoio de qualidade, por exemplo, pode fortalecer nas
m u lh eres um sen tim en to que julgam os fundam ental p a ra
alicerçar o enfrentam ento, com vistas à ruptura, das relações
d e violência: a auto-estim a.______ 1______ _ _ _ _____
Este sentim ento, se tratado como um processo que se
articula aos dem ais aspectos relacionados ao fenômeno, apare­
ce com o um a “aquisição'lenta, paciente, disciplinada e cotidi­
ana. U m a construção deliberada e trabalhosa” (Meneghel et
al., 2000: 752). ' ■
A im portância da reconstrução deste sentimento nos é
trazida pelo depoim ento de um a das m ulheres abrigadas na
C asa Viva M.aria, em Porto Alegre:
A a u t o - e s t im a c o m e ç a c o m um^ e m p r e g o . D a í tu te a n i­
m a ... F a z a g e n t e e n x e r g a r o u tr a s c o isa s, n o v o s v a lo r e s,
u m a p o t e n c ia lid a d e m u ito g r a n d e . A g e n te v a i d e s c o b r in ­
d o e. c o lo c a n d o e m p r á tic a . E sse le x e r c íc io é d iá r io . D e in í­
c io é d ifíc il, é m u ito d ifíc il. A g e n te d e sc o b r e u m a
p o te n c ia lid a d e g r a n d e n a g e n te (M e n e g h e l et al., 2 0 0 0 : 752).

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Sobre os autores

Eduardo-Ponte Brandão
Psicólogo, m estre em Psicologia pela PU C-Rio, psicólogo do
Poder Ju d ic iá rio /R J, professor do curso de pós-graduação lato
sensu de Psicologia Jurídica da Universidade C ândido M en­
des, psicanalista M em bro Convidado da Form ação Freudiana,
autor de artigos publicados ná Revista Brasileira de Direito 'de Fa­
mília e na Revista de Psicanálise PulsionaL

Érika Piedade da Silva Santos


Psicóloga do T ribunal de Justiça do Rio de Janeiro, p ro ­
fessora do curso de pós-graduação lato sensu de Psicologia J u ­
rídica da Universidade Cândido M endes, m estre em Direito
da C idade pela U E R J, especialista em Psicologia Jurídica pela
U ERJ e em Psicologia Junguiana pelo IBM R, autora de arti­
gos publicados na Revista CON-ciência Psi do C R P /0 5 .

Esther Maria de Magalhães Arantes


Psicóloga, doutora em Educação pela Universidade de
Boston, professora da PU C -R io e coordenadora do Program a
C idadania e Direitos H um anos da U ERJ. A utora de inúmeros
textos na área da infancia e juventude, dentre os quais Rostos de
crianças no Brasil; Sobre arrastão e grupos de perfena\ Qual é o problema
da Assistência; Estatuto da Criança e do Adolescente: Doutrina da Prote­
ção Integral é Direito Penal Juvenil?] Direitos Humanos e a atuação pro­
fissional na avaliação psicológica. O rganizou, ju n to com M aria
Euchares de Senna M otta, o livro A ciiança e seus direitos: Estatuto
da Ciiança e do Adolescente e Código de Menores em Debate.

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Hebe Signorini Gonçalves
D outora em Psicologia pela PUC-Rio. Vinculada ao N ú­
cleo de Atenção à C riança V ítim a de Violência do IP P M G /
ÜFRJ entre 1996 e 2003. M em bro do Núcleo Interdisciplinar
~de~Pesquisa-e-lnte-reâm bio-para-a_Iníancia e Adolescência
C ontem porâneas, do Instituto de Psicologia da UFRJ. A utora
de artigos e do livro Infância e violência no Brasil

Lídia Natalia Dobrianskyj Weber


Psicóloga, especialista em Antropologia Filosófica pela
U FPR , mestre e doutora em psicologia experimental pela USP,
professora da graduação e do M estrado em Psicologia da In­
fância e da Adolescência da U FPR . Atualm ente coordena o
L aboratório do C om portam ento H um ano e o Projeto C rian­
ça: Desenvolvimento, Educação e C idadania que realiza pes­
quisas e trabalhos de intervenção com unitária nos tem as
abandono, institucionalização e adoção, habilidades sociais e
desenvolvimento interpessoal, práticas e estilos parentais e gru­
pos de capacitação para pais. M inistra diversos cursos sobre
desenvolvimento infantil e práticas educativas- familiares e é
m em bro da Comissão da C riança e do Adolescente da O rd e m 1
dos Advogados do Brasil seção Paraná. É autora de dezenas de
artigos científicos e dos livros Filhos da solidão: institucionalização,
abandono e adoção; Aspectos Psicológicos da Adoção e Pais e Filhos por
Adoção no Brasil: características, expectativas e sentimentos.

Marlene Guirado
M arlene G uirado é psicóloga, psicanalista, docente no
Instituto de Psicologia da U SP e analista institucional; Autora
dos livros A criança e a F E B E M , Instituição e relações afetivas: o vín­
culo com o abandono e Psicologia Institucional, frutos das pesquisas
realizadas na dissertação de m estrado e na tese de doutorado.
Mais recentemente publicou Pskanálísa e armííw do discurso c A
clinica psicanalílica na sombya do discurso, oncle mostra um a tensão
mais especificamente voltada para a prática clinica da Psicaná­
lise.

Rosana Morgado
Assistente Social, doutora cm Sociologia pela P U C /S P ,
professora da Escola de Serviço Social da UFRJ e pesquisado­
ra do GEGEM ~ Gênero, Etnia t Ciasse: Estudos Muitidisci-
plinares. Atuando como docente na Universidade desde 1985,
tem-se dedieado a análise de program as dirigidos a área da
infanda e juventude, desenvolvidos em instituições públicas e
em organizações não governamentais. A tem ática da violência
doméstica contra crianças e adolescentes, bem. como contra
mulheres ganhou, ao longo doa anos, centralíd&de nas propos­
tas de investigação, sendo realizada com o aporte ás> relações
de gênero. "Famílias e Relações de G ênero’', in: Praia Vemwlka:
estudos de politica e tmna social, vol. 5. UF.RJ, Escola de Serviço
Social. Coordenação de Pós-Graduação. Rio de J a n e ir o , 2001.

Saio de Carvalho
Advogado. Mestre (ÜFSG) e D outor (UFPR) em Direi­
to. M estrando em Filosofia (FUCRS). Professor do M estrado
em Ciências Criminais da PU C R S e do Program a de D outo-
rado em 'Dercchos Humanos y Desarrollo' da Universidad Pablo
Oiavi.de (Sevilha/ES).. Autor do livro Pma c Garantias',

lania Kolker
Psicanalista, médiea da Superintendência de Saúde da
Secretaria de. Estado de Adm inistração Penitenciária, onde
coordena program a de desin te m ação progressiva e reim erção
social dos pacientes internados por medida de segurança. Mern-

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bro da equipe dínica do G rupo ‘Tortura .Nunca M ais do Rio
de Ja n eiro , vice-presidente cio Conselho da Com unidade da
C om arca do Rio de Janeiro, organizadora do M anual Saúde e
Direitos H um anos nas Prisões, c autora do artigo ‘‘T o rtu ra nas
prisões e produção de subjetividade” , publicado no livro Clinica
t política: subjetividade e. violações dos direitos humanos, organizado
por C ristina Rauter, Eduardo Passos e Regina Bencvides.

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CRONOGRAMA PSICOLOGIA - JUKIDICA/2720I1
* * '
^ j0 3 DEj AGOSTO ~ Apresentação da Ementa e do conteúdo programático de Psicologia
\ J X-Jurídica

Leitura Básica - LAGO, Vívian de Medeiros et al, Um breve histórico da Psicologia ~ JX

10 DE AGOSTO - Introdução ao campo da psicologia jurídica

Leitura básica: SHINE, Sidney. Avaliação Psicológica e Lei: Adoção, Vitimizaçâo,


Separação Conjugal, dano Psíquico e outros temas. SP: Casa do Psicólogo, 2005
(Prefácio e pg 1-34).

Leitura complementar;

P. Psicologia Jurídica no Processo Civil Brasileiro. São Paulo. Casa^ãoJ


i j S I L v k , D. M .
Psicójogo, 2006 (pg.30-5I) /

17 DE AGOSTO - O Estatuto da Criança e do Adolescente : os seis artigos do Título 1


(premissas iniciais que compreendem o alcance e as prioridades desta lei).

A Vara da Infancia e Juventude (equipe interprofissional - juiz, promotor, escreventes e


serviços técnicos: art 150 e 151 do ECA relativo ás atribuições da equipe técnica e à
livre manifestação destes profissionais

Leitura básica: Estatuto da Criança e do Adolescente (Título í)

Leitura complementar:

SEQjUEÍRA, Vânia Conselheiro; MONTÍ, Manuela; BRACONNOT, Fernando


Marques Oliveira. Conselhos Tutelares e Psicologia: políticas públicas e promoção de
■saúdje. Psicol. EstueL Maringá. V I5. no, 14, Dez 2010.

24 IDE AGOSTO - Medidas protetivas contempladas no trabalho do psicólogo nas


Varas da Infância e Juventude - guarda, tutela, acolhimento.

Leitura básica: SHINE, Sidney. Avaliação Psicológica e Lei: Adoção, Vitimizaçâo,


Separação Conjugal, dano Psíquico e outros temas. SP: Casa do Psicólogo, 2005 (i 13 a
122).

Leitura complementar:

VECTORE, Célia; CARVALHO, Cíntia. Um olhar sobre o abngamento:..a.importançia v


dos víaculos cm contexto déabrigo. PsicoL Esc. Educ. Campinas, v!2, n2, Déz-20J3j|J^' -
26 DE OUTUBRO- A importância dos laudos psicológicos em consonância com os
parâmetros do CRP ‘

Leitura básica: SHINE, Sidney, Avaliação Psicológica e Lei: Adoção, Vitimizaçâo.


Separação Conjugal, dano Psíquico e outros temas. SP: Casa do Psicólogo, 2005 (pg
191 -245).

02 DE NOVEMBRO - FERIADO

09 DE NOVEMBRO- O Trabalho do psicólogo como perito nas Varas de Família -


regulamentação de guarda e de visita em casos de litígio conjugal A questão do litígio e
seus efeitos nos filhos do casal.

Leitura básic^BRAJSÍDÂO^EduardQ P. Psicologia Jurídica no Brasil. RJ: Ed Nau, 2005


(pg 51- 80). '

SHINE, Sidney. Avaliação Psicológica e Lei: Adoção, Vitimizaçâo, Separação


Conjugal, dano Psíquico e outros temas. SP: Casa do Psicólogo, 2005 (pg 19 49).

Leitura Complementar-

Referências Técnicas para Atuação do Psicólogo em Vara de família -■ CREPOP -


2009.

09 DE NOVEMBRO- O trabalho do psicólogo nas Varas Especiais cora os adolescentes


em conflito com a lei e as medidas sócio-educativas.

Leitura básica(BRÃ^DÃQ) Eduardo P. Psicologia Jurídica no Brasil. RJ: Ed Nau, 2005


{pág. 205 - 276). •

Referências técnicas para atuação do psicólogo no âmbito das medidas socioeducativas


em unidades de internação - CREPOP.

16 DE NOVEMBRO - A atuação dos psicólogos no sistema penal

Leitura básica(BRANDÃo) Eduardo P. Psicologia Jurídica no BrasiL RJ: Ed Nau,


2005 (pág. 157-202).

36 DE NOVEMBRO - As técnicas e intervenções da conciliação, da arbitragem e da


mediação como novos modos de respaldar casais em litígio e a guarda compartilhada.

Leitura básica^BRANDÃO^Eduardo P. Psicologia Jurídica no Brasil. RJ: Ed Nau, 2005


(pág. 80 - 97).

23 DE N O VEM BR O -N p2

30 DE N O VEM BR O - F E R IA D O

07 DE D E Z E M B R O -P R O V A SU BSTITU TÍV A

14 DE DEZEMBRO- EXAMES
31 Dt| AGOSTO - V-itimização de crianças e adolescentes - Maus-tratos perpetuados
por familiares ou conhecidos contra a integridade física, psicológica de crianças e
adolescentes,

) Leitura básica: SHINE, Sidney. Avaliação Psicológica e Lei: Adoção, Vitimização,


/■ I ■ , *
íSeparação Conjugal, dano Psíquico e outros temas. SP: Casa do Psicólogo, 2005 (pg 51
I- 69).

Eduardo P. Psicologia Jurídica no Brasil. RJ: Ed Nau, 2005 (pág. 277 -


(f 305/.

Serviço de Proteção a crianças e adolescentes vítimas de violência, abuso e suas


famí lias; referências para a atuação do psicólogo - CREPOP.

07 DE SETEMBRO - FERIADO

14 E>H SETEMBRO- Violência contra <t mulher ~ Atuação dos Psicólogos nas
Delegacias de Defesa da Mulher - Lei Maria da Penha..

Leitura Básica: JONG, LinChaw; SADALA, Maria Lncia Araújo; TANAKA, Ana
Cristina D ’Aridretta. Desistindo da denúncia ao agressor: relato de mulheres vítimas de
violêjaciadoméstica. Rev. Esc. Enfermagem USP. São Paulo, v 42, no. 4}Dez 2008.

MOREIRA, Myrella Maria Normando e PRÍETO, .Daniela. t;Da sexta vez não passa”:
violência cíclica na relação conjugai.. Psicologia ÍESB, vol2, no. 1, 58-69, 2010.

21 DE SETEMBRO - Adoção. Avaliação de pretendentes em âmbito nacional, preparo


de crianças para a adoção, adoção internacional.

Leitura básica: SHINE, Sidney. Avaliação Psicológica e Lei: Adoção, Vitimização,


Separação Conjugal, dano Psíquico e outros temas. SP: Casa do Psicólogo, 2005 (pg 73
a 108).

BRANDÃO, Editarão P. Psicologia Jurídica no Brasil. RJ: Ed Nau, 2005 (pg 99- 139).

28 DE SETEMBRO - O trabalho do psicólogo em casos da não aceitação da criança ho


grupo familiar substituto - “devolução” de crianças- e as intervenções necessárias.

Leitura-básica:-SHINE, Sidney. Avaliação Psicológica e Lei: Adoção, Vitimização,


Sepíração Conjugal, dano Psíquico e outros temas. SP: Casa do Psicólogo, 2005 (pg 73
a 108).

BRANDÃO, Eduardo P. Psicologia Jurídica no Brasil. RJ: Ed Nau, 2005 (pg 99-139).

NF1- 05 DE OUTUBRO

12 DE OUTUBRO -FERIADO

19 DE OUTUBRO- VISTA da NP1

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