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llllllllllllllllllllllllll

Coleção Clássicos do Direito Internacional


Coleção coordenada por Amo Dal Ri Júnior

Hugo
GROTIUS
Volume 11

O DIREITO
DA GUERRAS DAPAZ
(De Jure Belli ac Pacis)
2' Edição

'lYadução de Cito Mioranza

SBD-FFLCH-USP

llllllllllll1111
272932

2005
45ztq4 q Z/
a,xgo,{.P Título original: .Z)eJwe .BeZZÍac.l)acü(publicadoem 1625)
v.& Três volumes nos quais se explicam
O Direito de Natureza e das Gentes
.z.d e tanibê l As CoisasPrincipais do Direito Público

© 2004, Editora Unijuí


Rua do Comércio, 1364
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98700-000 - ljuí - RS
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Zkíífar.'Gilmar Antonio Bedin
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do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí; ljuí, RS, Brasil)
Ckzpa:Vilson Maurio Mantos
J)nadem odefeana.'DAOLIVEIRA
I' Edição: 2ç)Q4
2' Edição: 2ç)Q5

Catalogação na Publicação:
Biblioteca Universitária Mano Osorio Marquei UMjuÍ
Grotius, Huno
O direito da guerra e da paz/ jugo Grotius ; trad.
Cito Mioranza. 2. ed. ljuí : Ed. Unijuí, 2005. -- v.2 (Cole
çãoclássicosdo direito internacional/ coord.Amo Dal Ri
Júnior)
ISBN Obra completa 85-7429-345-8
ISBN V 1: 85-7429-4039
ISBN V 11:85-7429-404-7
l.Direito internacional 2.Filosoíía - direito 3.Guerras
4.Soberanial.Mioranza, Cito ll.Título lll.Série
CDU : 340. 12
341.1

Editora Unijuí aãiliad

Associação Brasileira
d as Editoras Universitárias
/
Índice Geral

VOLUME l

AppFqRN'TAnAn

param o DaIRiJúnior

T \TTP nn T Tn A n 15

poxAn tónioMan uelHespanha

DEDICATORIA

PROLEGOMENOS 33

LIVRO l... 67

1. 0 que é a guerra? O que é a paz? 69

11. Se às vezes a guerra pode ser justa 97

111.Divisão da guerra em pública


e privada. Explicação da soberania ... 157

IV. Da guerra dos súditos contra os detentores do poder 231

V Quem faz a guerra de modo legítimo 271

LIVRO ll 277

1. Das causas da guerra e primeiramente


da defesa de si mesmo e dos bens 279

11.Das coisas que pertencem aos homens em comum 307

111.Da aquisição original das coisas,


onde se trata do mar e dos rios ..... 339
IV Do abandono presumido e da ocupação
subseqüente que diferem do usucapião e da prescrição 363

V Da aquisição original do direito sobreas pessoas.'lYata-se


do direito dos pais, do matrimonio, das comunidades
do direito sobre os súditos e sobre os escravos ..... 383

VI. Da aquisição derivada daquilo que é feito pelo homem, onde


se trata da alienação da soberania e dos bens da soberania 429

VII. Da aquisição derivada que se define pela leia


trata também das sucessões "ab intestato" 441

VIII. Das aquisiçõespopularmente ditas


do /us genÉluJn (direito das gentes) 487

IX. Quando cessaa soberania ou a propriedade 513

X. Da obrigação que decorre da propriedade 531

XI. Das promessas 545

XII. Dos contratos 569

xnl. Do juramento 599

XIV Das promessas, dos contratos e dosjuramentos


daqueles que detêm a soberania 631

XVI Dos tratados (das alianças) e das g arantias


r 647

XVI. Da interpretação 677

XVII. Do dano causado injustamente


eda obrigaçãoquedissodecorre 711

XVIII. Do direito das embaixadas 725

XIX. Do direito de sepultura 747


VOLUME ll

777
XX. Das penas .. ......
XXI. Da comunicação das penas 881

XXII. Das causasinjustas ...... 921

XXIII. Das causas duvidosas ..... 941

XXIV. Admoestaçõespara não empreender temerariamente


uma guerra, mesmo porjustas causas ..........-- 959

XXV Das causas de empreender uma guerra em favor dos outros 979

XXVI. Das causas justas pelas quais a guerra pode ser


995
feita por aqueles que estão sob o domínio de outrem .

LIVRO lll 1011

1.Regras gerais do que é permitido na guerra, segundo


o direito de natureza. 'l-rata-setambém do dolo e da mentira 1013
/
11.Como, segundo o direito das gentes, os bens dos súditos
sãorequeridos para cobrir a dívida dossoberanos.
'l.bata-setambémdasrepresálias.... 1053

111.Da guerra justa ou solene, segundo OJusgenúum (direito


das gentes). trata-se também da declaração de guerra ... 1067

]lV.Do direito de matar osinimigos na guerra


solene e de outras violências sobre o corpo . .- 1085

1115
V Da devastação e do saque .....
1125
VI. Do direito deadquirir as coisastomadasna guerra
1171
VII. Do direito sobre os prisioneiros

VIII. Da soberania sobre os vencidos 1185


IX. Do postlimínio 1193

X. Advertências a respeito dascoisas


que se fazem numa guerra injusta 1217

XI. Consideraçõesa respeito do direito


de matar numa guerra justa 1227

XII. Consideraçõessobre
a devastação e outras coisas similares .. 1267

XIII. Considerações sobre as coisas apreendidas 1287

XIV Consideraçõessobreosprisioneiros 1295

XV. Considerações sobre a conquista da soberania 1313

XVI. Considerações sobre as coisas que, segundo o direito


das gentes, são desprovidas de postlimínio 1327

XVII. Considerações sobre aqueles que são neutros na guerra 1337

XVIII. Das coisas que, numa guerra pública,


são feitas de modo privado 1347

XIX. Da manutençãoda palavra entre inimigos 1355

XX. Das convençõespúblicas pelas quais


termina a guerra, ondese trata dotratado depaz,
da sorte, do combate combinado, da arbitragem,
da capitulação, dos reféns, dos penhores 1375

XXI. Das convenções durante a guerra, em que se trata


da trégua, do livre trânsito, do resgate dos prisioneiros 1421

XXII. Das convenções dos poderes subalternos na guerra 1443

XXIII. Da palavra dada por cidadãos privados na guerra 1455

XXIV. Da palavra dada tacitamente .... 1465

XXV Conclusão com exortaçõesà boa-fé e à paz 1471


xx

DAS PENAS

Sumário

i. Definição e origem da pena.


11.A pena se relaciona com a justiça expietiva e como.
111.A pena não é devida naturalmente a unia pessoadeternli
nada, mas a pena pode ser exigida tacitamente pelo que é
do direito naturalpara aquele que não cometeu faltas se-
noeih an tes.

IV Entre oshonlens, a pena deve ser exigida em vista de algu-


ma utilidade,o quenão é a mesmacoisaconarelaçãoa
Deus, por quê?
U Em quesentido a vingançaénaturalmente ilícita.
VI. Tríplice utilidade da pena.
VII. Apena tem por objeto a utilidade do dehnqüente e ela pode
ser exigida naturalmente para qualquerpessoa,embora
com uma distinção.
VIII. Ela tem mesmopor objeto a utilidade daquelecontra
quem a falta foi cometida; trata-se da vingança permiti-
dapelo direito das gentes.
IX. De igual modo,a utilidade de todos.
X. O que a lei evangélica estabeleceu sobre esseassunto.

XI. Apresenta-se solução para o argumento tirado da miseri-


córdia de Deus manifestada no Evangelho.
XII. Do quese corta rente aoarrepender-se.
XIII. As divisões imperfeitas das penas são rejeitadas.
XIV. Eperigoso para as pessoasprivadas cristãs infligir unia
pena, mesmo quando épermitido pelo direito das gentes.
XV Ou de se esta tuír colho acusador de seu próprio mo vimento.

XVI. Ou deprocurar os cargos dejuízes criminalistas.

XVII. Explica-se por uma distinção, se as leis humanas que


permitem entregar à martepara punir conferemum di-
reito ou não conferem senãoa simples impunidade.
XVIII. Os alas interiores não são puníveis entre os homens.

XIX. Nem os fitos exteriores que a fragilidade humana não


pode evitar.
XX. Nem os atou pelos quais a sociedade humana não élesada
nem direta, meDIindiretamente e por que razão.
/'
XXI. A opinião segundoa qualnão éjamaispernlitidl perdoar
érejeitada.
XXII. Demonstra-se que isso é permitido antes mesmo que
existisse a }ei pe1lal.

XXIII. Nãa, contudo, sempre.

XXIV. Emesmo após o estabelecimento da leipenal.

XXV. Quais são, para assim agir, as razões intrínsecas pro


fiáveis?

XXVI. Quais são as extrínsecas?

XXVII. Refuta-se a opinião, segundo a qual não há nenhuma


razão legítima para dispensar de uma leí, se não for
aquela que se encontra contida à maneira de exceção
tácita
XXVIII. Apena deveserproporcionalao crime.
XXIX. A respeito dasrazõesqueimpeliram para o mal; campa
ração entre elas.

XXX. Coillo também a respeito daquelas que deviam evitar o


ma}. Trata-se também da classificação dos manda
mentes do Decálogo que dizem respeito ao próximo e ou
trascoisas.

XXXI. Igualmente a aptidão do delinquente em uma ou outra


situação; consideração diferenciada.

XXXII. A pena merecidapode ser estendidaa um mal maior


que o ca usado pelo culpado, por quê?

XXXIII. A opinião que defende uma proporçãoharlnõnica nas


penas é rejeitada.
XXXIVApena pode ser dimin uída por caridade, se uma carida-
de maior não se opõe a isso.

XXXV Colho a facilida de de cometer um crime leva a pum-lo e


como o hábito da falta leva a punir ou retém a punição.

Uso da clemência na redução das penas.

xxxVll. O que os hebreus e os romanos querem que se convide


re nas penas serelaciona com os artigos anteriores.

XXXVIII. A guerrapara punir.


XXXIX. Explica-depor uJlla distinção se a guerra éjusto, quan-
do tem por objeto punir crinaes que não começei'aJll

XL. Explica-se se reis e povos podem))fazer de modojusto a


guerra para vingar injúrias cometidas contra o direito de
natureza, eJllbora essas injúrias não se dirijam a eles, nem
a seus súditos;rejeita-se a opinião segundo a qual, de acor-
do com o direito natural, para innigir uma pena érequeri-
do o direito de jurisdição.

XLI. Deve-se distinguir o direito de natureza dos costunaes ci-


vis geralmente aceitas.
XLll. E do direito divino voluntária que não é conhecidode
todos.

XLlll. Deve- se, no direito de na tureza, separar as coisas maná


festasdaquelas quenãoosão.

XLIV. Se a guerra pode sermovida por causa de crimes cometi


dos con tra Deus.

XLV. Quaissão asidéias mais gerais a respeito de Deus e como


elas estão contidas nos priilleiros mandamentos do
Decálogo.

Xl;VI. Aquelesquepor printeiro violam essasnoçõespodem


serpunidos.

Xl;Vll. Não ocorre omesmo com os outros, o que é demonstrado


atravésdaleihebraãca.

Xl;Vlll. As guerrasnão podemser feitas de modojusto contra


aqueres que recusam abl'açar a religião cristã.

XLIX. Elas podem-n


perfeitas de modojusto contra a queles que
Lutam caIU crueldade os cristãos, somente por causa da
religião.

L. Não contra aqueles que têm faldas opiniões sobre o sentido


da lei divina, o que é esclarecidopelas autoridades e por
exemplos.

LI. Elaspodem perfeitas de modojusto contra a queles que são


ímpios para com os deuses e que admitem serem estes di-
vindades.
CAPITULOXX - DAS PENAS

1.Definição e origem da pena


1.Anteriormente, quando começamosa tratar das causas pelas
quais as guerras são empreendidas, dissemos que os fatos são conside-
rados de duas maneiras: como podendo ser reparados ou como podendo
ser punidos. Terminamos a primeira parte. Resta a segunda, que é
relativa às penas. Essa matéria deve ser tratada com tanto mais cuida-
do que sua origem e sua natureza menos compreendidas deram lugar a
numerososerros.A pena, no sentido geral, é "um mal de passividade
que é infligido por causa de um mal de atividade". Mesmo que alguns
trabalhos sejam habitualmente impostos a título de pena a certos indi-
víduos, essestrabalhos, contudo, são considerados somente enquanto
penosose por issodevem ser relacionados com a passividade. Enquanto
os inconvenientes que alguns sofrem por causa de uma doença conta-
giosa ou de um corpo mutilado ou de outras impurezas, dos quais há
muitos exemplos na lei hebraica, como ser excluído das reuniões ou dos
empregos, não são propriamente penas, embora por causa de certa se-
melhança e de uma maneira abusiva sejam chamadas por essenome.

2. Entre as coisas que a própria natureza declara lícitas e não


iníquas está, que aquele que fez o mal deve sofrer o mal, o que é uma lei
muito antiga e que os filósofos chamam lei de Radamante, como o disse-
mos algures. Aisso se referem estas palavras de P]utarco [1] , no ]ivro
sobre o .E:r:zq70.'"A
justiça acompanha a Deus, ela pune aqueles que pe'
cam contra a lei divina. Homens, nós todos fazemos uso dela natural-
mente contra todos os homens, como concidadãos."P]atão [2] disse

[1] Plutarco, Z)e ubb (601 B)


[2] Platão, .Fu4xpÀro (9). O tradutor de Irineu (livro 111,cap. XIV) assim. traduziu
uas paXastas."Et Deus quidem, quemadmodumet vetus sermo est, initium et
medietates omnium qual sunt habens, recte perficit secundumnaturam
circumiens; huno autem semper consequitur justicia ultríx in eos qui deülciunt
elege divina.
782
H U GO GROTlus

'Ninguém, nem os deuses, nem os homens, aíh'mou que aquele que age
cominjustiça não deveser punido." Hierax [3] definia ajustiça por essa
função, como sendo a mais nobre de suas partes, dizendo que "ela con-
siste em punir aqueles que por primeiro fizeram o mal a outrem"
Hiérocles diz de[a que "remedio a ma]dade". Lactâncio [4] tem essas
palavras que "não caem num pequeno erro aqueles que taxam de dure-
za e de maldade a severidade, seja humana, seja divina, pensando que
deve ser dito criminoso aqueceque iní]ige uma pena aoscriminosos"]5] .

3. Quando dissemos que o caráter essencial da pena propriamen-


te assim denominada é ser a retribuição do crime, foi também observa-
do porAgostinho [6] que disse: "Toda pena, se justa, é uma punição do
pecado", o que se aplica mesmo às penas que são infligidas por Deus,
embora às vezes no que a elas se refere, por causa da ignorância huma-
na, segundo a expressão do mesmo escritor, "não se percebe a falta onde
se percebe o castigo"

11.A pena se relaciona com a justiça expletiva e como


1.As opiniõessãocompartilhados na questãode saber sea pena
pertence à justiça concessivaou à justiça expletiva. Alguns, de fato,
porque aquele que cometeu uma falta mais grave é punido mais grave-
mente, porque aquele que cometeu uma falta menor é punido mais
levemente e porque a pena é infligida como ao todo em sua parte, agre-
gam as penas à justiça concessiva.

[3] Estobeu,9, 58 no fina].


[4] Caecilius Firmianus Lactantius [séc. ]V d.C.], Z)e ]/a Z)el (17, 6).
[5] Pode'sere]atar aqui essaspalavras de Belisário, em Procópio ( Uanda#c.,1): '%
primeh'a regra da justiça será de innigir uma pena aos assassinos." }scxesceu'
te-se Agatias, livro V. na passagemem que fala de Anatólio
[61Aurelius Augustinus [354-4301,ReÉracfaf/onumZ ór7(1, 9, 5).
783
CAPITULOXX - DAS PENAS

Demonstramos, porém, no começodessaobra (livro 1, cap. D, que


o que estabelecem primeiramente por princípio, que a justiça concessiva
tem lugar todas as vezes que se trata de encontrar igualdade entre
mais de dois extremos, não é verdade. E depois, se os mais culpados são
mais gravemente e os menos culpados mais levemente punidos, isso
não ocorre senão como uma consequência e não é o que se tem primeira
e principalmente em vista. O que se considera primeira e principal-
mente é a igua]dade entre a fa]ta e a pena [7] .Apropósito de]a Horácio
[8] disse: "Por que a razão não traz aqui seu peso e sua medida, a fim de
proporcionar as penas às fa]tas?" E em outro ]oca] [9] : "Tenhamos uma
regra que inflige penas proporcionais. Quem merece um golpe de cor-
reia, não o dilacereis sob o açoite implacável."Alem divina que se encon-
tra no .DeuÉeron(im.fo(XXV. 2-3) e a NoveZZade Leão (cap. V) trataram
da mesma coisa

tl\ Soneca tDe Ira, \1, 6b à\z'. "Será iníquo aquele que se irritar de água! modo contra
agua/es gue cometeram cr7lnes deszkuaJS."Tácito, no livro 111de seus .4nJlaJes,
àiz. "Se a moderaçãodo príncipe, se os exe})lplosde vossosancestrais e os
vossascolocaram limites aos remédios e aos castigos, quando as desordens e os
comes não os têm; se não há indiscrição ao crime, mas palavras aos atentados,
podemosrefrear de tal maneira a não deixar impune a falta, sem que tenhamos
de nos repreender por demasiada indulgência cu por demasiado rigor." ÀnüaxLO
(livro XXVIII) assim se exprime: 'Z)eram pedy} que os supll os náo áossen?
ma/ares que os de/lhos. "Um escoliasta de Horácio diz que 'be as menores Zz/éas
merecen} as maiores penas, ocorrerá que os grandes crimes âlcarãoimpunes ou
gue seybm JhveJ2fados novos supi] bs'l Na lei dos visigodos(livro Xll, tít. 111,cap.
tà, hâ Q seg\l3xike:"Certas leis, não seguindo a diversidade que existe nas faltas,
nãa pronunciam punições distintas, idas misturam todos os crimes daqueles
que se torlla}31culpados, os submetem a todosigualmente à aplicação de uma só
}eí: a medida da pena não é ca]cuiada sobre aquela do crime. Uma violação da ]ei
consíderáve!ou de pouca importância nãc deve ser castigadapor igual repres'
são, particularmente quando o Senhor prescreve em sua }ei que a medida dos
golpes sc:/b propazc70 ]a/ âque/a da Éa/fa. "Ver neste capítulo, $ XXVlll e XXXll,
e livro 111, cap. XI, $ 1.

[8] Quintas Horatius F[accus [65-08 a.C.], SaÉírne(111,77-9)


[9] Idem,SaÉírae(111,117-19)
784
H UGO GROTI US

2. O segundo princípio que colocam não é mais verdadeiro, que


todas as penas vêm do todo para a parte, o que pareceria por aquilo que
será dito. Foi por nós demonstrado antes, que o verdadeiro emprego da
justiça concessivanão consistepropriamente numa tal igualdade, nem
num ato do todo com relação à parte, mas no fato de ter consideração a
uma aptidão que não contenha em si o direito estritamente dito, mas
que dê ocasião de adquiri-lo. Embora, de fato, aquele que é punido deva
ter a aptidão ou merecer ser punido, isso, contudo, não se entende como
seIhe acontecesse alguma coisa do que pede a justiça concessiva. Quan-
to aos que querem que a justiça expletiva, que chamam comumente
comutativa, seja exercida em matéria de penas, não se explicam me-
lhor. Eles consideram esse negócio como se se devolvesse a um crimino-
so alguma coisa, assim como se costuma fazer nos contratos. Abusa-
ram da locução popular, pela qual dizemos que a pena é devida ao delin-
qüente, o que é de todo impróprio, pois aquele a quem uma coisa é
propriamente devida tem um direito contra a outra parte. Quando, po-
rém, dizemos que uma pena é devida a alguéih, não queremos dizer
outra coisa, a não ser que é justo que seja punido.

3. E verdade, contudo, que em matéria de penas se exerce princi-


pal e diretamente a justiça expletiva porque aquele que pune deve, para
punir legitimamente, ter o direito de punir; essedireito nascedo crime
do culpado.Há ainda aqui outra coisa que seaproxima da natureza dos
contratos [10]. Do mesmo modo que aque]e que vende, mesmo se não

[10] Sérvio observa isso seguidamente. Nos comentários ao canto IV da E17efda,diz


que "aqueles que cometem faltas que excedem a medida do crime, se colldenanl
a su'mesmosâ pena': No mesmolocal, diz que ".Z)ampareesf daóuéo
/zberal'e, ande
damnaólk fu queque uofik. "No canto X, a propósito de "/uanfpeccaÉa", diz "Juanr ,
is\o ê, "absolvant. Diximus lutem et !uo poenam; sed menus est hic peccatum;
nam peccatum solvitur poema.Qui ením crimíní tenetur obnoxius,poema
eujn a pristina liberal obligatione. Contra, luo poellam, non procedia, quase
poemasolvatur: Auctoritas tamen esta confundít ]icenter, mare quesoiet poli
ve! a sequentequod praecedit, vei a praecedentí quod sequitur." \3ma.max\elxa
785
CAPÍTULO m- DAS PENAS

especifica nada, presume estar obrigado a todas as coisas que são da


natureza da venda, assim também aquele que cometeu um crime pare'
ce se ter voluntariamente submetidoà pena porqueum crime grave
não pode não ser punível, de modo que aquele que quer diretamente
cometer uma falta quis também, por vias de consequência,incorrer na
pena. Nessesentido é que os imperadores [11] dizem a um indivíduo:
"Tu te submetessetu mesmo a esta pena"]12] . Por isso também se diz
daqueles que tramam um plano criminoso que eles merecemjá ser
punidos, isto é, que voluntariamente aceitaram merecer uma pena [13] .
Em Tácito [14] , se diz que a mu]her que tivesse tido comércio com um
escravo teria consentido à sua própria escravidão porque isso havia sido
estabelecido como pena contra tais mulheres.

4. Miguel de Efeso, comentando o quinto livro da ZZzZ'ua ./Ubânaco


de Aristóteles, diz [15]: "Há nisso, de a]gum modo, o fato de dar e de
receber, em que consiste a natureza dos contratos, pois aquele que rou-
bou objetos ou alguma outra coisa, dá por isso a punição que deve fo-

de falar, freqüente na sagrada Escritura, dá a entender a mesmacoisa. Como


diz Tertuliano(.De OraÉ]b]e, 7): 'H paJnvra ayüda, nas Escrituras, ó a Qxpl'essâo
6lgurada do delito porque a justiça exige punição, do mesmomodo que exige o
Pa amenfo de uma dirIJa."Jogo Crisóstomo (Oral. Z)e ferraemofu, (lue se
encontra no tomo V), falando desse rico que é oposto a Lázaro e explicando a
palavra CLneÀafle que se encontra nesse local no Evangelho, diz: ':4s pe/las /óe
eram devidas. as dores ihe eram devidas." O mesmo axial ÇDePoenitentia, \l,
1, aà àiz que "os pecados são espécies de dívidas". fogos\àlik\o (.De LíberoArbitrio,
111,15, 44) diz: 'Por liso ó guq se /?ão mero/t'er o que det'q /nze/2doJ'usÉlç;a, e/e
) pagará sofrendopenas porque a palavra dívida pode ser tomada nos dois
sentidos. Isso poderia, de fato, ser colocado da maneira seguinte: Se não devol-
ver fazendo o que deve, eie o devolverá sofrendo o que deve.
tXt3 L. 34, Imperadores, Dig., De jure âscí.
[12] Fí[on, no final do ]ivro ] da Hdn de ]UoJk(ãs, diz: 'Zr2guanfo vos prestais e/n
pecar, correia para a pena
[13] .L a u/f;, aod, .4d/agem JuZ -/142Ü

[14] Caius Corne[ius Tacitus [55-120],.4nnaJes(X]1, 53)


[15] Miguel de Éfeso, .4c7»2sfofe/em, .8fálba N)c.(V. 2)
786
H UGO GROTIUS

frer." O mesmo diz em seguida que "os anciãos chamavam contratos


não somente as convençõesmútuas, mas também as proibições coloca-
das pelasleis'

111.A pena não é devida naturalmente a uma pessoa


determinada, mas a pena pode ser exigida
tacitamente pelo que é do direito natural
para aquele que não cometeu faltas semelhantes

1. 0 sujeito desse direito, isto é, aquele a quem esse direito é


devido, não é determinado pela própria natureza. Arazão diz, de fato,
que uma má ação pode ser punida, mas não diz quem deve punir, a não
ser que a natureza indique de modo suficiente e de todo conveniente que
isso seja feito por aquele que é superior. Não mostra também que seja
de todo necessário, a menos que a palavra superior não seja tomada
nesse sentido, que aquele que agiu mal deva ser considerado como ten-
do-se por isso mesmo tornado inferior a qualquer um e tendo-se como
que riscado do número dos humanos para se colocar entre a espécie dos
animais [16] que são submissos ao homem, como foi ensinado por al-
guns teó]ogos [17]. Demócrito [18] diz: "Ocorre naturalmente que o
melhor comande o pior." Aristóte]es [19] diz que as coisas piores são
feitas para as coisasmelhores,tanto na natureza quanto na arte.
2. De onde a conseqüênciaque, ao menos, um criminoso não deve
ser punido por aquele que é tão criminoso quanto ele, ao que se refere à
máxima de Cristo: "Que aquele dentre vós que estiver sem pecado (que

[16] Moisés Maimânides diz algo de semelhante no comentário ao .DeuferonámJb.


cap.XXXlll.
[17] Tomas, -Z21
Z quaesf. 6y. arf. ,Z e sobre isso, Cajetan.
[18] Estobeu 47, 19.
[19] Aristóteles, PoZz'ta'aa(Vl1,
14).
787
CAPÍTULOXX - DAS PENAS

não cometeu pecadosemelhante, bem entendido), que atire a primeira


pedra." Falou assim porque nesse século os costumes dosjudeus esta-
vam muito corrompidos, a tal ponto que aqueles que queriam parecer
mais santos mergulhavam em adultérios e outros crimes similares,
como sepode ver na Epístola aosRomanos.O que Cristo havia dito, o
apóstolo o disse também: "Tu, homem, quem quer que sejas, que con-
denamos outros, tu te tornas inescusável, pois ao condena-los tu te con-
denama ti mesmo, porquanto fazes as mesmas coisas que condenas."A
passagem seguinte de Sêneca [20] está ]igada a isso: "A sentença não
pode ter alguma autoridade, quando aquele que condena mereceser
condenado." E em outro ]oca] [21] : "Nós nos tornaremos mais toleran-
tes, se nos voltarmos para nós mesmos e dissermos: Nós não temos,
também nós, feito alguma coisa seme]hante'P']22] Ambrósio diz na Hpo-
/og:fade -Daw [23] : "Que todo aque]e que quiser julgar o outro, que se
julgue primeiro a si mesmo e que não condene no outro os mínimos
erros, quando ele próprio cometeu outros muito mais graves.

IV Entre os homens, a pena deve ser exigida


em vista de alguma utilidade, o que não
é a mesma coisa com relação a Deus, por quê?

1. Outra questão é relativa ao 6im proposto às penas. O que disse-


mos até o presente não mostra senão uma coisa, que não se comete
injustiça contra os culpados se eles forem punidos. Não se segue,po'

[20] Lucius Annaeus Seneca [Ol? a.C.-65 d.C.], De J?emedlh Forfu fora/n (Vll, l)
[21] Idem, Z)e]ra (11,28, 8).
[22] A isso se refez'emuma passagem de Ambrósio (Sereno.XX] sobre o Salmo Beafz
ímmaculatí. vexsícuXo Miserationes tuas Dominei, cüaào na. Causa 111, Quaestio
UZZ e uma passagem de Cassiodoro (VI, 21)

[23]Ambrósio,Hpo/og.Z)avl'd.,11,2
788
Hu GO GROTI US

rém, que todos devam ser de qualquer modo punidos. Isso não é tampouco
verdade. Deus e os homens perdoam, de fato, a muitos culpados muitas
coisas e são geralmente elogiados por isso. A pa]avra de P]atão [24] é
célebre: "Não é porque cometeu uma falta que se exige um castigo, pois
o que foi realizado não pode se tornar não realizado, mas é como exem-
plo e para o futuro." Sêneca [25] o traduz assim: "0 sábio pune, não
porque alguém pecou, mas para que não se peque mais; o passado é
irrevogável, o futuro se previne." O mesmodiz em outra passagem [26] :
'Não puniremos porque se tem pecado, mas a íim de que não se peque
mais; a pena nunca levará em consideração o passado, mas o futuro;
não há ira, é a precaução." Em Tucídides [27], Diodoro assim se expres'
sa, ao se dirigir aos atenienses a respeito de Mitridates: "Foi demons-.
tudo a mim que eles são culpados em primeiro grau, mas não seria
para mim uma razão de condenar à morte, se não encontrarmos nisso
vantagem para nós."

2. Isso é verdade, porém, com relação aos homens que punem.


Um homem é de tal modo ligado pelo sangue a outro homem que não
deve prejudica-lo, a menos que seja para produzir a]gum bem [28]. A
coisa é outra no tocante a Deus, a quem P]atão [29] ap]ica ma] as máxi-
mas que acabam de ser citadas. As ações de Deus podem, de fato, ter
por fundamento seu direito de soberania absoluta, sobretudo quando
um mérito especial do homem vem sejuntar, sem se propor nenhum

[24] Platão, .De Z,eg7bus(IX, 2; XI)

[25] Lucius Annaeus Seneca [01? a.C.-65 d.C.], .De //a (l, lg)
[26] Idem, .De Zra (11,31)
[27] 111,44.

[28] Cassiodoro(-Z)e.4m/cJZla) diz que 'be uma mão Eazma/â ouirn por caso,agua/a
]ue foi ferida não fere por sua vez e não se levanta para se vingar".
[29] Gorilas (81)
789
CAPÍTULO
H - DASPENAS

fim além disso. Assim é que certos hebreus [30] exp]icam essa passa'
gem de Salomão que se refere a essa matéria, cuja tradução é a seguin-
te: "Deus faz cada coisa para si mesmo e mesmo o mau para o mau dia.
Isso quer dizer que mesmo quando pune o ímpio, ele não o faz para
outro 6im que não o de punir. Caso contrário se recairia sempre no
mesmo sentido, mesmo quando seguíssemosa interpretação mais
comumente aceita, segundo a qual se deve dizer que Deus fez todas as
coisaspara ele mesmo, isto é, pelo direito de sua liberdade e de sua
perfeição soberanas, sem procurar nem reparar nada fora dele mesmo.
Como se diz que Deus nasceu dele mesmo porque não nasceude al-
guém.As SagradasEscrituras testemunham certamente que os casti-
gosinfligidos por Deus a certos grandescriminosos não tiveram outro
objetivo, quando dizem que sente prazer em sua desgraça e que os ímpios
se tornam motivo de zombaria e derisão para Deus (-Deuferon(ímio
XXy111, 63; /sal'ns1, 24; P2"0véz'ÓJbs1,
26). Mais, o último julgamento,
após o qual não há emenda a esperar, e mesmo nessa vida certas puni-
çõesinconspícuas como o endurecimento provam a verdade do que sus-
tentamos contra Platão.

3. Quando o homem pune o homem, que é seu igual pela nature


za, deve se propor algum fim. E isso mesmo que dizem os escolásticos
[31] , que o espírito daquele que pune não deve se comprazer no mal de
quem quer que seja.

Antes deles, Platão havia observado, em Gorgias [32] , que aque-


les que punem alguém com a morte ou com o exílio ou com a multa
não querem isso pura e simplesmente, mas em vista de algum bem.

[30] Moisés Maimânides, 22ú'ecÉ.Z)uõlfanÉ7um,livro 11,cap. Xlll; Rabb. Imm., .4c/


/bou XVI, 4:
[31] Tomas, /Z Z quaesf. /08 Silvestr., ]h verbo Whdafa.
[32] Gorgias (23).
790
H U GO GROTIUS

Sêneca [33] disse também que se deve recorrer à vingança, vendo nisso
não uma alegria, mas um ato úti] [34] .Aristóte]es diz de modo seme-
lhante, no livro Vll de seu 7}afado da -/lslZíhba,capítulo Xll, que certas
coisas são honestas pura e simplesmente, certas por causa de alguma
necessidade e ele propõe o exemplo do último caso na aplicação das
penas.

V. Em que sentido a vingança é naturalmente ilícita

1 . 0 que foi dito pe]o cómico [35], que "a dor de um inimigo é para

o ofendido o remédio de sua dor" e Cícero]36] que diz que "a dor se adoça
pela pena" e ainda P]utarco [37] que a tomou de Simonides "que é doce
e não penoso para um espírito de alguma forma doente e irritado de Ihe
oferecer para se curar os meios de se vingar"; isso convém pois, é verda-
de, à natureza que o homem tem de comum com os animais [38]. A
cólera está, de fato, no homem como nos animais, assim que Eustátio
[39] a define justamente: "Uma agitação violenta do sangue em torno
do coração]40], produzida pelo desejoimoderado de torna-la semelhante
a uma dor." Esse desejo é por ele mesmo de tal modo desprovido de razão
que muitas vezesse prende a coisasque não 6zeram mal algum, como
aos filhotes do animal que causou um dano ou mesmo a objetos inani-

[33] Lucius Annaeus Seneca [01? a.C.-65 d.C.], Z)e Ira (1, 33).

[34] Do mesmo filósofo há, no livro ll da mesma obra Z)e .ira, cap. Xll, o seguinte:
Bu me vingarempoz'que é preciso e n.ãopor ressei3timento.
[35] Publius Syrus [séc. ] a.C.], Se/]f. (294).

[36] Marcus ']U]]ius Cicero [106-43 a.C.], .flo .cujo Cbecuha Oraílo (12, 35)
[37] P[utarco [50?-125?], Aratus (1048 E).

[38] Daí essa expressão de Homero(-6[hdal:V, 23): 'Z/ma ]ra de anima/ se/uarnm se
havia apoderado dele." l)o mesmos"Que excite ele mesmo sua coragem em seu
grande coração!" Do mesmo- "Aquêles, doma tua grande alma!"
[S9] Em Aristóteles, .Óíl'ca d .A/lbcâmaco(VI, l).

[40] Daí, em Homero (JZüda IX, 678): '%pagar sua b'a.


CAPÍTULO
H - DASPENAS

mados [41], como a pedra pe]a qua] se atingiu o cachorro. Ta] desejo
considerado em si mesmo não convém à pal'y- razoável em que o o6cio é
comandar às paixões [42] e por conseguinte não é conforme ao direito de
natureza porque esse direito consiste nos princípios que nos ensina a
natureza razoável e social, considerada como tal. A razão sugere ao
homem de nada fazer que prejudique outro homem, a não ser que seja
em vista de algum bem. Somente na dor de um inimigo, considerado
assim isoladamente, não há bem algum, a não ser que um bem falso e
imaginário, tal como aquele que se encontra nas riquezas supérfluas e
em várias outras coisas da mesma natureza.

2. Por isso é nesse sentido que não somente os doutores cristãos


censuram a vingança nos homens, mas ainda os üi]ósofos[43], como
Sêneca [44] que diz: "A vingança, palavra desumana, e que contudo a
fazemos sinónimo de justiça. Não difere da injúria senão pela ordem do
tempo. Quem adia a ofensa peca, somente com um pouco mais de direi-
to à escusa." Mesmo se acreditamos nisso, Máximo de Tiro [45] diz:
'Aquele que se vinga é mais injusto que aquele que por primeiro causou
o impasse." Musonius [46] diz: "E coisa de um anima] se]vagem, não de
um homem, pensar como se poderá morder aquele que mordeu e preju-
dicar aquele que prejudicou." Em P]utarco [47], esseDion que fez pas-

[41] Sêneca(De Zra 11, 26) diz: 'temo eJ'a izlsensafo en se irv7'ÉaJ' co/?6m co )as quc?
}ão merca/am sua cólera e qae nâo a sente/n./" Os brasileiros, homens selva
gene, se vingam contra o ferro que os feriu, como se fosse uma pessoa
[42] Ver o que diz a respeito Sêneca,em .Deli'a (1, 5)
[43] Platão, Gorilas; ver sobre isso Teodoi'eto,OuJ'af,(livro XX).
[44] Lucius Annaeus Seneca[01? a.C.-65d.C.], De .üa (11,32)
[45] Max. ']yr., 22íss. XV]11, 9.

[46] Estobeu 19,16

[47] Plutarco, .D/0/2 (979 A)


792
Huoo GKOTiUS

sar a sabedoria platónica nas açõesda vida civil diz que "as leis autori-
zam a vingança, bem mais que a injustiça a que dá lugar, mas que o
senso natural nos ensina que a injustiça e a vingança procedem uma e
outra da mesma fraqueza"

3. E pois uma coisa que repugna à natureza do homem agindo


sobre o homem, saciar-se da dor de outrem enquanto dor. Isso é verda-
de, que quanto menos um indivíduo é dotado de razão, mais é levado à
vingança. Juvena] [48] diz: "A vingança é uma felicidade mais doceque
a mesma vida... Sim, para essesbrutos [49] que a menor causa basta
para exasperar; o mais leve motivo servede pretexto a seu furor. Não é
isso porém o que te dirão Crisipo, nem Tales, esse gênio tão humano,
nem o velho que habitava perto de Himeto, onde o mel é tão doce. Não,
mesmoem sua prisão cruel, jamais Sócratesquis compartilhar sua
cicuta com o acusador que o fez bebê-la. Por suas sábias lições, por sua
feliz influência, a filosofia sabedissipar primeiro nossospreconceitose
nos curar pouco a pouco de muitos vícios. Sim, a vingança é a alegria
da fraqueza, ofato de uma alma estreita e pusilânime. Pois então, que-
res a prova? Observa a mulher, nenhum ser no mundo é mais sensível
ao prazer de se vingar" [50] . No mesmo sentido, Lactâncio [51] diz: "Os
ignorantes e os insensatos, se recebem alguma injúria, se deixam levar
por um furor cego e irracional e se esforçam em devolver o mal que os
outros lhes fazem."

[48] Decimus Junius Juvena[is [60?'140], Sal/}ae (X]11, 180 e seguintes).


[49] Soneca(Z)e /ra, 1, 13) diz: 'Z2ra,os está /os nlals aasc7'rel) sâo as cr7bnça$ os
relhas, os doentes; todo ser fraco por natureza é impertinente
[50] Terêncio, em J7ecyra (310-12) diz: "Oóserra as cr7anfas. 4 me/zor ofensa as
:deixa iradas. Por quê? Porque o espírito que as governa 1lão tem Jlenhuma
?nergia. O mesmo ocorre com as mulheres; como as crianças, elas têm muito
pouca razão. "Amiano Marcelino(livro XXVII) fala assim da cólera: 't2s sáó2'0s
a definem como uma úlcera de longa duração e por vezesperpétua, tendo
geralmente por princípio uma grande fraqueza de alma. Alegam como razão
plausível que os doentes são mais irascíveis que aqueles que gozam de boa
saúde. As mulheres, mais que os homens. Os velhos, mais que os jovens. Os
infelizes, mais que aqueles que vivem na prosperidade
[51] Caecilius Firmianus Lactantius [séc. ]V d.C.], De ]z'n .Deu'(VI, 18, 22).
793
CAPÍTULO
H - DASPENAS

4. E pois evidente que o homem não é legitimamente punido pelo


homem, quando não o é senão em vista da punição. Vejamos agora
quais razões de utilidade tornam a pena legitima.

VI.Tríplice utilidade da pena


1.Aqui sereproduz a divisão das penasque seencontra em Platão,
no livro Gorg7as[52], e no fi]ósofo Taurus, nessapassagemqueAulus
Gellius [53] reproduz ostermos. Essasdivisões sãotiradas do fim que
se propõem. Toda a diferença está em que Platão indicou dois fins: a
emenda e o exemplo, enquanto Taurus acrescenta um terceiro, a prote-
ção da dignidade ofendida [54] . Essa é assim definida por Clemente de
Alexandria [55]: "Uma retribuição domal que serelacionaà utilidade
daquele que exige a pena." Aristóte]es [56] que deixa de lado a pena
exemplar admite somente esseterceiro fim com a emenda e diz que a
pena foi instituída "em favor daquele que exige o castigo para Ihe dar
satisfação". P]utarco [57] não a omitiu tampouco, quando disse que "as
penas que seguem imediatamente o crime, não somente reprimem para
o futuro a audácia de fazer mal, mas consolamno mais alto grau aque-
les a quem se havia feito injúria". E propriamente essasatisfação que o
mesmo Aristóteles [58] re]aciona à justiça que ele mesmo chama de
comutativa.

[õ2] Platão, Go/ fas (80)


[53] Aulus Ge[[ius [séc. ]] d.C.], Ai2)cães.4[fJcae (V, 14)

1541Jogo Crisóstomo. em seus comentários soba'ea Ed)úfo/n aos Go/:hfzos (XI, 32)
também propõe essas três coisas: vouOeotcE,'ttpnptoc, KoXcEata,a correção, a satisfa
ção, o exemplo.
[55] ClemensAlexandrinus [150?-230?],PaedagoFus(1, 8, 70)
[56] .RefáÜca(], ]O)
[57] .De gera num. whd. (548 E)
[58] .ÓÍ]'ca a .Aã'cÓjnaco(V. 7)
794
H U GO GROTIUS

2. Essas coisas devem, porém, ser examinadas com mais deta-


lhes. Diremos, pois, que nas penas seconsidera a utilidade daquele que
cometeu a falta ou daquele que tinha interesse que a falta não fosse
cometida ou indistintamente de ambos.

Vll A pena tem por objeto a utilidade do delinquente


e ela pode ser exigida naturalmente para
qualquer pessoa, embora com uma distinção
1. Ao primeiro desses três Hlns .se refere a pena que é chamada
pelos filósofos ora censura, ora punição, ora lição. Aquela que, segundo
ojurisconsulto Paulo [59], é estabelecidaem vista da emenda; "para
tornar sábio", segundo P]atão]60] ; "que cura a alma", segundo Plutarco
[61]. Seu objetivo é de tornar melhor aquele que cometeu a falta, à
maneira da medicina, que age pelos contrários. Como toda ação, sobre-
tudo aquela que se faz de propósito deliberado e à qual sevolta seguida-
mente, produz um certo pendor a repeti-la que, quando está fortalecida,
é chamada hábito. Por essa razão deve-setirar o mais cedo possível dos
vícios suas seduções, o que não pode se realizar melhor que fazendo
perder o gosto de sua doçura, por meio de uma dor que se confere a elas
por conseqüência [62] . Os p]atõnicos, no re]ato deApu]eio [63], pensam

[59] Z. 2ê Dzb, XZ}CTH ]9.


[60] Z)eZ,egvbus(X], 12)
[61] .De gera num. vhd. (550 A, 559 F)
[62] Sêneca(De /zz, 1, 5) diz: 'Z)o /17es/?lo modo que expomos ao á)FO certo dardo de
que queremos corrlgu' as curvas e que o conlprimimos entre vários calltos. não
para o romper, mas para endireita-lo, assim também corrigimos nossospenda
]'es wc2bdospe/n coafáoHbca e moral." O mesmo(.DeIra, 11, 27) acrescenta
:Entre eles haverá bons magistrados, pais, professores, juízes, dos quais se
leve receber os castigos como o escalpelo, a dieta e todo e qualquer rigor
salutar.

[63] Lucius Apu[eius [125-180],-De/Z/afone(11,17)


795
CAPÍTULOXX - DAS PENAS

que "não há suplício mais penoso e mais cruel para um culpado que
obter a impunidade, sem ter ao menos que sofrer a repreensão dos ho-
mens". Em Tácito [64] há: "Quando a a]ma, corrompida e corruptora ao
mesmo tempo, alimenta ela própria o fogo que a devora, deve-se usar
para apagar essafebre remédios tão fortes quanto as paixões que a
acen-deram.

2.Vale a pena ver pela correçãoque sefaz de bocaque a punição


tende a esse fim é naturalmente permitida a toda pessoa de espírito
sadio e que não é presa de vícios da mesma espécie ou simi]ares [65].
'Repreender um amigo por uma falta que o merece é um ato que se
cumpre sem ter a missão, mas que é úti] na vida" [66] .A respeito dos
golpes e outras coisas que contêm a coação, a diferença entre as pessoas
às quais isso é ou não permitido [67], não é feito pe]a natureza (e não
poderiamesmosê-lo,a não ser que a razãorecomendeparticularmente
aos pais de usar essedireito para com seus filhos, por causa da ligação
de afeto que os une a eles), mas é pelas leis que, para evitar rixas,
restringiram essaparentela comum do gênero humano aos mais próxi-
mos afetivamente, como se pode ver tanto alhures quanto no código de
Justiniano, sob o título de -De Emendníünc? PropJhquarum (IX, 15), ao

qual se referem essas palavras de Xenofonte [68] a seus so]dados: "Se


bati em alguém para seu bem, devo ser punido como um pai que castiga
seusfilhos ou um mestre seusdiscípulos. E também para obem que os
médicoscortam e queimam." Lactâncio [69] diz: "Deus nos manda ter

[64] Caius Comelius Tacitus [55-120],.rân/7a/es


(111,54)
[65] Tomas, ÍZ Z quaesÓ. 3& aJ«f. .g,

[66] ']u]]ius Maccius P]autus [254-184 a.C.], 7}lhummus (23).

[67] Ver Agostinho, Elzcü r7d)o/l(cap. 72).

[68] Expeditio Cyri (V. 8, 18).


[69] Caecilius Firmianus Lactantius [séc. ]V d.C.], Dzvlharum /nsó fuÉionum (VI
19, 8)
796
H UGO GROTIUS

sempre a mão sobre os alhos, isto é, de não perder ocasião alguma de


corrigi-los por um castigo continuado, quandofazem o mal, comreceio
de que, ao demonstrar-lhes um amor inútil e uma excessiva indulgên-
cia, não cresçampara o mal e alimentados para osvícios.:

3. Essa espécie de punição não pode se estender até provocar a


morte, a não ser da maneira que é chamada redutiva e que consiste em
reconduzir proposições negativas à espécieque lhes é oposta. Do mesmo
modo que Crista (MarcosXIV. 21) disse que seria melhor para alguns,
isto é, que não seria tão ruim para eles, de jamais ter nascido, assim
também para espíritos que nada pode curar, seria melhor, isto é menos
ruim, morrer do que viver, quandoé certo que vivendo se tornarão
piores. Dessaspessoasé que Sêneca [70] fala quando diz que às vezes é
de interesse daqueles que perecem de perecer. Jâmb]ico [71] diz: "Como
é preferível queimar um abscessoque deixa-lo no estado em que está,
assim também é melhor para um mau morrer que viver." P]utarco [72]
diz de tal homemque "é prejudicial aosoutros, mas que é mais ainda a
si próprio". Galeno, tendo dito que os homens são punidos de morte
primeiramente para impedir o mal que poderiamfazer se vivesseme
em seguida para desviar os outros do crime por temor da pena, acres-
centa: "Em terceiro lugar, é mais vantajoso morrer para homens de
alma tão corrompida porquanto não podem ser reconduzidos à saúde.

4. Há quem pense que é dessesque o apóstolo João (/úoãoV 16)


fala quando diz que cometem pecados que conduzem à morte [73] . Como
as provas disso são sujeitas a engano, a caridade nos ordena de não

[70] Lucius Annaeus Seneca [01? a.C.-65 d.C.], Z)e //a (1, 16)
[71] Protrept. (11).
[721 .Z)egera num. u7hd (551 E)
[73] Jogo Crisóstomo os chama de pessoasatingidas por uma doença incurável
(comentários à /7 0kzrzhólosXZZZ 9-- JZomEDa
XXIX. '4). Juliano(.Oe Gonslanflb.
;tà diz qxxe"como há duas espéciesde faltas, umas que dão uma esperança de
melhora e não eliminam de todo a cura, outras que são cometidas por pecado-
res que nada podecurar; para essaúltima categoria,as leis inventaram, como
sanção,entregar à morte os culpados,não tanto para seu próprio bem, mas
para Q bem de todos os outros.
797
CAPÍTULOm - DAS PENAS

considerar temerariamente ninguém como desesperado,de modo que o


castigo que teria esseHimpor motivo não pode ter lugar senão de modo
extremamente raro.

Vllt. Ela tem mesmopor objeto a utilidade


daquelecontra quem a falta foi cometida; trata-se
da vingança permitida pelo direito das gentes
1. Autilidade daquele que tinha interesse a que a falta não fosse
cometida [74] consiste em impedir que, a seguir, não sofra nada de
parecido da parte do mesmo indivíduo ou de outros. Au]us Ge]]ius [75] ,
segundo Taurus, descreve assim essa espécie: "Quando a dignidade e a
autoridade do homem ofendido devem ser protegidas, com receio que a
impunidade não exponha ao desprezo o cidadão que recebeu uma injú-
ria e não atente contra sua honra." O que ele diz da autoridade lesada,
deve-se entendê-lo também à liberdade de cada um ou de qualquer ou-
tro direito lesado. Lemos em Tácito [76] : "Que e]eassegure seu repouso
por uma justa vingança." Pode-seprover de três maneiras para que o
\ lesadonão sofra mais prejuízo da parte da mesma pessoa:primeira-
mente, se o delinqüente é eliminado; sem seguida, se os meios de
prejudica-lo são desarraigados; enl«im,se pelo mal que teve de sofrer ele
desiste de cometer faltas, o que tem uma estreita relação com a emen-
da, de que já falamos. Obtém-se que aquele que foi lesado não o seja
mais por outros, por meio de uma punição que não seja qualquer, mas
tendo lugar no grande dia, exposto aos olhares de todos e capaz de seJ:vir
de exemplo.

[741Pode-sever até nos animais uma imagem disso.P]ínio(NnfurzZls .IZJkfar7a,


Vlll, l

tSb escxew6 "0 leão se lança para pu11ír o aduitéüo."


[75] Au[us Ge[[ius [séc. ]] d.C.], Nocfes,4fÉlaaé?(V]1, 14, 9)
[76] Caius Corne[iusTacitus [55-120], ..{nJ?ages
(X]V 61)
798
HU GO GROtlUS

2. Se portanto a vingança, mesmo privada, é dirigida em vista


desses fins e nos limites da equidade, não é ilícita, considerando somen-
te o direito de natureza nu, isto é, separadodas leis divinas ehumanas
e das circunstâncias que não são necessárias à coisa, tanto se exercida
por aquele mesmo que foi lesado, quanto por outro, porquanto é confor-
me à natureza que um homem seja ajudado por um homem. Nesse
sentido é que pode ser admitido o pensamento de Cícero [77] , quando,
após ter dito que o direito de natureza não é o que a opinião nos sugere,
mas uma força nascida conosco;entre os exemplos disso ele coloca a
vingança que ele opõe ao perdão. Para que não se tivesse dúvida algu-
ma sabre o alcance do sentido que queria dar à palavra, ele define a
vingança: "Uma ação pela qual, defendendo-se ou se vingando,
rechaçamos de nós e dos nossos que devem nos ser caros a violência e o
ultraje e pela qual punimos as faltas." Numa discussão que Justino
[78] extraiu de 'h'ogo Pompeu, M]itridates diz: "Todo homem saca da
espada contra um salteador se não é por sua vida, ao menos para vin-
gar sua morte." P]utarco [79] chama isso, na vida de Aratus, "a ]ei da
vingança

3. Apoiando-se sobre esse direito natura] [80] para se defender


contra os filisteus, Sançãoprotesta que era inocente, sepor seuturno
fazia sofrer males aosfilisteus que antes o haviam feito sofrer da mes-
ma forma (JuJkesXV. 3). Depois de ter levado a termo sua vingança, se
defende pela mesma razão, dizendo que fez a eles o que eles por primeiro
[he haviam feito. Os de P]atea dizem em Tbcídides [81] : "Nós nos vinga-

[77] Marcus ']lu]]ius Cicero[106-43 a.C.], .De]nvenÉlbne(11,22, 65).


[78] Livro XXXVl11, 4, 2.
[79] .4rafus (1048 D).

[80] Em Plutarco, Râmu]o diz a respeito de Tabus, morto pelos laurentinos, que 'be
Ãau7bbrocadomorte pau'moda': O mesmo Plutarco diz a propósito dos habitan-
tes de Mantinéia que haviam sido maltratadospelos habitantes deAcaiá: ':Es'-
sesmaus tratos levavam em símesmos alguma equidadede vingança" Bdlsâr\n
diz, em Procópio (Ua/2da/]c.,1, 16), que 'b ]hZ])n Jade pague/e que áoJ'lesado
co11traaquele que ihe fez violência é natural".
[81]111,56.
CAPITU
LOH - DASPENAS
799

mos com todo direito, usando dessa lei universal que autoriza a rechaçar
a força pela força." Em seu discurso contra Aristocrata, Demóstenes
[82] diz que é uma ]ei comum entre os homens que nos seja permitido
nos vingar daquele que nos arrebata pela força nossosbens. Jugurta,
em Salústio [83], apóster dito que Aderba] havia atentado contra sua
vida, acrescenta que o povo romano "não faria nada de honesto e de
justo, se o impedisse de usar o direito das gentes", isto é, de se vingar.
Aristides [84], o orador, diz que é aprovado pe]os poetas, pe]os autores de
leis, pelos provérbios, pelos oradores e por todos enfim, "que se faça
vingança contra aqueles que cometeram uma injúria por primeiro'
Ambrósio [85] louva os Macabeus que, mesmo no dia de sábado, vinga-
ram a morte de seus irmãos inocentes [86] . O mesmo [87] , respondendo
aos judeus que se queixam gravemente de que sua sinagoga havia sido
incendiada pelos cristãos, assim se exprime: "Se eu me colocasse sob o 11

ponto de vista do direito das gentes, diria quantas igrejas os judeus 11


incendiaram na épocado império de Juliano." Nessapassagem,desig-
na por direito das naçõeso fato de dar o troco [88]. Civi]is, em Tácito
[89], não fa]a de outro sentido quando diz: "Que digna recompensa rece-
bi por meu trabalhos A morte de um irmão, a prisão, os gritos ferozes
desse exército que queria ter minha cabeça e do que o direito das gentes
pede que eu me vingue."

[82] Demóstenes, (2n /n A7kÉoa'.(610.


[83] Caius Sa[[ustius Crispus [86-36 a.C.], De .BeiçoJugurfüiho (XX]1, 4)
[84] Oz'af.pro quaffuor
185] .Z)eO/Zczlk .ã47nlslroJ-un7
(1, 49, 196). Ver o mesmo, em seu discurso contra
Símaco.

[86] Ver Josefo, Hn6 kü Jades Judaicas(X]]], ]), a respeito da vingança pe]a morte
cle Jogo.

[87] Ed)ÚÉo#a .gg

[88] Assim é que Tito Lívio(1, 14, 1) diz: 'Zbmó os /aurenílbos aglbm de acordocom
o jus gentium.
[89] Caius Corne[ius Tacitus [55-120], H)bfar7be (]V, 32)
800 H UGO GROTI US

4. Como nos negócios que nos dizem respeito e pela afeição que
temos para com os nossos,estamos sujeitos a nos deixar corromper:
logo que várias famílias se tiverem reunido num mesmo local, os juízes
foram instituídos e só a eles foi conferido o poder de vingar os ofendidos,
a liberdade que a natureza havia concedido aos outros se encontrou
desde então supressa. Lucrécio [90] diz: "Como o ressentimento ]evava
a vingança mais longe que as leis o permitem hoje, eles se aborreceram
com esse estado de violência e de anarquia." Em sua queixa contra
Conon, Demóstenes [91] diz que "foi de consenso co]ocar a pena de cada
de[ito na ]ei, não pe]a có]era ou capricho do primeiro impu]so" [92].

[90] Tu[[ius Lucretius Carus [98-55 a.C.], Z)e Natura J?atum (V. 1148-50)
[91] ,4dversus Cano ]eJn (19)

[92] Em (2z'estes(491:511) de Eurípides, Tíndaro assim dec]ama contra Orestes: '7b


me ordenama discutir com eie sobre sabedoria?Se o que é bom e c que é mau
é evidente a todos os olhos, quem está mais desprovido de juízo que esse
homem que não respeitou a justiça e que não respeitou a lei comum dos
gregos? De fato, quando Agamemnon exilou $ua vida sob os golpes que }he
desferiu minha filha, anão detestável, e que eu jamais justificaria, Orestes
devia prosseguir o morticínio e, por uma vingança !egítima, expulsar sua mãe
da casapaterna. Assim ele teria guardadoa moderaçãoem tai infortúnio, teria
respeitado a }ei e os deveresde piedade. Agora, porém, ele caiu na mesma
fatalidade de sua mãe, pois, estando de pleno direito de julga-ia culpada, ele
próprio se tornou mais culpado, ao imolar sua mãe. Eu te perguntaria só isso,
ÀÍeneiau: que a esposa de prestes o mate, que por $ua vez o 61ho mate sua mãe
e que a seguir aquele que nascerdela vingue a morte pela morte, ondese
dele/á a cadaa dessesar])nes.p"
Essasúltimas palavras, cheiasde bom senso,
forneceram material para reflexão de filósofos e de oradores. Em sua disserta-
ção sobre a questão de saber se se deve render injúria por injúria, Máximo de
Hxo d\ü "Se aquele quefo{ vítima de injúria se vingar, o maipassará e saltará,
por assim dizer, de um a outro; uma injúria sucederá a outra injúria. Se esse
direito, uma vez estabelecido,for permitido ao que sofreu o mal de se vingar
contra aquele que o causou, seguindo-se, de novo, que a vingança passará de
um a outro e isso seria justo, porquanto uma e outra parte são iguais. Se assim
for, que alzeste, Júpiter? Queres que nasça para nós a justiça de uma ilÜúria?
(ande estai«eJnos.P
Onde vai se deter o ma/7"Aristides diz em seu discurso sobre
a paz\ "Qua! o grego que ficará se, para vingar aqueles que pereceram, os
sobreviventes devem perpetuamente sofrer os mesmasmales?" O mesmo
Aristides formula um pensamentosemelhante no segundodiscurso que pro'
nunciou após a batalha de Leuctres.
CAPÍTULO H - DAS PENAS

Quintiliano [93] diz: "Retribuir injúria por injúria não é somente con'
trário à justiça, mas à paz. Há a lei, o tribunal, o juiz, a menos que se
tenha vergonha de buscar a razão através das vias da justiça." Os im-
peradores Honório e Teodósio [94] disseram que "a autoridade dosjulga-
mentos, a proteçãode um direito público foram estabelecidospara que
ninguém possasepermitir a vingança por si próprio". O rei Teodorico
[95] diz: "A razão pe]a qual se imaginou o respeito religioso das leis é

para que ninguém faça coisa alguma por sua mão e por seu próprio
impulso.

5.A antiga liberdade natural subsiste,contudo, primeiramente


nos lugares onde não há tribunais, como por exemplo, no mar. Pode-se
talvez referir aqui o que fez Caio Casar, sendo ainda um simples cida-
dão privado. Perseguiu com uma frota improvisada os piratas, pelos
quais havia sido preso, pâs em fuga uma parte de seus navios, afundou
outros e comoo procânsul negligenciasse castigar os piratas feitos prisi-
oneiros, ele retornou ao mar e os fez crucificar [96] . Amesma coisa teria
lugar em locais desertos ou naqueles em que se vive à maneira de nâ-
mades.Assim é que Nicolau Damasceno [97] re]ata que entres os umbros
[98], cadaum fazia justiça por suas próprias mãos. O que sefaz tam-
bém hoje impunemente entre os moscovitas,depois que tenha decorrido

[93 Marcus Fabius Quintilianus [séc. ] d.C.], Dec/amai/o/ies ]Unybres ef JH2hores


(Xlll, n).

tq4À L 24, Nulií, Cod. í)e Judaeis.


[95] Cassiodoro(livro IV. á#)úfo/n lO)
[96] Caius Velleius Patercu[us [séc. ] d.C.], Hlséor]h Rama/za(11,42) e Plutai'co [50?
125?], Causal' (708)

[97] Em Estobeu, .De -LeE2bus(]O, 70)

[98] Será que se fazia referência aos umbros que se encontravam na ltália? O
mesmo costume era seguido em diversos lugares da Africa, segundo o teste-
munho de Leão o Africano (livro 11,nos capítulos em que trata de Teijeut e de
Tefza, além de outras passagens).
802
H UGO GROTIUS

certo tempo desde que se recorreu ao juiz. Os combates singulares que,


antes do cristianismo, estavam em uso entre as naçõesgermânicas [99]
e que, em alguns países, ainda não caíram fora de uso, não têm outra
origem. Por isso é que, em Ve]]eius Patercu]us [100], os germânicos
ficam espantadosao contemplar o conjunto da jurisdição romana, ao
ver que a justiça punha fim às injúrias e que as controvérsias que se
costumava resolver pelas armas, terminavam pela lei.

6.A lei hebraica (.ZVií/nevosXXXV.


19)permite ao parente próxi
mo de um homem morto levar à morte o assassino,fora doslugares de
asilo. Os intérpretes hebreus observam com razão que o talião pode ser
exercido de uma maneira privada para vingar um morto, mas que por
si, por exemplo, quando alguém foi ferido, não pode ser exercido senão
pelo juiz porque a moderação é mais di6cil quando se trata de uma dor
que é própria de cada um]]O]]. Das palavras de Teoclimenes, citadas
na Od7isóvb de Homero [102] , resu]ta que semelhante costume de vin-
gar o assassinato em seu nome privado havia existido entre os mais
antigos gregos. Os exemplos desse costume são sobretudo freqüentes
entre aqueles que não têm juiz comum. SegundoAgostinho [103], é a
partir disso que são chamadas justas as guerras que são feitas para

n
199] Procurando 0
corrigir seus godos, n
o reil Teodorico assim se exorime em Cassiodoro
0

tl\ivlo \\\, Epístola 3Sà: "Renuzlcia a esses costumes abominavelmente


inveterados. Que os negóciossejam tratados antes com as pala\ras do que com
as armas." B na Epístola 24- "Por que recorreis ao combate singular?De que
adianta ao homem ter flua língua, se é a mão armada que defellde sua causa?'
Era costumeentre os traconitas, no oriente, vingar, de qualquer maneira, a
morte de seus parentes próximos.
[100] Caius Ve[[eius Patercu[us[séc.] d.C.], #Jkfar7bRomana(11,118).
1101]Lucius Annaeus Seneca[01? a.C.-65d.C.], Z)e ( /emenólb(1, 203)
[102] Odisséia (XV] 272)

[103] Aure[ius Augustinus [354-430], .4dnofafJonum ih Job Zzóer (VI, q. lO)


Quaestiones in Heptateuchum (N\, \aü
803
CAPÍTULO
H - DASPENAS

vingar injúrias. P]atão [104] aprova que se faça a guerra "até que fique
les que estiveram em falta sejam forçados a dar satisfação por seu cas
tifo às pessoas inofensivas contra quem fizeram o mal"

IX. De igual modo, a utilidade de todos


1. A utilidade de todos indistintamente, que era o terceiro fim,
tem os mesmosaspectos que aquele que diz respeito ao lesado. De uma
parte trata-se de impedir que aquele que prejudicou a um sónão preju-
dique outros, o que tem lugar em fazer desaparecer ou enfraquecendo
ou contendo-o de tal ihaneira que não possa prejudicar ou corrigindo-o.
Por outro lado, deve-seimpedir que outros indivíduos, instigados pela
impunidade [105], não setornem prejudiciais aosoutros, o que se ob-
tém por meio de suplícios que impressionam a vista, que os gregos
chamam "nctpcE8et'rFCETct",os latinos designam de exemplos, e que são
empregados para que a pena de um só seja objeto de temor de grande
número, para que, pelo gênero do castigo, os outros possam ser intimi-
dados,como falam as ]eis [106] , "para que os outros prevejam e temam
o que lhes pode acontecer", como diz Demóstenes [107].
2. O usufruto desse direito pertence também naturalmente a cada
um. Assim é que P]utarco [108] diz que um homem de bem é designado
magistrado pela natureza e mesmo magistrado perpétuo, pois o primei-

[104] Z)e .RePuÓ/}ca(V. 16)


[105] Políbio viu ]eõescrucificados para impedi-]os de devorar os homens, a fim de
que os outros, temendo castigo similar, fossem desencorajadosde causar a
mesmo dano(Plínio, Àhfüra/]k .llhóor7b,Vl11, 16).
t\Q6ÃL. 7, Quoniam,Cod.ad LegeJ]]Façam; L. 1, Cod.,Ad lerem Julgamrepet.
[107] ]h .Azedaram, 77.

[108] .f)raec.PoJ.(817 E, F). O mesmoautor diz, em Hdn de Pe/ópfdas,que 'b


primeira e mais alltiga lei quer que aqueles que não estão eln condiçõesde se
manter a si mesmos se submetem aos que podem trabalhar eâlcazmente para
sua manutenção". T. na. Vida de Filopemen' "Tomou consigoalguns de seus
concidadãos,que não esperaram o momento âxado pelas leis, nem aquele, em
804
H U GO GROíiUS

ro passo é deferido pela própria lei de natureza ao que pratica a justiça.


Assim é que Cícero [109] prova, pe]o exemp]o de Nasica, que um sábio
não é nunca um homem privado. Assim é que Horácio [110] chama
Lollius de "um cônsul não por um só ano" e que Eurípides diz em
.ãoüJkenlb 7h.4uZldes [111] : "Aque]e que é superior pe]a sabedoria de sua
alma gera uma magistratura." Isso contudo sedeveentender num Es-
tado, enquanto as leis desse Estado o comportem.

3. Demócrito [11.2]fa]a assim dessedireito natura]. Citarei


suas palavras porque são notáveis. Primeiramente essa é sua opi
dão com relação ao direito de matar os animais: "No que diz respei
to ao fato de matar ou não matar os animais, a solução é essa: todo
aqueleque tiver matado animais que fazem ou tentam fazer algum

que deviam)lser dados os sufrágios, mas que o seguiam para obedecer a essa !ei
de natureza, seguindoa qua! aquele que tem ]llaís autoridade deve comandar
os que são me/]os coi?lidei'afaz)." Encontra-se algo de semelhante no mesmo
historiador, ao í'mal da vida de T. Flaminius. O autor do Diálogo sobre as causas
da corrupção da eloqüência diz, falando dos ot'odores: ':Elabora fossem subzp/es
privados, }]ão erai]] certamente sem autoridade, porquanto governavam o povo
e o sellado poz seus c'o/lse7Zose sua JJ?/7uâ?cua. " Jogo Crisóstomo, em seus
comentários à /7,8pJbfo/a aos Go/ú]f]os ZZZ /3, diz de Moisés: '7Mes/ ]o a 2ées de
ter íêito partir o povo, elejá era um líder por seus méritos. Era portanto ullla
insensata objeçãoa que ihe fazia essehebreu que !he dizia: Quem te eseabeie
ceu sobre nós colho magistrado e juiz? Que a1ldas dizendo? Vês provas de fato
e discutem sobre o }lolne? E colho se alguém, vendo um hábi! cirurgião que vem
en] seu socorro para fazer urna operaçãonum membro doentio de seu corpo,
ihe pergu1ltasse: Quem te estabeleceu médico? suei)l te ordellou de fazer esta
operaçãoelll ]lliill? E !nÍnha arte e tua doença,meu carolAssim também foi
a habilidade de Mloisés que o tornou tai, pois comandar não é somellte uma
dignidade, mas uma arte e certamellte, a 11aaissub i111ede todas as artes." O
mesmo escritor, no comentário à .%plüéo/aaos .87ZszosJZ?lao final, trata desse
mesmo assunto."Tua injustiça, tua crueldademe collstituem chefe e juiz.
1109] Marcus Tu[[ius Cicero [106-43 a.C.], 7bsau/ande 22íspuéaÉ]'ol?es
(]V. 23, 51)

[110] Quintus Horatius F[accus [65-08 a.C.] Odarum seu CarminuJn l,ibü {lN, 9
39).
lin] ÍpÀJk ..4u].(374)
[112] Em Estobeu (44, 16-17)
805
CAPÍTULOXX - DAS PENAS

mal é inocente,pelosimples princípio que é melhor ter feito que


não ter feito." E logo acrescenta: "É de todo e sem distinção per'
miudo matar tudo o que nos ofendeinjustamente Certamente
não é inverossímil que os homens de bem tenham vivido na prá-
tica desse costume antes do di]úvio]113] , antes que Deus tivesse
formulado sua vontade de converter os outros animais em ali-
mento para os homens. Ele continua: "0 que escrevemos sobre
as raposas e as serpentes venenosas parece dever ser praticado
entre os homens." E acrescenta: "Aquele que matou um ladrão e
um salteador, da maneira que tiver sido, por suas próprias mãos
ou por sua ordem, ou por sua lnstigação é inocente." Sêneca]114]
parece ter em vista essas passagens quando diz: "Se faço decepar
uma cabeçaculpada..., meu semblante e minha alma não serãodi-
ferentes de quando mata um réptil ou um animal venenoso"[115]. E

[113 Dicearco fala de alguns personagens que haviam conservado depois o antigo
costumee Jerânimo cita outros autores (lue o atestam (ao/IÉIa Jovlhla/ u ]]
11 13)
[lt4] Lucius Annaeus Seneca[Ol? a.C.-65 d.C.], Z)e/ra (1, 16, 5).
t\\5À "Como }natalllos !ogo e sem demora as víboras, os escorpiõese todos os outros
allimais pre.judiciaispor seu ve]]eno,a]]tes que lias piqueil} ou quelias ata-
quem de alguma fauna, tomando assim nossas medidas para que não seja'
mos atingidos por Jlenhum dano da natureza nlá que está neles, assim tam-
bém éjusto que sejam punidos os homens que, tendo recebido uma natureza
afável, por causa da foJlte de razão que os leva a viver em sociedade, passam
a um estado de crueldade digna dos allimais ferozes e adquüem interesse e
prazer en] prejudicar ao maior ]lúmero possível." Isso d\z Fq\ax, em De
Spec/a/)óus Z,eglóus (11, 18). Cláudio de Nápoles, em Porfírio (Z)e ]io/] Esu
Azlímalium. 'L4à. dÀz."Não há ninguém que, se possível, não mate uma ser-
pente que encontrou, temendo que ele mesmo ou outro possa ser ferido.""'Jer
também o que segue, se houver interesse. No mesmolocal, ele diz pouca
àepots. "Matamos a serpente e o escorpião, mesmo quando não somos ataca-
dos por eles, pa!'a que não causem dano a outros e exercemos essa vingança
/70Interesse do género bu/na/?o."O próprio Porfírio diz no livro 11: 'Hss/m
colho temos alguma espécie de sociedade com os homens maus, mesmo cam
aqueles que são levados por sua natureza e por sua maldade, como por uln
vento violento. a fazer o mal a qualquer um, sem distinção, todosnós pensa'
mos contudo que esseshomens podem ser legitimamente punidos par nós,
assim também, não é fora de razão matar aqueles animais que são injustos
806 H U GO GROTI US

em outra passagem]116] : "As próprias víboras, as serpentes de água,


todo réptil cuja mordida ou botes podem prejudicar, não os esmagaría-
mos se, como as outras espécies, se dispusessem ou pudessem cessar de
ser perigosos para nós e para todos. Assim não puniremos porque se
pecou, mas para que nao se peque mais.

4. Como a informação do fato exige muitas vezes uma grande


diligência e a estimativa da pena muita prudência e equidadepara im-
pedir que, cada um presumindo demais por si próprio, e os outros não
compartilhando dessaopinião, não surjam rixas, pareceubom às co-
munidades legítimas de homens escolher aqueles que elas pensavam
ser os melhores e os mais prudentes ou que esperavam dever sê-lo. O
mesmo Demócrito [117] diz que "as ]eis não teriam impedido os homens
de viver cada um de acordo com sua vontade, se um não fosse levado a
ofender o outro, pois a inveja abre a via da sedição'

5. Do mesmo modo que isso se passa na vingança,.como dissemos


há pouco, assim também nessapunição que tem por objetivo o exemplo,
subsistem vestígios e restos do antigo direito, nos lugares e entre as
pessoas que não sãosubmetidas a tribunais determinados e, ainda, em
certos casos de exceção.Assim é que nos costumes dos hebreus
(.Deufev'onó/n/bXl11, 9), o hebreu que abandonasse a Deus e a lei de
Deus ou que mostrasseo caminho dosfalsos cultos podia ser condenado
imediatamente à morte por qua]quer homem [118]. Os hebreus cha-
mam isso de "um julgamento de zelo" (/Macaóeus 11,24,26) que, dizem

per sua }tatureza, que são !evadosa prejudicar e são !evadospelo impulso de
sua natureza a fazer o mai para o primeiro que !hes vier ao encontro." ?axece
ser isso que Pitágoras quer, como se lê em Ovídio(/IZefamo/:doses,XVI 108):
:Aãrmamos que os corpos que ameaçam nossa vida são entregues à morte
sem crim e.

[116]Lucius Annaeus Seneca[O[? a.C.-65d.C.], De ]ra (11,31, 8).


[117] Em Estobeu(38, 57)
[118] Acrescente-se a passagem de Josefo(.4nÉzbüldndesandai'cas,X]1, 8), Moisés
Maimênides em MZ7.{rÉl&os e 22ü'ecÉ.(livro 111,cap. 41).
CAPITULOXX - DAS PENAS
807

eles, foi exercido pela primeira vez por Finéias (.ZViímeros


XXV. 7) e
desde então se fixou em costume. Assim é que Matatias (/iMacaóeusll,
25) matou um certo judeu que se manchava com ritos gregos.Assim é
relatado no livro popularmente dito o terceiro dosMacabeus que trezen-
tos outros judeus foram mortos pelos de sua nação. Não foi sob outro
pretexto que a lapidação foi decidida contra Estêvão (4ÉosdosHp(ásfa/os
Vl1, 57) e cine foi feita uma conjuração contra Paulo(Áfos dosJpcásfc2Zos
XXl11, 13). Vários outros exemp]os dessa espécieexistem em Fí]on [119]
e em Josefo.

6.Mais, entre muitos povos,o direito absoluto de punir, mesmo


até matar, ficou para os donos sobre seus escravos e para os pais sobre
seus filhos. Assim é que em Esparta foi permitido aos Eforos de conde-
nar à morte um cidadão, semjulgamento. Pelo que dissemos,pode-se
compreender qual é o direito de natureza comrelação às penas e até que
ponto se conservou.

X. O que a lei evangélica


estabeleceu sobre esse assunto
11
1.Agora é preciso ver se a lei evangélica circunscreveu de manei-
ra mais estrita essaliberdade. Certamente, comodissemosem outro
local (livro 11,cap. 1, $ X, 1) não é de se estranhar que certas coisas,
permitidas pela natureza e pelas leis civis, sejam proibidas pela lei divi-
na, lei perfeitíssima, que promete uma recompensa acima da natureza [1

IJI
[119] Dele essa passagem, do ]ivro De Sbcr7Elca/ Z/Z)us (11): '7b/ achem det'e ser
punido comoinimigo público, sei]] c031sideraras relaçõesmais estreitas que
se possa ter com ele; seus c013seihosdevem ser levados a conhecimento de
todas as pessoas que amam a piedade, a âm de que cada um agarra sem
demorapara infligir o suplício a essehomem ímpio, com plena persuasão que
o aJ«dorde matar essecomem ó üm santa des(?/b.
" Há outra passagemnão
menos notáve] ao 6ina] do ]ivro .De]UonaJ«cuja(1,7).

111
l
808
H UGO GROTlus

humana. Para obter essarecompensanão é semrazão que se requer


virtudes que ultrapassem os simples preceitos da natureza. Os castigos
[120] que não deixam após si infâmia, nem dano permanente e que são
necessáriosà razão da idade ou de qualquer outra qualidade, se são
infligidos por aquelesa quem asleis humanas o permite, por exemplo
pelo pai ou mãe, pelos tutores, mestres, aqueles que ensinam, nada têm
que repugne aos preceitos evangélicos, como é dado de modo suficiente
compreender segundo a própria natureza da coisa. Esses remédios das
almas não são, de fato, menos inocentes que os medicamentos desagra-
dáveis aos sentidos .

2. Deve-se decidir de outro modo no que concerne à vingança. Se


demonstramosanteriormente queela é ilícita, mesmonaturalmente,
enquanto não tem outro objetivo senãoo de satisfazer o ressentimento
do ofendido, por isso necessariamente não deve convir ao Evangelho. A
lei hebraica não somente proíbe conservar ódio contra seu próximo, isto
é,contra o homem de sua nação (Z,eçdZzboXIX, 7), mas prescrevepres'
tar a tais inimigos alguns serviços comuns (Êxodo XXl11, 4, 5). Por isso
é que o nome de próximo, tendo sido estendido a todos os homens pelo
Evangelho, é evidente que é exigido de nós não somente para que não
prejudiquemos nossosinimigos, mas até que lhes façamos o bem, o que
é também formalmente prescrito em MaÉeusV.44. A lei, contudo, per-
mitia aos hebreus de se vingar das injúrias mais graves, não por suas
próprias mãos, mais recorrendo ao juiz. Cristo, porém, não nos permite
a mesma coisa, o que resulta dessa oposição: "Entendestes que foi dito
olho por olho", depois acrescenta: "E eu vos digo..." Embora, de fato, as
palavras que seguemtenham propriamente levado ao direito de rechaçar
uma injúria e restrinjam ao menos também até certo ponto essa facul-

[120] Não repümir as faltas dos servos e dosfumos é um pecado (Lactâncio, Z)e Ira
Z)eZ cap. 18, onde há muitas coisas a esse respeito).
809
CAPÍTULO m - DAS PENAS

dade, elas devem, no entanto, com maior razão, ser consideradas como
desaprovando a vingança, porquanto rejeitam a antiga permissão como
conveniente a uma épocamais imperfeita [121]: "Não que uma justa
vingança sejauma coisa iníqua, mas porquea paciência prevalece so-
bre ela", como é dito nas OonsÉ7fuÉ70nes
de C]emente [122] .

3. Tertuliano [123] se exprime desse modo sobre esse ponto: Cris-


ta nos ensina uma paciência na verdade bem nova, porquanto proíbe o
que o Criador havia permitido dizendo olho por olho e dente por dente,
pois ele manda, ao contrário, apresentar até mesmo a outra face e,
além da túnica, abandonar também o manto. Parece certamente que
Cristo tenha acrescentado essespreceitos como um suplemento condor
nle aos preceitos do Criador. Por isso é que se deve procurar antes de
tudo se o preceito da paciência é formulado pelo Criador. Assim é que ele
prescreve, pela boca de Zacarias, que ninguém conserva a memória da
maldade de seu irmão e mesmo de seu próximo e diz ainda: Que nin-

[121] O/JioJpara/áo que é, se assim se pode dizer, a justiça dos injustos. Agostinho
(in .ETPosJfone Psa/m/ aUZZDcitado em C. Sed dlHbrenf/ae, causa 23, quaesf.
3
[122] Constitutiones Apostolicae (N\, zaà.

[123] .4dversus .l/arclone/;?(IV. 16). O mesmo diz, em seu livro sobre a PacJgnc/a
Crista, acrescentando a graça à ]ei. para estender e aperfeiçoar a lei, se
serviu do preceito da paciência porque era a única coisa que havia faltado no
do /]o e/]s bo da ./usf/ç;a."Jogo Crisóstomo, no comentário à Edlihfo/a aos
Efésios IV. 13. aEtxma. "Ele diz a esse respeito: olho por olho, dente por dente,
não
para reter as mãos do outro, }aãopal'a excitar as tuas, para proteger
somente teus olhos, mas para salvar os olhos de ambos. Eu contudo me
perguntava: como a vingança é permitida, por que se censura aqueles que a
e/n recon'em?" Pouco depois acrescenta: 'Z)eus perdoa aos que o senil)nenfo
de uma injúria recebida os levou impetuosamente à wngança; ê por Isso que
ele diz olho por olho; mas em contrapartida, as vias das pessoascoléricas
levam à morte. Se, enquallto era permitido arrancar olho por olho, o castigo
da pessoalevada pela cólera era tão grande, quanto mais não deveria ser
eiatre aqueles que, tendo sofrido algum dano, têm a ordem de se expor a
novas lnltlrlas7'
\
810
H UGO GROTIUS

guém remos em seu espírito a maldade de seu próximo. Aquele que


prescreveu o esquecimento prescreveu com maior razão a paciência da
injúria. Mais, quando diz a mim a vingança que eu a exercerei,ensina
por Isso mesmo a paciência com a qual se deve esperar essa vingança.
Parece,pois, tanto mais incompatível que aquele que não somente proí-
be retribuir da mesmaforma, mas que proíbeainda a vingança e mes-
mo a lembrança e o pensamento da injúria, possa querer que se exija
dente por dente, olho por olho, como revanche de uma injúria, quando
está claro para nós que se Deus permitiu cobrar olho por olho e dente
por dente não tenha sido com o propósito de permitir uma segunda
injúria, a título de talhão, porquanto já havia proibido e interdito a vin-
gança, mas em vista de impedir a primeira injúria que também havia
proibido opondo-a ao talião, a fim de que cada um, tendo em vista a
permissão de uma segunda injúria, se abstivesse da primeira. Ele sabe,
de fato, que a violência é mais facilmente reprimida pela perspectiva do
talhão que por uma promessa de vingança. Uma e outra tinham sua
razão de ser para responder à natureza e à fé dos homens, a 6lm de que
aquele que cresce em Deus esperassede Deus a vingança e que aquele
que não tivesse tanta fé aprendesse as leis do talião.

4. Dono do sábado e da lei e de todas as vontades de seu Pai.


Cristo revelou e explicou claramente a intenção dessa lei que tinha
necessidadede interpretação, recomendando apresentar a outra face, a
fim de extinguir tanto mais em nós o desejo de trocar injúria por injú-
ria, desejoque a lei havia queridoimpedir pelo talião e que certamente
a profecia havia proibido de modomanifesto, vetando a lembrança da
injúria e repassando o cuidado da vingança a Deus. Se, pois, Crista
ordenou alguma coisa por um preceito que não é contrário aos pre'
cedentes, mas que vem em seu apoio, não destruiu as regras de conduta
dadas pelo Criador. Enfim, se considerarmos a razão pela qual se pres'
creve a paciência e uma paciência tão completa e perfeita, encontrare-
811
CAPÍTULO
XX- DASPENAS

mos que ela não i;ena nenhuma força se não fosse proposta pelo Criador
que promete a vingança e se encarrega de fornecer o juiz. Por outro
lado, se uma tão grande soma de paciência, consistindo não somente
em hão devolver golpe por golpe, mas a estender a outra face, não so-
mente a não responder à maledicência pela maledicência, mas mesmo
em falar bem, e não somente reter sua túnica, mas dar a mais o manto,
é imposta para mim por aquele que não deve me proibir, é verdadeira-
mente porque me prescreve a paciência. Ele não mostra a recompensa
de seu preceito, quero dizer, o fruto de minha paciência que é a vingan-
ça, pois deveria ter-me permitido, se não a dá ele mesmo,ou deveria
exercer por mim se não me permitiu fazê-lo eu mesmo, porquanto im-
porta à regra que a injúria seja vingada. Toda iniqüidade é refreada
pelo temor da vingança. Onde a liberdade estiver de todo desen6'eada, a
iniquidade, segura da impunidade, dominará por toda parte, vazando
os dois olhos e quebrando todos os dentes.

5. Tertuliano, como veremos, pensa que a satisfação pelo talião


não somente era vetada aos cristãos, mas que não era mesmo permiti-
da aos hebreus como uma coisa isenta de vício e que o era somente para
prevenir um mal maior. Não há que duvidar que isso não sejaverdadei-
ro no que diz respeito a uma perseguiçãoprovinda do ódio, como isso
resulta do que foi dito antes. Essa perseguição foi mesmo desaprovada
por aqueles que, entre os hebreus, se distinguiam por sua sabedoria e
que consideravam não somente os termos, mas o objetivo da lei, como
nos informa Fí[on [124] , no qua] os judeus de A]exandria falam assim
da infelicidade de Flaccus, o perseguidor dos judeus: "Não temos pra
zer, Senhor,em procurar a vingança contra um inimigo, pois aprende-
mos das leis sagradas a ter compaixão dos homens" [125]. A isso se

[124] in .1?7accum
(14)

[125] Ver Orígenes,Hdt'ersus OeJsum(V]1, 25)


812 H U GO G'ROTIUS

refere o que Crista exigiu de nósindistintamente, de perdoar a todos


aqueles que se tornaram culpados para conosco (MnÉeusVI, 14-15), isto
é, de não lhes fazer, nem de lhes desejar mal algum por ressentimento
daquilo que nos causaram. Aquele que o faz, para falar com Claudiano
[126], "é um ser crue] e que parece se arrogar a vingança das ]eis". A
esse propósito Lactâncio [127] , ]embrando essa frase de Cícero [128] "0
primeiro dever da justiça é de não prejudicar ninguém, a menos de ter
sido provocado por alguma injúria", diz que um pensamento que era
simples e verdadeiro foi corrompido pelo acréscimo de duas palavras.
Ambrósio [129] diz que essa mesma pa]avra de Cícero não é apoiada na
autoridade do Evangelho.

6. Que dizer da vingança considerada não tanto enquanto se rede


re ao passado,mas enquantotem por objetivo tomar precauçõespara o
futuro? Cristo quer seguramente que seja também posta de lado, pri
melro se aque]e que nos ]esoudá testemunho de espírito penitente [130],
como se podeverificar em Zuc;asXVll, EH3s/oslVI32, Cb/ossenseslll,
3, onde se trata de um perdão mais completo, isto é, um perdão que
recoloca aquele que cometeu a falta no direito da antiga amizade. Disso
se segue que não se deve exigir nada dele a título de pena. Mais, mesmo
se os sinais de tal arrependimento não existirem, Crista nos ensina pelo
preceito de não abandonar sua túnica, que uma ofensa que não é muito
consideráve[ deve ser desprezada. P]atão [131] também disse que não se

[126] C[audius C[audianus[séc. ]V d.C.], .Oe C0/7suJnfu ]i7a v] ]UnnJI) T%eodnl(224)


[127] Caeci[ius Firmianus Lactantius [séc. ]V d.C.], Dur7hai«un? ]nsílfuÉlonum (V],
18)

[128] Marcas ']b]]ius Cicero [106-43 a.C.], Z)e O/HcJ]h(1, 7, 20)


[129] Ambrósio [340?-397], Z)e O/HcT]s.4Zin/sfroru/n (1, 28, 131)

[130] Ver Moisés Maimõnides, citado pelo eruditíssimo Constantino, no livro .De
Z)anão Z)afo (Vl11, 7)
[131] C22'fo (lO).
813
CAPÍTULO
XX- DASPENAS

deve retribuir mal com mal, "mesmo se alguma coisa mais difícil de
suportar nos ameaçasse". Esse pensamento se encontra igualmente em
Máximo de Tiro. Musonius dizia que não inventaria ou que não aconse-
lhava ninguém a intentar um "processode injúria", isto é uma ação
para alguma injúria recebida, comoaquele que Crista indica sobo nome
debofetada, pois é bem mais conveniente que tais ofensassejam perdo-
adas.

7. Seo fato de deixar passar a injúria despercebidatraz grande


perigo, devemos nos contentar em tomar uma segurança que prejudi-
que o menos possível. Mesmo entre os hebreus, o talhão não estava em
uso, como Josefo [132] e outros doutores dos hebreus o observam, mas
aquele que havia sido lesado tinha costume de receber, independente-
mente das despesasfeitas por ele, com relação às quais existe uma lei à
parte no ExodoXXI, 19 (que indica, de fato, uma restituição simples,
não contendo nada de pena]) [133], uma mu]ta pecuniária a títu]o de
ta[ião [134] . ]sso se praticava também em Romã, como Favorinus nos

informa a respeito em Au]us Ge]]ius [135]. Assim é que José, o pai


putativo de Nosso Senhor Jesus, achando sua esposa culpada de adulté
rio, preferia se separar dela pe]o divórcio [136] do que ser a causa de
expâ-la ao desprezo.Diz-se que teria feito isso porqueera justo, isto é,
homem de bem e sociáve]. Sobre issoAmbrósio [137] diz que a pessoa do

[132] Flávio Josefo 137?-100?i, ,4nílküldades Judaicas (IV. 8, 35)

[133] Z,e/ dos v]) godos(V], 13).


[134] Ver o mesmo Constantino, no citado cap. V]]], l
[135] Au[us Ge[[ius [séc. ]] d. C.], Àrocfes.4fücae (20, 1)

[136] Agostinho(Z)e ,4du/fer2hJi (b/4/ugl]i, 11,15) diz: ';Sq o que ó a op n ão ma )


verdadeira, não é permitido ao homem cristão matar sua esposa adúltera,
mas somente despedi-la.
[137]Ambrósio,
in J9sa/mum
(;mZZZSerenomZ 5.
814 H UGO Gxoíius

justo fica distante, não somente pela atrocidade da vingança, mas mes-
mo pe[a severidade da acusação]138].Lactâncio]139] havia dito tam-
bém antes: "Não será permitido ao justo acusar alguém de um crime
capita[." Justino [140], falando dos acusadoresdos cristãos, diz: "Não
queremos que aqueles que nos caluniam sejam punidos. Sua maldade
lhes basta, bem como sua ignorância das coisas boas.

8. Restam as penas que têm por objeto prover não ao interesse


privado, mas ao bem público, seja suprimindo ou contendo aquele que
prejudicou, de maneira que não prejudique mais ninguém, seja fazendo
desistir os outros pela severidade do exemplo. Essas penas não foram
abolidas por Cristo, como provámos aliás por esseargumento incontes-
tável que, quando dava seus preceitos, declarava ao mesmo tempo que
não estava abolindo nada da lei. Alei de Moisés que, em matéria dessas
coisas,devia subsistir enquanto o Estado subsistisse, mandava rigoro-
samente aos magistrados punir os homicidas e certos outros crimes
(Êxodo XXV. 14 e XXI, 14; Números XXXl11, 14, 37 e XXXV. 31;
.Deuferonân bXXIX, 13 e XXIX, 13). Se os preceitos de Cristo puderam
coexistir com a lei de Moisés, tendo-sepresente que ela iníligia suplícios
mesmo capitais [141] , podem existir também com as ]eis humanas que
imitam nesse ponto a ]ei divina [142]

[138] Ver Hincmar(.Z)e .Oívoz.óo, ad inferro#aÍ]o ]en] V ]h á7he), (hn. Z,aJco$ c'ousa
Z quaesóo 4, e sobre isso Panormit. Gailius(De Face PuóJlca, Vl11, 3). Acres-
cente-se o cânon .4causasf7(Do .4causaíl0/2óus, como é citado em Brocardo
[139] Caeci[ius Firmianus Lactantius]séc. ]V d.C.] , .22ívÚlai-um ]nsÉJfuÜonum(V],
10)
[140] Apologeticus(1, 7). Do mesmo é esse texto: 'RUo gt/ez'e/ldo uos }.7hgaJ"do qt/e
quer que seja, como o ordenou o novo fundador da }ei." cxescenke-seo ({ue
será dito a seguir, $ XV.
[141] Josefo e]ogia os fariseus por sua moderaçãoem punir. Disso decorrem as
muitas exceçõesàs leis relativas às penas públicas. Disso decorre ainda o que
é dito no Za/mud título ,lüefuóo/ü,que, ao ser indispensavelmente obrigado a
condenar alguém à morte, é preciso fazê-lo sofrer o menos possível
[142] Agostinho, Quaesf. .Frango/lb., /Juro -C quaesüo .X:
815
CAPÍTULO m - DAS PENAS

XI. Apresenta-se solução


para o argumento tirado da misericórdia
de Deus manifestada no Evangelho
1. Há pessoas que, para defender a opinião contrária, colocam
em evidência a soberana doçura de Deus na nova aliança que, por con'
seguinte, deve ser seguida pelos homens e mesmo pelos magistrados,
como representantes de Deus. Não negamos que isso não seja verdade
de algum modo, mas isso não vai tão longe quanto querem. A imensa
misericórdia de Deus manifestada na nova aliança diz respeito espe-
cialmente às faltas cometidas contra a lei primitiva ou mesmo contra a
lei de Moisés, antes do conhecimento do Evangelho(,4Éos dosHpásfo/os
XVl1, 36; Roldanas11, 25; .4fos Xl11, 381,17eõreus
IX, 15). Para as
faltas que se cometem depois, sobretudo sehouver obstinação, elas têm
a ameaça de um julgamento muito mais severo do que aquele estabele-
cido pela lei de Moisés [143] (JZeõreus 11, 23; X, 29; MnfeusV. 21-22,
18). Não é somente na outra vida que Deus exerce seu castigo sobre
esses tipos de faltas, mas muitas vezes mesmo nessa vida (/Go/:zhílos
XI, 3). O perdão dessas faltas não se obtém, a menos que o indivíduo
não setenha comoque punido a si mesmo[144], por uma profunda dor
(/(l;la/:zhÜos
XI, 3; 27Go/:zÚÜos
11,7, 27).
2. Os mesmos insistem para que a impunidade seja ao menos
concedida aos que são conduzidos pelo arrependimento. Para não dizer
que os homens têm muita dificuldade para constatar o verdadeiro arre-
pendimento e que todo culpado teria a impunidade de seus erros se

[143]João Crisóstomo diz a lesma coisa,tanto em seu discurso Hd.])abrem /üde/em,


como em seu segundo discurso sobre o Jejum
[144] "0 pecador deve- antes do percíãq a:qp/ararseu estado'; diz Tertu]iano(De
/)oenifenffa. 6). Ambrósio. no comentário sobre o Salmo X:XXr7Z Jogo
Crisóstomo, no comentário sobre a / E#)ÊfoZaaos Ob/:húos(Hbmllfa XXVIII)
e sobre JUafeus(.HbmiZlb XLl1, 3). Acrescente-se 17 G2/:húos Vl1, 9-10.
816 H UGO GROTIUS

bastasse testemunhar um sinal qualquer de arrependimento, Deus


mesmo não remete sempre toda a pena aos que se entregam ao arrepen
dimento, o que resulta ainda do exemplo de Davi. Do mesmo modo,
pois, que Deus pede remeter a pena da lei, isto é, uma morte violenta ou
prematura, não deixando de fazer o delinqüente soõ'er pelos males não
pouco consideráveis, do mesmo modo pode também remeter no presente
a pena de morte eterna [145] e até punir e]e mesmo o pecador por uma
morte prematura [146] ou ainda querer mesmo que assim seja punido
pelo magistrado.

XII. Do que se corta rente ao arrepender-se


1. De outro lado, outros encontram aqui o que reconsiderar por'
que na vida se suprime de vez o tempo para se arrepender. Eles sabem
que os magistrados piedosos consideram muito isso e que ninguém é
levado ao suplício sem que se tenha dado a ele o tempo para poder reco-
nhecer seus pecadose detesta-los seriamente. O exemplo do ladrão cru-
cificado com Cristo prova que um arrependimento semelhante por
ser agradável a Deus, mesmoquê as obras, sustadas pela morte, não o
sigam [147]. Se se diz que uma vida mais ]onga teria podido servir a um
arrependimento mais sério, poderia ser respondido que indivíduos são
encontrados às vezes, aosquais se poderia dizer com razão essas pala-
vras de Sêneca[1481:"0 único bem que te resta, nós o daremosa ti

[145] Synesius, XÓpikfo/a 44.

[146] Jerânimo, em seu comentário sobre o profeta Naum (cap. ]), passagem citada
em (huna mZZZ quaesf7bá Agatias(V. 4), segundoPlatão
[147] Jerânimo a Dâmaso, citado no cânon .ü27paMu/2a (S84 .De /ba fe/]Élb, .D&áücÉzb ].

[148] Lucius Annaeus Seneca [Ol? a.C.-65 d.C.], .De ]ra (1, 16). De]e é também essa
passagemdo livro De .BeneálaÍz)(Vl1,20): 'iSaJ}dn v2'dacíum remédiopai'a
gente desse tipo e o que pode ocorrer de melhor para aquele que não tornará
mais a ser e/e mesmo éí de se reÉímx "Do mesmo ainda: 'thm a mesma mão
eu prestaria um serviço a todos; eu o prestaria a alguém desse tipo, pois para
tais pessoassair da vida é um remédio.
CAPITU LO XX - DAS PENAS
817

imediatamente, a morte." E também essas pa]avras do mesmo [149] : "A


6im de que cessem de ser maus, pelo único meio que possuem." 0 61óso-
fo Eusébio [150] havia dito a mesma coisa: "Porquanto e]es não podem
de outro modo, a não ser dessa maneira se libertar dos laços de sua
maldade, o meio que têm para dela escapar."

2. Essas coisas, pois, além daquelas que descrevemos no começo


da obra [15 1], constituam uma resposta aos que querem que os suplíci-
os, todos em geral ou os suplícios capitais, sejam proibidos sem exceção
alguma aos cristãos. O apóstolo nos ensina o contrário, quando, tendo
compreendido o uso da espadanas atribuições reais, como para exercer
a vingança divina, ele diz que se deve orar para que os reis setornem
cristãos e que na qualidade de reis protejam os inocentes. Isso não pode
(tal é a perversidade de grande parte dos homens, mesmo após a propa'
Ração do Evangelho) ter lugar se a audácia dos outros não é reprimida
pela morte de alguns, porquanto a inocência, no meio de tantos cada
falsos e suplícios de culpados, não está ainda suficientemente em se-
gurança.

3. Não seria, contudo, fora de propósito oferecer para imitar aos


chefes cristãos, ao menos sob alguns aspectos, o exemplo do rei egípcio
Sabacon [152], muito e]ogiado por sua piedade, pe]o qua] penas capitais
foram, com grande sucesso, mudadas em condenação ao trabalho, se
Fundo o re]ato de Diodoro [153] . Estrabão [154] diz que a]gumas nações

[149] Lucius Annaeus Seneca [01? a.C.-65 d.C.], De Zra (1, 15)
[150] Em Estobeu (46, 41).
[151]Livro 1,cap.]], {]X, 4 e cap.]]], $ 111,
2
[152] E mesmo o dos romanos, ao menos em grande parte, porquanto, desde a ]ei
.fb/clb, nenhum cidadão, entre eles, podia sel' punido de morte ou açoitado, a
menos que fosse culpado de lesa majestade ou condenadopelo próprio povo.
[153] Livro 1, 65
[154] Limo XI, 11, 8
818
H U GO GROTIUS

também, junto ao Cáucaso, "não infligiam a ninguém a pena de morte,


qualquer que fosse a mais severa punição que merecesse". Não se deve
tampouco desdenhar esta passagem de Quinti]iano [155] : "Se crimino-
sos podem sinceramente modificar sua mente, e isso se observa às ve-
zes, é mais vantajoso para a sociedade,não se pode contesta-lo, conce-
der-]hes o perdão do que pum-]os." Ba]samon [156] observa que as ]eis
romanas que infligiam a pena de morte foram em sua maioria muda-
das pelos últimos imperadores cristãos [157] por outros suplícios [158] ,
a fim de que para os condenadosa um castigo mais duro, o arrependi-
mento fosse mais intenso e que uma pena de maior duração tivesse
mais efeito como exemplo.

XIII. As divisões imperfeitas


das penas são rejeitadas

1. Da enumeração que fizemos dos Bns da pena resulta que hou-


ve alguma omissão cometida pelo filósofo Taurus, de acordo com o qual
Aulus Gellius [159] fala assim: "Tem-se esperançaque o culpado se
corrida por si mesmo sem ter necessidade de punição; teme-se, ao con-
trário, que não possa nem se corrigir, nem se emendar; não se tem
nada a temer pela honra daquele que foi ofendidosa falta não é daquelas

[155] hlarcus Fabius Quinti[ianus[séc. ] d.C.], De ]nsúfuÉlo/le (2mfar7b (X]], l)


[156] in Phot. Nomoc. (16, 5)
[157] Ver o que será dito neste livro, cap. XXIV. $ XI. Ver em Nicetas (livro 1), a
juramento de lsaac o Anjo. O mesmo diz que o reino de João Comneno passou
sem que ninguém fosse condenadoà morte. A respeito de Zenon, ver Malco e
Agostinho (É»;'sfo/a CLVlll e CLIX ad .4/arca.E/lnum Oomifem), passagens
citadas no cânon CI.raumc'e/Zlb/les,
causa mZZ quaesÉlbre capítulos seguin'
tes. Ver também Jogo Cristóstomo, ..4dversusJudaeos(Vl11, 2), no local em
que trata da pena de Caim
[158] Que consistiam sobretudo a fazê-los trabalhar. Agostinho(@plüfo/a CLX) diz:
2ue seus membros conservados intactos sejam aplicados a qualquer obra
tíÉü"Ver também a carta de Nectarius a Agostinho, de n.' CCI.
[159]Au[us Ge[[ius [séc.]] d.C.], MmfesHfÉ7cae
(V]1, 14, 4).
819
CAPÍTULO
H - DASPENAS

que tornam necessária a aplicação de um castigo rigoroso? Então, não


há motivo suficiente para infligir uma pena." Ele fala disso como se,
quando um desses fins vem a faltar, o suplício deve ser supresso, en
quanto que ao contrário é preciso que todos essesfins cessem para que
não haja necessidade de pena. Omite a seguir esseülm que consiste em
impedir, eliminando um homem de uma vida que não pode se emendar,
que cometa crimes mais numerosos ou mais graves. O que disse sobre
a ofensa contra a honra deveria ser estendido igualmente aos outros
prejuízos que são temidos.

2. Sêneca [160] falou me]hor quando disse: "Em matéria de deli-


tos a punir, a lei persegue um tríplice objetivo, que o príncipe também
deveter em vista. Ela quer emendar aquelesque ela atinge ou tornar os
outros melhores pelo exemp]o do castigo [161] ou que, desaparecidos os
maus, os outros vivam em maior segurança."Sefor entendido aqui por
"osoutros", não só aquelesque já foram lesados,mas também aqueles
que ainda podem ser lesados, se teria uma divisão completa, acrescen-
tando contudo à palavra "desaparecidos" as palavras "ou reprimidos"
Osferros e tudo o que signiâca uma diminuição de forças se relaciona a
isso. A divisão seguinte do mesmo Sêneca [162], em outro ]oca], é menos
perfeita: "E preciso que ele saiba e não deverá perder isso jamais de
vista, em qualquer aplicação de penas, que se trata de corrigir os maus
ou de suprima-los." Essas palavras de Quinti]iano [163] são ainda mais,
de algum modo, imperfeitas: "Toda pena não tem tanto em vista o deli-
to, senão o exemplo.

[160] Lucius Annaeus Seneca[Ol? a.C.-65 d.C.], Z)e (ye/?7enf/a(1, 21).


[161] Fílon (/n Z,egaÉ/one, ]) propôs também esses dois objetivos: ':4 pe/ a col'r7ke
muitas vezes e emenda mesmo aquele que pecou; se isso leão ocorrer, ao
menos o corrigem aqueles que tiveram conhecimento dela. Os suplícios de
outrem tornam, de fato, muitos homensmelhorespelo temor de um trata
men to semelha1lte.
[162] Lucius Annaeus Seneca [Ol? a.C.-65 d.C.], .De ]ra (1,19, 7).

[163] Mlarcus Fabius Quintilianus]séc. ] d.C.] , .Dec/aloaüones .44aybres ef ]Ulhores


(274)
820 H UGO GROTIUS

XIV E perigoso para as pessoasprivadas


cristãs infligir uma pena, mesmo
quando é permitido pelo direito das gentes
Pode-se concluir coisas que foram ditas até o presente, como não
é seguro para um cristão, cidadão privado, punir para seu próprio bem
ou pelo bem público, um homem mau, qua]quer que seja [164] , sobretu-
do com uma pena capital. Embora tenhamos dito que isso é às vezes
permitido pe]o direito das gentes [165] . Por causa disso deve-se e]ogiar o
costume desses povos, entre os quais os indivíduos que se dispõem a se
aventurar no mar se munem de comissõesdeliberadas pelo poder públi-
copara perseguir os piratas, seos encontrarem no mar, a 6im de poder
fazer uso, existindo a ocasião,não como por sua própria autoridade,
mas como tendo recebido a ordem do Estado.

XV Ou de se estatuir como acusador


de seu próprio movimento
Há relação entre isso e o que foi acatadoem muitos lugares, que
não sejam admitidos às acusações dos crimes quaisq\ler cidadãos [166] ,
mas somente certos homens aos quais esse encargo foi imposto pelo
poder público, a üim de que ninguém faça nada para esparglr o sangue
de outrem, a não ser pela necessidade do dever. A isso se relaciona o
cânon do sínodo de E]iberis [167] : "Se a]gum fie] se tornou delator e se
por sua delação alguém foi proscrito ou condenado à morte, foi definido
que, mesmo no momento da morte não receba a comunhão."

[164] Ver diversas coisas ditas no ]ivro ], cap. 111,$ 111.


[165] Ver o parágrafo V]]] deste capítu]o
[166] Jogo Crisóstomo(Z)e Poe fe/2íla, Vl11, 2) escreve: 'g exce/e/2fq como o disse,
prevenir mesmo os processosprivados por transições amigáveis, a fim de
levar aquele que se trata assim como amigo, ao objetivo que se propunha
atingir com o processo.Quantoàs acusaçõesreferentes a criminosos,não diria
que se deva relê-las trai)sigindo, mas que não se deve jamais começa-las.
[167] Concílio de Eliberis, cânon 73.
821
CAPITULO XX - DAS PENAS

XVI. Ou de procurar os cargos de juízes criminalistas


Compreende-se ao mesmo tempo pelo que foi dito antes que não é
muito aconselhável para um homem verdadeiramente cristão e não é
mesmo de todo conveniente de se oferecer por sua própria vontade aos
empregos púb[icos, tendo re]ação com a jurisdição crimina] [168] . Nem
sedevepensar e proclamar que éjusto que o direito de vida e de morte
sobre esses concidadãos Ihe seja conferido como sendo o melhor de todos
e como se fosse uma espécie de divindade entre os homens. A advertên-
cia que Cristo nos dá (MafeusVll, 1), que é perigoso julgar os outros e
que devemos esperar de Deus, em casos semelhantes, o mesmo julga-
mento que nós pronunciamos contra os outros deve certamente ser tam-
bém aplicado aqui.

XVH. Explica-se por uma distinção, se as leis


humanas que permitem entregar
à morte para punir conferem um direito
ou não conferem senão a simples impunidade

1. Questão que não é ignóbil é aquela de saber se as leis humanas


que permitem o assassinato de certos homens concedeaos assassinos
um verdadeiro direito mesmojunto a Deus ou somente a impunidade
entre os homens. Aú]tima opinião é do agrado de Covarruvias [169] e de
Fortunius[170], cuja maneira de ver desagrada de ta] modo a Ferdinand
Vasquez [171] que a chama de abomináve]. Não há dúvida, como o disse-

[168] Sobre a questão de saber se o sábio deve $e imiscuir nos negóciosdo Estado
ver Soneca ÇDeOtío Sapíentisà
[169] Covarruvias, 4 doce /.Z cap. WZ n.'8.
[170] Fortunius, g oacéafus de u/f. /íne /egum ÍZ/af. ]].

[171] F. Vasquez, /]'w'o /K (bníro ]Z7usÉn, cap. }/ZZ7:


822
H UGO GROTI US

mos em outro ]oca]]172], que a lei não possa fazer ambas as coisas em
casosdeterminados. Para saber o que ela quis, deve-sejulgar em parte
os termos da lei, em parte a matéria de que se trata. Se a lei concede
alguma coisa ao ressentimento, ela suprime o castigo humano, não o
crime, como isso ocorre com o marido que mata a esposa adúltera ou o
adú[tero [173]

2. Se ela tem em vista o perigo de um mal futuro que produziria


a atualização da punição, deve ser considerada como que concedendo
um direito e um poder público ao cidadão privado, de modo que essejá
nao é mais uma pessoa privada.

Desse tipo é a lei que se encontra no código de Justiniano, sob a


=ubx\ca"Quando liceal unicuique sinejudice se vendicare,velpubli-
ca n deuoÉ70ne/n '; onde a permissão é dada a todo indivíduo de subme-
ter ao suplício os soldados saqueadores. Dá essa razão que "é preferível
prevenir a tempo do que punir depois. Nós vos permitimos pois fazer
Justiça por vossas próprias mãos e como seria tarde demais punir na
justiça, nós os castigamos antes por esse edito, a fim de que ninguém
poupe um soldado contra o qual seria necessário se defender à mão
armada, como contra um salteador." A lei seguinte relativa aos
desertores, que devem ser oprimidos, assim se exprime: "Que todos sai-
bam que cada um tem o direito, para a tranqüilidade geral, de exercer
a vingança pública contra ladrões públicos e desertores da milícia."A
isso se refere também esta passagem de Tertuliano [174]: "Contra os
criminosos de lesa-majestade e os inimigos públicos, todo homem é sol-
dado"]175]

[172] Livro 11,cap. 1, $ XIVI cap. 111,$ 111,2.


[173] Ver Agostinho (Z)e alwfafe Z)e/),citado no cânon é?ulcumqz/e,
causamZZ
}uaest. 8, e cànon Inter cum, causa XXXlll, quaestio 2. ' '""'-'
[174] Quintus Septimius Florens Tertullianus [155-220?],Hpo/ogeZlbus
(2).
[175] Agatias(IV. 10) diz que 'háo sâo somente os generaJb de exónc/foe as outras
pestsoasem destaque que se interessam ou devem se interessar pelo bem
3nublico,mas que cada um pode e deve ser tocado pelos males que ocorrem no
Esf'Ü m qu. w',«. Za,«.f-do. qu ü/e dele;Ü;;;;;;';a;--pmsperm '
óem pzíó/lbo, segundo suas corças."Ver o que foi dito no $ 1X deste capítulo.
823
CAPÍTULO
XX- DASPENAS

3. O direito de matar os exilados, chamados banidos, difere no


tocante à espécie dessasleis, porquanto a respeito dosbanidos uma
sentença especial foi emitida precedentemente contra eles, enquanto
que aqui um edito geral, apoiado sobre a evidência do fato [176], obtém
a força de uma sentença pronunciada.

XVIII. Os fitos interiores


não sáo puníveis entre os homens

Vejamosagora setodos os aros viciados sãotais que possamser


punidos pelos homens. Deve-se ter por certo que todos não são assim.
Primeiramente, de fato, os atou puramente internos, mesmo que por
algum acidente, como pela confissãoque se fizesse, chegassemao co-
nhecimento dos outros não podem ser punidos pelos homens, porque,
como vimos alhures (cap. IV, $ 111),não é conforme à natureza humana
que um direito ou uma obrigação nasça entre os homens de atou pura'
mente internos. Nesse sentido é que se deve aceitar o que dizem as leis
romanas: "Ninguém merece ser punido por seu pensamento." Isso con-
tudo não coloca obstáculo a que os aros internos, enquanto exercem
influência sobre os externos [177], não sejam tomados em consideração,
não propriamente em si mesmos, mas fazendo-os entrar na estimativa
dos aros exteriores que, daí, recebem a qualidade de seu mérito.

[1'76] Quint;i]ia no(Dec/nmaÉlo/zes,CCLX) diz: '7?á ar])nes comeíldos conÉmo Ébfa


do que são de ta] evidência que os olhos bastam para constata-los.
[177] Nesse sentido, Sayrus, TZesaur (111,6)
824
H UGO GROTI US

X]X. Nem os atou exteriores


que a fragilidade humana não pode evitar
1. Em segundolugar, os aios inevitáveis da natureza humana
não podem ser punidos peloshomens. Embora não possa haver pecado
que não seja cometido livremente, está contudo acima da condição hu-
mana se abster de modo absoluto e sempre de todo pecado. Por isso
Sopater, Hiéroc]es [178], Sêneca [179], entre os fi]ósofos, Fí]on [180]
entre osjudeus, Tucídides [181] entre oshistoriadores, um grande nú-
mero entre os cristãos ensinaram que pecar nasceu com o homem.
Sêneca [182] diz: "Se fosse preciso punir toda natureza depravada e
voltada ao ma], o castigo não excetuaria ninguém." Sopater [183] diz o
seguinte: "Se alguém pune os homens como se pudessem ser isentos de
todo pecado, excede a medida da correção que é segundo a natureza.

[178] Hierocles, ]n .4ui: (hr7n

[1791Marcus Annaeus Seneca[58 a.C.-32?d.C.], C0/7ÉrorersJae


(11,4, 12)
[180] Sobre Mloisés (111, 17). Pode-se acrescentar Aben-Esdras, sobre JÓ (V. 7) e o
rabino lsrael (cap. VIII)
[181] 111,45
[182] Lucius Annaeus Seneca[01? a.C.-65 d.C.], De Zra (11.31). ]sso é do mesmo
filósofo, no mesmo livro De Ira(1, 14): ':r\ao se e/]co/IÜ'a nJbguám que fen.ba
o dTz'eféo de se aóso/ç,e]-a s] mesmo." No cap. IX, havia dito: 'adiro oaíras
enfermidades dos maüais, há essa cegueü'a de espírito que !hes fornece não
somente uma necessidade de errar, Dias de se apelar a seus erros." X)epa\s,
no cap. XXVll: 'igomoslodos maus." No tratado .De CVemenüa(1, 4), diz
Todos llós cometemos fritas, alguns mais, outros nlejlos; esses de modo
premeditado, aquêles levados peia ocasião ou pela instigação dos maus; às
rezes, pouco firmes em nossos sábios princípios, nós a contragosto e apesar
de tudo os sacri6caJnos.Não cometemossome11te
faltas. mas as cometere-
mos até o âm dos séculos.Mlesmoessasalmas tão depuradas, que nada mais
pode perturba-las, alem engana-ias, não chegaram ao estada de inocência a
não ser abra Kás de mtzlías /a/fas. " Procópio(GofÉÜJc., 111, 11) coloca isso num
discurso de Belisário: ':E'sfáac7na do comem e da ilafureza das caudasnáo cab'
em ]enÃuma /a/Éa."Ver também o imperador Basílio(Pai'eizeâ, cap. 50)

[183] Em Estobeu. 46. 59


825
CAPÍTULO
XX- DASPENAS

Diodoro da Sicília [184] chama isso "ferir a fraqueza comum a todos os


homens" e em outra passagem [185]: "Esquecer a fraqueza que é co-
mum ao gênero humano." O mesmo Sopater que citei diz que "deve-se
dissimular as pequenas faltas que ocorrem quase todos os dias'

2.Mais, pode-seduvidar seessasfaltas sãoapropriadamente di-


tas pecados,porquanto a liberdade que parecemter em particular, não
a têm aoconsidera-las em geral. P]utarco [186] diz na Vida de Só]on:"A
lei deve prescrever o que é comumente praticável, se quer punir um
pequeno número de modo útil e não um grande número de modo inútil."
Há também certos pecados que sãoinevitáveis não simplesmente pela
natureza humana, mas para tal pessoae em tal caso,por causa do
temperamento[187] que age sobre o espírito ou de um hábito inveterado.
Esse, no entanto, é punido não tanto por causa dele mesmo, mas por
causa de uma falta que o precedeu [188] porque os remédios foram ne-
gligenciadosou essas doençasdo espírito foram voluntariamente
provocadas.

XX. Nem os atos pelos quais a sociedade


humana não é lesada nem direta,
nem indiretamente e por que razão

1. Em terceiro lugar, não se deve punir os pecadosque não dizem


respeito nem direta, nem indiretamente à sociedadehumana ou a outro
homem. Arazão disso é que não há nenhum motivo pelo qual a punição

[184] Livro li1, 21. Em /i]agme/?f.(Z:rc.XXVI, 1) diz que não se deve expor ao riso
público a fragilidade da natureza humana
[185] Livro XVl1, 38.
[186] Plutarco, Wdâ de S37on(90 A).
[187] Sêneca (Z)e Zra, 11, 18) diz: ';4s variedades dele/7doresp/'oyém dn mlsóura dos
elemeJatose os diversos caracteres são mais ou menos pron UJlciados,segun-
do fa/ ou qua/ e/emenfo predomina." Fala, além disso, do que provem da
condição de nossa origem e do temperamento de nosso corpo (.Epl'sfo/a XI, 6).
[188] Ver o cânon ]neór7breru/ f (&t causa .XV guaesf. .Z.
826
HU GO GROTIUS

de tais pecados não seja deixada a Deus que é de todo clarividente para
conhecê-los,muito justo para julga-los e muito poderosopara pum-los.
Por isso é que tal punição seria estabelecida pelos homens totalmente
sem utilidade e por conseguinte de uma maneira defeituosa. Deve-se
excetuar as penas corretivas que têm por objeto tornar melhor aquele
que pecou, mesmo se os outros poderiam não ter interesse nisso. Não
devem ser punidos tampouco os atou opostos às virtudes dos quais a
natureza repele toda coação, como a compaixão, a liberalidade, o reco-
nhecimento.

trata a questão se o vício do ingrato deve perma'


2. Sêneca [189]
necerimpune e alega muitas razõespara explicar porque não deveser
punido. Aquela principalmente que pode ser estendida a outros vícios
similares, é que "o reconhecimento que é uma coisa muito honesta ces-
sa de ser honesta se é necessária". Isto quer dizer que ela perde seu
grau superior de honestidade, como o indica o que se segue: "Não se
elogiará mais um homem reconhecido do que aquele que faz um depósi-
to ou que paga uma dívida diante de coaçãojudicial." E mais: "Não há
g[ória em ser reconhecido, se há espaço seguro para a ingratidão" [190]
Pode-se aplicar aos vícios dessa espécie essas palavras de Sêneca, pai,
em suas Goníroç-érsJbs:"Não pretendo que um culpado seja elogiado,
mas que seja abso]vido." [191]

[189]Lucius Annaeus Seneca[01? a.C.-65d.C.], .DeBe/2eálcuJS


(111,6, 7)
[190] O mesmo Sêneca (-De BeneÁ7c)s,1, 1) diz: 'Wâo é pargo/lapso não pagam'
benefício por benefício, porquanto se é livre de se mostrar reconhecido.
Sêneca, o pai, faz essa observação (Cona'overszae, V. 34): '7b nle dl2es que
não é preciso faze-io? O alcance disso,porém, é consideráve!, por isso não há
sanção alguma-." êKgos\ãxÍho (.Contra Petilianum, \l, SSà. "Foí assim, pois, que
as !eis foram feitas contra vós; elas não vo$ forçam a fazer bem, mas vos
proíbem de fazer ma!."
[191] Isso se encontra no ]ivro IX, Cb/7Érovers/a
.gJ,havendo algo de similar no
mesmo \ixro, Controversia 25 "A diferença é grande entre repreender e
Funil:"Plutarco, na Hda de Oahon(480 A), diz: '7?á cercas Xa/óasgue se deve
considerar antes comoimperfeiçõesde alguma virtude do que como efeitos
de vício.
CAPÍTULOm - DAS PENAS
827

XX[. A opinião segundo a qual não é


jamais permitido perdoar é rejeitada
Deve-se tratar também se é permitido às vezes perdoar ou absol-
ver. Os estóicos, de fato, o negam [192], como se pode ver num fragmen-
to de Stobaeus, com o títu]o de Mng7]sÉrado [193] , no discurso de Cícero
para Murena e no Him dos ]ivros de Sênecasobre a C]emência [194],
mas se apoiam sobre razões fracas. Eles dizem: "0 perdão é a remissão
de uma pena devida... Ora o sábio faz o que deve fazer.. ." Aqui a ilusão
está escondida nessa palavra "devida". Se for entendido que aquele que
cometeu uma falta deve a pena, isto é, possa ser punido sem injustiça,
não se seguirá que aquele que não pune faça o que não deve fazer. Se for
entendido que a pena seja devida pelo sábio, isto é, que tenha devido ser
de modo absoluto infligida, diremos que isso não ocorre sempre e que
assim, nesse sentido, a pena pode não ser devida, mas somente ser
lícita. Isso pode ser verdade tanto antes da lei penal, como apóso esta-
belecimento dessa lei.

XXII. Demonstra-se que isso é permitido


antes mesmo que existisse a lei penal

1..Não se deve duvidar que antes do estabelecimento da lei penal


não pudesseocorrer a pena porque naturalmente aquele que cometeu
uma falta se encontra na situação de podell ser licitamente punido. Não

[192] Diodoro da Sicília diz com razão, contrariamente à sua doutrina, que 'bpe2'chão
cípreáer7'ç,e/
â punção"(.f)'ag/ne/ f., .Exc.XXI, 8). Cipriano formulará esse
pensamento em nome dos cristãos(Z»]GfoJa Z/C 16): '% douÉr7ha dos á/casados
e dos estóicos é toda diferente; eles dizem que todas as faltas são iguais e que
um homem sério não deve $e deüar facilmente dobrar. Ora, entre os cristãos
e o$ filósofos, a distância é considerável."

[193] Estobeu, 46, 50


[194] Lucius Annaeus Seneca [01? a.C.-65 d.C:], .De C7emenÉ/a(11,7).
828 H UGO GROTIUS

se segue por isso que a pena deva ser inf]igida [195] porque isso depende
da conexão dos fins pelos quais a pena foi instituída com a própria pena.
Por isso éque seessesfins não sãopor elespróprios moralmente neles'
vários ou sepor outro lado outros fins seapresentam não menos úteis
ou necessários ou se os fins que são propostos para a punição podem se
obter por outra via, parece então que não há nada que obrigue precisa-
mente a infligir a pena. Citemos comoexemplo do primeiro caso aquele
de uma falta conhecida por muito poucas pessoas, sendo por conseguin-
te sua produção em público desnecessária ou seria mesmo prejudicial. A
isso se referem essaspalavras de Cícero [196] sobre um certo Zeuxis:
'Conduzido diante do juiz, não seria talvez necessárioque fossemanda-
do embora, mas não foi necessárioprocura-lo para aí o levar." Como
exemplo do segundo caso, aquele do indivíduo que opõe à sua falta servi-
ços provenientes dele ou de seus pais que merecem ser recompensados.
Assim diz Sêneca [197] que "um beneficio posterior não deixa a injúria
aparecer". Como exemplo do terceiro caso, aquele da pessoa que se cor
rigiu por simples palavras ou que deu verbalmente satisfação ao lesado,
de modo que não há mais necessidadede uma pena para obter esses
8ns

2. E uma parte da clemência que busca liberar da pena. E ela


que o sábio hebreu tinha em vista quando disse: "A clemência convém
ao justo." Todapena, principalmente aquela mais rigorosa, tem algu-
ma coisa que, considerada em si mesma, repugna não, é verdade, a
justiça, mas a caridade, a razão sofre facilmente que disso se abstenha,
contanto que uma caridade maior e mais justa não se oponha de modo

[195] Juliano, em seu e]ogio a Eusébio, diz que mesmoque alguns tenham mereci-
do ser maltratados e punidos, não é por isso absolutamente necessário que os
mesmos pereçam.
[196] Marcus Tu[[ius Cicero[106-43 a.C.], .EblsfuJaead é?uüfum .FFaZrem
(1, 2, 2)
[197] Lucius Annaeus Seneca[01? a.C.-65d.C.], .De.Beneálcu]s
(V], 6, 3).
CAPITULOm - DAS PENAS 829

total. Há sobre esse ponto uma passagem bem a propósito de Sopater


[198], quando diz: "Essa parte da justiça que tem por objetivo reduzir os
contratos à igualdade, rejeita de modo absoluto toda espéciede perdão,
mas aquela que tem por objeto os crimes não recusa o semblante doce e
agradáve[ do perdão." Cícero [199] exprimiu assim a primeira parte
desse pensamento: "A via do direito é tal em certas coisas, que o perdão
não encontra nenhum acesso."Dion de Prousa [200] fala da segunda
em seu discurso aos alexandrinos: "Faz parte de um bom governador
perdoar." Segundo Favorinus [201], "o que se chama c]emência entre os
homens é um abrandamento do direito rigoroso, feito com propriedade'

XXIII. Não, contudo, sempre

Essas três coisas podem ocorrer ou a pena deve de modo absoluto


ser infligida, como isso ocorre nos crimes mais hediondos [202] ; ou não
deve de modo nenhum ser infligida, como no caso em que o bem público
exige que seja deixada de lado, ou ainda que uma e outra sejam permi
tidas. disso se refere o que Sêneca [203] diz: "Ac]emência tem um livre
arbítrio." O sábio então poupa, dizem os estóicos,ele não perdoa. Como
se não nos fossepermitido chamar, com a fala popular que é mestra da
linguagem, perdoar o que eles chamam de poupará Isso não é de estra-
nhar, pois aqui como alhures, assim Cícero, Galieno e outros o observa-

[198] Estobeu, 46, 60


[199]Marcus Tu[[ius Cicero [106-43a.C.], Ed)]kfuJaead uúfum .H-Rirem(1, 2, 3).
[200]Dion de Prousa ou Dion Crisóstomo,Orat. XXXII.
[201]Au[us Ge[[ius [séc.]] d.C.], .Azocfes
.4fflcae(1, 3, 27).
[202]Josefo(.4nÉ7guJdades
JudaJbas,XVl1, 5, 5) diz que 'b pa/77c7'da
wo/a Éa/2foa
natureza quanto a sociedade humana, de modo que não rubi-io é pecar
contra a natureza
[203] Lucius Annaeus Seneca[O[? a.C.-65 d.C.], .De(;7emenílb(11,7, 3)
830 H u GO Gnoti us

ram, uma grande parte das discussões estóicas se reduz a disputas de


pa[avras [204], o que deve ser evitado antes de tudo por um filósofo.
Como o escritor de HerennJus [205] disse com a mais clara verdade: "E
um defeito levantar uma disputa por causada diversa significaçãodas
palavras", o queAristóte]es [206] havia dito assim: "Deve-setomar cui-
dado para não discutir sobre as palavras."

XXIV. E mesmo após o estabelecimento da lei penal


1.A dificuldade parece ser maior depoisdo estabelecimento da lei
penal porque o autor da lei é obrigado de alguma maneira por suas leis.
Dissemos, porém, que isso é verdade enquanto o autor da lei é conside-
ratio comouma parte do Estado [207], não enquanto representa a pes'
soa e a autoridade do próprio Estado. Nessa última qualidade, pode
mesmo abolir a lei por completo porque a natureza da lei humana é
depender da vontade humana, não somente do ponto de vista da ori-
gem, mas sob aquele da duração. O autor da lei não deve contudo abolir
a lei, se não for por uma razão provável, sob pena, se agisse de outra
forma, de pecar contra as regras da justiça governamental.
2. Do mesmo modo que pode abolir toda lei, assim também pode
suprimir a força obrigatória com relação a certa pessoa ou a um fato
particular, subsistindo a lei quanto aoresto. Como a exemplo do próprio
Deus que, no testemunho de Lactâncio [208] , "não é despojado de todo

[204] Fora de qualquer ap]icação, comodiz o escoliastade Horário. Agostinho (Oon


tra Acadenaicos,\], \\à àxz. "É vergonhosose deixar levar por disputas sobre
uma questão de palavras, quando não se parou na discussãosobre as coisas.
[205] Livro 11, 28, 45
[206] gZPÜ, 1, 18
[207] Ver o que foi dito acima no texto e nas notas, no cap- IV. $ Xll destelimo.
[208] Caecilius Firmianus Lactantius [séc. ]V d.C.], Z)e /I'a Def (19)
CAPÍTULO
XX- DASPENAS
831

poder fazendo sua lei, mas possui a faculdade de perdoar". Agostinho


[209] diz que "é permitido ao imperador revogar uma sentença [210],
absolver um criminoso condenado à morte e perdoa-lo". Como razão ele
dá que "aquele que tem o poder de impor leis não está submetido às
[eis". Sêneca [211] quer que Nero refeita sobre este pensamento: "Nin-
guém pode matar apesar da lei; ninguém pode salvar, excito eu.:

3. Isso tampouco deve ser feito, a menos que haja uma razão
provável.Ainda que não sepossadeterminar de uma maneira precisa
quais são as razões prováveis, deve-se, contudo, saber que essas razões
devem ser mais fortes depois da lei que aquelas que se tinha em vista
antes da lei porque a autoridade da lei, que é útil manter, foi acrescen-
tada às razões de punir.

XXV. Quais são, para assim agir,


as razões intrínsecas prováveis?

Quanto às razões que levam a livrar alguém da pena da lei, elas


são intrínsecas ou extrínsecas. Há razão intrínseca quando, compara'
da ao fato, a pena é, senão injusta, ao menos rigorosa.

XXVI. Quais são as extrínsecas?

A razão extrínseca se origina de algum serviço ou alguma outra


coisa que recomenda ou mesmo de uma grande esperança para o futu-
ro. Essa espécie de razão bastará sobretudo se o motivo da lei vem a

[209] é?uaesüo/les Ue#ez:ü ef .AÃovl ZesÉamenÉ2' (Z:XV .De EafoJ.


[210] Símaco(livro 111,ábJbóo/a63) diz: 'Z/ma é de bafo,a cona)bâo dos maglsü'aços,
cujas sentellças são suspeitas de corrupção, qua1ldo são menos rigorosas que
as leis; outra é a condição dos príncipes, a quem toca abrandar o rigor do
dlke2'éo."Amesma diferença entre o rei e o juiz se encontra em Temístio,
C2raÉI'o r

[211] Lucius Annaeus Seneca [O[? a.C.-65 d.C.], Z)e C7e/nenf/a (1, 5)
832 H u co GROílUS

cessar, ao menos em particular, no fato de que se trata. Ainda que baste


para manter a eficácia da lei que a razão geral subsista, sem ser com-
batida por uma razão contrária, contudo a cessação da razão, mesmo
daquela que é particular, faz com que se possa mais facilmente isentar
dessa lei e com menos prejuízo para sua autoridade [212] .

Isso tem sobretudo lugar em matéria de delitos que se cometem


por ignorância, emboraa ignorância não sejaisenta de toda falta ou por
uma fraqueza de espírito superável, na verdade, superável com diâcul-
dade. Um soberano cristão deve levar essascircunstâncias em grande
consideração, a fim de imitar a Deus que, na antiga aliança, quis que
um grande número de faltas dessanatureza fossemexpiadaspor meio
de algumas vítimas e que, na nova aliança, testemunhou, por suas
palavras e exemplos, que é fácil perdoa-las aos arrependidos. Jogo
Crisóstomo [213] observa que Teodósio[214] foi levado a perdoar os ha-
bitantes de Antioquia por essaspalavras de Crista em Lucas: "Per-
doai-os, meu Pai, porque não sabem o que fazem.

XXVII. Refuta-se a opinião, segundo


a qual não há nenhuma razão legítima
para dispensar de uma lei, se não for aquela
que se encontra contida à maneira de exceçãotácita

Vemos por isso quanto Ferdinand Vasquez [215] errou ao dizer


que a causa legítima de dispensar, isto é, de desligar da lei, é somente
aquela a propósito da qual o autor da lei, consultado, dissesseque não

[212] Graciano(Causa .C quaesÉlb » reuniu muitas coisas sobre esse assunto


[213] Z)e Sóafuls(,Eãom]/ib XX], 4).

[214] Ver a história em Zonaras.


[215] Livro 1, cap. 46 (aonü'orers.)
833
CAPITU LO H - DAS PENAS

era de sua intenção que a lei fosse observada. Ele não distinguiu, de
fato, entre a equidade, que interpreta a lei, e o abrandamento da lei.
Por isso, em outro ]oca] [216], retoma Tomas e Sito a respeito do que
dizem sobre a lei que cessaem particular, como se tivessem acreditado
que a lei não encerra outra coisa senão o que está escrito, o que nunca
chegou a passar pela cabeça deles. Tanto pois isso é verdade que todo
abrandamento da lei, que muitas vezespode ser concedidoou negado
liwemente, deve estar relacionado com a equidade propriamente dita;
esseabrandamento, contudo, que é devido em virtude da caridade ou
em virtude da justiça política, não pode se referir ao que está escrito
somente. Uma coisa, de fato, é abolir a lei por uma causa provável ou
mesmourgente, outra coisa é declarar queum fato não existiu, desdeo
começo,compreendido na intenção da lei.

Vimos o que se relaciona à isenção das penas. Vejamos o que diz


respeito à sua aplicação.

XXVIII. A pena deve ser proporcional ao crime

Parece, pelo que se disse antes, que nas penas duas coisas são
consideradas: a razão por que e o fim pelo qual. .4razâopor que é o fato
de ter merecido. Oá7)npe/o gua/é a utilidade que se espera da pena.
Ninguém deveser punido mais do que merece]217] .Aisso sereferem
os versos que citamos antes de Horário ($ 11,2) e essaspalavras de
Cícero [218] : "Há um ]imite para a punição, como para as outras coisas,

[216] Livro 1,cap. 26 e 46.


[217] Os milaneses raciocinam judiciosamente sobre o assunto, num discurso que
se encontra em Guichardin (livro XVll). Compare'se com o que foi dito no
parágrafo ll deste capítulo e com o que será dito no livro 111,cap. XI, $ 1
[218] .qpisftzJae ad -Brufum(1, 15, 3).
834 H U GO GROTIUS

e uma espécie de moderação." Por isso é que Papiniano [219] designa a


pena pelo nome de estimativa. Aristides [220] diz que é conforme à na-
tureza humana que, em cada crime, haja um ponto que a vingança não
podeultrapassar. Em sua carta para osfilhos de Licurgo, Demóstenes
[221] diz que a igua]dade na pena não deve ser considerada tão simples-
mente como em matéria de pesos e medidas, mas que se deve pesar o
propósito e o desejo do delinqüente. As faltas são pois na proporção do
mérito, mais ou menos punidas, segundo a utilidade que se pretende
com a punição.

XXIX. A respeito das razões que impeliram


para o mal; comparaçãoentre elas
1. No mérito é preciso considerar a causa que impe]iu [222], a
causa que teve de reter e a disposição da pessoa para uma e outra. N ão
se é mau gratuitamente e se encontrar alguém que goste da maldade
por si mesma,esseultrapassou o limite humano.A maior parte dos
homens é levada a fazer o mal pelas paixões. "Quando o desejo foi conce-
bido, gera o pecado" ( 7}bgo1, 15). Compreendo aqui sob o nome de dese-
jo esseimpulso quê leva a evitar o mal, impulso que é de todo natural e
por conseguinte é o mais honesto dos desejos. Por isso é que as ações
injustas que sãocometidaspara evitar a morte, a prisão, a dor ou a
pobreza extrema parecem ordinariamente escusáveis no mais alto grau.

[219] Z,. SaJ7cÓo,-Dib, De poen. dama?.


[220] ZeucÍr7ca (1)

[221] E4 kfuJa 111,4.


[222] João Crisóstomo(Z)e .Sfatul]s, X, 6) diz: 'modo pecado não merece a mesma
peida; deve-sepunir mais rigorosamente aqueles de que era mais fácil se
co/zTÉín" Em seu segundo discurso, sobre a obscuridade do Antigo Testamen-
to, se serve dessepl'incípio para provar que um caluniador é pior que um
libertino, um ladrão, um homicida.
CAPITU LO m - DAS PENAS
835

2.Aisso se refere esta passagemde Demóstenes [223]: "É justo se


irritar mais contra aqueles que, sendo ricos, são maus, do que contra
aqueles que a miséria arrasta para o mal. Junto a juízes dotados de
humanidade, a necessidadeconcededireito ao perdão, enquanto que
aqueles que são injustos na afluência de bens não têm nenhuma descul-
pa prováve]."Assim é que Po]íbio]224] desculpa os habitantes deAcárnia

que, pelo temor de um perigo que os ameaçava, não haviam cumprido


as cláusulas de um tratado celebrado com os gregos contra os etolianos.
Aristóteles[225] diz: "Aincontinência é mais voluntária que a covardia.
Aquela tem por princípio o amor do prazer, essaa apreensãoda dor.A
dor faz como que o homem sair de si mesmo [226], causando a destrui-
ção de sua natureza. O prazer não produz nada de semelhante, por isso
tem a]guma coisa de mais vo]untário" [227]. Há, no mesmo sentido,
uma passagemnotáve] em Porfírio [228].

3. Os outros desejos tendem a algum bem, real ou imaginário.


Osbens reais, independentemente das virtudes e das açõesque produ-
zem, que não conduzem ao pecado pois as virtudes andam de acordo

[223] Orava'o ]]] Sfepáan lm(1, 67).

[224] Livro IV. 30, 2


[225] .ÓÉ/ba a .M'có/naco(111, 15).

[226] Ver uma beta comparaçãoentre o ]adrão e o adú]tero, no ]ivro dos ,fyol.éró/os
(VI, 30)
[227] Fílon(Hd Z)ecaJogum, 28) diz: 'nadas as paixões da a/nza sâo sérT'as porque
!eram a alma para fora de seu estado natural e a enleiam, mas que a mais
perigosa de todas é a ambição, pois as outras vêm, por assim dizer, de fora e
entran} apesar de nós, ellquallto que, sozinha, a ambição tem sua fonte em
nosso pz'ópz'io coração e parece depender soez'etudo de nossa vontade.

[228] De HósÉzhenÉlb(111,18). Há uma passagem seme]hante em Marco Antonino,


sobre sua vida(livro 11,10), onde compara entre elas a ira a ambição. Plutarco
çVida de Râmuloi ç3XÜ"A causa que incita à ira torna mais desculpável aquele
que cedeua um movimento !naif irresistível e foi derrubadopor um golpe
mais forte.
836 H UGO GROTIUS

entre elas, são as coisas que dão prazer ou aquelas que servem para
procura-lo e que sãochamadasde úteis, comoa abundância de rique-
zas. Os bens imaginários, que não são verdadeiramente bens [229], são
a superioridade sobreos outros, enquanto ela estiver separada da virtu-
de e da utilidade, e a vingança. Esses bens são tanto mais vergonhosos
porquanto mais se afastam da natureza. Jogo (l João 11,16) exprime
essestrês desejospor essaspalavras: "A concupiscência da carne, a
concupiscência dos olhos, o orgulho da vida." O primeiro item, de fato,
compreende o desejo dos prazeres, o segundo a paixão de possuir e o
terceiro, a perseguição da vanglória e o pendor à cólera. Fílon diz, na
explicação do Decálogo ($ 28), que todos os males vêm "do desejo das
riquezas, da glória ou do prazer". Lactâncio [230] diz: "A virtude consis-
te em reter a cólera, acalmar a ambição, põr um freio à sensualidade.
Quase todas as coisas que são feitas de modo injusto e maldoso vêm
dessaspaixões." Isso ele repete também em outra passagem]231].

XXX. Comotambém a respeito daquelas


que deviam evitar o mal. Trata-se também
da classificação dos mandamentos do Decálogo
que dizem respeito ao próximo e outras coisas
1.A injustiça é a causageral que develevar a afastar-sedocri-
me. 'lYatamos aqui, de fato, não de qualquer tipo de falta, mas daquelas
cujo efeito não se limita à pessoa do culpado. A injustiça é tanto maior

[2291Sêneca(4pJkfuJam2 diz que 'bs desqbsnatural) fém u/lzZlm, mas aqueles


que nasceram de falsas idéias que se fez sobre algo não têm 6im."'Vex 3aãa
Crisóstomo, em suas reflexões morais nos comentários à Epl'sfo/n aos .Rama'
nos VI, à 27 os Co/:z'nãosXI, 12, à .É»]86a/aaos E7Êlsjos1, 14.
[230] Caecilius Firmianus Lactantius [séc. ]V d.C.], Z)zv7harum ZnsÉ]'fuÉabnum (VI,
5 13)

[231] Idem (V. 19, 4).


CAPITULO H- DAS PENAS
837

quanto maior for o dano causadoa outrem. Por isso é que os delitos
consumados ocupam o primeiro lugar e aqueles que, tendo-se estendido
até alguns atos mas não foram levados até o 6im, ocupam o segundo.
Nestes últimos, há tanto mais criminalidade quanto mais longe tiver
sido levado o ato. Em ambas as espécies é a injustiça que perturba a
ordem comum e por conseguinte prejudica ao maior número, ultrapas'
sando todas as outras injustiças. Em seguida vem aquela que atinge os
cidadãos privados. A maior aqui é aquela que se relaciona com a vida,
depois aquela que se refere à família, cuja base é o casamento, enfim
aquela que tem relação com os objetos particulares, cuja posse é
almejável, seja roubando diretamente alguém dessesobjetos, seja cau
sando por dolo algum prejuízo a eles.

2. Essas mesmas coisas podem ser divididas com mais subtilidade,


mas Deus seguiu no Decálogo a ordem que temos indicado. Sob o nome
de "pai e mãe" que são os magistrados naturais, é justo compreender
também os outros governantes,cuja autoridade mantém a sociedade
humana. Depois vem a interdição do homicídio, em seguida a sançãodo
casamento pela proibição dos adultérios, depois os roubos e as trapaças
e, em último lugar, os delitos que não foram consumados. De resto,
entre as causas que levam a afastar-se disso, não se deve colocar so-
mente a consideração da natureza do mal que se comete diretam ente,
mas ainda aquela das consequências que pode verossimilmente ter, como
num incêndio ou na ruptura de uma represa, quando se deve ter em
mente as perdas consideráveis e os mortos entre grande número de
vítimas.

3. A injustiça que colocamos como causa geral se acrescenta às


vezesainda outro vício [232]: a fa]ta de respeito,por exemp]o,pe]os
pais, a desumanidade para com seusparentes, a ingratidão para com

[232] Ver uma notáve] passagemna vida de Lucius, em Xiphi]inus, segundoDion


(l.XXI, 24)
838 H UGO GROTIUS

seus benfeitores, vícios que aumentam o delito. Aperversidade se mos-


tra também maior, se houver sido cometida reiteradas vezes a falta
[233] , porque os maus hábitos são piores que os atos. Pode-se ver por
isso quanto é naturalmente justa essaprática dos persas, entre os quais
a vida pregressa era, ao mesmo tempo que o delito, levada em conside-
ração [234] . ]sso deve ocorrer, de fato, com re]ação aos que, não maus
por um lado, sedeixaram repentinamente surpreender peloatrativo do
pecado, mas não com relação aos que mudaram todo seu gênero de vida.
Em relação a esseso próprio Deus diz, em Ezegme/Q(Vl11, 24), que não
levará em conta sua vida anterior e aos quais se pode aplicar esta pas-
sagem de Tucídides [235]: "Merecem um duplo castigo, por se terem
tornado maus, conquanto fossembons." O que expressou em outra pas'
vagem [236] deste modo:"Porque era indigno de]es de se tornarem cul-
pados."

4. Por isso os antigos cristãos, na regulamentação das penas dos


cânones, quiseram com muita razão que não se considerasse a falta
pura e simp]esmente em si mesma [237], mas que se acrescentasse a
vida que havia precedido e aquela que havia seguido a falta, como se

[233] Diodaro da Sicília(.êkc., XX], 15): 'g prcÜr70 do áo/ e ]] lk710rar unlzz I'ez os
deveresda vida, lilás cah muitas vezeslias me$!nasfaltas é próprio de um
espírito desgarrado. Mais ]iunlerosas são as faltas em que caímos,mas mete
Gemas ser rigorosamente punidos.'
[234]Asinius Pollio dizia que 'be deve/uZga/'um áon7empe/a n azarparte de sua
concfuéae de seu gâlzo': Cícero, em seu discurso em favor de Sita, diz: ':Bin
todas as coisas,juízes, graves e importantes, para saber se alguém quis,
pensou ou cometeu algo, deve'se julgar não pela própria acusação, mas pelos
costumes e peia conduta do acusado.
[235]Livro 1,86.
[236]Livro 111,67.
[237] Cânon XXV do Concílio de Ancira. João Crisóstomo,nos comentários à 27
Epístola aos Coríntios ll(.Homilia 'iN, üà üxzl "Para regular os limites da peni-
tência. deve-se ter cuidado nãQ somente com a natureza dos crimes conside-
rados em si mesmos, mas ainda com a disposição e com os costumes dos
pecador'es." O mesmo(Z)e Sacerdaflo, 11, 4) diz que 'ã pena nâa deve se/'
proporcional somente à !medida dos delitos, mas que se deve ainda inquirir
qual foi a intenção daquele que pecou
839
CAPÍTULOXX - DAS PENAS

podever no concílio deAncira e outros sínodos.Mais, uma lei estabelecida


contra um vício (./?omanosVl1, 13) acrescenta a esse vício uma espécie
de ma]dade especia]. E o que Agostinho [238] nos ensina nesses termos:
"A ]ei que proíbe torna as fa]tas dup]amente criminosas [239] , pois não
é um simples pecado cometer uma coisa que é não somente má, mas
ainda proibida." Tácito]240] diz: "Se quiseres o que ainda não foi proibi-
do, podestemer que venha a ser proibido, mas sepassasimpunemente
por cima do que é proibido, não há além disso nem temor, nem pudor."

XXXI. Igualmente a aptidão


do delinqüente em uma ou outl'a
situação; consideração diferenciada

1.A disposiçãoda pessoaem levar em consideraçãoas causas que


levam a afastar-se ou a acolher as paixões que incitam deve ser exami-
nada em seu temperamento, sua idade, seu sexo, sua educação, nas
circunstâncias do ato. As crianças, as mulheres, os homens de espírito
rude e aqueles que foram educados mal, conhecem menos as distinções
entre o justo e o injusto, o que é lícito e o que é ilícito. Aqueles em que
prevalece a bílis estão inclinados à cólera; aqueles em que prevalece o
sangue, são levados para os prazeres venéreos. Ajuventude tem propen'
são para isso, a velhice por aqui]o. Andrânico de Redes [241] diz: "Pare-
ce que a natureza traga alguma escusa aos fatos vergonhosos e que
torne o delito mais tolerável." O pensamentode um mal iminente sus-

[238] .De Hera -R.?/zkl'aZIa(26)

[239] Jogo Crisóstomo(comentário à .8Piüfo/a aos .Romanos, JZom27lbV. 4) diz com


razão\ "Ele !mostra}lão soluenté que o direito e a dignidade do judeu e do
gregoestavam}lo mesmopé de igualdade,mas tambémque ojudeu era mais
3uipadoporque havia recebido a !ei." DeDoxsacxescenha:"De fato, aquele que
recebeumais instrução mereceser punido mais severamentequando violar
a ie}

[240] Caius Corne[ius Tacitus [55-120], .4nnadas(111,54).

[241] Mc. V]], ]O(ou seja, in Pa/lap.brasa adM2kfoÉ.)


840 H uoo GROTIUS

cita o temor e o ressentimentode um mal recente e não abrandado


acendea cólera, de maneira que dificilmente permite que a razão seja
seguida.As faltas produzidas por essaspaixões são a justo título menos
odiosas que aquelas que nascem do desejo do prazer. Esse prazer mexe
menos poderosamente, pode ser facilmente diferenciado e pode por ou'
tro lado encontrar de modo mais agradável sem injustiça de que se
satisfazer [242]. Aristóte]es [243] diz que "a có]era e o ódio são mais
naturais que o desejo das coisas que excedem a medida e que não são de
todo necessárias'

2. Deve-se, de fato, reter muito bem isso que, mais o julgamento


do espírito que toma uma decisão é encravado, mais as causas que o
ofuscam são naturais, menor é a falta. Aristóteles diz no mesmo livro
[244] : "Sustentamos que é menos moderado aque]e que, não sendo so]i-
citado ou sendo solicitado levemente por impulso de concupiscência,
busca prazeres excessivos ou foge de incómodos medíocres, do que aque
le que é instigado por uma violenta paixão. Por acasose deveria crer
que o teria feito, se tivesse agido sob a influência de algum impulso da
juventude ou soba impressão da dor produzida pela falta das coisas
cuja ausência contrista a natureza?" A isso corresponde este verso de
Antífanes[245]: "Se aque]eque é opu]entocometeuma açãomá]246],

[242] João Crisóstomo(comentário à .]bl'sfo]a aos Gá/abas V. 3) diz: "0 deseyb dn


carne busca somente a coabitação e 3}ão a coiabaração com essa ou aquela
muJZer "Tertuliano(,4d Z:forem, 11,1) escreve: "QuaJléo á ciZÕb#paJ'afique/es
que }lão se casaram guardar a continência, tanto mais parecem desculpáveis
quando zlão a guardam. Tanto é fácil para uJlla mulher se casar no Sellhor, o
que está em nosso poder, tanto há mais culpabilidade em não observar o que
se pode observar. l)e fato, quanto foi possível evitar uma falta, tanto maior é
a culpabilidade daquele que se obstina em cometo-!a."Àclescenle-se $ã.algo
Antonino, no local há pouco indicado, em que se apoia na autoridade de
Teofrasto
[243] Xfzca a NJcânaco (V]1, 7).
[244] .éÉJba a Àübânaco (V]).
[245] Estobeu, 2, 3.
[246] Jogo Crisóstomo(Z)e Proüdenüa, ]V in fine) diz; "Quando encontrares um
rico injusto, avarento, raptor, deplora sua sorte, porquanto sendo rico se
torna mais culpadoainda de tais crimes e será punido com tanto maior rigor
Dor eles.
841
CAPÍTULO n - DAS PENAS

que achas que não teria feito se fosse pobre?" A regi)eito se pode ler
muito em vários lugares das comédias, contra os amores dos velhos. E,
pois, segundo essas razões, que se deve estimar o mérito da falta, nos
limites do qual a pena deve ocorrer.

XXXII. A pena merecida pode ser estendida


a um mal maior que o causado
pelo culpado;porquê?

1. Deve-se saber que aquilo que diziam os pitagóricos, que a jus-


tiça consiste no ta]ião [247], isto é, fazer sofrer nas penas um dano igua]
ao que foi causado, não deve ser entendido como se aquele que prejudi-
coua outrem, compropósito deliberado e semas razõesque diminuem
muito a falta, não devia sofrer senãotanto mal quanto havia causadoe
não mais. Aprópria lei de Moisés (êxodo XXll, 1), que é o mais perfeito
modelo de todas as leis, mostra que não é assim, porquanto quer que os
roubos sejam punidos pelo quádruplo ou quíntuplo. Em virtude da lei
ateniense, o ladrão, independentemente da condenação ao dobro [248] ,
era mantido acorrentado durante alguns dias, como Demóstenes nos
informa em aDMira 7 nocraóo [249]. Ambrósio [250] diz: "As ]eis que-

rem que se faça devolver o que foi tomado a alguém, punindo corporal-
mente o indivíduo ou obrigando-o a devolver mais do que tomou, a fim
de que a pena corporal ou a multa amedronte o ladrão ou o desvie dos
saques." Aristides [251] diz que "as ]eis permitem aos que pedem re-

[247] TcEUroncEOetcE,
como diria Harmenopu](1, 2, 34).
[248] Alusão a respeito é feita no HpocaJlbse (XV]11, 6): '2)evo/vei o dobro." Os
habitantes de Mineas. tendo arrancado com violência um tributo dos tebanos,
sem ter direito algum, Hércules os obrigou a devolver aos tebanos o dobro do
valor dessetributo(Apolodoro, 11,4, 11).
[249] in 71mocrafo (105).
[250] .De OáZI'cu)k
jMJh küa'um(111, 3, 21).
[25t] .Leucóüca (11)
842 H UGO GROTIUS

paraçãode alguma injúria, por vias dajustiça, exigir uma punição


maior que o mal que se lhes havia feito." Falando do julgamento depois
desta vida, Sêneca [252] diz que "nossos crimes ne]a são punidos de
uma maneira que ultrapassa sua grandeza'

2. Entre os indianos, como Estrabão [253] o observa, aque]e que


tivesse mutilado alguém, além do talião, era submetido à amputação
da mão. No livro GrandesMora kque leva em seu cabeçalho o nome de
Aristóteles, lemos que "é justo que, se alguém vazou o olho a outro, não
somente sofra o mesmo tratamento, mas alguma coisa a mais". Não é
justo, de fato, como o demonstra com razão Fí]on [254], no ]oca] em que
trata da pena do homicida, que o perigo do inocente seja igual ao do
culpado. Isso é o que se pode ainda julgar do que certos delitos não
consumados [255] expõem a uma pena igua] ao ma] que se arquitetava
fazer, o que é uma disposiçãoda lei hebraica (-Deufeu'onÓmJbXIX, 19)
com re]ação ao fa]so testemlinho [256] e da ]ei romana sobre aque]e que
circulou comuma arma no intuito de matar um homem.A conseqüên-
cia disso é que uma pena maior corresponde aos crimes consumados,
mas como não há nada de mais grave que a morte e que não pode ser
dada duas vezes, como Fílon o observa na passagem citada, limita-se
necessariamente a ela, acrescentando contudo algumas vezestormen-
tos, segundo o que merece o crime.

[252] Lucius Annaeus Seneca [01? a.C.-65 d.C.], J?creu;es FuJ'ens (750).

[253] Estrabão, XV. 1, 54. Nico]au Damascenoobservouque, entre alguns povos


das Índias, o furto era punido com a morte(em Estobeu, 44, 4).
[254] Z)e .LeKlóus Spec/aJlbus(11, 15)
[255] Plínio(Nafurzils JZjkfo a, V]11, 16) diz do ]eão: '7bncü, e/e oósema com u na
sagacidade maravilhosa aquele que o feriu e vai procura-!o no meio da maior
multidão; mas e]e se contenta em derrubar e arrastar, sem ]he causar
ferimentos, aquele que ihe atirou um dardo sem feri-lo.
[256] E com referência ao que, para ganhar o dote, acusou falsamente sua esposa
de adúltera(Deuferonómlb XXl1, 19), como também com relação ao indiví-
duo que teria montado um processoinjusto contra alguém para se apropriar
dos bens dele (.arado XXl1, 9).
CAPITULO
H - DASPENAS
843

XXXIII. A opinião que defende uma proporção


harmónica nas penas é rejeitada

A grandeza da pena não é somente considerada pura e simples-


mente, mas com relação ao paciente. A mesma multa que sobrecarrega
o pobre não onera o rico. A infâmia será para um homem vil um mal
leve, mas um mal considerável para o homem de classe distinta. A lei
romana faz uso muitas vezes dessetipo de diferença. Sobre essefunda-
mento é que Bodin [257] instituiu sua proporção harmoniosa. Embora
contudona realidade a proporção do mérito e das penas seja aqui uma
igualdade simples tal como existe nosnúmeros e assim como subsiste
nos contratos a igualdade da mercadoria em relação aos escudos, mes-
mo que em certos lugares a mesma mercadoria ou os escudosvalham
mais e em outras menos. Deve-seconfessar que muitas vezes, na lei
romana, isso não sefaz sem acepçãode pessoas,isto é, semter muito
cuidado com as pessoas e as qualidades que não se relacionam com o
fato, o que é um defeito de que a lei de Moisés está sempre muito afasta-
da. Como dissemos, essa é a apreciação intrínseca da pena

XXXIV A pena pode ser diminuída por cal'idade,


se uma cal'idade maior não se opõe a isso

A caridade, porém, que temos para com aquele que é punido con-
duz ao menor grau da pena no limite prescrito, a menos que uma cari-
dade mais justa não aconselhe agir de outra forma, por causa de uma
razão extrínseca que, às vezes, é um grande perigo a temer da parte do
delinqüente, mas consiste na maior parte do tempo na necessidade de
dar um exemplo. Ela surge ordinariamente de circunstâncias

[257] .De J?epuó]., livro VI, cap. últ


844 H UGO GROTIUS

gerais que convidam a errar, as quais não podem ser reprimidas sem
remédios violentos. Os principais convites ao mal são o costume e a
facilidade.

XXXV Como a facilidade de cometer


um crime leva a pum-lo e como o hábito
da falta leva a punir ou retém a punição
Por causa da facilidade, a lei divina dada aos hebreus pune mais
gravemente o roubo numa pastagem que numa casa [258] . Justino [259]
diz dos citas: "0 roubo é a seus olhos o maior dos crimes. Habituados a
deixar seus rebanhos errando em liberdade pelos bosques, sobre que
bem poderiam contar, se o roubo ficasse impune?" Há alguma coisa
similar em ProõJe/nas de Aristóte]es [260] : "Como o autor da lei sabia

que nesses ]ugares [26 1] os proprietários não podiam guardar seus bens,
ele lhes deu a lei como guardiã." O costume de um fato, mesmo que
elimine alguma coisa da falta ("não é semrazão, diz P]ínio [262], que
perdoou um fato proibido, na verdade, mas não contudo inusitado") re-
clama todavia sob certos aspectos rigor na pena porque, como fala
Saturnino [263], "quando um grande número de pessoas se entrega à
desordem, é necessário um exemplo". Isso deverá ser praticado melhor

[258] Ver Moisés Maimõnides (Z)zPecf.,111,41). Cícero, em Pro Sexto .Rosc70 Hmer7ho
(40, 116), diz que 'bs cremes co/lira os qua is Ó mais dJ7bz7de se precaver sáo
também aqueles que devem $er punidos mais rigorosamente".
[259] 11,2, 6
[260] .F>'oó/emana(XXIX, 14)
[261] Nos banhos. Em Arenas, aqueles que roubavam nos banhos eram punidos de
morte. se a coisa roubada valia mais de dez dracmas (Demóstenes, O/'a lo
Contra Timocratem, 'L'LAà.
Acrescer\e'se Lei 1, Dig., De füribus balnearibus
[262] Caius Plinius Caecilius Secundus [62-114], .qplsfuJae (]V. 9)

[263] Z. /e 4Uf ZaCÍa,DUg.,De pOeJlb.


CAPITULO
M - DAS
PENAS
845

nos julgamentos e segundo as leis, tendo cuidado ao tempo em que as


leis foram feitas, ou osjulgamentos pronunciados,porque a utilidade
da pena é considerada mais na generalidade as leis têm em vista, en-
quanto que o muito ou pouco de importância relativos da falta são apre-
ciados pelos particulares.

XXXVI. Uso da clemência na I'eduçáo das penas

1.A segunda parte da clemência está compreendida no que disse-


mos, que, quando as razões maiores e urgentes vêm a cessar,devemos
ser antes levados a diminuir a pena. Temos colocado a primeira parte
na dispensado castigo.Sêneca [264] diz: "Comoo equi]íbrio é difícil, se
é preciso que um dos dois lados ganhe, que seja o da humanidade." Em
outra passagem [265] e]e diz: "Se o pode sem risco, que concedaperdão
à pena, senão que a reduza." Em Diodoro da Sicí]ia [266], um rei do
Evito é elogiado por ter infligido penas menos rigorosas do que as que
havia merecido]267]. Capito]ino]268] diz de MlarcoAntonino: "Antonino
tinha essecostume de punir todos os crimes com uma pena inferior
àquela pela qual eram ordinariamente condenados pelas leis." O orador
lseu [269] disse também que as ]eis, na verdade, devem ser feitas rígi-
das, mas que as penas devem ser infligidas mais suavemente que as
leis [270]. Máxima de ]sócrates [271] é que "as penas devem ser iní]]igidas
abaixo da medida da falta

[264].De (;7eJnenf7b
(11,2).
[265] De C7emenüa (XX)
[266]1, 70.
[267] Justino 11, ao escrever aos hunos, diz: "Os /oma ]os éém o costume de nâo
punir aqueles que os ofenderam, na proporção do tamanho da ofensa.
[268] .,4nfan. PZJ7OS.(24).
[269] Em Estobeu, 48, 25
[270] Era o que dava a entender o imperador Henrique, quando tomou por símbolo
um pêssego,com essa palavra ".Suóacrd'. Em Cassiodoro(XI, 40), o rei dizia:
Se éperigoso para nós nos mostrarmos justos, há sempre para nós a garan
tia de perdoar.
[271] ,4d .Mbodem. (7).
846 H UGO GROTI US

2. Agostinho [272] adverte assim a respeito de seu dever o conde


Marcelino: "Senti-me tomado por grande inquietude no temor que Vos-
saAlteza pensasseque deviam ser castigadoscom toda a severidade das
leis, de maneira que sofressemum mal igual ao que haviam cometido.
Por isso é que vos conjura por essas cartas, em nome da lei que tendes
em Crista, em nome da misericórdia de Nosso Senhor mesmo, de não o
fazer e de não permitir de qualquer modo que isso seja feito." Isso tam-
bém é dele: "0 julgamento de Deus chegou a espantar até aqueles que
são estabelecidos para punir os crimes, embora nesse cargo eles não
ajam sob a influência de uma ira que lhes seja própria, mas como mi-
nistros das leis, não para vingar suas próprias injúrias, mas aquelas
que foram feitas aos outros, depois de tê-las examinado, como devem
fazer osjuízes. Levou-os a pensar que a misericórdia de Deus lhes é
necessária para seus próprios pecados e que não é faltar ao dever de seu
cargo ter alguma indulgência por aqueles sobre a vida e a morte dos
quais a lei lhes confere um poder legítimo."

XXXVII. O que os hebreus e os romanos


querem que se considere nas penas
se relaciona com os artigos anteriores

Esperamos que nada tenha sido omitido por nós que seja de natu-
reza a contribuir eficazmente ao conhecimento dessa matéria, bastante
difícil e obscura. Relatamos em seu lugar as quatro circunstâncias que
Maimânide's [273] diz que se deve sobretudoconsiderar nas penas: o

[2'72 .Ekzúfo/a CL]X que é citada no cânon ClFauJ?Jce//ienes, causa -XXZIZ quaesÉlo á
Se for do agrado, ver a carta de Macedonius ao mesmo Agostinho e a resposta
de Agostinho, n.' Ltll e LIV. Acrescente-seo que se diz a respeito de Teodósia
o Jovem, nos .Exc'ermos
de Jogo de Antioquia, extraídos do manuscrito de
Peiresc. Macedonius diz a Agostinho: ':a dever do sacerdote izlfercedez' em
favor dos cüminosos.
[273] Moisés Maimânides, Du)ecf.(111,40). Compare'se com o cânon Saauf (!zgntzm,
de homicídio. voluntário ve} casuais.
847
CAPÍTULO
H - DASPENAS

tamanho da falta, isto é, do dano, a freqüência de tais faltas, o grau da


concupiscência e a facilidade da execução. Não deixamos de falar das
sete coisas que Saturnino [274] considera de uma maneira bastante
confusa nas penas. A pessoa daquele que cometeu o crime se relaciona
sobretudo a essa capacidade que possui dejulgar sua ação.Apessoa do
ofendidocontribui àsvezesa levar ajulgar o tamanhoda falta. O local
acrescenta ordinariamente à injustiça uma fa]ta particular [275] ou se
refere mesmo à facilidade da execução.O tempo, se longo ou curto,
aumenta ou diminui a liberdade do julgamento e às vezes mostra mes-
mo a depravação do espírito. A qualidade se refere em parte às espécies
de desejos,em parte às razões que deviam evitar o crime. A quantidade
deve também ser relacionada ao desejo. O acontecimento, às razões
dissuasivas.

XXXVIII. A guerra para punir

Mostramos antes, e a história nos ensina em múltiplos lugares,


que guerras sãoempreendidas para punir. Na maioria dasvezes,essa
causa está unida com aquela da reparação do dano, porquanto o mesmo
ato foi viciado e causou na realidade um prejuízo: duas qualidades de
que nascem duas diversas obrigações. E bastante õ'eqüente que as guer-
ras não devem ser empreendidas por qualquer delito, pois as próprias

[274] Z. /a ,4uf Zaafa, DJr., De poenJS.


[275] Fílon(Z)e Zeglóus Specyb/)óus,1, 33) diz: 'AUo á a mesma coisa uo/fal' as mãos
violentas contra seu pai ou contra um estranho, ii2juríar um magistrado ou
um privado, cometer algo ilícito em !ocasprofano ou em !ocas sagrado, num
dia de festa, numa assembléia, em sacriãcios públicos." Com Isso concorda
IJlpiano quando comenta a Z;eJ /)raefor ealr['#. Ín á].nq .Ozk:, 22e ii]y'ur])k: '%
injúria é mais atroz em razão da pessoa quando, por exemplo, é feita centra 11

um magistrado, um ascendente, um patrão; em razão do tempo, se é feita no


meio dos jogos e em presença do público. Importa muito que a iiÜúria tenha
sido deita empresença do povo romano ou que tenha ocozüdoem localímlado.
1!
848 H UGO GROTIUS

leis não ameaçam todas as faltas pela vingança correspondente que se


exerce sem perigo e não atinge senão os culpados. Com razão é que,
como dissemos há pouco ($ XIX), Sopater diz que os delitos de pouca
importância e vulgares devem ser dissimulados e não punidos.

XXXl:X. Explica-se por uma distinção


se a guerra é justa, quando tem
por objeto punir crimes que não começaram

1. Com relação ao que foi dito por Catão [276] em seu discurso aos
habitantes de Redes, que não é justo que alguém seja punido pelo fato
de ser acusado de ter querido fazer o mal, isso não estava deslocadona
passagem em que o dizia, porque nenhum decreto do povo de Rodei
podia ser alegado e que não havia senão conjecturas de irresolução. Não
se deve, porém, admitir essa proposição de uma maneira geral. Avonta-
de que atingiu até os atou exteriores, (dissemos antes ($ XVIII) que os
aros interiores não são punidos pelos homens), é ordinariamente sub-
metida aos castigos. Sêneca [277] diz em suas Gonfrovéz:s:üs."Os cri-
mestambém, embora não sejam completamente consumados, são pu-
nidos." O outro Sêneca[278] diz: "Premeditar o crime éjá cometê-lo.
Não são os desdobramentos das coisas,mas os propósitos que sãopuni-

[276] Au[us Ge[[ius [séc. ]] d.C.], ]Uocfes,4ffzcae (V]1, 3, 38).


[277] Marcus Annaeus Seneca [58 a.C.-32? d.C.], Ercerpóa (]V. 7).

[278] Lucius Annaeus Seneca [01? a.C.-65 d.C.], Z)e ]ra (1, 3, 1). E no livro -De
Bene8ciis (N. L4b.Q mesmaà\z. "Um bandido é tal,-mesmo que não tenha
manchado suas mãos, pois ele se armou para matar e ele tem a vontade de
despoybr e de assassznaz" Fílon, em De Zepóus SPec/aJlóus(11, 15) diz: '2)e-
ve:se observar comohomicidas, não somente os que matam, mas também
aqueles que fazem aberta ou secretamente tudo o que podem para tirar a
lida de alguém, mesma quando não tivessem ainda executado seu crime.
CAPITULOXX - DAS PENAS
849

dos pelas leis [279], diz Cícero em seu discurso para Mi]o [280]. Era
uma 6'ase de Periandro [281] : "Castiga não somente os que pecam, mas
também aqueles que se dispõem a fazê-lo." Assim é que os romanos
decidem que a guerra deve ser começada com o rei Perdeu, se não lhes
der satisfação pelo propósito que havia tomado de preparar a guerra
contra o povo romano, pois ele já havia reunido armas, soldados e uma
bota. Isso mesmo é observado com razão no discurso aos habitantes de

Rodei, que se encontra em Tiro Lívio [282], que não é estabe]ecidopelos


costumes, nem pelas leis de algum Estado que, aquele que quer que seu
inimigo pereça, se nada tem feito para que isso ocorra, seja condenado a
uma pena capital.

2. Todavontade perversa já manifestada por algum ato não dá


lugar à pena. Se todas as faltas na verdade cometidas não são punidas,
muito menos devem ser aquelas que não têm sido senão imaginadas ou
começadas. Em muitos casos ocorre o que diz Cícero [283] : "Não sei se é
suficiente que o ofensor se arrependa de sua ofensa."A lei dada aos
hebreus não estabeleceu nada de especial contra a maioria dos delitos
começadoscontra a piedade ou mesmo contra a vida do homem sem

[279] Valério Máximo (VI, 1, 8) diz de Cneius Sergius Si]o, condenadopor ter
prometido escudosa uma matrona romana: '7\Uose co/oc'ouem questão o
fato, mas a intenção e se tornou para ele mais pre$udicia! ter querido pecar do
que Ihe poderia servir não ter pecado.
[280] Marcus Tu[[ius Cicero [106-43 a.C.], / o 7b/Zzb .4nn/o ]]dZZone (7, 19)

[281] Diógenes Laércio]séc. ]]] d.C.], }/idas, .Doaáz:Idas, SeJlfenças dos ]Ü7(Ísoáos
17usíres(1,7, 98).
[282] Titus Livius [59 a.C.-17 d.C.], ,4ó Z]/}.óe Condlfa (XL]1, 30).

[283]Marcus Tu[[ius Cicero [106-43 a.C.], .DeC2áZlcJJS


(1, 11, 34).
850 H UGO GROTI US

premeditação porque o erro é fácil no que concerneàs coisas divinas que


são ocultas a nossosolhares e porque o impulso da cólera não é indigno
que seja perdoado.

3. De resto, atentar contra o leito matrimonial de outrem, no


meio de tão grande facilidade de se casar, ou maquinar uma fraude
para se enriquecer às expensasde outrem, numa partilha tão igual das
fortunas, isso não deveria de qualquer maneira ser tolerado. Embora
considerando o objetivo, isto é, o espírito da lei, essaspalavras "Tu não
cobiçarás", que estão no Decálogo, tem abrangência muito maior (a lei
queria, de fato, que todos fossem muito puros, mesmo de espírito [284]),
essemesmo preceito, contudo, porquanto se refere ao exterior, ou seja,
do preceito carnal, diz respeito aos impulsos da alma que se manifes-
tam por um fato. Isso se vê abertamente no evangelista Marcos (X, 39)
que exprimiu assim essemesmo preceito: "Não farás mal a ninguém"
depois de terjá dito antes: "Não roubarás nada". Nesse mesmo sentido
é que a palavra hebraica e a palavra grega se correspondem e são en-
contradas em Mquézbs (11,2) e em outros locais.

4. Os delitos começadosnão devem pois ser punidos com as ar-


mas, salvo se a coisa já não seja grave e que não se tenha chegado já ao
ponto que tal ato já tenha tido por consequênciaum mal certo, embora
não aquele que se propunha, ou ao menos um grande perigo, de modo
que a punição seja então ligada à necessidade de se premunir contra
um prejuízo futuro (de que tratamos no capítulo sobrea defesa)ou ain-
da que tenha por objeto a proteção da dignidade lesada ou ainda que
seja destinada a prevenir um exemplo pernicioso.

[284] .João Crisóstomo, no comentário à EfzibÉo/a aos .Rama/?os .ZZt .23, e ao capítulo
Vll da mesma Epístola(HomíZlb Vll e XII), diz muitas coisas a respeito disso.
CAPITULOH - DAS PENAS 851

Explica-se se reis e povos podem fazer de modo


justo a guerra para vingar injúrias cometidas
contra o direito de natureza, embora essas
injúrias náo se dirijam a eles, nem a seus súditos;
rejeita-se a opinião segundo a qual, de acordo
com o direito natural, para infligir uma pena
é requerido o direito de jurisdição

1.Deve-sesaber também que osreis e aquelesque têm um poder


igual ao dos reis têm o direito de infligir penas não somente por injúrias
cometidas contra eles ou seus súditos, mas também por aquelas que
não os tocam particularmente e que violam em excessoo direito de
natureza ou das gentes a respeito de quem quer que seja.Aliberdade de
prover por castigos aos interesses da sociedadehumana que, no come-
ço,como dissemos, pertencia aos privados, ficou, após o estabelecimen-
to dos Estados e das jurisdições, para os poderes soberanos, não pro-
priamente porque eles mandam nos outros, mas porque não obedecem
a ninguém. A dependência, de fato, tirou essedireito dos outros. E mes-
mo é bem mais honesto vingar antes as injúrias feitas aosoutros que
aquelas a nós mesmos, que se deve temer mais nas ofensas pessoais
que o ressentimento não leve a ultrapassar os limites ou ao menos não
corrompa o espírito.

2. Aesse título é que Hércules foi celebrado pelos antigos: por ter
livrado deAnteu, de Busiris, de Diomedese de tiranos similares, re-
giões [285] que atravessou, como Sêneca [286] se exprime a respeito,
não conquistando, mas ]ibertando, como o dá a entender Líbias [287]

[285] E mares. Fí]on(Z)e Z gaÉlb/7e,11) diz: '2?ércuJes/)orou lorpas e mares, sus


tentando combates, uns necessáriosl outros úteis aos homens, para suprimir
o que podia ser morta! ou prejudícia! entre os homens e os animais.
[286] Lucius Annaeus Seneca[O[? a.C.-65d.C.], Z)e.BeneÉ7êúk
(1, 1, 13)
[287] Oraéh11,16
852 Hu co GROTIUS

por esta frase: "Autor de grandes bens para os homens, ao punir os


injustos." Diodoro da Sicí]ia [288] fala assim de]e: "Tornava os Estados
felizes ao destruir oshomens injustos e os reis arrogantes." Em outro
[ocal[289] disse: 'Percorreu o mundo punindo os iníquos." Dion de Prousa
[290] diz o mesmo: "Ele punia os homens maus e destruía os reinos dos
soberbos ou os transferia a outros."Aristides [291] diz que, tendo assim
tomado a si o interesse comum do gênero humano, ele havia merecido
ser colocado na classe dos deuses. Teseu é elogiado igualmente por ter
feito desapareceros salteadoresSciron, Sinnis e Procusto. Eurípides
[292] o ]eva a fa]ar assim dele mesmo em .Ás Sup#canÉes: "Foi por nu'
merosas façanhas que construí para mim um renome entre os gregos,
por ter sempre sido o flagelo dos maus" [293] . Va]ério Máximo [294] diz
o mesmo: "Pela coragem de sua alma e a força de seu braço, suprimiu
tudo o que havia de monstros ou crimes.

3. Assim não duvidamos que as guerras não sejam justas contra


aqueles que não têm piedade para com seus pais, como eram os
sogdianos, antes que Alexandre lhes tivesse feito esquecer essa ferocida-
de [295] ; contra aque]es que se nutrem de carne humana [296], uso que

[288] iV 17.
[289] V76
[290] Dion Crisóstomoou de Prousa, OrnÉao
1, no final
[291] Pajla th enaica .
[292] ,4s SupJlc'antes (340-42).
[293] No mesmo local, ao arauto que diz '7bu paJ fe gerou com corçapara enErenóar
todo o mundo?",'teceu responde. "De força para enfrentar aqueles que come
fe/n irÜusf/ç;as,Folk n(ásnáo foc'amosos que sâo bons."Plutarco, na vida desse
personagem, diz: 'Z/e /Jurou a Gz'écla de cruélk fzFanos." E.ainda: ':Sem que
soâ'essema] algum, e]e se ]aJlçava contra os maus para o bem dos outros.
[294] Livro V. cap. 3 (Ext. 3).
[295] Plutarco, Z)e Eorfun. .4/exandl (328 C).
r costume a U n
xanor' Mogno n
PV(] a abandonar
[296] Era SLU também
P dos
0 citas queAlexandre os levou
853
CAPÍTULO
H - DASPENAS

Hércules forçou os antigos gauleses a se abster, segundo relato de Diodoro


[297]; contra aque]es que exercem a pirataria. Sêneca[298] diz: "Se nãa
ataca minha pátria, mas oprime a sua; se, muito distante de meus
concidadãos, são os seus que ele atormenta, tal depravação moral não
fez senão romper tudo entre nós". Agostinho [299] diz: "E]es são de opi-
nião que se decretara o cometimento de crimes tais que, se algum Esta
do da terra os decretasse ou tivesse decretado similares, o gênero hu
mano haveria de ordenar a destruição."Arespeito de tais bárbaros, de
fato, que são animais selvagens antes que homens, se pode dizer com
razão o que Aristóteles falou de mal sobre os persas que em nada eram
inferiores aos gregos: que a guerra contra eles é natural. E o que lsócrates
[300] disse, que a guerra mais justa é aque]a que se move contra os
animais ferozes e em seguida aquela que se move contra os homens que
se assemelham aos animais ferozes

[297] Ver Dionísio de Halicarnasso(1, 38) narrando como Hércules fez desaparecer
essecostume e muitos outros, sem distinção para espalhar seus benefícios
entre os gregos e os bárbaros. Plínio(.Ahfura/l) HJkÉor=a,XXX, 1) elogia os
serviços não menos consideráveis prestados ao gênero humano pelos roma-
nas. "Não se pode avaliar de modo suâciente quarto se deve aos romanos que
aniquilaram esses}310nstros,para os quais matar um homem era um ato
muito religioso e devorar suas vítimas se constituía em alimento llluito saiu
óar" AcT-escente-se
o que será dito neste mesmocapítu]o, parágrafo X].Vll
Assim é que Justiniano proibiu aos chefes dos abasgos de transformar em
eunucos os filhos de seus súditos. Procópio faz menção disso(GofÉÜJb., IV. 3)
e Zonaras na IZldade Leão Zsauro. Os incas, reis do Peru, reprimiram os
povos vizinhos que não queriam acatar suas exortações para perder o costu
me de praticar o incesto, de permitir a união de homossexuais,de comer
homens e de praticar outras abominações desse tipo; e eles construíram,
dessa maneira, o império mais justo de que temos conhecimento, excetuan
do-se a religião.
[298] Lucius Annaeus Seneca [01? a.C.-65 d.C.], Z)e .Bene#c2]s(V]1, 19, 9).

[299] .De (]wlafe Z)ez(V. ])


[300] PanafüenaJca (66)
854 H UGO GR OTI US

4. Até este ponto seguimos a opinião de ]nocêncio e outros [30 1]


que dizem que se pode atacar pela guerra aqueles que pecam contra a
natureza [302], opinião contra a qual se pronuncia Vitoria [303],Vasquez
[304], Azor, M]o]ina e outros que parecem requerer para a justiça da
guerra que aquele que a empreende seja lesado pessoalmente ou em seu
Estado ou que tenha um direito de jurisdição sobre aquele que é atacado
pelas armas. Esses autores supõem, de fato, que o poder de punir é um
efeito próprio da jurisdição civil, enquanto nós pensamosque provém
mesmo do direito natural, ponto sobre o qual dissemos alguma coisa no
começo do livro primeiro. Certamente, se a opinião daqueles com os
quais estamos em desacordo é admitida, um inimigo não teria mais
contra seu inimigo o direito de punir, mesmo depois que a guerra tives-
se sido empreendida por qualquer motivo, não tendo relação com a pu'
nição; direito, entretanto, que a maioria concede e que o uso de todas as
nações consuma, não somente depois que a guerra tenha terminado,
mas mesmo durante a duração da guerra. De nenhum modo em vir-
tude de uma jurisdição civil, mas em virtude dessedireito natural que
existiu antes da formação dos Estados e que está em vigor atualmente
mesmo, nos lugares em que os homens vivem distribuídos em famílias
e não em Estados.

XLI. Deve-se distinguir o direito de natureza


dos costumes civis geralmente afeitos

Deve-seter presente aqui algumas precauções.A primeira, de


não tomar os costumes civis, embora tomados não sem razão entre
muitos povos pelo direito de natureza. Tais eram mais ou menos aque-

[S01] [nnoc., Can. é?uodsuper ]zJi, De rolo.4rcü.; F]or., 3, pal'É. É#, .Zg / 5; Si]vestr.
in verbo Papa, $ 7.
[302] Ver José Aposta, .De Pzocu/anda ]ndarum Sa.rufo(11, 4)

t3Q3ÀRelect. 1, de Indís, n.' 40.


[304] 00/lira .]7/usfz (1, 24)
CAPÍTULO
XX- DASPENAS
855

les que distinguiam os persas dos gregos, aos quais se pode referir a
propósito esta passagem de P]utarco [305] : "Querer ]evar as nações bár-
baras a costumes mais requintados é um pretexto sobo qual se oculta a
ambição do bem de outrem."

XLll. E do direito divino voluntário


que não é conhecido detodos

A segunda, de não contar desconsideradamente entre as coisas


proibidas pela natureza aquelas de que não se está bastante seguro e
que são antes interditas por uma lei da vontade divina. Nessa classe é
talvez permitido co]ocaras uniões carnais fora do casamento [306], a]-
gumas das quais são chamadas ihcestos, e a usura.

XLlll. Deve-se,
no dii'eito
de natureza,separadas coisas
manifestas daquelas que náo o são

1.A terceira, de cuidadosamente distinguir entre os princípios


gerais, como aquele de viver honestamente, isto é, seguindo a razão, e
certos princípios próximos a isso, mas de tal modo evidentes que não
admitem nenhuma dúvida, como aquele de não subtrair a outrem seu
bem. Entre as conseqüências, algumas são fáceis de conhecer, como no
casamento [307] a proibição do adu]tério [308] . Outras são mais diü-

[305] Poinpe/us (656 E)


1306]Astério, bispo de Amaséia, diz que 'blue/es que sá /'espeifam os I'egu/amenfos
]os legisladores do século deixam impune a iícenciosidadedo meretrícío
Acrescente-seuma passagemde Jerânimo (.4cíOcea/2tzm), citada por nós no
cap. VI $ IX.
t3Q'l\ L. 39, Si adulterium, $ fratres, Dig., Ad Lerem Julgam de Adult.
[308] Filou (rifa Josepá],9) atesta que o adultério é punido em toda parte; o
adultério é uma coisanaturalmente vergonhosa,diz Ulpiano(Z,. 4g /Zroól'um,
Dig., De verborumsigniílcatione lb. SegundoLactbncio (EpÍtomeDívinarum
!nstitutionum. S4à."macular o casamentode outrem éfazer um ato condena-
do pe/o jus gentium(direito das gentes) comum
856 H UGO GROTIUS

leis, como aquela que infere que a vingança, não tendo outro objetivo
que a dor de outrem, é viciada. Ocorre aqui, mais ou menos, como na
matemática, onde se encontram certas noções primitivas ou que se apro'
ximam das primitivas, certas demonstrações que são logo compreendi-
das e transmitem a convicção e outras que são efetivamente verdadei-
ras, mas não são evidentes para todos.

2. Do mesmo modo que com relação às leis civis, desculpamos


aqueles que não tiveram conhecimento ou compreensão das leis, assim
também, a respeito dasleis da natureza, é justo que aquelesa quem a
fraqueza do juízo ou a deficiência de educaçãosãoum obstácu]o [309]
sejam desculpados (MnfeusX, 15; Lacas Xl1, 47-8). Do mesmo modo
que a ignorância da lei, se é inevitável, suprime a falta, assim também
quando está unida a alguma negligência, diminui o delito. Por isso é
queAristóte[es [310] compara os bárbaros que, educados com carência,
setornam culpadosdessestipos de faltas, aosque têm desejoscorrom
pidos pela doença. Plutarco diz que "há certas doenças da alma que
transtornam o homem de seu estado natural"
3. Deve-se acrescentar em último lugar, o que digo de uma vez
para não ter de repeti-lo muitas vezes,que as guerras que são empreen'
dadaspara punir são suspeitas de injustiça, a menos que os crimes nao
sejam muito atrozes e manifestos ou que alguma outra causa não con-
corra ao mesmotempo. Mitridates [311] dizia dosromanos, talvez sem
se afastar da verdade: "Não são as faltas dos reis que perseguem, mas
seu poder e sua majestade.'

[309] Jerânimo(HdKarsus úov[h a/]um, 11,7} diz que 'fada nação guarda comou/na
!ei de 1latureza os princípios nos quais foi educada
[310] ÉÉ]'ca a McÓmaco(Vl1, 6).
[311] Justino (XXXVl11,6, 1).
857
CAPITULOH - DAS PENAS

XL]V Sea guerra pode ser movida por causa


de crimes cometidos conta'aDeus

1. A ordem da matéria nos conduziu aos delitos que se cometem


contra Deus. Pergunta-se, de fato, se a guerra pode ser empreendida
para se vingar, o que Covarruvias [312] trata de modo bastante exten-
so.Esseautor, porém, seguindo a teoria dosoutros, pensa que o poder
de punir não existe semuma jurisdição propriamente dita, opinião que
já rejeitamos antes. Segue-se daí que, do mesmo modo que nos negócios
da Igreja, os bispos são ditos "'qv Kcx0oÀtKTjvn nta'te a0oct", isto é, ter de
a[gum modo aceitado o cuidado da ]greja universa] [313], assim tam-
bém o cuidado geral da sociedadehumana incumbe também aosreis,
independentemente do cuidado particular de seu Estado. A melhor ra-
zão em favor da opinião que nega que tais guerras sejam justas é aque-
la que Deus basta para punir as faltas que se cometem contra ele, de
onde se tem o hábito de dizer que "pertence aos deuses vingar as injú
rias feitas aos deuses" [314] e que "basta que o peUúrio tenha Deus por
vingados"1315].

2. Deve'se saber, porém, que a mesma coisa pode ser dita igual-
mente dosoutros delitos. Sem dúvida alguma, Deus basta também para
pum-los e contudo são legitimamente punidos pelos homens. Ninguém
discorda disso.Alguns insistirão e dirão que outros delitos são punidos

[312] C-aP.
/'bCC'atum,
paJ«fe/Z / ]0.
[313] Isso se encontra nas aonsú]uílb/?es(V], 14) que ]evam o nome de C]emente
C\Dx\ax\oÇEpístulay;XX, 4b àiz. "Convém a todosnós zelar pelo beJ3}do corpo
de toda a igreja, cujos membros estão espalhados por diversos países." b\z
também, falando da unidade da Igreja, que 'bá um só epl)copacão,
do gua/
cada óíspo possuí' so#dn/:ümenfe uma parte': Exemplos desse zelo universal
se encontram em toda parte em Cipriano e particularmente em sua célebre
carta LXVll. Acrescente-se João Crisóstomo, no elogio de Santo Eustáquio.
[314] Caius Corne[ius Tacitus [55-120], .4nna]es(1, 73).
[315]Z. Z (bd /K ].
858 H UGO GROTI us

pelos homens enquanto que outros homens são lesados ou são postos em
perigo por esses delitos. Deve-se observar, porém, contrariamente a essa
objeção,que não são somente os delitos lesando diretamente os outros
que sãopunidos pelos homens, mas também aqueles que lesam por via
de conseqüência,tais comoo suicídio,a união sexual com animais e
alguns outros.

3..Areligião, embora por ela mesma sirva para obter o favor de


Deus, não deixa de ter seus efeitos, e consideráveis, na sociedade huma-
na. Não é sem razão que Platão chama a religião de amparo do poder e
das [eis e o víncu]o de uma discip]ina honesta. P]utarco [316] diz de
modo semelhante que é "o cimento de toda sociedade e o fundamento da
[egls[ação". Segundo Fí]on [317], "o cu]to de um só Deus [318] é a atra-
çãomais eficaz e o vínculo indissolúvel de uma amizade benevolente"
Completamente o contrário é produzido pela impiedade: "Ail A primeira
causa dos crimes para os mortais vacilantes é de não conhecer a natu-
reza de Deusa"[319]. Todafa]sa crença,diz P]utarco [320], sobreas
coisas divinas é perniciosa, quando se junta a isso a perturbação da
a[ma, é extrenaamente perniciosa. Há em Jâmb]ico [321] uma sentença

[316] .4dversus (b/oóe/2 (1125 E)


[317] De Àfonarchia Q, l)
[318] O mesmo ààz(.DeFortitudine, 'l} que "a causa mais coilsideráve} e a maior da
co1lcórdíaé a crença num só Deus, da qua! decorre, como de uma fonte, uJlla
amizade indissoiúve! que une as Rimas entre si". 3asetç}ÇContraAppio1lem, \l,
tqb à\z. "0 fato de ter unia mesma opinião com relação à divindade, sem ter
além disso u111a malleil'a de viver e costu3nesdiferentes, faz surge' nas almas
dos homens a mais bela das co1lcórdias.
[319] Si[ius [ta[icus [séc. ] d.C.], Pu )ica (]V. 792). Assim também Josefo (Cona'a
Hppf02 em, 11,35) dá comorazão por que muitos Estados eram mal policiados
(Tue "os primeiros !egisiadores não tinham conhecido a verdadeira natureza
cieDeus e não se haviam empenhadoem !evar a conhecímeilto o que podiam
c'ompi«condore I'egtz/nl' segundo Jlssosuas /eÍs': Ver no mesmo local o que se
segue que e primoroso
[320] De Supera Z]'one (164 E)
[321] Protrept. 3.
CAPÍTULO
n - DASPENAS
859

pitagórica: "0 conhecimento de Deus é uma virtude, uma sabedoria e


uma felicidade perfeita." Disso se infere como Crisipo [322] chamou a
lei: a rainha das coisas divinas e humanas. SegundoAristóte]es [323], a
primeira dentre as preocupaçõesde um governoé aquele que se rela-
ciona às coisas divinas [324] e que, entre os romanos, a jurisprudência
era o conhecimento das coisas divinas e humanas [325]. A arte de um
rei, para Fí]on [326], consiste "em cuidar dos negóciosparticulares,
públicos e sagrados'

4. Todas essascoisas devem ser consideradas não somente num


só Estado (como Côro diz, em Xenofonte [327], que seus súditos serão
tanto mais agarrados a ele, quanto mais temerem a Deus), mas ainda
na sociedade comum do gênero humano. Cícero [328] diz: "Suprima a
piedade e banireis ao mesmo tempo do gênero humano a boa-fé e a paz
e com isso a justiça, essa excelente virtude." O mesmo diz em outro
local [329]: "0 que torna justo é conhecerqual é a essênciado soberano
mestre e senhor, qual sua intenção, qual sua vontade." Uma prova
evidente disso é que Epicuro, tendo supresso a providência divina, nada
deixou igua[mente da justiça, senão um nome vão [330], dizendo que

[322] L2,Dig.1,3.

[323] .F=bjyZzba(Vl1, 8)
[324] Justino mártir, convidando os imperadores a zelar por essas coisas,.acrescen-
ta: ';Serácel'fameJ7fe
um ze/oatzbno
de um re/." Acrescente-se
o que diz
Covarruvias, cap. ,f)ossessaC / ]a.

[325] L. 10, $2, Dig. l, l.


[326] De creat. Mlagistr.
[327] alva'lnsÉ7'f, (Vl11, 1, 28).
[328] Marcus ']'u]hus Cicero[106-43 a.C.], De Natura .Deorum(1, 2, 3-4).

[329] Idem, De .Ãb?lbüs(IV, 5, 11).

[330] Em Sêneca(.Ê»&fo/a XCVl1, 15) se lê: ';Separemo'nosaguade Epfcu/o gue d)2


que nada éjusto por sua natureza e que se deve evitar o ma! porque, a seguir,
não se pode evitar o tentar,
860 H UGO GROTIUS

ela surge somenteda convenção,que não dura além da duraçãodo


interesse comum e que não é preciso se abster daquilo que poderia pre-
judicar a outrem, senão pelo único temor do castigo. Suas palavras
sobre essetema, que são seguramentenotáveis, se encontram em
Diógenes Laércio [331]

5. Aristóteles também viu nesse vínculo, ele que, no livro V capí-


tulo XI, de seutratado da coisapública, diz do rei: "0 povotemera
n:fenos,de fato, ser tratado injustamente por um príncipe que acredita
ser religioso." Galeno, no livro IX dos preceitos de Hipócrates e de Platão,
depois de ter dito que se discute sobre o mundo e sobre a natureza
divina muitas questões que não são de utilidade alguma para os costu-

mes, reconhece que a questão da providência é da maior utilidade tanto


para as virtudes privadas quanto para as públicas. Homero também
viu isso, ele que, nos cantos VI e IX da Oálssézb,opõe aos homens selva-
gens e injustos aqueles cujo coração é religioso. Assim é que Justino
[332], segundo']togus, e]ogia a justiça dos antigos judeus, misturada
comre]igião [333]. Assim Estrabão [334] também diz dos mesmosju-
deus que "eles eram verdadeiramente pessoas que praticavam a justiça
e piedosos". Lactâncio [335] diz: "Se pois a piedade consiste em conhecer

[331] Diógenes Laét'cio [séc. ]]] d.C.], UJdns, DouÉr2has, Se/zfe/?ç;as dos FJ/(ãsoáos
/7usÉres(X, 150)
[332] Justino, XXXV], 2, 26
[333] Na Hdn de .4óraáo, Fí]on diz: 'í$er re/]É oso e am go dos À0/7]ens ó da prc@rla
natureza; no mesmoindivíduo se observa a piedade para com Deus e a justiça
para com os homens.
[334] XVI, 2, 37
[335] Caecilius Firmianus Lactantius [séc. ]V d.C.], DUv2harum /nstítullbnum (V.
14, 12)
CAPITU LO H - DAS PENAS 861

a Deus, se o resultado desseconhecimento é de servi-lo, aquele que não


pratica a religião de Deus ignora a justiça. Como, de fato, pode conhecê-
[a aque]e que ignora de onde e]a vem?" O mesmo diz a]hures [336] : "A
justiça é o próprio da religião.:

6. A religião é mesmo de uma utilidade mais considerável nessa


grande sociedadeque numa sociedade civil porque, numa sociedade ci-
vil, as leis e a fácil execução das leis a substituem, enquanto que, ao
contrário, nessagrande comunidade, a persecuçãodo direito é muito
difícil, não podendo ser feito senão pelas armas e sendo as leis em pe-
queno número. Essas leis, a mais, não têm de maneira principal sua
sanção senão pelo temor da divindade; por isso aqueles que pecam con-
tra o direito das gentes são ditos em toda parte que estão violando o
direito divino. Não é sem razão, pois, que os imperadores disseram que
corromper a re]igião é uma injúria que diz respeito a todos [337] .

Xl;W Quais sáo as idéias mais gel'ais


a respeito de Deus e como elas estão contidas
nos primeiros mandamentos do Decálogo
1. Para penetrar a fundo em toda essamatéria deve-seobservar
que a verdadeira religião, que é comum a todas as idades, se apóia
principalmente sobre quatro proposições:a primeira é que Deus existe
e que é um só; a segunda, que Deus não é nada do que se vê, mas
alguma coisa de mais elevado; a terceira, que Deus cuida das coisas
humanas eque pronuncia sobreelasjulgamentos muito justos; a quar-
ta, que essemesmo Deus é o artífice de todas as coisas que estão fora
dele. Essas quatro proposições são explicadas por outros tantos precei-
tos do Decálogo.

1336]Idem, .Z)eIra .Del(7, 13)


1337] .Z,. 4, Cod. .De áaereZlaTi.
862 H UG o G R OT 1 1 S

2. No primeiro preceito a unidadede Deus é claramente


estabelecida. No segundo, sua natureza invisível, pois é por causa dela
que é proibido fazer imagens. Assim é que Antístenes [338] dizia: "Os
olhos não o podem ver, ele não se parece a nenhuma coisa, o que faz com
que ninguém o possa conhecer por representação." Fí]on [339], do mes-
mo modo, dizia que "é uma coisa profana produzir pela pintura ou pela
escultura a imagem daquele que é invisível". Diodoro de Sicí]ia [340]
diz de Mloisés:"Não mandou fazer nenhum simu]acro [341] porque não
acreditava que Deus fosse de forma humana." Tácito [342] diz: "Os
judeus não concebem Deus senão pelo pensamento e não reconhecem
senão um só. Tratam de ímpios aqueles que, com matérias perecíveis,
fabricam deuses à semelhança do homem." P]utarco [343] dá por razão
de Numa [344] ter feito tirar dos templos as imagens dos deuses, que
'Deus não pode ser concebido senão unicamente pelo pensamento". No
terceiro preceito percebe-seo conhecimento e o cuidado das coisas hu-
manas, mesmo dos pensamentos, pois esseé o fundamento dojuramen
to. Deus é, de fato, a própria testemunha do coração e se alguém enga-
na é invocado como vingador, o que realça ao mesmo tempo a justiça e

[338] Citado por Clemente Alexandrino (.f)ro6repó.


VI, 71). Sênecaparece ter-lhe
repassado isso(JUafuJ'ages QuaesÜ0/7c?sVl1, 30): "0 áró/fr o crlaaEaCo áu/ da
dor dessegrande todo, do qual ele é o centro; esseDeus, a mais elevada e
melhor parte de sua obra, se furta a nossosolhos; ele não é visível senão ao
pensamento.
[339] O rei Agripa diz issoem Fílon
[340] Excerpt. (do ]ivro X]).

[341] Dion(XXXVl1, 17) diz que '%m Jerusa/ém não Éínáam ]le 2áum sina/aa'o
porque acreditavam que Deus não pode ser visto, nem explicado por pala
mas': Ver também Estrabão (XVI, 2, 35)
[342] Caius Corne[ius Tacitus [55-120], J?]sfar7be (V. 5).

[343] JUuma (65 C).

[344] Sobreessainstituição de Numa, ver também Dionísio de Haiicarnasso


CAPITU
LOH - DASPENAS
863

o poder de Deus. O quarto preceito faz ver a origem do mundo, da qual


Deusé o autor, em memória da qual o sábadofoi outrora instituído
[345] e sancionado de uma maneira particu]al', acima de todos os outros
ritos. Se alguém havia pecado contra os outros ritos, a pena da lei era
arbitrária, como no que se relacionava com os alimentos proibidos; se
havia pecado contra o sábado, a pena era capital, porque a violação do
sábado, segundo sua instituição, continha uma negação da criação do
mundo por Deus. O mundo criado por Deus indica tacitamente sua
bondade, bem como sua sabedoria, sua eternidade e seu poder.

3. Dessas noções especulativas se passa às noções ativas, como


Deus deve ser honrado, amado, servido e que se deve a ele obedecer. Por
isso é queAristóte[es [346] disse que aque]e que nega que Deus deve ser
honrado ou que os pais devem ser amados deve ser combatido não por
argumentos, mas por um castigo. Diz também [347] que certas coisas
sãohonestas aqui e que em outros lugares não o são,mas que honrar a
Deus é algo próprio de todos os países. A verdade dessas noções que
chamamos especulativas pode ser demonstrada, sem dúvida alguma,
mesmo com provas tiradas da natureza das coisas, entre as quais a
mais forte é que os sentidos nos mostram que certas coisas são feitas.
As coisas feitas nos conduzem de modo absoluto a alguma coisa que não
foi feita. Comotodos não captam essarazão e outras similares, basta
que em todo tempo, em todos os países, à exceçãode número muito
reduzido de pessoas, essas noções tenham sido percebidas tanto por aque
les que eram de uma inteligência demasiado pouco desligada para que-

[S45] O autor de .Raspas/as aos Oz'fodoxos(questão LXIX) assim se exprime: '7h/'a


que, pois, a }embrailça da criação do mundo fosse cojlservada entre os ho-
mens, Deus quis que o núJnero sete fosse distinguido dos outros números
nas Esar7'furassagradas." Ver também o que precede.
[346] gbpz'c.,1, 9.

[347] gbp/c.,11,4.
864 H UGO GROTI US

rer enganar, comopelos outros, muito esclarecidos para se deixar enga-


nar. Esse acordo [348], numa tão grande variedade de leis e de opiniões
sobre outros pontos, mostra de modo suficiente que a tradição veio des-
de os primeiros homens até nós e que.ela jamais foi solidamente refuta-
da, o que basta, mesmo sem outra prova, para estabelecer a fé.

4. Dion de Prousa [349] acrescentou as coisas que lembramos


com relação a Deus, quando disse que há uma crença, isto é, uma con-
vicção relativa a Deus que nasceu conosco, extraída bem entendido de
provas, e outra crença,adquirida, provinda da tradição. P]utarco [350]
a chama "uma antiga convicção mais certa que nenhum argumento
que sepossa ter ou invocar; uma base comum dada à piedade."Aristóteles
[351] diz que "todos os homens têm a crença de que há deuses". O mes-
mo pensamento se encontra em Platão, no livro das Leis [352]

[348] '1brtu]ianc(,4drersus ]]aarc/o/lem, ], ]O) diz que 'b senÉ])ne/7fo ] [erJor de u/lla
divindade é um dom que, desde o começo,foi feito à alma". Segundol)\oüoro
da Sicília (]Q'ag7?1e
f. XXlll, 11), há "u/na piedade nafta/a/'l Fílon, falando da
poder de um só, diz que 'b acasonâoproduz obra áe fa com arie, ora, nada áá
que seja feito com mais arte que o mundo; atesta, pois, que foi criado por um
obreiro muito hábi! e sobera1lamenteperfeito. A crellça que temosna exzs'
fénc/a de Deus fem sua or7gumnisso." Tertuliano(.4dversus Marca'amem, l,
\$à à\z. "Suste1ltamos que se deve conhecer a Deus primeiro pela natureza;
que em seguida se deve reconhece-lopela doutrina. Pela natureza, isto é, por
suas obras,'pe/a douÉrlha,ou se7b,peia pi"egaç;âo,
" Cipriano, falando da vaida-
de dos ídolos, diz que 'g o aÚJnulodo cr7ne J2âoquerer /econàecel' o que não
se pode l&norar'l Juliano(.4d /7erac7z'um,
VII) diz que 'todossomospersuad'
dos, antes que tenha sido ensinado, que existe uma divindade, que se deve
orientar-se em díreçãoa eia, $e dirigir a ela; e creio que nossosespíritos se
dirigem para Deus, comoos seres dotados de vista se voltam para a ]uz
[349] Dion de Prousa ou Dion Crisóstomo,OrnÉlbXll
[350] ,4ma6ar2us (756 B)

[351] .De Goe/o (1, 3)


[352] .Z)e.LeW'Óas(X, 3)
CAPITULO m - DAS PENAS
865

XIÀrl. Aqueles que por primeiro violam


essas noções podem ser punidos

1. Por isso é que aqueles que rejeitam essas noçõesnão estão


livres de falta, mesmo que tenham o espírito bastante rude de modo a
não poder encontrar nem compreender as provas certas sobre as quais
são fundadas; isso porque conduzem à honestidade e a opinião oposta
não se apóia em nenhuma prova. Como tratamos dos castigos, ao me-
nos dos castigoshumanos, deve-sefazer aqui uma diferença entre as
próprias noções e a maneira de se afastar delas. Essas noções de que
existe uma divindade (uma ou várias, colocoisso à parte) e que esta
cuida das coisas dos homens são gerais em seu mais alto grau e absolu-
tamente necessárias para o estabelecimento de uma religião, seja ver-
dadeira ou falsa. "Quem quer que se aproxime de Deus (isto é, quem
quer que tenha religião, porqueentre oshebreusa religião é designada
de acessoa Deus) deve crer que há um Deus e que ele vai recompensar
aqueles que o servem" (J7eõreusXI, 6).

2. Cícero [353] diz de modo simi]ar: "Há n]ósofos, e os houve, que


acreditam que os deusesnão têm nenhum cuidado das coisashuma-
nas. Se sua opinião for verdadeira, que piedade pode haver, que
moralidade, que religião? Todas essasvirtudes não devem ser pura e
piedosamente oferecidas aos deuses para que eles as guardem, se algo é
concedido ao gênero humano pe]os deusesimortais." Epitecto [354] diz:
"0 ponto principal da piedade é de pensar bem dos deuses e de conside-
ra-los como existindo e administrando todas as coisas justa e sabiamente.:
Eliano [355] diz que ninguém dentre os bárbaros caiu no ateísmo, mas

1353]Marcus Tu[[ius Cicero [106-43a.C.], .De]Uafu/a.Deoruin(1, 2, 3)


[354] EJ7CÜZTI'd., 31

[355] Uâr HISÍ.(11,31)


866 H UGO GROTIUS

que todas a6rmam que há uma divindade e que ela cuida de nós [356].
Plutarco [357] diz no ]ivro das noções gerais que se destrói a noção de
Deus, se for suprimida a providência, "pois não se deve conceber,nem
entender que haja um Deus que seja somente imortal e feliz, mas se
deve crer que ele ama os homens, que tem cuidado por eles e que lhes
faz o bem." Lactâncio [358] diz: "Nenhum cu]to pode ser devido a Deus,
se ele não faz nada por aquele que o serve. Não há nenhum temor a ter
por ele, se ele não se irrita contra aquele que não o serve." Na realidade,
seconsiderarmos o efeito moral, negar que Deus existe ou negar que
Deus tenha cuidado dasaçõeshumanas, isso quer dizer exatamente a
mesma coisa.

3. Por isso é que, por efeito de uma espécie de necessidade, essas


duas noções têm sido conservadas junto a quase todos os povos que
conhecemos [359], durante já muitos sécu]os. Disso provém que

Pompânio [360] anexa ao direito das gentes a re]igião para com Deus e
que, em Xenofonte [361], Sócrates diz que servir os deusesé uma lei que
está em vigor junto a todos os homens, o que Cícero [362] afirma tam-

[356] Sêneca(Epistula XCV. 50) diz: "0 cu/fo a presta/' aos deuses ó pr7heJbamenfe
de crer em sua existência e, a seguir, de reconhecer sua majestade, sobretudo
sua bondade, sem a qua! não há majestade.
[357] Z)e Goma. Movi'É7üls
(1075 E).
[358] Caecilius Firmianus Lactantius]séc. ]V d.C.], De /ra Z)e/(6)
[359] Sêneca(Ep&fuJn CXVll) diz: '% ex7sfénda dos densos se dada e/ ü'e ouü'as
razões, da opinião que, nesse ponto, é inata em todos os espíritos que, em
parte alguma, em llenhuma raça de homensé rejeitada fora de toda lei e de
toda moral, até a não crer em deus qualquer." O mesma d\z, em De Bene6lciis
(!V. 4à. "7bdos os mortais não teriam coJlcordadoem invocar diündades sur-
das e deuses ]hpofe/]fes.. ."Acrescente-se Platão(.oboé Fora, 12, e J)e Z;egzóuA
X, 3) e os belos pensamentosde Jâmblico, em De JIZJuferJlsH g:rpílorum, logo
após o começo,onde diz que o conhecimento de Deus é próprio e natural do
homem, como o pincho para um cavalo
[360] L 2, Veluti, De Justa. et Jure.
[361] /emoraó. (]V, 4, 19)
[362] Marcus Tullius Cicero [106-43 a.C.], Z)e Nâfura Z)eoi-um(1, 16, 43); Z)e
InuenÜone(11,22, 65).
CAPITULOm - DAS PENAS 867

bém,tanto no tratado .DeNaz?u.r,a


Doaram,comono tratado .De
Zn venóone. Dion de Prousa [363] diz que "é uma convicção que se en-
contra comumente no coração de todos os homens, tanto entre os bárba-
ros como entre os gregos, e que é necessária e natural para todos os
seres dotados de razão." Pouco depois ele acrescenta que é "uma crença
muito sólida e eterna que se constata ter começadoe continuado sem
interrupção em todas as nações".Xenofonte[364],em OBanquefq diz
que os gregos e os bárbaros estimavam que o presente e o futuro são
conhecidos dos deuses.

4. Do mesmo modo, pois, que aqueles que por primeiro começam


a destruir essas noçõessão reprimidos nos Estados bem constituídos,
como [emos que ocorreu a Diagoras de Medose aos epicuristas [365],
que foram expulsos das cidades amigas dos bons costumes, assim tam-
bém, penso que podem ser reprimidos em nome da sociedade humana
[366] que vio]am sem razão prováve]. O sofista Himerius, em sua
peroração contra Epicuro [367], assim se exprime: "Quereis, pois, me
punir por minhas doutrinas? Não mesmo, mas por vossa impiedade. E
permitido ensinar doutrinas, mas não o é combater a piedade.:

Xl;Vll. Náo ocorre o mesmo com os outros.


o que é demonstrado através da lei hebraica

1.As outras noçõesnão sãoigualmente evidentes, como essas:


que não há mais que um Deus; que Deus não é nada do que vemos, que
não é nem o mundo, nem o céu, nem o sol, nem o ar; que o mundo não

[363] Dion de Prousa ou ])ion Crisóstomo,Oraílb X]].


[364]SymPosy'oll
(]V 47).
[365] Eliano, Uar HJkf.(]X, 12)
[366] O lídio Moxus fez afogar todos os habitantes da cidade de Crambe, da qua] se
havia apoderado, porque eram ateus, não conheciam e não adoravam ne-
nhuma divindade(Nicolau Damasceno, ,Exaerpé. Peúesc.)
[367] Fócio, B2õ#ofü., cod. .g43.
868 H UGO GROTA US

existe desdetoda a eternidade, nem mesmosua matéria, mas que essas


coisas foram feitas por Deus. Por isso vemos que, no decorrer dos tem-
pos, o conhecimento dessas verdades foi obliterada e como extinta junto
a muitos povos, muito mais facilmente quanto menos as leis cuidavam
em mantê-las, porquanto semelas podia aomenoshaver alguma religião.

2. A própria lei de Deus dada a essepovo reforçada em parte pelos


profetas e pelos prodígios que havia visto e em parte pelotestemunho de
uma autoridade indubitável, tinha inculcado um conhecimento nem
obscuronem incerto dessascoisas; ainda que ela deteste no mais alto
grau os cultos dosfalsos deuses,não pune contudo de morte todos aque-
les que estão convencidos dessa falta, mas somente aqueles cujos atou
são acompanhados de uma circunstância particular, como aquele que
por primeiro desviou os outros (Deuferon(âmloXl11, 16); a cidade que
começoua servir antes a deusesdesconhecidos(-DeufeT'on(anjo
Xlll,
23); aquele que adora os astros, de modoque abandona toda a Lei e por
conseguinte o culto do verdadeiro Deus (-Oeufa'onÓmJbXVl1, 2) (o que,
segundo Paulo (Romanos 1, 25), é adorar a criatura e não o criador
[368] pois "ncEpct",aqui e algures, tem muitas vezes sentido exclusivo),
essafalta foi durante algum tempo submetida a penas, mesmo entre os
descendentes de Esaú, como se pode ver em JÓ(XXXI, 26-27); aquele
ainda que tivesse votado seus filhos a Moloc, isto é, a Saturno (Levítico
VV 'l\

3. Para os cananeus e os outros povos vizinhos deles, caídos des-

de muito tempo em criminosas superstições, Deus não julgou que de-


vessem ser punidos em seguida, mas somente quando tivessem comple-

[368] Fílon(lzl Z)ecn/ogo,13) diz de tais pessoas:'7?ãoutros e/n que a hp]edade Ha]
além; não concedemhonras iguais a Deus e a suas obras, mas dão a essas
últimas todas as honras que se pode imaginar, não se dignam)do em coJlceder
a menor ]einbrança a essebem comum a todos; passam sob silêncio a única
Bolsa de que se deviam ]eillbral', abandoi)ando-se assim, esses infelizes, a um
esguec/me/?fovo/u/?farTO.
"Assim é que Moisés Maimõnides interpreta a pas'
vagemdo Z)euÉero/zó/??lo
(Z)lFecr.
111,41)
CAPITU LO XX - DAS PENAS
869

tado essafalta por grandes crimes (Gênesis XV 16). Do mesmo modo,a


respeito dos outros povos,ele dissimulou o tempo de ignorância com
relação ao culto de falsas divindades (Ates XVl1, 38). Como foi dito com
razão por Fí]on [369], é que cada um considerasua re]igião comoa
melhor porque sejulga na maior parte do tempo não pela razão, mas
pela ligação que se tem por ela, pensamento do qual não se afasta muito
essa passagem de Cícero [370] , que ninguém aprova outra seita de 6i]o-
sofia senão aquela que ele próprio segue.Acrescenta que a maioria se
encontra ligada antes de ter podidojulgar qual era o melhor partido a
seguir.

4. Do mesmo modo pois que esses são desculpados e não devem


certamente ser punidos pelos homens que, não tendo recebido nenhu-
ma lei formulada por Deus, adoram as propriedades dos astros ou de
outras coisas naturais ou os espíritos, seja nas imagens, seja nos seres
animados como em outros objetos ou mesmo as almas daqueles que se
distinguiram pela virtude e pelos benefícios para com o gênero humano
ou certas inteligências descompromissadas com a matéria, sobretudo
se eles próprios não inventaram esses tipos de cultos e se eles não aban
donam por isso o cu]to do soberano Deus]371], assim também, se deve
contar entre os ímpios melhor que entre aquelesque estãono erro,
aqueles que costumam prestar honras divinas aos maus gênios que
conheceram como tais ou a nomes de vícios ou aos homens cuja vida foi
repleta de crimes.
5. Não menos também, aqueles que derramam em honra dos
deuses o sangue de homens inocentes, costume que Daria [372], rei dos
persas [373], e Ge]ão,tirano de Siracusa [374], forçaram os cartagineses

[369] .De .LeFZf. ad CaJ'Un2(36).


[370],4c;ademJ'ca
(11,3, 8)
[371] Assim é que os judeus receberam em seu temp]o as vítimas oferecidas pe]os
reis do Egito, por Augusto e por Tibério. Josefoe Fílon nos inf'armam a
respeito.
[372] O filho de Histapis, pai de Xerxes. Compare'secomoo que foi dito no $ X]
1373] Justino, livro XIX, l, lO
[374] Plutarco, HpopÀíüegmafa (175 A)
870 H U GO GROTIUS

a se abster; por essa imposição são e]ogtados. P]utarco [375] re]ata tam-
bém que certos bárbaros que honram os deuses com vítimas humanas
haviam estado a ponto de ser punidos pelos romanos, mas que, como
eles se desculpassem argumentado com a antigüidade desse costume,
não sofreram mal algum, mas se limitaram somente a lhes proibir de
não cometer nada semelhante no futuro.

XLVlll. As guerras náo podem ser


feitas de modojusto contra aqueles
que recusam abraçar a religião cristã

1. Que diremos dessas armas que são apontadas contra alguns


povos, pela razão que eles não querem abraçar a religião cristã que lhes
é proposta? Não questiono no momento se ela é proposta tal qual deve
ser e da maneira que deveser. Concordemosque seja assim: dizemos
que há duas coisas a observar. Primeiro, é que a verdade da religião
cristã, enquanto acrescentamuitas coisasà religião natural e primiti-
va, não pode ser completamente demonstrada por argumentos natu-
rais, mas se apóia na história tanto da ressurreição de Cristã como dos
milagres feitos por ele mesmo e pelos apóstolos, o que é uma coisa de
fato, provada outrora, de modo que se trata de uma questão de fato e de
um fato já muito antigo. Disso resulta que essa doutrina pode com
tanto maior dificuldade penetrar profundamente no espírito daqueles
que ouvem dela falar pela primeira vez, a menos que intervenha algum
auxílio interior de Deus. Do mesmo modo que esses auxílios não são
dados como recompensa de alguma obra aos que são concedidos, assim
também, seforem recusadosa alguns ou menosliberalmente concedi-
dos, isso ocorre por causas não iníquas, é verdade, mas na maioria das
vezes desconhecidas de todos e por conseguinte não passíveis de punição

[375] Idem, Ouaesf. .Ro/n., 83.


CAPÍTULO m - DAS PENAS
871

pelojulgamento humano. Isso é que tem em vista um cânon do concílio


de Toledo [376] : "0 santo sínodo ordena que no futuro não se fará violên-
cia a ninguém para ]evá-]o a crer [377] . Deus tem compaixão de quem
ele quer e ele endurece quem ele quer." De fato, é costume dos livros
sagrados atribuir por causa a vontade divina aos efeitos cujas causas
são ocu]tas [378]

2.A segunda coisa a observar é que Cristo, autor da nova lei, não
quis em absoluto que ninguém fosse levado a receber sua lei pelas pe-
nas desta vida ou peãotemor dessaspenas [379]. Nessesentido é que
essaspalavras de Tertuliano sãobem verdadeiras: "A lei nova não se
vinga com a espada vingadora." Num livro antigo que traz o nome de
GonsílfüÉlbnes C7emenÉlk[380], é dito de Cristo: "E]e deixou aos ho-
mens o livre poder de seu arbítrio, não os punindo por uma morte tem-
poral, mas chamando-os a prestar contas no outro mundo." Atanásio
[381] se exprime assim: "0 S'enhor,sem exercer coaçãoalguma, mas

[376] 3ap. 5, de Judaeis, distinct. 45.

[377] Josefo é do parecer que cada um deve servir a Deus livremente, sem ser
coagido pela força.
[378] Sérvio observa, no começo do comentário ao canto 111da Eneida, que 'todas as
/fazesque não se vê a razão do que aco11tece
e que não se pode julgar a
respeito, tem-se o costume de dizer que isso pareceu bolll aa$ deuses".Barato
faz a mesma observaçãosobre o ato Y cena 111de .EuJluco(875)
[379] Gregário Nazianzeno(Opafl'o atum adsuinpfus esf a Paü'e) trata do assunto
e também Beda(.Hlsf. .Ebc:/eszasf. 1, 26). 1sidorodiz do rei Siseburg: "Qua'eJI
do, ]lo início de seu reinado, converter osjudeus à fé cristã, mostrou às vezes
zelo, lilás um zelo que }lão se coadunava com a ciência, pois ele constrangia,
usando de sua autoridade, aqueles que ele devia !evar à fê pela persuasão.
Rodericocopiou isso em sua história(11, 13). Osório e Mariana censuram pelo
mesmomotivo os reis que T'eivaramdepoisdele na Espinha. Ver esseúltimo
(XXVI,14e XXVl1,5)
[380]

[381] Epístola aos Solitários.


872 H UGO GROTI US

deixando à vontade sua liberdade, dizia em geral a todos: Se alguém


quer me seguir, e a seus apóstolos: Será que também vós quereis vos
retirar?" [382] . Sobre a mesma passagem de Jogo, Crisóstomo [383] diz:

;Ele lhes pergunta se eles próprios querem também se retirar, o que é a


palavra de uma pessoaque afasta toda violência e toda obrigação."

3. Não há contradição com isso na parábola das bodas na qual se


obriga algumas pessoas a entrar, pois do mesmo modo que nessa mes-
ma parábola, a palavra obrigar significa a insistência daquele que con-
vida [384], de igua] modo se deve assim entender na explicação moral.
Nesse sentido é que uma palavra de mesmo significado é tomada em
Lucas (XXIV, 9) e não de outra forma em Mateus (XIV, 22), na epístola
aos Gaiatas (11, 14). Procópio [385] nos informa num ]ugar da -/7Jlsfcír7b

Secaeta que a medida deJustiniano]386] , pela qual levou os samaritanos


por meio da violência e de ameaçasà religião cristã, foi censuradapor
pessoas sá boas.Acrescenta que se seguiram inconvenientes que podem
ser lidos nesse mesmo autor.

[382] Em Cipriano(.E»Jbfo/a LV. 7) há o seguinte: 'Uo/findo-se pai"a os ap(Ésfo/a e/e


lhes diz: Quereis {r? Observa1ldonisso a ]ei, em virtude da qual o home3n
deixado em sua !iberdade e co:lstituído de posse de seu livre arbítrio, pode se
entregar à morte ou à salvação.
[383] Comentáriosao á'range/Zode Jogo,JZomibbXLVl1, 3
[384] Cipriano, em De ]do/oru/?z UnnJfaZe
(14), fazendo alusão a essa passagem,diz
C)sdiscípulos deviam, por ordem de seu mestre e Deus, se espalhar pelo
inundo, dal' os preceitos de Deus em vista da salvação, levar os hoillens do
erro das trevas pai'a o caminho da !uz e torllar visível o conhecimelltoda
verdade aos cegos e aos ignoralltes. E para que sua demonstração não está
cessedesprovida de força, para que seu testemunho em Crista não parecesse
sem consistência, eles realizaram sua missão em meio a tormentos, torturas
e muitos tipos de suplícios.

[385] HJkforla 4rcana (11)

[386] Ver em CassiodoT'o(X,26) a carta de Teodahadeao mesmoJustiniano.


CAPÍTULO
H - DASPENAS
873

XLIX. Elas podem ser feitas de modo justo


contra aqueles que tratam com crueldade
os cristãos, somente por causa da religião
1. Quanto aos que submetem a penas as pessoas que ensinam ou
professamo cristianismo e por essemotivo agemsem dúvida alguma
contra a própria razão,porquanto nada há na disciplina cristã (conside-
ro-a aqui nela mesma e não enquanto alguma coisa de impuro se possa
a ela misturar) que prejudique a sociedadehumana. Mais ainda, nada
há que não Ihe seja vantajoso. A coisa é clara por si e aqueles que são
estranhos a essa re]igião são forçados a reconhecê-]o. P]ínio [387] diz
que os cristãos se empenham entre eles por um juramento de não come-
ter roubos, saques, nem trair a pa]avra dada. Amiano [388] diz que
nada é ensinado por essa religião que não seja justo e leve. Havia um
dito popular: "Caius Seius é um homem debem; sótem um defeito, o de
ser cristão" [389] . Não se deve admitir os pretextos que todas as novida-
des devem ser temidas, sobretudo as assembléias, pois nem se deve
temer as doutrinas, embora novas, se todavia conduzem a tudo o que
há de honesto e à obediência devida aos superiores, nem se deve suspei-
tar das assembleias de homens de bem e que não procuram se esconder,

[387] Caius P[inius Caeci[ius Secundus [62-114], .qp sfuJne (X, 96)
1388]Livro XXl1, 11, 5. O mesmohistoriador chama o cristianismo de uma religião
franca e simples. Zósimo que também era pagão diz que 'b promessa da 7
edstã éa !ibertação de fode crime e de toda impiedade". Os pagãos o chamam,
em muitas passagens:uma seita que não faz mal a ninguém (Tertuliano,
Scorplae, 1). Justino(.4po/ogeflaus, 11) diz: ':4yudamos e íraba/%amos maJk gue
todosos outros convoscopara a tranqtiílidade do império, eilsinalldo que é
impossível de se furtar aos olhos de Deus, se1ldo!evado a fazer o nla!, raptor,
traidor ou co1ltínuando a ser amigo da justiça; que, segundo o mérito de suas
obras, cada u111será !evado à salvação ou ao castigo eterJlo." Àln6b\o {lV, a6à,
falando das assembléiasdos cristãos, diz: '2Vadnáá que Jãc}ibspúe a duma/ci-
dade, a doçura, o pudor, a castidade, a liberalidade, a beneficência, o amor de
todos os homens que reatain elltre si os }iames da fraternidade.
[389] Quintus Septimius F[orens Tertu[[ianus [155-220?], ,4po/ogeÉ2aus (3) e .4d
ÀhÉlones (4)
874
H UGO GROTI us

a menos que a isso sejam forçados. Eu aplicaria aqui a propósito o que


Fílon [390] lembra que Augusto havia dito sobre as assemb]éias dos
judeus: "Não são bacanais ou reuniões em vista de perturbar a paz,
mas escolas de virtude."

2. Aqueles que maltratam tais pessoas, eles mesmos estão no


caso de poder ser punidos justamente, o que é também a opinião de
Tomas [391] . Por essacausa é que Constantino moveu guerra a Licínio
[392] e que outros imperadores a moveram aos persas [393], embora
essas guerras se liguem antes à defesa dos inocentes, defesa de que
trataremos também posteriormente (livro 11,cap. XXV. 6), do que à
aplicação docastigo.

L. Não contra aqueles que têm falsas opiniões


sobre o sentido da lei divina, o que é esclarecido
pelas autor'idades e por exemplos

1. Agem com a maior iniqüidade aqueles que empregam os suplí-


cios contra as pessoas que seguem a lei de Crista como verdadeira, mas
que duvidam ou erram em alguns pontos, seja fora da lei; seja que
pareçamter na lei algum sentidoambíguo,e não explicadospelosanti-
gos cristãos da mesma maneira. O que dissemos antes e o antigo exem-

[390] in .Z,egaÜoJ?e(40). Deve-se de igua] modo ver com e]oqtiência, no ]ivro Z)e
Sbc17ZcanüZlus(12), como as sinagogas diferem dos mistérios do paganismo
Ambas as passagens merecem ser lidas. Josefo ((bnÉra Hppl'amem, 11)diz algo
de semelhante.
[391]Tomas,11,2, 108.
[392]Ver Zonaras(XV. ]). Um fato semelhantese encontra em Agostinho(/@zbfa/a
Cb. "Maximíano, bispo de Vagões, pediu socorro a um imperador cristão contra
os inimigos da Igreja, não tanto para se defender ele próprio, mas para defen-
der a /.gl'eybque /Zí?era conálbda."Essapassagemé relatada em l:baga mZZZ
quaestio 3.
[393] Ver Menandro, o Protelar
CAPITU
LOH - DASPENAS
875

plo dos judeus o demonstram. Embora eles tivessem uma lei que era
sancionada por castigos nessa vida, não submeteram jamais a penas os
saduceus que rejeitavam o dogma da ressurreição, dogma verdadeiro,
seguramente, mas ensinado nessa lei, não sem obscuridade e sob uma
capa de palavras ou de coisas.

2. Quedecidir se o erro for grosseiroe de natureza a poderfacil-


mente ser refutado diante de juízes justos pela autoridade sagrada ou
pelo consenso dos anciãos? Deve-se pensar aqui quão grande é a força de
uma opinião enraizada e quanto o zelo de cadaum para que sua seita
diminua a liberdade dojulgamento; mal comodiz Galeno,mais incurá-
ve[ que qua[quer tipo de [epra. Orígenes [394] diz bem a propósito desse
assunto que "cada um se despojará mais facilmente de todos os outros
objetos aosquais estiver habituado, por maior que seja a afeiçãoque
tenha por e]es, que das coisas que tocam os dogmas" [395]. Acrescen-
te-se que o tamanho da falta depende do grau de luz e de outras disposi-
ções do espírito que não é dado aos homens penetrar.

3. Segundo Agostinho [396], o herege é só aque]e que, em vista de


alguma vantagem temporal e sobretudo para atrair sobre si a glória e a
proeminência [397] cria ou segue opiniões fa]sas e novas. Escutemos
Salviano [398] sobre os arianos: "São hereges, mas sem o saber; numa

[394] OonÉm Ce/stzm (1, 52).


[395] João Crisóstomo(comentário à / .8pi'sfo/a aos Oo/:hfl'os J71J?bml»b Vl1, 7)
segue esta mâx\mü "Quando o hábito é aplicado às coisas de crença se torna
bem mais inabaiáve}. De fato, não há nada que o homem mude mais diâJci]
mente que o que é de domínio da religião.
[3961 No livro Z)e UÉ//]fafe Credendl (1). A passagemé citada em CousaXX7K
guaesüo 3. Agostinho acrescenta que um herege e um homem que acredita
em proposiçõesheréticas não parecem ser a mesma coisa. Ver o mesmo. na
.iãpJbfo/aCLXll. A heresia é definida como a loucura de um espírito muito
abs\ànado (.[,. 2, Cod. De Summa ']:rinitate, }b
[397] O autor de Respostas aos (2rfodoÃ-os(questão IV) escreve: 'Z' certo que fodns
as seitas tiveram sua origem da paixão pela glória ou da inveja que agitou
seus p/:íme? os ânforas. "Jogo Crisóstomo(.4d Gaja as V 4) diz: ' 4 pa/xáo de
estar em primeiro plano é a mãe das heresias.
[398] Sa[vianus [séc. V d.C.], Z)e Ouóer72aüone Z)el (V] 2).
876 H U GO GROTIUS

palavra, são hereges entre nós, mas não o são entre eles, pois se julgam
de tal modo católicos que nos acusam a nós mesmos de heresia. O que
são pois a nosso ver, nós o somos ao deles. Estamos certos que lnluriam
a geração divina, porquanto dizem que o Filho é inferior ao Pai. Eles
estimam que nós ultrajanlos o Pai porque os cremos iguais. Averdade
está de nosso lado, mas eles presumem que está do lado deles. Ahonra
de Deus está entre nós, mas eles pensam que a honra da Divindade é o
que eles crêem . Faltam a seu dever, mas fazem consistir, nisso mesmo
em que faltam, o maior dever da religião. Sãoímpios, mas nisso mesmo
acreditam seguir a verdadeira piedade. Erram, pois, mas erram de boa
fé [399], não por ódio, mas com amor de Deus, acreditando honrar o
Senhor e amá-lo. Embora não tenham a verdadeira fé, consideram con-
tudo a que têm comoum amor perfeito a Deus e ninguém pode saber, a
não ser o juiz [400] , como serão punidos por esse erro de falsa crença, no
dia do julgamento. Esperando, como acho,Deus os tolera pacientemen
te porque vê que, se não acreditam de modo justo, erram todavia por
um sentimento de crença piedosa.

4. Sobre os maniqueus, escutemos aquele que esteve muito tem-


po engajado em sua grosseira ignomínia, Agostinho [401] . "Esses que
vos maltratam, não sabem com quanto esforçose encontra a verdade e

[3991Agatias depois de ter falado das absurdas superstições dos alamanos (HlkÉor.,
' 7), diz que aqueles que erram assim são mais dignos de piedade que de ódio
e que sua situação permite lhes concedero perdão porque não é voluntaria-
mente que se desgarram, mas pelas falsas idéias que se fazem do bem pela
qual suspiram e às quais se mantêm obstinadamente agarrados, quaisquer
que sejam
[400] Jogo Crisóstomo(JÍomJba con ra .4nafben?af zanfes, 4) diz: "0 /uZZ dos sócu.
]os, único que conhecea medida da ciência e a quantidade da fê, julgará
sozinho sem perigo o que está oculto. De ondepoderemos saber, vos pergun'
bo,em que termos aquele que erra se acusara ou se desculpará?nesse dia em
que Deus julgar os segredos dos homens?Na verdade, seus juízos nãa podem
ser sondadose seus caminhos são impenetráveis.
[401] aDMira .E». .4/an/cÜ.(2)
877
CAPITU LO XX - DAS PENAS

com quanta dificuldade se busca refúgio contra os errosl Esses que lu-
tam contra vós, não sabem quanto é raro e duro se meter, com a sereni-
dade de um espírito piedoso,acima dos fantasmas carnaisl Essesque
vos combatem não sabem com qual dificuldade oolho do homem infe-
rior é curado de maneira a poder contemplar seu sola Esses que vos
seviciam não sabem quantos gemidos e suspiros são necessários para
adquirir algum conhecimento de DeusaEnfim, essesque vos maltra-
tam não caíram num erro semelhante aos que vos vêem caídosl Para
mim, não posso em absoluto vos maltratar, pois devo sustentar agora
como me sustentaram a mim mesmo em outros tempos, e devo agir
para convoscocom uma paciência tão grande como aquela com a qual
agiram a meu favor meus parentes próximos quando, louco e obcecado,
errava em vossa doutrina.

5. Atanásio ataca com energia a heresia ariana [402] em sua


carta aos solitários, porque foi a primeira a fazer uso do poder dosjuízes
contra os contraditores e porque aqueles que não havia podido induzir
por palavras, se havia esforçado por atrai-los a ela pela violência, açoi-
tes e prisões. Ele diz: "Assim é que ela faz ver quanto ela própria não é
piedosa e quanto não serve a Deus", tendo em vista, se não me engano,
o que se ]ê na Epísto]a aos Gá]atas (]V.29) [403]. Hi]ário tem coisas

[402] Não é sem razão que detestamos essesintrodutores de tão mau exemp]o
entre os cristãos. Ver seus alas de crueldade em Eusébio (Hfa ao/]sfanÉlni. l,
5, 38), no local em que fala de Honorico, e GofíúJC.(1, 13), a respeito de
Amalarico, e ainda Vitor de Utica. Epifânio diz dos semi-arianos: 'Z7espezTe-
guem a queres que ensinam a verdade, não procuram convence-Jospor pala'
rias, màs entregam os que pensam corretamente ao ódio, à guerra, à espada
Já causarama ruína não somentede uma cidade,mas de cidadese denume-
rosas ]'e#lões." Gregório, bispo de Romã, diz a respeito dessas pessoas ao
bispo de Constantinopla: 'Z' uma nova e zÍf 7pregaÇãoa gue J)npõéa /E a
paulLadas!

[403] Sobre essapassagem,ver Jerânimo, citado em (hn. é?u secundam, causa


XXlll, qua est;io IV.
878 H UGO GROTIUS

similares em seu discurso a Constâncio. Na Gália, já outrora, bispos


foram condenados[404] pe]oju]gamento da ]greja por terem empregado
a espada para punir os priscilianistas. No oriente, o sínodo que havia
consentido que Bogomilo fosse queimado foi condenado. P]atão [405]
disse com sabedoria que "a pena daquele que está no erro é de ser ins-
truído"]406].

[404] Sulpício Severo(11, 47) relata que '7tíáa/o e IfácJ'o bsu)í7bam com veeménc2b,
pensa:ldo que o ma} podia ser sustido em seu início, mas mostraram pouco
bclm senso ao recorrer aosjuízes seculares para fazer expulsar das cidades os
Àe2'agespar n]e o de s /as se/]Ée]ç'as e suas exec'rações'lPouco depois acres-
centa. "Apresentaram-se como acusadoresos bispos Idácío e rácio, de quem
11ãocensurada o zelo em submeter os hereges, se não tivessem combatido
pela ânsia de vencer,mais do que deverian}ter feito. Para mím, minha opi-
nião é que os acusadosme desagradamtanto qua11toos acusadores."B depois
conta que Maninho, bispo de Touro, não cessavade convidar rácio a desistir
de sua acusação, de pedir a Máximo de não derramar o sangue dessesinfeli-
zes, dizendo-lhe que era mais que suficiente, depois de terem sido declarados
hereges pela sentença dos bispos, que fossem expulsos das igrejas. Ver tam-
bém o que se segue.
[405],4 .RePzÍÓJI'ca
(1, 11).
[406] Soneca, na tragédia J7brcuJes -F'uz'ens(1244), díz: "Q rena nunca deu o nome
de cr7h7eao erro?"Em seu livro .Oe/z'a(1, 14), escreve: ':r\UoÉazparée de tz/ ]
homem prudente odiar os que erram, casocolltrário deveria se odiar a si
nlesJno. " Marco Antonino(IX, 11) diz: ':hsÉruÍ se puderes, agueJes guc? se
desgan'am; senão, !enlbra te que a ternura te foi dada para usá-la com eles.
Os pr(br os deuses os suportam com 6er77ura."Jogo Crisóstomo(comentário
à .gpJGfo/aaos .E7Zísios
/V ]7 JZoml#a Xlll, 1) diz que não se deve punir, nem
mesmoacusar aquele que está na ignorância, mas que é justo de Ihe ensinar
o que ignora. Valentiniano é elogiadopor Amiano Marcelino (XXX, 9, 5)
ç)a que "não perturbava ninguém, não ordenava que se adorasse tai ou qual
coisa,não fazia curvar a cabeçade seus súditos por meio de !eis ameaçadoras
diante do que ele adorava, mas deixava cada uJnseguir pacíacamenteseu
culto, segundo sua consciência
CAPÍTULO
H - DASPENAS
879

LI. Elas podem ser feitas de modojusto contra


aqueles que são ímpios para com os deuses
e que admitem serem estes divindades
1. Serão punidos mais justamente aqueles que sãoirreverentes e
irre[igiosos em re]ação aos deuses em quem crêem [407] . Entre outras,
essafoi uma razão alegada pela guerra do Peloponesoentre osatenienses
e os ]acedemõnios [408] e e]a foi invocada por Fi]ipe da Macedõnia con-
tra os habitantes da Fócia]409], cujo sacrilégio, segundo relato de Justino
[410] , "merecia que as forças do universo se reunissem para ]hes exigir
expiação". Jerânimo [411] diz a propósito do capítulo V de Danie]: "En-
quanto os vasos sagrados estiveram no templo de ídolos na Babilânia, o
Senhor não se irritou, pois parecia que tivessem, embora segundouma
falsa opinião, consagrado ao culto divino o que pertencia a Deus, mas a
partir do momento que profanam as coisas divinas com usos humanos,
logo o castigo segue o sacrilégio."Agostinho pensa que, se o império dos
romanos foi aumentado por Deus, é porque eles tinham em seu coração
uma re]igião, ainda que fa]sa. Comofa]a Lactâncio [412], porque e]es
observavam o maior dever do homem, senão em realidade, pelo menos
na intenção.

[407] Ver a respeito as bebaspassagens nos ]ivros V e V] de Ciri]o(OonZra Ju#anum).


Os anfictriões, sob instigação de cólon, moveram guerra aos cirreos porque
tinham entrado à força no templo de Delfos(Plutarco, Wdn de S37on,83 F).
Pode-setambém punir legitimamente aqueles que se fazem passar falsa-
mente por profetas(ver Agatias, livro V. 5)
[408] Tucídides (1, 26)
[409] Diodoro (XVI, 60)

[410] Vl11, 2, 6
[411] Oommenfa/fus ]zz .Fbopáefam Z)ande/(V])
[412]Caeci[iusFirmianus Lactantius [séc.]V d.C.], DuçdnaJ«um
]nsÉafuÉabnum
(11,3
14)
880 H UGO GROTluS

2. Dissemos antes (cap. Xlll, $ XII) que, quaisquer que sejam as


divindades que se crê comotais, o perjúrio cometidocontra elasé puni-
do pela verdadeira divindade. Sêneca[413] diz: "]i punido por ter queri-
do ultrajá-lo como Deus; sua consciência o obriga a uma reparação pe'
na[.« ])o mesmo Sêneca [414] : "Num ]oca] é desse modo, em outro da-

quele modo, mas em qualquer lugar a pena é outra, é sempre diversa


para os violadores das religiões." P]atão [415] tem como medida conde
nar à pena de morte osvioladores da religião.

[413] Lucius Annaeus Seneca [01? a.C.-65 d.C.], Z)e Be/leác= b (Vl1, 7)

[414] Idem, ])e .BeneElcuJS(111,


6)
[415] Z)e Z,eEIZ,us(X, 15).
XXI

DA COMUNICACAO
DAS PENAS

Sumário

1. Comoa pena passa para aqueles queparticiparam do delito.


11. Uma comunidade ou seus argumentosrespondem pelo deli-
to de um súdito, se dele vivei'aln ciência e não o proibiram,
enquanto podiam e mesmo deviam proibi-lo.
lll. l)o mesmo modo, pelo refúgio dado aos que cometeram em
outro local o delito.

rVA menos que opunam ou o entreguem, o qüe é esclarecido


por exemplos.
g. Os direitos dos suplicantes dizem respeito aosinfelizes, não
aos culpados; com exceções.
71. Os suplicantes podent contudo serprotegidos, até que seu
processo seja instaurado; segundo que lei a instrução deve
ser feita .

V'll. Como os súditos participam dos delitos dos governantes


ou do delito da comunidade, a queles que são membros de-
la; em que diferem a pena de uma comunidade da pena dos
privados.
VIII. Quanto tempo dura o direito da pena contra uma comuni-
dade.

IX. Se a peJla passa sem comunicação do delito.

X. Distinção do que é causadodiretamente do que vem como


decorrência.

XI. Distinção do que se faz por ocasiãodo crime com o que


ocorre por ca usa do crime.

XII. Propriamente fiando, ninguém é punido de modojusto


pelo delito de outrem e por quê.

XIII. Os filhos não respondem pelos delitos de seus pais.

XIV Responde-se aos aros de Deus com relação aos filhos dos
culpados.

X\( Os outros parentes respondem menos ainda.

XVI. Alguma coisa, contudo, pode ser recusada aos 8llhos e aos
pais dos culpados que de outro modo poderiam ter; com
exemplos.

XVII. Os súditos não podem propriamente ser punidos pelo


delito do rei.

XVIII. Nem osprivados quenão consentiram por causa do de'


cito da comunidade.

XIX. Os herdeiros não estão sujeitos à pena como pena e


porque.
XX. São obrigados, contudo, se a pena passou para outro tipo de
obrigação.
CAPÍTULO XXI - DA COMUNICAÇÃO DAS PENAS
883

1. Como a pena passa para aqueles


que participaram do delito

1. Todas as vezes que se trata da comunicação da pena, trata-se


daqueles que são participantes do de]ito [1] ou de outros. Aqueles que
sãoparticipantes no delito são punidos não tanto pelo delito de outrem,
senão pelo deles. Pode-se conhecer quem são, de acordo com o que foi
dito no capítulo XVll, $ VI sobre o prejuízo causado injustamente. De
fato, a gente é cúmplice de um delito, quase da mesma maneira que se
é responsável por um prejuízo. Não há, contudo, hoje, um delito em que
há obrigação de reparar um dano, mas somente quando sobreveio o
acréscimode alguma maldade indigna, enquanto que uma falta, qual-
quer que seja, basta muitas vezes para impor a obrigação de reparar
um dano causado.

2. Aqueles que ordenam um fato viciado [2], que concedemo con-


sentimento que lhes é solicitado, que ajudam [3], que fornecem refúgio
[4] ou que participam de qualquer outra maneira ao próprio crime, que

IJ lêrtultano? ern De #esurrecÉlbne Carne) (16), diz: "Os mlhlsü'os e os aií/np/)bes


de um crime têm a liberdade de se tornar talho ministros quantocúmplices
Eles têm a livre disposiçãode sua vontadefrente aos outros e diante de si
mesmos.Por isso devem ccmpartühar a falta com os autores do crime. a quem
px'estamvoluntariamente sua ajuda.
[2] Agostinho(Sar/770 K Z)e sancÉ7k, IV) diz: 'íSau/o apeara?bva pejos /IJáos de fados
Ver algo semelhante em SerJ7?0
/(cap. 111),sobre o mesmo assunto.e Se//no

[3] Fornecendo os meios. Znsilfuf/0/7/bus, -Deáurílh / Inferdum. Edita de Teodorico


cap. 120.

[4] Jerânimo, em seu livro Sobre as .f)aráóo/as,diz: ':r\Go ó some/;fe o ]acírüo que á
)brigado, mas também aquele que, conhecendoo roubo. não o leva a conheci-
mento do proprietário para procurar a coisa roubada." 3oãa Cx\s6stomo(De
Statuis, X]N. Sb esclen . "São responsáveis não somente os próprios perjuros,
mas também aqueles que, conhecendofitos de peÜúrio, ajudam a oculta-los.
884 H UGO GROTIUS

dão conse]ho [5] , e]oglam, aprovam [6], que sendo obrigados em virtude
do direito propriamente dito de proibir não proíbem]7] , que sendoobri-
gadosem virtude do mesmodireito de levar auxílio a quem sofre injúria
e não o leva, aqueles que não dissuadem, enquanto devem dissuadir,
aqueles que calam um fato que eram obrigados em virtude de qualquer
direito de levar a conhecimento,todos essespodem ser punidos, se hou-
ver neles mesmosuma maldade tal que basta para fazer mereceruma
pena, em conformidade com as coisas que foram tratadas há pouco

11 Uma comunidade ou seus governantes


respondem pelo delito de um súdito,
se dele tiveram ciência e não o proibiram,
enquanto podiam e mesmo deviam proibi-lo
1. Acoisa se tornará mais clara através de exemplos. Uma comu-
nidade civil ou de outra natureza não é responsávelpelo ato dospriva-
dos, se ela não contribuiu por sua ação própria ou por sua negligência.
Agostinho [8] disse muito bem, de fato, que "uma coisa é a falta que

[5] Ver ])7sÉ/fEIÉianes


e o edita de Teodorico, nos locais citados. Andocides.(Z)e .4/)sf,
94) diz que, segundo uma lei de Atenas, 'blue/e que deu o canse/bo de um crl)ne
não deve ser menos punido que aquele que o executou com as pr.ópnas mãos .
Aristóteles(Z)e EÀeíor2ca,1,'7) diz: 'H coisa/?ão &er2asido reajJzadasem seu
coJlselho
[6] Jogo Crisóstomo, em comentários à Ed)ÚZo/aaos J?onzanos/(,IZ0/22diaV. 1), diz

de Fílon e de Josefo que citaremos a seguir (pai'ágrafo XVII)


[7] Jogo Crisóstomo(,adversas Judaeos, IV, 7) escreve: ':4ssJh é que, /7âo somente
aqueles que cometeram um roubo, mas aqueles que, podendo impede-lo,não o
ál2eram, são punidos ambos com a mesma pena. " O mesmo autor, em comentá-
li:'à /7 aos Gollhdos HZ7(Homüa XIV, 2), diz: 'Hsslh, fique/e que mpede que
se cuide de um doente é responsávelcomo se o tivesse ferido.
[8] Aut'e]ius Augustinus [354-430], é?uaesfzones
ín .17epfafeucbu/n
(111,26)
885
CAPITULOHI - DA COMUNICAÇÃO DASPENAS

cada um comete em particular num Estado, outra coisa aquela que é


cometida em comum com um só espírito e uma só vontade no seio de
uma multidão reunida em vista de algum objetivo". Disso decorrem
essas palavras na fórmula dos tratados: "Se for de6lnida a defecção por
uma de[iberaçãopública..." [9]. Oshabitantesde Locri, em Tiro Lívio
[10], demonstram ao senado romano que a vontade pública não tinha
tido qualquer envolvimento no crime de deserção. O mesmo re]ata [11]
que Zenon, implorando o favor dos magnetes diante de T. Quintius e
dos embaixadoresque o acompanhavam,pedira chorando, diz Tiro Lívio,
que "não se imputasse a toda uma cidade o erro de um só indivíduo, pois
cada um deve ser responsável por suas extravagâncias". Os habitantes
de Rodes também, diante do senado, separam a causa pública da causa
dos privados, dizendo que "não há Estado que não tenha às vezes cida-
dãos perversos e sempre uma mu]tidão ignorante" [12] . Assim é que um
pai não responde tampouco pelo delito de seus filhos, nem um patrão
por aquele de seu escravo, nem todos os demais superiores, a menos que
não subsista neles próprios algo de viciado.

2. Entre as coisas que podem tornar os superiores cúmplices de


um crime há duas muito ú'eqüentes e que merecem ser cuidadosamen-
te consideradas: o tolerância e a retração. Com relação à tolerância

191'1'ito Lívio, 1, 24, 8. João Crisóstomo (Z)eSZafui), 111,1) diz: 'H cidade não àav7b
domadoparte no crime, mas que os autores eram estrangeiros, recém'chega
ãos, que haviam feito tudo com $eine]-idadee com ignorância das leis, se3]}
premeditação.Não seria, portanto, justo que,peia ignorância de pequenonú-
mero de homelas, unia cidade tão grande fosse destruída e que os inocentes
desse ar7he fossem pum'dos. "Amiano diz dos quados(XXX, 6, 2): 'Z7es aá12ma-
vam que nada havia sido tentado contra nós por deliberaçãopública dos chefes
da nação.

[10] Titus Livius [59 a.C.-17 d.C.], .4ó Z]/róe Go/zd/Za Q(XIX, 17)

lll] Idem, .4b Urbe Co/ dTfa(XXV. 31, 14)


[12] Idem, .4ó z:/róe aondl&a(XLV. 23, 8)
886 H UGO GROTIUS

deve-se colocar como máxima que aquele que sabe que um delito está
para ser cometido, que pode impedi-lo, que é obrigado a fazê-lo e que não
o impede, se torna ele mesmo cu]pado. Cícero [13] escrevia em seu dis-
curso contra Pisco: "Não há muita diferença, sobretudo no que diz res-
peito a um cônsul, entre o fato de perturbar a república por meio de leis
perniciosas, de tramas criminosas e o de tolerar que os outros a pertur'
bem." Brutus escreveu a Cícero [14]: "Vós me tornais responsáve], po-

de-sedizer, da falta de outrem? Certamente, porquanto podia ser preve'


nida." "Cometeruma má açãoe não impedir aquelesque a cometemé a
mesma coisa", diz Agapeto a Justiniano]15]. Arnóbio]16] diz: "Quem
quer que tolere que o pecador peque, fornece forças à audácia." Salviano
[17] diz: "Aque]e nas mãos de quem está o poder de impedir, ordena, se
não impedir que cometa." Com toda a verdade, Agostinho]18] diz: "Aquele
que evita se opor,quando puder, consente.

3. Assim é que aquele que, podendo subtrair um escravo à prosti-


tuição, tolera que seja prostituído, é considerado pelas leis romanas
como se ele próprio o estivesse prostituindo [19] . Se um escravo assassi-
na, sabendo-o seu dono, obriga seu patrão pela totalidade, pois o próprio
dono é considerado como tendo assassinado]20] . Em virtude da lei Fabia,
o dono é punido seum escravo, sabendo-o seu dono, desprezou o escravo
do outro [21]

Íiãi Íãarcus Tu[[ius Cicero [106-43 a.C.], in .Lucl'uJ72P]ionem (5, 10)


[14] Idem, .©)zsfuJae
ad Bruóu n (1, 4,5)
[15] ParnJheé. (28)

[161 Arnobius [séc. ]]-]]] d.C.] , Z)zspuZaflones adversas Àraflo/zes (IV. 32)
[17] Sa[vianus [séc. V d.C.], Z)e Guie ] aóone Deu (V]1, 19)
[18] Confira cánon /Z causa mZZ quaesÉI'o 3.

t\9Ã 1,. 7, ímperator, Díg., Qui sine ma1lulniss.


[20] .& .g Z)e Mola/. .4cf,

[21] Paulo, Sente/lazão(V. 30, 2)


887
CAPITULOml - DA COMUN[CAÇAODAS PENAS

4. Como dissemos, deve-se ter, além do conhecimento do fato, o


poder de impedir. Isso é o que dizem as leis que, quando se condena esse
conhecimento [22], se quer condenar ao mesmotempo a to]erância, de
modo que é responsável pelo crime aquele que, tendo podido interpor
impedimento, não o fez [23] e que esseconhecimento deve ser considera-
do comoacrescidoà vontade [24], isto é,acompanhadode um propósito
deliberado. Por isso é que o dono não é obrigado se o escravo reclamou
juridicamente sua liberdade, se não teve em conta as proibições de seu
patrão [25], porque aque]e que tem conhecimento não é cu]pado, é ver-
dade, se não puder impedir [26] . Assim é que os pais são obrigados em
razão dos delitos dos filhos, mas somente dos filhos que estão sob seu
poder [27]. Por outro ]ado, mesmo que os tenham sob seu poder e que
tivessem podido impedi-los, não serão obrigados, a menos que tenham
tido conhecimento [28]. Essas duas coisas devem, de fato, concorrer
juntas de igual modo, o conhecimento e a não-proibição, para que al
guém seja obrigado em razão do fato de outrem. Isso deve, por seme-
lhante razão, se aplicado aos súditos, pois isso provém da equidade na-
t.llrnl
a

5. Próculo diz de modo magistral a propósito desseverso de


Hesíodo [29] , "muitas vezes um povo é punido por um só homem que é
iníquo": "Porque, podendoimpedir a maldade de um só, não a impede."

[22] Lei dosvisigodos, ]ivro V]]], tít. ]V. cap. X] e XXV]; e ainda, ]ivro ]X, tít. ], cap. ]
taRAL 45, Scientla, Ad !egem Aquiliam.
2.4ÀL. 1, $Haeclutem, Sifamil. furt. feciss.dic.
[25À 1.. 4, in delíctás, De noxai. act.
t26ÀL. 50, Culpa, De Reg. Jur.; L !09, zluilum crimes eo tit.
Ci:iXL. 1, $ Qu! eam,in fine;i. Quid ergo, $1, 1, Non alia, Dig., Quinot. inf.
t28À L 7, F'urtum, $ Quod si, Dig., Árb. fura. caesar.
[29] OP. ef Du'es (240)
888 H UGO GROTI US

Assim é que no exército dos gregos, onde o próprio Agamenon e os ou-


tros chefesestavam submetidos à assembléia comum, se podia dizer
não sem razão: "Todas as loucuras dos reis, são os gregos que as supor'
tam" [30]. Tocava a e]es, de fato, forçarAgamenon [31] a entregar ao
sacerdote sua bilha. Assim é que se relata que, em seguida, a frota dos
mesmos gregos foi queimada pela culpa e pelo furor somente de Ajax,
filho de Oileus [32]. A esse respeito, Ovídio [33] diz: "Cu]pado de ter
arrancado uma virgem do templo, atraiu sobre os gregos a pena que só
ele havia merecido...", porque os outros não haviam impedido que a
virgem sacerdotisa fosselevada. Há em Tiro Lívio [34] o seguinte: "Os
parentes do rei Tabus maltratam os delegados dos laurentinos e como
os laurentinos invocavam o direito das gentes, Tabus cedeu à influên-
cia e aos rogos dos seus. Por isso, fez recair sobre si mesmo o castigo
deles."Aisso se refere propriamente essapa]avra de Sa]viano [35] sobre

[30] Quintus Horatius F[accus [65-08 a.C.], EpJs6uJae(1, 2, 14).


[31] Assim é que isso é exp]icado por Ciri]o(aDMira Ju/)a ]um, V).
[32] Virgílio, Ehelda (1, 4). Eurípides, em .4s H'02aJ2as (70), põe essas palavras na
boca àe We\alba:"Qualldo a mão de.Ajax arrancou violentamente Cassandra de
teu salltuária... E Mínerva ]he dizia: Apesar disso,não ouviu nellhuma repõe
ei7são,não ]«eceÓeucasÍli'o por paJ'fe dos gregos." Raciocinando sobre esse
princípio, João Crisóstomo envolve todos os habitantes de Antioquia na acusa-
ção relativa às estátuas, em seu primeiro discurso sobre o assunto. Ele diz: "0
crime fo{ cometido por reduzido número e a acusaçãoé feita contra todos. Por
causa deles, todos ]lós estamos agora tomados pelo medo e ]lós mesmos esse
ramos a punição daquilo que eles ousaram fazer. Se tívésselllas prevenido esse
castigo, expulsando-os da cidade, e se tivésseJnos tratado essa parte doente
c'omo co]]vÉím, esse fe 70r essa ]a longe de lias."Depois acrescenta: '7'or c'ousa
disso mesJno,sofre teus castigos, suporta teus últimos suplícios porque zlão
acorreste, porque leãoímpediste, porque não os retiveste ein sua loucura,
porque não te expuseste ao perigo pela h031rado imperador. Não tomaste parte
no crime? Eu te elogio e te faço reverência, mas não impedíste para que se
realizasse e isso já merece ser punido.
[33] ]Ue6amorpÀoseon(XIV, 468)
[34] Titus Livius [59 a.C.-17d.C.],.4ó Z]»óeG0/2d)'fa
(1, 14, 1).
[35] Sa[vianus [séc. V d.C.], De GuberT2aÉlone Z)eu (V]1, 19)
889
CAPÍTULOml - DA COMUNICAÇÃODAS PENAS

os reis: "Um poder que pelo poder considerável que tem pode impedir
a[gum grande crime [36], o aprova de a]gum modo se, tendo conheci-
mento dessecrime premeditado, tolera que sejacometido." Em Tbcídides
[37] se pode ]er: "Aque]e que pode impedir um crime é mais autor que o
próprio autor." Assim é que em Tito Lívio [38], os veios e os ]atinos se
desculpamjunto aosromanospelofato deos inimigos dessesúltimos
terem sido ajudados, sem que eles o soubessem, por alguns de seus
súditos.Ao contrário, a desculpade Truta, rainha dos ilírios, não é
aceita porque ela dizia que não era ela, mas seus súditos que pratica-
vam a pirataria, pois de fato e]a não os impedia de fazer isso [39] . Os
habitantes de Scyros foram outrora condenados pelos anííctiões porque
to[eravam que a]guns dos seus praticassem a pirataria [40]

6.As coisasque sãovisíveis, que sãofreqüentes, sãofacilmente


presumidas como conhecidas, e a respeito Dion de Prousa [41] diz: "0
que é feito por muitos indivíduos não é necessariamente ignorado por
ninguém." Po]íbio [42] censura severamente os etó]ios porque, não que
renda parecer inimigos de Filipe, tinham contudo tolerado que alguns

136] Fílon(ib .17accum, 5) diz: 'Hgtre/e que pode casÉilgal' cerfamenéepóde pro ó r Se
eie não impediu, deve ser consideradocomose tivessepermitido ou mesmo
aprazado o gue se Éaz7a."Dion, na vida de Galba (Xiphilinus, LXIV. 2), diz:
Basta aos simples privados não Cometer faltas. Compete aos que detêm o
poder prestar também seus cuidados para que os outros não as cometam." Eqo
cânon IV do Concílio de Pestes,que se encontra nas capitulares de Cardoso
CaXxo,Dclàe-selel: "leão está isento de cumplicidade aquele que neglÍgencía
corrige' o que pode corrigir. Por isso, se torna sem dúvida alguma cúmplice do
pecado." Ver Nicetas Choniate, no livro sobre Andrânico(11,3)
[37] Livro 1, 69.
[38] Titus Livius [59 a.C.-17d.C.], ..4bC&-Éé?
Cb2dÉa(1, 30 e V], ]O)
[39]Políbio,11,8
[40] Plutarco, Clmom (483 C).

[41] Dion Crisóstomoou de Prousa, Oz'aÉI'o


/?Zodlbc'aXXX]
[42]Políbio,]V] 27
890 H UGO GROTluS

dos seus cometessem abertamente contra ele fitos de hostilidade e ti-


nham cumuladode honras os principais dentre aquelesque haviam
feito tais coisas.

111.Do mesmo modo, pelo refúgio


dado aos que cometeram alhures o delito

1. Vamos à outra questão, relativa ao asilo dado contra as penas.


Como dissemos antes (cap. XX, $ VII), a todo indivíduo a quem nada de
semelhantese poderepreenderIhe é permitido naturalmente punir.
Desde o estabelecimento dos Estados, convencionou-se, é verdade, que
os delitos dos privados relativos propriamente ao corpo do qual são mem-
bros seriam entregues a essespróprios Estados e a seus chefespara
serem, segundo sua vontade, punidos ou dissimulados.

2. Um direito assim tão absoluto não lhes foi igualmente concedi-


do, em matéria de delitos que interessam de alguma forma à sociedade
humana, delitos que os outros Estados ou seus chefestêm direito de
perseguir, da mesma maneira que em cada Estado é dada uma ação
popular em razão de certos delitos. Muito menos ainda têm eles esse
poder absoluto a propósito dos delitos pelos quais outro Estado ou seu
chefe é lesado em particular e em razão dos quais, por conseguinte, esse
chefe ou esse Estado tem o direito de exigir um castigo em vista de sua
dignidade ou de sua segurança, segundo o que dissemos antes (limo ll,
cap. XX, $ Vll). O Estado junto ao qual vive o culpado, ou seu chefe, não
deve, pois, impedir essedireito.

IV A menos que o punem ou o entreguem


1. Como os Estados não têm o costume de permitir que outro
]lstado avanceem armas para dentro de suasfronteiras para exercero
direito de punir e que isso não é conveniente, segue-se que o Estado
891
CAPÍTULO XXI - DA COMUNICAÇÃO DAS PENAS

junto ao qual vive aquele que foi convencido de sua fa]ta [43] deve fazer
uma dessasduas coisas: serequerido, ele próprio punir o culpado se-
gundo merece ou remetê-lo incondicionalmente ao requerente. Esse é,
comefeito, de fato, o fato de entregar que seencontra muitas vezesna
história [44]

2. Assim é que os outros israelitas pedem aos benjaminitas que


lhes entreguem os criminosos. Os íilisteus, aos hebreus, que lhes entre-
guem Sanção, como um homem que os havia prejudicado. Assim é que
os lacedemânios moveram guerra aos messêniosporque não lhes entre-
garam certo assassino de ]acedemânios [45] e, em outra época,porque
não haviam entregue aqueles que haviam violentado jovens enviadas a
uma cerimóniare]igiosa [46].Assim é que Catão(verlivro 1,cap.111,$
V 4) quis que César fosse entregue aos germânicos porque lhes havia
movido'injustamente a guerra. Assim é que os gauleses pediam que os
Fabius lhes fossem entregues porque haviam combatido contra eles
[47]. Os romanos [48] pediram aos hérnicos para lhes entregar aqueles
que haviam devastado seu território e aos cartagineses de lhes entregar

[43] A instrução do negócio deve, de fato, preceder a extradição do culpado. Não


convém entregar homens "sem conhecimento de causa". Plutarco. IZida de
J?c5mu/o.Em Cambden (ano de 1585), o rei da Escóciadiz a Ehsabete que vai
enviar para a Inglaterra o barão de Fernihurst e o próprio chanceler, contanto
que se pudesse convencê-lospor provas claras e jurídicas de ter violado com
premeditação a segurança prometida e de' ter sido cúmplices do assassinato.
[44] Lucullus pediu Mitridates a Tigrana e, como essese recusou em entrega-lo, Ihe
declarou guerra(Apiano, .4áfü/ídaf, .Be/Z,83, e Plutarco. l,lida de Z,uclzZTus.
505
D). Os romanos intimaram os alóbroges de lhes entregar os salgas (Apiano,
.EkcerpÉ.legado/]um, XI). Ver Priscus(-EKcerpfa ZepaZlbnum,21) a respeito de
um bispo que os romanos queriam entregar aos citas. O duque de Benevento foi
entregue pelo rei de Gasconha a Ferdinando, rei de Castelã(Mariana, XX, l)
[45] Pausânias, !V. 4
[46] Estrabão, Vl11, 4, 9.
[47] Plutarco, Hda de Cam]Zo(137 A); Apiano, .Errerpf. -Lapa/]b/]um(9)
[48] Dionísio de Halicarnasso, Vl1, 64
892 H U GO GROTIUS

Amilcar[49] , não o cé]ebre genera], mas outro que sublevava os gauleses.


Eles pediram também Aníbal [50] a seguir. De igua] modo, Jugurta
pediu a entrega de Boccus,nessestermos que se encontram em Salústio
[51] : "Tu nos entregarás, ao mesmo tempo da deplorável necessidade de
igualmente te perseguir, a ti mesmo e a ele, o mais celerado dentre os
homens."Aqueles que tinham lançado mão dos delegados dos cartagineses
[52] e dos apo]oniatas [53] foram entregues pelos próprios romanos. Os
habitantes deAcaia pediram aoslacedemâniosque lhes fossementre-
gues aqueles que haviam sitiada a povoação de Las, acrescentando que
se não fossem entregues, o tratado seria considerado vio]ado [54] . Assim
é que os atenienses fizeram proclamar por um arauto que se alguém
armasse emboscadas a Filipe e se refugiasse emAtenas [55], "estaria
na situação de ter de ser entregue". Os habitantes de Beócia exigiram
dos habitantes de Hipota que aqueles que haviam matado Phocus lhes
fossem entregues [56].

3. '1'udo isso, contudo, deve ser entendido como que um povo ou


um rei não são obrigados estritamente a entregar, mas, como dissemos,
a entregar ou a punir. Lemos nessesentido que os eleanosmoveram
guerra aos]acedemânios[57] porqueessesú]timos não haviam punido

[49] Tiün Liv us [59 a.C.-17 d.C.], .4ó Z:/róeCh/?alia (XXXI, 11, 6).
[50] Diodoro da Sicília, n'agmenf. (XXV, 5); Titus Livius [59 a.C.-17 d.C.], .4ó [/róe
Oondlfa (XXI, 6, 8).
[51] Caius Sallustius Crispus [86-36 a.C.], .De -Be]/o Juguróá/ho (Cl1, 5)
[52] Titus Livius [59 a.C.-17 d.C.], .4ó Z]/róeCondlfa (XXXVl11, 42, 7); Valério Máxi-
mo,VI,6
[53] Titus Livius [59 a.C.-17 d.C.], Ed)i'f. (15).

[54] Titus Livius [59 a.C.-17 d.C.], .4ó Z:Zz.Ée


Oondifa (XXXVl11, 31, 2)
[55] Diodoro, XV], 92.
[56] Plutarco, ArnrraÓ. .:4maÉ.(774)
[57] Pausânias, V], 2.
893
CAPÍTULOHI - DA COMUNICAÇÃO DAS PENAS

aqueles que haviam lançado injúrias aos eleanos, isto éÍ não os haviam
punido, nem haviam entregue os culpados. Isso, de fato, é uma obriga-
ção alternativa.

4. .Algumas vezes, para satisfazer mais amplamente aqueles que


rec[amam os cu]pados, a opção ]hes é dada [58]. Os ceritas, em Tito
Lívio [59], apresentam queixa aosromanos de que "atravessando seu
território com um exército ameaçador, os tarquínios que não lhes ha-
viam pedido senão a passagem, haviam arrastado alguns habitantes
dos campos, como cúmplices desses desastres, dos quais era acusada
toda a nação. Esses, se forem reclamados, estão prontos a entrega-los
ou a pum-los, sefor requisitado seu suplício."

5. No segundo tratado dos cartagineses e dos romanos que se


encontra em Po]íbio [60] , há uma passagemordinariamente mal pon-
tuada e mal traduzida: "Se isso não sefaz (não se sabede que se trata,
pois há uma lacuna nas palavras precedentes),que cada um procure
seu direito por sua autoridade privada. E quando alguém tiver agido
assim (isto é, comonão se tem feito justiça a ele), que o crime seja
considerado como público." Esquino, em sua resposta à acusaçãode
Demóstenes [61] sobre a embaixada ma] sucedida, re]ata que, quando
tratava da paz da Gréciajunto a li'ilipe da Macedânia,havia dito, entre
outras coisas, que era justo que os Estados não fossem punidos pelos
crimes cometidos, mas que o fossem aqueles que se haviam tornado
culpados e que não era necessário prejudicar em nada os Estados que

[58] Ver o tratado entre os reis da ]ng]aterra e da Dinamarca, citado em Pontanus


De Mlarí ÇDíscuss.Híst., 1.,'2\)
[59] T[tus Livius [59 a.C.-17d.C.], .4ó HTZ)eO0/2d)fa(V]1, 20, 6)
[60]111,24, 20
[61] Aeschines, -De ma/e oó. ZeB: (117).
894 H u co GKOíi US

haviam feito comparecer em justiça os acusados. Quintiliano diz em


sua Declamação CCLV: "Acredito que esses se aproximam em muito
dos trânsfugas, pelos quais os trânsfugas são aco]hidos." [62]

6. Entre os males que surgem das discórdias dos Estados, Dion


Crisóstomo [63] co]ocaigua]mente isso em seu discurso aoshabitantes
de Nicomédia: "Que seja permitido aos que ofenderam um Estado de se
refugiar em outro.

7. Aqui se apresenta, a propósito daqueles que são entregues, a


questão de saber se aqueles que são entregues por seu Estado e que não
foram recebidos pelos outros, permanecem cidadãos. Publius Mutius
Scaevola pensava que não permanecem como tais porque um povo teria
parecido haver rejeitado de seu seio aquele que teria entregue, como o
teria feito ao interditar a água e o fogo [64] . Brutus defende a opinião
contrária, e depois de]e Cícero [65]. Essa ú]tima opinião é também a
mais verdadeira, não propriamente, contudo, pela razão que Cícero ale-
ga, que como uma doação,o fato de entregar não pode ser entendido
sem uma aceitação. O ato da doação não tem perfeição senão em virtu-
de do consentimento das duas partes. O fato de entregar, do qual trata-
mos aqui, não é outra coisa que o de remeter um cidadão ao poder de
outro povo para que essedecida a seurespeito o que bem entender. Essa
remessa não dá ou não tira nenhum direito. Ela suprime somente o

[62] Zonaras, em .Bas#zo Po/:íh'ogei e#a(XVl1, 5, 50), diz: ':B7emandou pede' a


Cosroésde Ihe elltregar esserebelde que pretendia a realeza e que havia
tomado as armas contra seu amo, convidando-oa não dar um exemploque
poderia rasa/far em s /a pzzZpr7aperda. "Ver o que relata Chalcondyle(livro X),
a respeito de piratas, aos quais se havia dado erroneamente refúgio na ilha de
Lesbos.

[63] OmÜ XXXVIII.


[64] .L u/ú., Dub, Z)e LegaÉaam.
[65] Marcus Tü[[ius Cicero [106-43a.C.], De Orafore (1, 40, 181; 11,32, 137); 7bpJca
(8, 37); no .4. Caeazha(34, 98)
895
CAPÍTULOHI - DA COMUNICAÇÃO DASPENAS

obstáculo da execução.Por isso é que se o outro povo não faz uso do


direito concedido, aquele que foi entregue estará na situação de poder
ser punido por seu povo, o que aconteceu na pessoa de Clodius, entregue
aos corsos e não recebido por e]es [66], ou de não ser punido, como há
muitos delitos nos quais um e outro partidos podem ser tomados. O
direito de cidadania, como os outros direitos e bens, não se perde por um
simples fato, mas por um decreto ou um julgamento, a menos que algu-
ma lei não queira que o fato passe por coisajulgada, o que não pode ser
dito aqui. E é também dessa maneira que, se bens dados não foram
recebidos, ficam para aquele a quem perteiícem. Se a rendição do culpa'
do foi recebida e se, em seguida, por alguma ocorrência, aquele que
havia sido entregue retornou entre os seus,não é mais cidadãosenão
emvirtude de uma nova medida de favor. Nessesentido é que é verdade
o que Modestino [67] afirmou a respeito daquele que foi entregue.

8. O que dissemos a respeito dos culpados a entregar ou punir


não se relaciona somente com os indivíduos que foram sempre súditos
daquele junto ao qual se encontram anualmente, mas mesmo aqueles
que, apóster cometido em outro local o crime, serefugiaram no país.

V Os direitos dos suplicantes dizem respeito


aos infelizes, náo aos culpados; com exceções

1. 0s direitos tão cantados dos sup]icantes [68] e os.exemplosde


asilos não põem obstáculo a isso. Não servem, de fato, senão para aque-
les que são vítimas de um ódio imerecido e não para aqueles que come-
teram alguma coisa de prejudicial à sociedadehumana ou aosoutros
homens. O lacedemânio Gylippus, em Diodoro de Sicí]ia [69], tratando

[66] Valério Máximo, VI, 3.


81N L. 4, Eos qui, Dig., De captivis.
[68] Políbio e Malco, em .Ekcerp/a -Z.egaZ2bnl/m, as definem: 'Hs /els geraJmenfe
invocadas em favor dos suplicantes.
[69] Xl11, 29.
896 H u GO Gnoíius

desse direito dos suplicantes, assim se exprime: "Aqueles que, na ori-


gem, fizeram leis em favor dos suplicantes estatuíram que se devia
tratar com piedade os desafortunados, mas estatuíram também que se
deveria punir aqueles que fazem o mal injustamente." E a seguir: "Se
caídos em tal baixeza, sãojustamente convencidos de ter merecido por
seus crimes e sua ambição que não acusam o acaso a respeito e que não
chegam a usar o nome de suplicantes. Esse nome é reservado, entre os
homens, para aqueles cuja alma é pura, mas tiveram a sorte contra
eles[70]. Quanto a esses,cuja vida não passade um tecido de injusti-
ças, não conseguiram nenhum caminho praticável para abordar a pie-
dade e nela encontrar refúgio." Menandro171] distinguiu perfeitamente
entre essas duas coisas: a sorte adversa e a injustiça: "Há entre a injus-
tiça e a infe]icidade [72] essa diferença que o acaso faz essa e a vontade
faz aquela."As palavras seguintes de Demóstenes [73] não se afastam
disso: "E justo ter piedade não dos maus entre os homens, mas daqueles
que são infelizes sem que tenham culpa disso." Cícero [74] traduz isso
assim: "Deve-se ter piedade daqueles que estão na infelicidade por cau'
sa do acaso, não por causa de sua maldade." São palavras também de
Antífanes [75] "que o que se faz não vo]untariamente é obra do acaso e
o que ocorre voluntariamente é de desígnio premeditado". E estas pala-

['70] Um antigo orácu]o (transcrito em Eliano, Uaz Hi)f., 111, 44) diz: '?l/alasée feu
amigo querendosocorrê-io;1lãocometessecrime algum, tua mão é mais pura
do que já fora abates.
[71] Estobeu, Ecrã. de ]Mor7óus(7)
[72] Fílon(Z)e Jud7ce,5) diz que 'ã co/npaúão nâo ó devida senão aos ináe/ires e qae
aquele que faz o mal voluntariamente não é infeliz, mas injusto". hss\m ê (lue
Marco Antonino quer que se examine o espírito dos outros para saber se agem
por ignorância ou com propósito deliberado e para considerar ao mesmo tempo
as coesasque fém JJkzçãocom agua/a':Assim Totila distingue, em Procópio
(Goffüzc.,111,9), entre o que se faz poT-ignorância ou por esquecimentoe o que
se faz com pT'opósitodeliberado.
[73] Zn HpáoÓum (1, 68).
[74] Marcus ']-u]]ius Cicero [106-43a.C.], De Znvenó/one
(11,36, 109).
[75] Orai. X]V
CAPITULOHI - DA COMUNICAÇÃODAS PENAS
897

vras de Líbias [761:"Ninguém é infe]iz por um puro efeito de sua pró-


pria vontade." Assim é que na mais sábia das leis, os asilos estavam
abertos para aqueles das mãos dos quais havia escapadouma arma que
havia matado um homem (Deu#eronÓmJbXIX, 1).Um refúgio era tam-
bém dado aos escravos (-DeuferonÓmJbXXXl11,15), mas aqueles que
compropósito deliberado tivessem matado um homem inocente, que
tivessem perturbado o Estado, a própria santidade do altar de Deus,
não havia proteção para eles (êxodo XXI, 14; /-Revê11,29; /7.ReJkXI,
13).Fí]on [77], ao exp]icar essa]ei, diz que "não há retração no templo
para os profanos". Os antigos gregos não pensavam de outra forma.
Conta-se que os ca]cidenses [78] não se haviam disposto a entregar
Naup[ius aos habitantes daAcaia [79], mas se acrescenta que era por
razão de ter-se ele desculpado suficientemente das coisas que Ihe havi-
am sido repreendidas pelos habitantes deAcaia.

2. Havia entre os atenienses um altar da misericórdia, do qual


fizeram menção Cícero [80], Pausânias [81], Sérvio [82], mesmo Teóíilo
em suas /nsüzfuÉJbnes[83] e que Papínio [84] descreve longamente.

[76] Omf. XXX], lO.


tl'i\ De Specialibus Legíbus Qx5à
[78] Plutarco, Quaesf, Gz'aec.,32(298 D).
[79] Pepino recebeu e não quis entregar os refugiados da Nêustria que fugiam da
tirania. ]sso se encontra em Fredegário, ]ÍJkíóe:z
a de /lqp no, relativo ao ano
688. O imperador Luís o Piedoso também deu guarida aos que haviam fugida
da Igreja romana para procurar apoio junto a ele, comoaparecepor uma de
suas ordenações,redigida no ano 817 e inserida no tomo ll dos Concílios da
dália. Carlos o Calvo fez o mesmo com relação aos que se refugiavam junto a
?le, vindos do território de seu irmão Luís (Aymoinus, V. 34). A respeito de
CegenaPatzinaca, que não foi entregue a Tirado que o exigia, ver Zonaras, em
História de Constantino Monomaco (XVl1, 26). Assim é que Osman não foi
entregue a Eskisar pelo governador Inungino(Leunclavius, .Hzhf,abra., ll). Os
portugueses não entregaram Albuquerque, como relata Mariana (XVI, 18).
[80] O esco]!asta atribui isso a Cícero, conforme consta em Publius Papinius Statius
[69-125], TZeÓaJk (Xl1, 481)
[81]1, 17.
[82]Comentárioà .êbevda
VIII. 342
[83]Znsüfuüones1. 21.
[84] Pub[ius Papinius Statius [69-125], 7ZeÓaJk (X]1, 483)
898 H UGO GROTIUS

Para quem estava aberto? Escute-se o poeta: "Os infelizes o consagra-


ram..." Logo a seguir acrescenta [85] que aí se reuniam: 'Vencidos na
guerra, exilados de sua pátria, fugitivos despojadosde seusreinos..."
Aristides [86] diz que é uma g]ória que pertencepropriamente aos
atenienses [87] de "ter sido para todos os infe]izes que vinham a eles de
toda parte um refúgio e um consolo".E algures [88j: "A bondadeda
república ateniense é a felicidade comum de todos os infelizes, de qual-
quer lugar que venham, pois é lá que encontram sua salvação". Em
Xenofonte [89], Pátroc]es de F]iásio diz no discurso que dirigia aos
atenienses: "Elogiava essacidade, quando ouvia dizer que todas as pes'
boasoprimidas ou ameaçadasde opressãosehaviam aí refugiado e aí
haviam obtido auxílio." O mesmopensamento$eencontra na carta de
Demóstenes [90] para o Êi]ho de Licurgo. Por isso é que Êdipo, refugian-
do-seem Colonum, na tragédia com essetítulo, se dá a conhecer assim
em Sófocles[91] : "A] de mim, fi]ho de Cecrops]Causei muitos ma]es,
mas eu os causei, Deus é testemunha disso, sem querer e nenhum
delesfoi voluntários" Teceuresponde:"Jamais me arrependerei de ter
dado em qualquer épocahospitalidade a um estrangeiro comotu, Edipo.
Lembro-me que sou um homeml" Do mesmo modo, os descendentes de
Hércules, tendo-se refugiado em Arenas, o filho de Teseu, Demófones,
assim se exprime: "Nossa pátria está sempre pronta a prestar socorro

[85] Idem, TZeóazb(X]1, 507).


[86] Pa/7aÉÜen
[87] Mariana estendeu o mesmo e]ogio aos aragoneses (XX, 12). Os gépidas prefe
rem perecer todos que entregar lldigisal aosromanos ou aos lombardos (Go&óÃ/b.
IV, 27)
[88] Aristides, .De Face, 11((2z: Zeucír., ])

[89] ]7is6. Graec. (V], 5, 45)

[90] EP. 111,2.


[91] .Óa]zboOo/on. (521). Ver toda a passagem que, de fato, merece ser ]ida.
CAPITULOur - DA COMUNICAÇÃODAS PENAS
899

aos infelizes, quando sua causa é justa. Quantos perigos, de fato, já não
enfrentou ela para a defesa de seus amigosl E agora veja uma nova luta
que se prepara." Tal era a conduta que Calístenes elo-grava particular-
mente nos atenienses,dizendo que "eleshaviam feito a guerra a Euristeu
pelos filhos de Hércules [92], quando Euristeu oprimia a Grécia por sua
tirania."

3. Contra isso tem-se, a propósito doscriminosos, na mesma tra-


gédia [93J: "Não temeria de modo algum ofender os deuses, se na justiça
persigo um homem que, embora tenha consciência de seus crimes, se
refugia suplicante aospés dos altares dos deuses,não confiando na pro'
teção das leis. Sempre é just(i que aquele que fez o mal, sofra as conse-
qüências." O mesmo poeta em lon [94J: "Não convém, de fato, que as
divindades sejam tocadaspor uma mão culpada, mas foi justo que os
templos fossem abertos às pessoaspiedosas para protegê-las contra as
injúrias." O orador Licurgo re]ata [95] que certo Calístrato, quehavia
cometido um crime capital, havia recebido por resposta do oráculo que
havia consultado que, se fossea Atenas, "ele obteria o que era conforme
à [ei" [96] e que, na esperança de obter a impunidade, se havia refugia-
do aos pés do mais santo dos altares que havia em Atenas [97], mas que
havia sido contudo condenado à morte por essacidade muito observante

[92] Ver Eurípides, 4s ]Ze/ác/Ides (329-32), e Apolodoro (11,8, 1)


[93] De uma incerta tragédia de Eurípides (.FPagme/]fa
1036),em Estobeu(46, 3).
[94] Eurípides, ]o/] (1315 e seguintes).
[95] ,4dversuÉ Z,Coar (93)

[96] Tácito, em .4nnales(111, 36), escreve; '%s orações dos sup/]banfes só sáo escuta '
ias pelos deuses quando justas.
[97] Mariana (limo XXI) narra que em Portugal um camareiro chamado Ferdinanda
havia sido arrancado do templo onde havia buscadaasilo e havia sido queimada
por ter violentado uma filha de nobres. Ver também, sobre o asilo. o livro de
célebre personagem, o padre Paulo, da sociedade dos Servitas
900 H UGO GKOtiUS

de suas práticas religiosas e que assim a promessa do oráculo havia


sido cumprida. Tácito [98] desaprova o costume acatado em sua época
pelas cidades gregas de proteger os crimes doshomens, como se se tra-
tasse de promover o culto dos deuses. Há no mesmo [99] que "na verda-
de os príncipes são como deuses, mas que os deuses não escutam as
orações senão quando são justas'

4. Tais indivíduos devem, pois, ser punidos ou entregues ou cer-


tamente afastados. Assim é que, segundo o relato de Heródoto [100] , os
cumeenses, não querendo entregar o persa Pactias e não ousando re-
lê-lo, Ihe permitiram partir para Mitilene. Os romanos exigiram do rei
Demétrio de Farás que, vencido na guerra, se havia refugiado junto de
]iUipe, rei dos macedânios]lOl] se entregasse. Perdeu, rei dos macedónios
[102], assim se exprime em sua justificativa a Márcio, falando daqueles
que se dizia terem armado emboscadas a Eumenes [103] : "Para mim,
logo depois do aviso que me destes que estavam na Macedânia, mandei

[98] Caius Corne[ius Tacitus [55-120], .4nna]es (111,60)

[99] Idem, .4/l/?ages(111,


36).
[100] 1, 160
[lOl] Titus Livius [59 a.C.-17 d.C.], ..4b Z:Zz.óe
Cond2fa (XX]1, 33, 3).

[102] Apiano também o narra (.8rcerpf. Z%aézonum, 20). Há um fato semelhante


na vida em latim de Temístocles(Cornelius Nepos, Z%emjsfoc7es,8): 'Zdlnefus,
rei dos moiossos, não o entregou, pois suplicava, aos atenienses e aos
iacedem6níos que o reclamavam publicamente, e o advertiu a se controlar.
Por isso. mandou leva-io a Pidna. concedelado-lhe
uma escolta su8icieilte.
Assim é que, em Procópio(GoffüJC., 111,35), os gépidas mandam de volta o
longobardo lldige. Acrescente-sea carta de Teuderico a 'l'rasamundo, tei dos
vândalos, a respeito do refúgio concedido a Giselico (Cassiodoro, Uarl'ae,V.
43-44) e aquela que se encontra na vida do rei Luís. Assim é que o imperador
Rodolfo ll mandou sair de seus Estados Cristóvão Sborowski, como o relato
De Thou (livro LXXXlll, ano de 1585). Elisabete responde aos escocesesque
vai devolver Bothwel ou que vai expulsa-lo da Inglaterra. Cambdenrelata
isso comoocorrido no ano de 1593. Ver Mariana(XIX, 6), sobre Alfonso, conde
de Gegion, condenadopelo rei da França e a quem foi recusado asilo na
Espinha.
[103] Titus Livius [59 a.C.-17 d.C.], .4ó Z:ü.Ée GondJÉa (XL]1, 41, 8).
901
CAPÍTULOHI - DA COMUNICAÇÃODAS PENAS

procura-los e lhes dei ordem de sair do reino e lhes proibi para sempre a
aproximação de minhas 6'onteiras." Os samotrácios informam Evandro,
que havia armado emboscada a Eumenes, que "deveria se afastar do
temp[o profanado por sua presença" [104]
5. De resto, esse direito de que falamos, de reclamar para punir
aqueles que fugiram para fora do território não é praticado neste sécu-
lo, como nos últimos séculos, e na maior parte da Europa, a não ser em
matéria somente daqueles crimes que atingem os negócios públicos ou
daquelesque têm ocaráter de um raro ato celerado.O costume seesta-
beleceu que os crimes menores sejam passadossobsilêncio por uma
mútua dissimulação, a menos que, por cláusulas de um tratado, não
haja um acordosobre a]guma coisa mais precisa [105]. Deve-sesaber
também que os salteadores e piratas que cresceram tanto até tornar-se
formidáveis podem ser recolhidos e certamente entregues, no tocante à
pena, porque é do interesse do gênero humano que sejam afastados de
seus crimes pela conülança da impunidade, se não podem sê-lo de outra
forma e qualquer povo ou qualquer chefe de povo pode gerir esse inte-
resse

VI. Os suplicantes podem contudo ser protegidos


até que seu pi'ocesso seja instaurado; segundo
queleiainstrução deveserfeita
1. Deve-se observar também que, no intervalo da instrução sobre
a justiça da causa, os suplicantes são protegidos. Assim é que Demófones
[106] disse ao enviado de Euristeu: "Setens a]guma queixa contra esses

[104] Idem, .4ó apõe Oo/ dl'Éa(X]iV. 5).


[105] Como se pode ver no tratado dos suíços com os mi]aneses, re]atado por Simler.
Os tratados dos ingleses com os franceses estabelecemque os rebeldes e os
fugitivos sejam entregues; aqueles com os burgúndios, que sejam expulsos.
Cambden, ano de 1600.
[106] Eut'ípides, ds JZe/ác/Ides(251 e seguintes)
902 H UGO GROTA US

estrangeiros, obterás justiça, mas não os arrancarás com violência da-


qui." Em outra tragédia [107] , Teceu disse a Creonte: "Creonte, ousaste
cometer um crime indigno de ti, de tua Tebase de teus antepassados.
Tu entraste numa cidade que cultiva a justiça e a piedade, que faz todas
as coisas segundo as normas da lei e sem levar em conta nossos costu-
mes, tu fazes o que queres e pensas que podes usar de todo tipo de
violência. Essa cidade te pareceu sem homens ou tolerando o jugo e tu
pouco te importasse comigo. Não íoi, porém, a cidade de Amphio que te
ensinou isso, pois seu costume não é de formar homens injustos e ela
não te aprovará quando souber que invadisse o que pertence aos deuses,
o que pertencea mim e que tu tiraste infelizes suplicantes de um asilo
sagrado. Para mim, se tivesse posto os pés na cidade de Labdacus,
tivesse eu os direitos mais certos, os menos duvidosos, eu não teria
tentado levantar a mão contra ninguém, sem o consentimento do se-
nhor do território, lembrando-me do que convéma um hóspedenuma
cidade estrangeira. Tu, porém, espalhas a vergonha e a infâmia sobre
tua pátria que não o merece e se tua idade te tornou velho, não te deu o
bom senso.

2. Se a culpa da qual são acusadosos suplicantes não é proibida


pelo direito da natureza ou das gentes, a coisa deverá ser julgada se-
gundo o direito civil do povo de onde vêm. E o que mostra perfeitamente
Esqui[o em .4s ,SupJlbanfes [108] , onde o rei de Algas se dirige assim à

tropa dos danaidas vindos do Egito: "Se osfilhos do Egito sustentam


que, segundo a lei do país, seu parente próximo lhes conceda direitos
sobre vós, quem ousaria contradizê-los? Deveis pois provar que eles não
têm sobre vós, de acordo com as leis do país, nenhum direito legítimo."

[107] Sófocles, ]aEÜo ao/on.(911 e seguintes)

[108] Versos 387 e seguintes


903
CAPITULOHI - DA COMUNICAÇÃODAS PENAS

VII. Comoos súditos participam dos delitos


dos governantes ou do delito da comunidade,
aqueles que são membros dela; em que difere
a pena de uma comunidade da pena dos privados

1. Vimos como a falta passa dos súditos, antigos ou recém-chega-


dos, aos governantes. ])e modo recíproco, a falta passará do poder sobe-
rano aos súditos, se os súditos consentiram no crime ou se âlzeram,
segundo a ordem ou o conselho do poder soberano, alguma coisa que não
pudessem fazer sem crime. Será melhor tratar esseassunto a seguir ($
XVII), quando for examinado o papel dos súditos. O delito se comunica
mesmo entre o corpo inteiro e os privados porque, como diz Agostinho
[109], na passagem citada anteriormente: "Lá onde se encontrar a uni-
versalidade, lá estão os privados. A universalidade não pode ser campos'
ta senãopor privados, pois são muitos privados reunidos ou considera-
dos como um só todo, que fazem a universalidade."

2. A culpa é dos privados que consentiram, não dos que foram


vencidos pelos suâ'ágios dos outros. As penas relacionadas aos privados
são, de fato, distintas daquelas que se relacionam à universalidade. Do
mesmo modo que o castigo dos privados é de vez em quando a morte
[110], assim também a morte de um Estado é de ser destruído, o que
ocorre quando o corpo político é dissolvido, assunto que tratamos em
outro local (capítulo IX, $ 4). Assim é que se o Estado vem a cessar
dessa maneira, Modestino [111] disse com razão que o usuâ'uto se extin-
gue, como se fosse pela morte. Os privados são reduzidos à escravidão,
a título de castigo, como o foram ostebanos sobAlexandre da Macedânia
[112], à exceção daque]es que se haviam pronunciado contra a reso]ução

[109]Aure[ius Augustinus [354-430], é?uaesÉünes


]z2]?epfafeucü.[zm
(111,26)
[llO] Licurgo, .4dversus .Leocrafem(60).
[111] .ü .2], S]' Ususárucfus, .Dzb, Quomodo ususáz ..4mjé.

[112] Plutarco, Aexnnder(670 E).


904 H UGO GROTIUS

de abandonar sua aliança. Do mesmo modo um Estado sofre a escravi-


dão política quando é reduzido a província. Os privados perdem seus
bens pelo confisco. De igual modo tira-se de um Estado as coisas que são
comuns a todos, as muralhas, os estaleiros, os navios de guerra, as
armas, os elefantes, o tesouro do povo, as terras públicas.

3. Injusto, contudo, é que os privados, por causa do delito da


universalidade cometido contra seu consentimento, percam as coisas
que lhes pertencem como próprias, como o demonstra bem Libânio em
seu discurso sobre a sedição deAntioquia. O mesmo aprova a conduta
de Teodósio [113] que havia punido um de]ito comum pela interdição do
teatro, dosbanhos e do título de cidademetropolitana.

VIII. Quanto tempo dura o direito


da pena conta'a uma comunidade

1. Aqui se apresenta uma bela questão, a de saber se uma pena


pode sempre ser exigida pelo delito de uma universalidade. Parece po'
der sê-lo, enquanto dura a universalidade, porque o mesmo corpo sub-
siste, ainda que as partes que o constituem se sucedam, como isso foi
demonstrado algures (cap. IX, $ 111,1). Deve-seobservar, porém, por
outro lado, que, com relação à universalidade, certas coisas são ditas
Ihe pertencer diretamente e por elas próprias, como o tesouro público,
as leis e outras coisassimilares, que certas outras não Ihe competem
senão por derivação, as dos privados. Assim é que, de fato, dizemos ser
sábia e corajosa uma universalidade que possui em seu seio um grande
número de membros que são tais [114]. Desse gênero é o mérito. Em

[113] Jogo Crisóstomo (.DeSfafuls, XV]1, 2) diz sobre esseponto as mesmas coisas
que Libânio. Marco Antonino, o filósofo, segundo testemunha Capitolino (25),
havia tratado outrora da mesma maneira os mesmos habitantes de Antioquia
e Severo puniu os habitantes de Bizâncio tirando-lhes o teatro, os banhos, as
honras e seus ornamentos; quanto à cidade, ele a deu aos habitantes de
Períntió. Ver Herodiano (111,6, 9), Zonaras (Xl1, 8) e o que dissemosacima.
[114] Aristóteles, .f)b/z'tlaa(V]1,13)
905
CAPITULOHI - DA COMUNICAÇÃODAS PENAS

primeiro lugar o relacionado aosprivados, comotendo uma vontade que


a própria universalidade não tem. Se aqueles pelos quais o mérito se
difunde sobre a universalidade vierem a faltar, o próprio mérito se ex-
tingue também e por conseguinte, com ele, a obrigação de sofrer o cas-
tigo que,já o dissemos,não pode existir sem o mérito. Libânio assim se
exprime no citado discurso: "Penso, de fato, que te basta pelo castigo
que ninguém daqueles que cometeram o crime sobreviva.

2. Deve-se pois aprovar a opinião deArriano [115] que condena a


vingança de A[exandre sobre os persas [116] , quando, depois de muito
tempo, os que haviam ofendido os gregos eram mortos. Esse o julga-
mento de Quinto Cúrcio [117] sobre a destruição dosbranquidas peão
mesmoAlexandre: "Se essesrigores tivessem sido imaginados contra os
próprios autores da traição, se poderia considera-los comouma justa
vingança e não como uma barbárie, mas foram então osdescendentes
que expiaram a falta de seus ancestrais, homens que nunca haviam
visto Mileto, longe de ter podido entregar essacidade a Xerxes." Em
outro [oca[ há um ju]gamento de Arriano [118] sobre o incêndio de
Persépolis,em vingança daquilo que ospersas haviam feito a Atenas:
"Alexandre não me parece ter agido nisso com sabedoria, pois não era o
caso de se vingar verdadeiramente desses persas, porquanto havia muito
tempo que haviam deixado de existir."

[115] Arrianus, -Erped. .4/exaJ2df(11, 14)


[116]Foi por isso queJu[iano,no e]ogioa Constância
((2raÉ.]], atribui a outro
motivo a guerra que fez e diz: '7bdos sabe ]] que, aíó agu ; e/ quina gue/:ra
reputada justa foi empreeiadÍda por tai motivo, como aquela dos gregos con-
tra os troianos ou aquela dcs macedónios contra os persas. Eles não busca-
vam a vingança de alguma injúria de velha data ou mesmocontra os }letos ou
os filhos daqueles quer eram seus autores, mas atacavam aqueles que insui-
tavam os ãihos das pessoas de mérito e que as despojavaln da coroa
[117]Vl1, 5, 35
[118] Expert. .4/exandTí(111, 18, 19)
906 H UGO GROTIUS

3. Por isso não há quem não ria das pa]avras de Agátoc]es]119]


que respondeu às queixas dos habitantes de ltaca, sobre danos que lhes
haviam sidocausados,que ossicilianoshaviam outrora suportadomais
males da parte de Ulisses. Plutarco diz em seu livro contra Heródoto
[120] que não era abso]utamente verossími] que os coríntios tivessem
querido se vingar de uma injúria recebida da parte dos habitantes de
íamos "desde três gerações".A defesa dessefato e de outros similares
que podem ser lidos em Plutarco a propósito da tardia vingança da
divindade é semfundamento. Uma coisaé, de fato, o direito de Deus e
outra aquele dos homens, como isso se tornará mais claro logo mais. Se
é justo que os descendentes colham honras e recompensas pelos méritos
de seus antepassados,não é justo por isso que sejam punidos pelas
culpas dessesúltimos. Anatureza do beneficio é tal, de fato, que pode se
aplicar sem injustiça a toda pessoa.Não é a mesma coisa para a pena.

IX. Se a pena passa sem comunicação do delito

Dissemos de que maneiras a comunidade da pena provém da


comunidade da culpa. Resta examinar se,quando não setomou parte
na culpa, se pode ter parte na pena. Para que isso seja bem compreen'
dido e para que coisasque sãoefetivamente diferentes não sejam con-
fundidas por causa da semelhançadostermos, há algumas advertên-
ciasafazer.

X. Distinção do que é causado diretamente


do que vem como decorrência

1. Em primeiro lugar, uma coisaé o dano diretamente causado,


outra coisa aquele que vem por vias de conseqüência. Chamo causado
diretamente o dano que consiste no fato de tirar de alguém uma coisa

[119] P[utarco, ]popÃíüeg7 aía (176 A) e De gera / u/n. t.7hd (557 B)


[t20] idem, Z)e .]?êJ-odoíl' ]Ua]lgn.(860 A).
907
CAPITULOml - DA COMUNICAÇÃODAS PENAS

da qual ele tem um direito próprio. Por via de conseqüência,o que por
efeito de que alguém não tem o que poderia ter tido de outro modo, o que
ocorrequando a condiçãocessa,sema qual não havia o direito. Há um
exemp[o disso em U]piano [12 1] : "Se em meu terreno abri um poço e se
disso resultou que os veios de água que deveriam chegar até ti tenham
sido cortados, o jurista nega que tenha havido dano causado pelo vício
de minha obra, desde que 6izuso de meu direito." Em outro ]oca] [122]
ele diz que há uma grande diferença entre so6'er um dano e ser impedi-
do de usar de um ganho que ainda serealizava. Ojurisconsulto Paulo
[123] diz também que "é inverter a ordem das coisas dizer-se ricos antes
de ter adquirido'

2. Assim é que, quando os bens dos pais são confiscados, os filhos


levam, é verdade, um prejuízo, mas que não é propriamente uma pena
porque essesbens não deviam lhes pertencer se não fossem conservados
por seuspais até seu derradeiro suspiro. E o que foi muito bem observa-
do porA]feno [124], quando diz que, por punição do pai, os 61hosperdem
o que a eles seria transferido por ele, mas que o que lhes seria atribuído,
não vindo do pai, mas pela natureza dascoisasou de outra parte, per-
maneceintacto. Assim é que Cícero [125] escreveque os fi]hos de
Temístocles haviam sido reduzidos à pobreza e que não acha injusto
que os filhos de Lépido sofram o mesmo infortúnio. Ele diz que é um uso
antigo de todos os países.As ]eis romanas [126], todavia, que foram
feitas a seguir trouxeram muitas modificações.Assim, quando pelo de-

L\2\3 L 24, ilumina, $ uit., De damão infecto.


t\22ÀL. 26, Proculus, Dig., dicto loco.
t\23ÀL 63, Premia,Dig-, Ad Lerem Faicid.
ttZ4à L 3, Eum., Dig. De interdÍct. et releg.
[125] EpJifu/ae ac7.Brufum (1, 15, ll e 12, 2)

t\26À h 7, Cum ratio, Dig. De bonés damnat.


908 H UGO GROTIUS

lido da maioria que, como nós dissemos alhures (livro 11, cap. V. $ XVII),
representa a pessoada universalidade, a universalidade seencontra
em culpa e que a essetítulo ela perde o que dissemos, a liberdade políti-
ca, às muralhas e outras vantagens, os privados inocentes soõ'em tam-
bém o prejuízo, mas somente nas coisas que não lhes pertencem senão
por intermédio da universalidade.

XI. Distinção do que se faz por ocasião


do crime com o que ocorre por causa do crime
1. Deve-se observar a mais que, às vezes,se leva alguém a supor'
tar um mal ou se o priva de algum bem por ocasião,é verdade,deum
crime de outrem, mas sem que essecrime seja a causa próxima dessa
ação, se for considerado somente o próprio direito que se tem de agir
dessa forma. Assim, aquele que prometeu alguma coisa por ocasião da
dívida de outro, sobeum dano em virtude desseantigo provérbio [127]:
"Responde por outro e o prejuízo não está longe", mas a causa próxima
da obrigação é a própria promessa. Do mesmo modo que aquele que
respondeu por um comprador não está propriamente obrigado em razão
da venda, mas de sua promessa, assim também aquele que respondeu
pelo autor de um delito não está ligado à causa do delito, mas pelo efeito
de seu envolvimento. Disso decorre que o mal que deve ser suportado
não toma sua medida no delito do outro, mas no poder que o próprio
prometedor tinha de assumir o compromisso.

2. Segue-se,de acordo com a opinião que acreditamos ser a mais


verdadeira, que ninguém podeser condenadoà morte em virtude de um
compromisso contratado por outro porque estabelecemosque ninguém
tem sobre suavida um direito tal que a possatirar ele próprio ou se

[127] Estobeu, 3, 79
909
CAPÍTULO
ml - DACOMUNICAÇÃO
DASPENAS

deixar levar a permitir que a tirem dele, embora os romanos e os gregos


tenham pensadode modo diverso sobreesseponto. Por isso, acredita-
ram que os responsáveis se obrigavam crimina]mente [128] , como isso
seencontra num verso de Ausânio [129] e que isso resu]ta da história
muito conhecidade Damon e Pítias, e muitas vezespuniram com a
morte os reféns, como o lembraremos em outro local (livro 111,cap. l\C $
14). O que dissemos da vida deve ser estendido de igual modo aos mem-
bros, pois não foi dado direito ao homem sobre eles, a não ser em vista
da conservação do corpo.

3. Se o exílio, se um prejuízo financeiro foram compreendidos na


promessa e se a condição foi cumprida pelo delito do outro, o que respon'
de sofrerá o dano, o que, no entanto, falando com exatidão, não será
uma pena com relação a ele. Ocorre aqui, mais ou menos, como ocorre
com aqueles que gozam de algum direito cujo uso depende da vontade
de outrem. Tal como é o direito precário com relação à propriedade da
coisa e o direito dos privados com relação ao domínio eminente que tem
o Estado em vista da utilidade pública. Se alguém é despojado de algu-
ma coisa semelhante por ocasião do delito de outrem, aquele que nos
despojanão exerce propriamente uma ato de punição e só faz usar o
direito que tinha antes. Assim é que um delito, não podendo propria-
mente ser imputado a animais, quando um animal é morto como é

[128i Isso aparece c]aramente nas pa]avras de Rubem a Jacó, seu pai(Génes2k
XLl1, 37) e em Josefo(.4ní7gü/'dados JudaJC'as,11, 3). Eutrópio(em Ca/lgtzJa)
chama esses representantes de ctvTtyu)Cot,pessoasque colocam sua vida em
lugar da de outro; Diodoro da Sicília(.Ekcerpf. .F)aJ>esc.,
os designa de patroci-
nadores da morte. João Crisóstomo, em comentário à Ed)ibÉa/aaos Gá/rifas /Z
õ\z. "Do mesmo modo quando um homem foi condellado à morte, o inocente
que se oferecea morrer por ele Qlivra do suplício-." hgastàx:hoÇEpistula tíX
Ad !úacedoniumÜ abselva (Xne "ocorre por vezes que aquele que foi causa da
morte de alguém é mais culpado que aquele mesmo que o !evou à morte,
como,por exemplo, se alguém engana seu representante e essesofra por ele
o suplíciç} derradeiro.
[129] ZeCÜJIOP. (101)
910 H UGO GROTIUS

prescrito pe[a [ei de Móisés [130] por ter servido a uma união carna]
com o homem, isso não é verdadeiramente uma pena, mas um exercício
da propriedade humana sobre o animal.

XII. Propriamente falando, ninguém é punido


de modo justo pelo delito de outrem e por quê
Postas essas distinções, diremos que nenhum homem inocente
de um delito pode ser punido pelo delito de outrem. Averdadeira razão
disso não é aque]a que a]ega o jurisconsu]to Pau]o [131], que os castigos
são estabelecidos pela correção dos homens, pois um exemplo pode, ao
que parece, ser feito fora da pessoa do culpado, na pessoa contudo de
alguém que ele mesmo o toque, como logo o diremos ($ XIV). E porque
toda obrigação à pena vem do que se mereceu. O mérito é pessoal, como
tendo por princípio a vontade, que é o que se tem de mais próprio, daí
ser ela chamada de "livre arbítrio"

XIII. Os filhos não respondem pelos delitos de seus pais

[. Jerânimo [132] diz que "nem as virtudes, nem os vícios dos


pais são imputados aos íi]hos". Agostinho [133] diz: "Deus, a mais, seria
injusto se punisse um inocente". Dion Crisóstomo [134] , tendo dito em
seu último discurso que, pela sanção penal acrescida pelos atenienses
às leis de cólon, os descendentes eram votados ao suplício, fala assim da

1130] A esse respeito, ver Moisés Maimânides 22Úeaé..DuÓJfanÉlum(111, 40)

[131]Livro XX, X];V]11,19.


L\32À Epistuia 111, De morte Nepotiani.

[133] 4pzbfuJa .705.

[134] arado .LXXX


CAPITULOUI DA COMUrliCAÇÃ0 DAS PENAS
911

lei de Deus: "Essa não pune como a outra os filhos e os descendentes dos

culpados,mas cadaum é para ele próprio a causade sua própria infeli-


cidade." A isso se refere o que foi dito comumente que "a culpa segue o
indivíduo" [135] . "Nós ordenámos, dizem os imperadores cristãos [136] ,
que a pena esteja onde houver culpa". E mais: "Que cada um âlque pois
responsável por seus delitos e que o temor não vá mais longe do que
onde se encontra o crime."

2. Fí]on [137] diz que é justo que as penas pertençam àqueles a


quem pertencem as culpas, censurando assim o costume de certas na-
çõesque punhamde morte os filhos inocentesdostiranos ou dostraido-
res. Dionísio de Ha]icarnasso [138] a censura igualmente e demonstra
que a razão que se toma por pretexto, que os 6llhos são considerados
como devendo se assemelhar a seuspais, é iníqua porque isso é incerto
e que um temor incerto não deve bastar para dar a morte a alguém.
Não sei quem ousou sugerir ao imperador cristão Arcádio [139] que
aqueles, na pessoade quem os exemplos do crime paterno são temidos,
devem perecer pelo suplício de seu pai. Amiano [140] re]ata que Êi]hos,
bem pequenos ainda, foram condenados à morte "no temor de que se-

[135] Z. 4& D. .[t 4.


[136] Z. .e4 SaJICÍmtZS, aOCÍ, De POenJi.
[137] -De Spec/bJlbus Zepóus (11, 30). O mesmo diz, em seu livro .De P7efafe (7): ':\Ua
sei se é possível imaginar uma instituição mais prejudicial que a de n.ãQpuna'
)s maus porque eles }lasceram de pais virtuosos e de não honrar os home11s
ie bensporque tiveram pais maus.A lei quejulga cada um segundosuas obras
age de modo totalmente diverso; não elogia nem pune em consideração das
wFfudes ou dos 1.7ü7bs
dos menJóras da ÉamíCÜ."Josefa, classificando a condu-
ta contrária mantida por Alexandre, rei dos judeus, diz que era 'bma ]haJJeb'a
de pun r quem excedessea medida da .bumanfdade': Júpiter Amon, diz Ovídio
(i14efamorpóoseon,IV. 669), havia injustamente ordenado que Andrâmeda
sofresse,sem tê-la merecido, a punição das palavras de sua mãe
[138] Vl11, 80.

.\3qÜ L 5, Quisquis, Cod., AdLegem Julgam Majest.


[140] livro XXVl11, 2, 1
912 H UGO GKOtlUS

guissem os exemplos de seus pais". O temor da vingança [141] , de onde


surgiu o provérbio grego"é louco aquele que, matando o pai, poupa os
filhos", não é uma causa mais justa.

3. Segundo Sêneca [142] , "nada mais injusto que tornar a]guém


herdeiro do ódio que foi nutrido contra seu pai". Pausânias, general dos
gregos, não fez mal algum aos filhos deAtagino que havia provocado os
tebanos a se entregar aos medos [143] , "dizendo que e]es não eram cu]-
pados de complâ em favor dos medos". Numa carta ao senado, Marco
Antonino diz: "Por isso é que havereis de conceder o perdão aos filhos de
Avídio Cássio [144] (quehavia conspirado contra e]e),a seu genro e a
sua esposa.Porque falar de perdão, se eles nada fizeram."

XIV Responde-se aos atos de Deus


com relação aos filhos dos culpados

1. Deus, na verdade, na lei hebraica (Êxodo XX, 5) ameaça punir


a impiedade dos pais em sua posteridade. Ele mesmo, porém, tem um
direito absoluto de propriedade sobre nossos bens, como sobre nossa
vida, como sendo um presente que ele pode tirar de cada um quando
quiser, sem nenhum problema, e a qualquer momento. Se ele, pois,
arrebata por uma morte prematura e violenta os filhos de Acan (Josuó

[141] Vitoria, .Z)eJure .BeZZ2;


n.' 38
[142] Lucius Annaeus Seneca [01? a.C.-65 d.C.], .Z» ]ra (11,34)

[143] Heródoto, Caia'op.(1, 88)


[144] Ver também Vulcatius, em Wdâ de.4v7'alas(12).Ju]iano elogia Constâncio por
ter usado de semelhante humanidade e mostra que muitas vezes filhos virtuo
sos nasceram de pais perversos, do mesmo modo que as abelhas voam do
rochedo, que os figos provêm de uma árvore amarga, que a romã sai dos
espinhos. As palavras seguintes são do mesmo autor: '7\©o quJsesfe enralçer
na punição do pai morto seu filho menor de idade e assim tua conduta,
sempre inclinada para a ternura, é o testemunho de uma vb'tude pez$eíta.
913
CAPITULO ul DA COhiUNTCAÇÃO DAS PENAS

Vl1, 24), de paul (/7Samue/XXI), de Jeroboão (l Reis XIV), deAcab (/7


.Re/kVl11,19-20), usa para com eles seu direito de propriedade, não um
direito de punição [145] e, pe]o mesmofato, pune mais gravemente os
pais. Ou os pais sobrevivem, o que a lei divina tem sobretudo em vista
e é por isso que a lei não estende essas ameaças além dos bisnetos
(êxodo XX, 5; XXV) [146] porque a vida humana pode seprolongar de
maneira a vê-los e, nesse caso, é certo que os pais são punidos por um
tal espetáculo,mais aíllitivo para elesdo queo mal que possamsuportar
em sua pessoa. Isso é o que exprime perfeitamente Crisóstomo [147],
como qual concordaP]utarco [148], dizendoque "não há suplício mais
cruel do que ver pessoas que vêm de nós infelizes por nossa causa". Ou
ainda os pais não vivem até lá e então é sempre um grande suplício
para elesmorrer nessetemor. Tetu]iano [149]diz: "A insensibilidade do
povo havia obrigado a usar tais remédios, a fim de que ao menos se
convencessem a obedecer à lei de Deus, no interesse de sua posterida-
de."L150]

2. Deve-se observar ao mesmo tempo que Deus jamais usa essa


temível vingança a não ser contra crimes cometidos propriamente em
vista do ultrajante, como os falsos cultos, o perjúrio, os sacrilégios. Os
gregos não pensaram de outra forma. Os crimes que eles consideraram
como que ligando à posteridade e que elespróprios chamavam de cri-

[145] Esta é a opinião, de longe a mais verdadeira do rabino Simeon Barsema


[146] Há exemp]os disso em Zamri e Jeú.
[147] ]7omJba 29 (cap. 6), sobre Genes/i IX

[148] .De Hera .Numih i Hhdlb&a(561 A)

[149] Quintus Septimius Florens Tertu[[ianus [155-220?], ,4dvprsus .ãZa/cionem (]].


15

llSO] Em Quinto Cúrcio(Vl11, 8, 18), Alexandre diz: '7\Uo era preclko que souóásselk
) que eu havia decidido a respeito deles para que vossa morte fosse mais
cruel.
914 H U GO GxOTiUS

mes horríveis [151] são todos dessegênero. P]utarco disserta de modo


eloqüente sobre esseassunto em seu livro sobre a vingança tardia da
divindade [152]. Há em E]iano [153] o seguinte orácu]o de Delfos: "A
justiça divina persegueos autores doscrimes e não pode ser evitada,
mesmo se tivessem sua origem em Júpiter. Ela está suspensa sobre a
cabeça de todos aqueles que nascem deles e em sua casa um desastre
sucedea outro." l:ratava-se aí do sacrilégio [154], o que prova também a
história do Ouro de ZoJosaem Estrabão [155] eAu]us Ge]]ius [156].
Citamos antes autoridades semelhantes com relação ao perjúrio. En-
fim, mesmo que Deus tenha feito essas ameaças, ele não usa sempre
contudo essedireito, sobretudosealguma virtude insigne brilhar nos
filhos [157], como se pode ver em Ezequie/(XVlll) e como Plutarco o
prova por alguns exemplos, no local mencionado.

3. Como, na nova aliança, os suplícios que esperam os ímpios


após essavida são desvelados de uma maneira mais clara que outrora,
não há por essarazão nessa aliança nenhuma ameaça indo além da
pessoa dos cu]pados [158], o que a profecia já citada de Ezequiel tem
principalmente em vista, embora menos claramente, segundo o costu-
me dosprofetas.

Ver Plutarco, Wda de .f)ézicles(170A) e o que foi dito acima, neste livro, cap.
xm,$i.
[152] De gera Numinis Vindicta.
[153] Uar J7hÉ. (111,43).
[154] Como diz Libânio: "Chs Já receberam seu casÉjlgo,outros nãa o /eceóeran]
ainda, mas ninguém os livrará da pena; e diga não somente eles,mas também
seus /l7Zos e agua/es que de/es váo / ascez" O mesmo Libânio diz algo de
similar' no discursoque Godefroi publicou.
iMI,is
[156] .M)ates.4fÉüae(111,9).
[157] Ou se fizeram uma declaração pública amaldiçoando o crime paterno, geme'
Ihante à que fez o imperador Andrânico Pa]eó]ogo,em Gregoras(livro V. cap.
81)
[158] Tertuliano(De Monogamia, 7) escreve: 'y ava azeda comi'dape/os pais cessa
de irritar o$ dentes dos filhos, pois cada um há de morrer no delito que }he é
próprio.
915
CAPITULO HI - DA COlaUNICAÇAODAS PENAS

Não é permitido, porém, aos homens, imitar essecomportamen-


to de Deus. O casonão é o mesmo porque, comojá dissemos, Deus tem
um direito sobre a vida, abstração feita de toda consideração de culpa.
Os homens não o têm, a não ser em razão de uma culpa grave e que seja
própriadapessoa.

4. Por isso é que essa mesma lei divina (-Z)euÉeronÓmJbXXIV. 16)


proíbe punir com a morte os filhos pelos crimes de seus pais, como os
pais pe]os de seusfi]hos. Pode-se]er que reis piedosos]159] seguiram
essa [ei, mesmo com re]ação a cu]pados de a]ta traição. Josefo [160] e
Fí[on [161] e]oglam com veemência essa ]ei. ]sócrates [162] e]ogia tam-
bém uma ]ei egípcia simi]ar e Dionísio de Ha]icarnasso [163] uma ]ei
romana. P]atão [164] diz que "as vergonhas e as punições do pai não
devem seguir nenhum dos fi]hos". O jurisconsu]to C]a]ístrato [165] ex-
prime assim isso: "0 crime ou o castigo paternos não podem infligir ao
Hllho nenhuma mancha."Acrescenta como razão que "cada um corre os
riscos do que faz e que ninguém é constituído sucessordo crime de
outrem". Cícero [166] diz: "No Estado, se poderia to]erar que a]guém
propusesse fazer uma lei pela qual o filho ou o neto fosse condenado, se

[159] Como Amasias (ll Reis XIV. 6).


[160] ..4nf7kz]2'dadas
anda 'cas(]V. 8, 39)

[161] Z)e .Z,eK7bus SpeabJlbus(11, 29)

[t62] .Busír2'des (lO)

t\63À Assim à\z eX6 "Era costuille próprio dos romanos isentar de toda pena os filhos
auybspais aqui'esses coinef dó crimes. "A lei dos visigodos tem a mesma
disposição(livro VI, tít. 1, cap. 8)

[164].4sZ)e/h(]X, 3).
[165] .L .Z4 Clúnen, .Dib, De poenlk.

[166] Marcus Tu[[ius Cicero [106-43 a.C.], .De Natura .Deorun2(111,38, 90)
916 H uoo GROTI US

o pai ou o avâ tivessem cometido algum crime?" Disso decorre que foi
proibido pe]as [eis dos egípcios [167], dos gregos [168] e dos romanos
[169] de entregar ao sup]ício de morte uma mu]her grávida [170] .

XV. Os outros parentes respondem menos ainda


Se as leis humanas que levam os 6llhos a perecer pelos crimes
dos pais são injustas, mais injusta seguramente é a ]ei dos persas [171]
e dos macedónios, que votava também ao suplício a cabeça dos parentes
próximos [172], a fim de que aque]es que se tornassem cu]pados para
com o rei perecessem com dor maior, segundo a expressão de Quinto
Cúrcio[173] .Amiano Marce]ino]174] escreveuque todas as]eis eram
ultrapassadas pela crueldade dessalei.

XVI. Alguma coisa, contudo, pode


serrecusada aosfilhos e aospais
dos culpados que de outro modopoderiam ter
Deve-se observar, contudo que se os filhos dos culpados de alta
traição têm ou podem esperar alguma coisa sobre a qual eles não têm
um direito próprio, mas que depende da vontade do povo ou do rei, essa

[167] Diodoro da Sicília(1, 77)


[i68] Plutarco, .Z)e Hera .Nilm2h i UJhdlbfa(552 D)

tt69À L. 18, ImperatorAd!'íanus; Díg., De statu homínum; L. 3, Praegnantis, Dig.,


l)e poenis.
[170] Fí[on e]ogia essa disposição em seu ]ivro -De ]7uJna ]ifaÉe(18).
[171] Daniel VI, 25i Justino, ]ivro X, 2
[172] Fílon (.DeZ,eglót/s Spec7a/lóus,11, 30) diz que é costume dos tiranos fazer
morrer, com os condenados,as cinco famílias de parentes mais próximos. Ver
Herodiano(livro 111)e um exemplo em Bizarro(Livro XIV) de como se agia em
Milho, após a condenação à morte de Galgas.
[173]Vl11,8, 18
[174] Livro XXl11, 6, 81. E]e as chama de ]eis abomináveis. Ver também o ]V Concílio
de Toledo.
CAPÍTULO XXI - DA COMUNICAÇÃO DAS PENAS
917

coisa pode lhes ser tirada, em virtude de uma espécie de direito de pro-
priedade,contanto, porém, que ao mesmotempo esseato volva para a
punição daqueles que teriam cometido o delito. Relaciona-se a isso o fato
de os descendentes de Antífanes, condenado como traidor, terem sido
declarados "privados das honras", segundo o relato de P]utarco [175],
isto é, excluídos das dignidades [176], como em Romã os filhos dos prós'
critos o haviam sido por fila. Assim é que, na lei citada de Arcádio
[177], essa disposição contra os filhos é tolerável: "Que não recebam
nenhuma honra, nenhum cargo militar." No tocante à escravidão, foi
explicado por nós em outro local (livro 11,cap. V. $ XXIX), como e até
que ponto passa sem injustiça aos 6llhos.

XVII. Os súditos não podem propriamente


serpunidos pelo delito do rei

1. 0 que dissemos sobre os 6llhos que podem ser castigados pelos


delitos de seus pais pode ser aplicado do mesmo modo a um povo verda-
deiramente súdito (pois aquele que não é súdito podeser punido, como
dissemos, em razão de sua falta, isto é, de sua negligência), se for ques-
tionado se esse povo pode ser castigado pelos crimes do rei ou dos
governantes. Não procuraremos no momento se o consentimento do
próprio povo veio se juntar a isso [178] ou se foi feito por ele outro ato

[175] Oraéorum HÉae (833 A)

[176] Encontra-se algo de semelhante em (bd. In guióusdam, Z)epoenlk.


[177] livro 22, cap. IX, 47.
[178] Fílon, em .Z)e,4óraàa/n (19), falando dos súditos do rei do Evito da época de
êbraão, ÕXz.'Toda a sua casafoi punida com ele porque ninguém se havia
indignado com seu ato injusto, mas elogialldo-o, todos se haviam tornado
comoque czímp/I'aes."
Josefa,no local em que narra a profecia pronunciada
conXxa3exaboão,diz "0 povo participará de seu castigo, será expulso dessa
;erra feliz e disperso entre os paísesalém do Eufrates; será exilado porque se
tornou cúmplice da impiedade de seu rei."
918 H UGO GROTI US

que seja por ele mesmo digno de pena, mas falamos da ligação íntima
que provém da natureza desse corpo, cuja cabeça é o rei e no qual os
outros são membros. Deus, é verdade, por causa do pecado de Davi,
cobriu o povo com uma peste, quanto inocente ele fosse, segundo julga-
mento mesmo de Davi, mas Deus tinha sobre suas vidas um direito
absoluto.

2. Essa pena, contudo, não era do povo, mas de Dava, pois como o
diz um escritor cristão [179], "o sup]ício mais crue] para os reis que
cometeram crimes é aquele que é infligido a seus povos". Isso ocorre, diz
o mesmo escritor, como no caso daquele que agrediu com a mão e é
castigado nas costasou é,como diz P]utarco [180] num tema simi]ar,
como no caso do médico que, para curar a anca, queima o dedo do pé. Já
dissemos antes porque isso não é permitido aos homens.

XVIII. Nem os privados que não consentiram


por causa do delito da comunidade
Deve-se dizer a mesma coisa do mal que se faz sofrer aos priva-
dos com relação aos bens que lhes pertencem realmente, em razão do
delito da universalidade, quando essesprivados não consentiram nisso.

XIX. Os herdeiros não estão sujeitos


a pena como pena e por que

Quanto ao herdeiro, a verdadeira razão pela qual é obrigado a


outras dívidas [181] e não é obrigado a sujeitar-se ao castigo (como isso
foi escrito pe]ojurisconsu]to Pau]o [182]: "Se uma pena foi iní]igida a
[179] é?uaesúo es ad Orfüodoxzbm (138), encontrado entre os escritos de Justino
mártir.
[180] .De Sem JVnm]n h Hhdl'cfa(559 F).
[181] Ver Moisés Maimânides, cap. V]], secção6, e a achara, no trai;ado Baba
Kama (cap. X, l).
l\82X L. 20, Sipoena, Dig., De poenis.
CAPÍTULO
HI - DACOMUNICAÇÃO
DASPENAS
919

alguém, foi acatado no direito positivo, que ela não passe aos herdeiros")
é que o herdeiro representa a pessoado falecido, não no mérito e demérito,
que são puramente pessoais, mas nos bensr183], aos quais estão liga-
das, por uma instituição tão antiga quanto a propriedade, as dívidas
que provêm da desigualdade das coisas. Dion de Prousa [184] disse que
o que os ancestrais deviam, seus descendentestambém o devem e que,
de fato, não se pode dizer que a herança tenha sido repudiada por nós".

XX. São obrigados, contudo, se a pena


passou para outro tipo de obrigação

Disso se segue que, se além do crime pelo qual se merece a pena,


há alguma causa nova de obrigação, o que estava compreendido na
pena pode ser desde então devido, ainda que não propriamente como
pena. Assim é que, em tais lugares, após a sentença, em tais outros,
após a 77f7kco/]fesÉaÉ7b,a cujas circunstâncias é dada força de contrato,
a pena pecuniária será devida pelo herdeiro, bem como aquela que foi
estipulada numa convenção.Sobreveiodesdeentão, de fato, um novo
objeto de dever.

[183] Ver o Vlll Concílio de Toledo, sobre o tema de Recceswinth; ver também o que
foi dito acima, neste livro, cap XIV. $ X. Não há ninguém que represente
meinor o defunto que o herdeiro, comodiz Cícero, no lido -DeZ;e#Jbus(11,19,

[184] Dion Crisóstomoou de Prousa, OraÉao


mXZ
XXll

DAS CAUSAS INJUSTAS

Sumário

1. Explica'se a diferença entre as causas}ustijlicativas e


persuasorias.

li. As guerras desprovidas de uln desses géneros de ca usas são


guerras de animais seivageils.

111.As guerras fun dadas sobre ca usaspersuasórias e não sobre


causas justi$1cavas, são guerras de piratas.

IV. Há certas causas que tênna falsa aparência da justiça.


\{ Como seria um tenlorincerto.
\a. A utilidade sem a necessidade.

VII. O casamento recusado, em grandenúmero de mulheres.

\rlll. A ambiçãopor um territóüo ineihor.

]X. A descoberta de coisas ocupadas por outros.

X. Que decidir, se os primeiros ocupantes são loucos?


raa num povo súdil;o
XI. O desejo de liberdade UQ} é uma causa injusta
S

Xii. Como a vontade de governar os outros apesar deles, sob


pretexto de seu bem.

XIII. De iguainlodo, o título de soberania uníversa! que alguns


atribuem ao imperador, título que éígualm'ente refutado.
XIV. Outros, da igreja, o que também érefutado.

XV De igual !nodo, a vontade de cumprir profecias sem um


mandato de Deus.

XVI. De igualmodo, a perseguição do que é devido não em vi. 'fu


de do direito estritaillente dito, mas de outra forma.
XVII. Distinção da guerra cuja causa éinjusta e da quedaà qual
se !iga por outra parte alguma coisa viciada; efeitos de
uma
7] e outra
CAPÍTULOHll - DAS CAUSASINJUSTAS
923

1. Diferença entre as causas


justificativas e persuasórias
1. Dissemos antes (livro 11, cap. 1), quando nos dispúnhamos a
tratar das causas, que umas são justiÊlcativas e outras tendem a acon-
selhar. Políbio, que por primeiro observou essa diferença, chama as
primeiras de pretextos porque são aquelas que são alegadas publica-
mente, mas Tito Lívio as chama vez por outra de título. Ele chama as
últimas pelo designativo gera] de causas [1]

2.Assim é que, na guerra deAlexandre contra Dado, o pretexto


foi a vingança das injúrias que os persas haviam feito aos gregos. A
causa foi a paixão da glória, do poder, das riquezas, à qual vinha se
juntar uma grande esperançade facilmente ter sucesso,produzida pe-
las expedições de Xenofonte e de Agesilau. Assim é que o pretexto da
segunda guerra púnica foi a controvérsia relativa a Sagonte.Acausa foi
a indignação dos cartagineses, suscitada pelas cláusulas que os roma-
noslhes haviam extorquido durante sua má campanha e o encorajamento

11]Assim é que Plutarco fez a distinção em H'da de GaJóa(1062 D) e Dion. na


história de César e de Pompeu (XLI), bem como Políbio, no local em que trata da
guerra dos romanos contra os ilírios(arcerpfa ZegaÉlbnum, 126). Essas razões
justificativas poderiam corretamente ser chamadas, com Suetânio, de pretex-
tos e os motivos de causas.De fato, assim ele se exprime, ao falar de Júlio César
3QÜ:"Talfoi o pretexto da guerra civil, mas acredita-se que ela tenha tido outras
causas."Tucídides, poi' outro lado, fez a distinção entre o pretexto e a verdadeira
razão, como, por exemplo, no movimento dos atenienses contra a Sicília. o
pretexto foi o de prestar socorroaos habitantes de Egesta,mas no fundo a
verdadeira razão era a de se apoderar da Sicília. Em seu discurso aos atenienses.
Hermocrates chama de pretexto a razão de prestar socorro aos aliados e de
objetivo que havia sido proposto o propósito de se tornar dono da Sicília. Ambos
os exemplos se encontram no livro VI de Tucídides.Apiano se serve também da
palavra pretexto, em Guerra de .4Zi&r7dafes(57).Ele o emprega igualmente em
sua história das guerras civis quando, falando da paz rompida entre atavio e
Sexto Pompeu, diz que, entre as causas, algumas eram secretas e outras eram
produzidas à luz do dia. Agatias(livro V. 12) chama de i6cçâoe cor dada o que os
outros chamam de pJ'efexfo.Opõea isso as causas,em sua história do huno
Zanurgan: Acrescente-se a isso o que dissemos no cap. 1, $ 1 deste livro. Procót)io
diz que seria loucura não poder falar livremente, quando se tem por guia
justiça e por companhiaa utilidade(/lersla, 11,15).
924 H UGO GROTIUS

que lhes davam seus bons sucessosna Espinha, o que foi observado por
Po[íbio [2] . Tucídides [3] estima de modo seme]hante que a verdadeira
causa da guerra do Peloponeso havia sido o crescimento das forças dos
atenienses que faziam sombra aos lacedemânios. O pretexto, porém,
teria sido a controvérsia dos corcirenses, dos habitantes de Potidéia e
outras razões. Confunde, no entanto, nessa passagem os nomes de cau-
sa e de pretexto [4]. A mesmadistinção se encontra no discursodos
campanos aos romanos [5], quando dizem que combateram contra os
samnitas, aparentemente pelossidicinos,e na realidade para elespró-
prios, porque haviam visto "o incêndio que devorava os sidicinos, pres'
tes a se alastrar até e]es". Tiro Lívio16] relembra igualmente queAntíoco
havia empreendido a guerra contra os romanos, aparentemente por
causa do assassinato de Braquila, e de certas outras razões. Na realida-
de, porque havia concebido uma grande esperança pela queda dos cos-
tumes dosromanos.Plutarco observatambém que era semfundamen-
to que CícerorepreendiaAntânio de ter sido a causa da guerra civil,
pois que César, decidido a fazer a guerra, havia tomadoAntânio somen-
te como pretexto [7] .

[2] 111,6
[3] 1, 23 e seguintes, 56 e seguintes
[4] Assim é que, no ]ivro V. 53, ao falar da guerra dos habitantes de Arras contra os
de Epidauro, chama causaso que pouco antes havia designado de pretextos; da
mesma maneira que a palavra grega CLPXCEte a palavra latina p/:üciblb, assim
comooutros termos similares, são equívocos,como observamosno cap. 1, $ 1
deste livro. Os escritores da história de Constantinopla se servem muitas vezes
da palavra natpoKÀoa para exprimir o que os outros chamam de pretexto; isso,
por alusão à história de Aquêles que aproveitou da ocasião da morte de Pátrocles
para retomar as armas.
[5] Titus Livius [59 a.C.-17 d.C.], ,4ó Urbe Oo ?alfa (V]1, 30).
[6] Idem, .4ó Z:4.üe aoí2dlfa(XXXV], 6)
[l\ "Essas coisas deram a eie que tinha necessidade de pretexto uma espécie de
aparência de direito e uma honrosa ocasiãopara fazer a guerra." Es\as paXawas
se encontram na história de Plutarco(.4néon/us, 918 D). Há em Lucano(PZarsa#a
!, asar, o seg\3\x\te."Os destinas rompem todos os seus atrasos; a sorte trabalha
para tornarjustos os movimentos do chefe e eie encontra causaspara justificar
seus erros.
CAPÍTULO Hll - DAS CAUSAS INJUSTAS
925

11.As guerras desprovidas


de um desses gêneros de causas
sáo guerras de animais selvagens

Há homens que se deixam arrastar para a guerra, sem serem


levados a isso por nenhuma espécie dessascausas, ávidos de perigos,
comofala TácitoE8], por causados próprios perigos]9]. O vício desses
homens ultrapassa o limite humano. Aristóte]es [lO] o chama de "fero-
cidade". Sêneca [11] diz deles: "Posso dizer, isso não é crueldade, é fero-
cidade [12], o de se ter a]egria em torturar. Podemosdizer que é demên-
cia, pois há mais de um tipo e a mais caracterizada é aquela que chega
até a massacrar e a dilacerar os homens." O seguinte pensamento de
Aristóteles, no livro ZZztma Mcó/naco [13] seaproxima perfeitamente
dessaopinião: "De fato, deve ser considerado como realmente cruel aquele
que, pela paixão de combater e de derramar sangue faz de seus amigos,
inimigos." Dion de Prousa [14] diz: "Deixar-se arrastar sem causa para
as guerras e os combates é uma pura loucura que busca sua própria
infe[icidade." O mesmo Sêneca [15] diz em sua carta XIV: "Ninguém
derrama o sangue pelo sangue ou pelo menos essessão muito pouco
numerosos.''

[81Caius Corne[ius Tacitus [55-120],.Hz)far7ae


(11,41; V. 19).
[9] Amiano(livro XXXI, 2, 22), falando dos alanos, diz: 'Z7es gostam dos perigos da
guerra, tal3to quanto as pessoas pací8.casencontram prazer n.o ócio."
[10] .Óflba a .Aübómaco(Vll, l)

[11] Lucius Annaeus Seneca[O[? a.C.-65d.C.], Z)e Creme/zílb(11,7; 11,4).


[12] Idem, De ]ra(11, 5). Falando de Apoloro e de Faláris, diz: 'ôssonâo é cólera, é
ferocidade.
[13] .éflba a N)'c(5maco (X, 7)

[t4] OraÉÜ X\:XVZZ

llS] Lucius Annaeus Seneca [O[? a.C.-65 d.C.], .E»]sfuJae ad .Z)ucT7lum (X]VI 9)
926 H U GO GROTIUS

IH. As guerras fundadas sobre causas


persuasórias e náo sobre causas
justificativas, sáo guel'ras de piratas

1. A maioria daqueles que fazem a guerra tem causas que ten-


dem a aconselhar, com ou sem causas justificativas. Há aqueles que
sequer se preocupam com as causas justi6lcativas+ A respeito destes
pode ser dito o que foi expresso pelos jurisconsultos romanos, que é
predador aquele que, interrogado sobre a causa de sua posse,não alega
outra razão que o fato de sua própria posse[16]. Aristóte]es [17] diz
daqueles que aconselham a guerra: "Muitas vezesnão se inquietam em
saber se é justo reduzir à escravidão vizinhos que não fizeram o mal e
aqueles que não cometem nenhuma injúria.'

2. Assim era Brennus [18] que dizia que tudo pertence aos mais
fortes. Assim também Aníba], para quem, segundo Si]ius [19], "sua
espada substituía o tratado e a justiça". Assim ainda Átila e aqueles na
bocade quem se encontram estas máximas: "Procuramos o êxito da
guerra enão sua causa" [20] e "Essa bata]ha devefazer do vencidoum
cu[pado" [21] e "No topo da fortuna a justiça está do ]ado da força" [22] .
Aeles muito bem se aplica esta passagem de Agostinhol23l: "Levar a

t\6Ã L 11,Pro haerede, $ uit. e leis seguintes, Dig., De haeredítatís petitíone. 'Tal {(À
a guerra dos bétulas contra os longobaT-dos,
empreendida sem nenhum pre-
texto(em Procópio, GofÉüic., 11, 14). Em Tito Lívio(.4b [/}.óe aon(#fa, V 36, 5),
os gauleses dizem que '7euan seu db'eito conasuas a?'mase que fado pel-áenc'e
aos homens corajosos
[17] .Refár7ca
(1, 3)
[18] Titus Livius [59 a.C.-17 d.C.], .4ó Z]&.ÉeOonayfa (V] 36, 5)
[19] Caius Si[ius [ta[icus [séc. ] d.C.], .PunJba(X], 183).
[20] Lucius Annaeus Seneca [01? a.C.-65 d.C.], .17erctzJes
.Fbrens (411 e seguintes).
[21] Marcus Annaeus Lucanus [séc. ] d.C.], PZarsaZa (V]1, 260).
[22] Caius Corne[ius Tacitus]55-120], .4nna]es Q(V] ])
[23] Aure[ius Augustinus [354-430], Z)e Ca'wúaéeZ)e/ (]V] 6)
CAPÍTULOmll - DASCAUSAS INJUSTAS
927

guerra aosvizinhos, de lá avançar sobre os outros, oprimir os povos que


em nada vos inquietavam e isso pelo único desejo de reinar, poderia ser
outra coisasenão uma pirataria total?" Ve]]eius]24] diz de tais guerras
que "são guerras que se empreende sem razão, mas de acordo com os
interesses que ne]as pode haver". Lemos em Cícero [25] , em seu ]ivro
dosDeveres."Essa elevaçãoda alma que se mostra nos perigos e nos
trabalhos, não somente não é virtude, se não for acompanhada de justi-
ça, mas antes crue]dade que causa repu]sa a toda humanidade" [26].
Andrânico de Rodes]27] diz: "Aqueles que, em vista de sua maior vanta-
gem tomam posse onde não devem tomar, essessão chamados perversos,
ímpios, injustos, como o são os tiranos [28] e os devastadores de cidades."

IV. Há certas causas que têm


afalsa aparênciadajustiça
Outros alegam causas quase justificativas que, ponderadas no
peso da reta razão, são classificadas como injustas. Segundo a expres'
são de Tiro Lívio [29], trata-se então de saber, não quem tem mais

[24] Caius Ve[[eius Patercu[us [séc.] d.C.], .E]]bZar7a


.Rama/za (11,3, 3).
[25] Marcus Tu[[ius Cicero [106-43 a.C.], Z)e (2í7]cu]s
(1, 19, 62).
[26] Agatias(11, 1) diz: 'Hque/es que, em vlkÉz do /Raro ou oócec'aços
pe/o óüo, não
tendo matívo justo algum para se queixar, invadem as terras de outrem, cau-
sando danos a quem não lhes fez mai algum; esseshomells são insoieJltes,
ce/arados." Menandro, o protetor, nos fornece um exemplo notável: ':Bz{/an,
chefe dos avaros, sem ter motivo algum, pretexto nenhum, sem procurar \

nleszllo em lembrar uma causa, mesmo falsa, contra os romanos, rompeu seu
tratado, sem pudor algum e ao modo dos bárbaros.
[27] Em Aristóteles, .Óóca a .Mcón7aco(]V. 2)
[28] Fílon(De .Doca.]pgo,
26) escrevede modo primoroso: '%gue/esque se servanm
ias forças dos bandidos, exercem suas depredações em cidades inteb'as, certos
=iaimpunidade porque se acham estar acima das !eis. Tais são oshomens de um
espírito nada político, ávidos de dominação e de despotismo, autores de grandes
roubos, que decoram com belos nomes de autoridade e de poder regular o que
sepodeüa chamar, com mais propriedade, um banditismo." Esta passagemes\â
perfeitamentede acordocom as citaçõesde Quinto Cúrcio, de Justino, de
Sonecae de Agostinho que foram feitas no cap. 1, $ 1 deste livro.
[29] Titus Livius [59 a.C.-17 d.C.], .4Zp[ü.óe Gondlfa(XX], 6, 2).
928 H UGO GKOíi US

direito, mas quem é mais forte. A maioria dosreis, diz P]utarco [30], se
servem dos dois nomes de paz e guerra, como se servem de moedas, não
para o que é justo, mas para o que serve a seus interesses. Pode-se
conhecer até certo ponto quais são as causas injustas pelas causas jus-
tas que explicamos até aqui. O que é direito serve, de fato, para fazer
conhecer o que é torto. No interesse da clareza, indicaremos as prin-
clpaisespecles.

V Como seria um temor incerto

1. Assim, dissemos antes (livro 11, cap. 1, $ XVII) que o temor que
se tivesse de uma potência vizinha não basta. Para que de fato a defesa
seja justa, é preciso que seja necessária, e tal não é senão na condição
de ser assegurada não somente pela potência, mas ainda pela intenção.
Digo ser assegurada de tal maneira que isso seja certo, dessa certeza
que tem lugar em matéria de coisas morais.

2. Por isso é que não se deve de modo algum aprovar a opinião


daqueles que querem que seja uma justa causa de guerra, se um vIzI-
nho que não está impedido por algum tratado erga uma fortaleza em
seuterritório ou qualquer outra fortificação que poderia algum dia cau-
sar um dano. Contra esses temores se deve opor de seu lado fortiÊlcações
em seu próprio território e outros remédios semelhantes, se existirem,
mas não recorrer às armas. As guerras dos romanos contra Filipe da
Macedânia[31], de Lisímaco contra Demétrio]32] foram pois injustas,
se não houve outra causa. Essa passagem de Tácito [33] sobre os caucos

[30] P[utarco [50?-125?], P»70 (389 E)

[31] Zonaras (IX, 15)


[32] Pausânias (l, ]O)

[33] Caius Corne[ius Tacitus [55-120] , Ge/manca (35)


CAPÍTULO
Hll - DASCAUSAS
INJUgAS
929

me agrada muito: "E a mais nobre das naçõesgermânicas, a única que


faz da justiça o sustentáculo de sua grandeza. Isentos de cupidez e
ambição, tranqüilos e calmos em seu lugar, não provocam nenhuma
guerra, não fazem rapinas, nem pirataria. A melhor prova de sua cora-
gem e de suas forças é que, para gozar da proeminência, não precisam
ser injustos. Cada um tem contudo suas armas sempre prontas e, na
necessidade,exércitos se reúnem. Têm muitos homens e cavalos e sua
tranqüilidade nada tira de seu renome.'

VI. A utilidade sem a necessidade

A utilidade não dá tampouco o mesmodireito que a necessidade

VII. O casamento recusado,


em grande número de mulheres

De igual modo, quando a facilidade dos casamentos é grande,


uma recusa de casamento não pode ser causa de guerra, como outrora
Hércu[es tomou essa razão contra Eurito, Dado contra os citas [34].

VIII. A ambição por um território melhor


Não o pode tampouco o desejo de mudar de teritório para possuir
um solomasfecundo, depoisde ter abandonadoospântanos eas terras
áridas. Tácito [35] diz que tal havia sido para os antigos germânicos a
causa de fazer a guerra.

[34]Antonino Caracalacontra Artaban, rei dospartas. Ver Xiphi]inus (LXXV]]], l)


[35] Caius Corne[iusTacitus [55-120],Hlkfo/:rae(]V, 73)
930 H UGO GROTI US

IX. A descoberta de coisas ocupadas por outros

E igualmente iníquo reivindicar para si, a título de descoberta,


coisas que são ocupadas por outro, mesmo se aquele que as ocupa fosse
um homem perverso, tendo maus sentimentos com relação a Deus, ou
de espírito obtuso [36] , pois a descoberta não ocorre senão com re]ação a
coisas que não pertencem a ninguém.

X. Que decidir se os primeiros


ocupantes sãoloucos?

1.Para ter o direito de propriedade, não se requer qualidade moral,


qualidade religiosa ou perfeição intelectual. Isso parece que só pode ser
defendido se houver alguns povos completamente desprovidos do uso da
razão; nesse caso não têm direito de propriedade, mas que deve-se con-
ceder a eles somente, em virtude da caridade, as coisas necessárias
para a vida [37] . O que dissemos em outro ]oca] (]ivro ]], cap. ]V. $ X)
que o direito das gentes conserva a propriedade para as crianças e os
loucos, se aplica aos povos com os quais.se tem um comércio recíproco
de tratados. Os povos inteiramente privados de razão não são tomados
como tais, se os houve, o que tenho razões para não acreditar.

2. Os gregos [38] erravam pois ao dizer que os bárbaros eram de


algum modo naturalmente seus inimigos, por causa da diversidade de
seuscostumes e talvez porque pareciam lhes ser inferiores em espírito.
Para o que é preciso saber até que ponto a propriedade pode ser tirada
por crimes graves e que levem a atentar contra a natureza ou a socieda-
de humana, é outra questão que tratamos há pouco (neste livro, cap
XX, $ 40), quando falamos do direito de punir.

[36] Vitoria, De ]ndls, i'eJecf..Cn. ' 3,7.


[37] Vitoria, De .Be//a, n.'51 ê Z 8 e ]lvro ZZ] n.' /8.

[38] Platão, .Z)e .Repuó/lca(V. 16); Eurípides, .]?á:uZ)a; Tifo Lívio, HÓ Z:j}.óe Gond'fa
(XXXI, 29, 15); lsócrates, Oraáfo Panafüen. (66).
931
CAPITULO Hll - DAS CAUSAS INJUSTAS

XI. O desejo de liberdade num povo


súdito é uma causa injusta
A própria liberdade, seja doscidadãosprivados, seja dos Estados,
isto é, a autonomia (como se fosseuma coisa que convém a todo tipo de
pessoasnaturalmente e a qualquer tempo) não pode fornecer o direito
de mover a guerra [39]. Quando se diz que a ]iberdade pertence por
natureza aoshomens ou aospovos,isso deve ser entendido a respeito do
direito de natureza precedendotodo fato humano e da liberdade por
isenção, não daquele que existe por incompatibilidade; quer dizer que
naturalmente não se é escravo, mas que não se tem o direito de jamais
vir a sê-]o [40], pois, nesse ú]timo sentido, ninguém nasceu ]ivre, nin-
guém escravo; é a sorte que colocou a seguir essesnomes sobre cada
um. Note-se essas palavras deAristÓteles [41]: "A ]ei fez com que um
fosselivre e outro escravo." Por isso é que aqueles que, por uma causa
legítima, caíram numa escravidão pessoal ou política devem contentas-
se de sua condição, como o ensina o apóstolo Paulo (/(;br:zhÉ7bsVl1, 21):
"Tu foste chamado à servidão? Que isso não te atormente.:

XII. Como a vontade de governar os outros


apesar' deles, sob pretexto de seu bem
Não é menos iníquo querer submeter pelas armas certos indiví-
duos como sendo dignos de servir e pela condição daqueles que os filóso-
fos chamam algumas vezes naturalmente escravos. Se alguma coisa,
de fato, é útil a alguém, não me é permitido de a impor a ele, a seguir,
pela força. Alivre escolha do que é útil e inútil deve ser deixada aos que
têm o uso da razão, a menos que outro tenha adquirido algum direito

[39] Ver o ]V Concí]io de To]edo e o que dissemos acima, no cap. ]V. $ X]V deste ]ivro
[40] h[arcus Annaeus Seneca [58 a.C.-32?d.C.], G0/7Érorerszae
(111,21)
[41]Po/üc;a(1,3).
932 H UGO GROTIUS

sobre eles. O caso das crianças é tota]mente outro [42] , pois não tendo
elas próprias o direito de exercer seu livre arbítrio e de regular suas
ações, a natureza concede o cuidado de guia-las ao primeiro que queira
se encarregar de]as e que for capaz disso [43] .

XIII. De igual modo, o título de soberania


universal que alguns atribuem ao imperador
título que é igualmente refutado

1. Não perderia tempo em acrescentar que o título atribuído por


alguns ao imperador romano e segundoo qual ele teria direito de co-
mandar os povos mais distantes, mesmo aqueles que são desconhecidos
até o presente, é ridícu]o, se Barto]o [44] , que por muito tempo foi consi-
derado como o príncipe dosjurisconsultos, não tivesse ousado declarar
herético aquele que o negasse. Funda-se no fato de o imperador se dar
às vezes a qua]i6lcação de dono do mundo [45] e sobre que, nas Escritu
ras sagradas, esseimpério que os escritores posteriores chamam de
.Ro/nanlb [46] é designado pe]o nome de "terra habitáve]" [47] . De mes-
ma natureza são essasexpressões:"0 romano vitorioso possuíajá todo
o universo" [48], e muitas outras seme]hantes,empregadaspor
sinédoque, por hipérbole ou por excelência. Por isso, nas mesmas Es-

[42] Vitoria, .Z)e /}ldli, seção ], n.' 24


[43] Abala, De Jui'e .BeZ/7;
]ivro ], cap. 2, n.' 29; Covarruvias, c'.peccafum, parte 2, $
9, n.' 5 e seguintes
lâ:4ÀAd Lerem 24, }iostes, Dig., De captivis.
[45] Z,. azzws7k.4d .LegeinJ?Zoc#am.Como no Concílio de Ca]cedânia, act. XI e XII.
[46] Como também Atanásio, .Z@zkfu/a
ad SoJlóa/Jos.Essa era apenas a sexta parte
do mundo conhecidode então
t4]\ F]\on tDe Legatíone,2bescxese"Falo daspartes do mundo habitável, das mais
importantes e das mais úteis, que se chama o mundo por excelência e que são
!imitadas por dois rios, Q Eufrates e o Rede.
[48] Tu[[ius Petronius Arbiter [séc. ] d.C.] , SaÉÜ7coJ2 (119)
CAPITULOHll - DAS CAUSASINJUSTAS
933

crituras Sagradas (.Lacas 11, 1), só a Judéia é classificada também sob


o nome de "terra habitável" [49] . Nesse sentido é que se deve aceitar a
antiga expressãodosjudeus que "a cidadede Jerusalém estavasituada
no meio da terra", isto é, no meio da Judéia [50], da mesma maneira
que Delfos, colocada no meio da Grécia, era chamada pela mesma razão
"o umbigo do universo". Não há porque se deixar abalar pelos argumen-
tos de Dante [51], por meio dos quais se esforçaem provar que um
direito similar pertenceao imperador porqueévantajosopara o gênero
humano. As vantagens que alega sãocompensadas pelos inconvenien-
tes que as acompanham. Do mesmo modo, de fato, que um navio pode
atingir uma dimensão tal que não possamais ser governado, assim
também o número dos homens e a distância dos lugares podem ter
proporções tão vastas que não suportam um só governo [52] .

2. Mlesmo concedendo que isso seja vantajoso, o direito de coman-


dar não se segue, uma vez que esse direito não pode nascer a não ser de
um consensoou de umà punição [53]. O imperador romano não tem
mais direito agora sobre todas as coisas que pertenceram outrora ao
povo romano. Muitas coisas, de fato, que haviam sido adquiridas pela
guerra foram perdidas de igual modo pela guerra. Outras o foram por
tratados, outras por desleixo passaram ao poder de outras naçõesou
reis [54]. Certos Estados mesmo, outrora comp]etamente submissos,

[49] Jerânimo diz: ';4 palavra Zan'a, ]nesmo quando se acresc'e/7fao epi'fofo loja,
deve se restringir à região de que se fala.
[50] Informações a respeito, no ]ivro Guerras Judaicas(111, 3, 5) de F]ávio Josefo.
[51] .De Mana/IM/a (11)
[52] Aristóteles, Poli'É7ca(V]1, 4)
[53] Silvestr., ]J] verbo .Be/7um, parte ], n.' 21; Covarruvias, ]oca] citado, n.' 9
[54] Um exemplo pode ser tomado na Espanta, ver Gomez, ]h / -F'uernZ,n.' â .De
actionibug, Pano mlh., in cap. Venerabíiem, coi. 9, De Eiectíone* àasan, in bege
Canetas popuios, Cod., De Summa l:rínítate, NlenocX\us, Cona. 11,n.' 102,
Cardeal Tuschus, /b'aaÉlc. Canelas, J4SI f Rex J:ilspanJ'ae;Du Moulin, bons.
Paria, in prime. n.' 20, De Chasseneux, De Gloria Mlund{, parte V Consíderat.
2& hzaxltus. Institut. Mora!., livro ii, cap. 5, p. 2.
934 H UGO GROTIUS

começaram a seguir a não ser dependentessenão em parte somente ou


a não estar unidos senão por uma aliança desigual. Todas essasmanei-
ras de perder ou de modificar o direito de comandar têm lugar com
relação ao imperador romano, bem comocom relação às outras
potências.

XIV Outros, o atribuem à Igreja


o que também é refutado

1. Houve também pessoas que atribuíram à Igreja esse direito de


comando, mesmo sobre os povos da parte do universo desconhecido até
o presente [55], embora o próprio apósto]oPau]o tenha dito abertamen-
te que não havia o direito dejulgar aqueles que estão fora do cristianis-
mo (/(.,ar7nf/bsV. 12): "Por que haveria eu de me preocupar em julgar
os de fora?" Quanto ao direito de julgar que pertenceu aosapóstolos,
ainda que à sua maneira se referisse mesmo às coisas da terra, era
contudo de natureza celestial, por assim dizer, e não terrestre, isto é,
que não devia ser exercido por meio de armas e de açoites, mas pela
palavra de Deus, expostade uma maneira geral e aplicada às circunstân-
cias particular'es, pela produção ou pela recusa dos selos da graça divi-
na, segundo o bem que cada um requeria, enfim, mesmo por uma puni-
ção não natural, mas acima da própria natureza e por conseguinte prece'
dendo de Deus, tal como foi mostrada na pessoa de Ananias, de Elimas,
de Himeneu e outros.

2. O próprio Cristo, de quem todo poder eclesiástico decorreu e


cuja vida é um modelo proposto para a Igreja, considerada como tal,
negou que seu reino fosse deste mundo [56], isto é, fosse da natureza dos

[55] Vitoria, Z)e Zndls, re/ec?f.2] e seguinte; Aya]a, ]ivro ], cap. 29


[56] Jogo XV[11, 36; ver Pedra Damião, J]w'o .rV .Hp/h#, q e Bernarda, -E»])f. 22]
CAPITULOHll - DAS CAUSAS INJUSTAS
935

outros reinos, acrescentando que, se fosse de outro modo, se serviria de


soldados, ao modo dos outros reis. Mlesmo que tivesse pretendido pedir
legiões, não teria pedido de homens, mas de anjos (MafeusXXVI, 53).
Tudo o que fez com autoridade, o fez não por um poder humano, mas
por uma virtude divina, mesmo quando expulsou os mercadores do tem-
plo. O açoite, de fato, era então o símbolo, não o instrumento da cólera
divina, como em outro local a saliva e o óleo eram um símbolo de cura e
não remédio [57]. Agostinho [58] assim se exprime sobre a passagem
citada de Jogo: "Escutai pois judeus e pagãos. Escutai circuncisos, escutai
incircuncisos, escutai todas as potências da terra. Não impeço vosso
domínio neste mundo [59], meu reino não é deste mundo. Não temais
com essetemor vão que tomou conta do velho Herodes, quando foi anun-
ciado a ele que Cristo havia nascido e que o levou a matar, mais cruel
em seu temor que em sua cólera, tantas crianças para que a morte
chegassetambém a Cristo. Meu reino, disse Cristo, não é deste mundo.
Que quereis mais? Aproximai-vos dessereino que não é deste mundo,
entrai nele com fé e não sereis levados a crueldade alguma pelo temor.:

3. Paulo, entre outras coisas, proibiu ao bispo de castigar (/ Zl-


mófeo 111,2). "Comandar impondo uma doação",isto é, uma necessida-
de proveniente do emprego da força humana compete aos reis, não aos
bispos, disse Crisóstomo [60] . O mesmo diz a]hures: "Não recebemos o

[57] Tostat exp]ica bem isso, em seus comentários a ]14afeus/X]


[58] Aurelius Augustinus [354-4301, /n ZKange#uin Joãani2 k 7)-acéafus(CXV. 2)
[59] Hilário de Arles diz que "C17kÉo/2áo ÉÍnáa v2)Jdopara hvad) a g7óu9ade adiram,
mas para comunicar a sua; 1lão viera para se apoderar de um reino tenestre,
mas para dar o reino ce.lesa;e.

[60] Suas palavras são extraídas do ]ivro Z)e Sacez'dolo(11, 3). '?\Uo é per?niílúh
sobretudo aos sacerdotes cristãos, usar a força para corrigir os pecadores. Os
juízes seculares exercem muito essepoder sobre aqueles que praticam o ma! e
que descobremterem violado as leis. Eles os constringem, de bom ou mau
grado, a não viver na fantasia. Quallto a nós,porém, devemostrabalhar para
tor[[ar melhores essaspessoas,persuadindo-assem força-ias.As leis não ]]os
deram poder para reprimir os pecadores e mesmo que o tivessem dado, se!'ía
936 H UGO GROTIUS

poder de desviar os homens do pecado pela autoridade de uma senten


ça", ou seja, com uma autoridade que encerra o direito de executar a
sentença por mão real ou mão armada ou despojar de qualquer direito
humano [61]. O bispo, diz, deve cumprir seu dever "sem doação, mas
persuadindo". Disso resulta suficientemente que os bispos, como tais,
não têm nenhum direito de reinar sobre os homens segundo o uso hu-
mano. Jerõnimo, comparando o rei e o bispo, diz que "aquele comanda
aosque não o querem, esseaos que o querem"]62].

em vàa te1ltar exerce-!o,porquanto Deus coroa não aqueles que se abstêm de


pecar por medo; mas aqueles que se abstêm voluntariamente. Devemos pois
nas dar ao duro trabalho pa!-a incentivar essesdoentes a vir por própria conta
pal'a serem curados pe/os cacei'dotes." Um pouco abaixo acrescenta: '%que/e
que está fora da fé não pode ser coagido,nem mesmo levado pelo medo a
aóraça]« a vei'Jade. " O mesmo(comentando a -EoJ8fo/a aos .E73slos diz: /n
ramos estabelecidospara instruir os homens,não pelo mando, nele Feio
exercício do podem-,
Somos colllo que conselheiros que persuadein. Aquele que
dá um conselhodiz o que pensa que se deva fazer, não íbrça o ouvinte, mas }he
deixa a !iberdade de escolher entre os conselhos que ihe são dados."Anhx6s\o
(Z)e Cala ef .4óe4 11, 4) diz que 'b saceJ'dote cuJnWZ'eos deT'ares de seu c'arfa.
nuas /2ão exerc'e ]e/zÃu 2 a6o de podem''l Esta passagem é citada em a UerÉum,
5], .Z)e/)oen]fe/]Élb, dlkí7hc'f, Z. Os pensamentos de João Crisóstomo são expôs'
Los\axnbém em. Act. Apost., liomíiia 111(4);Epist. ad 'atum, Homilia 1; Epist. l
ad I'hessaloll.,Homilia N; l)e Sace}«dcltió
Qi, 3).
[61] Aos reis e não à ]greja é que compete julgar os feudos(ChJ7.Nouló., Z)eJudlbz)h
De Feudos,De Possessíoníbus;Can. Causam quae enter qui fiii{ sine ]egitimlb.
De fato, os reis não reconhecemalguém superior, com relação às coisas tempo-
rais ÇCan.Per venerabiieJneode)a tít). "Crista quis que, como os imperadores
cüstãcs têm necessidadedos papas comrelação à vida eterna, os papas seguem
as leis dos imperadores no tocante às coisas temporais, de ta! modo que a anão
espirÍtuai permanece separada dos empreendimentos temporais e que o servi
dor de Deus não se i:lliscu{ nos negócios do século" ÇCan. Quoníam, distinct. X,
e (>J]. Ounl ad verem, dlkÉlbcf.XOllD. A isso não é estranho o que dissemosno
livro 1, cap. 11,$ último, segundo o 82.' dos ditos cânones apostólicas, e o que
dissemos nessa passagem, tanto no texto quanto nas notas
[62] O mesmo, em De Jb 'fará o Mepof]bJ]] (LX, 14), diz: '?MenosópennlÉldo ao
bispo que ao rei. Este coJllandaos homens, gostem ou não; aquele não manda,
conquanto não se queira ihe obedecer;este se impõe pelo temor, aquele é
suboz'aZz7ado.
" Cassiodoro( Uarvbe,XI, 3), numa epístola aos bispos, diz: "Que o
bispo elasinede ta! modo que o juiz não possa eilcolltrar do que punir.", O
imperador ]i'rederico 1, em Gunterius(.Lzkul:hus, VI, 362), diz do papa: "Que e/e
governe sua igreja e que regule o espiritual, mas que nos deixe o império e as
bszgl] as." Um bispo de Roschild, chamado Guilherme, tendo tentado impedir
Suenon, rei da Dinamarca, que estava excomungado, de entrar na Igreja,
interpondo o báculo pastor"al, comoos guardas do rei sacaram das espadas, ele
cumpriu o dever de um bispo e ofereceuo pescoço.Acrescente-se o que disse
mos no livro 1, cap. IVI $ V.
CAPITULOHll - DAS CAUSASINJUSTAS
937

4. Examinámos anteriormente, no capítulo das Penas, quanto é


bastante para nosso tema, se os próprios reis podem tomar as armas, a
título de punição, contra aqueles que rejeitam a religião cristã.

XV De igual modo, a vontade de cumprir


profecias sem um mandato de Deus

Daria também um aviso que não seria inútil, porque, comparan'


do os fatos recentes com os acontecimentos antigos, prevejo um grande
mal, se não se tomar cuidado. E que a esperança que se poderia conce-
ber a respeito da explicação de algumas predições divinas, não confe-
rem um justo motivo de guerra [63]. A]ém de ser quaseimpossível in-
terpretar com segurança os oráculos que ainda não se cumpriram, se
não se tiver inspiração profética]64], os tempos, mesmo coisas certas,
podem nos ser ocultados. Enfim, uma predição, sem um expresso manda-

[63] Ver a respeito de um certo Teodoro que vivia na épocado imperador Graciano
Zósimo (IV. 13) eAmiano Marcelino (XXIX, 1, 8); com relação a João da Capadócia
ver Procópio(Pe/sl;c., 11,30) e Leunclavius(HJkf. 7brc., XVIII)

[64] ])e fato, os ]ivros proféticos são fechados e como que se]ados até o tempo
marcado para o cumprimento das profecias, de modo que não se pode enten-
dê-las antes (Z)an e/, Xl1, 4, 8-9). A respeito dessapassagemde Daniel, Jerânimo
à\z. "Se o profeta e11teJldeumas não compreendeu, que farão aqueles que se
$actamde pe1letrar o sentido de um livro selado e até o tempo do cumprimento,
e/]ç'o/v7doen] /]uilleJ'asasoóscur7dades.
" Procópio(Goffüia., 11, 1, 24) escreve:
Acredito que está acima das forças do homem encontrar o sentido dos limos
das sibilam a11têsdo acalltecimellto." I'ouço aba\xo ac escen\a "Não pode ocor-
rer que um ho!) em, quezn quer que seja,.compreenda antes do acontecímerlto
os oráculos das sibilam,mas é preciso esperar até que os fatos estalido consu-
111ados
e as palavras provadas por sua realização, o día marcado se torlle o
intérprete certo dos oráculos." Grego as q\vro N) àiz. "Do mesmo modo que
todas as predições são de interpretação muito diGici}porque são muito fechadas
ou comportam muitas explicações, assim também esse oráculo enganou a to-
dos e ao próprio imperador, enquanto vivo. Depois de sua morte, porém, o
o/ãau/o se ]«eve/ou a su mesmo aos áo/nuns. " Teólogos muito audaciosos, tomai
cuidados E vós, políticos, guardei-vos dos teólogos por demais audaciosos. So-
bre isso há uma passagem que mereceser lida, em De Thou (livro LXXIX, ano
de 1583), a respeito de Jacques Brocard
938 H UGO GROTIUS

mento de Deus, não dá nenhum direito, pois muitas vezes Deus permi-
te que o que predisse se execute por homens perversos ou se cumpra por
mas açoes.

XVI. De igual modo,a perseguição


do que é devido náo em virtude do direito
estritamente dito, mas de outra forma
Deve-se saber também que se se deve alguma coisa, não segundo
ajustiça propriamente dita, maspor efeito de uma outra virtude, como
a liberalidade, o reconhecimento, a compaixão, a caridade, essa dívida,
não podendoser quitado pela via judicial, não podetampouco ser exigida
pelas armas. Não basta, para uma e outra dessasvias, que o que é
pedido deva ser feito em virtude de uma razão moral, mas é preciso
mais que haja em nós algum direito para pretendê-lo, direito que é às
vezes dado pelas leis divinas e humanas, mesmo com relação a obriga-
çõesdas outras virtudes. Qliando isso ocorre, forma-se uma nova razão
que já se relaciona com a justiça. Quando essa nova obrigação faltar, a
guerra empreendida em decorrência dessa causa é injusta, como o foi
aquela dos romanos contra o rei de Chipre, sob o pretexto que ele havia
sido ingrato. Aquele que concedeu um benefício não tem nenhum direi-
to de exigir reconhecimento; se ocorrer o contrário, seria um contrato,
não um benefício.

XVII. Distinção da guen'a cuja causa é injusta


e daquela à qual se liga por outra parte alguma
coisa viciada; efeitos de uma e outra
1. Deve-se observar também que ocorre muitas vezes que a cau-
sa da guerra é justa, mas que a execuçãose torna viciada pela intenção
daque[e que a empreende [65], seja porque se determina antes e mais

[65] Vitoria, .De Ju/e .Beib; /]. ' .g.


CAPITULO
Hll - DH CAUSAS
INIUSAS
939

particularmente emvista de algumaoutra coisaquenão é ilícita em si


mesma, a não ser pela consideração de seu direito, como o desejo da
glória[66] ou a]guma vantagem privada ou púb]ica que espera da guer-
ra, independentemente da razãojustificativa, sejaporque seencontra
nela uma paixão de todo ilícita, como a alegria daqueleque secompraz
na infelicidade de outrem, semter em vista o bem.Assim équeAristides
[67] diz que os habitantes de Focéia tinham perecido com razão, mas
que Filipe não havia agido bem ao destrua-los, pois não era pelo zelo pela
religião, como era seupretexto, mas para aumentar seuimpério.

2. Sa]ústio [68] diz: "0 único, o eterno motivo de mover guerra é


um desejo imoderado de dominação e de riqueza." "0 ouro e as riquezas,
principais fontes das guerras", se diz em Tácito [69] e numa tragédia
[701:"0 furor do ganho e os impu]sos da ira romperam a a]iança..."
Pode-se também se referir com propriedade a esta passagem deAgosti-
nho [71] : "A inveja de prejudicar, a crue]dade da vingança, um espírito
que com nada se satisfaz e implacável, a ferocidade da rebelião, a pai-
xão de dominar e outras coisas similares, isso é que comjustiça se
recrimina nas guerras.
3. Essascoisas,a partir domomentoemquea causajustificati-
va não faltar, ainda que impliquem em pecado,não tornam contudo
propriamente a guerra injusta. Por isso, a restituição dascoisastoma-
das numa ta] guerra não é devida [72]

[66] É um dos vícios que se insinua no mais das vezes sob as aparências da virtude.
Agostinho ensina com razão, em De O]'vT'lateZ?e/(111,14), que '%íme/Zor se
expor a sofrer uma punição por qualquer relaxamento do que buscar a glória
por geme;Zanfes al'mas. " Rever a passagem de Agatias que citamos no pará-
grafo lll
[67] De Soc/efafe (11)
[68] Caius Sa[[ustius Crispus]86-36 a.C.] , Ep/kfuJa i]Zláiãr='da/lk(5).
[69] Caius Corne[ius Tacitus [55-120], .17hfarlbe(]V, 74).
[70] Lucius Annaeus Seneca [O[? a.C/-65 d.C.], PZaeó,a (548).
[71] Aure[ius Augustinus [354-430], Cbnéra ]'ausfum .4ZanJcÜaeum (XX]1, 74).
[72] Covarruvias, d. / ], n.'Z Cajetan., ZZ .g quaesf. 4q a/f. ]; Si]vest., in reróo
Be!!um, n.' 2, Summa Ang., ín verbo Be!!um, n.' 5, Summ. Ros., ib., n.' 3 e 8,
tomas, 11, 2, quaest. 66, ad. 8.
XXlll

DASCAUSAS
DUWDOSAS

Sumário

1. De onde procedem as causas para duüdar, en] matéria de


coisas morais.

11.Nada deve perfeito contra a voz da consciência, embox'a


errónea.

111.Ojulgalnento é dirigido de lado a outro por argumentos


extraídos das coisas.

]lV Ou pela autoridade

USe houver dúvida de parte e outra eln llaatéria gra ve, se for o
caso de escolher uma saída, deve-se escolher a mais segura.

r!. Daíse segue que em caso semelhante épreciso abster-se da


guerra.

Vil. Que pode ser estada por um colóquio ou diálogo.

7i!!. Ou por uma arbitragem. Subsiste aía questão do dever


dos reis cristãos com relação às partes beligerantes.

IX. Ou mesmopelo acaso.


X. Se o combateindivídua! pode ser permitido para evitar a
guerra.

XI. Numa dúvida água!departe e outra, a condiçãodopossui'


dor é a melhor.

X[[. Se um e outro não têm posse,numa dúvida igual, a coisa


de ve ser repartida.
Xill. Explica'se por várias distinções, se podeha ver uma guer-
ra justa de parte e de outra.
CAPITULOmlll - DAS CAUSAS DUVIDOSAS 943

1. De onde procedem as causas para duvidar,


em matéria de coisas morais

O que Aristóteles [1] escreveu é verdade que em matéria de coi-


sas morais não se encontra a mesma certeza que nas ciências matemá-
ticas. Isso provém de que as ciências matemáticas separam inteira-
mente as figuras da matéria e de que as próprias figuras sãotais, na
maior parte do tempo, que nada têm que se interponha entre e]as [2] .
Assim é que entre o que é reto e o que é curvo nada há no meio. Nas
coisas morais, as circunstâncias, mesmo as mínimas, diversificam a
matéria e as formas de que se trata têm ordinariamente um meio [3]
que tem alguma extensão, de modo que ora se aproxima mais de uma
dasextremidades, ora mais da outra. Assim é que, de fato, entre o que
deve ser feito e o que é proibido fazer, há um meio, o que é permitido.
Essemeio está ora mais próximo de um dos lados, ora mais do outro.
Disso resulta muitas vezes incerteza, como no crepúsculo ou na água
fria que começa a esquentar. Por isso Aristóte]es [4] diz que "muitas
vezesé difícil julgar qual partido sedevepreferir". Andrânico de Rodei
[5] , por seu ]ado, diz que "é difícil distinguir o que éverdadeiramente
justo do que parece como tal'

11.Nada deve ser feito contra a voz


da consciência, embora errónea
1. Deve-se em primeiro lugar ter presente isso, que mesmoquan-
do uma coisa éjusta em si mesma, se é feita por uma pessoa que, tudo
bem examinado, a considera como injusta, o ato é viciado. Isso, de fato,

[1] Éóca a .McÓn7aco (1, 1)


[2] No tocante a essas coisas, a mudança se faz "de uma extremidade oposta à
outra"; quanto às outras, passa'se"por um meio'
[3] Ver JoãoCrisóstomo,
em seuscomentáriossobrea -qpJGfo/n
aos.E7Zn'os
/K e
Mlora] (.fiomilia XN\, aà.
[4] .ÓÉ2baa ,Mbtjmaco(111, 1).
[5] .Óücaa ]VI'ctâmaco
(1, 3).
944 H UGO GROTI US

é o que diz o apóstolo Paulo (.Eo/nanosXIV. 23) que "tudo o que não se
faz segundo a fé é pecado". Nessa passagem, a fé significa o julgamento
que se tem de uma coisa [6]. Deus deu a facu]dade de julgar como guia
para as ações humanas e quando não se dá atenção a ela o espírito se
embrutece.

2. Ocorre muitas vezes que o juízo não mostra nada de certo e


que hesita. Se essa hesitação não pode se dissipar depois de um atento
exame, deve-se então seguir o preceito de Cícero [7J:"Ordenam sabia-
mente aque]es que proíbem fazer uma coisa, quando duvidas [8] se e]a
éjusta ou injusta." Osmestreshebreus]9] dizem: "Abstém-tede uma
coisa duvidosa". Isso, porém, não pode ocorrer quando se deve em abso-
luto fazer uma ou outra coisae que seduvida da equidade de uma e de
outra [10], então, de fato, será permitido esco]her o que parece ser me-
nos iníquo. Sempre,quandoa escolhanão pode ser evitada, um mal
menor reveste a forma de um bem. Aristóte]es [11] diz: "Nos ma]es,
deve-se tomar os menores." E Cícero [12] : "Dos ma]es, o menor". "Na
comparação dos ma]es, diz Quinti]iano [13] , o mais ]eve toma o ]ugar de
um bem.

[6] E ao que se refere o que é dito na mesma epístola de Pau]o, no mesmo capítu]o
Que cada um esteja plenamente persuadido en} seu espírito." B ainda. "Feliz
daquele que não se colldena a si mesmo no que escolhe."ê-mbx6s\oàiz "que se
chama conarazão pecado o que se faz gêm aprova-io em s{ próprio". ê os\àxüo
segue essa ideia. Ambos são citados por Graciano, Zn adáó., cap. /4, c'al/saZ8
quaesÉ70
/. O seguintepensamentode Plutarco, em Hda de )no/ao/?(238C),
nâo se afasta ni\à\in: "E preciso nãc somente que o que se faz seja honesto e
justo, mas ainda que essaação parta de uma persuasão ãrme e ínabaiáve!, de
tal modo que pareça que o que se realiza tenha sido feito porque se julgou no
próprio espírito que devia ser feito.
[7] Marcus ']'u]]ius Cicero [106-43 a.C.], Z)e Oá]cu]k (1, 9, 30)
[8] Plínio(livro l, .Ep])faia 19): ':N©o Eaç;as aqu 7o de gue duvidas.
[9] Rabino Gamaliel, em Pirke, .4óoíü.(1, 16)
[10] Covarruvias, famaZ De maÉr7hon]o, pai'Ée.ZZcap. Z j .g n. ' g,
[11] .#Élbaa NI'aÓmaCO(11,9)
[12] Marcus Tu[[ius Cicero [106-43a.C.], De (2õH7c2)k
(111,1, 3)
[13] Marcus Fabius Quinti[ianus[30?-100?] , Z)e ZnsÉlfuélome Oraéor2b(V]1, 4, 12).
CAPITULO Hlll - DAS CAUSAS DUVIDOSAS
945

111.0 julgamento é dirigido de lado a outro


por argumentos extraídos das coisas

Na maioria das vezes, na realidade, nas coisas duvidosas, após


algum exame o espírito não está mais indeciso, mas se deixa conduzir
para tal ou qual partido por argumentosextraídos da coisaou pela
opinião que tem dos outros homens [14] dando seu pa]pite sobre essa
coisa [15]. Aqui que se torna verdadeiro esse pensamento de Hesíodo
[16] , que é a mais exce]ente das coisas saber raciocinar por si mesmo e
que o que vem imediatamente depois é de se deixar conduzir pela in
fluência de outrem. Dos argumentos tomados da própria coisa se ex-
traem causas, efeitos e outros acessórios.

IV Ou pela autoridade

Para bem conhecer tudo isso é necessário uma certa prática e


habilidade [17]. Aqueles que não a têm são obrigados, para dar boa
direção a seu julgamento ativo, a escutar os conselhos dos sábios. São

[14] Agostinho (Z)e Ordene,11,5, 16) diz: 'H v7aquí?seguimosé dupla, qua/ldo a
obscuridade das coisasnos perturba; seguimos a razão ou a autoridade." Gabll.eX
Vasquez explica isso(DuspuÉ. ZXZZ c'ap. 3, ]].' Zd.
[15] Vasquez, .Di]spüÉ. ZXZZ cap. 3, n. ' ]a Medina, Z .8 quaesílo /4.

[16] M.início, em Tito Lívio (XX]1, 29, 8), serviu-se dessa ídéia depois de um combate
lníeÀ\z."0 pri3neiro título para a glória é o de tomar para si próprio um bom
partido, segundo a ocasião; o segundo, seguir os sábios conselhos que lias são
dados; aquele, porém, que }lão sabe mandar neil} obedecercai no último grau
da [ capacidade." Cícero disse o mesmo, em seu discurso para .4tz/o C7ué]cuo
LS-t,84Ü\"Dá-se o título de ]lluito sábio ac que pensa por ele mesmo ao que é
necessário e se coloca illlediatameilte junto a eie aquele que se conforma com
as boas idábs de outrem." Sobre isso também esses versos de Hesíodo (C)p, of
pies, 293 e seg\iln\esà."Está à frente de todos os outros aquele que vê por sí
mesmo o que é úti! ou não e que vê de longe tudo o que deve fazer. O segundo
grau compete ao que soube obedecer aos bons conselhos.Aquele, porém, que
não pode ele próprio dar conselhos e não escuta aqueles que es dão aos outros
é um homem que não pode serür para nada.
t\l\ ''gtkoüa, De Indis, reJect. 1, n.' 12, e De Jure Belli, i}.' 2i e 24.
946 H UGO GROTI US

verossímeis ou prováveis, segundoo testemunho deAristóte]es [18] , as


coisas que assim parecem a todos ou ao maior número ou ao menos aos
sábios e, entre essesúltimos, a todos, a vários ou aos mais distintos.
Por esse meio é que costumam julgar sobretudo os reis que não têm a
capacidade de captar ou de examinar por si sós todos os detalhes da
conhecimento humano. "0 comércio dos sábios torna um rei sábio" [19] .
Aristides [20] diz em seu discursoaoshabitantes de Rodei, sobre a
concórdia, que do mesmo modo como nas questões de fato se tem por
verdadeiro o que é certificado pelo maior número de testemunhas e os
mais dignos de fé, assim também entre diferentes opiniões, se deve
seguir aquelas que se apóiam nas mais numerosas e eminentes autori-
dades. Assim é que os antigos romanos não empreendiam guerras sem
ter consultado o colégio dos sacerdotes feciais instituído para esseefeito
e que os imperadores cristãos não as empreendiam sem ter ouvido os
bispos, a ülm de que, se houvesse alguma coisa que pudesse lhes inspi-
rar escrúpulos, não fossem advertidos a respeito.

V. Se houver dúvida de parte e outra em matéria


grave, se for o caso de escolhem'uma saída,
deve-se escolher a mais segura

1. Pode ocorrer, em muitas questõescontroversas, que argumen-


tos prováveis surjam de parte eoutra, sejaintrínsecos, seja tirados da
autoridade dos outros. Quando isso ocorrer, se as coisas de que se trata
são de pouca importância, a escolha, para qualquer parte que seja feita,
parece poder estar isenta de vício. Se se trata de uma coisa de grande
importância, comoa pena capital de um homem, deve-seentão, por

[18] gbplc.(1, 1).


[i9] Au[us Ge[[ius [séc. ]] d.C.], Moelas ,4fÉlbae (X]11, 18)

[20] .Oe Cano.


Y CAPÍTULO Hlll - DAS CAUSAS DUVIDOSAS
947

causa da diferença considerável que há entre as coisassobre as quais se


tem de escolher, preferir o partido mais seguro [21], como se diz
comumente:"li melhor pecar por essedado"[22] . Por isso, é preferível
absolver um culpado que condenar um inocente.

2. O autor de Pzoó7emas que levam o nome de Aristóte]es [23] se


exprime assim: " eKaa'toa Hpov poa,À,ov vct npoeÀot'ro 'tou oc7to\+/Tlq)lacEaOcEL

CoaooKo6tKet,TI tou oc8tKouvToaKa ay?lQ aaaOcttoao6tKet", em cujo texto


se lê popularmente por "ct8tKouvTod', as palavras "Fe czÕtKouvTod' eé o

contrário que deve ocorrer. "Não há ninguém de nós que não goste mais
de absolver alguém, ainda que culpado, do que condenar um inocente.:
E acrescenta a seguir a razão que já demos: "A partir do momento em
que se duvida, deve-seescolher o partido em que se cometa erro menor.'
Antífones [24] diz: "Se é preciso se enganar, é mais honesto perdoar
contra a justiça do que condenar injustamente. Num não há senão um
erro, mas condenar um inocente é crime."

VI. Daí se segue que em caso semelhante


é preciso abster-se da guerra

A guerra é da mais alta importância, comosendoa fonte de onde


decorrem ordinariamente numerosos males, mesmo para os inocentes.
Por isso, quando as opiniões são condivididas, deve-se pender para a

[21] Amiano Marcelino(XXVl11, 1, 40) diz: '%s iras JlllpJacárelk são Soba/de .grande
dureza de caráter; as iras que se deixam apaziguar são marca de grande mobi
cidade de espírito e que essa disposição, como se deve fazer em questão de
coziammás, c/eveser p/eáerlda â dureza de caráfez "Vasquez explica isso na
obra que citamos, cap. 4, n.' 21.
[22] Publius Terentius Ater [185-159 a.C.], ,4de/pôde (174).

[23] Seção29, n.' 13.


[24] Orago .X=rV
948 H UGO Gxoiius

paz. Fabius é elogiadopor Si]ius ]ta]icus [25] por "observar com um


espírito prudente o futuro, não tendo preferências pelo acasoe sendo
avaro em tentar Marte". Há três meios pelos quais se pode evitar que as
controvérsias não ecludam em guerra.

V.[l. Que pode ser evitada por um co]óquio ou diá]ogo


1. 0 primeiro é entrar em contato. Cícero [26] diz: "Como há
duas maneiras de esvaziar uma controvérsia, uma pela discussãoe a
outra pela força, e como aquela é própria do homem e esta dos animais,
não se deve recorrer à segunda senão quando não é possível fazer uso da
primeira." Terêncio [27] diz: "0 sábio deve tentar de tudo antes de re-
correr às armas [28] . Quem sabe se não será feito sem a força?"Apo]ânio
de Rodes [29] disse que "não se deve empregar ]ogo a força, antes de ter
feito tentativas peias pa]avras". E Eurípides [30] : "Obteria isso pe]a
palavra; se não posso, pela mão."A mesma queixa, em .4s .St2pZ7ba/2fes,
sobreos Estados que omitissem essavia: "Vós, cidades,quando poderíeis
evitar muitos males pela palavra, é pela carnificina que de preferência
administrais vossos negócios]" Aqui]es diz em -ZZzgezz/n
para .4tzDdes131] :

[25] Caius Si[ius [ta[icus [séc. ] d.C.], Punfca (1, 679)


[26] Marcus Tu[[ius Cicero]106-43 a.C.], De O#ícízk(1, 2, 34); Vitoria, Z)e Jure .Bei71.
n 28
[27] Pub[ius Terentius Ater [185-159 a.C.], .©unucüus (789)

[28] Dionísio de Halicarnasso(.Excerpía ZegaÉ7bnum)diz que 'hão se deve cüegaJ'a


domar em a/ma4 a/2fes de óa' fenfado a vla raspa/arras': Menelau, em Libânio
ÇDec].lh, àiz. "E mais convenientea um homem empregar primeiramente o
meio das palavras do que correr de imediato para as armas." O (lue o cola a\z,
em .17e/ena(1150 e seguintes) de Eurípides, é uma repreensão: 'ghse/]saéos
aqueles que, perseguindo a glória do valor guerreiro, esperam !oucalne1ltepõr
õ)m pelas armas às divergências dos mortais. Se a coragem não pode se maná
testar senãopelo sanguederramado,a furiosa discórdiajamais abandonaráas
cidades inquietas.
[29] 111,185
[30] ,4s .Sup/lbanfes (347)
[31] Zbá kenla íz] .4u/. (]017 e seguintes)
949
CAPITULO Hlll - DAS CAUSAS DUVIDOSAS

;Sese render a vossos desejos, não tendes mais necessidade de meu


auxílio; há su6lciente salvação somente nisso e teria conservado ao mes-
mo tempo a afeição de um amigo; o exército não terá com que me censu-
rar, se uso a razão antes que a violência." Lemos em .4s Fen.fbznsde
Eurípides [32] : "A palavra triunfa sempre, como faria a espada inimi-
ga...", pensamento que Feneas desenvo]veassim em Tito Lívio [33] :
"Para evitar de chegar à hostilidade, os homensfazem voluntariamen-
te muitas concessõesque não obteriam pe]a força das armas" [34].
Mardânio, em Heródoto [35], recrimina nesseponto os gregos: "Não
deveriam, porquanto falam a mesma língua, se servir de arautos e de
embaixadores para tratar de suas controvérsias, em lugar de recorrer
aos combates?:

2. Corio]ano diz, em Dionísio de Ha]icarnasso [36] : "Se alguém


não cobiça o bem de outrem, mas reclama o que Ihe pertence e se, não o
obtendo, declara a guerra, sua açãoé justa, segundo a opinião de todos.:
No mesmo Dionísio de Ha]icarnasso [37], o rei Tu]]ius diz que "as coisas
com as quais não se pode concordar pelas palavras, se resolvem pelas
armas". Em Tácito [38], Vo]ogésio diz: "Pe]a equidade bem antes que
com o sangue, pelas negociaçõesantes qüe com as armas é que eu quis
primeiramente conservar as conquistas de meus ancestrais." E o rei
Teodorico [39] : "É úti] correr às armas, somente quando a justiça não
pode mais encontrar lugar no espírito de nossosadversários."

[32] ,ás Xenj as (517)

[33] '1\tus Livius [59 a.C.-17 d.C.], .4ó Z:4.BeGond]fa (XXXX 45, 4).
[34] Donato, comentando Z'unucüas(174), diz que 'g uma máxima de fado couÀe
lida que o que se defellde obstinadalnellte quandoa.lguémpretellde arras
cá-!o à força, é concedido de bo11}grado em seguida ao que não pretende to
má-lo com violência
[35] Vl1, 9
[36] Vl11, 8.
[37] 11,ll in cine.
[38] Caius Corne[ius Tacitus [55-120], .4nna]es (XV. 2)
[39] Cassiodoro, Za/:üe(111, 1)
950 H UGO GROTIUS

VIII. Ou por uma arbitragem. Subsiste aí a questão


do dever dos reis cristãos com relação
às partes beligerantes
1. 0 segundo meio, entre aqueles que não têm nenhum juiz co-
mum, é o compromisso [40]. Tucídides [41] diz: "Ê um crime tratar
como inimigo aquele que está pronto a aceitar um árbitro."Assim é que
Adrasto eAníiaraus remeteram a julgamento de Erifiles sua controvér-
sia sobre o reino de Argos, segundo re]ato de Diodoro [42] . Três juízes

[40] Os grandes neg]igenciam gera]mente essa maneira de terminar uma diver-


gBl\c\a.'aex CalLnes\agtus,Sobre a Reunião dos Reinos de Castelã e de Portu-
gaZ Merece, no entanto, ser seguida pelos amigos da justiça e da paz. Foi o que
fizeram grandes.reis e grandes povos, mencionados no texto. Acrescentemos
alguns outros. Árbitros foram chamadospara intermediar a querela entre
Magnus, rei da Noruega, e Canuto, rei da Dinamat'ca, que disputavam entre si
os dois reinosl do mesmo modo que Juliana, vendo que Severo disputava com
ele o império, quis obter um interdito sobre sua posse.Magnus, rei da Suécia,
foi convidado como árbitro entre os dois Ericos. reis da Dinamarca e da No-
ruega. Cinco espartanos, Critolaidas, Amonfareta, Hipsequidas, Anaxilas,
Cleomenes, foram tomados como juízes entre os atenienses e os megarenses,
com relação a Salamina, comoo relata Plutarco, na Hdn de SH7on. Num tratado
entre os lacedemânios e os habitantes de Argos, que se encontra em T:ucídides
3\xro t=\D,à\z-se ({ue "consentem em fazer julgar suas divergências por árbÍ-
íros, segundo o costume de seus antepassados'{ Pouco abaixo, diz-se que 'ge
ocorressealguma divergência entre alguns de seus aliados, eles tomavam por
árbiti'o uma cidade que !hes parecia {mparcia! entre as duas partes". Ambas as
disposiçõesse encontram em Tucídides(livro V). Muitos povos fora do império
romano pediram a Mlarco Antonino que fosse árbitro de suas divergências, a
fim de evitar guerras. Aurelius Victor faz menção delas, bem como outros
autores. Em Procópio (Gofíül'c., 111,34), os tépidas dizem aos longobardos
Estamos prontos a põr fim a nossas querelas,recorrendo a uma arbitragem; é
iníquo usar üolência contra aqueles que queremacatar a decisãode um juiz.
No mesmohistoriador(Goféhc., IV. 24), Teudibaldo,rei dos francos, se declara
disposto a tomar árbitros a respeito de disputas que ele tinha com os romanos.
Ver em Políbio(.Ercerpfa ZegníloJlum, 4) o que outrora os romanos mandaram
dizer a Filipe; segundo o mesmo Políbio, nos mesmos.Excerpfa(35), a cláusula
que se encontra no tratado de Antíoco. O rei da Inglaterra foi chamadocomo
árbitro a respeito da sucessãona Escória; o conde de Holstein, entre o rei da
Dinamarca e seus irmãos, segundo relato de Pontanus(.llihf. .Dan., Vll). Acres-
cente-se exemplosque se encontram em Mariana(livro XXIV. cap. XX; livro
XXIX, cap. XXIII); em Paruta(limo Vll e XI); em Bizarro(livro XID; em Crantzius
(]?lbí. Saxon., livro VI, cap. 15); acrescente-seainda o que diremos no livro lll,
cap. XX, $ Xl;VI
[41]
l 1, 85
[42] Diodoro da Sicília, ]V. 65
951
CAPITULOHlll - DAS CAUSA DUVIDOSAS

lacedemânios foram escolhidos para se pronunciar sobreSalamina, en-


tre os atenienses e os megarenses que a reclamavam. No mesmo
Tucídides [43], que acabamos de citar, os corcirenses fazem saber aos
coríntios que estão prontos a impetrar sua causa por aquelascidades do
Peloponeso sobre as quais existia um acordo. Aristides elogia também
Péricles pelo fato que, para que a guerra fosseevitada, teria querido
"convocar árbitros para terminar com as controvérsias". ]sócrates [44] ,
em seu discurso contra Ctesífon, louva Filipe da Macedânia pelo que
estava pronto a se amparar, por causa de todas as controvérsias que
tinha com os atenienses, "no julgamento de alguma cidade imparcial
entre as duas partes

2. Assim é que outrora os ardeatinos e os arianos [45] e, depois


de[es,osnapo]itanos e os no]anos[46] recorreram para suas divergên-
cias à arbitragem do povo romano. Os samnitas, numa contestação
com os romanos, apelam a seus amigos comuns. Ciro toma por árbitro
entre e]e e o rei da Assíria, o rei das ]ndias [47] . Os cartagineses, em
suas divergências com Masinissa, pedem juízes para evitar a guerra
[48]. Os próprios romanos, em Tito Lívio [49], chamam seus a]iados
comuns na divergência que têm com os samnitas. Flilipe da Macedânia,
em sua controvérsia com os gregos,diz que empregara a arbitragem
dos povos em paz com uma e outra parte [50]. Pompeu deu árbitros

[43] 1, 28
[44] Melhor, Esquines, Adversas OfeszbbonÉem(83)
[45] Titus Livius [59 a.C.-17d.C.], .4ó Z]ã.Ée
C2)mdl'fa
(111,71)
[46] Marcus Tu[[ius Cicero [106-43a.C.], Z)e O#icúk (], ]O, 33)
[47] Xenofonte, ala'opaedlb(11, 4, 8).

[48] Titus Livius [59 a.C.-17d.C.], .4ó [ã.óe Conc#óa


(XL 17).
[49] Idem, .4ó Z:ã.Ée aon(#fa(v]11, 23)

[50] Idem, ..4ó Z:ü.óe aondlfa(XXX]], ]O, 5)


952 H UGO Gnoíius

para regular suas â'onteiras aos partas e aos armênios que os estavam
pedindo [51]. P]utarco [52] diz que a principa] tarefa dos sacerdotes
feciais romanos havia sido "de não permitir de chegar à guerra, antes
que fosse extinta toda esperançade obter uma arbitragem". Estrabão
[53] diz a respeito dos druidas dos gau]eses: "Outrora eram árbitros,
mesmo entre os beligerantes, e muitos vezes separaram os combaten-
tes que avançavam uns contra os outros". O mesmo atesta que os sa'
cerdotes cumpriam a mesma tarefa na ]béria [54] .

3. Os reis e os Estados cristãos são obrigados sobretudo a entrar


nessa via para evitar o emprego das armas [55]. Se, para evitar ser
ju[gados por juízes estranhos à verdadeira re]igião [56] , certos árbitros
foram constituídos pelosjudeus e pelos cristãos e se isso foi prescrito
por Paulo, quanto mais se devefazer para evitar um mal muito mais
considerável, ou seja, a guerra?Assim é que Tertuliano, sustentando
que o cristão não deveempunhar armas, argumenta em algum lugar a
respeito de que sequer Ihe é permitido questionar, o que no entanto,
segundo o que dissemos alhures (limo 1,cap. 11,$ 1X, 4), deve ser enten-
dido com certa reserva.

4. Tanto para essa causa como para outras, seria útil, seria mes-
mo de a]gum modo necessário [57] que haja certas assemb]éiasdas
potências cristãs, onde as divergências de umas seriam eliminadas por

[51] Plutarco, Poi22pea(637 C)

[52] Idem, .NÜJna(68 A).


[53] iV 4, 4
[54] Estrabão, X], 3, 6
[55] Gregoras(X, 4) diz, fa]andodo bú]garo A]exandre: '2\go á convenJeníea cz:ü'
mãosde guerrearem uns contra os outros encarniçadamente, quando possuem
os meios de chegar a um entendimento e que podem voltar suas forças em
comum contra os ímpios.
[56] Vitoria, De Jure .Be/Ün.' 28.
[57] Molha, 22íspuf. J(24 j ua/2doihéeB Aegid. Reg., Z)eacém'bits
supera., Dusp-J.Z,
dub. 4.n.' 72.
T CAPITULO RELI - DAS CAUSAS DUVIDOSAS
953

aquelas que não teriam interesse no negócio e onde até medidas pode-
riam ser tomadas para forçar as partes a firmar a paz em condições
justas [58] . Diodoro e Estrabão nos ensinam que ta] havia sido também
outrora o uso dos druidas entre os gau]eses [59] . Lemos também que os
reis francos deixaram aos grandes de seu Estado o julgamento sobre a
divisão do reino.

IX. Ou mesmo pelo acaso


O terceiro meio [60] é a via da sorte [61]. Dion Crisóstomo [62]
recomenda esse expediente na segunda de suas conversações".Zn
ZoJ«furtam"e, bem antes dele, Salomão no livro dos .l)rovéró/os
XVl11,18.

X. Se o combate individual pode


ser permitido para evitar a guerra
1. 0 combate individual é alguma coisa que se aproxima da sorte
e parece que seu uso não deva em absoluto ser rejeitado, se dois adver
vários, cujas contendas arrastariam de outra forma povos inteiros a
infortúnios consideráveis [63] estão dispostos a reso]ver entre si sua

[58] Ver um exemp]oem Cassiodoro(]ivro ]]], Ed)]b&1, 2, 3, 4) e em Gai]]ius (Z)e


.FacePuÓ#ca,
11,18, 12)
[59] Os bispos ocuparam, nesse assunto, o ]ugar dos druidas e com um c]ireito melhor
fundado. Ver a carta dos bispos ao rei Luís, nas Capitulares de Carlos o Calvo e:
com re]ação aos bispos da Espanta, Roderico de ']b]edo(livro Vll, cap. 3)
[60] 'R)más, -ZZ].g quais ü Põ] arf. 8 e sobre isso também Cajetàn
[61] Ver Agostinho, .Oe .Doc/27ha CZ/:üflana(1, 28).
[62] OraÉlb ZX7r
[63] O autor da tragédia de Zeba]da(Eurípides, Hs -ó'enibz'as,
564) diz: '%edequem va/
$er rei de vós dois, mas cuidamem não destruir o reino." B\on, em Vida de Otão,
ài$ "Mluíto mais conveniente e justo é que uma só pessoa mereça por todos que
um grande número por um só.
954 H UGO GROTIUS

divergência pe[as armas, como fizeram outrora Hy]]us e Echemus [64]


a propósito do Pe]oponeso, Hyperochsu e Phemius [65], a respeito da
região vizinho de Inachus, o etólio Pyrechme e o epeense Degmenus
[66] , a respeito de E]ide, C]orbis e Orsua a respeito de ]ba [67] . Parece,
de fato, que embora isso não seja elogiável da parte dos próprios adver-
sários, os Estados ao menos possam aceitar essepartido como sendo um
ma[ menor. Em Tiro Lívio [68], Menus se dirige assim a Tu]]us: "En-
contremos algum meio de decidir qual deve comandar essesdois povos,
sem que [hes custe muito sangue e carnificina." Estrabão [69] diz que
isso havia sido um antigo costume dos gregos e em Virgí]io [70], Enéias
diz que teria sido justo que entre ele e Turnus as coisas tivessem termi-
nado dessa maneira.

2. Agatias, em seu livro l, louva de fato muito esseuso entre os


outros costumes dos antigos francos [71] . Reproduzo seus próprios ter-
mos porque são notáveis: "Se por acaso se levantam algumas divergên-
cias entre seus reis, não põem todos, na verdade, em campanha, como
para se bater e resolver a contenda pelas armas, avançando uns contra
os outros. Desde, porém, que as armas se encontram em presença umas
das outras, despindo-se de sua ira, retornam à concórdia e persuadem

[64] Heródoto, PoZrlnn.(]X, 26).


[65] Plutarco, é?aaesf. Grnec.(297 B)

[66] Estrabão, V]11, 3, 33


[67] Titus Livius [59 a.C.-17 d.C.], .4ó CZz.óe
C0 2c#fa(XXV]11, 21, 6)

[68] Idem, .4b Z:&.óeaon(#fa(1, 23, 9)


[69] Local citado(ver nota 66).
[70] Pub[ius Vergi[ius Maro [71-19 a.C.], Ene/da (X], 115); 'ferva focado antes a
7brnus enárenfzi' a morte. " Pela mesma razão, Antânio provocava Otávio para
um combate singular(Plutarco, Hda de.4nfónio, 944 E).
[71] Ver a capitu]ar de Car]os o Ca]vo feita em Saint-Arnou]f e o tratado de Aix-]a-
Chapelle.A mesma eqüidade reinava entre os longobardos.Ver Paulo Warnefrid,
/?Jsfar7bZangoóardapum(1, 12; IV. 17; V. 40)
CAPITULOHall - DAS CAUSAS DUVIDOSAS
955

seusreis a resolver suas diferenças de preferência pelas vias da justiça


ou, se não o quiserem, de combater eles próprios entre eles em combate
individual e terminar o negócio com seus próprios riscos e perigos, pen'
sande que não seria justo e bom ou que não conviria às instituições da
pátria abalar ou fazer desmoronar a prosperidade pública por causa de
ressentimentos particulares. Logo, pois, dispersam seus exércitos e,
com a paz restabelecida, passam em segurança uns junto aos outros,
tendo desaparecido as causas dos infortúnios com as quais se haviam
ameaçado. Tão grandes são nos súditos o cuidado da justiça e o amor à
pátria quão grandes são nos reis o espírito de doçura e de condescendên-
cia para seus povosl?"

XI. Numa dúvida igual de parte e outra,


a condição do possuidor é a melhor

Embora em causa duvidosa as duas partes sejam igualmente


obrigadas a procurar os meios para evitar a guerra, aquele contudo que
pede é obrigado com maior razão do que aque]e que possui]72]. Que
numa causa igual a condição daquele que possui seja melhor é um
princípio que convémnão somenteao direito civil, mas ainda ao direito
natural [73]. Demos, em outro ]oca] (livro 11, cap. V. $ XVIII), a razão,
extraída dos Pzoó/e nas ditos deAristóteles. Aisso se deve ainda acres-
centar que a guerra não pode ser licitamente feita por aquele que tem
consciência da justiça de sua causa, mas que não possui títulos sufi-
cientes para convencer o possuidor da injustiça de sua posse,porque
não tem o direito de forçar o outro a se desfazer da posse.

[72] Ver Herrera, tomo ]]


teSA1,. 128, in paú, Díg., De reg. jur.\ V\toda, De Jure Be11i,n.' 27e 30, 1nsüus, De
Justítia, cap.29, dub. la, )xoxxna,Disp. 103, $1n segundo vero,LArGa,li, 2, seca.
3, disp. 53,n.'4.
956 H U GO GROTI US

XII. Se um e outro náo têm posse,


numa dúvida igual, a coisa deve ser repartida
Quando o direito é duvidoso de parte e outra e nenhuma das
partes tem posse ou possuem ambas de modo igual, deve ser considera-
da injusta aquela que recusa a partilha que Ihe é oferecida da coisa
contestada [74].

XIII. Explica-se por várias distinções, se pode


haver uma guerra justa de parte e de outra
1. Pol' aquilo que dissemos pode-se resolver essa questão que vá-
rios suscitaram, de saber se a guerra, com relação aos que são os prin-
cipais autores, pode serjusta de ambos os ]ados [75] . Deve-sedistinguir,
de fato, as acepçõesvariadas da pa]avra justo [76]. Uma coisa é dita
justa com relação à sua causa ou com relação a seus efeitos. Com rela-
ção à sua causa, dando à palavra justiça uma acepçãoespecial ou dan-
do-lhe essa acepção geral pela qual se designa toda espécie de retidão. A
acepção especial se divide de novo naquela que diz respeito à ação e
naquela que diz respeito ao agente, pois se diz às vezes do próprio agen-
te que age justamente, todas as vezes que não age injustamente, mes-
mo que aquilo que faz não seja justo, segundo a distinção que faz judi-
ciosamente Aristóteles [77] entre "agir injustamente e fazer o que é
injusto'

tn4à barca, 11,2, quaestio 40, disp. 53, $a\n, YDelnstít. Jur. 41, art. 7.
[75] Covarruvias, in cap. /bccafum, f 7q n. ' 6; A]ciat, /brados., .g .2.7;1i'u]gos.,Z)e
Jusf., E Piccolom., /luto l/Z Clw7. ,FIZz/a,cap. .gJ; Alberico Gentili, alvo .C cap. 6.

[76]Assim é que Graciano((baga .XZ]quaesí7b.ZZZ]


rosé a Eplbcopus,dO distingue
entre uma sentença justa em sua causa,justa com relação ao outro e justa em
consciencia.
[77] .ética a .Mbó/naco(V. ]O) e .EeÉór7ca(1, 13)
CAPÍTULO Hall - DAS CAUSA DUVIDOSAS
957

2. Do ponto de vista da acepção especial e relacionada à própria


coisa, a guerra não pode ser justa dos dois lados, tampouco num proces'
se, porque uma faculdade moral concernente dois contrários, como por
exemplo, fazer e impedir de fazer não é dada pela própria natureza da
coisa [78] . Pode muito bem ocorrer que a]gum dosbeligerantes não age
injustamente, pois ninguém age injustamente, a menos que saiba que
comete uma coisa injusta; ora, muitos o ignoram. Assim é que se pode
impetrar justamente departe e outra, isto é,de boa-fé.Muitas coisas,
de fato, tanto no direito quanto no fato de ondesurge o direito escapam
ordinariamente aos homens .

3. Na acepçãogeral chama-se habitualmente justo o que é des-


provido de toda culpa da parte do agente. Muitas coisassefazem sem
direito e sem culpa alguma, por causa de uma ignorância inevitável.
Há um exemplo disso na pessoa daqueles que não observam uma lei de
que ignoram a existência, sem que haja culpa de sua parte, depois que
essa mesma lei foi promulgada e que um intervalo de tempo suficiente
para conhecê-la decorreu. Assim é que pode ocorrer também no proces'
se que uma e outra parte não somente estejam isentas de injustiça,
mas o estejam ainda de todo outro vício, sobretudo quando uma e outra
partes ou uma das duas o jogue, não em seu nome, mas em nome de
outrem, por exemplo, na qualidade de tutor, a quem convém não aban-
donar um direito, por incerto que seja.Assim Aristóte]es [79] diz que
nos processosem que se contesta um ponto de direito, nenhum dos dois
adversários é desonesto,o que ele exprime pela palavra "mau"
Quintiliano [80], em acordocome]e, diz que pode ocorrer que um

[78]Agostinho,De Clüfafe Z)e/(XV.5; X]X, 15);Covarruvias,


c'ap.Pec'c'atum,
/ /O,
n. '.a Vitoria, n. ' 32 Suarez, Z)e ZegTbus(111, 18); Alfonso de Castra, .De poíesÉ.
/eF. Faena/. (l, l e 3).
[79] .RefÓÜc;a
(111,17)
[80] Marcus Fabius Quinti[ianus [séc.] d.C.], De ]nsfJfuúono (2mfar7a(11,1.7,31).
958 H UGO GROTI US

orador, isto é, um homem de bem, impetre indiferentemente o pró e o


contra. Mais, Aristóte]es [81] aülrma que se pode dizer, num dup]o sen-
tido, que um juiz faz um julgamento justo, pois isso significa que julga
precisamente como se deve, sem nenhuma ignorância ou segundo a
opinião de seu espírito. E e]e diz em outro ]oca] [82] : "Se a]guém ju]gou
por ignorância, não agiu injustamente.

4. Quando, porém, se trata da guerra, é bem di8cil que a temeri-


dade e a falta de caridade não tenham alguma parte por causa da gra-
vidade da própria empresa que é de modo absoluto tal que, não contente
por causas prováveis, requer obviamente causas evidentes.

5. De resto, se entendermos a palavralusÉo com relação a certos


efeitos de direito, é certo que nesse sentido a guerra pode ser justa de
parte e de outra, como pareceria pelo que diremos mais a seguir (livro
111,cap. 111)sobre a guerra pública solene. Assim é que, de fato, uma
sentença não tomada de acordo com o direito e uma posse sem direito
têm certos efeitos de direito.

[81] gbPJa.(1, 13)


[82] .Óllba a N)cámaco (V, 12)
XXlv

ADMOESIAÇOES LURA
NAOEMPREENDER
TEMERARIAMENTE
UAM GUERRA.MESMO
POR JUSTAS CAUSAS

Sumário

r. Muitas vezesse deve moderar seu díreitopara evitar a guerra.

11. Principalmente o direito que se refere às penas

111.Sobretudo porparte de um reilesado.


IVlüuitas vezes se deve renunciar à guerra, mesmo por solici-
tude de si e dos seus.

V Regras de prudência relativas à escolha dos bens.


VI. Exemplo tirado de uma deliberaçãoentre o desejoda liber-
dade e o da pazpela qualpode ser evitada a destruição de
um povo.
VII. Aquele que não émuito mais forte deve se abster de exigir
punições.
VIII. A guerra não deve ser empreendida, se não hou verneces-
sidade.

IX. Oupor umacausamuitoimportante comuma ocasiãomui


tofavoráve].
X. Mlales das guerras postos diante dos olhos.
961
CAPÍTULOHIV - ADMOESTAÇÕESPARANÃO EMPREENDER
TEMERARIAMEME UMA GUERRA MESMO PORLUSAS CAUSAS

1. Muitas vezes se deve moderar


seu direito para evitara guerra
1. Embora pareça que não seja propriamente relacionado a essa
obra que tem por título o Dêle/Éo da Guen'a, desenvolver o que as ou-
tras virtudes prescrevemou aconselhamcomrelação à guerra, deve-se
contudo, de modo rápido, prevenir um erro, a nlm de que não se imagine
que, desde que o direito foi suÊlcientemente estabelecido, se deva logo ou
se possa mesmo sempre empreender a guerra. Ocorre, ao contrário, e
de fato que na maioria das vezes, é mais honesto e mais conforme à
regra abrandar seu direito, pois foi dito antes, em seudevidolugarl que
o cuidado mesmo de nossa vida pode ser honestamente abandonado pelo
interesse, enquanto estiver em nós, da vida e da salvação eterna do
outro [1] . ]sso convém sobretudo aos cristãos que, nisso, imitam o exem-

plo tão perfeito de Cristo que quis morrer por nós, ímpios e inimigos que
éramos ainda. Isso mesmo nos compromete bem mais a não perseguir o
que toca a nós ou o que nos é devido, atraindo sobre os outros, males tão
consideráveis como aqueles que as guerras trazem consigo.

2. Aristóte]es e Po]íbio [2] nos advertem que a guerra não deve


ser empreendida por uma causa qua]quer [3]. Hércu]es não foi e]ogiado
pelos antigos por ter feito a guerra a Laomedon e a Augias porque não

11] Vitoria, .De Jure -BeZÜ n.' 14 e 33


[2] Políbio, ]ivro ]V. 31, e AI'istÓte]es, J?Zef. ad.4/ex.(3).
[3] Sêneca, em Suasor7ae(V. 8), diz: 'GáZlodisse que a gue/va dada ser einp2'ee/z'
dadapara defender sua !iberdade, sua esposa,seus alhos, mas não para coisas
zbúíeis e das qua ) não decora rla anão ,a/gum."Apolânio, em Filostrato( HÉa
,4po/7. gl)'an., 1, 38), disse algo mais ao rei da Babilânia. Acrescentou que 'hão í?ra
preciso disputar com os romanos em razão de alguns vilardos insigniâcantes
que, por vezes, alguns privados possuem até maiores que esses,e que não se
devia mesmo chegar à guerra por coisas mais importallees." 3oseío (Adversas
Hpp/0/7em, 11, 37), falando de seus compatriotas, diz: 'Não fazem uso de sua
força para se engrandecer,!nas para manter suasleis; sofrem pacientelnezlte
qualquer outro dano, mas quando se quer forçar a abandonar as !eis, e1ltão
partimos para a guerra, mesmoalém de nossasforças, e a sustentamosaté o
fim
962 H UGO GROTIOS

[he haviam pago o sa]ário de seu traba]ho [4] . Em seu discurso sobre a
guerra e sobrea paz,Dion de Prousa [5] diz que não se devebuscar
somente "se uma ofensa foi recebida da parte daqueles aos quais se
trata de fazer a guerra", mas também "de que conseqüência é o aci-
dente"

11.Principalmente o direito que se refere às penas


1. Há muitas razões que nos impelem a deixar de lado as puni-
ções. Consideremos quantas coisas os pais dissimulam a seus filhos.
Há sobre esseponto uma dissertação de Cícero em Dion Cássio [6].
Sêneca [7] diz: "0 pai, a menos que os erros graves e repetidos não
tenham vencido sua paciência, a menos que não encontre faltas maio-
res que aquelas que ele pune, se recusará a aprovar a prisão fatal."As
pa[avras de Finéias, re]atadas por Diodoro da Sicí]ia [8], não diferem

[4] Pausânias, V. 2
IS] Dion Crisóstomo,Oraf70mZZ
[6] Dion Cássio [155?-235?], ]?JsfÓrva Boina ]a (XL]V. 32)

[7] Z)e (2e nenfla(1, 14).Augusto,tomandoassentojunto a um pai num tribuna] de


família e tendo de julgar um filho surpreendido em flagrante delito de parricídio,
diz: "Qae o á7%os(:/b exí/ado onde o pal qu;bez "Não votou nem pelo suplício do
sacocom serpentes,nem pela prisão, pensandonão sobrea sorte de quem
deveria se pronunciar, mas no conselho em que tomava assento. Ele diz: 'Um
paJ devervb se co] éen#ar co n a pe ]a ma k órandn. "Essas palavras são de Sêneca,
no mesmo livro, cap. 15. Terêncio, em .4JJdda(903), escreve: 'Paz'a uma grande
falta, basta para um paí uma pequena punição."Fqon ÇDeNob iítate, aà à\z. "Os
pais pronunciam as tristes palavras da deserdaçãoe expulsaln seus âihos de
sua casa e de sua família, somente no caso eln que a perversidade dessesâllhos
triunfou sobre esseamor i:censo e que ultrapassa fadas as coisas que a nature-
za co/ecoano coJ'anãodos pais. " Em seu discurso em favor de Ligário(.Fb'o
Ligaria, \ç), 3nb,Ctcexoà\z. "Perdoai-o,juízes! Ele cometeuuma falta, ele su-
cumbiu, eie não se deu conta. Se isso jamais !he tivesse acontecidolAssim é que
se desculpa junto a um pai.

[8] iM 44
T CAPITULOHIV ADMOESAÇÕES PARANÃO EMPREENDERTEMERARIAMEWEUMA GUERRA F4ESMOPORIUSTAS CAUSAS
963

muito disso:"Um pai não se determinaria a punir seusfilhos, se pela


enormidade de suas faltas não tivessem feito calar a ternura natural
que os pais têm por seus 61hos." E as palavras de Andrânico de Rodei
[9] : "Um pai não deserda jamais seu 6i]ho, se ele não Ihe dá motivo pelo
excesso de sua má vida."

2. Quem quer que queira punir outra pessoa assume de algum


modo o pape] de um mestre, isto é, de um pai]]O] . Isso é o que Agosti-
nho [11] tem em vista, quandose dirige ao condeMarcelino, dizendo:
"Cumpre, juiz cristão, o dever de um bom pai." O imperador Juliana
[12] e]ogia a máxima de Pittacus "que preferia o perdão ao castigo". Em
seu discurso sobre a sedição de Antioquia, Libânio diz que aquele que
quer se assemelhar a Deus "deve ter mais prazer em perdoar do que em
punir

3. Há vezes em que as circunstâncias das coisas são tais que não


somente é louvável se abster de seu direito, mas que é também uma
obrigação [13], em razão dessa afeição que devemos aos homens, mes

[9] ParaPÀr.(V]11,18)
[10] Soneca(.6pikfuJa 88, 38) diz: 'Z c/e/nénc/a/eHa poupar o sa/7guedos outros,
cornose fosse o próprio. Ela sabe que o hoine)n não deve abusar do homem
Segundo Diodoro da Sicília(.f$zg7ne/zfa, XXI, 16). 'hâo se deF'epun»' sei72pre
!odes os culpados, !nas some11teaqueles que 1lão se arrependem de seus maus
alas'l João Crisóstomo(De -SfafuJ's,VI, 3) diz: "Que todos agua/es gue são
estranhos à nossa íé aprendam que o respeito que devemosa Crista é tão
grande que se impõe a todo e qualquer poder. Honra teu amc, perdoa teus
companheiros de escravidão, a âim de que eie !neslno te honre mais ainda e
que, no dia do juiga]nento, te mostre u]]] semblallte sereno e clelneJlte,!eJn-
óra ldo-se de faa ÓI'a/?duJ«a.
" Graciano cita a passagem seguinte, extraída de
fugas\ãxüio,ep11Causa XXlll, quaestio 4 "Essas duas classi8caçõesde que nos
serümas, homem e pecador,31ãosão empregadas em vão porque, se é pecador,
puJ?o'o,se Ó áo nem, Íem compaJ]ão de/e.r"Vertambém o que se segue e o que
dissemosno cap. XX, $ Xll, XXVI e XXXVI.
[11] @71kfu/a (;XXXZZ71 2.
[12] Orava IZ

[13] Mo[ina, H'acfaf. /Z .De JusíJf., d]sp. ]03 Louca, D]kp. /51, /]. '/]; Aegid. Reg., Z)e
actibus supern, dísput. 31, dub. 7, n.' 107.
964 H UGO GROTlus

mo a nossos inimigos, seja que se a considere em si mesma, seja en-


quanto que a santa lei do Evangelho o exija. Assim, dissemos que há
certos indivíduos para cuja salvação, mesmo que eles nos atacassem,
deveríamos desejar a morte porque sabemos que eles são necessários ou
muito úteis à comunidadehumana. Se Cristo quer que certas coisas
sejam sacrificadas para que não haja matéria para o processo, deve-se
crer com maior razão que ele quis que se renunciasse a coisas mais
consideráveis, a 6im de que não se recorra à guerra que é infinitamente
mais prejudicial que um processo.

4. Ambrósio [14] diz: "Um homem de bem ameniza a]guma coisa


de seu direito, fazendo isso não somente por liberalidade, mas na maio-
ria das vezes mesmo por um ato que volve em sua vantagem". Aristides
aconselha aos Estados "fazer concessões e usar liberalidade se se trata
de uma coisa de pouca importância". Acrescenta a razão: "Louvais en-
tre os homens privados aqueles que são de caráter fácil e que preferem
sofrer algum prejuízo do que reclamar." Xenofonte diz em sua -/ZJk6ór:za

(b'epa [15] : "Pertence aos sábios não empreender a guerra, mesmo por
causas graves." Em Fi]óstrato [16] ,Apo]ânio diz que "mesmo por pode:
rogos motivos, não se deve recorrer à guerra'

llt. Sobretudo por parte de um rei lesado

1. Arespeito das penas, é primeiramente de nosso dever, senão


como homens, ao menos como cristãos]17], perdoar de modo fácil e de
boa vontade o que foi cometido contra nós, do mesmo modo que Deus

[141Ambrósio [340?-397],Z)e (2#]aízkMJJ]kÉro/'uJn(11,21, 106).


[15] H])f. Graec. (V], 3, 5).
[16] Hfa Hpo//onb' &aJlnens7k(1, 38).
[17] Teodósiofoi levado sobretudoa perdoar os habitantes de Antioquia o crime
cometido contra ele pelas palavras de Crista que o bispo Flaviano Ihe citou
':]4eu paul pel'daa pol'que não saóein o que Xzzem." Jogo Crisóstomo narra o
fato em De Sfafu2k (XXI, 4)
965
CAPÍTULOHIV- ADMOEgAÇÕES PARANÃO EMPREENDER
TEMERARIAMEmE UMA GUERRA,MESMO POR JUSTASCAUSAS

nos perdoa em Jesus Cristo. Ser isento de cólera contra os crimes em


razão dos quais os culpados são submetidos à pena de morte é, diz Josefo
[18], "seaproximar da natureza divina"

2. Sêneca [19] diz do príncipe: "Que seja mais moderado em sua


causa que naquela dos outros. Como, de fato, a generosidade consiste
não em mostrar-se liberal com o bem de outrem, mas em dar o que se
tira de si mesmo, assim também chamo demente não o homem que
tira proveito dos danos dos outros, mas aquele que, impelido pelos pró-
prios, não salta sob o aguilhão, que compreendeu que é das grandes
almas sofrer as injúrias no topo do poder e que nada é mais digno de
g[ória que um príncipe que ofendemos e que não pune"]20] . Quinti]iano
[21] diz: "Aconse]haríamos a um príncipe a ambicionar antes a g]ória
de ser homem que a ganância da vingança." Cícero [22] co]ocouem
primeiro lugar elogios que confere a C. César que nada esquecia a não
ser as injúrias. Lívia, em sua alocuçãoaAugusto, que seencontra em
Dion [23], diz que "o sentimento da maioria é que os chefes de Estado
não devem punir senão os crimes cometidos contra o bem público, mas
que, com relação aos que se dirigem contra eles mesmos, devem
dissimu[á-]os". Antonino o filósofo [24] diz em seu discurso ao senado

[18] ,4J]Ékü/Jades Judaicas(11, 6, 8).


[19] Lucius Annaeus Seneca[01? a.C.-65d.C.], Z)e C7ene/]úa (1, 20).
[20] Jogo Crisóstomo, no e]ogio da clemência(.De ]]aaiJsuefudlhe,in mne), diz: 'Z7a
é o anais belo orllamenta de qualquer homem, mas sobretudo daqueles que
estão no mais alto escaiãa do poder, pois, como o poder real permite tudo,
controlar-se e tomar por guia das próprias anões a iei divina é o mais belo título
para a repuéaçâo e a gfãrib."Agostinho diz, em sua carta 199 ao conde Bonifácio
;Lembra-te de perdoar !ogo,se alguém te ofendeu e te pediu perdão.
[21] M[arcusFabius Quinti[ianus[séc. ] d.C.], Z)e ]nsóóuÉlone(2rafaz:ü(V] 13, 6)
[22] Marcus Tu[[ius Cicero [106-43 a.C.], .Fbo é?Ninfa Z ]gar7'0 (12, 35)
[23] Dion Cássio [155?-235?], J?lbfáüa .Romana (L\( 19)
[24] Em Vulcatius Gallicanus, Héa .4w(iH Cnss/dl (12)
966 H U GO GROTIUS

que "a vingança de uma ofensa pessoal não agrada jamais num impera-
dor e mesmo quando fosse mais justa, pareceria ainda mais rigorosa'
Ambrósio [25] diz, em sua carta a Teodósio:"Tu fizeste aoshabitantes
de Antioquia o sacrifício da injúria que te haviam feito." No elogio do
mesmo Teodósio, Temístio [26] diz ao senado que "um bom rei deve ser
superior aosque setornaram culpadosde uma falta contra ele, não os
prejudicando por sua vez, mas fazendo-lhes o bem'

3. Qua] é o homem magnânimo? Aristóte]es [27] nega que seja


aquece que se ]embra das injúrias, o que Cícero [28] exprime dessa
forma: "Nada é mais digno de um homem grande e ilustre que a facili-
dade de se deixar dobrar e a clemência." As Escrituras sagradas nos
fornecem exemplos notáveis dessa eminente virtude em Mloisés (Núme-
ros XI, 12) e em Davi(ll Samuel XVI, 7). Isso tem lugar sobretudo
quando temos nós mesmos a consciência de alguma culpa ou que a falta
cometida contra nós procedede alguma fraqueza humana e escusável
ou quando parece su6cientemente que aquele que prejudicou se arre-
pende [29] . Cícero [30] diz: "Há um ]imite na vingança e na punição e
não sei se não seria suficiente que o agressor se arrependa de sua ofen-
sa" [31]. Sêneca [32] diz: "0 sábio perdoa muitas coisas; e]e sa]vará
muitas almas doentes,mas que não são incuráveis." Estas são,para
nos levar a nos abster da guerra, as razões que nascem da caridade que
devemos ter ou que faríamos bem em exercer para com nossos próprios
inimigos.
IZÕ] .qplbftz/a -XZ, (32).

[26] 0m ÉÓ XZX

[2V] .éf/ca a NI'aÓ/naco(]V, 8)

[28] Marcus Tu[[ius Cicero [106-43a.C.], De O/#aízk(1, 25, 88)


[29] Dried., .De Zdberf. 6hrlkÉ.(11, 6).

[30] Marcus Tu[[ius Cicero [106-43a.C.], De OHcíü (1, 11, 34).


[31] Procópio(banda/I'c., 11, 16) diz que 'bm arrependTmenfo u7hdo a tempo /eva as
pessoas ofendidas a perdoar os autores da ofensa
[32] Lucius Annaeus Seneca[01?a.C.-65d.C.], Z)e (;7einenflb(11,7, 4)
CAPÍTULOHIV - ADMOEgAÇÕES PARA NÃO EMPREENDER
TEMERARIAMENTEUMA GUERRA MESMO PORJUSTASCAUSAS
967

IV Muitas vezes se deve renunciar à guerra,


mesmo por solicitude de si e dos seus

1. Muitas vezes é em nosso próprio interesse e naquele dos nossos


[33] que devemos fazer de modoa não pegar em armas. Plutarco diz, na
Hdn de Numa [34] , que depois que os sacerdotes feciais haviam decidi-
do que a guerra podia ser justamente empreendida, se consultava o
senado para saber se era conveniente empreendê-]a [35]. Fa]a-se em
certa parábola de Cristo (-LacasXIV 31) de um rei que, tendo que se
empenhar em campanha para combater outro rei, senta-se antes, como
fazem aqueles que deliberam com cuidado, para examinar ele mesmo
se com dez mil homens que possui poderá fazer 6'ente a seu inimigo que
tem o dobro e que, vendo a desigualdade de forças, envia ao rei, antes
que entre em seuterritório, uma embaixada para tratar da paz.

2. Foi assim que os tuscu]anos [36] mereceram a paz com os


romanos, suportando tudo e não recusando nada [37]. Há em Tácito
[38] : "Procurou-se em vão um pretexto de guerra com os éduos; obriga-
dosa entregar dinheiro e armas, eles entregaram gratuitamente tam-
bém víveres." Assim é que a rainha Amaza]onte [39] declarou aos em
baixadores de Justianiano que ela não queria combater com as armas.

133]Procópio (Gaffüz'c.,11, 6) diz que os godostinham falado assim a Belisário


Estando assim as coisas, o dever dos chefes de uma e outra das nações é de
não sacrificar à sua própria glória a co1lservaçãode seus súditos, mas de prefe-
rir o que éjusto e Útil, 31ãosoineJ3te
para eles,!nas também para seusinimigos.
[34] .Numa (68 B)

[35] Em Tucídides(111, 44), Diodoro diz: ':]áes no que eu /'econáecessefoda a exfe/l


são de sua culpa, não os levaria à !norte por isso, salvo que isso fosse útil."
[36] Ver Plutarco, Wda de Gaml7o(149).
[37] Titus Livius [59 a.C.-17 d.C.], ,4ó Z:ã.Ée OondyÉa (V], 26). Um rei dos armênios
fez a mesma coisa na época de Severo. Herodiano faz menção disso(livro 111,9,
2)
[38] Caius Corne[ius Tacitus [55-120],HJbfar7be (1, 64)
[39] Ver Procópio,Uandaih.(11,5) e Gafíü/c. (1, 3).
968 H UGO Gxoíius

3. Pode-setambém usar de convicção,como Estrabão [40]


relembra que isso foi feito por Syrmus, rei dostribalienses, que impe-
diu Alexandre o Grande de entrar na ilha de Peucen e ao mesmo tempo
Ihe rendeu homenagem com presentes para mostrar que o que fazia
estava inspirado num temor legítimo e em nada por ódio ou desprezo
por sua pessoa.Podeser aplicado a qualquer outro povo o que Eurípides
[41] disse dascidadesgregas:"Quando um Estado de]ibera sobrea guerra,
ninguém sonhemais em sua própria morte, mas cadaum afaste a
infelicidade do outro, porque, se se tivesse diante dos olhos a morte
depositando seu sufrágio, jamais o furor da guerra teria arruinado a
Grécia." Em Tiro Lívio [42] se encontra o seguinte: "Se pensais em
vossas forças, não esqueçais tão pouco da inconstância da sorte e as
chances das bata[has." Em Tucídides [43] se pode ]er: "Antes de vos
empenhar na guerra, pensai na enormidade de decepçõesque ela traz.

V. Regras de prudência relativas à escolha dos bens

1.Aqueles que deliberam o fazem em parte sobre os fins (não na


verdade sobreosâns últimos, massobreosfins subordinados),em par
te sobre os meios que conduzem a eles.O Himé sempre algum bem ou ao
menos o afastamento de um mal, o que pode estar em lugar de um bem.
Quanto aos meios que conduzem aqui ou acolá não são procurados por
si mesmos, mas enquanto conduzem ao fim. Por isso é que, nas delibe-
rações, se deve comparar os fins entre si e a virtude efetiva que os meios
possuempara conduzir a essesfins. Comobem disse Aristóte]es [44],

[40] Vl1, 3, 8.
[41] .4s Sup/Tcanfes(481 e seguintes).
[42] Ttitus Livius. [59 a.C.-17 d.C.], ,4ó Z:/rZ)eGonc#fa (XXX, 30, 30)
[43] 1, 78. '
[44] .De .4nÚna#tzm ]]ZoÜonc?(7)
T 969
CAPÍTULO mlV - ADMOEgAÇÕES PARA NÃO EMPREENDER TEMEMRIAMEmE UMA GUERRA MESMO POR JUSTAS CAUSAS

"as proposições que ocorrem em alguma ação são de duas espécies:umas


relativas ao que é bom e as outras ao que é possível". Essa comparação
tem três regras.

2. A primeira é que, se a coisa de que ée trata parece, a julgar


moralmente, ter uma disposiçãoigual a produzir obem e o mal, não se
deve se deter a não ser enquanto o bem que se espera contém razoavel-
mente mais bem e que o ma] não contém ma]. ]sso é o que Aristides [45]
assim enuncia: "Quando o bem é menor que o mal, é melhor abando-
na-]o." Andrânico de Rodes [46] , descrevendo o homem magnânimo, diz
que não afrontaria os perigos por causas quaisquer, mas pelas mais
consideráveis.

3.A segunda é que, se o bem e o mal que podem provir da coisa de


que se trata parecem ser iguais, não se deve se decidir em favor dessa
coisa enquanto ela tiver mais disposição para produzir o bem que o mal.
A terceira é que, se o bem e o mal parecem desiguais e que se a disposi-

ção das coisas não é menos desigual, deve-se definir-se pela coisa em
que a disposição para produzir o bem é maior, comparada à disposição
de produzir o mal, porque o mal não é por ele mesmo comparado ao bem
[47] ou, se o bem comparado ao ma] é mais considerável que a disposi-
ção da coisa para o mal, comparada a sua disposição ao bem.

4.Apresentamos essas idéias de uma maneira um pouco mais


trabalhada, mas Cícero [48] tende ao mesmoobjetivo por uma via mais
ao alcance de todos, quando diz que se deve evitar de se oferecer aos

[45] oraí7'a De pape (D.

1461 Em Aristóteles, ÉÍlca a NJcÓ/naco(IV. 4).

[47] Narses ap]ica sabiamente essa regra, em Procópio (GofÉüic.,lt, 18)


[48] Marcus Tullius Cicero [106-43a.C.], .DeO#icíís (1,24, 83).
970 H UGO GROTIUS

perigos sem motivo, nada podendo ser mais insensato que isso e que,
por essarazão, quando se trata de afrontar o$ perigos, se deve imitar a
conduta dos médicos que dão remédios benignos aos que estão levemen-
te doentes, mas são forçados a aplicar tratamentos perigosos e duvido
sos aos doentes mais graves. Por isso, ele diz que remediar a tempesta-
de é coisa de sábio, sobretudo seo bem que se poderia obter ao amenizar
a coisa é maior que o bem que provém da perturbação.

5. E em outro ]oca] [49] : "Nos encontros em que não se pode espe


rar nenhum sucessoconsiderável e ondeo menor mau acontecimento
pode ser prejudicial, que necessidadehá de se abandonar temeraria-
mente ao perigo?" Dion de Prousa [50] diz: "Que aqui]o que se so6'e seja
injusto e indignos Se nos acontece alguma coisa de injusto, devemos nos
expor a inconvenientes por nosso zelo em combater?" E depois: "Ocorre
como acontece com os fardos. Quando nos acabrunham de modo que
não podemos mais suporta-los, procuramos rejeita-los. Pouco carrega-
dos e estando as coisas de tal modo que precisamos carregar esse peso
ou fardos mais pesados ainda, nos arranjamos de modo a nos conformar
da manei'a mais camadapossíve]."Aristides [51] diz: "Quando o temor
é maior que a esperança, não seria o momento de tomar precauções?:

VI. Exemplo tirado de uma deliberação


entre o desejo da liberdade e o da paz pela
qual pode ser evitada a destruição de um povo
1. Tomemos por exemp]o o que Tácito [52] re]ata sobre o que foi
posto outrora em deliberação entre as cidades da Gália: "0 que era
preciso proferir, a liberdade ou a paz?" Deve-se entender a liberdade

[49] Idem, .]@ihfu/ne ad-4fflbuJn (X]11, 27)


[50] Dion Crisóstomo ou de Prousa, C2z'af/oZarsens,
[51] 0raÉ70 SJbuJa (11).

152]Caius Corne[ius Tacitus [55-120],Hjkfo/:üe (]V. 67)


CAPÍTULOHIV - ADMOEgAÇÕES PARA NÃO EMPREENDER
TEMERARIAMEME UMA GUERRA MESMOPOR JUSTASCAUSAS
971

política, isto é, o direito para a república de se governar a si mesma,


direito que é pleno num Estado popular, temperado por um Estado aris-
tocrático, sobretudo num Estado em que nenhum dos cidadãos é ex-
cluído dos cargos públicos. Quanto à paz, trata-se de uma paz tal que
livra de uma guerra de extermínio, isto é, como Cícero [53] explica essa
questão em termos gregos "que deveria trazer a ruína completa do Es-
tado". Quando, por exemplo, umajusta apreciação do futuro nada pare-
ce prever senão a destruição de todo um povo, como era a situação de
Jerusalém sitiada por Tiro. Ninguém ignora o que diria aqui Calão,
que preferia morrer que obedecera um só.Aisso se refere também esse
pensamento que "não é uma coragem difícil se subtrair pelas próprias
mãos da escravidão" [54] . E muitas outras proposiçõessemelhantes.

2. Areia razão sugere, porém, algo totalmente diverso, a saber,


que a vida, que é o fundamento de todos os bens temporais e a ocasião
dos bens eternos, é de preço maior que a liberdade, seja que se considere
uma e outra num só homem, seja que se considere ambas em todo um
povo Por isso o próprio Deus conta como um benefício não destruir os
homens, mas entrega-los à servidão (/7 CTÓz2Jbas Xl1, 7-8). Em outro
local, ele aconselha aos hebreus, pela voz do profeta (JeremJbsXXVll,
13), a se entregarem como escravos aos babilânios para evitar de mor-
rer de fome e de peste [55] . Por isso é que a conduta, ainda que elogiada
pecos antigos [56], "que Sagonte sitiada pe]os cartagineses sustentou
a guerra" não é para ser elogiada, nem as coisas que conduzem
aisso 157].

lõa] Marcus [lu[[ius Cicero [106-43 a.C.], Ed kfu/ae ac/.4fÉ]cu/?] (]X, 112)

l [54] Marcus Annaeus Lucanus [38-65], .füarsaJla (]V. 576)


[55] Em Guntherius (111,155), Guido Blandrate diz, num discurso aos milaneses:
Quando estivermos em segura1lça,suportareinos tudo pela liberdade, mas
nellhum homem de bojo senso ama a liberdade às expensas de sua saúde;
expor'se a alba ruína certa que se pede evitar, não é amar a !iberdade, mas
seguir uma glória vã.
[56] Marcus Annaeus Lucanus [38-65], .F'farsa/lb(111,350)
[57] Aure[ius Augustinus [354-430],De Clwfafe Del (XX]1, 6)
972 H UGO GROTIUS

3. O extermínio do povo, de fato, em semelhantes conjunturas


deve ser tida em conta como o mais considerável dos ma]es. Cícero [58]
traz como exemplo de um caso de necessidade a situação dos casilinenses
que foram coagidos a se entregar aAníbal, ainda que a essa necessidade
tenha ligado essa restrição: a menos que preferissem morrer de fome
[59] . Sobre os tebanos que viveram na época deAlexandre da Macedânia
há esse julgamento de Diodoro da Sicí]ia [60] : "Obedecendo antes a ge-
nerosos sentimentos do que àsleis da razão, levaram sua pátria a cair
no abismo." [61]

4. Em P]utarco [62] há um ju]gamento sobre esseCarão de que


falamos e sobre Cipião que, depois da vitória de Farsala, não quiseram
ceder a César: "São dignos de censura por ter, sem utilidade, causado
na Africa a perda de numerosos e bravos guerreiros."

5. Sobre o que falei da liberdade, quero que seja dito das outras
coisasdesejáveis,sefor ocasode se temer um mal maior oposto.Como
o diz com razãoAristides]63], costuma-se salvar o navio jogando mer-
cadorias ao mar, não passageiros.

[58] Marcus Tu[[ius Cicero [106-43 a.C.], Z)e ]nre/]üo ]e (11,57, 171)
[59] Essa fai a defesa de Anaxi]as que havia entregue a cidade de Bizâncio por causa
cla fome. Diz que os homens deviam combater contra os homens e não contra
a natureza das coisas. Assim é que o relata Xenofonte (HJkf. Graec., 1, 3, 18)
Procópio(GofÉüic.,
IV. 12)diz que 'bs2zoJnens
não e/og7bm
a morte vo/unfáÜa,
enquanto houver algu3na esperança que pareça maior que o perigo".
[60] XVll, ]O
[61] O mesmo Diodoro da Sicí]ia (XV]]], ]O), fa]ando dos conselhos que haviam
levado a empreender a guerra pelos atenienses, depois da morte de Alexandre,
Xiz ([ue "da opinião de todos os homens distintos por suas !uzes, o povo de
Arenas havia tomado uma resoluçãohonrosa, mas se havia enganadono obje'
üvo de uéí#dadeque se pl puMBa'; de modo que aqueles que se haviam apres'
fado a haviam feito 'bem que nenhuma nocess/dadoúl'esse exlêfdo gué?se
expusesseao perigo", ela, a mais, "desa81aros avisos que os infortúnios tão
famosos dos tebanos deviam ter dado
[62] Oíüo (1072 D)
[63] Oral. P7af. (11)
973
CAPÍTULO HIV - ADMOESTAÇÕES PARA NÃO EMPREENDER TEMERARIAMENTE UMA BERRA MESMO POR JUSTAS CAUSAS

VII. Aquele que náo é muito mais forte


deve se absterde exigirpunições

Em matéria de castigos que se pretende infligir, deve-se também


sobretudo observar que a guerra não seja jamais empreendida a esse
título contra aquele que é igual em força. Do mesmo modo que o juiz
civil, aquele que quer punir crimes pelas armas, deve ser bem mais
forte que o outro. Não é somente a prudência ou a caridade pelos seus
que exigem que se abstenha de uma guerra perigosa, mas muitas vezes
mesmo é a justiça, governamental bem entendido, que, em virtude da
natureza mesma do governo, não obriga menos o superior a cuidar dos
inferiores, que os inferiores a obedecer.De onde essaconde-qüênciaque
foi ensinada com razão pe]os teó]ogos [64] que um rei que, por causas
leves ou para infligir penas não necessárias e trazendo com elas um
grande perigo, empreende uma guerra, está obrigado para com seus
súditos à reparação dos danos resultantes. Se não é contra os inimigos,
é todavia contra seus súditos que cometeuma verdadeira injustiça,
envo[vendo-os por tais causas numa tão grave infe]icidade [65] . Tito
Lívio [66] disse: "A guerra é justa quando necessária e as armas são
inocentes quando não resta outra esperança senãonas armas." Ovídio,
no livro Znsfos [67], deseja que se chegue a esseestado "que o so]dado
não tome mais as armas senão para prevenir os combates"

[64] Cajetan., ZZ .4 quaesÉÜ Pâ a/'f. 8.

[65] Molha, H'aaf. .CDe Jusãóza,cap. 102


[66] Titus Livius [59 a.C.-17d.C.], ,4ó Z:rrÉeGond7fa(]V. ], ]O)
[67] Pub[ius Ovidius Naso [43 a.C.-18 d.C.], .Zhsú(1, 715)
974 H u co GROTIUS

VIII. A guerra náo deve ser empreendida,


se não houvernecessidade

Aconteceraramente, portanto que a razão para fazer a guerra


seja ta] que não se possa ou não se deva neg]igenciá-]a [68] . ]sso ocorre
somente quando os direitos que se tem de responder, como fala Florus
[69], são mais cruéis que as armas. Sêneca [70] diz que "a gente se
lança nos perigos quando se teme males iguais ficando inativos" ou
mesmo infortúnios piores, idéia queAristides [71] desenvo]veu assim:
"Se ficar em paz é se expor a uma condição pior que aquela em que a
gente se encontra, deve-seentão, embora o futuro seja incerto, escolher
o partido do perigo." Tácito [72] diz que "é preferíve] uma guerra que
uma paz miserável" e particu]armente, como o diz o mesmo [73], "quando
a liberdade deve ser a consequência da audácia e que, vencidos, se deve
Hlcar no que se era antes" ou, como fa]a Tito Lívio [74] , "quando a paz é
mais cruel que a escravidão do que á guerra na liberdade". Não, porém,
como se encontra em Cícero [75], se devesseaparentemente ocorrer
que, sendo vencidos sejamos proscritos, ou que, vencedores, não se dei-
xasse deserescravos.

IX. Ou por uma causa muito importante


com uma ocasião muito favorável

Outra oportunidade de guerra é quando aquele que a empreende,


examinando as coisas como se deve, verifica que suas forças são iguais
a seu direito e que essedireito Ihe é de extrema importância. 'lVata-se

[68] Sérvio, no comentário ao verso 758 do canto X da .Blleida, diz: "Os deuses
deploram o vão furor das duas partes e os trabalhos tão exaustivos dos mortais
p (lue "não há causa tão justa para que a guerra deva serfeíta nesse objetivo
[69] iY 12
[70] Lucius Annaeus Seneca[01?a.C.-65 d.C.], De (::/eme/7fza
(1, 12, 5)
[71] Oraílb De Face (1)

[72] Caius Corne[ius Tacitus [55-120] , .4nnaJes (111,44)


[73] Idem, Jãkfor7be (]V. 32).
[74] Titus Livius [59 a.C.-17 d.C.], ,4ó Z]/róeCo/zdlfa (X, 16, 5)
[75] Marcus Tu[[ius Cicero [106-43a.C.], .%plkfuJae
ad.4fÉ7auin(V]1, 7, 7)
975
CAPITULOmlV - ADMOEgAÇOES PARANAO EMPREENDERTEMERARIAMEWE UMA GUERRA,MESMO POR JUSTASCAUSAS

do que entendia Augusto [76] , dizendo que uma guerra não deveria ser
empreendida senão quando fossedemonstrado que a esperança de ga-
nhar pi'evalecia sobre o temor de perder. Não seria desproposital apli'
car aqui o que Cipião o africano e L. Emí]io Pau]o [77] diziam de uma
batalha: "Não se deve combater, a menos de uma extrema necessidade
[78] oü de uma ocasião muito favoráve]." ]sso poderá ocorrer sobretudo
quando setem a esperança de poder chegar a bom termo em seu empreen'
ditnento com nenhum ou pouco perigo, pelo terror que se inspira ou
pe[a grande fama [?9], como Dion [80] havia aconse]hadousar isso para
livrar giracusa. Há nas cartas de Plínio [81]: "... E]e venceu pe]o ter-
ror..., que é a anaisgloriosa de todas as vitórias.:

X. Males das guerras postos diante dos olhos

[. À gUérfa é uMa coisa crüe], diz i)]ütarco [82], e qüe ai'rasto


com ê]a o cúmu]o das injúrias ê da inso]ência. Agostinho [83] disse com
sabedoria: "Se quisesse falar coma ó ihdiVídüo o hei'êce dósnüiherósos

[76] Caius Suetoniüs *nan(iui]]us [69:125], .4ugizsfus (25)


[??] Ati[tis Ge[[iüs[éée. ii d.C.] ; Moüfês .4fÉltüe(X111, 8); Âiài.ê\]s Vá]ériüs Makihüs
[üée.i a;C.--séê.] ci:C.],Ratos ê Dvfos.iáemó/área (Vii, 2, Ê).
[78] PIUtai.CO, çQda dos 6Facog(845 A); dià: 'i?\©o Ezzparfe de uú óo/n Mgtifüo, /]e/n
de {ih bom póiítíêo recofter aos gi'ílhões, se não fof ém e)itrema necessidade."
Ehcotitra,sé um dito de A/laréianO;em ZOnàras(X111;25. 32): "t/m re/ ]ãd déré
decorre âs arenas,eliqaâ 2áogoza de pàz. " SegundoAgostinho(Epj'sÉo/a ÕQ,4d
BonifacÍülnà, "de'ke-seentreter a paz cóh boã Vontade e nãb lbo+eb guerra
senão por necessidade, a â)n de que Deus hos !iate dessa necessidade e elos
coilsêtve ém pâ2
L[qA "C}]eâq despfeàahdo a rede, se defende »ói' muito téhbo ÉÓpéit) tertbt à\ie
íhsbíta e téétêzhtihhade alg\iih }hódópor isso queestá send:óforçado a se
femdef" (Plíüio, Nafurajlg .mkfaz:ü, Vl11, 16).
[80] Diodóro da Siéília) ]ivro XV], 17
lál] (]aiüs P[ihiüs Càéêi[iüsSécühdüs[ê2:1i4], Zplsfú/âe (11,?)
182] »da de CaüJ7o (i34 B).
[83] Aurelius Augustinus [354;4301} ,De CXwfafe .Deí (X]X; 7);
976 H UGO GROTIUS

e múltiplos desastres, das terríveis e duras necessidades dessesmales


(ele fala dos que decorrem da guerra), além de que não poderia descre-
ver como a coisa o exige, comoesgotar uma tão ampla matéria? O sá-
bio, dizem, fará guerras justas. Como se,lembrando que ele é homem,
não estaria muito mais penetrado de dor que ser reduzido à necessidade
de empreender guerras justas, porquanto se não fossem justas, não as
faria e assim, para o sábio, não haveria guerras. De fato, é a iniquidade
da parte adversária que dá ao sábio a ocasião de fazer guerras justas e
mesmo necessárias. Essa iniquidade deve ser deplorada de toda manei-
ra pe]o homem [84] porque vem dos homens, mesmo que nenhuma
necessidade de fazer a guerra proviesse dela. Por isso, quem quer que
considere com dor males tão consideráveis, tão horríveis, cruéis, deve
necessariamente confessar qué é uma catástrofe. Quanto ao que as su-
porta ou nelas pensa sem dor moral, está sem dúvida num estado ainda
mais miserável, porquanto parece estar feliz por ter perdido o senti-
mento humano." Em outro local, o mesmo diz [851:"Fazer a guerra
parece ser uma felicidade para os maus, uma necessidadepara osbons."
SegundoMáximo de Tiro [86], "mesmoque fossetirado da guerra oque

[84] Num discurso que se encontra em Diodoro da Sicí]ia(X]11, 52), os ]acedemânios


alzenü "Considerandoportanto quaileosinfortúnios e crueldades as guerras
encamíçadas trazem após sí, acreditamos dever levar a coi3hecimentoaqui
ciarameilte a todos os deuses e a todos os homens que não se poderia mais ]lo
futuro, $em injustiça, nos imputar essascalamidades."T\u\arco, em Vida de
Numa qlS Bb, escreve. "Sím, se poderá dizer que Romã aumentou considera
veemente seu poder com as guerras. Questão que pediria urna longa resposta,
se eu quisesse collvencer esses homens que faze)n collsistir o poder de uln
Estado na riqueza, no luxo e o soberanoimpério, antes quena segurança
púó#ca, na doçura, /7a moderação e na Jusf/ba."Em Procópio(/%reza., 11, 26), a
médico Estêvão diz a Cosroes,rei dos persas: "Gz'andere], enguanfa estás
ocupado ein matanças, combates, cidades a dominar, podes conquistar talvez
hein outros títulos, mas não parece que chegarias a conquistar o de home3nde
óem, /]o inefo dessaspreoctzpaçóês.
"Acrescente-seuma notável passagemde
Guichardin(livro XVI, ]h (2mf. .qpüc. Osz)n.).
[85] Aure[ius Augustinus [354-430], .De (Xwfafe Z)ey (]V. 15)
[86] (2z.ado .XXX ] e 2
CAPÍTULO HIV - ADMOESTAÇÕES PARA NÃO EMPREENDER TEMEMRIAMEWE UMA GUERRA, MESMO POR LUSAS CAUSAS
977

ela tem de injusto, a necessidademesma de a fazer é uma coisa lamen-


tável". O mesmo diz ainda: "E evidente que as pessoasde bem não
fazem a guerra senãopor necessidadee que os homens injustos a fazem
com alegria no coração.

2. Deve-se acrescentar a isso esse pensamento de Sêneca [87],


que não pertence ao homem ser pródigo com o homem. Filisco advertia
Alexandre de procurar sem dúvida a glória, mas coma condiçãode não
se tornar uma peste ou um grande í]age]o [88], entendendo com isso
que o massacre de povos, que a desolação das cidades são obras da pes-
te, mas que nada é mais digno de um rei do que se preocupar com a
salvação de todos que está contida na paz.

Se, de acordo com a lei hebraica(NH/nerosXXXVI .Z)eufeu'onÓ/nJO

XIX), aquele que, sem querer, tivesse matado um homem, devia fugir,
se Deus proibiu que seu templo fosse erguido por Davi(/az6zzüasXXVlll,
3), tido como homem que fizera guerras justas, pela razão que havia
derramado muito sangue [89], se junto aos antigos gregos aque]es que
haviam manchado suas mãos por um assassinato, mesmo sem culpa

[87] Lucius Annaeus Seneca [01? a.C.-65 d.C.], Ed)]kfu/ae ad Z,ucíZfum(88, 30)

[88] Eliano, ]ivro X]V] ]]


L89A"Ele não Ihe permitiu construir o temploporque havia feito muitas guerras e
porque se havia manchado cola muito sangue, embora sangue inimigo." Es\as
palavras são de Josefo C4nízkü/dadasdada cas, Vl1, 4, 4) que possui várias
outras passagensnessesentido. Plínio diz, depoisde ter relatado os combates
üo à\\ada Cêsax ÇNaturaiis Historia, l?\l, aSà'."Por }nim, não consideraria colho
uma glória o fato de ter causado tantos males ao género humano, mesmo em
caso de fa' sudó forçado a kso."Fílon, em Hda de .4Zoüás(1, 57), observa que
mesmo que seja permitido pelas leis matar inimigos, contudo qualquer um que
tenha matadoum homem,por maisjusto que seja, mesmosendopara se
defender e sendo forçado a isso, parece culpado de alguma maneira, por causa
desse parentesco comum que decorre de uma causa superior. Por isso, esses
que matavam tinham necessidadede uma espéciede expiaçãopara se purificar
do crime que parecia terem cometido.
978 H U GO GROíiUS

de sua parte, tinham necessidade de expiação, muito mais, pois, sobre-


tudo se for cristão, não será a guerra uma coisafunesta e fatal e muito
mais subsistirá a obrigação de envidar esforçospara evita-la, mesmo
que ela não fosseinjusta? Sabe-seque entre os gregos que professavam
o cristianismo foi por muito tempo observado o cânon em virtude do
qua[ ficavam por um tempo afastados dos sacramentos [90] aque]es que
tivessem matado um inimigo numa guerra qua]quer [91].

[90] Durante três anos,segundoZonaras, }Tda de Mcé#orc,.]bcas (XV], 25, 23)


[91] Basílio, .4d.4mpÃl7. (X, 13).
xxv

DASCAUSAS
DEEMPREENDER
AGUERRAEMFAVOR
DOS OUTROS

Sumário

1.A guerra é empreendida de modo justa ein fa vor dos súditos.


!i. Não deve, contudo, ser empreendida sempre.

111.Se uin súdito inocente pode ser entregue ao inimigo para


evitar um perigo.
Indo mesmo modo, as guerras são empreendidas de }naneira
justa emfa vor de aliados iguais ou desiguais.
E E em fa vor dos amigos.
rl. B!ainda em fa var de qualquer um
y'll. Pode-secontudo recusar a guerra semincidir em culpa, se
se teme por siinesmo ou atépela viga daquele que causa
danos.

VIII. Explica'se por uma distinção,se a guerra éj:esta para


defender os súditos de outrem.
IX. As alianças e o as milícias mercenárias são injustas, se
nisso se enganasem distinção de causas.
X. E sem dúvida mau prestar serviço militar tendo em vista
somente os sa quemou o soldo.
T CAPITULOmV - DAS CAUSASDE EMPREENDERA GUERRAEM FAVOR DOSOUTROS
981

1.A guerra é empreendida de modo


justo em favor dos súditos
1.Anteriormente, quando tratamos daqueles que fazem a guerra
(livro 1,cap.V), foi dito e demonstrado que naturalmente cada indiví-
duo não é somente o vingador de seu próprio direito, mas que é também
daquele de outrem. Por isso é que as mesmas causas que são justas
para aquele cujo interesse está em questão, sãojustas para aqueles que
prestam auxílio aos outros.
2. O cuidado das pessoas que vos estão submissas é o primeiro e
mais necessário de todos [1] , estando e]as sob o poder do chefe de famí]ia
ou submissas ao poder político, pois elas fazem como que parte daquele
que governa [2], como o dissemos no mesmo ]oca]. Assim é que em favor
dos gabaonitas que se haviam submetido ao povo hebreu, esse povo
tomou as armas sob o comando de Josué (JosuéX, 6). Cícero [3] diz aos
quirites: "Nossosancestrais fizeram muitas vezes a guerra para mer-
cadores e donos de navios que haviam sido muito mal tratados." Em
outro [ocal [4] : "Quantas guerras nossos ancestrais empreenderam por
que ficavam sabendo que se havia feito injúrias a algum cidadão roma-
no, que haviam aprisionado algum dono de navio ou despojado algum
mercadorl" Os próprios romanosque haviam recusadotomar asarmas
para simples aliados, julgaram necessário toma-las pelos mesmos alia-
dos depois que foram entregues a eles, isto é, que se tornaram seus
súditos. Os campanos dizem aos romanos: "Já que não quereis tomar a
justa defesa de nossosinteresses contra a violência e a injustiça,
defendereis ao menos os vossos" [5] . F]orus [6] diz que a a]iança antes

[1] Navarr., ]ivro XX]V. 18


[2] Procópio(Pera/c., 11,15) diz que não basta para ser justo não fazer ma] a nin
guém, mas que é preciso ainda estar disposto a impedir que ninguém o faça aos
que nos foram confiados
[3] Marcus Tu[[ius Cicero [106-43 a.C.], Pro Z,eFeMnn bb (5, 11)
[4] Idem, in varrem ,4cüo(V. 58, 149)
[5] Titus Livius [59 a.C.-17d.C.], .4b Z]j}.óo
úondÉa(V]1, 31, 3)
[6] Lucius Annaeus F[orus [séc.]] d.C.], .Z@Jfome
de GesíísJ?omanorum(1, 16)
982 H UGO GROTIUS

formada pelos campanosfoi tornada mais inviolável pelo abandono que


6lzeram de tudo o que ]hes pertencia. Tito Lívio [7] diz: "Não se pensava
que a honra permitisse trair povosque seentregavam."

11.Não deve, contudo, ser empreendida sempre

Toda causa, embora justa, interessando a alguém, não obriga,


contudo, sempre os governantes a fazer a guerra. Não são obrigados
senão enquanto isso pode ser feito sem inconveniente para todos os sú-
ditos ou para o maior número. O dever do governante tem por objeto
antes o todo que as partes e, quanto maior for um& parte, mais se
aproxima da natureza do todo.

111.Se um súdito inocente pode ser entregue


ao inimigo para evitar um perigo

1 . Por isso é que se um cidadão, ainda que inocente, é reclamado


pelo inimigo para sua perda, não há dúvida que possa ser abandonado
[8] , se é evidente que o Estado é muito inferior em força que o inimigo
[9] . Ferdinand Vasquez [10] discorda dessa opinião. Se for considerado,
porém, não tanto suas palavras quanto seu pensamento, parece querer
dizer que tal cidadãonão deveser abandonadofacilmente, enquanto
houver esperança que possa ser defendido. Ele cita também a história

[7] Titus Livius [59 a.C.-17d.C.], .4õ Z,ü.Ée


aondlfa (V]1, 31)
[8] Ver o conse]ho do patriarca Niçéforo dado a Migue] Langabe, com re]ação aos
fugitivos a restituir ao chefe dos búlgaros, em vista da paz e onde se encontram
essas palavras, em Zonaras (XV. 17, 20): 'Hcüamos gue é me/Zo/' que !zm pe-
queno número de homens sofra que uma imensa multidão.

ç$\Sa\n,De Justitia et Jure, !ivro V quaestio1, art. 7.


[10] Livro [, Cbníro ]#usf., cap. 13
CAPITULOHV - DAS CAUSAS.DE EMPREENDER
A GUERRAEM FAVOR DOSOUTROS
983

da infantaria itálica que, assegurada sobre sua própria salvação por


César,abandonou Pompeu, quando suas coisasnão estavam de todo
perdidas, o que desaprova, não sem razão.

2. Um cidadão inocente pode mesmo ser entregue às mãos dos


inimigos para evitar a ruína do Estado,iminente semisso?E sobreisso
que os eruditos discutem e sobreissotambém foi discutido outrora quan-
do, por exemplo, Demóstenes propôs essa célebre fábula dos cães que os
lobos pediam às ovelhas que os entregassem, em nome da paz. Não
somente Vasquez, mas esse Solo cuja opinião é acusada por Vasquez de
estar próxima à perHidia, negam que isso seja permitido. goto avança
contudo que um tal cidadão está obrigado a se entregar ele próprio aos
inimigos. Vasqueznega também esseponto porque a natureza da so-
ciedadecivil na qual cada um entrou em vista de seupróprio benefício
naooexige.
3. Tudo o que disso se segue é que um cidadão não está obrigado
emvirtude de um direito propriamente dito e dissonão resulta que a
caridade soõ'a por agir de outro modo. Há, de fato, muitos deveres, não
dejustiça propriamente dita, masde caridade,cujo cumprimento não é
somente digno de louvor, o que Vasquez reconhece, mas que até não
podem ser omitidos sem culpa. Tal parece ser, sem controvérsia, o de-
ver de todo cidadão de preferir a salvação de um grande número de
pessoasinocentes do que sua própria vida. Em Zrecfézade Eurípides
[11], Praxitéia diz: "Se sabemos contar e distinguir entre o mais e o
menos, a ruína de uma só família não prevalece sobre a ruína comum e
não pode sequer ser a e]a comparada" [12]. Assim é que Fócio [13] exor-

lil] .lüugmenóa (362, 19-21).


[12] ':8inyusfa que a fo(/o se farte um acessórl'oda pa/'fe. " Esta passagemestá em
Fílon, Vida de Moisés (1, 59); há ainda aí outras coisasquevale mesmoa pena
ler
[13] Diodoro da Sicília, ]ivro XV]1, 15
984 H UGO GROTIUS

tava Demóstenes e os outros a sofrer eles próprios a morte, a exemplo


das fi[has de Leus e dosjacintidas [14], antes que deixar sua pátria
exposta a um ma] irreparáve]. Cícero [15] diz: "Se, navegando em a]-
gum navio com meus amigos,acontecesseque um grande número de
piratas, vindos de vários lugares, ameaçassemafundar o navio em caso
de eu não me entregar, eu sozinho, a eles e que meus companheiros de
viagem preferissem morrer comigodo que me entregar aosinimigos,
eu me atiraria eu mesmo ao mar para salvar os outros do que expor
aqueles que me testemunharam tamanha afeição, não somente a uma
morte certa, mas até a um grande perigo por sua vida." O mesmo diz
ainda [16] que "um homem de bem, sábio, obediente às ]eis e que não
ignora os deveres do cidadão, se preocupa mais pelo interesse de todos
do que peãointeresse de um só ou do seu". Em Tito Lívio [17] se pode ]er
que foi dito, a respeito de certos molossenses:"Certamente, ouvi dizer
muitas vezes que cidadãos morreram voluntariamente por sua pátria,
mas esses homens são os primeiros que consideraram como coisa justa
que sua pátria se sacrificasse por eles.

4. Isso posto, resta a dúvida de saber se esse cidadão pode tam-


bém ser coagido ao que é obrigado a fazer. goto o nega com o exemplo do
rico que é obrigado pelo preceito da misericórdia a dar esmola ao pobre
e que, entretanto, não pode ser coagidoa isso. Deve-se observar, contu-
do, que uma é a condição das partes entre elas, outra aquela dos supe'
dores, quando se os compara com seus súditos. O igual não pode coagir
seu igual, se não for em razão do que Ihe é devido em virtude do direito
estritamente dito. O superior, porém, pode coagir mesmo para outras

[14] Ver Apolodoro, Bló/I'oÉüeca(111,15, 8).


[15] Marcus Tu[!ius Cicero [106-43 a.C.], /}o Puó#o Sexto (20, 45)
[16] Marcus Tu[[ius Cicero [106-43 a.C.], .De /qnióus (111,19, 64)

[17] T[tus Livius [59 a.C.-17d.C.], ,4ó Z]i}.Ée


Oamdlfa(X];X 26, 8).
Y 985
CAPÍTULOmV - DAS CAUSASDE EMPREENDERAGUERRAEM FAVORDOS OUTROS

coisas que prescreve uma virtude qua]quer [18] porque esse direito está
compreendido no direito próprio do superior, enquanto superior. Assim
é que, numa grande carestia de trigo, os cidadãos podem ser coagidos a
co[ocar em comum o que possuem [19] . Eis porque, em nossa questão
controversa, parece mais verdadeiro dizer que ocidadão pode ser coagi-
do a fazer o que exige a caridade. Por isso, esse Fócio de que falei,
mostrando um certo personagem de nome Nicocles, que era seu maior
amigo, dizia que tinham chegado a esseponto de infortúnio que, se
A[exandre o exigisse, e]e mesmo votaria para que fosse entregue [20] .

IV Do mesmo modo, as guerras


são empreendidas de maneira justa
em favor de aliados iguais ou desiguais
Imediatamente após os súditos vêm aqueles que estão no mesmo
grau deles com relação à obrigação de os defender, os aliados no tratado
em que essa cláusula foi incluída, tanto se eles se colocaram sob a tute-
la ou o patrocínio dosoutros, quanto setenham estipulado auxílio mú-
tuo. Ambrósio [21] diz: "Aque]e que não afasta de seu a]iado uma injú-
ria, se o puder, é tão culpado como o que a cometeu." Dissemos alhures
que tais convenções não podem seestender às guerras que não se apóiam
numa justa causa [22]. Essa é a razão pe]a qua] os ]acedemânios,

118]Assim é que entre os tucanos havia uma pena infligida aos pródigos; aos ingra-
tos. entre os macedónios;aos ociosos,entre os mesmoslucanos e os atenienses
Acrescente-se o que foi relatado no livro 1, cap. 1, $ 1X
[19] Lessius, Zíwo JZ cap. g daó. Z
{'

[20] Plutarco, PZoc, (749 C)


[21] Ambrosius [340?-397],Z)e O/Hcíz)MibikÉrorum (1, 36).
t22À ?e S\nLlet ÇDeRepublica Helvetiorumà. "Quando o seJlhor move guerra a
alguém, o vassalo é obrigado a ajuda-io, se souber que é justa ou se apenas
duvida que o seja. Quando, porém, é abertamente incongruente, e vassalo
deveajuda-lo pala se defender e não para atacar" (.DeFeudis, bvxa \l, cap. ZSb
9:86 H UGO GROTIUS

antes de empreender a guerra contra os atenienses, deixaram todos os


seus aliados juízes da justiça de sua causa [23], como também os roilna-
nos confiaram aos gregos o cuidado de se pronunciar sobre a guerra
contra Nabos [24] . Acrescentemos isso para o momento, que um aliado
não é tampouco obrigado a prestar socorro ao outro, se não houver ne-
nhuma esperançade um bom êxito. Uma aliança se contrata,'de fato,
em vista do bem, não do mal. De resto, um aliado deve ser defendido
mesmo contra outro aliado de modosemelhante, a menos que, na pri-
meira aliança, não se tenha acordadoalguma coisa de mais especial.
Assim é que os atenienses puderam defender os corcirenses, se sua
causa era justa, mesmo contra os coríntios, seus aliados mais antigos.

V E em favor dos amigos

A causa que vem em terceiro ]ugar é aque]a dos amigos [25] , aos
quais na verdade não se pi'ometeu ajuda, mas aosquais contudo se deve
por uma espécie de respeito pela amizade que se tem por eles, se esse
socorro pode ser fornecido faci]mente e seminconveniente]26] .Assim é
queAbraão tomou as armas por Lot, seu parente, que os romanos orde-
naram aos antiates de não exercer a pirataria contra os gregos, visto
que eram parentes dositálicos. Os mesmos, muitas vezes,empreende-
ram guerras ou ameaçaram empreendê-las não somente em favor de
aliados aos quais isso era devido em virtude de um tratado, mas por
amigos.

[23] Tucídides, livro 1, 119 e 125

[24] 11itus Livius [59 a.C.-17 d.C.], .4ó Z://óe Conduza(XXXIV. 22)

[25] Essessãoos termos deum antigo orácu]o(E]iano, Uar ]Zikf., 111.44): '7+esenfe.
não prestassesocorroa um companheiroem perigo de morte; nada te direi, a
não ser: sai do templo."

[26] Vitoria, Z)e ]narí$ parte JZ n. '-7Z Cajetan., ]Z .g quaesÉlo 4, arf. ].


987
CAPITULOmV - DAS CAUSASDE EMPREENDERA GUERRAEM FAVOR DOSOIROS

VI. E ainda em favor de qualquer um

A última causa e a que tem a mais ampla abrangência é a união


doshomens entre si que basta mesmo só por ela para serem induzidos
a prestar socorro [27] . Sêneca [28] diz: "Os homens nasceram para se
ajudar uns aosoutros." De mesmosentido é estepensamentol291: "0
sábio, todas as vezes que puder, corrigirá os desvios da sorte." Eurípides
diz em .4s Sup/lbanfes [30] : "Os rochedos oferecem asi]o aos animais
selvagens, os altares aos escravos, as cidades às cidades oprimidas pelo
infortúnio." Ambrósio [31] diz ainda: "A força que defende os fracos é
plena justiça." Tratamos disso também no livro 1,cap. V $ 11.

VII. Pode-secontudo recusar a guel'ra


sem incidir em culpa, se se teme por si mesmo
ou até pela vida daquele que causa danos

1. Pergunta-se aqui se o homem é mesmo obrigado a defender


outro homem, um povo outro povo, contra a injúria. P]atão [32] pensa
que aquele que não rechaça a violência feita a outrem deve ser punido
[33] , o que era também previsto pe]as ]eis dos egípcios [34] . Em primei-
ro lugar, porém, se o perigo é manifesto, é certo que não se é obrigado,
pois se pode preferir sua vida e seus bens à vida e aos bens de outrem.
Assim é que se deveinterpretar, segundopenso, este pensamento de

[27] Marcus 'rü]]ius Cicero[106-43 a.C.], De bJbus(111,19, 64); De (2übízk(]1. 5.


tSà',L. 3, Ut vim, Dig., De Justitia et Jure.
[28]LuciusAnnaeusSeneca[01?a.C.-65d.C.];Z)e]/a (1,7)
[29] Idem, De C7emeníab(11, 6)
130].4s Sup#canfes(267 e seguintes).
[31] Ambrosiüs [340?-397],De (2áZ7;cÍz)
Mb2Jsüorum(1, 27, 129)
E32].DezeplBus(IX, 17).
[33] Os hebreus também. Moisés de Cotzi, Praecepfo Jubenfe(LXXV]], LXXX) e
Hera fe(CLXIV, CLXV)
[34] Diodoro,]ivro 1, 77.
988 H UGO Gxoíius

Cícero [35] : "Aque]e que não toma a defesa de um homem que é oprimi-
do ou não resiste, se o puder, à injustiça que Ihe é feita, não é menos
culpado que se abandonasse seus pais ou sua pátria ou seus aliados.:
Dando a "se ele o puder" o significado de "com vantagem". O mesmo diz
em outro ]oca] [36] que "se pode de a]gum modo ser dispensado sem
censura de tomar a defesa dos homens". Nas ./ZJkfórvbsde Sa]ústio [37]
há o seguinte: "Todos aqueles que, numa situação próspera, são solici-
tados a tomar parte numa guerra devem considerar em primeiro lugar
se lhes é possível conservar a paz; em seguida, se a guerra que se lhes
propõe é legítima, segura, gloriosa ou desonrosa'

2. Não se deve desdenhar tampouco esta passagem de Sêneca


[38] : "Levaria socorro ao que está exposto a perecer, mas sem querer eu
mesmo perecer por ele, a menos que minha vida não resgate aquela de
um grande homem ou seja o preço de uma grande coisa." Mlesmoassim
não se é obrigado, se o oprimido não pode ser livrado senão pela morte
do opressor]39] . Se aquele que é atacado puder preferir a vida do agressor
à sua própria, como dissemos alhures (livro 11,cap. 1, $ IX), não se
incidirá em culpa ao crer e querer que o atacado assim também o dese-
je, sobretudo quando houver do lado do agressorum perigo maior de
dano irreparável e eterno.

[35] Marcus Tu[hus Cicero [106-43a.C.], Z)e (2áZlbízk


(1, 7, 23)
[36] Em Amiano Marcelino, XXX, 4, 7
[37] Caius Sa[[ustius Crispus [86-36 a.C.], .EPi)fuja ]]/iÉürldaÉ7k (1).

[38] A passagem se encontra em .De -BeneÉlcu))(11,15). Há outra seme]hante sobre


o mesmotema(l, 10): 'Zu deáendeHau«,a pessoa que o «,erec ao custo afó de
meu próprio sangue, e tomaria parte em seus riscos; quanto àque.laque não
merece,se eu puder !ivrá-!a das mãos dos bandidos dando um grito, nãc me
arrependeria de ter feito ressoar minha voz que trouxe a salvação a um ho
mem."Ver o que foi dito no livro 11, cap. 1, $ VIII.

[39] Lessius, ]lw'o ÍZ cap. 4, duó. 75.


T CAPITULOmV - DAS CAUSASDE EMPREENDERA GUERRAEM FAVOR DOSOUTROS
989

VIII. Explica-se por uma distinção se a guerra


é justa para defender os súditos de outrem

1 . Também é ponto controverso, aquele de saber se é uma causa


justa de guerra, tomar as armas pelossúditos de outro, a íim de rechaçar
deles a opressão daquele que os governa. Seguramente, desde o momen-
to em que as sociedades políticas foram estabelecidas, é certo que uma
espécie de direito particular foi destinado aos chefes de cada uma dessas
sociedades. Eurípides diz, em HerácZ/des]40] : 'Temos db'eito, no gover-
no de nossa cidade,de exercer por nós mesmos uma justiça soberana."
As palavras seguintes demonstram a mesma coisa [41]: "Embe]ezai
Espanta que foi vencida e nós cuidaremos de Micenas." Tucídides [42]
colocou entre os atributos do poder soberano 10 auToõlKov o poder sobera-
no dos julgamentos, não menos que 'to ocuzovopov Kcltvo czulozeXea,isto é,
o direito de fazer as leis e de criar magistrados. O verso seguinte não
expressa outra coisa [43] : "Não é para e]e, mas para mim, que sobrevi-
eram o império do mar e o reino do tridente..." Este verso não difere do
precedente [44] : "Se não fosseproibido a uma divindade destruir a obra
deoutra" [45] . E em Eurípides [46] : "E costume dos deuses proibir de se
opor ao que um dentre eles deseja."Aparentemente, como o explica com
razão Ambrósio [47], "é de medo que, usurpando a função uns dos
outros, não suscitam alguma guerra entre eles". Os coríntios, em

[40] nerzc#des(143 e seguintes).


[41] Eurípides, .4s Rena bs(fragm.).
[42] Livro V. 18
[43] Pub[ius Vergi[ius Mano [71-19 a.C.], E17eJda
(1, 138)
[44] Pub[ius Ovidius Nasci [43 a.C.-18 d.C.], Mefamarp oseon (X]V. 784)

[45] Do mesmopoeta e mesmaobra (J14efamorpÁoseon,


111,336): '7\Uoépermzfido
a um deus anular o que outro deus fez.
[46] Jilzbá#h (1328 e seguintes).

[47] Ambrosius [340?-397],Z)e O#ic7)k.ã/lhJkÉrw'tzm


(1, 13)
990
H ü êó Gi'ottl s

Tucídides [48], pensam que é justo que "cada um puna os góüg" [49]
Perseu, em seu discurso a Márció, declara que não se justificará dõ que
fez contra os Dolopes: "Eu o âiz por meu direito próprio, porquanto fa-
zem parte de meu reino, estavam sob meu domínio" [50] : Todas esgãs
coisas ocorrem quando os súbitos são vêrdadeitaMehte culpados . Acres-
cente'se mesmo quando a causa é duvidosa. Em vista disto é qüe foi
estabe[ecida essa distribuição dos impérios [51]

2. Esse direito da sociedade humana não sei'á excluído por isso,


quando a opressãoé nânifegta, se algum Büsíris, F'alarig, l)iómé(ho da
'lYácia exerce cobre sêüs súditos crueldades que não podem sêr aprova:
das por nenhum hometn justo. Assim é qué Constantino tohoü em
armas contra Mlaxêncio e contra Licíniõ, que outros imperadores dos
romanos as tomãrah oü ameaçaram toma-]as contra os persas [52], se
nãa parassem de perseguir os ci'istãos pór causa da re]igiãó [5{3]

3. E Mais, ãindà que fossecohcedidó,Mesmono Casode ümâ


extteha necessidade, que os súditos tiãó pudesÉeh tomar lêgitimãhen'
te eh amas(ponto qüe vimos gepi'evogadõha dúvida poi' aqueles mes'
mós qüe ássühifãm Comoobjêtivó défeüder o poder rêál); üãó gesegui'
ria, cohtüdo, que óütros não p\idessem toma-lãs por eles. Plbdagas vozes
quê, nülná anão, ó obstáculo se órigiha da pessoa, hão dá eóiÉa,o qüe

[4ã] Livro V i, 48;


[49] Agogtihho; ém .De ZüZero ;? ó/É ió(11, 1, 2), diá: 'ÉÉa#eF aáo de óondnde Bazar o

bem aos estfazlhós,mãs a justiça nâo pede qtzea gebté os puna '' SéÉundo
Procópió(Banda/ló., 1; 5): 'g confie»/e/7feque cada üm exe«a o poder que /Ze
toca como parte, Mas que hão o êkiha dü éiiidado pelos begócíos dog outros.
[50] {titüs LiViüs [59 a.C.:17 d.ê:1; .4ó Urbe Co alfa (XLl1, 4i, i:i)

[5i] VitÕtiã, rê;eó]: De in ÍÜ a; ' .Íá


[õ2] 1im exemplo seme]hahte existe na história de Pepíüó, ein F]'edegáfio (na
final).
153]Vitotíã, ReJea#,
Z)ó]Htlzb.
:p..Za. ' ]3.
991
CAPÍTULOmV - DAS CAUSAS DEEMPREENDERA GUERRAEM FAVOR DOS OIROS

não é permitido a um podeser permitido a outro em seulugar, contando


que o negócio seja tal que um possa ser útil a outro. Assim é que um
tutor ou qualquer outro reclame pelo pupilo que não pode comparecer
em pessoaperante a justiça, que um defensor, mesmo sem mandato, o
pode por um ausente. O impedimento que se opõe a que um indivíduo
resista não vem de uma causa que fosse a mesma no súdito e no não
súdito, mas de uma qualidade da pessoa que não passa a outras.

4. Assim é que Sêneca [54] estima que aque]e que nada tendo de
comum com minha nação atormente a sua, pode ser de minha parte
objeto de hostilidades, como dissemos (livro 11,cap. XX, $ XL, 3), quan-
do se tratasse de penal a infligir. Essa coisa é muitas vezes unida à
defesa dos inocentes. Sabemos, na verdade, pelas histórias antigas e
novas que a ambição do bem de outrem procura essespretextos, mas se
os maus abusam de uma coisa, o direito não cessa nem por isso de
existir. Os piratas navegam também, os salteadores também fazem uso
daespada.

IX. As alianças e as milícias


mercenárias são injustas, se nisso
se enganamsem distinção de causas
1. Do mesmo modo como declaramos ilícitas as alianças de guer-
ra formadas com a intenção que o socorro seja prometido para qualquer
guerra, sem nenhuma distinção de causa [55], assim também nenhum
gênero de vida é mais repreensível daquele desses indivíduos que, pres'
tando seus serviços a preço de dinheiro, fazem a guerra sem considera-
ção da causa e para os quais "a justiça se encontra onde estiver o maior

[54] Lucius Annaeus Seneca [Ol? a.C.-65 d.C.], -De.Bebe/icízk(Vl1, 19, 9)


[55] Ver ainda sobre esseponto Simler.
992 H UGO GxOTiüS

sa[ário" [56] . ]sso é o que P]atão [57] prova em Tirteu. ]sso mesmo é o
que [emos que foi recriminado aos etó]ios por Fi]ipe]58] e aos arcadenses
por Dionísio de Mli[eto [59] , nestes termos: "Da guerra se faz um trá6co
e os males da Grécia são um lucro para os arcadensesque, sem se
importar com a causa da guerra, tomam as armas ora por um partido,
ora por outro." Coisa dep]oráve], como fa]aAntífanes [60] : "Um soldado
que, a fim de ganhar sua vida, ]ança mão da mortes" [61]. Dion de
Prousa [62] diz: "Que há de mais necessário para nós ou de maior preço
que a vida? E contudo, muitos a sacrificam para se encher de dinheiro.:

2. Vender sua vida é pouca coisa, se não vendessem também as


dos outros que muitas vezes sãoinocentes [63], tornando-se muito supe
dores em infâmia ao carrasco,pois é pior matar sem causa do que
matar comcausa [64].Antístenes [65] dizia mesmoque os carrascos
são mais honestos que os tiranos, pois aqueles matam culpados e estes

[56] Si[vestr., ib ve/óo .BeJTum, pa/f. Z / ]q cêrca Élbem.

[57]Z)eZeg2bus
(1,5)
[58] Titus Livius [59 a.C.-17 d.C.], .4ó Z:rróe Gonc#fa (XXX]1, 34)

[59] Filostrato, Hfae Sofá.(1, 22)

[60] Em Estobeu, ]ivro 53, 9.

[61] Sêneca, em Natura/es é?uaesúones(V] 18), disse: '2?asar'sq soó r7kco de üda,
angariar coisas que contribuem a abreüar a üda." T\au\o,el!:t Bacchides (traem:rl.
VII), escreve: ':4que/es gue vendem sua veda pe/o ouJ'o..." Guntherius
(Za#u/:üus,Vl1, 511) fala dessas 'boa'fes a/usadas a preço de cizhàeíro.desses
soldados que só têm em esta Qprémio militar que lhes era dado, acostumados
a mudar de partido de acordo com o preço oferecido e a ter como inimigo aquele
que !hes ordenasse de combater o amo que lhes desse seu salário.
[62] Dion de Prousa ou Dion Crisóstomo,arado mZ7
163]Bellinus,
-Z)e
Re.4ã7lf.,
parteZZÉ#..gn.' 4.
[64] Soneca,em Nafurajes uaesflbnes(V. 18), diz: ']:bmo chamar de ouü'zzmana/-
ra essa ânsia, essa necessidadede espalhar a destruição, de se !andar furiosa
mente sobre desconhecidos.de se irritar sem ofensa, de devastar tudo em sua
passagem e, como animal feroz, degolar sem odiar.

[65] Em Estobeu, ]ivro 49, 47


CAPITULO HV - DAS CAUSAS DE EMPREENDER A GUERRA EM FAVOR DOS OIROS
993

matam inocentes.Filipe, o antigo, da Macedânia,dizia dessetipo de


gente que só ganha a vida carregando armas [66] : "A guerra é para e]es
apazea paz,aguerra.
3.Aguerra não está entre as profissões,ao contrário, é uma coisa
tão horrível que só mesmo uma extrema necessidadeou a verdadeira
caridade podem torna-la honesta, como se pode compreender segundo o
que foi dito por nós no último dos capítulos precedentes. Segundojuízo
deAgostinho [67],«cevararmas não éum debito,mas é um pecadofazer
um serviço em vista do saque"

X. E sem dúvida mau prestei' serviço


militar tendo em vista somente
os saques ou o soldo

Mesmo tendo em vista o soldo, se se tiver isso única e principal


mente em vista, embora, por outro lado, seja de todo permitido receber
um soldo. O apóstolo Paulo (/ao/:zhÉ70slX,7) diz: "Quem é que faz a
guerra a suas expensas?'

[66] Diodoro da Sicília, livro XV]]], lO.


\
[67] -De 1.%róis .Dom hi secundam .aaafÉüaetzm, citado em (huna mZZZ quaesÉz o ./
xxVI

DAS CAUSAS JUSTAS


PELAS QUIS A GUERRA
PODESERFEllAPOR
AQUELESQUE
/ ESTÃO SOB
O DOMÍNIO DE OUTREM

Sumário

1. Quais pessoaspodem ser ditas estar sob o domínio de


Querela.

11.Quefazerse essaspessoassãoconvocadasadarsua opinião


ou se tiverem livre escolha.

111. Selhesfor ordenadofazera guerra e se elasjulgarem que a


causa da guerra éíiÜusta, não devem tomar em armas.
IV Que decidir se estivesse na dúvida?

U O que éfazerato de cie221ência, poupar, em seillelhante }naí;é.


ria, ossú&tos queduüdam, sobo ónus de um tributo extraor
dinário.

VI. Quandoas armas dos súditos sãojustas numa guerra in


justa.
T CAPITULOHVI - DASCAUSASJUSTAS PEUS QUAIS A GUERRAPODESER FEITAPOR AQUELESQUE EgÃO SOBO DOMÍNIO DE OUTREM
997

1. Quais pessoas podem ser ditas


estar sob o domínio de outrem

'l:ratamos daqueles que são independentes. Há outras pessoas


que estão colocadas na condição de obedecer, como os filhos de família,
osescravos,ossúditos,mesmooscidadãosconsideradosindividualmen-
te, se comparados ao corpo do Estado.

11.Que fazer se essas pessoas sáo convocadas


a dar sua opinião ou se tiverem lide escolha
Quanto a essaspessoas,se são chamadas a deliberar ou lhes é
dada a livre escolhaentre a opçãode servir à guerra ou de ficar em
casa, elas devem seguir as mesmas regras que aqueles que empreen'
dem guerras por sua própria vontade para eles mesmos ou para os
outros [1]

111.Se lhes for ordenadofazer a guerl'a


e se elas julgarem que a causa da guerra
é injusta, náo devem tomar em armas

1. Se lhes é ordenado que sirvam às armas, o que ocorre geral-


mente, estando eles seguros de que a causa da guerra é injusta, devem
se abster de qua]quer forma [2] . Deve-seobedecerantes a Deus que aos
homens. Não são somente os apóstolos (,4fos dos.4pcãsfcz/osV.
29) disse-
ram isso, mas também Sócrates [3] . Entre os mestres dos hebreus há

[1] Aegid. Reg.,.Deací2bussz/pera.,atZspaó.


3], ]]. '8(7.
[2] Vitoria, .De Jure -BeZ/l] n.' 22.

[3] Platão nos ensina isso em sua HpoáB2b(17). Como Apo]ânio que opunha a um
edita de Nero este verso de Sófocles: 'í/[ípifer lâo me àav7a dado a arde n
(Filostrato, Héa HpaZ/on 7 nade ?s2i, IV, 38)
998 Hu GO Gxorius

uma sentença]4] que aílrma que não se deve certamente obedecer a um


rei que manda a]guma coisa contrária à ]ei de Deus. Po]icarpo [5] , no
leito de morte, diz o seguinte: "Aprendemos a prestar aos soberanos e
aos poderes estabelecidos por Deus a honra que lhes é devida, contando
que isso não venha a impedir nossa salvação." O apóstolo Paulo(.Ê7ãslüs
V[, ]) diz: "Filhos, obedecei a vossos pais, segundo o Senhor [6] , pois isso
é justo."A respeito dessa passagem, Jerânimo [7] diz: "Para os fi]hos é
um pecadonão obedeceraos pais e porque os pais poderiam mandar
alguma coisa contrária ao que deve ser, ele acrescentou segundo o Se-
nhor." A propósito dos escravos acrescenta [8] : "Quando o dono segundo
a carne manda algo diferente do que o dono segundo o espírito, não se
deve obedecer." O mesmo diz em outra passagem: "Não devem ter sub-
missão a seus mestres e pais, a não ser nas coisas que não são contrá-
rias aos mandamentos de Deus." O mesmo apóstolo (.E7as7bsVI,8) ha-
via dito também que cada um receberá a recompensa por suas obras,

[4] Que Josefo(.4ní7#ü Jades Judaic'as, XV]1, 6, 3) atribui a e]es: '?\Uo áá gue se
maravilhar se acreditamos que os mandamentos que ÀÍoisés nos deixou por
escrito, sob a inspiração e o ensiname]]to de Deus, mereciam $er ]naís respeita-
dos que luas arde ]s."Acrescente-seo que o rabino Tanchuma, citado por Drúsio,
sobre uma passagem dos Hfos (V. 29).
lõ] Eusébio, ]Dhfoda Zcc/eszbsüc'a(IV 23)
[6] Jogo Crisóstomo (comentário à .8p7'sfoJa aos ,E/3slos, Homi]ia XX], 1) assim
explica esta expressão "seguJ7do o Se lüo/': ' recompensa que náo á pe
queda nos foiproposta se prestarmos a nossospaís o respeito que lhes é devido,
mas devemos considera-ios como mestres, devemos respeita-!os em palavras e
anões,excito no caso em que houvesseprejuízo para a piedade." }Lssànlê que se
deve entender essaspalavras de Jerânimo: 'tbnÉzhua feu c'amil2áo,seguindo
aspegadas feu pai "lYata-se de uma expressãodeclamatória, tomada do reitor
Porcius Latro, e que se encontra em Sêneca(ao/IÉroverszbe,1, 8, 15). Do mesmo
modo se deve explicar o que dizem Ambrósio(Z)e Hlgínfáafe), Agostinho(.81ozbfu/a
XX..XVZZZ.4d Z,aefum), bem como o cânon IV do l Concílio de Nicéia, segundo a
tradução árabe
[7] Sophronius Eusebius Hieronymus]331-420], GommeJléarlum lh Eplsfu/am .F)aiz/I'
ad Ephesios (N1., 4Õ
[8] Jogo Crisóstomo(comentário à /.E»J8Éa/naos C];i:úÉ2bsV]1, 24 ]Zom]ZlbX]X,4)
çhü "Limites foram impostos por Deus à obediência dos escravos. Foi-!hes pres-
crito até onde devemobserva-!ose !hes é proibido ultrapassa-!os.No caso em
que o patrão não ordena nada que seja desaprovadopor Deus, devem se condor
mar a suas ordens e obedecer mas nada além (ileso." Clemente de Alexandria
(Síromafa, IV. 19, 125) diz: 'H muJZer deç,eoóedecei-a seu marido em fado,
falando da mãe de família, e nada deverá fazer que o desagrade, salvo se acre-
ditar em alguma conseqiíênciacom relação à virtude e à salvação.
999
CAPÍTULO HVI - DAS CAUSAS JUSTA PEUS QUAIS A GUERRA PODE SER FEITA POR AQUELES QUE EgÃO SOB O DOMÍNIO DE OUTREM

seja ele ]ivre, seja escravo. Tertu]iano [9], por seu turno, diz: "Foi-nos
ordenado de modo suficiente, segundo o preceito do apóstolo, a sermos
submissos com uma inteira obediência aos magistrados [10] , aos prín-
cipes e aos poderes públicos, mas nos limites da disciplina cristã." No
martirológio, o mártir Silvano diz: "Nós só menosprezamos as leis ro-
manas para guardar os mandamentosdivinos." Em Eurípides [11],
Creonte diz: "Ajustiça não ordena que sejam executadas ordens supre'
mas?" Antígono responde: "Não, quando são contrárias às leis e à justi-
ça." Musonius [12] assim se exprime: "Se a]guém desobedece a seu pai
ou ao magistrado [13] ou a seu mestre que ]he ordena coisasvergonho-
sas ou iníquas a fazer, não é desobediente, nem comete uma injustiça,
nem peca.

2. Au]us Ge]]ius [14] nega que seja uma boa máxima a de dever
obedecer a tudo o que um pai ordenou. Ele diz: "Que aconteceria, de
fato, se um pai ordena a seu filho trair sua pátria, matar sua mãe ou
fazer uma ação vergonhosa ou infame? Aqui, a opção mais sábia e mais
segura é um meio-termo. Deve-se em certos casos obedecer e desobede-
cer em outros." Sêneca [15] diz: "Não se deveobedecera todas as or'

[9] Quintus Septimius F[orens Tertu[[ianus [155-220?] , De ]do/aérea (15)


[10] Ver exemp]os notáveis, tanto de castigo quanto de elogios em / Saque/ XXll,
18-19. /.Re/s XVIII. 4, 13, /7J?e k 1, 10-14. Entre os cristãos, Manuel e Jorre se
recusaram a participar no assassinato da imperatriz(Nicetas, Hdn de deixo,
cap. 17, filho de Manual Comneno)
[11] .,4sFeno bs [1648].
[12] Estobeu, .4 .[JZ]erosPa/e/2f. JZonora ]d(79, 15)
[13] Há entre os pagãos dois i]ustres exemp]os de personagens que não obedece
ram aos imperadores em matéria de coisas desonestas:o exemplo bastante
conhecido de Papiniano e aquele de Helpídio, citados em Amiano (XXI, 6, 9)
Severo não queria que fossem deixados impunes aqueles que haviam matado
um senador por ordem do próprio imperador (Ver Xiphilinus, LXXIV. 2)
[14] Au[us Ge[[ius [séc. ]] d.C.], Moafes,4óúcao (11,7)
[15] Marcus Annaeus Seneca[58 a.C. --32?d.C.], Gonfrovers!'ae(1, 1)
H U GO GKOilUS

dens." Quinti]iano [16] diz: "Os fi]hos não são obrigados a fazer tudo o
que seus pais mandam. Há muitas coisas que não podem ser feitas. Se
mandas teu filho formular uma opinião contrária à sua consciência, se
Ihe ordenas dar testemunho sobreuma coisaque ignora, ser de tal
opinião no senado,seIhe ordenamincendiar o Capitólio, seapoderar da
cidadela, então Ihe é permitido dizer: essas são coisas que não devem
ser feitas." Sêneca [17] diz: "Não podemos ordenar de tudo, como o es
cravo não é obrigado a fazer tudo. O que Ihe for ordenadocontra a
república, não poderá executa-la, pois suas mãos jamais se prestarão
para o crime." Sopater diz: "Deve-se obedecer a um pai, se manda nos
limites daquilo que é justo, está bem; se suas ordens saem do que é
honesto, não convém Ihe obedecer."Foi feito passar outrora pelo ridícu-
[o Stratoc[es [18] que havia proposto antenas uma ]ei dizendo que tudo
o que fosse do agrado do rei Demétrio ordenar, passaria por piedoso ao
o[har dos deuses,e porjusto entre oshomens [19]. P]ínio [20] diz que
;havia em algum lugar demonstrado que a execuçãode uma ordem
iníqua era um crime." [21J

116] Marcus Fabius QuintilianusL30?-100?J , .Dec-/amaÉ]o]es Mnybrc?s ef Minores


(271). O mesmodiz, na mesmaobra (333),o seguinte: ':r\Uoáá necessidadede
fazer tudo o que os país ordenam; de outra maneira, alada seria mais funesto
que os beneHciosrecebidos, se nos reduzissem a uma completa escravidão."
[17] Lucius Annaeus Seneca[01?a.C.-65d.C.], Z)e .Be/2eálcu]k
(111,20)
[18] Esse era o bi]hete que Andrânico Comnenohavia exigido de Basí]io Camatero,
pdo qxxa\"esse prometia nada fazer, quando fosse elevado ao patriarcado, a não
ser o que Andrõníco achassebom, sem excetuar as coisasmais criminosas e
que se abateria ao co1ltrário de tudo o que não agradasse a Andrõnico.
[19] Plutarco, Hda de .DemóÉr70(900 A).
[20] Caius P[inius Caeci[ius Secundus [62-114], .qpJkfu/ae (9, 14): .goikflz/a ad

[2]] Tertuliano (Z)e .4nfma, 40) diz: 'Hque7e que manda reaeóe ma/or pu/]lbão,
porquanto mesmo aquele que obedecenão é escusado." i)\z \antbêBrtÇDe
Resurrectione Carris, tSà. "Entre os homens, o exercício mais perfeito da
justiça vai até encontrar aqueles que não foram senão os mí11ístrasde uma
ação para pum'ios ou recompensa-!os,bem como aqueles que se serviram de
seu múnifávlb. "VeT' Gailius, Z)e Pac-ePuó/laa(livro 1, cap. IV. n.' 14)
r CAPÍTULO
HVI DAS CAUSASJUBAS PEUS QUAIS A GUERRAPODESER FEITAPOR AQUELESQUE ESTÃOSOB O DOMÍNIO DE OUTREM

3. As próprias leis civis que perdoam facilmente as faltas escusá-


veis são, na verdade, favoráveis aos que se encontram na necessidade
de obedecer,mas não em todas as coisas. Elas excetuam, de fato, as
ações que trazem em si atrocidade ou crime [22] que, como fa]a Cícero
[23] , sãoe]as próprias ce]eradas e criminosas. Sãoma]eücios dos quais
se deve fugir voluntariamente, não por causa de decisõesde
jurisconsultos, mas por uma interpretação natural, comoo explica
Ascânio.

4. Josefo [24] lembra que foi re]atado por Hecateu que os judeus
que serviam sob Alexandre da Macedânia não haviam sido forçados por
golpes de açoite nem por outro qualquer mau tratamento a levar terra
com os outros soldados para reconstruir o templo de Belus que estava
na Babilânia. Temos,porém, um exemplo mais próximo de nossotema
na legião tebana, da qual falamos antes (livro 1,cap. 11,$ 1Xe cap. IV.
$ VII) e nos soldados de Juliano, dos quais Ambrósio fala o seguinte: "0
imperador Juliano, embora fosseapóstata, teve contudo sob suas or
dens soldados cristãos que, quando lhes dizia 'Marcham para o combate
pela defesa da coisa pública', Ihe obedeciam,mas quando lhes dizia
Vo[tai vossas armas contra os cristãos' [25], reconheciam por chefe o

[22] Z,. .r5Z ,4deo, .22Ü:, .De I'eg. ./ur

[23] Marcus Tu[[ius Cicero [106-43a.C.], in marram,4aÉz


o (1, 42, 108).
[24] Flávio Josefo, Contra dp/o/ em(1, 22)
[251Juliano, de fato, não se abstevede qua]quervio]ência contra os cristãos,sobre-
tudo quando achava que havia algum pretexto para os perseguir. Num escrito
üe 3e õlüma (~AdNepotianumà se \ê. "Juiiano, o assassino de um exército
cr7kÉão.
"Agostinho(.Z)e Clw'fale Z)ell XVl11, 52) conta que se havia começadoa
i perseguir os cristãos em Antioquia por ordem sua e que um jovem foi tortura-
do. Encontra-se, nos martirológios, santo IClí6io,escocês,e trinta e três compa'
cheiros que Juliano mandou decapitar entre as cidades de Toul e Gand. Ver
também Jogo de Antioquia, em .Excerpó./]eú'esc,Agostinho, em sua carta 50 a
Bonifácio, citada por Graciano, ChagaXZ quaesóo 3, diz: 'í/uZzbno]bz'um nzlpe-
rador mãe!. Não foi um apóstata iníquo e inãle!? Os soldadoschstãos serviram
um imperador ínãei, mas quando se tratava da causa de Crista, eles 1lão reco
nheciam senão aquele que está no céu e quando eie queria que adorassem os
ídolos e que lhes queimassemincenso, eles preferiam a Deus.
H UGO GROTIUS

imperador do céu." Lemos ainda a respeito que mensageiros, converti-


dosa Cristo, haviam escolhidomorrer antes que prestar a mão aos
editor e aos julgamentos contra os cristãos.

5. Outro tanto se deverá dizer se alguém está persuadido que


aqui[o que é ordenado é injusto [26] .A seus o]hos, essacoisa é tida como
ilícita por todo o tempo até que não seja demovido do contrário, como
isso resulta do que foi tratado anteriormente.

IV Que decidir se estiverem na dúvida?

1. Se duvidar que a coisa seja lícita ou não, deverá ficar na ma-


ção ou obedecer? A maioria é de opinião que deverá obedecer e que essas
palawas célebres "Não faças o que duvidas" não põem obstáculo porque
aquele que duvida teoricamente pode não duvidar na prática. De fato,
ele pode crer, na dúvida, que se deve obedecer ao superior. Seguramen-
te, não se pode negar que essadistinção de um duplo julgamento não
ocorre em muitas ações.As leis civis, não somente dos romanos, mas
também dasoutras nações,concedemnão somente em semelhante cir
cunstância a impunidade aos que obedecem[27], mas também recu-
[26] Vitoria, .De Jui«e .Be//l; n.' 23

[27] João Crisóstomo(Z)e Prou7denfza, ]ll) diz: 'gl/UJfas urzes maglsüados dará/n
punidos por ter feito morrer injustamente indivíduos, mas ninguém jamais
perseguiu através da justiça os carrascos que foram os ministros dessas execu
iões, emprestando suas mãos para tanto. Nunca se pensou em procura-!cs. A
necessidade de obedecer no posto em que se encontravam bastava para
desculpa-!os, em consideraçãoda autoridade daquele que lhes deu a ordem e
da temor que devia ter aquele que era obrigado a obedecer."V\p\ax\o, segu3nàn
Censo,à\zl "0 escravo que obedeceuàs ordens de seu amo não se tornou
culpado de falta alguma" ÇL 2, Dig., De Nora!. Act). "Não é obrigado a decidir
aquele que obedeceàs ordells de um pai ou de um patrão" ÇL. 4, Dig., De
Rega.lú Ju/:zs).Ver Cujas, sobre essa última lei. Segundo Sêneca(.Z®lsó. 61, 3),
não há necessidadepara aquele que age por vontade própria". ucescenle-se
a lei lombarda, livro 1, tít. IY cap. 2. Mitridates mandou de volta impunes os
libertos de Atílio que haviam sido cúmplices de uma conspiraçãocontra sua
vida e fez o mesmocomrelaçãoa amigosparticularesde seufilho que se
revo[tara contra e]e(Apiano, J?e/7.
]1©fbrldaÉ.).Tibério Graco não foi punido
pelo tratado celebrado com os numantinos porque havia cometido essa falta,
obedecendoàs ordens de outrem(Plutarco, ber7us Graccüus, 827 A)
T CAPÍTULO
HVI DAS CAUSASJUSTASPAUS QUAIS A GUERRAPODESER FEITAPOR AQUELESQUE ESTÃOSOB O DOMÍNIO DE OUTREM
1003

sam toda ação civil contra eles. Dizem que "o autor do dano é aquele que
manda fazer, mas não há culpa da parte daquele que está na necessi-
dade de obedecer" [28] . "A necessidadede obedeceraospoderes serve de
escusa"e outras máximas similares.

2. O próprioAristóte]es]29] no livro de .EZztu,coloca, na verdade,


no número daqueles que cometem uma açãoinjusta, mas sem agir
injustamente, o servidor do mestre que dá a ordem. E diz que aquele
que é o princípio da ação é que age injustamente, entendendo-se que
num servidor a faculdade de deliberar não écompleta, comoo indica o
provérbio [30]: "Aque]e que é coagidoa servir é privado da metade de
seu va]or." E este pensamento seme]hante [31] : "Uma metade da razão
é tirada por Júpiter a essa categoria de homens que ele votou à vida
servil." E estas palavras de que faz uso Fílon [321:"Nascido para a
escravidão, tu não tens razão"]33]. E este pensamento de Tácito]34] :
"Ao príncipe os deuses deram a soberana decisão de todas as coisas;
obedeceré a única glória que foi deixada aossúditos." O mesmo escritor
[35] conta que o f]]ho de Pison foi perdoado por Tibério do crime de

:il8à h 169, Damnum, Dig., Derem. jur:;L. 37, Liberhomo, l)ig., AdLegemAquiliam;
L. 167, Non videtur, $ Quiiussu, Dig., De reg. jur.;Paulo, livro V. gene., tít. 22,
$1, 2;Leis dos }ongobardos, !ivro i, tít. 96, de termino effosso;Leis dos visigodos,
livroil, tít. 2, cap. 2;livro Vli!, tít.l, cap. 3, 4;!ivro Vil, tít. Vii, cap. 5.
[29] .Óüca a .A/lbómaco(V. 12).

[30] Longinub, -De .Suó/ím.(43)


131] Homero, O(i)ssózb(XVl1, 322-23)

[32] Fílon, é?uod(202JZJb


.Fbuóusbaba'(7).
[33] Temístio(arado J:8)diz que os príncipes se asseme]ham à razão, os soldados à
ira
[34] Caius Corne[ius Tacitus [55-120],,4nna]es(V], 14).
[35] Idem, .4/7na7es(111, 17).
H UGO GKOíiUS

guerra civil: "Eram as ordens de seu pai e um filho não poderia desobe-
decer." Sêneca [36] diz: "0 escravo não é o censor da ordem de seu pa'
trão, mas o executor."

3. Especialmente nessa questão do serviço mi]itar, Agostinho137]


teve o mesmo pensamento. De fato, assim se exprime: 'IJm homem de
bem, pois, que leva as armas sob um rei, mesmo sacrílego, pode legiti-
mamente fazer a guerra sob suas ordens, se, respeitando a ordem da
paz pública, está certo que aquilo que Ihe é ordenado não é contra o
mandamento de Deus ou mesmoquando não estivessebem seguro.A
iniquidade do comando torna então o rei criminoso e o dever de obedecer
justiÊlca o so]dado." E em outra passagem [38] : "0 so]dado que, obede-
cendo à autoridade sob a qual está legitimamente colocado, mata um
homem, não é acusadode homicídio por nenhuma ]ei de seu país [39].
Ao contrário, se não o fizer, setorna culpado de desobediência e de rebe-
lião. Sepor ele mesmoe com sua própria autoridade o tivesse feito, teria
caído no crime de ter derramado sangue humano. Por isso, o que o
tornaria passível de punição, se o tivesse feito sem ordem, o tornaria
digno de punição se não o tivesse feito depois de ter recebido a ordem."
Disso é que comumente se deduz essa opinião [40], segundo a qual, com

[36] Marcus Annaeus Seneca [58 a.C. --32? d.C.], GonÉroverszbe(111, 9).

137] Aure[ius Augustinus [354-430], OonZra .füusfum .4/an/cÃaeum (XX]1, 74)


[38] Idem, De O]'wÉafeZ)eu(1, 26).
[39] O mesmo Agostinho, em Z)e Z/mero 4rózÉr2b(1, 4), diz: ';Se manai- um comem
caracteriza o homicida, pode-seàs vezesmatar sem crime, porque o soldado
que mata um inimigo, ojuiz ou o executor das sentenças que levam à morte um
culpada, aquele que de suas mãos escapa uma rede involuntariamente ou por
imprudência, não me parecem cometer crime, qualldo matam um homem; por
/bso, não são chamadosÀom cujas." Graciano reproduz essapassagem em (hu-
na XXiil, quaestio V.
t4QÃSüvest., in verbo Beilum, parte 1, n.' 9, conc!. 4 Gaste.,in 1,. 5, Dig., i)e Justit.\
taxa, livro VI quaestio 1, art. 7, e quaestio3, art. 3,'g\\ax\a, De Jure Beili, n.' 32,
Cavaxmwias, in cap. Peccatum, parte 11, $ 10.
1005
CAPÍTULOHVI - DAS CAUSASJUSTASPAUS QUAIS A GUERRAPODESERFEITAPOR AQUELESQUE ESMO SOB O DOMÍNIO DE OUTREM

relaçãoaossúditos, podehaver uma guerra justa de uma parte e de


outra, isto é, ]ivre de injustiça. Aisso se refere esteverso [41] : "Qua] dos
dois tomou as armas com maior justiça? Não é dado saber.. ."

4. Isso não deixa, contudo, de ter sua dificuldade. Nosso pompa'


triota Adriano [42] , o último dos cisa]pinos que se tornou pontífice ro-
mano, defende a opinião contrária [43] . Essa pode ser sustentada, não
precisamente pela razão que ele alega, mas por essarazão mais urgen-
te que aquele que duvida teoricamente deve determinar seujulgamento
na prática em favor da opção mais segura. A opção mais segura é de se
abster da guerra. Os essêniossão elogiadospor aquilo que juravam,
entre outras coisas, "de não prejudicar ninguém, mesmose lhes fosse
dada essa ordem" [44] . Ateu exemp]o, os pitagóricos, segundo testemu-
nho de Jâmblico [45], se abstinham da guerra por essarazão e acres-
centa "que a guerra inspira e comanda assassinatos

5. Não se deve, por outro lado, obstar que há perigo de desobe-


diência. Um e outro sendo incertos, porquanto se a guerra é injusta não
há nenhuma desobediência a evitar, aquele dos dois que for o menor
está isento de culpa. A desobediência, nas coisas dessa espécie, é por sua
natureza um mal menor que o homicídio, sobretudo de um grande nú-
mero de inocentes [46] . Os antigos narram que Mercúrio, acusado do
assassinato de Argos, tendo-se defendido alegando que havia agido sob
a ordem de Júpiter, os deuses não ousaram, contudo, absolvê-lo.

[41] Marcus Annaeus Lucanus [38-65],Püarsa/lb (1, 126)


[42] Adr., é?uaesf. QuodZ, ]ivro ]].

[43] Há exemp]osde autores que são dessaopinião em Lambert de Schafnaburg


[44] F[ávio Josefo [37?-100?], Guerras Judaicas (11, 8, 7).
[45] De H'fa /WÜag. (186).

[46] Bald., .ZCCbns. J85; Sotus, De def, gecz memór, 3, quaesf. 2, ]h resp. ad.[
1006 H UGO GROTIUS

Marcial [47] não descu]pa tampouco Potino, escudeiro de Ptolomeu,


quando diz: "A causa de Antânio é pior todavia que aquela de Potino;
este último cometeu o crime por seu mestre, aquele por si mesmo." O
que alguns alegam contra não é tampouco de grande peso [48] que, se
issofosse admitido, a coisa pública estaria muitas vezesexposta a pere'
cer porque a maior parte do tempo não é vantajoso a não ser que as
razões das deliberações sejam levadas a conhecimento do povo. Que isso
seja verdade, de fato, para o que diz respeito aos motivos que engajam
na guerra, isso não é verdade com relação a causas justiHlcativas, as
quais devem ser claras e evidentes e, em decorrência, tais que possam
e devam ser publicamente expostas.

6. O que foi dito das leis, de uma maneira talvez pouco distinta
por Tertuliano [49], ocorre exatamente muito a propósito dessas]eis ou
editas concernentes à guerra a fazer: "Um cidadão não obedece fielmen-
te à lei, senão conhecea natureza do que a lei pune. Nenhuma lei deve
se limitar a ser só consciente de sua justiça, mas deve fazê-la conhecer
aos que de quem ela espera o respeito. De resto, é suspeita a lei que não
quer ser examinada, é tirânica se domina sem ter sido examinada." Em
Papínio [50], Aqui]es fa]a assim a U]isses que o incita à guerra: "Dá-me
a conhecerquais foram para os gregosas origens de uma tão grande
guerra; gostaria de haurir daí justos ressentimentos." No mesmo [51] ,
Teceu assim se exprime: "lde com ardor, conüiai,vos rogo, numa tão

[47] Marcus Va[eriusMartia[is [40-104],@)i]gramm.(111,66, 5).


[48] Vitoria, .De Jure .Beib] n.' 25

[49] Quintus Septimius F[orens Tertu[ianus [155-220?], .4po/ogefiaus (]V. 1)


Nationes ($).

[50] Pub[ius Papinius Statius]69-125], ,4cü]Z/e/s(11, 47).

[51] Idem, TZeZ)aJk


(X]1, 648).
CAPITULOHVI - DAS CAUSASJUSTA PEUS QUAIS A GUERRAPODESERFEITA PORAQUELESQUE EgÃO SOB O DOMÍNIO DE OUTREM

grande causal" Propércio [52] havia dito: "A causa da guerra quebra ou
releva as forças no soldado. Se a causa não é justa, o sentimento da
honra faz tombar suas armas." Semelhante a isso, estas palavras do
panegirista [53] : "A boa consciência faz parte tanto da guerra como a
vitória não é um efeito da coragem mais do que da probidade."Assim é
que certos homens eruditos interpretam a palawa ':jarek" que se lê em
Génes7k (X]Vj14) [54], dando-]he o significado que aqueles que assis-
tiamAbraão haviam sido, antes do combate,plenamente informados do
fato, por ele mesmo, da justiça de suas armas.

7. E certo que as denúncias de guerras, como diremos um pouco


mais adiante (livro 111,cap. 111,$ XI), eram ordinariamente feitas de
modo transparente e com a causa expressa, a ülm de que todo o gênero
humano, por assim dizer, pudesseconhecer a justiça da causa. E que a
prudência, como observou tambémAristóte]es [55], é uma virtude pró
pria daquele que governa, mas a justiça é uma virtude do homem,
enquanto homem.

8.Aopinião que dissemos ser deAdriano parece dever ser absolu-


tamente seguida,seo súdito não somenteduvida, maspersuadido por
razões prováveis pende antes a pensar que a guerra é injusta [56] e
principalmente se se trata de atacar os outros, não.de proteger os seus.

[52] Sextus Propertius [47?-16? a.C.], .E7eglbs(]V. 6, 51)


[53] Nazar., Paneg)z aonsfai?É7hi (7).

[54] Em Josefo(.4nÉzgufdades
anda cas,XV] 5, 3), Herodesse exprime assim num
discurso aos judeus, após uma derrota na Arábia: 'Desqb vos mosíral' com
quanta justiça empreendemosesta guerra, coagidos que fomos a fazê-!a pelos
ultrajes de nossos inimigos. Se compreenderdes isso, será para vós um grande
encorajamento. para ousar.
[55]PoZz'Zlc;a
(111,4).
[56] Aegid. Reg., Z)eacílbus sz/pera., dlspuf. J], duó. â n. '85; Bannes, .Zt Z quaesflo
4q a]«í. ]; Mo]ina, H'acfaf. /Z atíspuf. ]/3.
1008 H UGO GROTIUS

9. Há mesmo aparência que o carrasco que põe à morte um con-


denado deve ser, até certo ponto, instruído da qualidade do crime por ter
assistido à questão e à instrução ou pela confissão do culpado, a Êm de
estar suficientemente seguro que merece morrer [57] e isso é observado
em muitos lugares. Alei hebraica (.DeuferonómioXVl1, 7) não tem em
vista outra coisa quando quer que as testemunhas marchem diante do
povo para apredejar aquele que foi condenado.

V. O que é fazer ato de clemência, poupar


em semelhante matéria, os súditos que duvidam,
sob o ânus de um tributo extraordinário

1. Se não sepuder satisfazer os ânimos dos súditos pela exposição


da causa, o dever de um bom magistrado será, muito certamente, de
lhes impor tributos extraordinários, antes que o serviço mi]itar [58] ;
sobretudo se não deve faltar, para levar as armas, outras pessoasque
um rei justo podeempregar à vontade não somentehonesta, mastam-
bém perversa, do mesmo modo que Deus se serve do ministério sempre
pronto do diabo como dos ímpios, assim também está isento de falta
aquele que, pressionado pela miséria, recebe dinheiro de um injusto
usurário.

2. Mais ainda, mesmo se não houver nenhuma dúvida sobre a


causa da guerra, não parece contudo de todo justo que cristãos sejam
forçados portar armas apesar deles, porquanto se abster do serviço mi-

[57] Por isso é que os ministros de Sau], mais conscienciososque Doeg, não quase
ram matar os sacrificadores que moravam em Nob (/ Saque/ XXl1, 7). E o
terceiro dos oficiais mandadospor Acab não quis usar de nenhuma violência
contra Ellas(/7Eeü 1, 13 e seguintes). Alguns carrascosconvertidos à religião
de Cristo renunciaram depois ao emprego,comouma tarefa perigosa.Ver o
Martirológio e Beda(.llhóo/:faEcc/esasÉfca,1,7)
[58] Silvest., in verão .BeJyum, parte .C n. ' a caca Élbem.
1009
CAPITULOHVI - DASCAUSASJUSTAS PAUS QUAIS AGUERRA PODESERFEITA PORAQUELESQUE ESTÃOSOB O DOMÍNIO DE OUTREM

litar, mesmo nos encontros em que é permitido servir, é de algum modo


um sinal de uma virtude mais perfeita que foi muito tempo exigida dos
clérigos e dos penitentes e recomendada a todos os demais, de variadas
maneiras. Orígenes [59] assim responde a Celso,que objetava que os
cristãos se recusavam ao serviço militar: "Aos que, estranhos à nossa
fé, nos ordenam portar armas para a coisa pública e matar homens,
responderemos assim: Aqueles que são sacerdotesde vossosídolos e os
ílamíneos dos deuses que acreditais como tal conservam suas mãos
puras para os sacrifícios, a íim de ser dignos de os oferecer a esses
pretensos deuses com mãos inocentes e que não estejam manchadas
por nenhum assassinato, o que dá na mesma, quando sobrevém algu-
ma guerra esses sacerdotes não são convocados. Se isso não está despro
vido de razão, quanto mais não se deve, enquanto que os outros fazem a
guerra, considerar como portando armas à sua maneira, aqueles que,
como sacerdotes e servidores de Deus, conservam na verdade suas mãos
puras, mas não deixam contudo de combater por suas oraçõesjunto a
Deus em favor daqueles que fazem a guerra por uma justa causa e
daquele que reina legitimamente?"Nessa passagem chama de "sacer-
dotes" a todos os cristãos, a exemplo dos escritores sagrados.

VI. Quandoas armas dos súditos


sáojustas numa guerra injusta
1. Sou de opinião, de resto, que pode ocorrer mesmo que, numa
guerra não somente duvidosa, mas também manifestamente injusta, a
defesa dos súditos possa serjusta sob certos aspectos. Como o inimigo,
ainda que fazendo uma guerra justa, não tem verdadeiramente e em

[59] Orígenes [1 85?-254?], (]o/]íra CeJsu/n (Vl11, 73)


H UGO GROTIUS

consciência o direito de matar súditos inocentes e, não tendo nenhuma


parte na culpa da guerra, a menos que não seja para sua defesa neces-
sário ou por vias de conseqüência e fora de seu desígnio, pois não mere-
cem ser punidos, segue-seque, se for constatado com certeza que o
inimigo veio com a intenção de recusar de modo absoluto poupar, poden-
do-o, a vida dos súditos pertencentes ao inimigo, esses súditos podem Fe
defender em virtude do direito de natureza que não lhes foi subtraído
pelo direito das gentes.

2. Não diríamos então que a guerra é justa dos dois lados, pois
não é questão da guerra, mas de uma ação determinada e precisa. Essa
ação, embora por outro lado venha daquele que tem o direito de fazer a
guerra, é injusta e,por conseguinte,é rejeitada legitimamente.
l

REGRAS
/ GERME
DO QUE E PERMITIDO
NA GUERRA.SEGUNDO
O DIREITO DE NATUREZA
/
TRAJA-SE LAMBEM
DO DOLO E DA MENTIRA

Sumário

1. Ordem dos assuntos.


li. Primeira regra:na guerra, as coisasnecessáriaspara Qobje-
tivo proposta são permitidas.
lli. Segunda regra: Qdireito não é apreciado somente se coloca-
do no começo da guerra, mas segundo as causas que possam
surgir durante o curso da guerra.
IV Terceira regra: certas coísaspodem ocorrer caldo consequên-
cias, e sem ilÜustíça, que não seriam permitidas em caso
premeditado; a isso se acrescenta uma precaução a tomar.
WExplica-sepor distinçõeso que é permitido contra aqueles
que fornecem coisas ao inimigo.
\rl. Se épermitido fazer uso do dolo na guerra.
VII. O dolo, no ato negativo, não é deper siilícito.
VIII. O dolo, no atopositivo, se distingue em dolo que ocorrepor
alas de sig11ificação livre e em dolo que ocorreporatos que
têm uma significação comodeterminada por uma conven-
ção; demonstra-se que o dolo da primeira espécie élícito.
IX. Indica-se a diBculdade da questão na segunda espécie.

X. Todo emprego de um termo que se sabe quepode ser tomado


em outro sentido não éilícito.

XI. A natureza da menta'a ilícita consiste no que está em oposi


ção ao direito de outrem.

XII. Demonstra-se também que élícíto usar de mentira com


relação a criançaseiaucos.

XIII. Colho também quando se engana com isso aquele a quem


o discurso não se dirige e que é permitido enganarinde-
pendentemente do discurso.

XIVIE quando o discurso é dirigido ao que querserassim erga


nado.

XV E quando aquele que fala usa de um direito de superioüda


de sobre unia pessoa que Ihe é submissa.

XVI. Talvez também quando não podemos defender de outro


modo a vida de um izlocente ou alguma outra coisa equi-
valente.

XV.ll. Quais os autores quejulgaram que a !nentirapregada ao


inimigo élícita.
XVIII. Isso não deve ser estendido às palavras que encerram
uma promessa. /

X]X. Nem aosjuramentos.


XX. Econtudo mais generoso e convémmelhor à simplicidade
cristã abster-se da mentira, mesmo com relação ao i11imi-
go, o que é esclarecídopor comparações.

XXI. Não nas éperlnítido compelir alguém ao quenos épermi


tido, mas não o é a eiQ.

XXII. Epermitido contudo usar de um serviço voluntariamente


oferecido.
CAPITULO 1- 0 QUE E PERMITIDO NA GUERRA, SEGUNDO O DIREITO DE NATUREZA

1. Ordem dos assuntos

Vimos quais são os que fazem a guerra e por quais causas é per-
mitido guerrear. Resta examinar quais coisassãopermitidas na guerra
[1], até que ponto e de que maneira se apresentam: o que é considerado
pura e simplesmente ou com relação a uma promessaprecedente. Pura
e simplesmente: segundo o direito de natureza em primeiro lugar, em
seguida de acordo com o direito das gentes. Vejamos, pois, o que é per-
mitido pelo direito de natureza.

11.Primeira regra: na guerra, as coisas necessárias


para o objetivo proposto são permitidas

1.Primeiramente, comojá o dissemosantes reiteradas vezes,as


coisas que, em matéria de moral, conduzem a um üm recebem desse
próprio 6m seu va]or intrínseco [2] . Por isso é que tudo o que é necessá
rio, não de uma necessidadefísica, mas de uma necessidademoral para
a persecução de algum direito, somos considerados como autoridades a
coloca-lo em uso. Quero falar desse direito que é estritamente chamado
assim e que significa a faculdade de agir na única consideraçãoda so-
ciedade. Por isso, como observamos em outro lugar (livro 11,cap. 1, $
111),se não possode outro modo salvar minha vida, me é permitido

[1] Agostinho diz muito bem em sua carta 70 ao conde Bonifácio: "Que possas, na
própria guerra, se ainda é necessário que a faças, observar a boa íé e buscar a
paz.f"E em sua carta 205: ':procura serpac#ícq mesmofazendo a guen'a."Sobre
a justiça a ser observada na guerra, há um excelente discurso de Belisário a
seus soldados, reproduzido em Procópio(Eanda#a, 1, 16). Orósio diz: 'Zss7ln é
que se fazem as guerras civis, nos tempos e pelos princípios cristãos, quando
não àá melo de as ew'far"(livro Vl1, 21). O mesmo,falando de Teodósio(livro
HI, ZSà,à\z. "Que sda mencionada, desdeo começoda fundação de Romã, uma
só guerra que tenha sido empreendida tão justa e necessariamente e tenha
terminado com felicidade tão proüdencia!, de modo que nem os combatesresui'
tapam em grandes massacres, nem a ütória foi seguida de vingança sangrenta.
[2] Vitoria, .De Juz'e .Be/yl] n.' 15.
!016 H UGO Gxoítus

repelir de toda forma de violência aquele que a ataca, mesmo que ele
esteja isento de crime, porque essedireito não surge propriamente do
crime de outrem, mas do direito que a natureza me concedepara mim
mesmo.

2. Mais ainda, posso,abstração feita de toda consideração-dacul-


pa de outrem, pâr a mão sobre uma coisa pertencente a outro, quando
um perigo certo me ameaça [3]. Não posso, contudo, tornar-me dono
dela, pois isso não tem nenhuma relação com esseülm, mas guarda-la
até que haja garantia suficiente, conferida à minha segurança,.ponto
que foi tratado por nós em outro local (livro 11,cap. 11, $ X). Assim é que
me pertence naturalmente o direito de arrancar do detentor de uma
coisa minha que outro detém e se é muito difícil, uma outra coisa de
mesmo valor, como também posso fazê-lo para obter o que me é devido.
Nesses casos, a propriedade se segue também porque a igualdade lesa-
da não pode ser reparada de outra maneira [4] .

3.Assim é que quando a punição é justa, toda violência sem a


qual não se pode chegar à pena é também justa. Do mesmo modo que
tudo o que faz parte da pena, como o desgaste das coisas por incêndio ou
de outra forma, contanto que, bem entendido, esteja dentro de um justo
limite e em relação com a ação culpada.

111.Segunda regra: o direito não é apreciado


somente se colocado no começo da guerra,
mas segundo as causas que possam
surgirdurante o curso daguerra
Deve-se saber, em segundo lugar, que nosso direito não deve ser
apreciado colocando-seunicamente no começoda guerra, mas ainda
segundo as causas que surgem a seguir, do mesmo modo que, nos proces'

[3] Idem, De Jure .Be/Ü n.' 18, 39 e 55.

[4] Silvest., in verão .Be/7um, pai'fe Z ]].' Z(4 verá. pr2)na


T CAPÍTULO 1- 0 QUE É PERMITIDO NA GUERRA, SEGUNDO O DIREITO DE NATUREZA
1017

sos, um direito novo é muitas vezesadquirido à parte após a .üíls


confesfaZlo.Assim é que aqueles que sejuntam a meu agressor, sejam
seus aliados, sejam seus súditos, estendem para mim o direito de me
defender contra eles também. Assim é que aqueles que se mesclam
numa guerra que é injusta, sobretudo se eles próprios podem e devem
saber que é injusta, se obrigam a indenizar despesas e danos porque
eles causam um dano por sua culpa. Assim é que aqueles que acedem a
uma guerra empreendida semrazão provável setornam eles próprios
puníveis na proporção da injustiça contida em sua ação.Assim Platão
[5] aprova a guerra "até que enfim aque]es que são culpados sejam
coagidosa dar, por sua punição, satisfação aosinocentes aos quais fize-
ram mal'

IV Terceira regra: certas coisas podem ocorrer


como conseqüências, e sem injustiça,
L
que não seriam permitidas em caso premeditado;
a isso se acrescenta uma precaução a tomar

1. Deve-se observar, em terceiro lugar, que muitas coisas vêm


indiretamente e sem que aquele que age tenha p]anejado [6] se juntar
ao direito que tem de agir sobre as quais não teria nenhum direito se
fossem consideradas em si mesmas [7] . Exp]icamos em outro ]oca] (]i-
vro 11,cap. 1, $ IV) como isso ocorre na defesa de si mesmo. Assim é que,
para reaver o que nos pertence, se não for possível recuperar o justo
valor, temos o direito de tomar um valor superior, sob a obrigação con-
tudo de restituir o excedente.Assim é que um navio cheio de piratas ou
que uma casa repleta de salteadores podem ser atacados a tiros de ca-
nhão, mesmo se no interior do mesmo navio ou da mesma casa houves-

[5] .De .Repuó#ca (V. 16)

[6] A respeito do assunto, ver Tomas, -rZ ], quaesf. ZmZZ arf. 8; Molha, H'acf. .i&
dísput. CXX!.
[7] Vitoria, De Jure .Bei71.n.' 37
!018 H UGO GROTlus

se um pequeno número de crianças, de mulheres ou de outras pessoas


inocentes que ficariam por isso expostas ao perigo. Agostinho [8] diz:
"Não é culpado da morte de outrem aquele que cercou seu bem com
uma muralha, se em conseqüênciado exercício de seu direito de levan-
tar muros, alguém se feriu e morreu.:

2. Como já adver«Limosrepetidas vezes, o que é conforme ao direi-


to estritamente tomado não é sempre lícito em todas as suas partes.
Muitas vezes o amor do próximo não permitiria que fizéssemos uso do
direito rigoroso. Por isso é que se deveria tomar cuidado de não dar
lugar a nada do que ocorre e que se prevê que possaocorrer, mesmo
contra nossa intenção, a menos que o bem para o que tende nossa ação
não seja mais considerável que o mal que nos acabrunha ou na igualda-
de do bem e do mal, a esperançado bem não seja muito maior que o
temor do mal, o que é deixado à prudência julgar, mas de maneira a que
sempre,na dúvida, se incline para a opçãoque é mais vantajosa a
outrem que a si mesmo, como sendo a mais segura. Nosso excelente
Mestre [9] diz: "Deixai crescer o joio, com receio de, querendo arran-
ca-lo, não puxeis junto o bom trigo." Sêneca [10] diz: "Matar uma mu]-
tidão de homens e sem distinção é o poder do incêndio e do desmorona-
mento."Ahistória nos ensina com que séria penitência, sob as adver-
tências de Ambrósio, Teodósioexpiou um tal excessode vingança.
3. Se Deus, às vezes,faz algo de semelhante, isso não deve ser
tomado por nós como exemplo por causa desse direito absoluto de pro-
priedade que ele tem sobre nós, mas que não o concedeu a nós para
exercê-lo um sobre o outro, como o assinalamos em outro local (livro ll,
cap XXI, $ XIV). Esse mesmo Deus, contudo, mestre dos homens por
seu próprio direito, poupa ordinariamente a generalidade dos maus,
embora grande, em consideraçãode um pequeno número de pessoasde
bem e testemunha por isso sua equidade enquanto juiz, como nos ensi-

[8] Aure[ius Augustinus [3sa -430], .4c/ puó/. Ed)]bÉ. (154).

[9] .4/nfeus X]11, 29i Tomas, .ZZ .g quaesf. õ4, arf. 2.

[lO] Lucius Annaeus Seneca [01? a.C.-65 d.C.], Z)e (;7emenf b (1, 26, 5)
1019
CAPÍTULO 1- 0 QUE.É PERMITIDO NA GUERRA. SEGUNDO O DIREITO DE NATUREZA

na claramente o diálogo de Abraço com Deus a respeito de Sodoma


(GénesísXVl11, 23 e seguintes). Pode-se sem dúvida conhecer por essas
regras gerais a extensão do que é permitido naturalmente contra um
mimlgo.

V O que é permitido contra aqueles


que fornecem coisas ao inimigo
1.Aquestão se apresenta ordinariamente também de saber o que
é permitido contra aqueles que não são inimigos ou não querem ser
tidos como tais, mas que fornecem certas coisas aos inimigos. Sabemos
queoutrora ehá poucotambém sediscutiu vivamente sobreesseponto,
alguns defendendo o rigor da guerra, outros a liberdade do comércio.
2. Deve-se distinguir primeiramente entre as próprias coisas.
Há, de fato, coisas que têm uso somente na guerra, como as armas; há
aquelas que não têm uso na guerra, como as que servem para o prazer;
há aquelas que têm uso tanto na guerra como fora dela, como o dinhei-
ro, os víveres, os navios e as coisas que se encontram nos navios [11] .A
respeito da primeira espécie,a palavra de Amalasonte a Justianiano é
verdadeira: que aquele que fornece aoinimigo coisasnecessáriasà guer-
ra é do partido dos inimigos [12] . Asegunda espécienão comporta quei-
xa. Assim é que Sêneca [1 3] diz que testemunhada reconhecimento a
um tirano, se o serviço que Ihe prestasse não fosse capaz de aumentar
seu poder desastroso para todos [14] , nem afirma-]o, isto é, se pudesse
ser prestado sem acarretar a ruína pública. Explicando isso, acrescen-
ta: "Dinheiro para pagar e manter sua escolta,não forneceria. Se dese-
jasse mármores, ricas vestimentas, esseaparato de luxo não poderia
em seu país prejudicar a ninguém, mas não Ihe daria armas, nem

[11] Era o que os atenienses chamavam de Altopptlta, isto é, mercadorias cujo


transporte era proibido, como cordame, odres, madeira, cera, piche. Ver o
escoliasta que comenta .4s .Nut'ens(365) e OK CâKaJeúos(282) de Aristófanes.
[12] Procópio,em Gofíü c.(1, 3)
[13] Lucius Annaeus Seneca [01? a.C.-65 d.C.], .De .Bene#cízk (V]1, 20).
[14] Ver Paruta, ]ivro V]]
H UGO GROTIUS

soldados. Se pedisse como presente um grande número de artistas cêni-


cos e essas coisas que pudessem abrandar seu humor feroz, de boa von-
tade os ofereceria. Não Ihe enviaria nem trirremes, nem navios de guer-
ra, mas barcos de lazer e de desfile e outras fantasias de reis que se
movem sobre o mar." Segundo juízo de Ambrósio [15] , ser ]ibera] para
com aquele que conspira contra a pátria não é uma liberalidade louvável.

3. Arespeito dessa terceira espécie de coisas que têm duplo uso,


se deveria distinguir o estado da guerra. Se não posso me defender se-
não interceptando as coisas que são enviadas, a necessidade como expu'
demosem outro local (livro 11,cap.11,$ VI) me dará o direito, mas sob
o encargo de restituição, a menos que outra causa não sobrevenha [i61 .
Se o transporte das coisas impediu a prossecução de meu direito e se
aquele que efetuou essetransporte pôde sabê-lo, se, por exemplo, eu
mantinha em praça forte sediada ou portos fechados e se a rendição ou
a paz já eram esperadas, seria obrigado para comigo em razão do dano
causado por sua fa]ta [17], como aque]e que fez sair da prisão um deve-
dor ou favoreceu sua fuga em meu dano. Os objetos, pertencendo-lhe,
poderão também ser tom ados na medida do dano causado e a proprieda-
de dessas coisas poderá ser adquirida para a recuperação do que me é
devido. Se ainda não me causou nenhum dano, mas quis causa-lo, teria
o direito de força-lo pela retenção das coisas pertencentes a eles, a me
dar garantias para o futuro por reféns, penhores ou de qualquer outra
maneira. Se, enHlm,a injustiça de meu inimigo é de todo evidente con-
tra mim e se esseterceiro o fortifica em sua guerra cheia de iniquidade
não,será mais desdeentão obrigado só civilmente à razão do dano, mas
ainda criminalmente, comoaquele que subtrai um réu confessoconvic-
to ao juiz que vai condena-lo. Será então permitido estatuir a essetítulo
contra ele o que convém ao delito, segundo o que dissemos sobre as
penas. Por isso, ele poderá até ser dessemodo despojado.

[15] Ambrosius [340?-397],De Oz?7cvzs


i14hlkÉra'um(1, 30, 144)
t\6Ã Can., in C. lta quorumdam e C. Adliberandam de Judaeis.
[17] Silvest.,h verãoXesÉlfuíl'o,
pal'fe J, / ].2.
CAPÍTULO 1- 0 QUE É PERMITIDO NA GUERRA. SEGUNDO O DIREITO DE NATUREZA
!021

4. Por essas razões é que notificações públicas são oridinariamente

feitas pe[os be[igerantes aos outros povos [18], a Himde que sejam infor-
mados tanto da justiça da causa quanto da esperança provável que se
tem de fazer valer seu direito.

[18] Ver exemp]os a respeito na ]iga dos príncipes cristãos contra .os egípcios, os
sarracenas e outros (Can. ult. De transactionibus; Can. Signinicavit, De Judaeis,
Extravagante Capíosus De Judaeis; Can. ], livro y Extravag. De Judaeisà. Fdt
publicado em italiano o livro do Consulado do Mar, onde foram reproduzidas as
constituições dos imperadores da Grécia, da Alemanha, dos reis dos francos. da
Espalha, da Síria, de Chipre, das ilhas Baleárias, dos venezianos,dosgenoveses
NQ título CCLXXIV desse livro, trata-se desse tipo de questões e aqui vão
algumas decisõesapresentadas. Se um navio e sua carga pertencem aos inimi-
gos, é claro que se tornam propriedade de quem deles se apodera. Se o navio
pertence a pessoas de um país neutro e as mercadorias carregadas se destinam
aos inimigos, os beligerantes podem forçar o navio a levar essas mercadorias
para algum porto de sua jurisdição, mas pagandocontudoao donodo navio o
preço do transporte. Se, ao contrário, o navio pertence aos inimigos e as mer-
cadorias a pessoas de um país neutro, deve-setratar com elas com relação ao
valor do navio ou, se os carregadores não querem tratar, podem ser forçados a
vir com o navio para algum dos portos da jurisdição daquele que dele se apode
rou e pagar a esseúltimo o preço devido pelo uso que fizeram do navio.'Quando
os holandesesestavam em guerra com a cidade de Lubeck e outras cidades
situadas sobre o mar Báltico e soba-eo Elba, em 1438, foi julgado, numa cume
rosa assembléia de Estados, que as mercadorias encontradas em algum navio
dos inimigos, não deviam ser apreendidasse parecesseque pertenciam a ou-
tros e isso passou depois a ser lei. O rei da Dinamarca pensou assim, pois no ano
de 1597, enviou aos holandeses e a seus aliados, uma embaixada para reivindi-
car, em proveito de seus súditos, a liberdade de navegar e de carregar suas
mercadorias para a Espalha, com a qual os holandeses mantinham então uma
sangrenta guerra. Na F'lança, sempre foi permitido aos povos que estão em paz
de comercializar mesmo com os inimigos da França e isso com tão pouca reser-
va que os próprios inimigos escondiam muitas vezesseus pertences sob o nome
de outrem, como aparece por uma ordenação de 1543, cap. XLll, que foi reno-
vada naquela de 1584 e nas seguintes. Nessas ordenaçõesé lavrado de modo
expressoque os amigos da Fiança poderão comercializar em tempos de guerra,
mas somente com seus próprios navios e com sua gente e transportar suas
mercadorias para onde quiserem, contento que não sejam coisas necessárias à
guerra, com as quais poderiam ajudar os inimigos. Em tal caso,era permitido
aos franceses se apoderar desse tipo de coisas e guarda-las, pagando o que
valessem. Aqui há duas coisas a observar. A primeira é que, pelas leis da Fiança,
de que acabamos de falar, não se conHlscasequer o que serve para a guerra. A
outra, que as mercadorias de uso inócuo estão, com muito maior razão, ao
abrigo do confisco. Não nego que por vezes se agiu diversamente entre os
povos do norte, mas o uso foi variado e acomodadoàs circunstâncias dos tem-
pos, antes que regulado sobre máximas perpétuas de eqüidade. Os ingleses,
querendo, sob pretexto de suas guerras, impedir o comércio dos dinamarque-
ses, isso fez surgir, há muito tempo, entre essesdois povos,uma guerra que
nãoterminou de modofeliz para os ingleses,pois os dinamarqueseslhes impu-
seram um tributo, chamado de juro dinamarquês, cujo nome subsistiu, mesmo
depois que a razão do tributo foi mudada, até Guilherme o Bastardo, que é
1022
H UGO GROTIUS

5. De resto, descrevemosessaquestão no direito de natureza por


que nada pudemos descobrir na história, onde pudesse parecer que hou
verse alguma coisa de estabelecido sobre esseponto pelo direito voluntá

o fundador da dinastia hoje reinante, comoo observouum historiador muito


sério, De Thou, no ano de 1589. Elisabete,sábia rainha da Inglaterra, enviou
em 1575 embaixadores para a Holanda(o cavaleiro Guilherme Winter e Robert
Beale, secretário do conselhoprivado) para representar às ProvínciasUnidas
que a Inglaterra não podia suportar que tivessem sido detidos navios ingleses
que se dirigiam para os portos da Espanha, durante o período mais feroz da
guerra entre a Espanha e as Províncias Unidas. E o que relatam De Rende,em
sua História das Províncias Unidas, ano de 1575, e o inglês Cambden, no ano
seguinte. Quando a seguir os ingleses se tornaram inimigos da Espanta, eles
mesmosquiseram impedir as cidades da Alemanha de enviar para lá seus
navios, em que agiam sem poder alegar um direito muito claro, comoaparece
pelos escritos publicados de parte e outra e que merecem ser lidos por todos
aqueles que quiserem se informar melhor sobre esse assunto. Deve-se obter
var que os próprios ingleses reconheciam,nos livros escritos em seu favor, que
suas pretensões não eram muito bem fundadas, porquanto se servem dessas
duas razões principais: a primeira, que as mercadorias que os navios alemães
transportavam para a Espanha eram coisas que serviam para a guerra; a
outra, que isso não lhes era permitido por antigos tratados. Os holandesese
seus aliados selaram depois semelhante tratado com aqueles de Lubeck e seus
aliados, em 1613, pelo qual se comprometiamreciprocamentea não permitir
que os súditos de seus inimigos comercializassem em seu país e a não ajudar
seus inimigos com dinheiro ou com tropas, nem com navios. Depois, no ano de
1627, foi concordadoentre o rei da Suécia e aquele da Dinamarca que o rei da
Dinamarca impediria todo comérciocom a cidade de Dantzig, inimiga dos sue-
cos, e que não deixaria mesmopassar pelo estreito de Sund nenhuma merca
daria com destino a qualquer outro inimigo da Suécia; em troca, o rei da Dina-
marca estipulava, por sua vez, algumas vantagens
Essas são convenções particulares, das quais não se pode inferir nenhuma
regra geral que todos os povos devam seguir. Os alemães, por outro lado,
disseram em seus escritos que os tratados que eram alegados não proibiam o
transporte de toda espéciede mercadoria, mas somente daquelas que já
haviam sido levadas para a Inglaterra ou compradasnessereino. Não foram
somente eles que se opuseram à interdição que a Inglaterra impunha de todo
comércio com seus inimigos. Os poloneses se queixaram também, através de
um embaixador enviado às pressas, que a Inglaterra violava o ./us .rendam,
querendolhes tirar a liberdade do comércio,sob pretexto da guerra que sus-
tentava com a Espanha, como o relatam Cambden e De Rende,já citados, no
ano de 1597. Depois da paz de Vervins; a rainha Elisabete, continuando a
guerra com a Espalha, pediu ao rei da trança permissão para vistoriar os
navios francesesque iam para a Espanta para saber se não transportavam
munições de guerra escondidas,mas isso foi recusado pelo motivo que poderia
facilitar a pilhagem e perturbar o comércio.No tratado que a Inglaterra fez
com os holandeses e seus aliados, no ano de 1625, foi concordado que se pediria
às outras potências interessadas em abater a grandeza da Espanha de proibir
todo comércio com os espanhóis e que, se o recusassem, os navios de seus
países seriam vistoriados para saber se transportavam munições de guerra,
1023
CAPITULO O QUE É PERMITIDO NA GUERRA. SEGUNDO O DIREITO DE NATUREZA

rio das gentes [19] . Os próprios cartagineses se apoderaram outrora de


romanos [20] que haviam ]evado víveres aos inimigos dos cartagineses.
Esses mesmos romanos, os mesmos cartagineses os renderam aos ro-
manos que os rec]amavam. Como Demétrio [21] ocupava a Anca com

mas que, para as demais mercadorias, não seriam apreendidas, nem os navios
detidos, e não se causaria nenhum mal às pessoas dos povosneutros. No
mesmoano, um navio de Hamburgo ia para a Espanta, carregadoem grande
parte de munições de guerra, e os ingleses apreenderam essas munições, mas
pagaram o valor das outras mercadorias. Os ingleses, querendo confiscar al
duns navios da França que iam para a Espanta, ouviram dos franceses a
declaração que não aturariam isso. Tivemos, portanto, razão ao dizer que aqueles
que entram em guerra devemnotifica-lo aos Estados neutros e solicitar que
não mantenham comérciocom o inimigo. Os próprios inglesesreconheceram
isso e o praticaram. Tem-seexemplos disso em Cambden, para os anos de 1591
e 1598. Não se teve sempre, contudo, consideraçãopor essasnotificações, mas
foi feita a distinção dos tempos, dos lugares e das causas. No ano de 1548, a
cidade de Lubeck não julgou interessante concederàquela de Dantzig o pedido
que Ihe fazia de não negociar com os habitantes de hlalmoe e de Memel, seus
inimigos. Os holandeses fizeram o mesmo, no ano de 1551, quando a cidade de
Lubeck lhes pediu que não comercializassemcom a Dinamarca, com a qual
estavaem guerra. No ano de 1622,durante a guerra entre os suecose os
dinamarqueses, o rei da Dinamarca pediu às cidades hanseáticas não manter
nenhum comércio com a Suécia. Algumas dessas cidades aceitaram o pedido
porque tinham necessidade da amizade do rei da Dinamarca, mas outras nada
quiseram fazer. Na guerra entre a Suécia e o rei da Polânia, os holandeses
nunca quiseram interromper seu comércio com os suecos,nem com ós polone'
ses. Quando eles estavam em guerra com a Espanta, sempre entregaram pai'a
a trança os navios que haviam sido tomados pelos holandeses e que iam para
a Espanha ou dela voltavam. Ver o discurso de Louis Servin, então advogado do
rei, feito em 1592, a respeito do negócio dos habitantes de Hamburgo. Os
próprios holandeses não quiseram permitir que os ingleses levassem mercado-
rias para Dunkerque, diante da qual possuíamuma frota. A cidade de Dantzig,
em 1455, mandou dizer aos holandeses que não levassem nada para Kõnigsberg,
comoinforma GaspardSchutz, em sua .l?lbfóavb
da /)rzissia.Ver Caber.,Decis
X[N[[, n.' 2, e Seraütm de Frestas, em seu tratado Z)eJusto ]mpez:ü Z,uslfanou'um
ATbÉüo, onde cita diversos outros autores
[19] Encontram-se muitas coisas sobre essa questão na história da Dinamarca do
sábio Meursius (livro l e 11),onde se pode ver que os habitantes de Lubeck e o
imperador sustentam a liberdade de comércio e que os dinamarqueses são
contra. Ver também Crantzius, UandaJlb.(XIV. 29); De Thou, com relação ao
ano de 1589, AsÉ. (XCVI, 15); Cahbden, em algumaspassagens,além das já
citadas, com relação aos anos de 1589 e 1595, onde trata da disputa que teve
lugar entre os ingleses e as cidades hanseáticas
[20] Políbio, ]ivro 1, 83
[21] Plutarco, Den7eZr7us(904E)
1024 H U GO Gxoilus

seu exército e se havia apoderadodas praças fortes próximas de Eleusis


e de Ramnonte, propondo-se a fazer passar fome Arenas, ele fez enforcar
o dono e o pi]oto de um navio que se dispunha a introduzir trigo [22] e,
tendo dessa maneira espantado os outros, se apoderou da cidade.

VI. Se é permitido fazer uso do dolo na guerra

1. Para o que se refere ao meio de agir, a violência e o terror são


sobretudo o próprio das guerras. Pergunta-se geralmente se é permiti-
do fazer uso do engano. Homero [23], na verdade, disse que se deve
prejudicar um inimigo "sejapor dolo, seja por força aberta, secretamente
ou em p]eno dia". ]sso é de Píndaro [24] : "E preciso põr tudo à obra para
destruir o poder de seu inimigo." Em Virgí]io [25] também encon-
tram-se estas palavras: "Dolo ou coragem, qualquer coisa, quando se
trata de um inimigo." O mesmo acrescenta [26] : "Ripheus, e]e o mais
justo dos troianos, o mais rígido guardião das leis da equidadel" Pode-se
[er que mesmo Só]on [27], tão cé]ebre por sua sabedoria, seguiu essa
máxima. Si]ius [28] diz, fa]ando das operaçõesde Fábio Máximo: "Des-
de então, a coragem se acomodou no dolo.:

2. Em Homero, Ulisses é o exemplo de um homem sábio cheio de


fraudes contra o inimigo, de ondeLuciano [29] tira a regra que aque]es
que enganam. o inimigo são dignos de ]ouvor. Xenofonte [30] disse que

[22] O que Plutarco re]ata de Pompeu na história da guerra de Mitridates não difere
nl\lixo (bisa\ "Colaeou guardas para observar cs mercadores que passariam por
Bósforo e matava os mercadores que nesse ponto eram surpreendidos."
[23] Odlisézb (1, 296); Estobeu, 54, 46.
[24] Píndaro [518-438a.C.], ]sÉüm.(111,69).
[25] Pub[ius Vergi[ius Mero [71-19 a.C.], Elleida (11,390).
[26] Idem, .anel'da(11,426).
[27] Plutarco, So/on (82).
[28] Caius Si[ius [ta[icus [séc. ] d.C.], Pünlca (XV. 327)
[29] /üiZopseud. (no início)

130] .De OJ:zi InsÉIÉ.(1, 6, 29) e Z)e J?e .EbuesÉzy(5, 9)


1025
CAPÍTULO 1- 0 QUE É PERMITIDO NA GUERRA, SEGUNDO O DIREITO DE NATUREZA

nada é mais útil na guerra que a fraude e Brasidas, em Tucídides [31],


diz que glorioso entre todos é o elogio que se obtém por seus estratage-
mas de guerra [32] . Em P]utarco [33] também, Agesi]au dec]ara que é
justo e lícito enganar seusinimigos. SegundoPo]íbio [34], as façanhas
levadas a efeito pela força brutal na guerra devem ser estimadas menos
que aquelas que são fruto da ocasião e da intriga e, segundo ele, Silius
[35] leva Corvino a dizer que "é preciso combater com astúcia [36], que
um golpecom a mão tem menos g]ória para um genera]".P]utarco [37]
observa que "os severos laconienses, eles próprios haviam pensado as-
sim e que uma vítima maior era imolada por aquele que havia triunfa-
do pela fraude do que por aquele que havia triunfado pela força das
armas". O mesmo [38] fez grande caso de Lisandro [39] que "sabia
variar suas trapaças de guerra". Ele colocanos elogiosde Filopemen
[40] que, formado na disciplina dos cretenses, havia mesclado essa sim-
ples e generosamaneira de fazer a guerra com as intrigas e velhaca-
rias. E um pensamento de Amiano [41] que "todos os acontecimentos
felizes das guerras devem ser elogiados, sem distinção de coragem ou
artifício'

[31] Livro V. 9.
[32] Assim é que se exprime Virgí]io na .Enelda(XI, 515) e Salústio que cita Sérvio.
[33] dpopáÉüeg. (209 B)
[34] Livro IX, 12
[35] Caius Si[ius [ta[icus [séc. ] d.C.], .PunJba (V. 100)
[36] Há uma passagem seme]hante de Maomé: 'Z/Za/óu J7ud)'atum': isto é, '%
guerra pede gue se ayb com Érapafa'l Em Virgílio(Ellefda Xl1, 336), Malte leva
em seu séquito 'bs c(í/Bense as bsidzbs'i A respeito, Sérvio observa que o poeta
quer dar a entender que, não somente a coragem,mas também as trapaças são
uma consequêncianecessária da guerra.
[37] ]UarceJo (311 B).
[38] Plutarco, Zakandro(437 A).
[39] Plutarco o compara a Sila que, segundo Carbo, reunia em seu caráter o ]eão e
a raposa.
[40] Plutarco, .Füdopoemen(363 E)
[41] Amiano Marcelino, livro XVl1, 5, 6.

l
1026 H UGO Gxotius

3. Os jurisconsu]tos romanos [42] chamam de um engano ino-


cente aqueceque fosse tramado contra o inimigo. Em outro ]oca] [43],
dizem que não importa que se tenha escapadoao poder dos inimigos
pela força ou pelas trapaças. Eustátio, comentando o canto XV da #üda,
diz: "Um engano não é censurável, tal é o estratagema." Entre os teólo-

gos,Agostinho [44] diz: "Quando uma guerra justa é empreendida que


se combata com força aberta ou usando de emboscadas, isso não inte-
ressa em nada à justiça." Crisóstomo [45] pensa que os imperadores
que tivessem empregadoa surpresa para conquistar a vitória seriam
sobremodo elogiados.

4. Não faltam, porém, autoridades que parecemaconselhar o con-


trário. Traremos alguns exemplosa seguir ($XX). A solução dessa ques-
tão depende do fato de saber se o dolo está, em geral sempre entre as
coisasmás, às quais se deveaplicar esta máxima: não se deve fazer o
mal para alcançar o bem; ou se a soluçãoestá entre aquelas que, geral-
mente falando, e por sua natureza não contêm nada de mau e podem
mesmo ser boas.

VII. O dolo, no ato negativo, não é de per si ilícito


Deve-se observar, pois, que há um dolo que consiste no ato nega-
tivo e outro, num ato positivo. Estendo a palavra dolo mesmo às coisas
que consistem num ato negativo, seguindo nisso a autoridade de

[42] .L ], , f .Z -0Uk, Z)e .Do/o.


t43ÀL. 26, Níhi!, Dig., De captiüs.
[44] Comentário ao Salmo V. versícu]o ".f)erres omne/': 'Zona coisa é men6Ü outra
á ocu/Íar a veJ«Jade.
"Passagemcitada em (;ousa mZZ quaesílb 2. Ainda Ages
Linho, é?uaesÉlones ib JZepfafeucüu n(VI, lO),(questão X, Super Jogue.
[45] João Crisóstomo, De Snce/dado(1, 8).
CAPÍTULO 1- 0 QUE É PERMITIDO NA GUERRA, SEGUNDO O DIREITO DE NATUREZA
1027

Labeon[46] que re]aciona com o do]o, mas com o do]o inócuo, a dissimu-
lação que se usa para defender o que nos pertence ou o que pertence a
outros. Sem dúvida a]guma, foi dito por Cícero [47] de uma maneira
muito crua que "o Êlngimento e a dissimulação devem ser inteiramente
banidas do comércio da vida". Como ninguém é obrigado a revelar aos
outros tudo o que sabe, nem tudo o que quer, segue-seque é permitido
dissimular certas coisasa certos indivíduos, isto é, de encobri-las e
escondê-]as. Agostinho [48] diz: 'Pode-se esconder prudentemente a ver-
:]

dade,usando a]guma dissimulação." Cícero]49] confessaele próprio em


mais de um local que essa dissimulação é de todo necessária e inevitá-
vel [50] para aque]es sobretudo a quem a coisa púb]ica foi confiada. A .;1
l .l..
história de Jeremias fornece a esserespeito um exemplo notável. Esse
ll.

profeta, de fato, interrogado pelo rei sobre o fim do sítio, escondepru-


dentemente essefato aos grandes, sob o pedido do rei, alegando todavia
que seu diálogo havia discorrido sobre outra coisa, o que contudo não 1...

era fa[so.Aisso pode ser igua]mente referido ofato em queAbraão [51]


chama Sara sua irmã, isto é, de acordo com o modo de linguagem
usado então, sua parente consangüínea, dissimulando assim seu
casamento [52] .

46ÀL 1, $Dolum malum, Díg., De Dolo Àfaio.


[47]Marcus Tu[[ius Cicero[106-43a.C.], ,DeOzZic7]s
(111,15, 61).
[48]Aure[ius Augustinus [354-430], Ob/lfz'a]Mendacum (]O); Tomas,.it .g quaesf.
40, art. 3, in resp. e quaest. 71, art. 7, S\\xest., ín verbo Be!!um, parte 1, n.' 9.
[49] Marcus Tu[[ius Cicero [106-43 a.C.], .Fko M7one (24, 65) e P7.0 Cn. P?a/laTO (6,
16)

[50] Ver Jogo Crisóstomo, De Sacerdoüo(1, 8).


[51] 'Z7e quis esconder a verdade e nâo menfzF': diz Agostinho(quaesf]'odes ]h
.Eíep#afeucáum, .C .g6 0aaesÍI'o .X:t in Gei2c?slb), passagem transcrita por
G abano em dieta causa XXll, quaestio lll.
[521 Génesís, XX; Tomas, .ZZ .g guaesó. //q arf. .Z ú resp.
1028 H U GO GROTIUS

VIII. O dolo, no ato positivo, se distingue


em dolo que ocorre por atou de significação
livre e em dolo que ocorre por atou que têm uma
significação como determinada por uma convenção;
demonstra-se que o dolo da primeira espécie é lícito

1. 0 dolo que consiste num ato positivo se chama um Hinglmento,


se ocorre nos ates, e uma mentira, se diz respeito às palavras. Alguns
colocam essa diferença entre essasduas coisas,isto é, que as palawas,
segundo seu dizer, são sinais dos pensamentos, o que não é o mesmo nos'
ates. Ao contrário, a verdade é que as palawas não significam nada, por
sua própria natureza e independentemente da vontade dos homens, a
menosque setrate de uma palavra confusa e inarticulada, como aquela
que se faz ouvir na dor e que ela mesma se encaixa melhor sob a deno-
minação de ação que de palavra. Se for dito que a natureza do homem
tem isso de particular sobre os outros seres animados, que pode fazer
conhecer aos outros as concepçõesde seu espírito e que as palavras
foram inventadas para isso, está se dizendo seguramente a verdade.
Deve-se acrescentar, porém, que uma comunicação similar não ocorre
por meio somente de palavras, mas também com o auxílio de gestos
[53], como ocorre com os mudos [54]. Esses gestos podem ter por sua
própria natureza alguma coisa de comum com o que se dá a entender
ou que seu significado seja somente arbitrário. Semelhantes a esses
gestos são essescaracteres que não representam as palavras articula-

153]PIÍnio(NafuraJTh J?Jsforlb,VI, 30) diz dos etíopes: ':EMiTea7gans,a iynguagemÓ


substituída por sinais de cabeçae por movimentos dos membros."'Vex Q c8non
lbae iiyaternitati, De Spoilsaiibus.
tS4àL 7, Labeo, $ ult., Dig-, De supei}. regata.
1029
CAPÍTULO 1- 0 QUE É PERMITIDO NA GUERRA, SEGUNDO O DIREITO DE NATUREZA

das pe]a [íngua, segundo a expressão do jurisconsu]to Pau]o [55], mas


as próprias coisas por alguma conveniência, comoos signoshieroglíficos,
ou por um significado puramente arbitrário, como entre os chineses.

2. Deve-se, pois, trazer aqui outra distinção, semelhante àquela


que empregamos para fazer desaparecer a ambigüidade na expressão
delusgenãuin. Dissemos, de fato, que se chama./usgenfluJn (direito
das gentes), tanto o que foi aceito por cada nação, sem obrigação mú-
tua, quanto o que contém em si uma mútua obrigação.As palavras,
pois, e os gestos,os sinais de que falamos, foram inventados para signi-
ficar certas coisascom uma mútua obrigação,o queAristóte]es [56]
chamou de "um acordo comum". Não ocorre o mesmo com as outras
coisas. Disso resulta que é permitido fazer uso das outras coisas, mes-
MOque se preveja que o outro deva conceber a respeito uma opinião
falsa [57] . Fa]o do que é intrínseco, não do que é acidenta]. Assim, pois,
deve-seco]ocar um exemp]o em que nenhum dano se siga [58] ou onde o
próprio dano, tendo sido colocada de lado toda consideração de dolo, seja
lícito.

3. O exemplodo primeiro casoseencontra em Crista(.LucnsXXIVI


28) que, diante dos companheiros de caminho de Emaús, finge ir mais
longe, isto é, fez parecer que iria mais longe. A menos que se prefira
dizer que ele teria querido ir mais longe, sob a condição todavia que não
seria detido por urgente solicitação. Do mesmo modo que se diz de Deus

[55] Ele diz: ':r\©o ó a /ikui-a dns 7eÉrn8mas são as paJarras que /epresenfam que
fazem ccm que contratemos alguma obrigação, enquanto se julgou convenien-
te estabelecerquea escritura teria a mesmaforça queas palavras formadase
pro/zuncubdas pe/a i)água. " O jurisconsulto se expressou de uma maneira bem
filosófica ao dizer que se julgou conveniente,querendoindicar que tudo isso
existe em virtude de uma convenção.Ver também -t. 3& .Abn /igtzra, Duk, .De
Oblig. et act.
[56] De /nÉerpr (4).
[õ7] Ver Agostinho, Z)e Z)ocÉr7ha CZTJ)flana(11, 24)
[581 Como no que fez Mico] (/Samue], XIX, 16)
1030 H UGO Gnoíius

que quereria muitas coisas que não se realizam e que, em outro local, o
próprio Cristo (MarcosVI, 48) parecia querer ir adiante dos apóstolos
que navegavam e, aparentemente, não fosse insistentemente instado a
subir no barco. Um segundo exemplo pode ser dado na pessoa de Paulo
(,4ÉosdosHp(isfoZosXVI, 3) que circuncidou Timóteo, sabendo perfeita-
mente que osjudeus aceitariam aquilo como seo preceito da circunci-
são,que efetivamente havia sidojá abolido,devia ainda obrigar osdes-
cendentes de lsrael e como se tal fossea opinião de Paulo e de Timóteo,
embora contudo isso não fosse de modo algum a intenção de Paulo e que
quis somente proporcionar comisso a ele e a Timóteo a faculdade de
viver mais familiarmente com osjudeus. De fato, a circuncisão (estan-
do ab-rogada a lei divina que dizia respeito a ela) não significava mais,
por um efeito da instituição, uma necessidade semelhante. O mal que o
erro podia produzir por um tempo, mas que se devia destruir em segui-
da, não era tão considerável quanto o bem para o qual Paulo tendia, a
saber, a insinuação da verdade evangélica. Os Padres gregos chamam
seguidas vezes esse fingimento de "uma administração" [59] . Há a seu
respeito um excelente pensamento de C]emente deA]exandria [60] que,
falando do homem de bem, assim se exprime: "Faria certas coisas para
a utilidade do próximo que não faria para si mesmoe comuma primei-
ra intenção." Tal foi, numa guerra, ação dos romanos que lançaram do
Capitólio pão nos postos de vanguarda dos inimigos para que não acre-
ditassem que estavam pressionados pe]a fome [61] .

[59] No livro já citado De Sacel'doílb(1, 9), João Crisóstomo diz que é o nome que se
deve dar e não o de oc7tclTTI,
isto é, logro. O mesmo, no comentário à /Ed)]üfo/a aos
Coríntios iX 6, üz. "Não houve fraude nisso, mas uma espécie de condescen-
dãncua e de pi'udenÉe ad)niz71kÉmçâo.
" E nos comentários ao cap. IX, 20: ';r)ara
tornar semelhantesa ele aqueles que ele queria mudar, eie se tornou como
eles, mas 11ãona realidade; ele fez as mesmas coisas que eles, mas não com a.
nJesmaihfe 2çâoe as mesmasalásposubões.
" Pode-serelembrar aqui a loucura
simulada de Dava
[60] Strom. (V]1, 9).
[61] Titus Livius [59 a.C.-17 d.C.], ,4ó Z]Zz.óe
Gon(#fa (V. 48, 4)
CAPÍTULO 1- 0 QUE É PERMITIDO NA GUERRA, SEGUNDO O DIREITO DE NATUREZA

4. O exemplo do segundo caso está numa fuga simulada, tal como


a que Josué ordenou aos seus para se apoderar de Hai]62] e que os
generais têm praticado seguidas vezes. Aqui supomos, segundo a justi-
ça da guerra, que o dano que é a seqüela desse fingimento é justo ou a
fuga não tem nenhum significado de convenção, embora o inimigo a
receba como um sinal de medo que o adversário não é obrigado a
disfarça-lo, usando nisso sua liberdade para ir e vir, mais ou menos
depressa, com tal ou qual pose ou continência. O ato daqueles que são
vistos, em muitos lugares, ter-se servido das armas, das bandeiras, dos
trajes, dos estandartes dos inimigos deve ser relacionado ao mesmo
caso

5. Todas essas coisas, de fato, são de tal natureza que cada um


pode fazer uso como Ihe parece melhor, mesmo contra o costume, por'
que, tendo sido introduzido pela vontade dos privados, não por uma
espéciede consensocomum, semelhante costume não obriga ninguém.

IX. Indica a dificuldade


da questão nasegundaespécie

1. 0 debate é mais grave a respeito dessessinais que, por assim


dizer, estão no comércio dos homens e no falso uso dos quais consiste
propriamente a mentira. Há muitas coisas, de fato, contra a mentira
nas Escrituras Sagradas. "0 justo", isto é, o homem de bem, "detestara
toda palavra mentirosa(Provérbios, Xl11,5)." "Afasta de mim a menti-
ra e toda palavra falsa" (Provérbios, XXX, 8). "Tu destruirás aqueles
quefalam mentiras" (Salmo,5, 7). "Não uteis da mentira uns para com
osoutros" (Colossenses,111,9). Essetambém é o partido queAgostinho
sustenta com todo rigor. Mais, entre os filósofos e os poetas, há quem

[62]Josizá
Vlll; Si]vest.,iz2t,ergo.Be/Ttzm,
pai'ée.C/].' 8.
!032
H UGO GROTIUS

parece condividir sua opinião. Este verso de Homero [63] é conhecido:


"E odioso para mim como as portas do inferno aquele cujo pensamento
encerra outra coisa que o que sua língua profere..." Sófoc]es [64] diz:
"Não convém jamais enunciar coisas que não estão na verdade, mas se
a verdade traz para alguém uma ruína certa, deve-se perdoar esseho-
mem se fizer o que não convém." Segundo C]eóbu]o [65], "quem quer
que seja virtuoso do fundo da alma, odeia a mentira". Aristóte]es [66]
disse: "Por si mesma a mentira é vergonhosa e censurável, a verdade é
belaelouvável."

2. Não faltam, contudo, autoridades em favor do outro partido.


Este encontra primeiramente na$ Escrituras sagradas exemplos de per-
sonalidades que não foram objeto de qua]quer censura [67] . Acém disso,
tem a seu favor a opinião de antigos cristãos, de Orígenes, de Clemente,
de Tertuliano, de Lactâncio, de Crisóstomo, de Jerânimo, de Cassiano,
quase de todos mesmo, como o próprioAgostinho [68] o confessa, de ta]
modo que, se ele é de opinião diferente, é reconhecendo contudo que "a
questão é complexa, que é um assunto cheio de trevas, uma disputa
sobre a qual as opiniões dos doutores se dividem". Estas são palavras dele.

3. Entre os Êllósofossão abertamente dessa opinião Sócrates e


seus discípu[os, P]atão [69], Xenofonte [70] , Cícero também em a]guns
pontos, P]utarco [71] , Quinti]iano [72], os estóicos que co]ocam entre o

[63] .ZZüda(]X, 312).


[64] -F]agm. Creus., em Estobeu 12, 4
[65] Melhor, Menandro, em Estobeu, 12, 16
[66] .úüca a Nicómaco (]V. 13).
[67] Irineu aprendeude um velho sacerdotee ensinouesta máxima: ':4que/as
coisas que a Escritura !xão censura, mas simplesmente relata, não devemos
co ?de/7á'Jas."A passagem se encontra no livro IV. 50
[68] Aure[ius Augustinus [354-430], Gon&ra.4Zendac
um (1, 38).
[69] Z)e .Repuó#ca (], ll e V).
[70] é?uaJ«fo
Socrnf.(JMemoraÓ.
IV 2, 16).
[71] .De SÉozboJ-um a0/7ámcó,(1055 F)

[72] Marcus Fabius Quinti[ianus [30?-100?], De ]nsüfaúone Oraóor7a (X]1, 1, 38).


1033
CAPÍTULO 1- 0 QUE É PERMITIDO NA GUERRA, SEGUNDO O DIREITO DE NATUREZA

número das virtudes do sábio aquela de saber mentir quando preciso e


da maneira que é preciso. Aristóte]es [73] mesmo não parece se afastar
disso em algumas passagens, pois a palawa "por si mesmo" que ele usa
e que citamos pode ser entendida de uma maneira geral, isto é, a coisa
considerada, abstração feita das circunstâncias. Por isso, seu intérpre-
te, Andrênico de Redes [74] , se exprime assim a respeito do médico que
mente junto a um doente: "Ele engana, é verdade, mas não é um enga-
nador." E acrescenta a razão: "Ele não tem o objetivo de enganar, mas
de salvar o doente.

4. Quinti]iano [75], de quem fa]ei, sustentando esse mesmo par'

tido, diz que a maioria das coisas sãode tal natureza que se tornam
honestas ou desonestas, não tanto em razão dos fatos quanto em razão
de seus motivos. Difi]o [76] diz: "A mentira dita em vista da própria
conservaçãonão pode ter, segundo minha opinião, nenhum inconve-
niente."ANeoptolemo que, em Sófoc]es[77] ,faz essapergunta "A men-
tira não te parece vergonhosa?", Ulisses responde: "Não, se a salvação
nascerda mentira." Pensamentos semelhantes a essessão citados por
Pisandro e Eurípides. Leio também em Quintiliano [78]: "Às vezes é
permitido, mesmoao sábio, mentir." Eustátio, metropolita de
Tessalânica, diz sobre o segundo canto da Odíssáb;"O sábio mentira
num casode urgência" [79] . Cita nessetrecho testemunhas extraídas
deHeródoto e de lsócrates.

[73] Épica a .Aã'cómico(V]1, 3; ]V, 8; 11,7; IV, 13).


[74] ,4dM7'sfofe/em, EÉülba .Mc.(V. 8).

[75] Marcus Fabius Quinti[ianus [30?-100?], Z)e ZnsZJfufzoneOrafar7b (Xl1, 1, 36).


[76] Estobeu, 12. 12.
[77] .f:àifocf.(108 e seguintes).
[78] Marcus Fabius Quinti[ianus [30?-100?],De /nsfzfuf]o/ e Oraóor7a(11,17, 27).
[79] "1n feJnpord', como fa]a Donato, no comentário de Hde/Face(IV. 3) de Terêncio
Alguns moralistas pensam que épermitido enganar propositadamente." Cíceto
ÇPro Q. Ligaria, 5, LSbõàz. "Há mentüas honestas e caüdosas,
1034 H UGO GROTIUS

X. Todo emprego de um termo que se sabe


que pode ser tomado em outro sentido não é ilícito

1. Uma conciliação de opiniões tão diferentes poderia talvez re-


sultar da acepçãomais amp]a ou mais restrita da mentira [80]. Em
primeiro lugar, não tomamosaqui comomentira o que é dito de falso
por aque]e que fa]a sem saber [81]. Assim é que dizer uma mentira e
mentir são duas coisas apresentadas como distintas em Aulus Gellius
[82] . Façamos,porém, do que é enunciado cientemente, com um signifi-
cado que não é conforme à concepção de nosso espírito, seja como pensa'
mento, seja comovontade. O que damos a entender primeira e imedia-
tamente pelas palawas e outros sinais semelhantes, são as concepções
do espírito. Por isso, não mente aquele que diz uma coisa falsa que acha
verdadeira, mas mente aquele que diz uma coisa verdadeira sem dúvi-
da, mas que ele pensa que é falsa. Afalsidade da declaração é que reque-
remos, para constituir a natureza comum da mentira. Segue-seque
quando um termo ou quando uma frase tem diversos sentidos, isto é,
admitem mais de um significado, seja de acordo com o uso popular, seja
segundo a prática de uma arte, seja por alguma figura apropriada,
então se a concepçãodo espírito está conforme a uma dessas significa-
ções, não há mentira, mesmo que se pense que aquele que escuta o deve
tomar num outro sentido [83] .

[80] Tomas, ]Z 2, quaesÉ. /]q arf. .7,iz?I'esp.


t8t3 "Há somente a intenção culpada que torna a !íngua criminosa." E- "Ninguém
deve ser condenadocomomentiroso, porque diz uma coisa íaisa pensando que
fosse verdadeira, pois enquanto isso depende dele mesmo, não engana, mas é
enganada. " Estas passagens são de Agostinho(De Hera)JS .aposto/Í Sennone
.X:rE7Z7e .Encüld(#on de .õlde, cap. 18). São citadas por Graciano em t:hEzsa
XXll, quaestio 2.
[82] Au[us Ge[[ius [séc. ]] d.C.], MocÉes.4óáz'cae
(X], ]]).
[83] Assim é que Abraço falava de uma maneira ambígua a seus servos. Essa é a
opinião de Ambrósio que a aprova(Z)e.4óraÀam, 8) e Cuja opinião é seguidapor
Gracianoem CausamZ quaesÉI'o
.ZZ2a.
1035
CAPÍTULO 1- 0 QUE É PERMITIDO NA GUERRA, SEGUNDO O DIREITO DE NATUREZA

2. Seguramente é verdade que o emprego de tal modo de fkllar não


deve ser aprovado. Pode, no entanto, se tornar honesto pelas causas
acidentais, se por acasoisso pode servir para instruir aquele que nos foi
confiado ou para evitar uma situação incómoda. O próprio Cristo deu
um exemplodo primeiro caso,quandodizia (úoâóXI, ll): "Lázaro,nos-
so amigo, dorme", o que os apóstolos aceitavam como se tivesse falado
de um verdadeiro sono. Ele sabia o que ele mesmo havia dito da recons-

trução do templo, referindo-se com isso a seu corpo (Joâo11,20-21), mas


osjudeus o tomaram comorelacionado ao templo propriamente dito.
Assim é que, igualmente, quando prometia aos apóstolos doze assentos
escolhidos e próximos do rei(-Z)ficasXXl1, 30), a exemplo de Filarcas,
entre os hebreus. Em outra passagem(MafeusXXVI, 29), que bebe-
riam com ele do vinho novo no reino de seu pai. Parece ter suficiente
mente sabido que eles não o entendiam de outro modo do que algum
reino desta vida, do qual estavam repletos de esperança(,4fos dosdp(is-
ca/os1,6) até o momento em que Cristo estava prestes a subir ao céu. O
mesmo, em outra passagem (MnZeusXl11, 13), se dirige ao povo pelas
figuras de parábolas, a 6im de que aqueles que o escutavam não enten-
dessem o que ele queria dizer, se não ülzessem a aplicação do espírito e a
docilidade que deveriam ter. Um exemplo do segundo caso pode ser tira-
do da história profana, na pessoa de L. Vitellius, a quem Narciso pedia
cominstância para explicar o enigma de suas palavras e de enunciar
francamente seu pensamento [84] . Não conseguiu senão arrancar res-
postas ambíguas e suscetíveis de se prestar ao sentido que se pretendia

[84] Caius Corne[ius Tacitus [55-120], H/znaJes (X], 34)


1036 H U G'O G R OTiUS

dar a e]as [85]. A isso se referem estas palavras dos hebreus [861:"Se
alguém sabe se servir de uma linguagem de duplo sentido, está bem; se
não,quesecale

3. Pode ocorrer, ao contrário, que não somente não seja louvável,


mas que seja mesmocriminoso usar dessamaneira de falar. Quando,
por exemplo, a g]ória de Deus [87] ou o amor devido ao próximo [88] ou
o respeito para com um superior ou a natureza da coisa de que se trata
exigem que o que é pensado pelo espírito seja colocado inteiramente a
descoberto. Do mesmo modo que, nos contratos, dissemos (livro 11,cap.
Xll, IX) que se deve explicar abertamente o que a natureza do contrato
deve exigir. Nesse sentido é que pode ser recebido este pensamento de
Cícero [89] que "se deve banir toda mentira dos negócios que se contra-
ta". Máxima tirada de uma antiga ]ei da Anca [90] que proíbe "mentir

Tlilil Ó ÚÉliÚl; Tácito(J7isfoz?ne, 111,3) escreve: 'Z7e se expressou de modo amÓJkuo


para poder em seguida explicar suas palavras, segundoas exigênciasde seu
2hferesse."Fala também(HikéoHae, 111,52) de 'ba/aptas arranubdas de éa/modo
que fosse possível, segundo o evento, de se subtrair à sorte contrária ou de
colher a honra do sucesso.
[86] ])eles também esta outra máxima: ':Fperm/lido se expressar da modo amólkuo
para obter com l)se a/gum provelfo. "Esta máxima é citada pelo douto Manassés
Benisrael, em sua Goncl7Jbf.Quaesf. XKX71Z João Crisóstomo(Z)e face/doÉab,
L, qÜãxz. "É chamado com razão enganador aquele que se serve de tais ambigui-
dades para prejudicar a alguém, mas não aquele que as usa com propósito
salutar.
[87] Em 1'7dnde ]MoJS(gs(111,
21), de Fí]on, encontra-se: ':[2Üo que com reJnç;âoâs
coisas que se referem à religião, aqueles mesmos que adquiriram o costume de
mentir em outras coisas, não podem se impedir de dizer a verdade.De fato, a
verdade é a companheira de Deus." fugas\àx\ktn (.Epístola XXVlll, Sà àiz. 'Uma
questãoé a de saber se um homem de bem podepor vezesmentir, outra aquela
de dl2er se um esar2foz'saga«ado
fere de me IÉIE"Ver o que será dito no parágra-
fo XV
l881Ésquilo, em Pro/nefeu(509), diz: 'Zu d)rTaaóerfame/zfe fado o que gosfarlbs de
ouvir; eu o diria em termos claros,sem embaralharmeu pensamentopor
desvios; falaria coma é justo e carreto raiar a seus amigos.
E89]Marcus 'l-ullius Cicero [106-43 a.C.], Z)e Oá%lclÍs
(111,15, 61).
[90] Demóstenes, ib ZepÉzne/n (9).
CAPÍTULO 1- 0 QUE É PERMITIDONA GUERRA,SEGUNDOO DIREITO DE NATUREZA
1037

no mercado". Nesses dois locais a palavra mentira parece ser tomada


num sentido tão amplo que encerra até toda forma de falar obscura. Já
excluímos isso, propriamente falando, da noção de mentira.

XI. A natureza da mentira ilícita consiste


no que está em oposiçãoao direito de outrem
1. Para a noção geral da mentira é pois requerido que o que se
diz, escreve, figurado por caracteres, expresso por gestos não possa ser
compreendido de outro modo senão num sentido diferente do pensamen-
to daquele que assim se exprime. E necessário, porém, que uma signi-
ficaçãomais estreita da mentira, enquantoé naturalmente ilícita, acres-
cente alguma diferença própria a essanoção ampla demais. Essa dife-
rença, se a coisa é bem considerada, não parece, ao menos seguindo a
opinião comum das nações,poder ser outra que uma contradição com o
direito existente e persistente daquele a quem o discurso ou o sinal são
dirigidos. E suficientemente constanteque ninguém mente para si
mesmo, por mais mentiroso que seja seu falar. Entendo aqui por direi-
to, não um direito qualquer e não se ligando à coisa,masum direito
próprio a essenegócioe que tenha relação comele. Esse direito outro
não é que a ]iberdade de ju]gar [91] que os homens que fa]am entre si
devem,como em virtude de uma espécie de pacto tácito, àqueles com
quem eles dialogam. Nisso está, de fato, essa obrigação mútua e não
outra que oshomens quiseram introduzir ao mesmo tempo que resolve-
ram seservir da linguagem e de sinais similares, pois semuma seme-
lhante obrigação tal invenção teria sido vã.

[91] Disso decorre o ideia de que aquele que tira de alguém os meios de conhecer
certas coisas é chamado pelos hebreus de homem que rouba o coração(Gâ2eslh
XXXI, 26-27);ver também Onkelose os Setenta.Ver ainda o rabino Dava.em
seu livro EaJÜese o rabino Salomon, em seu comentário, e Aben-Ezra.
1038 H U GO GROTIUS

2. Exigimos de uma parte que no tempo em que o discurso ocor-


re, esse direito subsiste e bica. Pode ocorrer que o direito tenha, na
verdade, existido, mas que tenha sido supresso ou que seja supresso em
decorrência de outro direito superveniente, do mesmo modo que uma
dívida se extingue pela aceptilação ou pela falta da condição.Mais, é
necessário que o direito que foi lesado seja aquele da pessoa com a qual
falamos, não outra, do mesmomodo que nos contratos a injustiça nasce
unicamente da violação do direito doscontratantes. Aisso, talvez, não
faria mal fazer referência ao que P]atão [92] , em Simonides, ]iga à jus-
tiça o fato de dizer a verdade,comotambém as Escrituras Sagradas
designam muitas vezes a mentira, aquela proibida, por uma testemu-
nha ou uma palavra contra o próximo.Além disso,o próprioAgostinho
[93] co]ocaa vontade de enganar nos elementos constitutivos da nature-
za da mentira [94] . Cícero [95] também quer que a questão concernente
à verdade a dizerseja ligada aosfundamentos da justiça.

3. Do mesmo mêdo que o direito de que falamos parece poder ser


anulado pelo consentimento expresso daquele com quem temos negó-
cios (se alguém, por exemplo, declarou de antemão que diria coisas fal-
sas e que o outro o tenha permitido), assim também pode sê-lo por um
consentimento tácito ou presumido em virtude de uma razão legítima
ou ainda pela oposiçãode um direito de outrem bem mais considerável,
segundo o juízo comum de todos. Essas coisas bem entendidas nos for'
necerão muitas conseqüências que não serão pouco eficazes para conci-
liar as dissensões das opiniões indicadas anteriormente.

[92] Z)eJ?epuóJlca
(1,5).
[93] Aurebus Augustinus [354-430], E77cá]rldon de .Pide (cap. 22).

[94] Lactâncio (D/v/harém /ns&ífuf onum, VI, 18) diz também: "Que êJe J'amais
minta para enganar os outros ou para prejudica-ios.
[95] Marcus Tullius Cacei'o[106-43 a.C.], ])e O/ clzk (l, 10, 31)
1039
CAPÍTULO 1- 0 QUE É PERMITIDO NA GUERRA, SEGUNDO O DIREITO DE NATUREZA

XII. Demonstra-setambémque é lícito


usar de mentira com relação a crianças e loucos

A primeira conseqüência é que, embora se diga alguma coisa que


tenha UM falso significado a uma criança ou a um demente, nisso não
há a falta da mentira. Parece, de fato, opinião comum de todos os ho-
mens que seja permitido que "a idade imprevidente das crianças seja
enganada" [96]. Quinti]iano [97], fa]ando das crianças, diz: "Simu]a-
mosmuitas coisaspara sua utilidade." A razão mais próxima é que
como a liberdade do julgamento não existe nas crianças e nos demen-
tes, não se pode cometer ofensa contra eles em relação a essa liberdade.

XIII. Comotambém quando se engana com isso


aquele a quem o discurso não se dirige e que é
permitido enganar, independentemente do discurso
1.A segunda conseqüência é que todas as vezes que o discurso é
dirigido para aquele que não foi enganado,mesmoque um terceiro tire
uma falsa conclusão disso, não há mentira alguma. Não há com rela-
çãoàquelesa quem é contada uma fábula e eles a compreendem ou aos
quais se dirige um discurso figurado por ironia ou por hipérbole, figura
que, segundo a expressão de Sêneca [98], chega à verdade pe]a mentira
[99] e que é definida por Quinti]iano [100] um exagero mentiroso. Não
há com relação àquele que entende isso no momento porqüe não trata-
moscom ele e que, em decorrência, nenhuma obrigação existe em seu

l
[96] Tulliug Lucretius Carus [98-55 a.C.}, De Nafizra .Ra'um (1, 939).
[97] Marcus Fabius Quinti[ianus [30?-100?], Z)e ]nsZJfuÉzone. Oraforva (X]1, 1, 38).

[98] Lucius Annaeus Seneca[01? a.C.-65 d.C.], De .Bene#cízk


(V]1, 23).
11
[99] No mesmo ]oca], Soneca diz: ':4Élr7na coesas bc írezk pai'a chegar a ao sas
críveis."

[100]Marcus Fabius Quinti[ianus [30?-100?]


, .De]nsZI'fuÉlane(2rafaria (Xí1, 1, 38).
!040 H U GO GROTIUS

proveito. Mais ainda, se ele mesmo forma uma opinião tirada do que é
dito não a ele mas a outro, deve imputa-la a ele mesmo e não a outrem.
De fato, se quisermos julgar bem, a seu respeito o discurso não é um
discurso, mas uma coisa que pode significar tudo o que se quiser.

2. Não cometeram fa]ta alguma Catão o censor [lOl] que prome'


te de modo fa]so auxí]io aos a]iados, ou F]accus [102] que contou a ou-
tros que uma cidade dos inimigos havia sido tomada de assalto por
Emílio, ainda que os inimigos tenham sido enganados por isso. Plutarco
[103] re]ata a]go seme]hante deAgesi]au. Nada, de fato, nessa circuns-
tância havia sido dito aos inimigos e o dano que se seguiu é alguma
coisa vinda de fora e que, em si mesma, não é ilícito desejar e buscar.
Crisóstomo e Jerânimo [104] re]acionaram a essa espécie o discurso de
Paulo, pelo qual em Antioquia repreendeu Pedro como demasiado
judaizante (GáZafas11,13). Pensam, de fato, que Pedro havia compre'
endido de modo suficiente que isso não era feito seriamente, mas so-
mente para condescender à fraqueza dos assistentes.

XIV. E quando o discurso é dirigido


ao que quer ser assim enganado

1. A terceira conseqüência é que todas as vezes que é certo que


aquele a quem o discurso se dirige não se ofenderá com o insulto à
liberdade de seujulgamento e que, ao contrário, acatará de bom grado

[lOl] Titus Livius [59 a.C.-17 d.C.], .4ó C4.óe Obndlfa Q(XX]V. 12).

[102] App., Hzsp. (81).

[103] .4gesí]au (605 C).

[104] João Crisóstomo, em comentários à Ed)JGfo/aaos Gá/alas ZZ 3, e Jerânimo,


.8pz)fu/ae (CXV. 10). Acrescente'se Cirilo (.4drersus Ju#anum, livro IX, no
final. Tertuliano não pensa muito diversamente(aonüa Marafonem, livro l
e lll)
CAPÍTULO 1- 0 QUE É PERMITIDO NA GUERRA, SEGUNDO O DIREITO DE NATUREZA

por causa de alguma vantagem que obtenha com isso, mesmo quando
nãoé cometida uma mentira estritamente dita, isto é, injuriosa. Do
mesmo modo que não cometeria roubo aquele que, segundo a presumi-
da vontade de um proprietário, consumisseuma coisade pouca impor-
tância pertencente a esseúltimo para Ihe proporcionar com isso um
grande proveito. Nas coisas que estão nesse ponto certas, a vontade
presumida é tida como expressa. Consta que não se faz injúria a ou-
trem com seu consentimento. Assim, pois, não parece cometer falta
aquele que consola um amigo doente buscando Ihe fazer crer coisas que
não são verdadeiras, como fez Aria a respeito de Paetus após a morte de
seu filho, história que se encontra nas cartas de P]ínio [105], ou que
incentiva a coragem daquele que treme no combate,por meio de uma
falsa notícia, a fim de que, estimulado por isso, busque a vitória e a
salvação e que, sendo assim surpreso não seja preso, segundo a expres'
são de Lucrécio [106] .

2. Demócrito [107] disse que "é preciso sempre usar uma ]ingua-
gem verídica, quando é a opção mais vantajosa". Xenofonte [108] diz: "]i
permitido enganar seusamigos para seu bem." Clemente deAlexandria
[109] permite também "servir-se da mentira à guisa de remédio". Máxi-
mo de 'Hro [110] diz: "0 médico engana o doente, o genera] o exército, o

piloto os marinheiros e nisso não há mal." Proclus, em Platão, dá a


razão: "0 que é vantajoso é melhor do que é verdadeiro." Tal é, em
Xenofonte [111], essa notícia que os a]iados estavam a ponto de chegar e

[105] Caius P[inius Caeci[ius Secundus [62-114], .qnkfuJae (111,16).


[106]Tu[[ius Lucretius Carus [98-55 a.C.], Z)eNafurn Rerum (1, 939).
[107] Estobeu, 12, 13.
[108]Çrzubeda(1,6, 31).
[109] Süomafa (Vl1, 9, 53).
[no] Ompi'o
mX (3)
l\'L\X Socrat. (IN, 2, \l). "Agesilau, chegando na Beócia e sabendo que Pisandro
havia sido vencidonum combatenavalpor Farnabaze e Conon, mandou dizer
o colltrário a seus soldados e, apresentado'se coroado perante eles, ofereceu
sacrvHbüsse/e/]espor essa wfárlb"(Plutarco, Hda de.4gesz7au,
605 C)
1042 H UGO GROTIUS

essa declaração de Tullius Hosti[ius [112] que era por sua ordem que o
exército albano sehavia retirado. Segundoa linguagem das histórias, a
mentira salutar do cânsu]Quinctius]113] que osinimigos estavam em
fuga na outra ala e outros exemplos semelhantes dispersos entre os
historiadores. Deve-se observar que o insulto ao juízo é tanto menos
considerável nesse caso porque é ordinariamente momentâneo e que,

pouco depois, a verdade é descoberta.

XV. E quando aquele que fala


usa de um direito de superioridade
sobre uma pessoa que Ihe é submissa

1. A quarta conseqüência e que tem relação com a precedente


ocorre todas as vezes que alguém que tem um direito dominante [114]
sobre todos os direitos de outro faz uso desse direito para o bem particu-
lar ou púb]ico desse.P]atão [115] parece ter tido isso sobretudo em vis-
ta, quando aosque detêm o poderlhes permite mentir. Quando, de um
lado, parece dar o mesmoprivilégio aos médicos [116] e do outro os tira
deles, parece que essa distinção deva ser posta de modo que, no primei-
ro caso, tem em vista os médicos chamados em nome do Estado para
essa procissão, e no segundo caso, aqueles que se arrogam esse titula

[112] Titus Livius [59 a.C.-17d.C.], HÓ Z]/róeConcífZa


(1, 27, 8).
[113] Idem, .4ZP Z:&.óe aoní#fa(11, 64, 6)

[114] No segundo canto da ]=íüda (73 e seguintes), Agamemnon, chefe dos gregas
üz'. "Antes, contudo,provaria os gregos,e isso me é legitimamente permitido,
e !hes ordenada de fugir em sua bota armada de bronze."
[115]Z)eRepuó/lca(111,3)
[116] João Crisóstomo(.De SacerdoÉ20,
1, 9) traz exemplos dos médicos.
1043
CAPÍTULO 1- 0 QUE É PERMITIDO NA GUERRA, SEGUNDO O DIREITO DE NATUREZA

em seu próprio nome. O mesmo Platão reconhece com razão que a


mentira não convémcontudo a Deus, ainda quetenha um direito
supremo sobre os homens porque é um sinal de fraqueza recorrer a
tais meios.

2. Um exemplotalvez de mentira inocente, aprovada até por Fílon


[117],poderia ser dado na pessoade José [118] que, governando na qua-
lidade de vice-rei, acusa seus irmãos por fingimentos e contra seu sen-
timento primeiro de serem espiões, em seguida ladrões. Na pessoa de ::]

Salomão (/.Re/k111, 25) que "deu uma prova da sabedoria que Deus Ihe
havia inspirado, quando, diante das mulheres que disputavam um bebê,
proferiu palavras que exprimiam a vontade de cortar a criança em duas
partes, enquanto que seu espírito estava muito afastado de tal vontade
e que queria atribuir o filho à sua verdadeira mãe". São palavras de
Quinti[iaho [119] que "às vezes a uti]idade geral exige que mesmo coi-
sasfalsas sejam sustentadas:

XVI. 'lblvez também quando


náo podemos defender de outro
modoa vida de um inocente
ou alguma outra coisa equivalente

A quinta consequência pode ocorrer todas as vezes que a vida de


um inocenteou alguma coisa equivalente não pode ser salva de outro
modo e que alguém não pode ser de outro modo levando a desistir de

[n71 De úoi]ep)];]28).
[1181 Cassiodoro(Z)e .4mJcuflb) diz: "G?banda, por um sáó/o álhgímenfo de sever2da
de, ele difamada seus irmãos com uma acusaçãode espionagem.
[119]Marcus Fabius Quinti[ianus [30?-100?],Z)e]nsÉ7fuíloneC2rafar7a
(11,17, 36)
1044
H uoo GROTlus

executar uma ação má [120] . Esse foi o ato de Hipermnestre que, a esse
título, é ordinariamente e]ogiado: "Nobremente mentiroso [121] e vir-
gem i[ustre por todos os sécu]os" [122].

XVII. Quais os autores que julgaram


que a mentira pregada ao inimigo é lícita

1. 0 que os sábios decidem em muitos lugares que é permitido ser-


vir-se de um discurso falso para com o inimigo se estende muito mais do
que aqui]o que acabamos de dizer. Assim é que P]atão]123], Xenofonte]124],

[120] Agostinho (/h .f)saZmumV, 7), passagem reproduzida por Graciano em (:ousa
XXll, quaestio11,Nequis, 14.à:KE. "Há duas espéciesde mentira, nas quais não
há gra[[de culpabilidade, mas que, ]]o entanto, 1]ãodeixam de constituir uma
falta: quando mentimos para lisonjear ou para prestar serviço a nosso próxi
mo. A ]neJltira de !isonja }lão é perigosa porque não erga:la ninguém. De fato,
aquele a quen} é contada sabe que essamento'a fo{ dita par !ísonja. Quanto à
segunda, é taJlto menos funesta que contém em s{ mesma alguma benevo
/énczn." Tertuliano(De PudcuÉÜ, 19) coloca no plano das faltas diárias, às
quais todos estamos sujeitos, as mentiras que são contadas por necessidade
[121] Comentando isso, o esco]iasta diz 'bom decénc/a.De /aío, cí óe/o me/ í7rpe/a
./usí7ba." Semelhante é essepensamento de João Crisóstomo(De Poenifenflb,
Vl1, 5), a respeito de Raab: '2?e/amení#a.r -Ébgano/ou},ál-eZde uma pessoa
que não traiu a religião, mas que se torna a guardiã da verdade" am,comase
encontra em outras edições, 'tla rerdade7bap/'idade.r" Falando das parteiras
do Egito, Agostinho(é?uaes#lb/?es in ]?ep aéeucüum, 11, início) diz: '0.ó.r Sen
tímento profu1ldo de humanidade! Oh piedosa mentira para salvar gente!"
Jerânimo louva as mesmas parteiras e acredita que terão recompensas até
mesmo eternas(Go«:«,enfada«, ih Ezecü 'e/e«, P70pÁefa«,, XVll, e Oo«:«,.
zh lsa bm Propáeíam, LVI) e também Ambrósio(.4d Syagnum, VI), como o
próprio Agostinho(.4d (]onsenüum, (hnÉra Mendacuum,cap. XV), variando
aqui, como costuma, têm o mesmo pensamento. Tostato nega que nisso te
nham pecado. Hesitam a respeito: Agostinho(@uaesÉaones super rodam, ll,
L),'lamas de hqu\no (*SummaTheoJogica,111,2, quaestio CX, art. IV resp. ad
4, sobre o qual se pode consultar Cajetan. Ver, se agradar, Erasmo, em seu
E2zcomium ]lZor7be,e o eruditíssimo Masius, sobre Josuó 11, 5.
[122] Quintus Horatius F[accus [65-08 a.C.] Odarum seu Carminum ]ibri ÇXX1,2
35)
[123] .De.Repuó/lba(11,21).
[124] Z)e C]pz7ZnsdÉ.(1,6, 28) e ]Uelnorab. Soez(VI 2, 16)
1045
CAPÍTULO 1- 0 QUE É PERMITIDO NA GUERRA, SEGUNDO O DIREITO DE NATUREZA

Fílon [125] entre osjudeus, Crisóstomo [126] entre oscristãos, acres-


centam à regra que proíbe mentir a exceção:a menosque não seja
contra os inimigos. Pode-selembrar aqui, a propósito, a mentira dos
jabesitas sitiados que se encontra nas Escrituras Sagradas (/Snmue/
XI, 11) e um fato não dessemelhante do profeta E]iseu]127] e de Valério
Levino [128] que sevangloriava que Pirro havia sido morto por ele.

2. Uma passagemde Eustrato, metropolita de Nicéia, no sexto


livro da .BÉ7cade P]atão [129] , se refere à terceira, à quarta e à quinta
observaçõesque acabamos de formular. "Aquele que delibera bem não
diz a verdade em todos os casos.Pode ocorrer, de fato, que aquele que
delibera de modo conveniente examine de que maneira mentira de pro-

pósitoao inimigo para o enganar ou ao amigo para preserva-lo do mal.


As histórias estão cheias de exemplos desse tipo." Quinti]iano [130] diz
também que se for preciso demover um bandido de matar um homem
ou se um inimigo deve ser enganado para a salvação da pátria, essa
ação que, em outras conversas, seria censurável nos escravos, seria
elogiável na própria pessoa do sábio.

[1251 Z)e MIÉraÜone .Abra.ban?(5).


[126] De Sncerdoüa(1, 8), onde assim se exprime: 'iSa darem examinadas as açõês
dos mais célebres capitães, se poderá observar que a maioria de suas vitórias
foram o efeito de alguma astúcia de guerra e que aqueles que assim agiram
foram mais elogiadosque aquelesqueforam vitoriososcom batalhas em
campo aberto.
[127] /7Rel's V], 18. Há outro exemplosimi]ar do mesmoEliseu (/7Xelk Vlll, IO), U
segundo a correção dos Masoretas.
[128] SextusJulius Frontinüs [séc.] d.C.], ,Sfrafagemafa(11,4, 9)
[129] ..4dA7bfofe/em .Bfüiba Mc.(V], 9)

[130] Marcus Fabius Quinti[ianus [30?-100?], .De ]nsüfuÉaone OraforTa (Xl1, 1, 39)
1046 H ÜGO GROTIUS

3. Essas coisas não agradam à esco]a dos ú]timos sécu]os [131],


tendo-se proposto de não seguir quase em tudo a não serAgostinho [132]
somente entre os antigos. A mesma escola admite, porém, interpreta-
ções tácitas tão afastadas de todo uso que pode ser posto em dúvida se
não é melhor admitir a mentira contra certas pessoas,em alguns den,
tre eles, pois não toca a mim determinar algo, do que excetuar tão
indistintamente da mentira essasinterpretações. Isso ocorre, por exem-
plo, quando dizem que "não sei" pode ser compreendido por "não sei
para o dizer"; que "não tenho" pode ser entendido por "para te dar" e
outras reservas semelhantes que repudiam o sentido comum e que,
sendo admitidas, nada impede doravante que aquele que afirma uma
coisa seja considerado como tendo negado essa mesma coisa, aquele que
a nega, como se a tivesse aÊlrmado.

4. De fato, é bem verdade que não há absolutamente nenhuma


pa[avra que não possa ter um sentido ambíguo [133], porquanto todas,
além do significado que sechama de primeira noção,têm um outro de
segunda [134] e que varia segundo as diferentes artes [135]. Com isso,
existem ainda outros significados expressospor metáfora ou figuras
similares. Não aprovo mais o 6lngimento daqueles que, como se tives-
sem horror da palavra, não da coisa, chamam de gracejos discursos que
proferem comum semblante e um tom de todo sério.

[131] Tomas, ,Sümma ZZeo/opta, ]Z 2, quaesélb .Z/g a/f. .Ze .3 Covarruvias, in cap,
Quamvis, de Partis, in Vi, parte 1, $ 1, n.' 15 Sa\n, De Justitía, V, quaest. 6,
art. 2, 'taXet., !ivro iV cap. 21 e iiwo À/,cap. 58, 1nssxus, livro 11, i)e Justitia,
cap. 42, dub. 9.
[132] O abade Rupertus escrevea ú]tima opinião deste, com relação a esse ponto.
[133] E o que sustenta Crisipo, em M)ates.4fÉlcae(]X, 12) de Au]us Ge]]ius. Sêneca,
no \ixro De Beneficíis (31,S4à,à\z. "Há um grande número de coisassem nome
que designamoscom denominaçõesquenão lhes são próprias, mas quesão
estranhas e adaptadas.
[134] Agostinho(.De .õ4ag7sÉro,
V]1, 20) diz: ':N©oeJJconíramos
sina/ quq a/ám dHS
coisas que indica, não desperte a ídéia de sí mesmo.
[135] Ver o que foi observadono parágrafo X.
1047
CAPÍTULO 1- 0 QUE É PERMITIDO NA GUERRA, SEGUNDO O DIREITO DE NATUREZA

Xylll. Isso não deve ser estendido


às palavras que encerram uma promessa
Deve-se saber, porém, que o que dissemos sobre a mentira deve
se relacionar a um discurso a6umativo e tal, de fato, que não prejudi-
que a ninguém, a não ser a um inimigo público, e não a um discurso
que contenha uma promessa [136]. Comojá começamosa dizê-]o há
pouco, por efeito da promessa, um direito especial e novo é conferido
para aquele a quem a promessa é feita. Mostraremos que isso ocorre
mesmoentre inimigos, sem nenhuma distinção de hostilidade já exis-
tente, não somente nas promessas expressas, mas também nas tácitas,
comona pergunta de uma entrevista, quando sechegar a essa parte
quetrata da palavra a manter na guerra.

XIX. Nem aos jul'cimentos

Deve-setambém lembrar o que foi descrito precedentemente (li-


vro 11,cap. XIII) sobre o juramento aÊumativo ou que reílete uma pro'
mesmaeque tem a força de excluir todas as exceçõesque poderiam ser
tiradas da pessoacom a qual agimos porque o negócionão se passa
somente com um homem, mas também com Deus, para com quem nos
obrigamos pelo juramento, mesmo quando nenhum direito possa sur-
gir em favor do homem. Nesse mesmo local dissemos igualmente que,
no juramento, todas as interpretações de termos não completamente
inusitados não são admitidas, como em outro discurso, para nos eximir
de mentira, mas que a verdade é absolutamente requerida, no sentido
que o homem que escuta é levado, com boa-fé, a compreender, de modo

[136] Agesilau, juntamente com P]utarco(.4gesz7atz,600 D), fazem esta distinção:


Violar os tratadas é desprezar os deuses.Fora disso, e1lganarQ inimigo com
palavras não é somentejusto, mas isso é até glorioso e proporciona algum
prazer, além do proveio).
1048 H UGO GROTI us

que se deve detestar de todo a impiedade daqueles que não hesitam


pretender que se pode enganar os homens com um juramento, como as
crianças com dados.

XX. E contudo mais generoso e convém melhor


à simplicidade cristã abster-se da mentira,
mesmo com relação ao inimigo

1. Sabemos também que certos tipos de fraude que dissemos se-


rem naturalmente permitidos sãorejeitados por alguns povos ou al-
guns indivíduos. Isso não vem da opinião que sejam injustos, mas pro'
vém de uma notável grandezade alma e às vezesda confiançaem suas
forças. Há em E]iano [137] essaspa]avras de Pitágoras que, por duas
coisas, o homem se aproxima mais de Deus: dizendo sempre a verdade
e fazendo o bem aos outros. Em Jâmb]ico [138] , a veracidade é dita ser
o guia para todos os bens divinos e humanos. ParaAristóte]es [139], "o
homem magnânimo gosta de dizer a verdade e falar livremente". Se-
gundo P[utarco[140], "mentir é servi]"]141]. Arriano]142], falando de
Ptolomeu, diz que "lhe era mais vergonhoso mentir, sendo rei, do que
poderia ser para qua]quer outro". No mesmo autor [143], A]exan(he
declarava que "um rei não deve dizer a seus súditos outra coisa senão a

[137] Uar .]íjkf. (X]1, 59)


[138] ProÉrePf. (20).

[139] .éfzca a NJcÓmaco(]V. 8).

[i40] .De .Bduc. (ll C)


[141] No livro (2mnem H um .F:roótzm Esse .Llóerum(21), Fí]on diz: ':Porisso se fem
o costume de chamar de gente que não age comc}homens !ivres e pessoas.de
espírito servil aqueles que são falsos e en.ganadores.
[142] Erped. .4/exandí(], prefácio)
[143] Expert. .f]/exan#7'(V]1, 5)
!049
CAPÍTULO 1- 0 QUE É PERMITIDO NA GUERRA, SEGUNDO O DIREITO DE NATUREZA

verdade". Mamertino [144] diz de Juliana: "Há em nosso príncipe uma


estonteante concórdia entre o espírito e a língua. Ele sabe que a menti-
ra não é somente o vício de uma alma baixa e pequena, mas que é ainda
um vício servil. Verdadeiramente,comoé a miséria ou o temor que
tornam os homens mentirosos, o príncipe que mente não conhecea
elevação de sua sorte." Em P]utarco [145], e]ogios são feitos ao natura]
para Aristides: "Firme e constante em seus costumes, inabalável em
seus princípios de justiça e que fugia da mentira, mesmo na brincadei-
ra." Probus [146] diz de Epaminondas que era "tão atenciosocom a
verdadeque não mentia, mesmona brincadeira.

2. Isso deve seguramente ser tanto mais observado pelos cristãos

porque não somente a simplicidade lhes é ordenada, mas também por-


que lhes é proibido dizer palawas vãs e que lhes foi proposto como exemplo
aquele em cuja boca não se encontra engano. Lactâncio [147] diz: "Por
isso, o viajante verídico e justo não dirá este verso de Lucílio: 'Não é de
meu estilo mentir a um homem amigo e conhecido.'Pensará, porém,
que não é seu estilo mentir mesmo a um inimigo e a um desconhecido e
não se permitirá jamais dizer algo em que a língua, que é a intérprete
da alma, esteja em desacordo com o sentimento e o pensamento." Tal é,
em Filocteto de Sófocles,Neoptolemo, "acima de tudo por sua generosa
retidão", comomuito bem observou Dion de Prousa [148], e que respon'
de assim a U]isses [149] , que o instigava a usar artifícios: "Para mim,

[144] HpopàÉüeB:, Ju/lbn ] cap. 20.


[145] Avsí7des (319 D).

[146] Corne[ius Nepos [séc. ] a.C.], gpam]nomdas (3)

[147] Caeci[ius Firmianus Lactantius]séc. ]V d.C.], Dul-haJ-um ]nsÉlfuÉ7bnum(V]


18)

[148] Dion Crisóstomoou Dion de Prousa, (2raúo1/7


[149] Sófocles, /%doca, (86)
H U GO Gxoíius

filho de Laerte, os conselhos que tenho dificuldade em entender, teria


mais horror ainda em segui-los. Não nasci para visar aos artifícios,
nem eu, nem aquele que, digamos, me deu a luz do dia, mas estou
pronto para levar Filocteto empregandoa força e não a trapaça" [150].
Eurípides diz em RZesus [151]: "11Jm
coração generosonão sabe dar
furtivamente a morte a seus inimigos.:

3. Assim é que A]exandre [152] dizia que não queria roubar a


vitória. Po]íbio [153] re]ata que os habitantes de Acaia tinham horror
de toda fraude feita contra os inimigos porque acreditavam que nãa
havia vitória sólida senão a que (para exprimir esse pensamento com as

pa[avras de C[audiano[154]) "subjuga os inimigos após ter abatido tam-


bém sua coragem". Assim foram os romanos até quase o íim da segun-
da guerra púnica. E]iano [155] diz: "Os romanos têm uma coragem que
lhes é própria. Não procuram a vitória por meio da astúcia e de anima-.
nuas." Disso decorre que quando Perdeu,rei da Macedânia [156], havia
sido enganado por uma esperança de paz, os senadores idosos declara-
vam que não reconheciam os procedimentos romanos, que seus ances-
trais jamais haviam feito guerras para obter mais glória de sua astúcia

[150] Aquiles, do qual fala Hoi'ácio(Odarum seu Ch/mihum Zlór2; IV, 6, 13-17), diz
Não foi ele que se teria visto esconder-senos flancos do cavalo, voto impôs
bor feito a Minerva, para surpreender os troianas no meio de suas festas
insellsatas e a corte de Príamo no meio de danças,mas à iuz do dáa, terrível
para os rena'dos..."e o que se segue.Sobreissoo escoliastaobservaque
Aquêlesnão havia jamais agido fraudulentameilte, mas tinha semprecom'
saúdo aóerÉamenfecom conXlançaem seu va/or': Observem-se estas pala-
vras "com conálançae/n seu Haja/' que estão perfeitamente de acordo com o
que dissemosno começodesteparágrafo, no texto
[151] Ráesus (510 e seguintes).
[152] Plutarco, .'Uexand?-e (683 D)
[153] Livro XIII. 3
[154] Caludius Claudianus [séc. ]V d.C.], Z)e Sexto Oo/zsu/afu /ío/]orl} (249)
[155] Uar .ll])É. (Xl1, 33).
[156] Titus Livius [59 a.C.-17 d.C.], .4ó Z:/rbe (bnd)fa (XLl1, 47, 4-8)
CAPÍTULO 1- 0 QUE. É PERMITIDO NA GUERRA, SEGUNDO O DIREITO DE NATUREZA
!051

que de sua coragem, quejamais se haviam servido de trapaças púnicas,


nem das intrigas dos gregos, entre os quais enganar um inimigo pare'
cia mais glorioso que triunfar pela força. Depois acrescentavam isso:
"As vezes, no tempo presente, a fraude é mais proveitosa que a cora-
gem, mas somente se crê definitivamente vencido aquele que é forçado
confessar que a vitória obtida sobre ele é devida, não ao artifício e ao
acaso,mas à superioridade das forças, numa guerra justa e legítima."
Lemos em Tácito [157] que, mesmo mais tarde, "o povo romano não se
vingava de seusinimigos com a fraude e os complâs,mas abertamente
ede mão armada."Assim eram ainda ostibarenos [158] que assina]a-
vam até aosinimigos o local e o momento do combate.Mardonius, em
Heródoto [159], re]ata isso também dos gregos de seu tempo.

XXI. Não nos é permitido compelir alguém


ao que nos é permitido, mas náo o é a ele

Isso se relaciona igualmente ao modo de agir; e que não é permi-


tido compelirou solicitar a alguém. uma coisa qualquer que Ihe é proibi-
do fazer [160] . Que o que segue sirva de exemp]o: não é permitido a um
súdito matar seu rei, nem entregar praças fortes sem uma deliberação
pública, nem despojar concidadãos.Não é permitido, pois, incitar a isso
um cidadão que permanece tal. Sempre, de fato, aquele que dá a ou-
trem uma ocasião de pecar, peca também ele pi'óprio. Não há o que
replicar a não ser para aquele que compeleao crime um indivíduo com
um ato semelhante, por exemplo, o assassinato de um inimigo é lícito.

[157] Caius Corne[iusTacitus [55-120], ,4nnaJes(11,88)


115810 escoliasta, no livro ll de Hpo/c5nib(1010).
[159] Livro Vl1, 9

[160] E o que ensina também Moisés Maimõnides em ".fía/alof Zouóa/', cap. V.


seção X
1052
H U GO GROTIUS

Para ele é permitido, de fato, executar, mas não desse modo. Agostinho
[161] diz com razão que não importa se comeres tu mesmo o crime ou se
queres que outro o cometa por ti.

XXII. E permitido contudousar de um serviço


voluntariamente oferecido

De modo diverso é se alguém emprega para uma coisa que Ihe é


permitida o serviço de um homemque seoferecea ele voluntariamente
e que peca sem que ele o compila. Provámos alhures, pelo exemplo do
próprio Deus [162] , que isso não é iníquo. Ce]so [163] diz: "Recebemos
um trânsfuga pelodireito da guerra." Isto quer dizer que não écontra o
direito da guerra admitir aquele que, abandonando o lado dos inimigos,
esco[he o nosso [164].

[161] -De 7Morlóus Ecc/eslbe aafáoJlbae(11, 57).

[162]Livro11,cap.XXV],$V
[163] .Z;. 5/, 7}ansnugam, Z)/r., De .4cguÜ rez domJh.

[164] Por isso, não se é obrigado a entrega-los, salvo que não haja compromissopor
um tratado de paz, comofoi estipulado pelo tratado com Filipe, os etóliose
Antíoco(Polívio, .Uraerpfa -LegaZ]'onum,
IX, XXVlll e XXXV). Menandro, o
Protetor, ensina a mesma coisa
11

COMO,SEGUNDO O DIREITO
DAS GENTES,OSBENS DOS
SUDITOS SAO REQUERIDOS
IRRA COBRIRA DIWDA
DOS SOBERANOS.'TRAJA-SE
/
LAMBEM DAS REPRESALHS

Sumário

1.Naturalmente nínguéin pode se apoderar do alheio, senão é


h e} deito.

11.Foiintroduzido, contudo, pela direito das gentes que os bens


e os fitos dos súditos sejam empenhados peia dívida do so-
berano.

il!. Exemplo de apreensão de pessoas.


]lV E dos bens.

U Isso ocorre após uma negação da justiça e quando se deve


presumir a negação;demonstra-sequea coisajulgada não
dánem tira, propHamenteílüando, o direito que se tem.
VI.A vida não pode ser empenhada

VII. Distinção do queé de direito civílnesse assunto e do queé


de direito das gentes.
1055
CAPÍTULO ll - SEGUNDO O DIREITO D6 GENES. OS BENS DOS SÚDITOS SÃO REQUERIDOS PAM COBRIR DÍVIDAS. D6 REPRESÁLIA

1. Naturalmente ninguém pode


se apoderar do alheio, se náo é herdeiro
1. Passemos às coisas que provêm do direito das gentes. Elas se

relacionam em parte a toda e qualquer guerra, em parte a um certo


tiPO de guerra. Comecemos pelas gerais. Segundo o direito de natureza,
ninguém é obrigado pelo fato de outrem, a não ser que ocorra nos bens.
Foi estabelecido, de fato, ao mesmo tempo que a propriedade das coisas,

que os bens Ihe passariam com os encargos]l]. O imperador Zenon]2]


diz que é contrário à equidade natural que terceiros sejam importuna-
dascomasdívidas de outrem. De ondeos títulos no direito romano [3]:
Que a esposa não seja acionada pelo marido, o marido pela esposa, o
filho pelo pai, o pai e a mãe pelo filho.

2. O que deve uma instituição e os privados não o devem, como o


diz formalmente Ulpiano [4] , bem entendido, se a instituição tem bens,
de outro modo, os privados são obrigados, não como privados, mas en-

quanto. fazem parte da instituição. Sêneca [5] diz: "Se a]guém empresta
dinheiro à minha pátria, não me sinto seu devedor. E um empenho que
não assumiria, nem mesmo para a quitação daria uma quota minha'
[6]. E]e havia dito [7] : "Membro da nação, não pagaria em meu nome,
mas em nome do país, dando minha contribuição." E,ainda: "Os priva-
dos poderiam dever, não como pessoalmente obrigados, mas como parti-

[1] Ver livro 11, cap. XX], $ X]X. Acrescente-se a ]h /lfferzs, de J?apforJóus;
De usuras.

1211
L ujlica, Cod., Ut nuilus ex ücanis.
\:\ÀCod.,Ne uxor pro manto et ne â!!ius pro paire, tons titulis.
ttà L. 7, Sicut, $ !, Dig., Quod cujusque unívers. ilumine.
[5] Lucius Annaeus Seneca [01? a.C.-65 d.C.], De J?ene#c7lk(VI, 20).
l61Ver as Z,eJSSlc=Zzbnas,no final do livro 1, título 100

[7] Lucius Annaeus Seneca [01? a.C.-65 d.C.], .De .Be/7e#cíz) (VI, 19)
1056 H UGO GROTIUS

cipando da obrigação do país..." Por isso, é particularmente estabeleci-


do pelodireito romano]8] que nenhum doshabitantes deuma povoação
é obrigado pelas dívidas de outros habitantes da mesma. E em outro
local [9] é prescrito que nenhuma herança responde pelas dívidas de
outrem, mesmo públicas e, numa NoT'eZ/a de Justiniano [lO] , as apre'
ensões são proibidas, isto é, as tomadas como penhor [11] , para as dívi-
das dos outros. Não se dá senão por que é contra a razão que um seja o
devedor e que outro seja cobrado. As exaçõesdesse tipo são chamadas
odiosas. O rei Teodorico, em Cassiodoro [12] , c]assi6ca de licença vergo-
nhosa o fato de empenhar outro por outrem.

11. Foi introduzido, contudo, pelo direito


das gentes, que os bens e os fitos dos súditos
sejam empenhados pela dívida do soberano

1. Mesmo que essascoisas sejam verdadeiras, contudo, pode ter


sido introduzido pelo direito voluntário das gentes, e parece que foi in-
troduzido, que todos os bens corporais ou incorporais daqueles que são
súditos de uma tal sociedade ou de seu chefe, sejam obrigados e coagi-
dos ao que devem fornecer a uma sociedade civil ou a seu chefe, seja que
eles tenham diretamente e por si mesmoscontratado essadívida, seja
que eles se tenham também obrigado pela dívida de outro. Uma espécie
de necessidadeimpôs isso porque de outro modo uma grande

l8ÃDicta leme unica, Cod., Ut nullus ex vicanis, livro XI.


liçah 4, Nuilam, Cod., De Execut. et Exatianibus.
[10] AZoreZ/a (Vl1, 52 e 134).

t\\À Cod. união, De injurias, in Vr. "0 recebimento de penhores que uma.maneira
popular de se expressam' cáaloa de represa/)as."Mais exatamente se diria, como
ocorre em cel'tos livros, "represa/lbd'. Esta palavra responde assim exatamen'
te à palavra saxânica mfáenam, mas prevaleceu o uso da outra palavra.
[12] Uar .Ê@Jif., ]ivro ]V.
1057
CAPÍTULO ll - SEGUNDO O DIREÜO D6 GENES, OS BENS DOS SÚBITOS SÃO REQUERIDOS PARA COBRIR DÍVIDAS. D6 REPRESÃL16

permissividade seria conferida a eventuais injustiças, sabendo que os


bens dos soberanos não podem muitas vezes ser tão facilmente apreen'
lidos, a não ser aqueles dos cidadãos privados que são em grande nú-
mero. Esta regra se encontra, pois, entre aque]as que Justiniano [13]
diz terem sido estabelecidas pelas nações, exigidas pelo uso e sob o im-
pério das necessidades humanas.
2. Essa regra, contudo, não repugna de tal modo o direito de
natureza que não tenha podido ser introduzida pelo costume e por um
consensotácito, porquanto as cauçõestambém obrigam somente por
seu consenso, sem outra razão [14] . Havia esperança que os membros
de uma mesma sociedade pudessem mais facilmente obter justiça de
uns e outros e providenciar à sua indenidade do que a estrangeiros,
para com os quais se tem pouca consideração em muitos lugares. De-
pois, dessaobrigação, decorria uma vantagem comum para todos os
povos,porquanto aquele que, anualmente, fosse incomodado, poderia,
em outro tempo, encontrar aí a solução de seu problema.
3. Aintrodução desse costume não provém somente das guerras
plenas [15] que os povos movem aos povos. As fórmulas das declarações
mostram, de fato, o que é praticado nessas guerras: "Declaro a guerra
aos povos dos antigos latinos e aos homens dos antigos latinos e a faço'
[16]. E os termos da proposição: "Queriam, ordenavam que a guerra

[13] Znsdf. De Jure Naf.


[14] Tomas, Sumia 7bea/ag7ca, /Z .Z quaesf. 4ê a/f. ]; Mo]ina, 22ísp. ].gO e ].2Z
Va\ell\Xa,Disp. 3, quaest. 6, n.' 3; ]gavarr., cap. 27, n.' 136.
[15] O sábio Nico]au Damasceno distingue entre as guerras e essas espécies de
penhoras, quando sustenta que Herodes, a quem não era permitido mover
guerra aos árabes, havia podido usar de penhoras para ter o que ]he deviam
por um contrato. Em Josefo(.4nf7küidadesJudaüas, XVI, 10, 8) encontram-se
estas paXawas: 'Tendo relatado que quinhentos talentos eram devidos a Herodes
e que existia um compromisso escrito, contendo que se essedinheiro não fosse
entregue após o prazo expirado, era permitido a Herodes tomar o que pudesse;
por fado o país dos árabes, até que estivessesatisfeito. Nicolau dizia que essa
expediçãonão era uma verdadeira expedição,mas uma justa execução,pela
qua! ele ]neslno recolhia o que }he era devido.
[i6] Titus Livius [59 a.C.-17d.C.], .4b C/róe(;ond)fa(1, 32, 13).
1058 H U GO GKOti US

fosse declarada ao rei Fi]ipe e aos macedónios, seus súditos" [17] . Acém
dostermos da própria decisão:"0 povoromano resolveu mover guerra
contra o povo de Hermundu]o e os homens de Hermundu]o" [18], fór-
mula tirada de Cincius, em sua obra sobre a .4rfe-/láZfar. E em outro
local [19] : "Que seja inimigo, como os que estão em suas fileiras." Mes-
mo quando não se chegouainda a essaplenitude da guerra e que entre-
tanto se tem necessidadede recorrer a alguma via de fato para fazer
valer seu direito, isto é, a uma guerra imperfeita, vemos que o mesmo
costume é observado.Agesi]au [20] dizia um dia a Farnabaz, súdito da
rei dos persas: "Quando, Farnabaz, éramos amigos do rei, agíamos en-
tão como amigos a respeito do que serelacionava a ele.Agora que nos
tornamos inimigos, agimos como inimigos. Por isso é que, como tu que-
res estar entre as coisasque pertencem ao rei, nós o levamoslegitima-
mente em tua pessoa.

111.Exemplo de apreensãode pessoas


1. Havia uma espécie dessa via de execução de que falo que os
atenienses chamavam "av8poÀTlyta", a respeito da qual a lei ática se
exprimia assim [21]: "Se a]guém morre por assassinato, que seja per-
mitido aos parentes mais próximos e a seus amigos tomar algumas
pessoas e guarda-las, até que se tenha feitojustiça desse assassinato ou
que se tenha entregue os assassinos, mas que não seja permitido tomar
senão três homens e não mais." Vemos aqui que, para a dívida de um
Estado, que é obrigado punir seus súditos quando prejudicarem a ou-

[17] Idem, .4ó Urbe aondyfa(XXX], 6, 1).


[18] Au[us Ge[[ius [séc. ]] d.C.], ]Mocfes..4fúcae (XV], 4).
[191 Titus Livius [59 a.C.-17 d.C.], .4b [ã.Ée Gondlfa (XXXV]11, 48, 9)
[20] Plutarco, .4gesiZnu(602 D,E).

,'
[21] Demóstenes, .4drersus M7sÉrocx (82).
1059
CAPRULO ll - SEGUNDO O DIREü0 DE GENES, OS BENS DOS SÚDITOS SÃO REQUERIDOS PAU COBRIR DÍVIDAS. D6 REPRESÂIU

troa, uma espéciede direito incorporal dossúditos se encontra empe'


nhado, a saber, a liberdade de ficar onde quiserem e de fazer o que
quiserem, de modo que são colocadosna escravidão até que o Estado
faça o que se propõe a fazer, isto é, punir o culpado. Ainda que os
egípcios, como nos informa ])iodoro da Sicí]ia [22], sustentassem que o
corpoou a liberdade não deveriam ser obrigados por uma dívida, não há
contudo nada nisso que repugne à natureza e o costume, não somente
dos gregos, mas também das outras nações;prevaleceu o contrário.

2. Aristocrates, contemporâneo de Demóstenes, havia proposto


que se decretasse que havia sido permitido tirar de qualquer lugar em
que se encontrasse aquele que tivesse matado Caridemo e que aquele
que pusesse obstáculo fosse enumerado entre os inimigos. Demóstenes
encontra muitas coisas a dizer a respeito. Primeiro, que Aristocrates
nãodistinguiu entreum assassinatojusto e um assassinatoinjusto,
conquanto possa também haver um justo. Em seguida, que não exige
que antes justiça seja feita. Além disso, que queira tornar responsáveis,
não aqueles junto aos quais o assassinato foi cometido, mas aqueles que
dão refúgio ao homicida. Estas são as palavras de Demóstenes: "A lei
concede a captura de três homens contra aqueles junto aos quais o
assassinatoocorreu, se não dizerem justiça eles próprios, se não entre-
garem os criminosos. E esseos deixa ao abrigo de toda captura e não faz
mesmo menção deles. Aqueles, porém, segundo o direito de todos os
homens, que querem que os fugitivos possam ser capturados,. deram
refúgio ao culpado escondido no meio deles; sou levado a supor que ele
quer que sejam consideradoscomo inimigos, se não entregarem um
suplicantes" A quarta recriminação é que Aristocrates compele a se-
guir a coisa a uma guerra aberta, enquanto que a lei se contenta
pelacaptura.

[22] Livro 1. 79
H UGO GROTI us

3. Aprimeira, a segunda e a quarta dessas repreensões.não são


desprovidas de fundamento. Aterceira, porém, a menos que não seja
restrita somente ao acontecimento de um assassinato cometido por aca'
se ou em defesa própria, é antes formulada como ornamento oratório e
em vista de um argumento do que baseadana verdade e no direito. C)
direito das gentes que quer que os suplicantes sejam acolhidos e prote-
gidos diz respeito, comovimos antes (livro 11,cap. XXI, $ 5), somente
àqueles que cedem diante da má sorte, não diante do crime.

4. De resto, há paridade de direito entre aqueles junto aosquais


o crime foi cometido e aqueles que recusam punir ou entregar o culpa-
do.A pi'ópria lei que Demóstenes emprega recebeu do uso a interpreta-
ção que descrevo ou foi formulada de um a maneira mais precisa para
evitar semelhantes sutilezas. Aquele que desse atenção às seguintes
palavras de Julius Pollux [23] não negaria a existência de uma dessas
duas alternativas: "Ocorre a captura dos homens toda vez que não se
obtém os assassinosque se refugiaram em algum lugar, quando foram
reclamados. De fato, o direito prevê a captura de três homens em detri-
mento daqueles que se recusam a entregar o homicida." Harpocration
não fala de outra forma: "0 direito de captura de homens é aquelede se
apoderar de alguns indivíduos numa cidade.Usava-sea tomada como
penhor contra essa cidade que guardava um assassino e que não o en-
tregavaparaocastigo.
5. Um direito semelhante a esse é o direito de reter, para recupe'
rar um cidadãopresopor uma Injustiça manifesta, cidadãosdo Estado
junto ao qual esseato foi cometido. Assim é que em Cartago alguns
impediram que Ariston, cidadão de Tiro, fosse preso, dando essa razão:
"Que a mesma coisa poderia acontecer aos cartagineses e a Tiro e nas
outras cidadesde comércioque freqüentam habitua]mente." [24]

[23] Onomast. (V]11, 50).


[24] Titus Livius [59 a.C.-17 d.C.], ,4ó Z:/PóeGo ldlfa (XXX]V 61, 13)
CAPÜULOll - SEGUNDOO DIREÜO D6 GENES, OS BENSDOS SÚDITOSSÃO REQUERIDOSPAM COBRIRDÍVIDAS.DB REPRESüIAS

ly E dos bens
Outra espécie de execuçãoviolenta desse direito é a apreensão
dosbens ou tomada de penhor entre os diversos povos [25], que os juris-
tas modernos [26] chamam de direito derepresália, os saxõese os ingle-
ses, w7fÜerna/n e os franceses, entre os quais isso é ordinariamente
obtido do rei, /efZres de /naJ"que. Essa via ocorre, como dizem os juris-
tas, quando o direito é negado.

y. Isso ocorre após uma negação da justiça


e quando se deve presumir a negação;
demonstra-se que a coisa julgada náo dá nem th'a,
propriamente falando, o direito que se tem
1. Esta negação é considerada existir não somente se um julga-

mento não pode ser obtido num tempo suÊlcientecontra um criminoso


ou um devedor,mas mesmose, em matéria nada duvidosa (pois em
matéria duvidosa a presunção é para aqueles que foram estabelecidos
juízes por autoridade pública), foi julgado de todo contra o direito. A
autoridade daquele que julga não tem a mesma força com relação aos
estrangeiros que a respeito dos súditos. Mesmo entre os súditos ela não
extingue o que era verdadeiramente devido. "0 verdadeiro devedor,
emborasejaabsolvidoda reclamação,fica contudo devedornaturalmente'
[27], diz o jurisconsu]to Pau]o [28], e sobre a questão de saber se um
credor que se tivesse apoderado, em virtude de uma sentença injusta,
de uma coisa que não pertencesse a seu devedor e que a teria levado

[25] EuÀoca,diz Demóstenes em seu discurso Pal'a a Coroa (13) e Aristóteles em


peco ]o n/c0/2 (11).

[26i Bald., /ZZ (hns. 58 Bart., -De represa., guaesf. ó] ad fer/lum, n.' 9,

[27] A isso se aplica o que diz Gai]ius (Z)e .f)ace Puó//ca, 11, 8, n.' 7) e Vasquez
(aonÉroH
.i77usÉz,
livro IV, cap.X, $ 41)
.t8h L. 60, Julianus, Dig., De condict. index.
}062 H U GO GROíiUS

como Ihe sendo devida, não seria obrigado a restitui-la ao devedor de-
pois do pagamento da dívida, mas Scaevola achava que deveria resti-
tui-]a [29] . Há essadiferença que os súditos não podem ]egitimamente
impedir pela força a execuçãode uma sentença mesmo injusta ou per-
seguir seu direito pela força contra essa sentença, por causa do poder
que tem sobre eles a autoridade superior, enquanto que os estrangeiros
têm o direito de usar a via de fato, mas não lhes é permitido fazer uso a
não ser para poder obter o que lhes é devido pela via da justiça.

2. Trata-se, pois, de uma coisa introduzida, senão pelo direito de


natureza, ao menos pelo uso acatado em toda parte, que se possa, por
seme[hante razão, apreender pessoas[30] ou bens mobi]iários dos súdi-
tos daque[e que não faz justiça [31]. Há um antigo exemp]o em Homero,
na 277üda[32], onde é re]atado que Nestor se tinha apoderado, em troca
dos cavalos roubados a seu pai, de rebanhos de ovelhas e de bois perten-
centes aos e]eanos, poda eÀctuvopevoa133] segundo a expressão do poeta,

[29] Z,. ,r.g .Raso/:zbfuJn, / .Z, .Dzkl, De D2)ÉraÉ, pl]g72.,' ]nnocent. e Panormit., áz CaJ?.
Plerique, De Imlnunítate Ecciesíad Sa\n, !ivro 111,quaest. 4, art. 5.
[30] Há um exemp]o em Amiano (]ivro XV]1, 2), em que Ju]iano retém a]guns
francos até que os prisioneiros sejam postosem liberdade, em virtude de acor-
do celebrado.Acrescente-seo que diz Leão o Africano, livro 111,falando do
monte Bem-Gualid
[31] Jacob e Canib., Anchar. Dominic. Franc. ]h (hn. .C Z)e ]np'ur7]s, ih 6 Fu]gosius e
Salicetns, in Authent. Omnino, Cod., DeAction. et cbligat. !ac.13acab, De Beijo
Visa, in Authent., Ut non âiant pigncrationeg, Si\xest., in verbo Repressaliad
Bart., Ir2 H'acfafu de Regressa/)}b; Guido Papa, Quaesí]b 3Z Gailius, De .fbg7]0r,
ouse/'z ], n. ' 5; Vitoria, Z)eJure Belli, n.' 41; Covarruvias, iiz cap. /)eccafum,
parteii, $9.

[32]Zll'ada(X], 674)
[S3] Nessesentido é que se pode encontrar puatcE,em arcerpÉa .Z.egaÉ]o/]uin,
tirados
cle Políbio(XXXVlll). onde fala dos habitantes da Acata contra os da Beócia, e
Excerpf. CXXlll. Encontra-se também pDalcE(elvem Diodoro da Sicília(Exaerpfa,
do manuscrito de Peiresc). Em outros locais, puatocKotTctWeÀÀetvé uma expres
são de que se serve em matéria de guerra, comoo diremos a seguir, cap. 111,$
Vll; essas são. de fato, coisas que se assemelham muito
1063
üphuto ll - SEGUNDO O DIREü0 DB GENES' OS BENS DOS SÚDITOS SÃO REQUERIDOS PAU COBRIR DÍVIDA. Da REPRESÁln

em que Eustátio explica assim a palavra "poatcx":"0 que setoma em


lugar de algum outro objeto que nos havia sido tirado." Depois segue,no
relato, que foram convocadospor um edito para vir recuperar seu direi-
to todos aqueles a quem era devida alguma coisa pelos eleanos, a 6im de
que "ninguém fosse privado da porção que ]he era devida"134]. Há outro
exemplo na história romana, relativo aos navios dos romanos que
Aristodemo, herdeiro dosTarquínios, havia retido em Cumes, em troca
dos bens dos Tarquínios [35] . Dionísio de Ha]icarnasso [36] disse que
reteve os servidores, os animais de carga, o dinheiro. Em Aristóteles
[37],trata-se de um decretodoscartaginesessobre a apreensãodos
navios dos estrangeiros E ta auÀ,clveXet,segundo sua expressão nessa
passagem: "Se alguém tinha direito de os tomar."

yl. A vida não pode ser empenhada

Talvez entre alguns povos se acreditasse que a vida dos súditos


inocentesestá empenhada em semelhantes situações porque acredita-
vam provavelmente que um direito absoluto sobre sua própria vida per-
tence a cada homem e que esse direito podia ser transferido ao Estado:
o que dissemos em outro local (livro 11, cap. XV. $ XVI e cap. XXI, $ XI)
não ser de todo sustentável, nem conforme à mais sã teologia. Poderia,
contudo,ocorrer que aqueles que querem impedir pela força a recupera'
çãode um direito sejam mortos, não por plano premeditado, mas por
acidente. Seisso está previsto, mostramos em outro local (limo 111,cap.
1, $ IV. 2) que em virtude da lei de caridade, deve-se antes colocar de

[34] Homero,..]Züda (X], 705)


[351Titus Livius [59 a.C.-17d.C.], ,4b C/róeOondlfa(11,34, 4)
[36] Livro Vl1, 12
[37] OeCOJ?O/njCOn
(11).
!064
H uoo GROíiUS

lado a recuperaçãodo direito, porquanto em virtude dessalei, para os


cristãos sobretudo, a vida de um homem deve ser de mais alto preço que
uma coisa que nos pertence, como foi demonstrado em outro local (liv.
11, cap. 1, $ Xll, Xlll).

VII. Distinção do que é de direito civil


nesse assunto e do que é de dil'eito das gentes

1. De resto, não menos nessa matéria que nas outras, deve-se


tomar cuidado de não confundir as coisas que são propriamente do di-
reito das gentes e aquelas que são estabelecidas pelo direito civil ou
pelas convenções dos povos.

2. Segundo o Jüs genÉ7uJn(direito das gentes), todos os súditos


daquele que comete a injustiça, que são tais a título permanente, autóc-
tones ou vindos de outros lugares, são submissos ao direito de represá-
lia. Não aqueles, porém, que se encontram em algum lugar de passa'
gem ou para passar pouco tempo aí. As represálias, de fato, foram
introduzidas a exemplo dos encargos que são impostos para o pagamen-
to das dívidas públicas e dos quais são isentos aqueles que não são
submissos senão por um tempo às ]eis do país [38]. São excetuados
todavia, pelo direito das gentes, do número dos súditos, os embaixado-
res (não aqueles que são enviados a nossos inimigos) e as coisas que
lhes pertencem.

3. Pelo direito civil dos povos as mulheres e crianças são ordina-


riamente excetuadas e mesmo os objetos daqueles que se ocupam de
estudos e daqueles que participam de feiras. Segundo o direito das gen-
tes, o direito de apreensão pertence a cada um, como em Arenas na
AvõpoÀTlytct. Segundo o direito civil de muitos países, essedireito é ordi-

[38] Z)ec. O0/7s. 3í5Z Band. livro 3, Z)e oa: assess


1065
CAPÜULO ll - SEGUNDO O DIREÜO D6 GENTES, OSBENS DOS SÚDITOS SÃO REQUERIDOS PARA COBRIR DÍVIDAS D6 REPRESÁLIAS

nariamente impetrado à autoridade soberana ou aosjuízes. Segundo o


direito das nações, a propriedade das coisas capturadas é adquirida pelo
fato mesmoaté a liquidação da dívida e das despesas,sabendo-seque o
eventual excedente deve ser restituído [39]. De acordo com o direito
civil, costuma-secitar os interessados para vender ou adjurar os per'
tendespor autoridade pública para aquelesque têm interesse. Esses
detalhese outros devem ser pedidos aos que tratam das leis civis e
nomeadamente, nessa matéria, a Bartolo que escreveu sobre as repre'
saltas.

4. Acrescentaria isso porque se relaciona a um abrandamento


dessedireito bastante rigoroso por si mesmo, ou seja, que aqueles que,
não pagando o que deviam [40] ou não fazendojustiça, deram ocasião às
represálias,sãoobrigados,em virtude do direito natural e pelopróprio
direito divino, a reparar o dano [41] para com os outros que, por causa
disso,sofreram algum prejuízo.

[39] Segundo re]ato de Gregoras (livro IX, 5), os venezianos seguiram essa regra de
eqüidadecom relação a alguns navios genovesesque haviam apreendidona
&ülâüa. "Eles, porém, não tocaram em nada do carregamentodessesnavios
apreendidos.A carga se compunha de trigo, centeio e de carnes salgadas de
peixes pescadosnas baixios de Copaidese Meótides e no rio banais; canserva-
'nos caIU cuidado, nada tiraram, esperando o pagamento do que lhes era
de'üdo para entregam- a carga integra.Imeilte.

[40] Aeg. Regius, Z)e ac-f óus superu7,, dlsp. .Pí:rZ?]duó, Z /].' -Z.7Z

[411Em Hda de CI)non (483 C), P]utarco diz a i'espeito dos habitantes de Caros: 'H
maioria não queria contribuir comdinheiro, luas exigia que aqueles que pos'
suisseln bens pez'tendendo r
r Een a outros ou que os tivessem untado reparassem o
111

DAGUERRAJUSIA
0USOLENE,SEGUNDO OJUS
GENTIUM (DIREITO DAS /
GENTES). TRAJA SE LAMBEM
DADECLARAÇAODFGUERRA

Sumário

1.A guerra solene do direito das gentes ocorre entre povos dize
rentes.

11.Distinção entre um povo embora agindo injustamente e pi


ratas e salteadores.

lll. IJma mudança pode, às vezes, sobrevir.

IV Pela natureza da guerra soleneé requerido que tenha por


autor aquele que possui o soberano poder; como isso deve
ser entendido.

U Uma declaração é também requerida.


direito
VI. Explica-se de modo distinto o que na declaração é d(
natural e o que épróprio do direito das gentes.

vll. Há uma declaração condicional, outra pura e simples.

VIII. Que coisas, nas declarações, são de direito civil e não do


direito das gen tes.
IX. A guerra declarada a alguém é declarada ao mesmo tempo
a seus súditos e a seus aliados, enquanto seguem seu par'
tido.

X. Não enquantosãa conliderados


a em si mesmos esclareci
C

men tos por exemplos.

XI. Razãopeia qual a declaraçãoé exigidapara certos e oitos


Xli. Esses efeitos não se encontram nas outras guerras.

Xili. Sea guerra, desdeque declarada,podeperfeita.


XIV Se se deve declara-iaa quem violou o direito de embai
xada
â
1069
CAPÍTULO lll DA GUERRA JUSTA OU SOLENE, SEGUNDO O DIREITO DAS GENTES. TRATA-SE TAMBÉM DA DECLARAÇÃO DE GUERRA

1.A guerra solene do direito das gentes


ocorre entre povos diferentes
1. Começamosa dizer anteriormente (limo 1, cap. 111,$ 4) que os
bons autores conferiam muitas vezes a uma guerra a palavra justa,
não em consideração da causa que a produz, nem, como isso ocorre às
vezes,por causa da importância das operações que se fazem, mas por
causa de certos efeitos de direito que Ihe são peculiares. Forma-se per'
feitamente uma idéia do que é essa guerra, segundo a definição de ini-
migos que se encontra nos jurisconsultos romanos: "São inimigos aque-
les que nos declaram ou aos quais declaramos guerra em nome do Esta-
do.Os outros sãoladrões ou piratas", diz Pompõnio [1] . U]piano [2] não
fala de outro modo: "São inimigos aqueles a quem o povo romano decla-
rou publicamente a guerra ou que eles mesmos a declararam ao povo
romano. Os outros são chamados de salteadoresou piratas. Por essa
razão, aquele que é preso pelos sa]teadores não é escravo de]es [3] e o
direito de postlimínio não Ihe é necessário. Aquele, porém, que preso
pelosinimigos, por exemplo, pelos germânicos e os partas, é escravodos
inimigos e recupera seu primeiro estado pelo direito de postlimínio." E
Pau[o [4]: "Aque]es que são presospe]os piratas [5] ou sa]teadores ficam
livres." Aisso se acrescenta este fragmento de U]piano [6] : "Nas dis-
córdias civis, ainda que muitas vezes a república seja lesada por elas,
não se combate para levar o Estado à ruína. Aqueles que passam para

t\À L !18, Hostes, De vero. signo.


éZÀ
L. 24, Hostes, Dig-, De captivis.
[3] Disso trata o tema de Poenu/us, de P]auto, e .gunucüus, de Terêncio. Essa foi a
sorte de Eumeu(OdZsséü, XV. 402).

t4ÀL. 19, Postlímíníum, $2, Díg., De captivis.


[5] Pompeu declarou livres pessoasque haviam sido aprisionadas por piratas (Apiano,
Guerra de M]Éddafes, 96). Acrescente-se Herrera, tomo ll.
\6\ L 21, Si quis íngenuam, $ 1, eodein tit.
1070 H UGO GROTIUS

um ou outro lado não estão na condiçãodessesinimigos entre os quais


há direito de catividade ou de postlimínio. Isso porque se considerou que
fosse inútil para aqueles que tivessem sido presos, vendidos e libertados
a seguir, reclamar do príncipe uma condição de homens livres que não
teriam perdido por nenhuma captividade."

2. Basta observar somente aqui que, sob o exemplo do povo roma-


no, se deve entender toda potência que tem o poder soberano num Esta-
do. Cícero [7] diz: "]nimigo é aque]e que tem um Estado, uma cúria, um
tesouro público, o consenso e o acordo dos cidadãos e o poder, se a coisa
assim o comporta, de concluir tratados de paz e de aliança.

11.Distinção entre um povo embora


agindo injustamente e piratas e salteadores

1. Uma república ou um Estado não cessam logo de ser o que são


se cometem alguma coisa injusta, mesmo em comum. Uma reunião de
piratas ou de salteadores não é um Estado, mesmo que observem por
acaso entre eles uma espécie de moderação, sem a qual nenhuma so-
ciedade poderia existir. Estes se associam para o crime [8], enquanto
aqueles, mesmo que por vezes não sejam isentos de açõesculpadas, se
associaram contudo para gozar do direito e tratam com justiça os es-
trangeiros, senão em tudo segundoo direito de natureza que mostra-
mos alhures (livro 11,cap.XV) como em parte apagadojunto a muitos
povos, ao menos segundo as convenções celebradas com cada um ou
segundo os costumes. Assim é que o esco]iasta de ']lucídides [9] observa

[7] Marcus Tu[[ius Cicero]106-43 a.C.], Zn Mnraum .4nfon 'um Ornílones PZiZÜ)plcae
(IV,6, 14).
[8] Procópio(banda.]z c., 11, 15) diz: ':Exmamu/óclão de üo Bens /eunidn sem /e mas
que se reuniu.em vista da injustiça.
[9] Livro 1,5
1071
CAPÍTULO 111- DA GUERRA JUSTA OU SOLENE. SEGUNDO O DIREITO DAS GENTES' TRATA-SE TAMBÉM DA DECLARAÇÃO DE GUERRA

que os gregos, no tempo em que se considerava lícito exercer depreda-


çõesno mar, seabstinham de assassinatose pilhagens noturnas, bem
como do rapto de bois dos lavradores. Estrabão [10] lembra que outros
povos também, vivendo mesmo do saque, quando retomavam do mar,
enviavam aos proprietários para que resgatassem a preço razoável as
coisas raptadas [11], se o quisessem. A esses povos se aplica também
essa passagem de Homero, na Odüsézn [12]: "Os homens ávidos de
saque que percorrem os litorais estrangeiros, se os deuses lhes fizeram
encontrar uma presa, se retiram depois de encher seus navios e retornam
com seus barcos. Temem sem dúvida que os deuses se lembrem do que
éjustoedo queécriminoso." /

2. Em matéria Úecoisasmorais, o principal passapela forma,


comofoi dito muito bem por Cícero [131:"0 que contém as maiores
partes e tem a maior extensão dá o nome à coisa inteira." Com isso
concorda esta passagem de Galeno: "Os nomes se tiram do que predo-
mina numa mistura." O mesmo chama seguidamente isso "coisas de-
signadaspor sua parte mais nobre". Por isso foi dito muito cruamente
pelo mesmo Cícero]14] que, quando o rei é injusto, quando os principais
do Estado são injustos ou que é o próprio povo que o é, não é somente um
Estado defeituoso, mas que não há mesmo Estado. Corrigindo essa
maneira de ver, Agostinho [15] diz: "Não diria que não é mais um povo

[10]Livro XI, 2, 12.


1111Esses povos são mencionados pelo gramático Saxon (livro XIV). Por essa razão,
Plutarco((Zmon, 483 C) faz notar que os habitantes de Citas se haviam torna-
do com o tempo sempre piores: 'Z)epois de se tareia ailÉikamenfe confenfado
em piratear pelos mares, chegaram até a despojar os estrangeiros que navega-
vamjunto a eles em vista do comércio.
[12] Odlsséla (XIV 85).
[13] Marcus ']-u]]ius Cicero [106-43 a.C.], .De .fln/Zlus (V. ]O, 92).
[14] Idem, .Z)e.Re .PuóZca(111), citado em De (#wéafe De/(11, 21) de Agostinho
[15] Aure[ius Augustinus [354-430] , Z)e Clwfafe Z)ef (X]X, 24).
1072 H UGO GROTIUS

ou que sua forma não é mais a de um Estado, tanto que subsiste uma
assembléia,qual seja,de grandenúmero de indivíduos racionais, uni-
dos para participar em bom acordo a coisas a que se afeiçoam." Um
corpo doente é contudo um corpo e um Estado, ainda que gravemente
doente, é um Estado, enquanto subsistem leis, tribunais e as outras
coisas necessárias para que os estrangeiros possam exigir que se devol-
va o que lhes é devido, como também os privados entre si. Dion Crisóstomo
[16] se exprime de uma maneira mais justa, quando diz que a ]ei, aque-
la sobretudoque constitui o direito dasgentes,estánum Estadocomoa
alma no corpo humano e que, se supressa, de fato, não há mais Estado
[17] . Aristides [18], no discurso pe]o qua] exorta os habitantes de Rodei
à concórdia, demonstra que mesmo com a tirania podem existir leis
muito boas.Aristóteles diz, no livro V capítulo IX de seu 7}aóadodn
(lb/ka -PúõZ/ca,que $e alguém estende demais o poder de pequeno núme-
ro ou do povo, o Estado se tornará primeiramente defeituoso e finalmen-
te cessaria de existir. Vamos esclarecer isso com exemplos.

3. Ouvimos antes Ulpiano dizer que aqueles que sãopresos pelos


bandidos não se tornam propriedade de seusraptores. O mesmo [19] diz
que aqueles que são presospelosgermânicos perdem a liberdade. Entre
os germânicos, contudo, os bandos de salteadores que agissem fora dos
limites de cada Estado não comportavam nenhuma infâmia. Sãopala-
vras de César [20] . Tácito [21] diz dos venéticos: "Percorrem, pratican-

[16] .8arysfüeniÉzca, Orava .XXTZZ


t\l\ Clcerç} ÇEpÍstulae, V, \) à\z. "Nãa há leis, alem tribunais de justiça: nem qual
quer simulacro e vestígio de Estado."
[18] Oraüo ad J?Zod.
[i9] .ü .g4,z)ubx/X ]s.
[20] Caias Ju[ius Cansar [[O1-44 a.C.], De .Be//o (hZ#co (V], 23)
[21] Caius Corne[ius Tacitus [55-120], .De Moruó is Ger7na/7, (46)
1073
CAPÍTULO 111- DA GUERRA JUSTA OU SOLENE, SEGUNDO O DIREITO DAS GENTES.TRATA-SE TAMBÉM DA DECLARAÇÃO DE GUERRA

do suas depredações, todas as florestas e montanhas entre os peucinos e


osfenenses." O mesmo diz em outro ]oca] [22] que os catos, povo ilustre
da Germânia, haviam praticado aros de banditismo. No mesmo histo-
riador [23], os garamantes são classificados de nação fecunda em
banditismo, no entanto, de nação. Os ilírios, sem distinção, tinham o
costume de praticar no mar atou de pirataria e, contudo, o triunfo foi
decretado por tê-]os vencido [24], mas não foi concedido a Pompeu por
ter submetido os piratas. Há, pois, diferença entre um povo, por mais "++

criminoso que seja, e aqueles que, não sendo um povo, se reúnem em 't-

vista do crime.

L.l
111.Uma mudança pode, às vezes, sobrevir

IJma mudança pode, contudo, sobrevir, não somente nos cida-


dãos privados, como Jefté (Ju7eesX], 3), Arsace [25], Viriato [26] que, de
chefes de bandidos se tornaram chefes de tropas regulares. Mlesmo nas
reuniões de homens, porém, como aqueles que não haviam sido senão
11
bandidos e que, tendo abraçado outro gênero de vida, chegam a formar
um Estado [27]. Agostinho [28], fa]ando do banditismo, diz: "Se esse
mal toma tais desdobramentos pela junção de homens perdidos que se
apodere de re-giões, que aí estabeleça moradas, que se torne dono de
11
cidades, que subjugue povos, toma o nome de reino."

[22] Idem, .4nnaJes (X]1, 27).


[23] Idem, HJhfar:iae(]V] 50).

[24] Apiano, JLt]pz(9)


[25] Justino, XL], 4
[26] Idem, XLIV. 2
[27] Os mamertinos oferecem um exemplo (Diodoro da Sicília / ag7nen fa, XXI 10
e XXII)

[28] Aure[ius Augustinus [354-430], De Clwfafe Z)eJ(]V] 4)


1074
H UGO GKOiiUS

IV Pela natureza da guerra solene é requerido


que tenha por autor aquele que possui
o soberano poder; como isso deve ser entendido

Dissemos anteriormente (livro 1, cap. 111)quais são aqueles que


possuem a soberania, de onde se pode deduzir que aqueles que não têm
a soberania senãoem parte fazem uma guerra legítima por essaparte
e, com maior razão, aqueles que não são súditos, mas estão ligados por
uma a]iança desigua] [29].Assim é que aprendemos pe]a história que
tudo o que convém a guerras, em suas variadas formas, havia sida
observado entre os romanos e seus a]iados [30], embora inferiores na
aliança, os volscos, os latinos, os espanhóis, os cartagineses.

V. Uma declaração é também requerida

Para que a guerra seja legítima nesse sentido, não basta que seja
feita de parte e outra entre os poderes soberanos. Torna-se necessário,
como dissemos, que seja decretada publicamente e mesmo que seja de-
cretada publicamente de tal maneira que a declaraçãoseja feita por
uma das partes à outra [31] . Disso provém que Enio [32] disse dessas
guerras que são"combates anunciados". Cícero [33] diz, no 7}aÉadodos
.Deveres '"A equidade que se deve observar na guerra foi muito religio-
samente consignada no direito fecial do povo romano. E permitido con-
cluir desse direito que não há guerra justa a não ser aquela que é feita

[29] Como o duque da Lotaríngia, em Crantzius (Saxonic.,X]1, 13). A cidade de


Stralsund declarou guerra a seus príncipes, os duques da Pomerânia. Ver o
mesmo Crantzius (Mandada.,XIV, 35).
130] Cajetan., ZZ .g guaesf. 4ê arf. ].

131]Josefo(.4nÉlkü/JadesJudo bas,XV. 5, 3) diz: 'g nU'usfofazer a guenu antes gue


fenda suãodec/arado." Ver exemplos desse costume do Jüs gen&ÍuJnem Crantzius
(SaxonJa, XI, 5), em Oderborn( Hda de .BasTZdes, 111). Nicetas(livro 111 e V),
censura o turco Chliziastlan e o sérvio Neeman por terem agido de outro modo.
132]Confira-se CÍcero(Pro MureJla, 14, 30) e Aulus Gellius(.M2cfes ,4fÉJbae,XX, 9).
[33] Marcus Tu[[ius Cicero [106-43a.C.], Z)e O# aük (1, 11, 36).
1075
CAPÍTULO 111- DA GUERRA JUSTA OU SOLENE. SEGUNDO O DIREITO DAS GENTES.TRATA-SE TAMBÉM DA DECLARAÇÃO DE GUERRA

após ter reclamado o que vos pertence ou quando foi anunciada antes e
declarada." Um antigo escritor, em ]sidoro [34] , disse de uma maneira
menos completa: "A guerra legitima é aquela que se faz em virtude de
uma declaração pública, depois de ter pedido o que vos pertence ou para
repelir os homens." Assim é que Tito Lívio [35] disse, na definição da
guerra legitima, que a guerra é feita abertamente e em virtude de uma
deliberação pública. Depois de ter contado que os acarnanos haviam
ocupadoo território da Anca, diz: "Foi o princípio da animosidade.De-
pois, chegou-se a uma guerra em regra que as cidades declararam vo-
luntária e publicamente."E36]

yl. Explica-se de modo distinto


o que na declaração é de direito natural
e o que é próprio do direito das gentes
1. Para bem entender essas passagens e outras semelhantes,
onde se trata da promulgação da guerra, deve-sedistinguir com cuida-
do o que é devido, segundo o direito de natureza, as coisas que não são
devidasnaturalmente, mas que são honestas,as coisas que são
requeridas pelo direito das gentes para produzir efeitos próprios ao di-
reito das gentes e as coisas que, além disso, provêm das instituições
particulares de certos povos-

Segundo o direito natural, quando se trata de repelir uma agres-


são ou de punir aquele mesmo que se tornou culpado, nenhuma decla-
ração é requerida. E o que o éforo Sthenelaidas diz em Tucídides [37]:

[34] .Bê7mo/c:gl'a(XV]]], ])
[35]Titus Livius [59 a.C.-17d.C.], .4ó Z:/róeGondlfa(1, 27, 3).
136] Idem, ,4ó C/}.óe (;bndvfa Q(XXI, 14, 10).
[37] Em Tucídides(livro 111.56 e ]ivro 1, 86). O mesmo diz, em seu discurso aos
habitantes de Plateias: 'iSagundo o dl)eito acatado em fadas as naçóé$ ópe/mi'
üdorec;boçal'agua/e gue nos ataca comoJhJ)algo." Em Diodoro da Sicília (Zrcerpf.
Peirescl). F\an\tn\o :'toldava os deuses e os homens caldo testemunhas que a
guerra barlb sido começadape/o reJ': Acrescente-seo que diz Mariana(XIX
13). A respeito da guerra não'declarada, ver Dexippus (,Ercerpfa Z gaf onum)
!076 H UGO GROTIUS

'Temos de discutir e abrir processo, porquanto fomos ofendidos por ou-


tra coisa que não por palavras." Latino, em Dionísio de Halicarnassso
[38] , diz que "é norma] que aque]e que é atacado rechace aquele que o
ataca". E]iano [39] diz, segundoP]atão, que "a guerra que é empreendi-
da para rechaçar uma agressão não é declarada pelo arauto, mas pela
natureza." Disso, Dion Crisóstomo, em seu discurso aos habitantes de
Nicomédia [40], sustenta que "a maioria das guerras é empreendida
sem dec[aração". Não é por outra causa que Tito Lívio [41] recrimina
Menippus, general deAntíoco, por ter matado alguns romanos sem que
a guerra tivesse sido ainda declarada ou sem que tivessem sido infor-
mados que se chegaria até sacar a espada e derramar sangue, mostran-
do com isso mesmo que uma dessas duas circunstâncias teria podido
bastar para justificar sua ação.A declaração da guerra não é mais ne-
cessária segundo o direito de natureza, se o proprietário quer põr as
mãos sobre o que é seu.

2. Todas as vezes, porém, que se trata de se apoderar de uma


coisa em lugar de outra ou da coisa do devedor para o pagamento de sua
dívida e, com maior razão ainda, se alguém quer tomar possedosbens
daqueles que são súditos do devedor,uma intimação é requerida, pela
qual será estabelecido que é impossível retomar de outra maneira o que
nospertence ou que nos é devido. Essedireito, de fato, não é primário,
mas secundário e por sub-rogação, como o explicamos em outro local.
Do mesmo modo também, antes que aquele que tem o poder soberano
seja atacado em razão de uma dívida ou de um crime de súditos seus,é

[38] Livro 1, 58
[39] ZacÉ. (1)

[40] Oral2'0 mYmZZ


[41] Titus Livius [59 a.C.-17 d.C.], ,4ó [ü.óe Oond7fa (XXXV. 51, 2)
1077
CAPÍTULO 111- DA GUERRA JUSTA OU SOLENE. SEGUNDO O DIREITO DAS GENTES' TRATA-SE TAMBÉM DA DECLARAÇÃO DE GUERRA

preciso que uma intimação ocorra que o constitua em falta, em virtude


da qual seja considerado causar o prejuízo ou ele mesmo cometer o
crime, segundo o que foi tratado por nós antes.

3. Mesmo quando o direito de natureza não prescreve que uma


semelhante intimação tenha lugar é honesto e ]ouváve] fazê-]a [42], a
6lm de que, por exemplo, se abstenha de ofender ou que o crime se expie

pelo arrependimento e uma satisfação dada, segundo o que dissemos


(livro lii, cap.XXlll, $ 7) sobre os meios a tentar para evitar a guerra. A
issoserefere também esteverso [43]: "Ninguém jamais tentou em pri-
meiro lugar os extremos." E o preceito (-Z)euéa'onóm70XX, 10) que Deus
deu aos hebreus [44] de convidar à paz uma cidade antes de ataca-la,
preceito que, tendo sido dado especialmente a esse povo, é confundido
erroneamente por alguns com o direito das gentes. Essa paz não era, de
fato, uma paz qualquer, mas estava subordinada à condição de se tor-
nar súdito e de pagar um tributo. Cito, penetrando no país dos armênios,
antes de fazer qualquer ato de hostilidade, enviou mensageirosao rei
para reclamar o tributo e as tropas que Ihe devia em virtude do tratado:
''Pensandoque era agir com mais humanidade do que passar além sem
nada avisar", como fala Xenofonte [45] nessahistória. De resto, a decla-
raçãoé necessária segundo o direito das gentes, em todos os casos, para
produzir essesefeitos particulares, não de parte e de outra, mas da
parte de uma das duas partes.

[42] Ver Mariana, XXV]1, 3


[43] Lucius Annaeus Seneca [01? a.C.-65 d.C.], .4ga/n/ eno (154)
[44] Flávio Josefo(.4nÉiküidades J7isfódcas, 11, 2, 9) escreve: "0 senado os refere,
]nostrando'lhes que não se devia promover a guerra com seus compatriotas,
antes de propor suas queixas num diálogo amigável e que também não eram
abrigados a usar desseprazo, porque a lei não permitia marchar com uln
exército mesmo contra estrangeiros, qualquer que fosse a injúria perpetrada,
sem lhes ter enviado embaixadores para tentar reconduzir os autores da ofen-
sa a intenções mais cornetas.
[45] CJ.r7baedlb
(11,4, 32)
!078
H U GO GROTIUS

VII. Há uma declaração condicional,


outra pura e simples
1. Essa declaração, porém, é condicional ou pura e simples. Con-
dicional quando está agregada ao pedido das coisas que se reclama. O
direito fecial compreendia, sob o nome de coisas rec]amadas [46], não
somente a reivindicação em virtude do direito de propriedade, mas ain-
da a recuperação do que é devido por causa civil ou criminal, como bem
o exp]ica Sérvio [47] . De onde essaspa]avras nas fórmulas: "Ser devol-
vido, satisfeito, entregue." Nessasproposições,"ser entregue", comoo
dissemos em outro local (livro 11, cap. 1, $ 1l e cap. XXI, $ IV), deve ser
entendido com essa reserva: a menos que aqueles que são intimados
não prefiram punir e]es mesmos o cu]pado. P]ínio [48] atesta que essa
reclamação de coisas era chamada de reclamação em alta voz. Há uma
dec[aração condicional em Tito Lívio [49] : "E]es se farão justiça eles
mesmos, a qualquer preço, por essainjúria, se aqueles que a comete-
ram não fizerem reparação." E em Tácito150] : "Se não entregarem os
culpados ao suplício, ele levará a cabo um massacre geral." E esseanti-
go exemp]o, em -4s -Sup/7bqnfó?sde Eurípides [51], onde Teceu dá ao
arauto as seguintes ordens, enviando-o ao tebano Creonte: "Teceu,que
reina sobre as regiões vizinhas [52], rec]ama os mortos para ]hes dar

[46] Ver Paruta, ,De ,Be/7o Grpr7a(1); Bizarro(livro XXlll, onde fala dos turcos),
Reinking(livro 11,classe111,cap. IV)
[47] Comentário sobre a passagem da Ealefda, X, 14.
[48] Natura.]rs Hlkfo!:fa Q(X]i, 2, 12): 'Quando os arautos andados para a /nÉímaçâo
aos inimigos, isto é, para recialnar ein alta voz a respeito das coisas levadas, um
de/esera chamadode portador de verbena." Falando da verbena(XXV. 9),
escreve\ "E a planta que dissemos que os elnbaíxadores levavam diante deles,
quando se apz'escalaram aos Inimigos."Ver Sérvio, em seus comentários sobre
os cantos IX e X da EJ7e/da.
[49] Titus Livius [59 a.C.-17 d.C.], ..áó [Zróe Oondl'fa (V]11, 23, 7).
[50] Caius Corne[ius Tacitus [55-120], .4nna]es(1, 48)
[51] ..4s ,Sup/üanfes (385).

[52] Uma semelhante declaração de guerra se encontra em .BaÉracúoinyomacáia


(135) e em Hmpái&ryon(205) de Plauto, no começo.Ver também Cromer, livra
XXI
!079
CAPÍTULO 111- DA GUERRA JUSTA OU SOLENE. SEGUNDO O DIREITO DAS GENTES.TRATA-SE TAMBÉM DA DECLARAÇÃO DE GUERRA

sepultura. Se isso for concedido, fará com que a nação dos erectidas se
torne sua amiga. Se essepedido for atendido por ele, volta para casa. Se
não fores obedecido,pronuncia então estas outras palavras: Que espe'
rem logo as armas de minha juventude." Papínio [53] diz em seu recato
do mesmo fato: "Exige piras para os gregos ou anuncia combates aos
tebanos." Políbio154] chama isso de "denúncia de represálias" e os anti-
gosromanos de "fazer saber'

A denúncia pura e simples é aquela que se chama especialmente


de declaração ou notificação pública e que ocorre quando a outra parte
já praticou atou de hostilidade (é isso o que é chamado em ]sidoro [55]
uma guerra feita para repelir os homens) ou ela própria cometeu faltas
que merecem uma punição [56] .
2.As vezes a declaração pura e simples segue a declaração condi-

cional, embora não seja necessária,mas que se caracteriza como


intensificativa. ])isso provém esta fórmu]a [57] : "Atento que esse povo é
injusto e que não faz justiça." E esta outra [58] : "Os danos, os ]itígios,
as reparações[59] que o pai patrato do povo romano dos Quírites recla-
mou do pai patrato e do povo dos antigos latinos, reparações que se
devia dar, fazer e quitar e que não foram dadas, nem feitas, nem quita-
das, creio que se deve reclama-las por uma guerra justa e legítima,
nisso consinto e aprovo." E esta terceira fórmula: "Os povos dos antigos

[53] Publ us Papinius Statius [45-96], 7%eóals (X]1, 598).


[54] Livro IV. 53
[55] EZylno/og7'a
(XV]]], ]).
[56] Ver a respeito um exemp]o em Bembo (]ivro VID.
[57]Titus Livius [59 a.C.-17d.C.], .4ó Z:rróeGo](#ía (1, 32)
[58] Idem, .4b Z]&.óe aonde'fa(1, 32)

159]Compare:secom a fórmula grega de Dionísio de Halicarnasso eln Excerpta


ZegaÜonuln (11)
1080
H uoo GROTlus

latinos agiram contra o povoromano dosQuirites e falhou com ele. O


povo romano dos Quirites ordenou a guerra contra os antigos latinos. O
senadodo povo romano dosQuirites decidiu, consentiu, aprovou a guer-
ra contra os antigos latinos. Em decorrência, eu e o povo romano decla-
ramos a guerra ao povo dos antigos latinos e a começo." Nesse caso,
como o disse, a declaração não é precisamente necessária, isso resulta
também de que seria regularmente feita à guarnição mais próxima,
como julgaram os sacerdotes faciais que haviam sido consultados no
negócio de Fi[ipe da Macedânia e depois naque]e de Antíoco [60], em
lugar da primeira declaração que deveria ter sido feita ao que era ataca-
do pela guerra. Mais ainda, a declaraçãoda guerra contra Pirro foi feita
a um só soldado de Pirro e isso no circo Flamínio, onde esse soldado
havia recebido a ordem de comprar um lugar, pela forma como Sérvio
[61] o re]ata em seus comentários à Eneida.

3. Isso é também uma prova da inutilidade dessaformalidade


porquemuitas vezesa guerra foi declaradade parte e outra, comoa
guerra do Pe[oponesoo foi pe]oscorcirensese os coríntios [62], enquanto
basta que seja declarada por uma das duas partes.

VIII. Que coisas, nas declarações, são de direito


civile não do direito das gentes

Pertencem ao costume e às instituições de alguns povos, não ao


direito das gentes: o caduceu, entre os gregos [63] ; as p]antas sagradas
e a espada de madeira cor de sangue, entres os equícolas antes e, a seu

160] Titus Livius [59 a.C.-17 d.C.], ,4ó Z:4.Ée Gond7#a (XXX], 8, 3)

[61] Comentários à .Ehe/da(]X, 52) de Virgí]io.


162] Tucídides, livro 1, 9

[63] Com PIÍnio(JyaftzJ«aJJS


J7z'sfor7a,
XXIX, 3) se sabe a origem do caduceu,bem
como com Sérvio, por seus comentários(IV. 242) à Ene/da VIII.
1081
CAPÍTULO 111- DA GUERRA JUSTA OU SOLENE. SEGUNDO O DIREITO DAS GENTES. TRATA-SE TAMBÉM DA DECLARAÇÃO DE GUERRA

exemplo, entre os romanos; a renúncia à amizade e à aliança, se havia,


depoisde trinta dias solenesdesdeas rec]amações[64] ; o ]ançamento
reiterado de um dardo e outras formalidades do mesmotipo, que não se
deve confundir com aquelas que são propriamente do direito das gentes.
Arnóbio [65] nos informa que, em seu tempo, uma grande parte dessas
cerimónias não eram mais usadas e mesmo, na época de Varrão [66],
algumas eram colocadasde lado. Aterceira guerra púnica foi declarada
e começadaao mesmo tempo. Mecenas, em Dion [67], quer que a]gu-
mas dessasformalidades sejam próprias de um Estado popular.

IX. A guerra declarada a alguém


é declarada ao mesmo tempo a seus súditos
e a seus aliados, enquanto seguemseu partido

A guerra declarada para aquele que tem o poder soberano sobre


um povo é considerada declarada ao mesmo tempo, não somente a todos
os seus súditos, mas a todos aqueles que poderão se juntar a ele na
qualidade de aliados, como sendo uma dependência dele mesmo. Isso é o
que dizem os juristas modernos que, quando o príncipe foi desafiado,
seusaderentes são desafiados [68]. Dec]arar a guerra, e]es chamam
isso: desafiar, o que deve se entender dessa guerra mesmo que é feita
contra aquele a quem foi declarada; é assim que a guerra, tendo sido
declaradaaAntíoco, não pareceu conveniente que fossedeclarada sepa-

[64]Ver Sé;i;ia, comentário à Zne/da JiK õâ Amiano (X]X, 2, 6), com a nota do
erudito Lindenborg sobre essa passagem.
[651Arnobius [séc.]]] d.C.], DuspufaüonesadversasNaf/pães (11,67)
[66] Marcus Terentius Varro Reatinus [116-27 a.C.], .De .[ahgua Z,aÉ/ha (]V)

[67] Ver Barbeyrac, na tradução francesa.


U68Ã
Bald., ad legein 2, Cod., De servis, ]].' 70.
!082
H UGO GROTI US

radamente aosetólios, porque essessehaviam abertamentejuntado a


Antíoco. "Os etólios se declararam a guerra a si mesmos", diziam os
sacerdotes feciais [69] .

X. Não enquanto são considerados em si mesmos

Essa guerra, porém, tendo terminado, se em razão do auxílio


fornecido um povo ou outro rei devam ser atacados para que os efeitos
do direito das gentes tenham prosseguimento será necessária nova de-
claração. Então, de fato, não se consideraram mais como um acessório,
mas como alguma coisa de principal. Por isso é que foi dito com razão
que a guerra de Man]io contra os ga]o-gregos [70] ou de Casar contra
Ariovisto não havia sido legítima segundo o direito das gentes. Não
eram mais, de fato, atacadoscomoum acessóriode uma guerra de
outro, mas eles o eram de modo principal. Por isso, do mesmo modo que
em vü'tude do direito das gentes era necessária uma declaração, assim
também em virtude do direito romano era necessáriauma ordem nova
do povo romano. O que havia sido dito na proposição de fazer a guerra
contra Antíoco "Quereriam, ordenariam que a guerra fosse engajada
com o reiAntíoco e aque]es que seguissem seu partido" [71] e a fórmu]a
que foi observada na decisãotomada contra o rei Perdeu [72], isso pare'
ce dever ser entendido de todo o tempo em que a guerra haveria de
existir com Antíoco ou Perdeu e daqueles que se imiscuiriam efetiva-
mente nessa guerra.

169]Titus Livius [59 a.C.-17d.C.], .4ó Z://óeGo/zdlfa(XXXV], 3, 11).


[70] Ou a guerra dos companheirosde IJlisses contra os ciconianos que haviam
outrora socorrido Príamo e dos quais fala Homero(Otíísséü, IX, 39); e sobre
isso, Dídimo

[71] Titus Livius [59 a.C.-17 d.C.], ,4ó apõe Oondlfa (XXXV], 1, 5)

[72] Idem, .4ó CÜ.óe aon(#fa(XLl1, 31, 2)


1083
111- DA GUERRA JUSTA OU SOLENE. SEGUNDO O DIREITO DAS GENTES.TRATA-SE TAMBÉM DA DECLARAÇÃO DE GUERRA

xl. Razão pela qual a declaração


é exigida para certos efeitos
Quanto à razão pela qual as nações exigiram uma declaração
para essa guerra que dissemos ser legítima em virtude do direito das
gentes,não foi aquela que a]egam a]guns autores [73] , a saber, que era
preciso impedir de agir clandestinamente ou por dolo. Isso, de fato, se
relaciona mais à superioridade das forças que ao direito. Assim é que se
lê que certas nações davam a conhecer de antemão o dia e o lugar do
combate [74] . Foi querido que fosse estabelecido de uma maneira certa
quea guerra é feita não comoum golpedeousadiaprivado, maspela
vontade de um e de outro povo ou dos chefes do povo. Disso surgiram
efeitos particulares que não ocorrem nem na guerra contra bandidos,
nem naquela que faz um rei contra seus súditos. Por isso Sêneca [75]
disse, fazendo uma distinção: "As guerras declaradas aos povos vizi-
nhos ou feitas aos cidadãos...'

XII. Esses efeitos não se encontram


nas outras guerras

O que observam a]guns autores [76] e o que ensinam por exem-


plos, que mesmo em semelhantes guerras as coisas capturadas se tor-
nam propriedade daqueles que as tomaram, é verdade, mas com rela-
ção somente a uma das duas partes. Isso em virtude do direito natural,
não em virtude do direito voluntário das gentes, como sendo um direito

[73] Alberico Gentili, livro ], cap. 2.


[74] Como os romanos fizeram com re]ação a Porsenna, como o re]embra P]utarco
em H'da de Pub#co/a(105 C). Os turcos acendemgrande número de fogos, dois
dias antes do combate(Chalcocondylas, VII)
[75] Lucius Annaeus Seneca[ol? a.C.-17 d.C.], .Z)e]ra (111,2)
l76IAyala,livrol,cap.5
!084 H UGO GROTIUS

que não provê senão aos interesses das nações e não ao interesse daque-
les que estão sem nação ou que são uma parte da nação. Eles se enga-
nam [77] igualmente ao pensar que a guerra empreendida para se de-
fender ou proteger seu bem não tem necessidade de uma declaração,
pois ela tem realmente necessidade dela, não sem dúvida por conside-
rar a coisa em si mesma, mas em vista dos efeitos de que começamosa
falar e que explicaremos logo.

XIII. Se a guel'ra, desde que declarada, pode ser feita

Não é tampouco verdade que não se possa começar as hostilida-


deslogo após a guerra declarada, o que fizeram Cito contra os armênios,
os romanos contra os cartagineses, assim como dissemos antes. A de-
claração não exige tempo algum após ela, em virtude do direito das
gentes. Pode, contudo, ocorrer que, em virtude do direito natural, al-
gum intervalo de tempo seja requerido, segundo a qualidade do negócio;
por exemplo, quando objetos foram reclamados ou que uma punição foi
pedida contra um culpado e que issonão tenha sido recusado.Então, de
fato, o tempo deve ser dado para que o que foi pedido possaser feito
comodamente.

XIV Se se deve declara-la a quem


violou o direito de embaixada

Se é o próprio direito dos embaixadores que foi violado, não será


uma razão, contudo, para que não seja necessária uma declaração, em
vista dos efeitos de que falo, mas basta que seja feita com segurança,
isto é, por cartas. Do mesmo modo, a mais, porque as citações e denún-
cias são habitualmente feitas em lugares pouco seguros.

[77] Alberico Gentili, ]ivro ]], cap. 2


lv

DO DIREITO
DE MArrAR OS INIMIGOS
NAGUERRASOLENE
E DE OUTRASWOLENCHS
CONTRAOCORPO

Sumário

1. Exposição gera! dos efeitos da guerra solene.

11.Apela vra "permitir" se distingue entre o que tem lugar íin-


punemente, não todavia sem quehaja falta, e o queéísento
de falta, mesmo se a abstenção desse fato fosse um ato de
vii'rude; exemplos a respeito.

!11. Os efeitos da guerra solene, considerados em sua generali


dado, se relacionam ao que épermitído com impunidade.

IV Por que tais efeitos foram introduzidos?


U Testemunhosrelativos a essesefeitos.

rl. Em virtude desse dü'eito é que se mata e se Jnaltrata todos


a queres que estão nas fronteiras dos inimigos.

Vlí. Que decidir, se ocorreram antes da guerra?

VIII. Os súditos dos inimigos são maltratados em qualquer


lugar que seja, a menos que a !ei de um território estran'
Beira ponha obstáculo.
IX. Esse düeito(3.e maltratar se estende mesmo contra crian-
ças e m ulheres.

X. Mlesmocontra osprisioneiros e em qualquer tempo.

XI. Mesmo contra aqueles que querem serender e quenão sao


aceitas.

XII. Mlesmo c\ ntra e


aqueles â
U se renderam incondicional
que J

mente.

Xlli. De modo erróneo esse direito é ligado a ou l;ras causas


como ao talhão, à obstinação da defesa
XIV. Estende-se também contra os reféns.

X\( Em virtude do direito das gentes,éproibído levar à morte


alguém por en venenamen to.

XVT. Proibido também infectar de veneno as armas ou as águas.

XVIII. Não éproibido alterar as águasde outro modo.


XVIII. Se é contra o direito das gentes serva'-se de assassinos;
distingue-se.

XIX. Se os estupros são contra o düeito das gentes.


1087
CAPÍTULO IV- DO DIREITO DE MATAR OS INIMIGOS NA GUERRA SOLEN E E DE OUTRAS VIOLENCIAS CONTRA O CORPO

1.Exposição geral dos efeitos da guerra solene


Apropósito deste verso de Virgí]io]]] "Então será permitido lutar
com ódio e apoderar-se dos despojos", Sérvio Honorato, depois de ter
feito se originar deAnco Márcio o direito fecial e mais antigamente dos
equÍcolas, assim se exprime: "Se acontecesse que homens ou animais
fossemsubtraídos por alguma nação ao povo romano, o próprio pai
patrato se punha a caminho com os sacerdotesfeciais, isto é, com os
sacerdotes que presidem à conclusão dos tratados, e colocando-se junto
àsfronteiras, proclamava em alta voz o motivo da guerra. Com a recu-
sa de restituir os objetos raptados ou os autores da ofensa, lançava um
dardo que marcava o início das hostilidades. A partir desse momento
era permitido apoderar-se dos bens, segundo o costume da guerra." Havia
dito antes que os anciãos chamavam o fato de causar dano, "apode-
rar-se", mesmo que não se fosse tornado de modo algum culpado de
rapina. De igual modo,chamavam "restituição" o fato de dar uma sa-
tisfação. Somos informados por isso que há certos efeitos próprios de
uma guerra declarada entre dois povos ou seus chefes [2], efeitos que
não são uma conseqüência da natureza mesma da guerra, o que concor-
da muito bem com as passagens que citamos, antes, dos jurisconsultos
romanos.

11.A palavra "permitir" se distingue


entre o que tem lugar impunemente, náo todavia
sem que haja falta, e o que é isento de falta, mesmo
se a abstenção desse fato fosse um ato de virtude

1. Esta expressão "será permitido" que Virgílio usou, vemos até


onde se estende. As vezes, de fato, se diz "permitido" o que é bom sob
todos os aspectos e honesto, mesmo que se pudesse por acaso fazer algu-

[[] Pub[ius Vergi[ius Mare [71-19 a.C.], .EneJda (X, 14)

[2] Cràntzius, Sexo/lib.(XI, 5)


1088
H UGO GROTI US

ma outra coisa de mais louvável. Reveste-se dessa característica esta


passagem do apóstolo Paulo é7C;b/:zhÉüsVI, 12): "Todas as coisas (isto é
do tipo daquelas que havia começadoe das quais precisava continuar a
falar) me são permitidas, mas todas não sãovantajosas para mim."
Assim é que épermitido contratar um casamento,masé mais louvável
a castidade [3] do ce]ibato observada por um motivo piedoso, comoAgos-
tinho[4] o desenvo]ve para Po]]entius, seguindo o mesmo apóstolo. Tam-
bém é permitido casar de novo, mas é mais louvável se contentar com
um só casamento, como C]emente de A]exandria [5] define com razão
sobre esse assunto. Um esposo cristão pode licitamente repudiar sua
esposa pagã, como pensou Agostinho [6] (aqui não é o ]ugar para exami-

[3] Tertu[iano (.4dversus ]Uarc o/ em, 1, 29) diz: ':AUo Áá assunto a er7far se a
pe/zi7Jssâoáor fl>ada."Ver sobre esseponto e sobre a liberdade de fugir numa
perseguição o mesmo autor (.4d Uxorem, ]). Jerânimo (.4d ]7b/r]'d]um, ]n Z)e
Perpetua Virginitate, 'Z\] àiz. "Uma virgem tem vm mérito maior, porquallto
despreza uma coisa que poderia fazer sem pecar." D\z aXnüatAdversus
Jovinianum, \, \2). "Foipor isso que Cristo prefere as virgens que fazem o que
não /Zes áozarde/dado." Em outro local(.E» kfula adPam/naco/tzm, 48) diz ainda:
As gra1ldes açõessão sempre deixadas à vontade daquele que as faz. A neces-
sidade não !hes é imposta, para que sua volltade colha a recompensa." 3oão
Crisóstomo, em comentários à / Co/:úf70s }77(J?bmi/la XIX, 2) demonstra que
ã castidade é n2elhor". B no comeu\âx\o õ. Epístola aos Radianos Vl1, 6 ÇHomiiia
Xl1, 4à à\z. "Ele nos ameaçou de castigo, se não obedecêssemosa seus preceitos
e mostrou que o que ele ordeJlanão se refere ao número dessas coisas que se
pode praticar ou não à volltade, como a virgindade e a l.enúncia voluntária aos
bens destemulldo, mas que se deverigorosamente cumprir." Bm seu segubào
discurso sobre o jejum(.De Poe/l feJlíla, VI, 3), escreve: 'De kou a conf7bénc/a
virginal fora da are1la,deixou acima da }ei da luta, a 6m de que aquelesque
praticam esta vü'tude mostrem com isso a grandeza de sua alma e que aqueles
gae nâo a prnélbam gozem da 2hdlz.Cgêncybdo.Senáoz" E o que aplica logo após
a renúncia aos bens deste mundo. Acrescente-se as citações que Graciano faz
de Agostinho e de outros em (huna XZV quaesílb /
14] Z)e 4du/fer2h s aonyug])à .4d Po/7e/7ZI'u/ZJ(1, 18)
[5] Em Süo/nafeo/z (111,12, 82) diz, entre outras coisas, a respeito do que contrai
segundas núpcias: '?Uãopeca, na Herda(7qco/ a a a/]b ]ça d7r7ha,pois 2ão]zá
!e{ que o proíba, mas não realiza o grau excelente de perfeição da vida evangé-
!ica
l61 Z)e .4du/fer7hJk aonpug])b, .4d -f)o#e/zézu/n(livro 1, cap. Xlll e XVlll e ainda cap. l,
15). Muitas coisas a respeito Graciano transcreveu em Causa mZZZ quaesÍ2b
/
1089
CAPÍTULO IV- DO DIREITO DE MATAR OS INIMIGOS NA GUERRA SOLENE E DE OUTRAS VIOLÊNCIAS CONTRA O CORPO

nar em quais circunstâncias isso é verdade), mas pode também conser-


va-la. Por isso, Agostinho acrescenta que "um e outro são na verdade
permitidos igualmente pela justiça que é diante do Senhor e que é a
razão pela qual o Senhor não proibiu nenhum desses dois partidos, mas
que um e outro não são vantajosos". U]piano [7] diz do vendedor a quem
é permitido entornar o vinho, após a expiração do prazo assinalado: "Se
contudo podendo entor-ná-lo, não o faz, é realmente louvável."

2. Outras vezesuma coisa é dita permitida não porque ela pode


ter lugar sem prejuízo da honestidade e das regras dos deveres, mas
porque, entre os homens, e]a não está submetida a uma pena [8] . Assim
éque,entre muitos povos,é permitido freqüentar cortesãse que entre
oslacedemânios e os egípcios era até permitido roubar. Há em Quintihano
[9]: "Certas coisas não são naturalmente louváveis, mas são concedidas
pelodireito. Na lei das Xll Tábuas, por exemplo, foi permitido que o
corpodo devedor fosse dividido entre os credores." Esse significado da
expressão "ser permitido" é menos própria, como o observa bem Cícero
[i0], no ]ivro V das 7bsauJnnas, falando de Cinna: "Parece-me ao con-
trário infeliz, não somente porque fez essascoisas, mas porque se con-
duziu de maneira como Ihe fora permitido fazê-las, embora não seja

111L. 1, $Licet, Díg., De peric. et com. rei vend.


l81Em sua exortação à castidade, Tertuliano diz que 'h pe/missão expõe a ma 'ar
parte do tempo à tentação de viciar as regras do Evangelho". No mesmo \oca\
à\z. "'l'udo é permitido, mas tudo nãc é para a salvação."3oão C \s6stomoÇDe
Poenitentla,'V\ll, Sbesc ewe "Aquele que se nutria de ervas e de meiseivagem
diz com autoridade ac que tinha o costume de se ver serüdo junto a uma mesa
esplêndidae rea!: Isso não te é permitido! E, no entanto, tudo parece ser permÍ'
fado ao ruJ: " Segundo Columella(Z)e Xe .Rusüaa, 1, 7), 'hão se deva se prova/ec'er
de tudo o que é pernlítido, pois os antigos pensavam que c direito levado ao
exüemo á um gra ?depe/:Üo': Jerânimo(,4d Innoce11É2um,
1, 14) diz: "0 dúeífo
!evado ao extremo é verdadeiramente uma grande maldade.
[9]Marcus Fabius Quinti[ianus [30?-100?],.De/nsÉlfuf/0/7eOraforua(111,6, 84).
1101Marcus Tu[[ius Cicero [106-43 a.C.], 7bscuJanaeDyspuóaÉlones
(V. 19, 55)
1090
H UGO GKOTiUS

permitido a ninguém pecar, mas somoslevados por um erro de lingua-


gem, pois dizemosque uma coisa é permitida porque a toleramos eH
cada um." Esse significado é detectado, contudo, como menos próprio
quando o mesmo Cícero [11] se dirige assim aosjuízes, em favor de
Rabirius Posthumus: "Deveis considerar o que é de vossa honra fazer e
não a extensão do que vos é permitido. Se procurais o que vos é permi-
tido, podeis suprimir do Estado quem quereis." Assim é que todas as
coisas são ditas permitidas aos reis porque são isentos das punições
humanas, como o dissemos alhures (livro 1, cap. IV. $ 11).Claudiano
[12], porém, instruindo um rei ou um imperador, diz muito bem: "Que
não seja o que te é permitido, mas o que será digno de ti ter feito que se
oferece a tuas considerações." M]usonius [13] censura "os reis que têm o
hábito de dizer Isso /ne ópennJfldo e não Jkso ó digno de m.ím'{

3. Vemos que se opõe muitas vezes nesse sentido o que é permiti-

do e o que é preciso, como foi feito mais de uma vez por Sêneca [14], em
suas ConÉrovóyszbs.
An\iano Marce]ino [15] diz: "Há coisasque não se
deve fazer, mesmo se é permitido fazê-]as." P]ínio em suas Ca/'óas[16]
.diz: "Deve-se evitar as coisas que não são honestas, não como sendo
proibidas, mas como se fossem honestas." O próprio Cícero [17] diz, em
seu discurso para Bambo:"Há, de fato, alguma coisa que não se deve,

ltl] Idem, Pro a .Raó r7c, Posfumo (5, 11).

[12] C[audius C[audianus [séc. ]V d.C.], Z)e /y Cbulsu/nfu ]?bnor77 (267 e seguintes)

[t3] Estobeu, 48, 14

[14] Marcus Annaeus Seneca [ 58 a.C 32? d. C.], Gonfrovers ae (]V. 24), entre
outras passagens.
[15] Livro XXX, 8, 8.

[16] Caius P[inius Caeci[ius Secundus [62-114], @ isfuJae (V. 13).


[17] Marcus Tu[[ius Cicero [106-43 a.C.], />o .LucT'o.Ba/bo OraÉÓ (3, 8)
1091
CAPÍTULO IV - DO DIREITO DE MATAR OS INIMIGOS NA GUERRA SOLENE E DE OUTRAS VIOLÊNCIAS CONTRA O CORPO

embora seja permitida." O mesmo, em seu discurso para Mi]o [18],


distingue "o que é lícito" à natureza, às leis "o que é permitido". Numa
declamação de Quintiliano [19] , há que uma coisa é ter respeito às ]eis
civis e outra coisa ter respeito pela justiça.

lll. Os efeitos da guerra solene,


considerados em sua generalidade,
se relacionam ao que é permitido com impunidade

Dessamaneira, pois, é permitido a um inimigo público prejudi-


car a seu inimigo, tanto em sua pessoaquanto em seus bens. Isso quer
dizer que é permitido não somente àquele que faz a guerra por uma
causa legítima e que prejudica no limite que dissemos no começo desse
livro (livro 111,cap. 1, $ 11)ser concedidopela natureza, mas é permitido
dos dois lados e indistintamente, de modo que aquele que foi por acaso
preso em outro território pode ser, por esse motivo, punido como homi-
cida ou como ladrão e que a guerra não pode ser feita por um terceiro a
respeito dessefato. Lemos nesse sentido em Sa]ústio [20] : "... a quem
todasas coisasforam permitidas na vitória, pelo direito da guerra..

IV Por que tais efeitos foram introduzidos?

A razão pela qual isso agradou às naçõesfoi a de que querer


definir entre dois povossobreo direito da guerra seria perigosopara os
outros povos que, por esse meio, se encontrariam implicados na guerra
de outrem. Assim é que os massilienses, na causa de César e de

[18] [dem,' Pro 7b2yo .4nJlib ]]Zz7ole(16, 43).

[19] Marcus Fabius Quinti[ianus [30?-100?] , Dec/an7aóones iUapbros ef ôlho/es


(251)
[20] Caius Sa[[ustius Crispus [86-36 a.C.], .4d pesarem, .De -RePuóJiaa (11,4, 1)
1092
H UGO GROTI US

Pompeu [21], diziam que não eram competentes nem bastante fortes
para decidir qual dosdois partidos tinha a causamais justa. Aseguir, é
que, mesmo numa guerra legítima, não é possível conhecer pelos indí-
cios externos qual ojusto limite concedidopara se defender,recuperar
seu bem ou infligir um castigo. Por isso pareceu mais vantajoso aban-
donar essaapreciação à consciência dosbeligerantes que apelar a arbi-
tragens estrangeiras. Os habitantes daAcaia, no discurso ao senado,
reproduzido por Tito Lívio [22] , exc]amam: "A qua] propósito vêm colo-
car em discussão o que foi feito segundo as leis da guerra?" Independen-
temente desse efeito de permissão, isto é, de impunidade, há ainda ou-
tro, a saber, um efeito de propriedade, sobre que falaremos mais tarde.

V l.bstemunhos relativos a esses efeitos

1. Essa permissão de prejudicar que começamos agora a tratar


se estende em primeiro lugar às pessoas. Numerosos testemunhos exis-
tem a respeito nos bons autores. Há um provérbio grego, tirado de uma
tragédia de Eurípides [23] : "Certamente, quem tiver matado seu inimi-
go é inocente." Por isso é que, segundo o costume antigo dos gregos, não
era permitido se banhar, beber e mais ainda celebrar sacrifícios com
aqueles que tivessem matado fora da guerra. Com aqueles que tives-
sem matado na guerra, isso era permitido. Em muitos lugares, matar
é chamado de direito da guerra. M]arce]o diz em T]to Lívio [24] : "Tudo o

que fiz contra os inimigos, o direito da guerra ojustifica." No mesmo

[21] Caius Ju[ius Caesar[[O1-44a.C.], Z)e.BagoClr7» (1, 35).


[22] Titus Livius [59 a.C.-17 d.C.], ,4b Z]/róe C0/7d)Éa (XXXIX, 36, 12)

[23] áon (1334)

[24] Titus Livius [59 a.C.-17 d.C.], ,4b Z:/róe OondJ'Éa (XXVI, 31, 9).
1093
CAPÍTULO IV- DO DIREITO DE MATAR OS INIMIGOS NA GUERRA SOLENE E DE OUTRAS VIOLÊNCIAS CONTRA O CORPO

historiador [25], A]con diz aos sagontinos: "Penso que seria melhor so-
frer essetratamento que vos deixar massacrar,que ver tirar e arrastar
diante de vós vossas mulheres e vossos filhos, vítimas do direito da
guerra." O mesmo [26], depois de ter relatado alhures que os habitantes
deAstapa haviam sido mortos, acrescenta que isso foi feito pelo direito
da guerra. Cícero,falando para Dejotarus [27], diz: "Por que teria sido
vossoinimigo porquanto podendo mata-lo como poderíeis tê-lo feito pela
lei da guerra, se lembrava ao contrário que o havíeis feito rei, ele e seus
filhos?" E para M. Marce]o [28] : "Como nos tivésseis destinado todos
legitimamente à morte, segundoa lei da própria vitória, fomosconser-
vadospor uma decisãode vossaclemência." César [29] faz compreender
aoseduenses que "foram salvos por uma graça que lhes foi concedida, a
elesque poderia ter condenadoà morte pelo direito da guerra". Josefo
[30] diz na guerra dos judeus: "É belo morrer na guerra, mas segundo o
direito da guerra, isto é, o vencedor vos tirando a vida." Papínio [31] diz:
'Nós não nos queixamos de que tenham sido mortos, pois essassão as
leis da guerra [32] e as vicissitudes das armas."

[25] Id;m, .4ó apõe Cona)fa (XXI, 13, 8)


[26] Idem, .4b Z]i}.óeaondlfa(XXVl11, 23).
[27] Marcus Tullius Cicero [106-43 a.C.], Pro J? ge De?bfaro (9, 25)
[28] idem, .fbo ]t/ ]Ua/cei7o(4, 12)
[29] Caius Julius Caesar [lO1-44 a.C.], De .Bebo GaZ/lco(Vl1, 41).

[301 F[ávio Josefo [30?-100?], quer/'as Judaicas (111,8, 5)


[31] Pub[ius Papinius Statius [45-96], TZeóa/s (X]1, 552).
[32] Sérvio, no comentário à Elle/da /Z 538(.Ercerpí, ,Zh/dons.), diz: '2:boro /zavla
matado Ponto pelo direito da guerra, mas por que mata-lo à vista de seu pai?'
Spartianus, em Wda de Severa(14), escreve: ':4/á]] pague/es que o ab'e/lo da
guerra levou.
1094
H UGO GROTIUS

2. Surgem outras passagensàs vezesquando essesautores fa-


lam do direito da guerra, não entendem um direito que isente o ato de
toda falta, mas uma impunidade, como a descrevi. Tácito [33] diz: "Em
paz, cada um é tratado segundo seu mérito e suas obras. Uma vez a
guerra iniciada, o inocente perenecom o criminoso." O mesmo [34] diz
em outro local: "A moral não lhes permitia honrar um tal assassinato.
nem a lei da guerra de o punir." Não sedeveentender de outro modoo
direito da guerra pelo qual os gregos se abstiveram com relação a Enéias
e a Antenor, como o re]embra Tifo Lívio [35], porque sempre haviam
aconse[hado a paz. Sêneca [36] diz, na tragédia H'Dados."Tudo o que
quis fazer é permitido ao vencedor." Em suas cartas [37] : "Os atou que
se pagaria com a cabeça se fossem clandestinos, os preconizamos come-
tidos em traje mi]itar" [38] . Cipriano [39] diz também: "0 homicídio,
quando os privados o cometem, é um crime; chama-se virtude, quando
é cometido por autoridade pública. Não é a consideração da inocuidade,
mas a intensidade da crueldade que confere a impunidade aoscrimes."
Depois: "As leis estão de acordo com os pecados e o que é autorizado pelo
poder público começaa ser ]ícito."Assim é que Lactâncio [40] diz que os
romanoshaviam feito [egitimamente injustiças. E Lucano [41] não dis-
se em outro sentido: "0 crime sancionado. . ."

[33] Caius Corne[ius Tacitus (55-120],.4n/lajes(1, 48)


[34] Idem,J7hfanbe(111,51)
[35] Titus Livius [59 a.C.-17d.C.], .4ó [/róe Gondlfa (1, 1, 1)
[36] Lucius Annaeus Seneca [01? a.C.-65 d.C.], 7}qoades (344)

137] Idem, .EbJsfuJaead Zuc Du/?i (XCV. 31).

[38] Confira-se quanto dito no livro 11,cap. 1, $ 1


[39] .1b])fujam (11,6)

[40] Caeci[ius Firmianus Lactantius]séc. ]V d.C.] , Duu2J2aJ«UJ?2 ZnsÉlfuÚo/lu/n(V] 9


4)

[41] Marcus Annaeus Lucanus [séc.] d.C.], .f)%arsa/la(1, 2)


1095
CAPÍTULO IV- DO DIREITO DE MATAR OS INIMIGOS NA GUERRA SOLENE E DE OUTRAS VIOLENCIAS CONTRA O CORPO

yl. Em virtude desse direito


é que se mata e se maltrata todos
aqueles que estão nas fronteiras dos inimigos
Essedireito de permissão se estende muito. Primeiramente, não
compreende somente aqueles que, de fato, levam armas ou que são os
súditos daquele que suscitou a guerra, mas mesmo todos aqueles que
estãonas fronteiras dos inimigos, o que se torna evidente pela própria
6rmula que se encontra em Tito Lívio [42]: "Que seja inimigo, assim
comotodos aqueles que estão nos lugares de sua jurisdição." A razão
dissoé que se pode também apreender algo de mau de sua parte, o que
basta numa guerra contínua e geral para que ocorra o direito de que
tratamos (livro 111,cap. 11,$ Vll). Ocorre diversamente nas represálias
que, como dissemos, foram introduzidas a exemplo dos encargos impos-
tos para pagar as dívidas do Estado. Por isso não se pode ficar maravi-
lhado se,o que é observado por Ba]do [43] , há muito mais permissão na
guerra que no direito de represália. Do mesmo modo, o que acabo de
dizer não mostra diBculdade a respeito dos estrangeiros que entram
nas terras do inimigo depois que a guerra foi declarada e que são captu'
Fados.

VII. Que decidir se ocorl'eram antes da guerra?


Para aqueles que aí estavam desde antes da guerra, parece que,
segundo o direito das gentes, devem ser considerados do partido do ini-
migo,depoisda expiraçãode um curto intervalo detempo durante o
qua[ teriam podido se retirar]44] .Assim é que, de fato, a ponto de sitiar

[42] Titus Livius [59 a.C.-17 d.C.], .4ó Z:&.óeOondlfa (XXXV]11, 48, 9)
t43ÀAd regem5, Dig., ])e Justitia.
[441 Bembus, JDsf. (livro Vll). Cícero (P7a Zlkanb, 2, 4) se serve desse meio de
defesa em favor' de Ligaria. Em Tito Lívio(ÁÓ C/róe Go ?dl'ía, XXV. 22, 11) há um
exemplo sobre os cidadãos campanos. Há outros em Tucídides (livro l e V)
1096 H uco GROTIUS

Epidama, os corcirenses davam primeiro aos estrangeiros a faculdade


de se retirar, declarando-lhes que se, de outra maneira, seriam conside-
rados como inimigos [45].

VIII. Os súditos dos inimigos sáo maltratados


em qua[quer [ugar que seja, a menos que a ]ei
de um território estrangeiro ponha obstáculo

1. Quanto àqueles que são verdadeiramente os súditos dos inimi-


gos, isto é, que o são a título permanente, é permitido por esse direito
das gentes prejudica-los em qualquer lugar que seja, se considerarmos
sua pessoa. Quando a guerra é declarada a alguém, ela é ao mesmo
tempo declarada aoshomens dessepovo, comoo mostramos antes (livro
111,cap. 111,$ Vl1, 2) na fórmula da declaração, bem como naquela da
deliberação: "Quereriam, ordenariam que a guerra fosse declarada ao
rei Fi[ipe e aos macedónios que estariam sob sua autoridade?" [46].
Aquele que é inimigo pode ser atacado em qualquer lugar que seja,
segundo o direito das gentes. Eurípides [47] diz: "As ]eis da guerra per'
mitem fazer o mal ao inimigo em toda parte em que for surpreendido."
O jurisconsu[to Marciano [48] diz: "É permitido matar os trânsfugas
em toda parte em que forem encontrados, como se fossem inimigos.

2. Podem, pois, impunemente, ser condenados à morte em seu


próprio território, no território inimigo, num território que não perten-
ça a ninguém, no mar. A respeito, porém, do que não é permitido ma-
ta-los ou ataca-los num território neutro, esseprivilégio não vem de sua

[45] Tucídides (livro 1, 26)

[46] Titus Livius [59 a.C.-17 d.C.], .4b Z:rrÓeCo Jdlóa (XXX], 6, 1)
[47] .f$agme/7fa (1076).

lç8Àh 3, in fine, Dig., Ad Lerem Cornelíam, de sícariís.

]
CAPÍTULO IV-DO DIREITO DE MATAR OS INIMIGOS NA GUERRA SOLENE E DE OUTRAS VIOLENCIAS CONTRAO CORPO

própria pessoa, mas do direito daque]e que possui aí a soberania]49] . As


sociedadescivis puderam estabelecerque não será permitido usar de
violência contra aqueles que se encontram num território determinado,
a não ser tomando as vias da justiça, como o mencionamos, seguindo
Eurípides [50] : "Se levantas alguma acusação contra esses hóspedes,

pedirás justiça, mas tu não os arrancarás daqui pela força." Onde os


tribunais estiverem em vigor toma-se em consideração o que merecem
osindivíduos e secessade aplicar essedireito indistinto de prejudicar
que dizemos ter sido introduzido nas relações dos inimigos entre si. Tito
Lívio [51] re]ata que setetrirremes doscartagineses estavam num por'
to do Estado comandado por Sifax que, nessa época,estava em paz com
os cartagineses e os romanos, que Cipião aí havia chegado com duas
trirremes e que teria podido ser destruído pelos cartagineses antes de
entrar no porto, mas que um golpe de vento os jogou no porto antes que
os cartagineses tivessem levantado âncoras; apesar disso, os cartagineses
nãotinham ousadotentar nada no porto do rei.

IX. Esse direito de maltratar se estende


mesmo contra crianças e mulheres

1. De resto, para retornar a meu assunto, compreende-seaté


ondese estende essa permissão pelo fato que o massacre das crianças e
das mulheres ocorre também com impunidade e que está compreendido

[49] Compare:secom o que será dito no cap- V], $ XXV], e A]berico Genti]e em
HJspan. 4drocaf. (]ivro ], cap. V]), além de Wechner, Co/Jsl7.Fra/7con.(92)
[50] J7erac/J'des (251).

[51] Titus Livius [59 a.C.-17 d.C.], .4ó C//óe Cbndífa (XXV]11, 17, 12). Ver em
Chalcocondylas(livro IX) um fato semelhante dos venezianos que impediram
que os gregos fizessem algum mal aos turcos, num porto sob a administração
de Veneza.Ver o que se fez em Tunis com relação aos venezianos e aos turcos,
em Bembus(]7Jif., livT'o IV) e na SicÍlia, com relação aos pisamos e aos genoveses,
em Bizarro (Z)e .Be/7o .F'fsano). Ver também Paulinus (GofÉÜ.) a respeito de
Rostoch e Gripswald
1098 H UGO GROTIUS

nesse direito da guerra. Não lembraria aqui que os hebreus condena-


ram à morte as mulheres e as crianças dos hesbonitas (-Deusa'om(anJO
11,34) e que o mesmo tratamento é ordenadocontra os cananeus
(.DeuferonÓmJO XX, 16) e contra aqueles cuja causa estava ligada àque-
[a dos cananeus]52] . Essas são obras de Deus, cujo poder sobre os ho-
mens é maior que aquele dos homens sobre os animais, como o descre-
vemos em outro local (livro 11,cap. XXI, $ XIV). O que é dito no salmo
(SnJlno 137, 9), que será feliz aquele que esmagará contra as pedras os
filhos dosbabilânios, é mais próprio para fazer conhecero costume co-
mum das nações.A isso se refere este verso de Homero [531:"... E os
corpos dos filhos rasgados por sobre a terra, enquanto o feroz Marte
subverte tudo. . .

2. Os habitantes da Tlráciaoutrora, depoisda tomada de


Micalesso, condenaram também à morte as mulheres e as crianças,
segundo o relato de Tucídides [54]. Arriano [55] re]ata a mesma coisa
dos macedónios, quando tomaram bebas. Os romanos, depois da toma-
da de llurgo [56], cidade da Espanha, "massacraram sem distinção,
mesmo as mulheres e as crianças", segundo pa]avras de Apiano [57].

[52] Como os ama]ecitas, de quem fa]a Josefo em .:lnt gú Jades Judaicas (VI, 7, 2),
na história de paul: '7bzpassar ao ála da espada,mesmo as mu/Barese as
=ríanças, não pensando em cometer um ato de crueldade ou contrário à 1latu-
reza humana, primeiramente porque eram inimigos que ele tratava assim,

[53] JZüdn(XXl1, 63). Severo(Xiphi]inus, LXXVI, 15) se serviu, contra oshabitantes


da Grã-Bretanha. dessasmesmaspa]avras tiradas de Homero (]»bda, VI, 58)
Que o alho escolldido no seio de sua mãe não escapede seus cruéis destinos.
[54]Livro 1, 29
[55] Z)e .UrpedlÉ. ,4/exaJldr2'(1, 8)
[56] Cipião fez a mesma coisa depois de ter tomado Numância. Os soldadosde
Juliana mataram as mulheres da cidade de Daciris, nela deixadaspelos ho-
mens (Zósimo. 111,15) O mesmo Juliana, tendo tomado a cidade de
Majozamaltha, segundorelato de Amiano (XIV, 4, 25), agiu 'bensd)Élnçáo de
sexo nem de idade e toda o que o ímpeto dos soldados encontrava em sua
passagem, sua cólera degolava.
[57] Hisp. (32)
1099
CAPÍTULO IV- DO DIREITO DE MATAR OS INIMIGOS NA GUERRA SOLENE E DE OUTRAS VIOLENCIAS CONTRAO CORPO

Em Tácito [58] , se conta que o imperador Germanicus havia devastado

pelo ferro e pelas chamas os povoados dos marsos, um povo da Germânia,


e acrescenta-se que "nem o sexo, nem a idade encontraram piedade'
-l'ito fez dilaceram, num espetáculo, pelos animais ferozes, as próprias
crianças e as mulheres dos judeus. Apesar disso, esses dois homens
passam por terem sido de um caráter em nada cruel. Tanto isso é ver-
dade que essa desumanidade se havia transformado em costume.
Deve-se muito menos se espantar se velhos também são condenados à
morte, como Príamo o foi por Pirro [59] .

X. Mesmo contra os prisioneiros e em qualquer tempo

1. 0s cativos não estão mesmo ao abrigo dessa permissão [60]


Pirro diz em Sêneca[61], segundoo costumeem vogaentão:"Nenhuma
lei poupa o prisioneiro ou impede de pum-]o." Em Civis de Virgí]io [62] é
chamadaa lei da guerra, mesmocontra mulheres prisioneiras. Silo
fala disso, de fato, assim: "Ao menos, porém, tivésseis matado a cativa
pela lei da guerra." Quanto à passagem de Sêneca, se tratava de matar
umamulher que era Polixena. Daí esteversode Horário [631:"Como

[58] Caius Corne[ius Tacitus [55-120] , .4nna/es (1, 51)

[S9]Pub[iusVergi[ius Mare [71-19 a.C.], .Er2eidn


(11,550)
[60] Em ,4J]Élküidades
JudnJcas(]X, 4, 3) de F]ávio Josefo,E]iseu dizia que 'bra
legítimo matar os prisioneiros feitos pelo direita de guerra." Par Isso, Vtxg$ho
(.EheJ'dn,
X, 524) apT-esenta
um prisioneiro que suplica nessestermos: 'F'e/os
deusesmanes de teu paí, peia esperança que dá fulo que surge, te suplico
cojzsej'uaJ'
essaw'dn a meu Éll/óoe a meu pai.r"Withikind conta que Otão man-
dou matar 70.000 eslavos que havia feito prisioneiros
[61] Lucius Annaeus Seneca [Ol? a.C.-65 d.C.], 7}voades (342)

i621 Pseudo Virgílio, alr7s(447).

[63] Quintus Hoi ateusF]accus[65-08 a.C], áp )fujam (1, 16, 69).


'H

1100
H UGO GROTIUS

podes vender um cativo, não o mates." Supõe, de fato, que é permitido e


Donato [64] pensa que os escravos são assim chamados porque foram
conservados, "enquanto deveria tê-los matado, segundo o direito da guer-
ra". Nessa passagem, as palavras "deveria tê-lo" são empregadas im-
propriamente e parecemcolocadaspor "teria sido permitido". Assim é
que os prisioneiros de Epidamne foram mortos pelos corcirenses, se-
gundo o re]ato de ']lucídides [65] . Assim é que cinco mi] prisioneiros
foram mortosporAníba] [66]. Em Hirtius [67], um centurião partidário
de César se dirige assim a Cipião: "Rendo-te graças por me teres prome-
tido salvar a vida a mim, cativo pelo direito da guerra.:

2. O poder de matar tais escravos,isto é, os prisioneiros feitos na


guerra, não é impedido por nenhum intervalo de tempo, por aquilo que
diz respeito ao direito das gentes, mesmo quando é restrito, aqui mais,
acolá menos,pelas leis dos Estados.

XI. Mesmo conta'aaqueles que querem


se rendere que não são acentos

Mais ainda, são encontrados em muitos lugares exemplos de su-


p[icantes condenados à morte. Como porAqui]es, em Homero [68] e em
Virgílio [69] , o exemp]o de Magon e de ']lurnus. Vemos que esses trechos
são contados de modo a serem justificados ao mesmo tempo por esse
direito da guerra de que fa[ei. Agostinho [70], louvando os godosque

[64] .4de/pÃ., ato 2, cena 1 (128)


[65] Livro 1, 30
[66] Apiano, ..4J2iba/(14);Dion, X].V]1, 48.
[67] Au[us Hirtius [séc. ] a.C.], .Be/7umMaca ]um (45).
[68] Z%da (XX, 463; XX], 74).
[69] Pub[ius Vergi[ius Maro [71-19 a.C.], EJ7e/da(X, 524; X]] 930)
[701Aure[ius Augustinus [354-430],.Z)eClwéafeDel (1, 2, 1)
CAPITULO IV- DO DIREITO DE MATAR OS INIMIGOS NA GUERRA SOLENE E DE OUTRAS V10LENCIAS CONTRA O CORPO

haviam poupado os suplicantes e aqueles que se haviam refugiado nos


templos, diz: "Julgaram que aquilo que o direito da guerra lhes conferia
poder de fazer, lhes era proibido." Aqueles que se rendem não são sem-
pre aceitou, como, na batalha de Granito, acontece com os gregos que
estavam a serviço dos persas. Em Tácito [71], os habitantes de Uspes
pediram graça pelas pessoas livres, mas "os vencedores rejeitaram essa
solicitação e acharam melhor que perecessempelo direito da guerra'
Observe'se também nessa passagem o direito da guerra.

xll. Mesmo contra aqueles


que se renderam incondicionalmente
Mais ainda, pode-se ler que mesmo aqueles que foram acolhidos
com mercê sem condição a]guma são condenados à morte [72] , como o
foram pelos romanos os principais cidadãos de Pomécia [73], por Si]a os
samnitas,por Césarosnumidas [74] eo próprio Vercingetórix [75]. Era
mesmoum costume quase perpétuo dos romanos, a respeito dos gene'
reis inimigos de fazê-]os morrer no dia do triunfo [76] , tendo sido presos
ou que se tivessem rendido, como nos informam Cícero em sua quinta
Venha [77] ; de igua] modo Tito Lívio [78] no ]ivro XV]]]; Tácito [79] no

[71] Caius Corne[ius Tacitus [55-120], .4nJla]es (X]1, 17)


['72]Ver De Thou(]ivro LXX, 17), nas questões da ]r]anda, ano de 1580
[73]Titus Livius [59 a.C.-17d.C.], .4ó Z:ik-óe
Gondlfa(11,17, 6)
[74] Dion, XL]11, 9.

[75] Dion Cassius, XL, 14

[76] Fato semelhante se encontra na crónica de Reginon, no ano 905.


[77]Marcas Tu[[ius Cicero [106-43a.C.], in Uerren7
Hcílo (V, 30, 77).
1781Titus Livius [59 a.C.-17 d.C.], ,4ó Z:/I'óe Gondléa G(XV], 13, 15).

[791 Caius Cornehus Tácitos [55-120], .4/zna]es (X]1, 19)


1102 H UGO Gxoíius

livro Xll dos ..'ínna7ese muitos outros. O mesmo Tácito]80] lembra que
Galba ordenou dizimar os suplicantes que havia recebido em graça e
Cecina, tendo aceitado a rendição deAventicum, investiu contra Julius
Alpinus, um dosprincipais da nação,comoautor da guerra; abandonou
os demais à clemência ou aos rigores de Vite]]ius [81] .

XIII. De modo erróneo esse


direito éligado a outras causas,
como ao talhão, à obstinação da defesa

1. 0s historiadores às vezes costumam relatar o caso dos inimi-


gos mortos, prisioneiros, sobretudo, ou suplicantes, seja pelo talião, seja
pe[a pertinácia na resistência [82] . Essas razões, porém, como 6lzemos
delas alhures a distinção(livro 11,cap.XXll, $ 1), sãomais determinantes
que justificativas. O talião justa e propriamente dito deve ser exercido
na mesma pessoaque se tornou culpada, assim comoisso pode sejulgar
pelo que foi dito antes (livro 11,cap. XXI, $ XII) no tocante à comunicam
çãoda pena.A maior parte do tempo, ao contrário, em decorrênciada
guerra, o que é chamado talião recai sobre aqueles que não se tornaram
de algum modo cu]pados do que se ]amenta. Diodoro da Sicí]ia [83]
descreve assim o uso disso: "Não ignoravam, de fato, instruídos pelos
próprios acontecimentosque a sorte doscombatentes sendoigual, uns e
outros se vierem a levar desvantagem, deveriam se ater ao mesmotra-
tamento que elespróprios teriam dadosoâ'er aosvencidos."No mesma
historiador [84] , Fi]ome]o, genera] dos forenses, "forçou os inimigos,
iní[igindo penas iguais [85], a se abster de castigos cruéis e excessivos'

[80] Idem,JÍJkíonhe(1,37).
[81] [dem, ]J]sóoHae(1, 68)
[82] Como Chalcocondylas, ]ivro V]]]
[83] Livro XIV. 46
[84] Livro XVI, 31
185]Ver o mesmoDiodoro da Sicília a respeito de Spondius e Amilcar Barca ein
Ecrcerp6a de Peiresc(.Ercerpía de l>b'Éuf. ef lJTÉlls,l)
1103
CAPÍTULO IV- DO DIREITO DE MATAR OS INIMIGOS NA GUERRA SOLENE E DE OUTRAS VIOLÊNCIAS CONTRA O CORPO

2. Com relação ao que é uma ligação obstinada a seu parti.do, não


há ninguém que o julgue digno do suplício, como o respondem, em
ProcÓPio186], os napolitanos a Belisário, o que ocorre sobretudo quando
essepartido foi destinado pela natureza ou foi escolhido por uma razão
honesta. Mais ainda, é preciso de tal modo que nisso haja crime, como,
se considera como um crime abandonar seu posto, sobretudo em virtu-
de do antigo direito militar romano [87] que não admitia nesse caso

quasenenhuma desculpa fundada sobre o temor ou sobre o perigo. Tito


Lívio [88] diz: "Abandonar seu posto, entre os romanos, é um cmme
capital." Cada um usa, pois, em vista de seu próprio interesse, desse
rigor extremo, quando ojulgar interessante e esserigor é justificado,
junto aos homens, por esse direito das gentes que tratamos agora.

XIV Estende-se também contra os reféns

O mesmo direito era também exercido sobre os reféns e não so-


mente sobre aqueles que se haviam rendido eles mesmos nas mãos do
inimigo por uma espécie de convenção, mas ainda sobre aqueles que
haviam sido entregues por outros. Duzentos e cinqüenta reféns foram
mortos outrora pelos habitantes de Tessá]ia [89], pe]os romanos em
torno de 300 vo]scos auruncos [90]. É preciso observar, a mais, que
havia mesmo o costume de dar Êllhoscomo reféns, como isso foi feito
pe[ospartos [91], o que ]emosfoi feito também por Simão,um dos

[86]GotÍÜfc.(1, 8)
[87]Políbio,]ivro 1, 17 e ]ivx'oV], 37.
[88] Titus Livius [59 a.C.-17 d.C.], .4b C/}.óe O0/2dlfa (XX]V. 37 9)
189] P[utarco[50?-125?], De C7ar7kMuJlbrl'óus(244 B)
[90]Dionísiode Halicarnasso,livro VI, 30
[911 Caius Corne[ius Tacitus [55-120] , ,4nJJzzJes
(X]], ]O)
!104 H U GO Gxotius

Macabeus (/Macabeus Xl11, 16), e mulheres, como o haviam feito os


romanos da época de Porsenna e os germânicos, segundo o relato de
Tácito [92] .

XV Em virtude do direito das gentes, é proibido


levar à morte alguém por envenenamento
1. Como o direito das gentes permite, no sentido que explicamos,
muitas coisas que são proibidas pelo direito de natureza, assim tam-
bém proíbe certas coisas permitidas pelo direito de natureza. Aquele
que é permitido matar, pouco importa que se dê a morte com a espada
ou com o veneno, se for considerado o direito de natureza. Digo o direito
de natureza, pois é seguramente mais generoso matar, deixando ao que
se vai matar a liberdade de se defender, mas não existe nenhuma obri-
gação de usar essa generosidade para com uma pessoa que mereceu
morrer. O dü'eito das gentes aceito, contudo, desde muito tempo, senão
por todos os povos, ao menos pelos mais civilizados, é que não seja per
miudo matar um inimigo pelo veneno.Esseacordounânime surgiu da
consideração da utilidade comum para impedir que os perigos que co-
meçavam a ser freqüentes nas guerras não se estendessem demasiado.
Ê crível que essa proibição tenha vindo dos reis, cuja vida é protegida
contra as armas mais que a dos outros homens, mas o é menos que a
dos outros contra o veneno, a menos que não seja proibida por um certo
respeito peia [ei e pe]o temor da infâmia [93] .
2. Tito Lívio [94] , fa]ando de Perseu, chama isso de crimes c]an-
destinos. C]audiano [95], fazendo menção das emboscadas que Fabrício
recusou usar contra Pirro, diz que é uma sanção ímpia. Cícero [96],

[92] Idem, HikÉo/:üe (]V. 8)


193] Os senadores dizem a Pirro: '7)a/a /2ão nos coór] de lhJãmz a, se te acontecer
zzeunla colha"(Plutarco, /}arüus, 396 C)
[94] Titus Livius [59 a.C.-17 d.C.], .4ó Z:/rZ)oGo }dlfa (XL]1, 18, 1)
[95] C[audius C[audianus [séc. ]V d.C.], .De .Be/To Gl7don co (274)
[96] Marcus Tu[[ius Cicero [106-43a.C.], .DeC2#íc71k
(111,22, 86).
!105
CAPÍTULO IV- DO DIREITO DE MATAR OS INIMIGOS NA GUERRA SOLENE E DE OUTRAS VIOLÊNCIAS CONTRA O CORPO

ocupando-se da mesma história, o chama de crime. Importa, a exemplo


de todos, que não se cometa alguma coisa de semelhante, dizem os côn-
sules romanos, numa carta a Pirro queAu]us Ge]]ius [97] re]ata como
depoimento de CI. Quadrigarius. Há, em Va]ério Máximo [98] , que "as
guerras devem ser feitas com as armas, não com os venenos". Tácito
[99]relembra que ochefe doscalos,prometendofazer perecerArminius
pelo veneno, Tibério rejeitou essa oferta, tornando-se por essa ação
gloriosa igual aos antigos generais. Por isso é que aqueles que querem
que seja lícito matar um inimigo pe]o veneno [100], como Ba]do,
baseando-seem Vegécio[lOl] , consideram o puro direito de natureza.
Quanto ao dü'eito que toma sua origem da vontade das gentes, não Ihe
dão atenção.

XVI. Proibido também infectar


de veneno as armas ou as aguas

1. 0 fato de untar dardos de veneno e de dobrar as causas de


morte difere um pouco de um envenenamento semelhante e se aproxi-
ma mais da força aberta. Ovídio o conta dos getas [102], Lucano dos
partas [103], Si]ius de a]guns povos da Africa [104] e C]audiàno nomea-
damente dos etíopes [105] . ]sso é contrário também ao direito das gen-

[97]Au[us Ge[[ius [séc.]] d.C.], ]MoaÉes


.4ÉÉlcne
(111,8)
[98] Livro VI, 5, 1.
[99] CaiusCorne[iusTacitus [55-120], .4nnaJes(11,88).
11001A respeitodos venezianos,ver Bembus,no final do livro ll.
llol] ll ao/?s., 188.
[102] Er .F)orlfa, 1, 2, 15. Plínio(XI, 35) diz dos citas: "Os czfas Élhgem suas /Zecáas
cam veneno de víbora e de sangue huma110.Esta ação maifazeja, que não
admite remédio algum, causa logo a morte, pelo mais leve contado."'Vet o
suplemento de Helmold, cap. IV. a respeito dos sérvios.
[103]MarcusAnnaeus Lucanus [38-65],.füarsa7)b(V]11,304)
[104]CaiusSi[ius [ta[icus [séc.] d.C.], PunJca(111,273)
11051ClaudiusC[audianus [séc.]V d.C.], De Go/zsu/afuSÉIZicÜonJk
(1, 351).
H UGO GROTIUS

tes [106] não universa], mas de todas as nações européias e aquelas que
seaproximam das mais civilizadas da Europa. Isso foi muito bem ob-
servado por Sarisbéry [107] com estestermos: "Nunca li que alguma lei
autorizasse o veneno, ainda que veja que os infiéis se serviram dele
algumas vezes."Por isso, Si]ius [108] diz: "Desonrar o ferro pelo veneno."

2. Quanto ao fato de envenenar as fontes, o que não é escondido


ou não o fica por muito tempo, F]orus [109] diz que é não somente
contra o costume dos ancestrais, mas ainda contra o preceito dos deu-
ses,como foi observadopor nós também em outro local (livro 11,cap.
XIX, $ 1,2), porqueas regras do direito das genteseram ordinariamen-
te atribuídas à iniciativa dos deuses. Não deve parecer espantoso que,
para diminuir os perigos, tais tipos de convençõestácitas tenham inter-
vindo entre osbeligerantes, porquanto foi concordadooutrora, no pró-
prio seio de uma guerra entre os caldidianos e os eritreus, que "não
seria permitido se servir de arma de ]ançamento" [110].

XVII. Náo é proibido alteram'as águas de outro modo

De resto, não se deve decidir a mesma coisa relativamente ao


fato de corromper sem veneno as águas [111], de maneira que não pos-
sam ser bebidas, o que Só]on e os anÊictiões[112], como se ]ê, haviam

[106] Foi por isso que na Odísséia (1, 263) 11o,HUhode Mermérides, recusa a Ulisses
veneno para seus dardos: 'mamando z? a dos deuses llnopiaJS.
[107] Livro Vll, cap. 20.
[108] Ver nota 104.

[109] Livro 11,cap. 20.


[110] Estrabão, ]ivro X, 1, 12.
[111] Jogando netas cadáveres, amianto, como fez Belisário no cerco de Auximo
(Procópio, GofÉüJa,11,27); cal, como fizeram os turcos em Diadibra(Nicetas,
/ílhfdr:zb de Aeuko, irmão de lsaac, livro 1, 7). Há outros exemplosem Otão de
Frisinga e em Guntherius(Zdku/:lhas)
[112] Pausânias, ]ivro X, 37; Frontinus, ]ivro 111, 7, 6; Esquina, De ]Ua/e OÓ/fa Z%aé.
115
1107
CAPÍTULO IV - DO DIREITO DE MATAR OS INIMIGOS NA GUERRA SOLENE E DE OUTRAS VIOLÊNCIAS CONTRAI CORPO

achado legítimo contra os bárbaros e o que Opiano, no livro IV de seu


tratado sobre a pesca [113], ]embra como era usada em seu tempo. ]sso,
de fato, deve ser considerado como desviar um rio ou cortar os veios de
uma fonte [114], o que é permitido tanto pelo direito natural como pelo
consenso.

Xylll. Seé contra o direito das gentes


servir-se de assassinos

1. Pergunta-se geralmente se é permitido pelo direito das gentes


matar um inimigo, enviando contra ele um assassino.Deve-se, porém,
necessariamentefazer uma distinção entre os assassinos.Aqueles que
violam seus compromissos expressos ou tácitos, como os súditos para
com seu rei, os vassalos para com seu senhor, os soldados para com
aqueleao serviço de quem se encontram, aqueles que foram acolhidos
comosuplicantes ou como estrangeiros ou como refugiados para com
aqueles que os acolheram ou se não estiverem ligados por nenhum com-
promisso, como Pepino [115], pai de Car]os Magno, que, segundo se
conta,tendo atravessado o Reno, acompanhado de um só guarda, havia
matado seu inimigo em seu quarto. Po]íbio [116], chamando isso de
'uma audácia viril", conta que uma tentativa análoga havia sido dil:igida
peloetólio Teodorocontra Ptolomeu, rei do Egito. Tal étambém a em-
presa, elogiada pelos historiadores, de Q. Mutius Scaevo]a [117] que e]e
mesmoajustifica nestestermos: "Inimigo, quis matar um inimigo." O

[tt3] .Hà/I'euíÜ2'aa(]V. 687)

[114] Ver Prisão, em .Ercerpfa .Lé<gaÉI'onunl.

[115i Ver Paulo Warnefrid, De Casa/s .LaJ2goóa/dorum(V], 37)

[116]Livro V. 81.
11171Que Plutarco(PuZ)/)co/a, 106 B) chama de "ujn Bo/ne n d2ié7néopor lodo ízbo de
vhtudes
l

H UGO Gxoítus

próprio Porsenna nada encontra nessefato a não ser algo de heróico


[118]. Va]ério Máximo [119] o chama de uma empresa honesta e corajo-
sa, enquanto Cícero [120] a e]ogia em seu discurso para P. Sextius.

2. De fato, é permitido matar um inimigo em qualquer lugar que


seja, não somente pelo direito de natureza, mas também pelo direito
das gentes, como vimos antes (livro 111,cap. IV. $ Vl11, 2). O número
daqueles que o fazem ou que são as vítimas não importa. Seiscentos
lacedemânios, com Leõnidas, tendo penetrado no acampamento inimi-
go, iam direto à tenda do rei]121]. A mesma coisa foi permitida a um
pequeno número [122] . Eram pouco numerosos aqueles que mataram o

cânsu[ Marce[o, surpreendido numa emboscada [123] e aque]es que fa-


lharam em perfurar com golpes em sua cama Petilius Ceria]is [124].
Ambrósio [125] e]ogia E]eazar por ter atacadoum elefante que se se
bressaía aos outros em altura, pensando que o rei se encontrasse senta-
do sobre ele. Não são somente aqueles que o fazem, mas ainda aqueles

[it8] Titus Livius [59 a.C.-17 d.C.], .4ó Z:/I'óe C0/7d2fa (11, 12, 9)

[119] Livro 111, 3, 1.

[120] Marcus Tu[[ius Cicero [106-43 a.C.], .Fbc?Puó/}o SesZ/b (21, 48)

[121]Justino, ]ivro 11,15


[122] Valente prometeu dinheiro ao que Ihe touxessea cabeçade algum cita e foi
assim que obteve a paz(Zósimo, livro iV 2)
[123] Titus Livius [59 a.C.-17 d.C.], .4ó Z:&.óe Gondlfa (XXVl1, 27)

[124] Caius Corne[ius Tacitus [55-120], Hlkfor7be (V. 22).

[125] Ambrosius]340?-397] , .De (2áZ7cylb


.4ablkÉrorum(1, 40, 197). Como Flávio Josefo,
em .4nÉzkü/Jadesdada cas(Xl1, 9, 4). Um fato semelhante cle Teodósio contra
Eugênio se encontra em Zósimo (livro IV. 58)1de gauleses contra o rei dos
persas, em Agatias; de dez persas contra Juliana, em Amiano(livro XXIV) e
Zósimo(livro 111,20); de Aleixo Comneno contra Toros. em Nicetas Choniate
(livro IV. 4); de búlgaros contra o imperador Nicéforo, em Zonaras(XY 15).
1109
CAPÍTULO IV - DO DIREITO DE MATAR OS INIMIGOS NA GUERRA SOLENE E DE OUTRAS VIOLÊNCIAS CONTRAO CORPO

que o mandam fazer que são reputados isentos de culpa, em virtude do


direito das gentes.Aqueles que inspiraram a Scaevolaseu ato audacio-
so foram esses antigos senadores romanos, tão ]eais na guerra [126] .

3. Não se deve se deixar abalar por essa circunstância porque,

quandoforem surpreendidos, tais assassinossão geralmente punidos


comsuplícios rigorosos. Isso não vem do fato que cometeram um crime
contra o direito das gentes, mas é que em virtude desse mesmo direito
das gentestudo é permitido contra um inimigo. Cada um inílige uma
penalidade mais severa ou mais leve, segundo o que mais se conforma
coma própria utilidade. Assim é que, de fato, os espiões,que é
indubitavelmente permitido pelo direito das gentes enviar, como aque-
les que Moisés enviou, como o foi o próprio Josué, são ordinariamente
tratados da maneira mais rigorosa quando são presos [127]. Apiano
[128] diz: "E costume matar os espiões." Tratamento por vezes legítimo,
quandoinfligido por aqueles que têm de modo manifesto uma causa
justa para fazer a guerra, mas que, da parte dos outros, é justificado
pela permissão que o direito da guerra confere. Se homens se encon-
tram que recusaram fazer uso de semelhante serviço oferecido [129],
deve-se relacionar isso à elevação da alma e à confiança colocada no em-

prego da força aberta e não à opinião que a coisa seja justa ou injusta.

4. Deve-se, porém, acrescentar outro julgamento a respeito des-


sesassassinos no ato dos quais se encontra uma perfídia. Não são, de
fato, somente eles mesmos que agem contra o direito das gentes, mas
também aqueles que empregam seu serviço, embora nas outras coisas,

[1261Titus Livius [59 a.C.-17 d.C.], .4ó Z]/rbeGondlfa(11,12)


\12]\ L. 3, $ ult. ad l.egem Cometiam,De Sicariis.
[128] .BeZ] /'unia. (39).

i1291 Ver Cromer, p. 113.


H UGO GROT10S

aqueles que se servem do concurso dos maus contra seu inimigo consi-
dera-se que pecam diante de Deus, mas não diante dos homens, isto é.
contra o direito das gentes, porquanto, nessa situação, "os costumes
puseram as leis sob seu poder" [130] e que "enganar", segundo a expres-
são de Plínio [131], "passa por prudência, em razão dos costumes da
época". Esse costume, contudo, está aquém do direito de matar, pois
aquele que emprega a perfídia de outrem é considerado como tendo vio-
lado o direito, não somente de natureza, mas também das gentes.Ensi-
nam Isso as seguintes palavras de Alexandre a Dado: "Empreendeis
guerras iníquas e quando tendes armas, colocais a prêmio a cabeça de
vossosinimigos" [132]. E mais adiante: "Vós que não tendes sequer
observado as leis da guerra a meu respeito..." A]hures [133], diz: "Deve
ser perseguição de todos os modos, não como um inimigo leal, mas como
um assassinoe um envenenador..." Deve-serelatar aqui estapassagem
sobre Perseu: "... não para se preparar a uma guerra legítima com os
sentimentos de um rei, mas recorrer a todos os crimes clandestinos dos
bandidos e dos envenenadores" [134]. Marco Filipe, falando dos mesmos
atos de Perdeu,diz que "o ocorrido Ihe ensinará comotodos essescrimes
são detestados pelos deuses"r135]. Aisso se aplicam estas palavras de
Valério Máximo [136] : "0 assassinato de Viriato [137] foi qua]iÊcado de

[1 30] Plauto, 7}:zi2umzous. (1037)

[131] Caius Plinius Caecilius Secundus [62-114], .ÉpJkfu/a ad Ruálhum (18,3)


[132] Quintus Curtius Rufus [séc. ] d.C.], livro IV 12-13
[133] Idem, livro IV. 11. 28
[134] Titus Livius [59 a.C.-17 d.C.], .4b C/róe Gondlla (XLl1. 18. 1).
[135] Idem, .4ó Urbe a0/2dlóa(XLIV, l, lO)
[136] Livro IX, 6, 4
[137] O autor de Hda dos J7ome/7s/7/usares(Aurélio Vigor, cap. 71) diz: "0 se/lado
/7ao aprovo / esta wZór7a pa'gue áaüa sido co/np/ada." Eutrópio(]V. ]6) nar-
L (Xue"os assassinas, tendo pedido ao cônsul Cepião a recompensa de seu
:rime, fai-lhes respondido que os romanas jamais aprovariam o fato de um
ge/)era/ ser morto por seus se/dados. "Nessa passagem, talvez se deva ler; 24
recampe/7sapromel/da pejo caIBa/ (;epJáo."Assim é que Ariano(livro XXX)
condena o que foi cometido contra Sertório
CAPÍTULO IV - DO DIREITO DE MATAR OS INIMIGOS NA GUERRA SOLENE E DE OUTRAS VIOLÊNCIAS CONTRA O CORPO

dupla traição, da parte de seus amigos, pelas mãos de quem foi assassi-
nado, e da parte do cônsul Q. Servilius Caepion que foi o autor desse
crime, prometendo impunidade e que não mereceu a vitória, mas que a
comprou.

5.Arazão pela qual aqui se concordou sobre outra coisa que nos
outros casos é a mesma que citamos anteriormente em relação ao vene-
no ($ XV. 1), isto é, a fim de que os perigos, sobretudo de pessoas emi-
nentes, não aumentem muito. Eumenes declarava que não acreditava
que "nenhum dos generais gostaria de assegurar a vitória por um des-
leixo, cujo exemplo poderia ser usado contra ele próprio" [138] . No mes-
mohistoriador [139] se diz, a propósito de Bessus, que havia atentado
contra Dado, que era o exemplo e a causa comum de todos o$ reis.
Edipo, dispondo-se a vingar o assassinato do rei Laius, fala assim em
Sófocles [140]: 'Vingando Laius, me defendo a mim mesmo." Em Sêneca
[141], na tragédia sobre o mesmo assunto: "A salvação dos reis deve ser
sobretudo defendida por um rei." Os cônsules romanos, em sua carta a
Pirro, dizem: "Pareceu-nosque querer tua salvaçãoera agir para o
exemplo comum e no interesse da boa fé" [142] .

6. Isso não é permitido, pois, numa guerra solene ou entre aque-


les que têm o direito de declarar uma guerra solene, mas fora da guerra
solene é tido por permitido, em virtude do mesmo direito das gentes.

[138] Justino, livro X]V. 1, 12.


[139] Idem, ]ívro X]1, 5, 10
[140] .ácíbo Rez (141)
[141] Lucius Annaeus Seneca [01? a.C.-- 65 d.C.], Oealzbus(246)
[142]Aulas Gellius [séc.]] d.C.], Azocfes4fÉlcae(111,8).
1112
H UGO GROTIUS

Assim é que Tácito [143] diz que semelhantes emboscadasdirigidas


contra o desertor Gannascushaviam sido desonrosas[144]. Quinto
Cúrcio [145] diz que a traição de Spitamenes poderia ter sido menos
odiosa porque nada parecia criminoso contra Bessus, o assassino de seu
rei. Assim é que a perfídia exercida contra os bandidos e os piratas não
é na verdade isenta de vício, mas entre as nações é impune por causa do
ódio que inspiram aqueles contra os quais ela é cometida.

XIX. Se os estupros são contra o direito das gentes

1. Pode-se ler em muitas passagens que os estupros cometidos


contra as mulheres nas guerras são permitidos e não permitidos. Aque-
les que os permitiram consideraram a injúria feita somente a corpo
alheio, estimando que é do direito das armas expâ'lo a toda espécie de
hostilidade. Pensam melhor os outros que consideram aqui não somen-
te o ultraje, mas ainda o próprio ato de paixão brutal e que observam
que esse ato não tem relações com a segurança nem com a punição e
que, em decorrência, não deve ficar nem na guerra nem na paz impu-
ne. Essa última opinião é da lei das nações,não de todas, mas das
melhores. Assim é que se lê que Marmelo,antes de tomar Siracusa [146].
havia dado ordenspara que serespeitasseo pudor mesmonas pessoas

1143JCaius Coi'ne]ius Tacitus [55-120], .4n/lajes (XI, 19)

[144] Assim é que, falando de Florêncio e de Barchalba que haviam traído o rebelde
Procópio, Amiano diz que 'be e/es Z7ressem irai o un p/.Jhcipe /eg#lmo, a
própria justiça teria pronunciado con.traeles a prisão e a morte, mas como só
haviam traído um rebelde, um perturbador da ordem pública, comoera
Procópio, segundo a opinião comum, se deveria ter recompensado ampla-
mente uma açâo ZâomeJno/:áKP/. "Assim é que Ai'taban é elogiado, no histo-
riador Procópio ( Handallc.,11,28), por ter matado Gontarides. Acrescente-se
Cromer (livro XXVIII), a respeito da morte de Suchodolius
[14õ] Quintus Curtius Rufos [séc. ] d.C.], livro Vl1, 5, 20.

[146] Aurelius Augustinus [354-430], -Z)eOlvlfa&eZ)e/(1, 6)


CAPÍTULO IV- DO DIREITO DE MATAR OS INIMIGOS NA GUERRA SOLENE E DE OUTRAS VIOLÊNCIAS CONTRA O CORPO

inimigas [147] . Cipião diz, em Tito Lívio [148], que é de seu interesse e
do interesse do povoromano "não violar entre eles o que era tido em
outros lugares como sagrado". Em outros lugares quer dizer entre os
povos mais civilizados. Diodoro da Sicí]ia [149] faia dos so]dados de
Agatocles que "seu furor criminoso não poupava sequer as mulheres"
[150]. Depois de ter contado que o pudor das mulheres e das jovens de
Pelena havia sido manchado pelos sicionenses vencedores, E]iano [151]
exclama: "Ates cruéis, pelos deuses da Grécia e que, tanto quanto posso
me lembrar, jamais foram aprovados,nem mesmopelospróprios bár-
baros!"

2. E conveniente que isso seja observado entre os cristãos [152] ,

não somente como uma parte da disciplina militar, mas também como
uma parte do direito das gentes,isto é, que aquele que atentou violenta-
mente contra o pudor, embora na guerra, seja passível de punição em
toda parte. Em virtude da lei hebraica (-Deusa'onón oXXI, 10), nin-
guém se eximiria disso com impunidade, como se pode entender nessa
passagem que ordena desposar a cativa]153] e proíbe de vendê-la em

[147] E Lucullus também, segundo o relato de Xiphilinus (Dion Cássio, XXXVI, 4)


Ver o edita do mouro Gabaon, em Procópio (Banda/)c., 1, 8)
[148] Titus Livius [59 a.C.-17 d.C.], ..4ó [/róe (bndlfa (XXV]1, 49, 14).
[149] Livro XIX, 8

[150] Apiano, em sua Guerra de ]UlÉrldnfes(47), falando dos habitantes .de Quites,
feitos prisioneiros, diz que 'b pudor das mu/Bares e das crTanç;as
áawa sido
violado por aqueles que os conduziam e que se haviam comportadocom eles
como bárbaros
[151] UZJIHJSf. (VI, l).

[152] Belisário observouem toda parte essamáximas Totila também, depois da


tomada de Cumes e Romã. Procópio o relata (GoÓÓ/ZJC.,
lll)
[153] Fílon. em seu livro Sobre a /ruma/ dada (14); Josefo (Cona'a .4ppfo/]em, ll,
29) diz que a lei teve cuidado de colocar em segurança a honra dos prisionei
ros de guerra, sobretudodas mulheres.
1114
H U GO Gxotlus

seguida. O doutor hebreu Bechai diz.a propósito dessa passagem: "Deus


quis que o acampamento dos israelitas fosse santo e não entregue às
impurezas e outras abominações,como o acampamento dospagãos."
Depois de ter contado que Alexandre se havia apaixonado por Roxana,
Arriano [154] acrescenta com e]oglos que "não quis abusar dela na qua-
lidade de cativa para satisfazer sua paixão, mas que a havia julgado
digna de ser despojada". P]utarco [155] diz, a respeito do mesmo fato:
;Não abusou dela por paixão, mas a tomou por esposa,como convinha a
um filósofo." Plutarco notou que um certo Torquato havia sido deporta-
do para a Córsega [156] por um decreto dos romanos por ter desonrado
uma jovem inimiga [157]

[154] .De .Expedl'í. .4/exanab7 (IVI 19, 9).


[155] Z)eRorf, mexa/7dl'(332 E)
[156] Cosroés,rei dos persas, mandou crucificar aquele que havia violentado uma
jovem em Apaméia(Procópio, Perslc., ll, ll).
[i57] Param (308 F)
V

DA UEXÜSmÇAQ
EDOSAQUE

Sumário

1. 0s bens dos iniinígos podem ser danificados e saqueados.

11.Mesmo as coisas sagradas; em que sentido se deve enter


dê-lo.

111.E as coisas religiosas, com uma precaução.

IVAté que pon to o dolo é aqui permitido.


1117
CAPÍTULO V- DA DEVASTAÇÃO E DO SAQUE

l Os bens dos inimigos podem


ser danificados e saqueados

Não é contra a natureza despojar aquele que se pode honesta-


mente matar [1], disse Cícero [2]. Por isso, não há porque se espantar
se o direito das gentes permitiu danificar e pilhar as coisas que perten'
cem aos inimigos que havia permitido condenar à morte. Por isso é que,
no quinto limo de suas J?lbfór7bs,
Po]íbio]3] diz que o direito da guerra
compreendea pilhagem ou o estrago das munições dos inimigos, de
seusportos, cidades, homens, navios, colheitas e outras coisas seme-
lhantes. Lemos em Tito Lívio [4] que "há certos direitos da guerra que
é justo sofrer, como é permitido de os exercer: o incêndio das messes, a
destruição dos edifícios, o saque de homens e rebanhos". Encontra-se
quase em cada página, nos historiadores, cidades inteiras destruídas
ou trincheiras arrasadas, campanhas devastadas, incêndios. Deve-se
observar também que essascoisas são permitidas mesmo contra aque-

les que serenderam. Tácito [5] diz: "Os habitantes, tendo aberto suas
portas, se entregaram aos romanos com o que possuíam. Essa submis-
sãosalvou suas pessoas.Artaxate foi entregue às chamas."

11]Suetânio(Mero, XL) diz: 'l:bmo se fosse uma oc'asiâanatura/ de desp(2Üi'pe/o


direito da guerra asprovíncias muito ricas..." C\prtano ÇDeMortaJitate, 8àescre-
ve: "Assim, quando uma cidade é tomada pela inimigo, todos aqueles que nela
estão são feitos cativos ]lo mesmo momento.
[2] Marcus Tu[[ius Cicero[106-43a.C.], .Pe(2/Ha2]s
(111,6, 32)
[31Livro V] ll.
[4] Titus Livius [59 a.C.-17d.C.], ,4ó Cü-üo
GondlóaQ(XX], 30, 2)
[5] Caius Corne[ius Tacitus [55-120], .4nnaJes (X]11, 41)
HU GO GROTlyS

11.Mesmo as coisas sagradas;


em que sentido se deve entendê-lo

1. 0 direito das gentes genuíno, colocando de lado toda considera-


ção dos outros deveres, de que falaremos mais adiante, não excetua
mesmo as coisas sagradas, isto é, aquelas que foram consagradas a
Deus ou aos deuses.O jurisconsu]to Pompânio [6] diz: "Quando os fuga'
res foram tomados pelos inimigos, todos cessam de ser sagrados" [7].
Cícero [8], em sua quarta Verrina, diz: "A vitória de Siracusatinha
tornado profanas as coisas sagradas." A razão é que as coisas que são
ditas sagradas não são,na realidade, separadas do usohumano, mas
são púb]icas [9] e extraem sua denominação de sagradas pelo fim ao
qual são destinadas. Um sinal do que digo é que, quando um povo se
submete a outro povo ou a um rei, Ihe entrega também as coisas que
são ditas divinas, como isso resulta de uma fórmula que citamos em
outro local (livro 1,cap. 111,$ VIII), tirada de Tiro Lívio. Com isso con-
corda este verso de Amphitruo de P]auto [lO] : "Que tivessem de entre-
gar sua cidade, seus campos, seus altares, seus lares e eles mesmos." E
depois [11] : "E]es se entregam a si mesmos, bem como todas as coisas
divinas ehumanas.

l6À L. 36, Cum Joga, Dig., De relígíosis.


[7] Tertuliano, em Hpo/OFeZJcus(25),
diz: 'Hs guerras e as vzfórJbspi'oduzemno
mais das vezes a tomada e a ruína das cidades, o que não pode ser feito sem
)fenda aos deuses; a mesma devastação atinge as fortificações e os templos; o
mesmo massacre destrói os cidadãos e cs sacerdotes; a mesma pilhagem invade
as riquezas sagradas e as profanas. Assim, os romanos cometem tantos sacriié
Fios, quantas forem as conquistas; triunfam tantas vezessobre os deuses.
quazltas vezes triunfam sobre nações e os simulacros das divindades cativas
fazem parte de todos os despojos de seus inimigos ve11cidosque são conservados
afó o presente." Mais adiante, acrescenta: 'iSegua/quer sorte conÉrár7b
ocorre
=omas cidades, as mesmas catástrofes são reservadas aos templos e às forti6i-
:açoes
[8] Marcus Tu[[ius Cicero [106-43 a.C.], Zn ].bn'em .4cílo (]V. 55, 122).
[9] Marsílio de Pádua, em Pede/vsorPac/h(cap. 5, 2)1Nicol. Boerius, ,OecJb.LXIX, n'
1; Bossius, -Fbací7'c.
arl)nJh., De adrocompefenfe, n' 101; Cothmann, Ooilsl7.
100, n.'30.
[10] ..:1mPÀ]truo (226)
[11] Idem, 258
CAPÍTULO V- DA DEVASTAÇÃO E DO SAQUE

2. Por isso, Ulpiano [12] diz que o direito público consiste mesmo
nas coisas sagradas. Pausânias [13] diz que era um costume comum
aos gregos e aos bárbaros que as coisas sagradas dependessem daqueles
aue se teriam apoderado das cidades. Assim é que a estátua de Júpiter
Herceu, depois da tomada de 'lYóia, foi concedida a Sthenelus e 'r\icídides
[14] faz menção, em seu livro IV. de muitos outros exemplos desse cos-
tume: "Há essa lei entre os gregos que aqueles que obtêm a soberania
S abre alguma região, grande ou pequena, se tornam donosdos templos'

[15] . Apassagem seguinte de Tácito [16] não difere daque]a: "Nas cida-
des itálicas, todas as instituições religiosas, os templos, as imagens dos
deuses estavam sob a jurisdição e a soberania do povo romano.'

3. Por isso, um próprio povo pode, mudando de vontade, tornar


profano o que era sagrado, o que indicam de uma maneira não obscura
osjurisconsultos Paulo eVenu]eius [17]. Vemosque, pe]a necessidade
dostempos, coisas sagradas foram convertidas para usos da guerra [18]

[}2] L. ], $ 2.
[13] Livro Vl11, 46
[14] Livro IV. 98
[15] Uma passagem de Políbio, citada mais adiante, cap. Xll, $ Vlll, mostra a exis-
tência desse costume
[161Caius CorneliusTacitus [55-120],.4nna/es(111,71).
[\l\ L. enter stipulantem, $ Sacrum, e L. Continuus, $ Cum quis, Díg., De vero.
obiig.
[18] Como fai feito pelos siracusanos, da época de TimoleQnte, como o narra Plutarco,
na vida dessepersonagem(Temo/eon,247 E). Os habitantes de Quitespagam
com dinheiro proveniente de seus vasos sagrados a multa que lhes é imposta
por Mitridates, segundo Apiano(Gue/ra de ]UIÉTJdales,
47). Plínio, em Natura/ik
Hlifor7a(Vll, cap. ult. e XVl1, 28), falando de Porcius Calo, diz: '7bzmz'fzuca'íar
as árvores e os bosques sagrados, fazendo antes um sacrifício, e explicou a
razão 10mesmovo/unia."fila, na guerra contra Mitridates, se apodeT-ou
das
coisas preciosas consagradas aos deuses nos templos de Olímpia, de Epidauro,
de Delfos, segundo o relato de Plutarco e de Apiano. O mesmo restituiu o valor
correspondente(Diodoro da Sicília, em Zrcerpfa de Peiresc). Augusto tirou dos
templos seus tesouros, como informa Apiano, em sua /lisfÓTJa das Guerras
(:yv7k(V. 13). Cassiodoro (Xl1, 20) relata que os Vasos sagrados foram penhora
dos por Agapeto.Heráclio, numa prementenecessidade,converteu em moedas
os vasos da igreja, mas em seguida pagou o preço, como o relata Teofânio. Ver
também Ana Comneno (livro V e VI); Cromer (livro XXIII); o discurso de
Laurenciano, em Bembus(livro VIO. Acrescente-seo que será dito mais no cap
XXI, $ xxm.
H UGO GKOilUS

por aqueles que as haviam consagrado, como lemos que isso foi feito por
Péricles, sob a promessa de restituir logo que possível, por Magon na
Espanta, pelos romanos na guerra de Mitridates, por fila, Pompeu,
César e por outros. Em P]utarco [19], Tibério Graco diz que "nada é tão
sagrado, nem tão santo como as coisas consagradas em honra dos deu-
ses. E apesar disso ninguém impede que o povo se sirva delas, que as
transporte..." Lemos nas (]bnÉrovérsJbsde Sêneca [20], que "no mais
das vezes, os templos são desguarnecidos pelo Estado e que fazem fun-
dir as oferendas para emprega-las no pagamento das tropas". 'lkebatius
[21], jurisconsu]to dos tempos de César, chamava "profano o que, de
religioso ou de sagrado que era, se havia tornado próprio para o uso dos
homens e tornar-se objeto de propriedade" [22] . Germanicus fez uso
desse direito das gentes contra os marcos, segundo o relato de Tácito
[231: "0 sagrado não é mais poupado que o profano e o temp]o mais
célebre dessas regiões, o de Tanfana, está inteiramente destruído." A
isso se refere este verso de Virgílio [24]: "Se sempre respeitei vossos
altares, que os troianos tornaram profanos pela guerra..." Pausânias
[25] deixou por escrito que os donsfeitos aos deuseseram ordinaria-

[19] glZ)er7'us Graccüas(832 A)

[20] Marcus Annaeus Seneca [58 a.C.-32? d.C.], GonÉrove/Bibe (]V. 4).
[2t] ]üacr Saf. (111,4)

[22] Sérvio, no comentário à .Ene/daJZ 713, diz a respeito do temp]o de Ceres:


Envias sabe que esse}ocaljá havia sido transformado em ioga! proeallo:' Faz a
mesma observaçãosobre os cantos 111e IV da .Eheldae também sobre o XII. A
despe\\o da Ecloga Vll t3\z. "Os dons oferecidos às divindades são sagrados e
podem ser ditos dedicados, conquanto não tenham sido profanados.
[23] Caius Corne[ius Tacitus [55-120], ,4nl)ages(1, 51).

[24] Pub[ius Vergi[ius M[aro [71-19 a.C.], .Enez'da(X]1, 778).


[25] Livro Vl11, 46.
1121
CAPÍTULO V- DA DEVASTAÇÃO E DO SAQUE

mente tomados pelos vencedores [26] . Cícero [27], fa]ando de P. Serví]io,


chama isso a lei da guerra e diz: "Levou pelas leis da guerra e pelo
direito que tinha como general as estátuas e ornamentos dessa cidade
inimiga, da qual se havia apoderado pela força e por sua coragem.'
Assim é que Tito Lívio [28] diz que Marcelo fez transportar para Romã
os ornamentos dos templos de Siracusa "tendo-ostomado pelo direito da
guerra". C. Flamínio, falando para M. Fulvius, cita "as estátuas leva-
dase os outros atos que se costuma executar, quando da tomada das
cidades" [29]. Fu]vius [30] também, num discurso, chama isso mesmo
o direito da guerra [31] . César, lembrando num discurso que Sa]ústio
[32] reproduz as coisas que acontecem geralmente aos vencidos, coloca
entre o número de]as a espo]iaçãodos temp]os [33] .

4. Também é verdade, contudo que, se se acredita que alguma


divindade reside num ídolo, é criminoso que seja profanada ou danificada
por aqueles que concordam com essa crença. Nesse sentido, aqueles

126]Virgílio(E17eJda, V. 360) diz: '7}zzdo pe/os gregos das Farias saga«idas de um


fe nojo de Nefuno..." Plutarco(.Fbólus, 187 C, D) narra que ele havia tomado
uma estátua de Hércules em Taranto e que a havia enviado ao Capitólio, dei
xando aos tarantinos seus outros deuses, como estivessem irritados contra
eles.Aqui se aplicam tanto a passagemde Tertuliano que citamos há pouco,
comoa seguinte passagemdo mesmo(.4d ]Uaúones,11,17); '7bí deínde de DTük
quot de gentibus triumphi: manent et simulacro captava;et utique sentiunt,
quis non amant.
[27] Marcas Tu[[ius Cicero [106-43a.C.], in narrem,4cüo (111,21, 57)
[28] Titus Livius [59 a.C.-17 d.C.], ,4b Z:4.óo Condfa (XXV] 40, 2)

[29] Idem, .4b Z]ã'óe aondlfa(XXXV]11, 43, 10)

[30] Ver Políbio, ZxcerpÉa .Lepafl'onum(27).

[31] Titus Livius [59 a.C.-17 d.C.], .4b Z:4.Ée Canal'fa (XXX]X, 4, 12)

[32] Caius Sa[[ustius Crispus [86-36 a.C.], Z)e aonyuratlone (hí77lhae (51, 9)

[33] Ver Cromer (livro XVII); sobre os bens de uma igreja de Antioquia, tomados por
Cosroés,
ver Procópio(Persic.
, 11,9)
Z122 H UGO GROTIUS

que cometeram atos semelhantes sãoacusadospor vezes de impiedade


ou mesmo de violação do direito das gentes, supondo, bem entendido,
que compartilhem uma semelhante opinião. Ocorre diversamente se os
inimigos não pensam o mesmo. Assim é que não somente foi permitido
aosjudeus, mas que lhes foi até mesmoprescrito de abolir os ídolos dos
pagãos(.Z)euferonÓmJoVl1, 5) e a proibição que lhes foi feita de se apto'
priar tem por objeto inspirar aos hebreus um horror tanto m aior pelas
superstições dos pagãos, advertindo-os sobre a impureza pela interdição
até mesmo do contato, não de engajá-los a poupar os cultos religiosos
dos outros povos, como exp]ica Josefo [34], querendo sem dúvida baju]ar
nisso os romanos. De igual modo,a propósito desse outro preceito rela-
tivo à proibição de nomear os deuses dos pagãos, a explica como se fosse
interdito falar mal, enquantoque na realidade a lei não tolerada que
fossem nomeados de uma maneira honrosa ou sem testemunhar que se
tinha horror a isso. Os hebreus sabiam, de fato, por uma advertência
muito clara de Deus, que nesses simulacros não residiam o espírito de
Deus nem os bons anjos, nem a virtude dos astros, como as nações
abusadas o acreditavam, mas demónios maus e inimigos do gênero
humano, de modo que Tácito [35] tinha razão em dizer, descrevendoas
instituições dosjudeus: "Para eles é profano tudo o que entre nós é
sagrado." Não se deve, pois, ficar espantado se lemos que os templos do
culto profano foram mais de uma vez incendiados pelos Macabeus (/
.4ZacaóeusV. 44 e X, 84). Assim é que igualmente, quando Xerxes des-
truiu os ídolos dos gregos, não fez nada de contrário ao direito das gen-
tes, embora os escritores gregos exagerem muito essa ação para

[34] Flávio Josefo, ,4nÉ]küzdndes./udaJcas(]V. 8, 10) e .4duersus Hppio/]em(11, 33)


[35] Caius Corne[ius Tacitus [55-120], HJkéoz7ae(V. 4)
1123
CAPÍTULO V- DA DEVASTAÇÃO E DO SAQUE

torna-la odiosa. Os persas [36] não acreditavam que houvesse divinda-


des nos simu]acros [37], mas acreditavam que o so] era Deus e que o
fogo era uma porção dele. Em virtude da lei hebraica, como diz bem o
mesmoTácito138] , "todos eram repelidos da soleira do templo, excetoos
sacerdotes'

5. Pompeu, contudo, segundo o mesmo autor [39], "entrou no


templo pelo direito da vitória". Segundo o re]ato queAgostinho]40] faz
do mesmo trecho, "não com a devoçãode um suplicante, mas com o
direito de um vencedor".Fez bem em pouparo templo e o que se encon-
trava no templo, embora, como Cícero[41] o diz forma]mente, e]e o fez
por respeito humano e por temor dosdetratores. Ele fez mal ao entrar
nele com desprezo ao verdadeiro Deus, o que os profetas repreendem
também aoscaldeus (DnnJb/V 23).Alguns pensam, por essa razão, que
foi um efeito de uma providência particular de Deus que essePompeu
de que falei tenha sido degolado no cabo de Cassio, promontório do Egi-
to, quasedefronte à Judéia. Se for consideradoo ponto de vista dos
romanos, não havia, nesse fato, nada de ofensivo contra o direito das
gentes. Assim é que Josefo [42] lembra que o mesmo temp]o foi en-
tregue por Tito à destruição e acrescenta que isso foi feito "pela lei
da guerra

[36IQuintus Asconius Pedianus [séc. ] d.C.], Zn Uen'em (11, 1, 48)


[37] Diógenes Laércio diz no começo: "0 uso das esfáfuas eru pro/ó/do pe/os magos
[38]CaiusCorne[iusTacitus[55-120],JDhfanãe
(Y 8).
[39] Idem, J]Jkfar7ae (V. 9)

[40] Aure[ius Augustinus [354-430], De Clwfafe Z)el'(XV]11, 45).


[41] Marcus ']nu]]ius Cicero]106-43 a.C.], /)ro Zucub UaJer70.PZncco(28,68)

[42] Flávio Josefo, Guerras JudaJbas(V], 24 e 34)


1124
H UGO GROTIUS

111.E as coisas religiosas, com uma precaução

O que dissemos das coisas sagradas se deve entender de igual


modo das coisas religiosas. Estas últimas também não pertencem aos
mortos, mas aosvivos, seja a algum povo, seja a uma família. Por isso
é que Pompânio escreveu, na passagem citada, que do mesmo modo que
os lugares sagrados tomados pelos inimigos cessam de ser tais, assim
também os lugares religiosos perdem essaqualidade no mesmo caso.O
jurisconsu[to Pau[o [43] diz que "ossepu]crosdosinimigos não sãoreli-
giosospara nós e que assim podemosconverter para qualquer uso as
pedras com que são levantados". Isso deve, contudo, ser assim entendi-
do que os próprios corpos dos mortos não sejam maltratados, pois isso é
contra o direito das sepulturas que demonstramos em outro local (livro
11,cap. Xll, $ 1, 1) como tendo sido introduzido pelo direito das gentes.

IV Até que ponto o dolo é aqui permitido


Repetirei aqui brevemente que as coisas dos inimigos não são
tiradas dos inimigos, em virtude do dü'eito das gentes, unicamente pela
força, mas ainda que os estratagemas isentos de períidia são considera-
dos como permitidos e mesmo a incitação de outrem à perfídia. O direi-
to das gentes, aparentemente, começoua se mostrar assim indulgente
por essasfaltas menores e freqüentes, como as leis civis com relação à
prostituição e aos juros usurários.

[43] Z. 4, SePu#Ãra, nyb De sepuichro violado.


VI

DODIREITODEADQUIRIR
ASCOISASAPREENDIDAS
NAGUERRA
11

Sumário

1.A respeito da aquisição das coisas apreendidas na guerra;


qual é o direito de na tureza.

11. Qual é o direito das gentes; testemunhos citados a respeito.

111.Quando uma coisa mobiliária é considerada tomada em


virtude do direito das gentes.

IVI Quando, as terras.

VAs coisas que não pertencem aos inimigos não são adquiri-
das pela guerra.

VI. Quedecidir quanto às coisasencontradasnos naüos ini-


migas'?

VII. As coisas que nossos inimigos haviam tirado de outros na


guerra se tornam nossas pelo direito das gentes, o que é
pro vado por restem unhos.
VIII. Recusa-se a opinião que sustenta que as coisas tomadas
pelos inimigos se tornam realmente propriedade dos
cidadãos privados que delas se apoderaram.
X. A possee a propriedadepodemnaturalmente ser adquiri-
das porintermédio de outro.

X. Distinção dos ates de guerra em públicos e privados.


XI. As terras são adquiridas pelo povo ou por aquele quefaz a
guerra.

XII. As coisasmobiliárias e que se movempor si nlesinas, to-


madas por um a to privado, se tornam propriedade dos pri-
ü'adosque delas se apoderam.

XIII. A menos que a lei civilnão disponha de outro modo.

XjlV Aquelas que são tomadaspor ulll ato público se tornam


propriedade do povo ou da quele quefaz a guena.
X\CAigum poder, porém, sobre sel]]eihantes coisas é o] dina} ia
mente concedido aos generais.

XV[. Que levam essas coisas ao tesouro público

XVII. Ou as repartem entre os soldados e como.

XVIII. Ou permitem o sa que.

XIX. Ou éconcedidoa outros.

XX. Ou, repartido em porções, dispõe-se do saque de uma


maneira ou de outra e como.
XXI. Opeculato pode ser cometido com relação ao saque.
XXII. Alguma mudançapode ser trazida a essedireito comum
por um dei ou por um ato de vontade.
XXIII. Assim os despojos podem ser concedidos aos aliados.

XXTV Muitas vezestambém aos súditos, o que é esclarecido


por exe3nplos variados em terra e no mar.

XXVAplicação do que acabadeser dito.


XXV!. Seas coisastomadasfora do território de uma e deoutra
das partes beligerantes são adquiridas pelo direito de
guerra.
XXVII. Comoessedireito de quefalamosépróprio da guerra
solene.
1127
CAPÍTULO VI - DO DIREITO DE ADQUIRIR AS COISAS APREENDIDAS NA GUERRA

1.A respeito da aquisição das coisas


apreendidas na guerra; qual é o direito de natureza
1.Além da impunidade de certos fitos contra os homens, de que
tratamos até o presente,há ainda outro efeito próprio da guerra solene,
em virtude do direito das gentes. Certamente, segundo o direito de na-
tureza, essascoisassão obtidas numa justa guerra que sãoiguais aa
que nos é devido e ao que não podemos obter de outro modo(livro 11,cap.
Vll, $ 11)ou causam ao que nos prejudicou um dano, no limite justo do
castigo,comofoi dito em outro local (livro 11,cap. XX). Em virtude
desse direito é que Abraão deu a Deus a décima parte do saque [1] que
havia feito aos cinco reis, segundo a explicação que dá dessa história
que seencontra no Gênesis (Cap. XIV), o divino autor da Epístola aos
Hebreus (Vl1, 4). Costume segundo o qual os gregos também, os
cartagineses e os romanos consagraram a seus deuses, como Apoio,
Hércules, Júpiter Feretrio, a décima parte do saque.Mesmo Jacó, dan-
do vantagem a José em detrimento de seus irmãos, diz: "Eu te dou uma
parte a mais que a teus irmãos, a que obtive dos amorreus com minha
espada e meu arco (Gênesis XLVl11, 22)." Nessa passagem a palavra
"obtive"]2] parece ser tomada em estilo profético por "obterei certamen-
te" e se atribui a Jacó o que os descendentes, tomando o nome dele
deviam fazer, como se a pessoa do pai e dos filhos fosse a mesma. E
melhor interpretar assim do que aplicar com os hebreus essaspalavras
a essapilhagem de Siquém que muito tempo antes havia ocorrido por
meio dos filhos de Jacó, pois Jacó, sendo homem de probidade, o desa-
provou sempre como acompanhado de perfídia, como se pode ver no
Gênesis (XXXIV, 30; XLIX, 6).

[1] Deu os víveres a seus servos e uma parte do saque a seus aliados. Ver.Josefa, a
respeito dessahistória, e o que será dito no cap. XVI, $ 111.
12]O parafrasta caldeu explica esse fato por oraçõesdirigidas a Deus que, mostran
do uma benevolência particular, havia conservadoSiquém para Jacó e sua
posteridade
!128
H UGO GROTIUS

2. Encontram-se também outras passagens em que o direito de


saque foi aprovado por Deus nos limites naturais de que falei. Deus, ao
falar em sua lei(-DeuferonÓmJO
XX, 14) de uma cidadetomada de as-
salto depois de ter rechaçado as propostas de paz, se explica assim: "Tu
pilharás todos os seus despojose tu desõ'utarás do saque dos inimigos
que Deus te dará." Os membros da tribo de Rubem, de Gad e uma parte
daqueles da tribo de Manassés se conta (/C?lózzüasVI 20-22) que vence-
ram os itureus e seus vizinhos e que tiraram deles muitos despojos.
Acrescenta-se como razão que haviam invocado a Deus na guerra e que
Deus, sendo propício, os havia atendido. O mesmo é contado que o pie-
doso reiAsa (/7 CzdzlJbasXIV.13), tendo invocado a Deus, havia conse-
guido a vitória bem como os despojos sobre os etíopes que o ameaçavam
com uma guerra injusta, o que é importante observar, pois essas armas
foram tomadas não em virtude de um mandamentoparticular, masem
virtude do direito comum.

3. Josué, por seu lado, acompanhado pelos membros que citei da


tribo de Rubem, de Gad e de uma parte daquela de Manassés, assim se
exprime (JosuéXXl1, 8): "Que postais tomar parte com vossosirmãos
nos despojos dos inimigos." Davi, enviando aos anciãos hebreus os des-
pojos conquistados dos amalecitas, fez valer seu presente, dizendo: "Que
isso vos seja dado dos despojos feitos aos inimigos do Senhor" (/Saque/
XXX, 26). Como disse Sêneca [3] , é que a mas bela coisa para os homens
de guerra é enriquecer alguém comosdespojosdo inimigo. Há também
leis divinas sobre a partilha do saque,em Números (XXXI, 27). Fílon
[4] diz que há, entre as maldições da lei, que o campo seja ceifado pelos
inimigos, de onde, como conseqüência, a fome para todos os seus, a
abundância para os inimigos.

[3] Lucius Annaeus Seneca[O[? a.C.-65d.C.], Z)e Beneálc7)k


(111,33)
[4] De Dv/vs (1)
1129
CAPÍTULO VI - DO DIREITO DE ADQUIRIR AS COISAS APREENDIDAS NA GUERRA

11.Qual é o direito das gentes;


testemunhos citados a respeito

1. Segundo o direito das gentes, não somente aquele que faz a


guerra em virtude de uma causa legítima, mas também todo indivíduo
numa guerra solene setorna, semlimites, nem medida, proprietário
das coisas que tirou do inimigo, de modo que ele próprio e aqueles que
detêm seu título devem ser protegidos na posse de semelhantes coisas
por todas as nações,o que se pode chamar propriedade, para o que
concerne os efeitos externos. Côro diz, em Xenofonte [5] : "É uma máxi-
ma eterna entre todos os homens que, quando se toma uma cidade dos
inimigos, seus bens e seus tesouros caiam em poder dos vencedores.'
Platão [6] disse: "Os bens que o vencido possuiu se tornam todos pro-
priedade do vencedor." O mesmo elencou a]hures [7] entre as maneiras
quasenaturais de obter, aquelas que se faz por direito de guerra que ele
chama também aquisição por via de pilhagem, pelo combate e em se
apoderando, tendo nisso o assentimento do mesmo Xenofonte [8] que
citei, no qual Sócrates impele Eutidemos, interrogando-o até o ponto de
confessar que não é sempre injusto despojar alguém, como quando isso
ocorrecontra um inimigo.

2. Aristóte]es [9] também é de opinião que "é uma lei e como um


acordo comum entre os homens que as coisastomadas na guerra sejam
propriedade daqueles que as tomam". Aisso se referem estas palavras
de Antífanes [lO] : "É de desejar que os inimigos tenham muitos bens e

[5] 1nsÉzf.0Jv7'(V. 5, 73)


[6] .De Z,e#fÓus(1, 2)
[7] SopbJ)Ó.(4, 7, 8).
[8] Goma. (]V, 2, 15)
[9] Pojyb'aa (1, 6)

[10] Estobeu, 54, 41.


1130
H U GO GROTIUS

pouca coragem, pois por esse meio essesbens não serão para aqueles
que os têm, mas para aqueles que os tomam." Em P]utarco [11], 1;3da

de.4/exanó'e, "os bens que haviam pertencido ao vencido são e devem


ser chamados bens do vencedor". O mesmo diz em outro local: "Os bens
daqueles que são vencidos nas batalhas passam aos vencedores como o
prêmio de sua vitória." Essas palavras são tiradas de Xenofonte, no
segundolivro de Educaçãode Côro[12]. Fi]ipe diz numa carta aos
atenienses [13] : "Todos temos cidades que nos foram deixadas por nos'
sos ancestrais ou das quais tomamos possepelo direito da guerra."
Esquino [14] diz: "Se numa guerra empreendida contra nós, tomastes
uma cidade pelas armas, vós a possuis legitimamente pela lei da guerra.'

3. Marce]o, em Tiro Lívio [15], diz que aqui]o que ele subtraiu dos
siracusanos o tirou peia direito da guerra [16] . Os embaixadores roma-
nos diziam a Filipe, a respeito das cidades da Trácia e outras, que se
Filipe as tivesse tomado pela guerra ele as possuiria pelo direito de
guerra [17], como prêmio pela vitória. Massinissa dizia que possuía, em
virtude do direito das gentes,as terras que seupai havia tirado na
guerra aoscartagineses]18]. Assim é que em Justino]19], Mitridates

[11] Hfa .4/exancül(676 A). No mesmo livro(614 A) se diz: 'Z)s vencedores adguúem
para si as coisas que pertencem aos inimigos.
[12] Çrz7baodJb
(11,3, 2).
[13] Demóstenes, Ed)Jsfu/a .fÜJ7ÜypJ (22)
[14] Z)e .4ZnJeOÓ 'fa ZegaZl0/7e(33)
[15] Titus Livius [59 a.C.-17 d.C.], .4ó ZZ/óe Canal'za (XXy1, 31. g)
[16] Diodoro da Sicília(arcerpfa de Peiresc, n.' 467) diz: '?\Uo se deve abandonar as
:Digas que secam conquistadas pelas armas e adquiridas pelo direito de guer-
ra."Os godos, em Agatias (1, 5), diziam do rei Teodorico, depois que ele venceu
)üoacro, que "se apoderoupor direito de guerra de tudo o que havia pertencido
a esseúltimo
[17] Titus Livius [59 a.C.-17 d.C.], ,4ó C/róe Cóndlfa (XXXIX, 29, 2)
[18] Idem, .4ó orbe aoncüfa(XL, 17, 4)
[19] Livro XXXVl11, 5, 6.
1131
CAPÍTULO VI - DO DIREITO DE ADQUIRIR AS COISAS APREENDIDAS NA GUERRA

diz que "não havia retirado seu filho da Capadócia da qual, vencedor, se
havia apoderadoem virtude do direito dasgentes".Cícero]20] diz que
Mitilene se havia tornado propriedade do povo romano pela lei da guer-
ra e pelo direito da vitória. O mesmo [21] diz que certas coisas começa'
ram a ser bens próprios pela ocupação do que era desocupado ou pela
guerra, isto é, que se tornaram propriedade daqueles que se apodera-
ram delas pela vitória. Dion Cássio [22] as chama "coisas que passam
dosvencidos aos vencedores". De igual modo, Clemente de Alexandria
[23] diz que as coisas dos inimigos são tomadas e obtidas pelo direito da
r
guerra
4. O jurisconsulto Gaio [24] diz: "As coisas que são tiradas dos
inimigos se tornam logo, pelo direito das gentes,propriedade daqueles
que as tomaram." Teóí]]o125] classifica essa aquisição de natural(Qualalv
KTHatv) em suas /nsúóujç(jes Gz'qgas, do mesmo modo queAristóteles
[26] havia dito também que "a guerra traz consigouma maneira de
obter natural". Arazão é que a causa aqui não é considerada, mas que
se tem em vista o fato puro e simples e que o direito se origina desse
fato, do mesmo modo que Nerva, filho, dizia, de acordo com o relato do
jurisconsulto Paulo [27] , que a propriedade das coisas havia começado
por uma possenatural e que ainda se percebeum vestígio nas coisas
que sãotomadas na terra, no mar, no céu e igualmente nas coisas
tomadas na guerra que se tornam todas logo propriedade daqueles que
por primeiro tomaram posse delas.

[20] Marcus Tullius Cicero [106-43 a.C.], Oonfra J?unam (11)in Z)eZ'ege .4graHa (ll
16. 40)
[21] Idem, De OáZlclzs
(1, 7, 21)
[22] Livro XLI, 56.
[23]SÜomafa(1, 23).
Va4À1,.
5, Naturalem, $ ult., Dig., De acquir. rerum domin.
t25À Tit. De rer. divãs.($17, Instit. ll, l).
[26]De RePuÓ/fca
(1,8)
[2]\ L. 1, $ 1, i)íg., De acquir. posa
!132
H U GO GROTIUS

5. Mais, as coisas que são subtraídas dos súditos dos inimigos


sãotambém tiradas dosinimigos. Assim é que Dercyllidas argumenta,
em Xenofonte [28], de que Farnabaz, sendoinimigo dos lacedemõnios,
sendo Mania súdita de Farnabaz, os bens de Mania estavam no caso
sendo legitimamente tomados, em virtude do direito de guerra.

111. Quando uma coisa mobiliária é considerada


tomada em virtude do direito das gentes

1. De resto, nessa questão da guerra, foi concordado entre as


nações que seja considerado como tendo-se apoderado de uma coisa aquele
que a detém de tal modo que o outro tenha perdido a esperança provável
de recupera-la ou que a coisa esteja ao abrigo de toda recuperação, se-
gundo a expressão de Pompânio [29] numa questão similar. Isso ocorre,
em matéria de coisasmobiliárias, de tal maneira que sãoditas toma-
das,quandotiverem sido conduzidaspara ointerior dasfronteiras, isto
é, dos lugares dos inimigos. Uma coisa, de fato, se perde da mesma
maneira que retorna por direito de postlimínio. Ela retorna quando
começou a se encontrar no interior dos ]imites do Estado [30], o que é
explicado a]hures [31] pela expressão no interior das praças. Paulo dis-
se expressamente, ao falar de um homem, que perdeu quando saiu de
nossos limites e Pompõnio [32] exp]ica que é tomado na guerra aquele
que os inimigos tomaram dentre osnossoseque conduziram dentro de
suas fronteiras, pois enquanto não for conduzido nas praças dos inimi-
gos continua sendo cidadão.

[28] fZikZ. Graec. (111,26)


:2J3À
L. 44, Pomponius, Dig., De acquir. rer. domin.
3QÃ L. 19, Postliminium, $Pastliminio, Dig., De captivis.
3\À L. 5, Postliminii, $in bello, dieta titulo; Inst. de rer. divãs.,$1tem ea
[s2] z,. õl / /., z)jk .xz;.IX .rs.
v' CAPÍTULO VI - DO DIREITO DE ADQUIRIR AS COISAS APREENDIDAS NA GUERRA ,,,. r
2. Segundo esse direito das gentes, a regra foi a mesma para o
homem e para a coisa. De onde é fácil compreender que aquilo que é dito
em outro ]oca] [33], ou seja, que as coisas tomadas se tornam logo pro'
priedade daqueles que delas se apoderaram, deve se entender sob certa
condição, a saber de continuar na posse delas. Parece seguir-se que no
mar os navios e as outras coisas não são consideradascapturadas senão
quando sãoconduzidas para os portos ou ao local em que se mantém
toda a 6'ota, pois então se começaa perder a esperança derecupera-las.
Vemos, porém, que foi introduzido por um direito das gentes mais re-
cente [34] entre os povos europeus que tais coisas sejam consideradas
tomadas, quando tiverem estado em poder dosinimigos durante vinte e
quatro horas [35] .

'lb

IV Quando, as terras
1.As terras não são consideradas tomadas logo que forem ocupa'
das [36] , pois embora seja verdade que a parte de um território que um
exército invadiu com grandes forças seja possuído por ele durante esse
tempo, como foi observado por Ce]so [37] , contudo uma possequalquer
não basta para efeito de que tratamos, mas é preciso uma posse dura-
doura. Por isso os romanos consideraram dessemodo o terreno em que

\33Àínst. dicto loco, L. 5, Naturalem, $1tem de acquir. rer. domin.


[34] Cbnsu/a u Marzk (cap. 283 e 287); Gonsf. Ga//lca(livro XX, tít. 13, art. 24).
l3SI Isso se observa também em terra, como se pode verificar em De Thou (livra
CXlll, para o ano de 1595). Isso provém das antigas leis gei'mânicas,a exemplo
do que havia sido estabelecido não sem razão entre os alemães, com relação.ao
animal selvagem ferido, como isso havia sido estabelecidotambém pela lei. dos
lombardos (livro 1. tít. XXll, $ 6). Alberico Gentili(HJspanJC. .4dvocaf., livro 3) diz
que a mesmacoisa se pratica na Inglaterra e no reino de Castelã
[36] Com. a Lápide, ]n Gen., cap. .X:rBMo]ina, Dlspuf. ]]8.
t31\ L. 18, Quod meio, Dig., De acquir. ve} amitt. poss-
1134
H UGO GROTI US

Aníbal havia estabelecido seus acampamento, fora das portas, como


não estando perdido porque nesse período não foi vendido menos caro do
que havia sido antes [38] . Não será considerado tomado, pois, senão o
terreno que está incluído em fortificações duradouras, de modo que a
outra parte não possa abertamente nele penetrar a não ser depois de o
+.-i..en...,.l.

2. A origem do designativo fe.rz7fór7b,extraída por Século Flaco


do ferro/'a inspirar aos inimigos, não parece menos provável que a de
Varrão [39], que o extrai de ferere, ou de Frontin, que o faz provir de
fe/:m ou do jurisconsu]to Pompõnio [40] que o faz derivar do direito que
os magistrados têm de causal"óen'ol".Assim é que Xenofonte [41], no
livro -Z)os /mposfos, diz que em tempo de guerra a posse de um territó-
rio se mantém por meios de defesa que ele mesmo chama de muralha,
trincheira.

V As coisas que náo pertencem aos inimigos


não são adquiridaspela guerra

Claro é também que para que uma coisa se torne nossa pelo di-
reito de guerra é necessário que tenha pertencido aos inimigos, pois as
coisas que na verdade estão junto dos inimigos, em suas praças fortes,
por exemplo, ou no interior de suas trincheiras, mas cujos donos nãa
são os súditos dosinimigos, nem animados de espírito hostil, não po-
dem ser conseguidaspela guerra, como aparece entre outras coisas,

[38] T[tus Livius [59 a.C.-17 d.C.], .4Z) Z:/róeGondlfa (XXV], 11, 6)

[39] Marcus Terentius Varro Reatinus [116-27 a.C.], .De Zahgua ZaZína (V. 21)
[40] .Z,.2 q / 8 DTg., .Z;..76.
[41] De Uecélgz].
(IV 43)
1135
CAPÍTULO VI - DO DIREITO DE ADQUIRIR AS COISAS APREENDIDAS NA GUERRA

pela passagemjá citada de Esquina [42] , em que se mostra queAnfípohs,


que era uma cidade dosatenienses, não tinha podido, pela guerra de
Filipe contra seushabitantes, setornar propriedadedopróprio Filipe.
Aqui a razão faz falta e esse direito de mudar pela força a propriedade é
muito odiosopara que deva ser ampliado.

VI. Que decidir quanto às coisas


encontradas nos navios inimigos?

Por isso é que se costuma dizer que as coisas encontradas nos


navios dos inimigos são consideradas como pertencentes aos inimigos
[43]; na verdade, isso deve ser aceito como sendo uma regra bem funda
da do direito das gentes [44], mas comoindicando uma espéciede pre-
sunção que, contudo, pode ser destruída pelas fortes provas em sentido
contrário. Assim é que já outrora, na nossa Holanda, no ano de 1338,
durante o fogo da guerra com as cidades hanseáticas, encontro que isso
foi julgado em pleno senado e que de coisa julgada passou a lei.

[42] ,De Ma/e Oózfa, .Leg. #3.

[43] Os navios, porém, pertencentes a amigos não são boa presa por causa dos
efeitos do inimigo que está próximo, salvo tenham sido colocadoscom o con-
sentimento do comandante do navio (.L. safem., .Dzk,,Z)e Puó]/caril's e6
Uacfzkallóus). Ver Rodrigo Suarez(livro Z)e [üu .4Zarlh, consi]. ]], n.' 6). Acho
que é assim que devemser interpretadas as leis da França que submetemos
navios à presa em razão das coisasque nele se encontram; e as coisas,em razão
dos navios: tais são as ordenações de Francisco 1, ano de 1543, cap. 421 de
Henrique 111,do mês de março de 1584, cap. 69; a lei de Portugual, livro 1, tít
XVIII. Se não há acordo a respeito disso, não há o que é dos inimigos e que
tomba comopresa (Meursius, Z)aJZ/a.,livro 11).Assim é que, na guerra entre os
venezianos e os genoveses, foram vistoriados os navios dos gregos e foram
obrigados a sair os dos inimigos que podiam se esconder no local. Nicéforo
Gregaras(livro IX). Ver também Crantzius(Saxonic., livro 11)e Alberico Gentili
C4dvoc. #JSpan., l, IX)

[44] Gonsu]. Ma/2's, c. 273


1136
H UGO GROTIUS

VII. As coisas que nossos inimigos haviam tirado


de outros na guerra se tornam nossas pelo direito
das gentes, o que é provado por testemunhos
l . Isso está fora de toda controvérsia se considerarmos o direito
das gentes, isto é, que as coisas que foram tiradas por nós de nossos
inimigos não podem ser reivindicadas por aqueles que as haviam pos-
suído antes de nossosinimigos e as haviam perdido pela guerra, porque
o direito das gentes tornou proprietários, quanto à propriedade exterior,
primeiramente osinimigos e nós a seguir. Por essedireito entre outros
é que Jefté (JuJ9esXI, 23, 24, 27) se defende contra os amonitas porque
oterreno que osamonitasreivindicavam havia sidotirado dosamonitas
pelo direito de guerra, como outra porção do território havia passado
dos moabitas aos amorreus, dos amorreus aos hebreus. Igualmente assim
é que Dava(/SaJnue/XXX, 20) se apropria e divide o que havia subtraído
dos amalecitas, o que os ama]ecitas haviam tü'ado dos fi]isteus [45] .

2. Titus Largius, em Dionísio de Ha]icarnasso [46], quando os


vo[scos [47] rec]amavam suas antigas possessões,exprimiu assim sua
opinião no senadoromano: "Nós romanos cremos possuir legítima e
justamente o que conquistámos pela lei da guerra e não somoscapazes
de tão louca facilidade que possamosdecidir em destruir essesmonu-
mentos gloriosos de nosso valor, entregando nossasconquistas aos que

[45] Assim Rezin, rei da Síria, deu para habitar a cidade cle Elot que antes havia
pertencido aos idumeus, não aos idumeus, mas aos sírios, segundo a informa-
ção dos masoretas(/7 .RezaXVI, 6)
[46] livro VI, 36.

[47] Plutarco( Hda de #(âmuJo,35) diz a mesma coisa dos veios: 't)s pejos posfuJa-
?am no in51cioda guerz'aa entrega de IF'idei3es,comocidade que lhes pertencia,
pretensão não somente ilÜusta mas ridícula por parte de gente que não havia
prestado socorro algum aos ãdenates em perigo e em luta com os romanos e
ainda M, depois de ter deixado matar as pessoas, reclamar as casas e as terras,
das quais outros ora estavam de posse por direito de guerra."
!137
CAPÍTULO VI - DO DIREITO DE ADQUIRIR AS COISAS APREENDIDAS NA GUERRA

uma vez as perderam. Muito pelo contrário, estamos persuadidos que


não somente devemos informar a respeito disso nossosconcidadãos que
vivem no presente, mas devemostambém deixar isso aosque vierem
depois de nós; caso contrário, abandonando o que conquistámos estabe-
leceríamos contra nós mesmos uma lei que só temos o costume de esta-
belecer contra os inimigos." E na resposta dos romanos aos aurúncos
[48] : "Nós romanos somos da opinião que as coisas que alguém canse'
guiu por sua bravura contra seus inimigos passam à posteridade como
coisas que conquistou com o mais incontestável de todos os direitos.:
Por outro lado, na resposta aos volscos, os romanos falam desse modo
[49] : "Achamos que a melhor maneira de adquirir é pelo direito de guer-
ra. Como não fomos nós que estabelecemos este dh'eito, mas que deriva
antes dos deusesque dos homens e que, além disso, está em uso em
todas as nações, tanto gregos que bárbaros, nada vos cederemos com
brandura e não renunciaremos ao que conquistámos pela guerra. Isso
seria, de fato, a pior das vergonhas, a de perder por temor ou por estu-
pidez o que conquistámos por nossa bravura e intrepidez." Assim é que
se diz também na resposta dos samnitas [50] : "Conquistámos estas coi-
sas com as armas, o que é um direito de todo legítimo."

3. Tito Lívio [51], depois de ter contado que um terreno perto de


Luca havia sido dividido pelos romanos, assim designa o terreno: "Essa
terra havia sido tomada doslígures. Havia pertencidoaosetruscos an-
tes de ter sido propriedade dos lígures." Apiano [52] observa que a Síria

[48] Dionísio de Halicarnasso, V], 32.


[49] Idem, livro V]]], ]O
[50] .Ekcerpfa ZegaÉlonum

[51] Titus Livius [59 a.C.-17 d.C.], .4b C/Fóe Oondlfa (XLI 13, 5)

[52] M'ÉÜHdafes (106)


}138
Huoo GROTIUS

havia sido retida em virtude desse direito pelos romanos e que não foi
entregue aAntíoco oPiedosoa quem Tigranes [53], inimigo dosroma-
nos, havia tomado. Justino [54], seguindo Trogo, faz responder ao mes-
moAntíoco, por Pompeu, que "como não a havia despojado de seus Esta-
dos, enquanto os possuía, não queria tampouco, depois de ter cedido seu
direito a Tigranes, Ihe entregar um reino que não sabia defender". Os
romanos se apropriaram também daspartes da Gá]ia]55] que os ombros
haviam tomado dos gau]eses [56].

VIII. Recusa-se a opinião que sustenta


que as coisas tomadas pelos inimigos
se tornam realmente propriedade
dos cidadãos privados que delas se apoderaram

Uma questão mais grave é aquela de saber por quem, numa


guerra pública e solene, são adquiridas as coisas dos inimigos, se é pelo
próprio povo ou pelos cidadãos privados que fazem parte do povo ou que
se encontram no povo. Os intérpretes modernos do direito [57] variam
muito, de fato, sobre o assunto. A maioria dentre eles, tendo lido no

[53] Apiano(Syrzbc., 49) assim se exprime: '?UZoólusóo que os se/éucfdnsderruba'


ios por Tigranes ocupema Síria, antes que os romanos, vencedoresde
ngranes. "Em outro local(MI'fibrJdafes, 106), diz: 'Z7e achara gu fenda expu/
se dessaregião o vencedorde Antíoco, por isso mesmo teria conquistado a
mesma região paJ'a os rama ]os." O próprio Antíoco, em Políbio(.8rcerpfa
Legatioilum, h ' 'iaà, l3:u que "era de opinião que as possessõesadquiridas pela
guerra eram as mais sólidas e honrosas
[54] Livro XL, 2, 4.
[55] Apiano, .BeZÍ (:yta7.(1, 29)
[56] Os francos não entregaram aos romanos as terras da ltália que os godos lhes
haviam cedido(Procópio, Goffhb., IV. 24). Ver o que diz o rei da Suécia, em De
Thou (livro LXXVI, com relaçãoao ano de 1582).
[57] Bartol,, adZ. .g8 SI quJd óei7o,nlb, Z)ecapZltTs;Alexandr. e Jason, ac/.L .Z,Dug.,
De acquír. posa, I'mngel.,ad $17, Instit. de reruin divãs., $1tem quae ex hostibuá
?abana\t., ad Can. sicut. de jul'ejuraJldo, n.' 7,'Thom. fitam., Decís. Neapolit
77, n. ' /Z Mart. Laudens., -De .Beiço. guaesÉz o 4
1139
CAPÍTULO VI - DO DIREITO DE ADQUIRIR AS COISAS APREENDIDAS NA GUERRA

l
direito romano que as coisas tomadas pertencem aos que as tomam e no
conjunto dos cânones que os despojos se repartem seguindo o que agra-
da ao público, uns apósoutros dizem,comoisso ocorreordinariamente,
que as coisas tomadas pertencem primeiramente e de pleno direito aos
que as tomam com as próprias mãos, mas que contudo devem ser reme-
tidas ao general para que faça a partilha entre os soldados.Esta opi-
nião, sendotão comum quanto falsa, deve ser refutada comtanto maior
cuidado, para que isso sirva de amostra para ver como é pouco seguro, r':
h

nesse tipo de discussão, dar fé a semelhantes autoridades. Não há dúvi-


da seguramente que uma ou outra dessasmáximas tenha podido ser
estabelecida pelo consenso das nações ou que as coisas tomadas perten- t'

ciam ao povo em guerra ou seriam propriedade de quem delas lançasse


mão. Investigamos o que pretendiam e afirmamos que foi do agrado das
nações que as coisas dos inimigos estivessem, com relação aos inimi-
gos,numa situação não diferente daquela das coisas que não pertencem
a ninguém, comojá o provámosanteriormente ($ 11,4), segundoas
palavras do filho de Nerva.

IX. A posse e a propriedade podem naturalmente


ser adquiridas pelo intermédio de outro
1.As coisas que não são de ninguém se tornam na verdade a
propriedade daqueles que as tomam, tanto por intermédio dos outros,
como por si mesmos. Assim, não somente os escravos ou os filhos, mas
os homens livres que alugaram seu serviço a outros para a pesca, a
captura de pássaros, a caça, a pesca de pérolas passam logo aos que eles
servem o que conseguiram. O jurisconsu]to Modestino [58] disse com
razão: "0 que se consegue naturalmente, como a posse,a conseguimos
por quem quer que seja, contanto que queiramos possuir." Paulo diz em

t58ÃL 53, ea quae Díg., De acquir. domin.


!140
H UGO GROTIUS

suas Sentenças (]bZeÉadas [59] : "Conseguimos a posse pela vontade e


pelo corpo, sempre pela vontade que nos é própria, mas por nosso corpo
ou pelo corpo de outrem." O mesmo diz sobre o edita [60] : "A posse nos é
garantida por intermédio de um.ihandatário, de um tutor ou de um
curador", o que ele explica assim: se agem com a intenção de se servir
de nós. Assim é que, entre os gregos, aqueles que combatiam nos jogos
olímpicos conseguiam os prêmios para aqueles que os enviavam. A ra-
zão é que naturalmente um homem, querendo, é o instrumento de ou-
tro homem que o quer, como dissemostambém em outro local.

2. Por isso é que a diferença que se coloca entre as pessoaslivres


e os escravos, com relação à aquisição, é de direito civil e se aplica
propriamente às aquisições civis [61], como isso resulta da passagem
citada de Modestino. O imperador Severo, contudo, as aproximou mais
a seguir das aquisições naturais, levando em consideração nisso não
somente a utilidade, como o declara ele mesmo, lhas também a juris-
prudência [62] . O que se diz que se pode fazer por outro o que se pode
fazer para si mesmo e como é uma coisa totalmente diversa fazer para
si mesmo ou para outrem, ocorrepois independentemente do direito
civil
l

X. Distinção dos atos de guerra


em públicos e privados

Deve-sedistinguir, em nossa questão, entre os fatos de guerra


verdadeiramente públicos e os fatos privados que ocorreram por ocasião
de uma guerra pública. Para esses,uma coisa é adquirida para ospri-

[59] Livro V. tít. 2

BüRL. 1, $per procur« Dig., De acquir.pois.


StX L. 56, Quaecumque,Dig., De oblig.;L. 38, Stipulatio, $17, Dig.. De verb. oblig.
$$\ L. 1, Cod., Per qual pers.; Can. Potest e Can. Quifacit, De Reg. Juras.
CAPÍTULO VI - DO DIREITO DE ADQUIRIR AS COISAS APREENDIDAS NA GUERRA

vados, primeira e diretamente; para aqueles,é adquirida para o povo.


Em Tito Lívio [63], Cipião raciocina segundo essedireito das gentes,
frente a frente com Massinissa:"Sifax foi vencido efeito prisioneiro sob
os auspícios do povo romano. Por isso é que ele próprio, sua esposa, seu
reino, seu território, suas cidades, seus habitantes, enfim tudo o que
pertenceu a Sifax é conquista do povo romano." Antíoco o Grande não
argumentava de outro modopara provar que a Celessíria sehavia tor-
nado propriedade de Seleuco, não de Ptolomeu, porque a guerra havia
sido feita por Seleuco,a quem Ptolomeu só havia prestado seu concur-
so. Essa história está em Po]íbio [64] .

XI. As terras são adquiridas pelo povo


ou poraquele quefaz a guel'ra
1.As coisas do solo não se tomam ordinariamente senão por um
ato público, fazendo entrar um exército, colocando guarnições. Por isso
é que, como diz Pompânio [65] , "o território tomado do inimigo é acres-
cido ao tesouro público", isto é, como o expõe no mesmo local, "não faz
parte do saque", tomando a palavra saque em seu sentido estrito.
Salomão, prefeito do pretório, diz em Procópio]66], que "os prisioneiros
e as outras coisas caem nas mãos dos soldados como saque, isso não é
desprovido de razão(o que se deve entender na condição que isso sefaça
como consentimento público, como exporemos no parágrafo XVll e se-
guintes), mas as terras pertencem ao príncipe e ao império romano.'

ÍÕg Meus Livius [59 a.C.-17 d.C.], .4ó Urbe Gond'fa (XXX, 14, 9)
[64]LivroY 67
[65] L. 20, D. XL]X, 15
[66] Uanda#c. (11, 14). Ver também o que se segue. Severo deu igualmente aos
oficiais e aos soldados destacados para guardar as fronteiras as terras que
haviam tomado aos inimigos. Lamprídio faz menção disso. No tratado de confe-
deração entre os cantões suíços,consta que as cidades e as fortalezas tomadas
serão devolvidas à confederação. Isso se encontra em Simler, em várias pas
vagens
!142
H UGO GROTIUS

2. Assim entre os hebreus [67] e os ]acedemânios, o território


sobre o qual se havia lançado mão foi repartido por sorteio. Assim os
romanos [68] retiveram as terras conquistadaspara dá-las à agricultu-
ra, depois de ter deixado por vezes por honestidade uma módica parte ao
antigo dono ou as venderam ou as consignaram a colonos ou as carrega-
ram de impostos. Os testemunhosdisso existemem toda parte nasleis,
na história e nos tratados dos agrimensores. Apiano diz no livro primei-
ro da Gue/va O7w7[69] : "Depois que os romanos subjugaram a ltália,
despojaram os vencidos de uma parte de suas terras." No segundo livro
[70J: "Mesmo dos inimigos vencidos não tiravam todas as terras, mas
tomavam uma parte delas." Cícero observa em seu discurso "De Dome
sua" aos pontíHices[71] que os campos tomados dos inimigos eram por
vezes consagrados pelo general, mas por ordem do povo.

XII. As coisas mobiliárias e que se movem


por si mesmas, tomadas por um ato privado,
se tornam propriedade dos privados
que delas se apoderam

1. Quanto às coisas mobiliárias e àquelas que se movem por si


mesmas, são tomadas ou a serviço público ou fora desse senriço. Se fora
do serviço público, pertencem aos cidadãos privados que se apoderam
delas. A isso é que se devem referir estas palavras de Celso [72]: "As

[67] Entre os próprios hebreus, o rei tomava para sua parte terras conquistadas pot'
direito de guerra, tanto comocada uma das tribos. Isso constano título'do
Talmud, onde se trata do rei
B8« L. 11, Luc. Titius, Dig., De evictionibus;L. 15, Item si verb., $1, De rei vind.
[69] BeZ CI'v2Z(1,7)
[70] .Be/y.(XtdA(11,140)
[71] Marcus Tullius Cicero [106-43 a.C.], .De Z)omo sua ad /)onÍ7XJaes (49. 128)
:t2h L. 51, Transfugam, $ 1, Dig., De acquir. rer. domin.
CAPÍTULO VI - DO DIREITO DE ADQUIRIR AS COISAS APREENDIDAS NA GUERRA
}143

coisas inimigas que se encontram entre nós não são públicas, mas per'
vencem aos que as ocuparam." aue se enconímzz2 entre n(ás, isto é, que
se encontram entre nós no começoda guerra. O mesmo princípio era
observado com relação aos homens na época em que os homens eram
colocadosa esserespeito entre as coisas tomadas. Há sobre esseponto
uma notável passagem de Monino [73] : "Aque]es que, durante a paz,
se mudaram para junto de outros povos,no casoem que uma guerra
tivesse eclodido repentinamente, se tornam escl'avosdaqueles junto aos
quais, ora já inimigos, são surpreendidos por sua má sorte." Assim é
que se deve ler, não por seu fato ou por sua convenção, como trazem os
textos. O jurisconsulto atribui isso à má sorte porque nada fizeram
para merecer cair na escravidão [74] , pois é tradição co]ocar tais coisas
sobo signo do destino. Do mesmosentido sãoestas palavras de Névio
[75] : "Pe]o destino é que em Romã os Metellus se tornaram cônsules",
isto é, sem que seja por seu mérito.

2. Disso provém ainda que, se os soldados tomam alguma coisa,


não estando sob as armas ou na execuçãode uma ordem recebida, mas
agindo segundo o direito comum a todos ou em virtude de uma simples
permissão, eles a adquirem logo para eles. Eles a tomam, de fato, não
como instrumentos de um outro. Tais são os despojos que são arranca-
dos ao inimigo num combate singular, tais são mesmo as coisas que são
tomadas longe do exército, além de 10 mil passos, diziam os romanos,
como veremos logo a seguir ($ XXI, 3), nas excursões livres e não co-
mandadas. Os italianos chamam hoje essaespécie de captura de corre-
ria e a distinguem do saque [76] .

LISAL. 12, in bebo, Dig., De captivÍs et postliminio.


[74] Assim é que Sérvio opõe essasduas coisas, no comentário ao l canto 'da Zbelda
il, Saà\"Levadospelo destino! Virgíiio se empenha em nada atribuir ao erro dos
troianos, mas de tudo colocarna conta do destino.
[75] Asconius Pedianus, em Mal'cus Tu]]ius Cicero [106-43 a.C.], /n Morrem .4cflo (],
2 29)
[76] Salic., in Z, .4 .4ó Àosüóus, (bd, Z)e aapf.; Th. Gram., Z)ec'zk.
Neap., 77, n.'.g8.
1144
H UGO GROTIUS

X[[[. A menos que a ]ei civi]


não disponha de outro modo

O que dissemos,ou seja, que tais coisas são diretamente obtidas


pelos cidadãos privados em virtude do direito das gentes, deve se enten-
der assim que é uma regra do direito das gentes antes da existência de
qualquer lei civil sobre essa matéria, pois cada povo pode ordenar de
modo diverso entre seus membros e prevenir a propriedade dos priva-
dos, como vemos que isso é feito em vários lugares com relação aos
animais selvagens e às aves. Assim é que, de fato, pode ser mesmo
introduzido por uma lei que as coisasdosinimigos que se encontram
entre nós se tornam públicas.

XIV Aquelas que sáo tomadas


por um ato público se tornam propriedade
do povo ou daquele quefaz aguerra

1. Quanto às coisas que são tomadas numa expedição bélica, a


regra é outra. De fato, nessecasooscidadãosprivados representam a
pessoa do Estado, agem por ele e em decorrência o povo, se uma lei civil
não dispõe diversamente, obtém para ele a propriedade como posse e a
transfere aos que quiser. Como isso está diretamente em oposição com a
opinião corrente, vejo que se deve trazer com mais abundância que de
costume minhas provas extraídas dos exemplos de povos célebres.

2. Começaria pelos gregos, dos quais Homero [77] descreve os


costumes em mais de uma passagem: "Os despojos que retiramos das
cidadesjá foram distribuídos." No mesmopoeta,Aquiles, falando das
cidades que ele mesmo havia tomado, diz [78J: "Em todas reco]hi com

[77]17lüda(1,125)
[781 Homero, /77hdn (IX, 330-33)
1145
CAPÍTULO VI - DO DIREITO DE ADQUIRIR AS COISAS APREENDIDAS NA GUERRA

minha mão numerosos e ricos tesouros. Eu, vencedor,enviei-ostodos ao


rei filho de Atréia que, tendo ficado atrás, junto a rápidos navios, os
recebiae distribuía uma pequenaparte, guardandopara si a maior
parte." Agamemnon deve ser, de fato, considerado aqui em parte como o
chefe, nessa época, de toda a Grécia e assim, como representante do
povo, o que Ihe dava o direito de fazer, com o consentimento do conselho,
a partilha do saque, em parte como preenchendo as funções de chefe do
exército e, consequentemente, como tomando para ele do que era posto
em comum, uma parte superior aosdemais. O mesmoAquiles se dirige
assim a essepróprio Agamemnon [79]: "Nunca, por outro ]ado, tive
uma parte igual à tua, quando a coragemdosgregosdestruiu alguma
cidade troiana." Em outra passagem [80],Agamemnon oferece aAquiles,
segundo um conselho público, um navio cheio de bronze e de ouro e
vinte mulheres a escolher do saque feito. Depois da tomada de llróia,
segundo o relato de Virgílio [81]: "Fênix e o cruel Ulisses, escolhidos
para essatarefa, vigiavam na guarda do saque;lá estãorecolhidos to-
dos os tesouros de Tróia, retirados dos templos em chamas, as mesas
dos deuses, as taças de ouro maciço, o vestuário dos vencidos." Assim é
que, em épocas posteriores, Aristides [82] manteve sob sua guarda o
saquede Maratona. Depois da batalha de P]atéia [83] foi severamente
proibido que alguém tomasse qualquer coisa do saque em seu nome
particular e os despojosforam distribuídos a seguir, segundoo mérito
de cada povo. Arenas, tendo sido tomada mais tarde, o saque foi anexado

[79] Idem, J:roda (1, 163)


[80] [dem, ]Züda (]X, 279)

[81] Publius Vergilius Mare [71-19 a.C.], Ehe2dn (ll 762-66)

[82] P[utatco [50?-125?], M2)Éldes (321 D)

[83] Heródoto, livro ]X, 80 e seguintes


!146
H UGO GROTIUS

ao património público por Lisandro [84] . Entre os espartanos [85], ha-


via o título de uma repartição pública: À,clQup07tnÀ,CEI,
os vendedores dos
despojos.

3. Se viermos para a Agia, os troianos tinham o costume, como


nos informa VirÉílio [86], de repartir o saque por sorteio, como se faz
geralmente na partilha de coisasem comum. Outras vezes opoder de
repartir era deixado ao general. Em virtude desse direito é que Heitor
promete a l)olo, que os estipulava expressamente,os cavalos deAquiles
[87] , o que ]eva a considerar que o direito de adquirir a propriedade não
se encontrava somente na captura. O saque foi ]evado a Cito [88], ven-
cedor da Agia, bem como aA]exandre [89], a seguir. Se considerarmos a
Africa, o mesmo costume se apresenta a nós. Assim é que o que foi
tomado em Agrigento [90], o que o foi na bata]ha de Cannes [91] e a]hu-
res foi enviado a Cartago. Entre os antigos francos, como resulta da
história de Gegório de Touro, as coisas que eram tomadas eram repar'
tidas por sorteio [92] e o próprio rei nada recebia do saque, a não ser o
que Ihe tocava pelo sorteio.

[84] Plutarco, 4Hsandrus (442 A).


[85] Enquanto Agesilau estava na Agia, Spitidrates, que se havia apoderadoda
acampamento de Farnabaz, havia desviado o saque, mas o lacedemânio Eríspides.
tendo feito um interrogatório a respeito, conseguiu interceptar o desvio.
186] Publius Vergilius Mano [71-19 a.C.], E}7ezdn(IX, 268)
[87] Homero, ZCüda (X, 321); Eurípides, ]?Zelo (182)
[88] Caius Plinius Secundus [23-79], AüfuraDk HJkfor7a (XXXl11. 3).
[89] P[utarco [50?-125?], .4/exander (685 B); Quintus Curtius. livro VIII. 41 Diodoro
da Sicília, livro XVl1, 66 e 71; Estrabão, livro XV. 3. 6.
[90] Diodoro da Sicília, livro XIII. 90
[91] Titus Livius [59 a.C.-17 d.C.], .4ó Z:/róe (h/zdlfa (XXl11. 12).

[92] Isso se encontra em Gregório de Touro (limo 11,cap. 27); Aimonius (livro 1, cap.
12); e no J?estimopublicado por Freher, cap. 9. Era costume antigo e adorado
por outras nações.Sérvio,comentandoo verso 323 do 111canto da Z12elda.diz
: que os prisioneiros e os despojoseram distribuídos entre os vencedorespor
sarfefo. "Assim é que se diz: '7}rar gaffes sobre o saque, " Com relação à coloca-
ção do saque em comum e à justificação por juramento, usadas entre os suecos
e os godos,ver Johannes Magnus, livro XI, cap. ll.
Y'
r
CAPÍTULO Vt - DO.DIREITO DE ADQUIRIR AS COISAS APREENDIDAS NA GUERRA
1147

4. Quanto mais os romanos ultrapassaram os outros povos na


guerra, mas são dignos que insistamos em seus exemplos. Dionísio de
Halicarnasso (limo Vl1, 63), observador muito cuidadoso dos costumes
romanos, nos informa assim a esse respeito: "A lei ordena que tudo o
que foi tomado dos inimigos pela coragem, seja do público, de modo que
não somente os privados não se tornam seus donos,mas mesmo o gene-
ral do exército não se apodera de nada. E o questor que, recebe essas
coisas e depois de tê-las vendido leva o produto da venda ao tesouro
público." Essas são palavras daqueles que acusam Coriolano, palavras
arranjadas de modo a torna-lo odioso.

F XV. Algum poder porém, sobre semelhantes coisas


é ordinariamente concedido aos generais

Era verdade que o povo era o dono do saque [93], mas não era
menosverdade que o poder de dispor dele havia sido confiado aosgene-
rais enquanto a repúb]ica era ]ivre [94], de ta] modo, porém, que
deviam prestar contas ao povo de sua conduta. Lúcio Emílio, em Tito
Lívio [95], diz que "as cidades tomadas sãosaqueadas, não aquelas que
serenderam e, no entanto, essascidades Êicâ= à discrição do general e
não dos soldados". Esse direito de dispor à discrição que o costume deve-
ria aos generais, eles mesmos por vezes, para se colocar ao abrigo de
desconfianças, o transferiam ao senado, como fez Cami]o [96], mas se
encontram também aqueles que o retinham e o usavam de diversas
maneiras, segundo obedecessem à consciência, à reputação, à ambição.

[93] Ver a respeito, Sim]er, De .Eepuó#ca J7e/veÉ.

[94] Políbio(arcerp#a /)eüesc.)diz de Lúcio Emí]io Pau]o: 'mando:sefardada dono


de um reino inteiro e podendodispor de tudo, à sua vontade, nada ambicionou.
[95] Titus Livius [59 a.C.-17 d.C.], .4ó Ci}.ÓeOoJ2c#Ía(XXXV]1, 32, 12)
[96] Idem, .4ó [õ.õe aonde'fa(V. 22, 1).
1148
H U GO GRO

XVI. Que levam essas coisas ao tesouro público

1.Aqueles que queriam ser mais íntegros ou se acreditar como


tais não tocavam de modo algum nos despojos [97], mas se havia di-
nheiro em moedano saque,o levavam ao questor do povo romano; se
eram outros objetos, os faziam vender pelo questor em leilão. Essas
coisas se transformavam em moedaque Favorino, em Aulus Gellius
[98], pensa que era designada pela palavra manuZ) be. Essa soma era
versada pelo questor no tesouro público, mas antes, se os fatos de guer-
ra comportavam o triunfo, era exposta aosolhares do povo. Tifo Lívio
[99] diz a respeito do cônsul C. Valerius: "Graças aos saques contínuos,
cujos produtos haviam sido reunidos em local seguro, encontravam-se
alguns despojos O cõnsulos fezvender em leilão e encarregou os questores
de levar o montante ao tesouro." Pompeu fez a mesma coisa de acordo
com estas palavras de Ve]]eius [100] : "0 dinheiro de Tligrana foi, segun-
do o costume de Pompeu [10 1], remetido às mãos do questor e foi redigi-
do publicamente um ato." Assim fez igua]mente M. Tu]]ius [102] que

[97] Plínio(Natura/)k HJ:gloria, XVI, 38) escreve: '?l/anius Our us /tirou gue /7áo
havia tocado em nada do saque, exceto num vaso de faia, com o qual haja
oáe/acudo saarJZib os. " O autor da Uda dos ]7omens /7usZres diz. falando de
N\umm\u$ "Despejou Corinto de suas estátuas e de suas mesas e, depois de
)ê-las conduzido para a ltália, nada levou para casa." l?\utatco ÇAemilius Paulus,
270 D) diz desse Emílio Paulo, recém-nomeado: ':?\Uoera menos e.ã9#2bda sua
iberalidade e sua grandeza de alma, porquanto não tinha mesmo desejado ter
lma grande quantidade de ouro e de prata que se havia recolhido, proveniente
]as riquezas do rei, mas havia entregue tudo aos questores para ser depositado
no tesouro pública.

[98] Aulus Ge[[ius [séc. ]] d.C.], .Abcfes.4fílcae (Xt11, 25)


[99] Titus Livius [59 a.C.-17 d.C.], .4ó Z:/z.Ée
OondlÉa(IVI 53, 10)
[100] Idem, .4b Zl&.Ée
Condlfa(11,37).

[lOl] Como na maioria das vezes; ver o que será citado de Lucano, no parágrafo
seguinte

[102] Marcus Tullius Cicero [106-43a.C.], .EbJkfuJae


(11,7).
1149
CAPÍTULO VI - DO DIREITO DE ADQUIRIR AS COISAS APREENDIDAS NA GUERRA

fala nessestermos dele mesmo em suas cartas a Salústio: "Do saque


que fiz, à exceçãodos questores urbanos, isto é, do povo romano, nin-
guém tocou nem tocará o quarto de um asse." Isso é o que estava mais
em uso nos tempos antigos e melhores, a]udindo aos quais, P]auto [103]
assim se expressa: 'Wou levar ao questor todo essesaque." E falando de
igual modo dos cativos [104] : "Aque]es que comprei do saque entregue
aos questores.:

2. Outros vendiam eles mesmos o saque sem recorrer ao questor


e levavam o dinheiro ao questor, como se pode deduzir das palavras
constantes em Dionísio de Halicarnasso. Assim é que lemos que já ou-
trora, depois da derrota dos sabinos, o saque e os cativos haviam sido
l enviados a Romã pelo rei Tarquínio [105] .Assim é que se conta que os
cônsules Romulius e Veturius [106] haviam vendido o saque, por causa

da penúria do tesouro, o que havia descontentado o exército. Como se


encontra em toda parte a mençãodas riquezas que cada general fez
entrar no tesouro público por ele mesmo ou pelo questor, depois de ter
triunfado sôbre os povos itálicos, os aâ'icanos, os asiáticos, os gauleses,
os espanhóis, não é necessária recolher mais exemplos. Deve-se antes
observar que o saque ou parte dele era por vezes dado aos deuses, por
vezes aos soldados, por vezes também a outros. Aos deuses eram dados
os próprios objetos, como os despojos que Râmu]o [107] co]ocou no tem-
plo de Júpiter Feretriense ou o dinheiro que dele provinha, como fez
Tarquínio o Soberbo [108] que erigiu no monte Tarpeius o templo de
Júpiter com os despojos de Pomécia.

[103] Plauto, .Baccü. (1075).


[104] Plauto, Ck?püzl(n]).
[105] '1\tus Livius [59 a.C.-17 d.C.], .4b Z]/}.óeGondfa (] 37, 5)
[106] Idem, .4ó Z:ü.õeaondl6a(111, 31, 4).
[107] Dionísio de Halical'nasço,]ivro 1, 34
[108] Titus Livius [59 a.C.-17 d.C.], .4ó Z]/róe Oondlfa (] 53, 3)
H U GO GROTIUS

XVII. Ou as repartem entre os soldados e como

1. Dar o saque aos soldados parecia aos antigos romanos um ato


de intriga. Assim é que Sextus, 6i]ho de Tarquínio o Soberbo [109] , mas
refugiado em Gabies, diz-se que distribuiu o saque aos soldados com
magnanimidade para atrair o poder sobre si por essemeio. ópio Cláu-
dio [llO] denunciou no senado seme]hante magnanimidade, como nova,
carregada de prodigalidade, inconsiderada.

Ora, os despojos destinados aos soldados são divididos ou abando-


nados para a pilhagem. Podem ser divididos em razão do soldo ou em
razão do mérito [111].Apto C]áudio [112] queria que o saque fossedividi-
do em razão do soldo, se não se conseguisse versa-lo no tesouro, depois
de ter feito dinheiro com e]e. Po]íbio [113] exp]ica com cuidado toda a
ordem que se observava na partilha. De fato, havia o costume de envi-
ar, por dias ou por vigílias, a metade do exército ou uma parte menor
em busca dos despojos e o que cada um encontrasse havia a ordem de
leva-lo ao acampamentopara que fosseigualmente dividido pelos
tribunos, chamando também à partilha os que guardavam o acampa'
mento, coisa que era praticada mesmo entre os hebreus pelo rei Davi e
que a seguir passou a ser uma lei(/Snmue#XXX, 24); parte era reservada
para os ausentes por motivo de doença ou por razão de outro serviço.

2. Por vezes não era o próprio saque, mas o dinheiro que resulta-
va que se dava aos so]dadosem ]ugar do saque [114], o que ocorria
muitas vezes no triunfo. Encontro essa proporção: um tanto era dado a

[109] 11itusLivius [59 a.C.-17d.C.], ,4ó Z:xróe


Gon(ÜÉa
(1, 54, 4)
[110] Idem, .4ó Hróe aondléa(V. 20, 5).
[111] Flávio Josefo (.4nézgüJades Judaicas, 111,2, 5) informa que isso se pratica
entre os hebreus
[112] Titus Livius [59 a.C.-17 d.C.], ..4ó Z:Z}.Óe
CoJJdlÉa(V. 20, 5)
[113] Livro X, 16.
[114] '1\tus Livius [59 a.C.-17 d.C.], .4b Z:4.üe(;bndlfa (X];V. 34, 6 e 43, 6)
CAPÍTULO VI - DO DIREITO DE ADQUIRIR AS COISAS APREENDIDAS NA GUERRA

um soldado de infantaria, o dobro a um centurião, o triplo a um cavalei-


ro [115]. Por vezesse dava uma parte a um infante, o dobro a um
cava[eiro [116]. Outras vezes, uma parte a um infante, o dobro a um
centurião, o quádrup]o [117] a um tribuno e aum cava]eiro [118].Mui-
tas vezes também, dava-se atenção ao mérito. Assim é que Márcio [119],
por se ter comportado corajosamente, recebeu de Postúmio liberalida-
des sobre o saque de Corio]ana [120].

3. De qualquer modo que fosse feita a partilha, era permitido ao


general tomar para ele por esco]ha[121], isto é, ]evando,tanto quanto
quisesse, ou seja, tudo o que achasse razoável. Isso foi concedido às
vezesa outros, em consideração de seuva]or]122]. Eurípides]123], em
Troianas, falando das mulheres mais nobres por nascim ente de 'l.bóia,
diz que "essas mulheres tinham sido dadas de preferência aos chefes de
Acata". E falando de Andrâmaca [124] : "Pirro tomou para e]e essa mu-
lher por preferência." Ascânio, falando de um cava]o, em Virgí]io [125] ,
diz: "Esse mesmo cavalo, esseescudo, essepenacho brilhante, não su-
portaria que a sorte dispusesse de]es." Heródoto [126] conta que depois

[U5] iliÉIÚ. ,4ó CÜ.ÉeOondyfa(Xl;K 40, 5)


[116] Idem, ,4ó ZlüóeCbndl'fa(Xl:;V. 34, 5).
[117] Suetânio,Chegar(38), e Apiano, .Be# (#Td. (11,102).
[118] Ao tribuno e ao prefeito dos cavaleiros, segundo diz Apiano, J?e/7.alt,í/.(ll,
102)
[119] [Htus Livius [59 a.C.-17 d.C.], .4ó Cã.óe Gondl'éa (XIÃ/] 34, 6).
[120] Ver Plutarco, Gonb/ânus(218A)
[121] Ver Leunc[avius, ]]iisf. 7brc.
[122] Assim é que Nestor possuía como presente dado pelos gregos uma mulher
prisioneira e que havia sido separada da partilha por sorteio. Isso está no
canto XI da .ZZíãdn. No canto X]V da Od7ssézb, U]isses diz: '2?eceóz']Menecévía
comopresente particular e depois peguei no sorteio grande parte dos despo-
/bs. "Eurípides diz de Cassandra: 't2 ma]) veJZo dos aín'des fere esta muJZer
comoparte do saque."A respeito das coisas que faziam parte do saque que
foram dadas por direito precípuo a Demóstenes,general dos atenienses, ver
Tucídides,
livro 111,114.
[123] Hoades (33).
[124] »Dadas (274)
[125] Pub[ius Vergi[ius Mare [71-19 a.C.], Ene/da (]X, 269-71)
[126] Livro IX. 81
!152 H UGO GROTIUS

da batalha de Platéias, foram dadas a Pausânias as coisas mais preci-


osas, mulheres, cavalos, camelos. Assim é que o rei Túlio recebeu por
preferência Ocrisia de Corniculo [127]. Em Dionísio de Ha]icarnasso
[128], Fabrício [129] diz em seudiscursoa Pirro: "Foi-me permitido
tomar, por preferência, tanto quanto quisessedo que fossecapturado na
guerra." ]sidoro [130] , pensando nisso quando trata do direito mi]itar,
diz: "... a disposição dos despojos e a justa distribuição se relacionava às
qualidades das pessoas,a seus serviços, compreendendo neles a parte
do genera[." Tarquínio o Soberbo, como re]ata Tito Lívio [131] , queria se
+'

enriquecer e ganhar pe]o saque o espírito dos homens. Serví]io [132] ,


em seu discurso para Lúcio Paulo, diz que poderia ter enriquecido na
partilha do saque. Há autores, entre os quais se encontra Asconius
Pedianus [133], que querem que essaporção do genera] seja designada
pelo nome de man uZ)/b.

4. Mais louváveis são aqueles que, abandonando seu direito, nada


tomaram para eles do saque. Assim fez esseFabrício de que falei "des
prezando, por amor da glória, as riquezas, mesmo as justamente obti-
das". Ele mesmodizia que o fazia a exemplo de Valério Publícola e ou-
tros em pequeno número. M. Porcius Coto [134] os imitou em sua vitó-
ria na Espanta, declarando que nada receberia das coisas tomadas na
guerra, a não ser o que deveria consumir para comer e beber, acrescen-

1127]Dionísiode Halicarnasso,livro IV. l


[128] Idem, Excerpfa Z)e Zegatlonum.
[129] De que' Ju]iano se propõe e propõe a seus soldados o exemp]o, em Amiano
(livro XXIV. 3, 5)
[130] 0r7k (V. 7)
[131] Titus Livius [59 a.C.-17d.C.], ,4b Z».ÉeGon(üfa(1, 57, 1)
[132] Idem, .4ó U7óe aondlfa(X]À/, 37, 10).

[133] Marcus Tu[bus Cicero [106-43a.C.], Zn Morrem,4cÉ7b


(111,1, 154)
[134] P[utarco [50?-125?], Marcas Calo (342 A)
1153
CAPÍTULO VI - DO DIREITO DE ADQUIRIR AS COISAS APREENDIDAS NA GUERRA

bando,todavia, que não acusava os generais que se prevaleciam das


vantagens que lhes eram concedidas, mas que gostava mais de lutar
pela virtude como os melhores do que buscara fortuna com os mais
ricos. Aproximam-se em muito desses elogios aqueles que tocaram mo-
deradamente no saque, como Pompeu, que é elogiado por Catão, em
Lucano [135] , por ter "entregue mais do que reteve'

5. Na partilha por vezes se considera mesmo os ausentes, como,


depois da tomada de Anxur, FábioAmbustus [136] o ordenou. Às vezes
não se considerava alguns, embora presentes, como ocorreu com o exér-
cito de Minutius, sob a ditadura de Cincinnatus [137] .

6. O direito que, sob a antiga república, os generais haviam tido


foi transferido, depois que a república passou, sob um mestre, aos che- '\i

}'i
fes da milícia. Isso aparece no Código de Justiniano [138], onde são
dispensadasde ser consignadas na relação dos feitos militares, as doa-
çõesde coisas mobiliários ou que se movem por si mesmas que os chefes
da milícia fazem aos soldados dos despojosdos inimigos, soldados que
estivessemno momento ocupados na guerra ou em lugares que se sou-
besse em que estavam.

7. Essa partilha, já outrora, foi muitas vezes exposta a acusa-


ções,como se os generais tivessem captado por essemeio o favor dos
cidadãos privados. Aesse título é que foram acusados Servílio, Coriolano
[139] , Cami]o [140] , acusados de favorecer seus amigos e clientes com

[135] MarcusAnnaeus Lucanus [séc.] d. C.], P%arsai]'a


(]X, 197).
[136] Titus Livius [59 a.C.-17 d.C.], .4b Z]ü.Ée Condfa (]V. 59, 8).
[137] Idem, ,4b Z:ü'óe aonde'fa(111, 29, 2).

t\3$\ L 36, Si quis in redempt., $ Simili etiam modo, Cod,,De Donas.


[139]])ionísio,livro V], 30 e ]ivro V]1, 63
[140] Titus Livius [59 a.C.-17 d.C.], .4ó Z:ZzóeOond'fa (V. 32, 8)
!154 H uoo GROTIUS

magnanimidade, usando o património público. Eles, ao contrário, se


defendiam alegando o bem público: "Para que aqueles que haviam pies'
tado serviço, recebendo o â'uto de seu trabalho, se portassem com mais
empenhoem outras expedições."Essas sãoas palavras de Dionísio de
Halicarnasso [141] sobre o assunto.

XVIII. Ou permitem o saque


1. Chego ao saque. Era concedido ao soldado, enquanto se prole'
dia a devastações ou depois do combate ou a tomada de assalto de uma
cidade, de modo que deviam esperar o sinal dado para se dispersar, o
que, nos tempos antigos, chegava bastante raramente e contudo não
fa[tam exemp]os a respeito. Tarquínio entregou Suessa [142] para ser
saqueada aos soldados; o ditador Q. Servílio entregou o acampamento
dos équos [143j; Cami]o, a cidade de Veios [144]; o cânsu] Serví]io, o
acampamento dosvolscos.L. Valério permite também a pilhagem na
campanha dos équos; Q. Fábio o permite também, depois de ter derro-
tado os vo]scose depois da tomada de Écetra [145]; a seguir, outros o
fizeram com õ'eqüência. Perseu, tendo sido vencido, o cânsu] Pau]o]146]
abandonou à infantaria os despojos do exército que ficaram no campo de
batalha e aos cavaleiros o saque que pudessem fazer dos campos dos
arredores. O mesmo, em virtude de um senatus consu]tus [147], deu

[141] Livro Vl1, 64.


[142] Dionísio de Halicarnasso, livro ]V] 50

[143] Títo Lívio, .4ó Z]xróeCJondl'fa,]V. 47,4.


[144]Tifo Lívio,.4ó HvóeCJbndlfa,
]V 21,14.
[145] Dionísio de Halicarnasso, livro V], 29; ]X 55; X 21

[146] Tito Lítio, .4ó Z]üóe (]ondl'fa, XL]V. 45,4.


[147] Idem, .4ó C/}'óe Chndl'fa, Xj:;% 34,1
1155
CAPÍTULO VI - DO DIREITO DE ADQUIRIR AS COISAS APREENDIDAS NA GUERRA

aos soldados a permissão de pilhar as cidades de Epiro [148]. Lucu]]us,


depois de ter vencido Tigranes [149], vendo sua vitória quase certa,
concedeu o direito de despojar os inimigos [150] . Cícero, no títu]o pri-
meiro do glaÉado da ZnÇ'ençáo [151], co]oca entre os modos de conseguir
a propriedade o fato de tomar dos inimigos alguma coisa que não tivesse
sido vendida em ]ei]ão [152] .

2.Aqueles que desaprovam esseuso dizem que as mãos ávidas de


pilhagem levam a recompensa dos guerreiros corajosos,enquanto ocor-
re geralmente que o mais relapso se entrega à pi]hagem [153] e que os
mais valorosos reclamam para eles a parte principal da fadiga e do
perigo.São palavras deAppius, em Tito Lívio [154]. Disso não seafasta
muito esta passagem de Cito, em Xenofonte [155] : "Estou certo de que
os piores terão a melhor parte do saque." Mas se diz, em sentido contrá-
rio, que seria bem melhor e mais agradável para cada um ter levado
para casa um objeto tomado do inimigo por suas próprias mãos do que
ter recebido uma quantidade maior, repassada pela boa vontade de ou-
trem [156] .

[148] Sitas féz o mesmo com Atenas(Apiano, Z)e J?eZ/o ]l/]'fárldaÉlco, 38).

[149] Plutarco conta que ele deixou a cidade de Tigranocertes para a pilhagem dos
soldadose que, além disso, deu a cada um deles mais oitocentas dracmas do
saque. Severo concedeuo fruto do saque da cidade de Ctésifon aos soldados.
O mesmo concedeu aos tribunos, aos chefes e aos soldados que guardassem
o fruto do saque que haviam feito nos vilarejos. Aelius Spartianus é que o
conta. Maomé ll prometeu aos soldadosa pilhagem de Constantinopla e os
escravosque nela houvesse
[150] ÀD\ano, De Bebo Mlithddatíco, 8$
[151] Cícero,.De.Znvenüone, 1, 45,85.
[152] jarrão enumera seis modos através dos quais alguém se torna proprietário
!egítimo: a adição de uma herança legitima, a emancipação, a cessão ]n Jure,
o usucapião, a compra "suó corola" dos escravos que fazem parte da pilha'
gem, enfim, os leilões públicos, quando se coloca em leilão os bens de alguém
[153] Ver a passagem de Procópio que será citada mais abaixo, parágrafo 24.
[154] ,4b Zlü'be6bn(#fa, V. 20,6.
[155] OJzupae(il'a,Vl1, 2,11
[156] Tito Lívio, .4ó Z:j}.Ée
(bn(#fa, y 20,8
1156 H UGO GROTIUS

3. Por vezes também a pilhagem é concedida porque não poderia


ser impedida. Na tomada de Cortuosa, cidade dos etruscos, segundo o
relato de T[to Lívio [157], "os tribunos queriam que o saque fosse]evado
ao tesouro público, mas suas ordens tardaram mais que sua decisão.
Os soldados se apoderaram logo do saque e não havia como retoma-lo,
nada restando senão constatar sua ganância". Assim é que lemos que o
acampamento dos galo-gregosfoi também pilhado por um pelotão de
tropas de C. He]vius, contra a vontade do comandante]158] .

XIX. Ou é concedido a outros

O que disse que por vezes se deixava o saque ou o dinheiro que


dele resultava a outros e não aos soldados, ocorreu geralmente para
reembolsar aquelesque haviam contribuído com seu dinheiro para a
guerra [159]. Pode-senotar que àsvezestambém jogospúblicoshaviam
sido instituídos com o dinheiro proveniente do saque.

XX. Ou, repartido em porções, dispõe-se do saque


de uma maneira ou de outra e como

1.Não somentefoi usado diversamente em diferentes guerras,


mas na mesma guerra, o mesmo saque muitas vezes foi empregado
para usos diferentes, segundoas partes em que era dividido ou distin-
guindo os diversos tipos de coisas.Assim é que Cami]o [160] deu a déci-
ma parte do saque aApo]ínio Pítio [161] , segundo o exemp]o dos gregos,

[157] .,4ó Z)}-Éeaonáfa, XXXV]11, 23,4


[158]rito Lívio, .4ó Z]ü.óe
CbJ2dfa,
V], 4, 11.
[159] Dionísio de Halicarnasso,]ivro V 47.
[160] Tito Lívio, .4ó Z]Zz.óe
Cbndlfa, V. 23,8.
[161] Apiano também re]embra o fato, nos Excerpfa de Peiresc (.Ekcerplade
[#rfaüóus ef HÉ7]s, ]]).
1157
CAPÍTULO VI - DO DIREITO DE ADQUIRIR AS COISAS APREENDIDAS NA GUERRA

mas que vinha primeiramente dos hebreus. Foi julgado nessa época
pelos pontífices (4ue,nessa décima parte consagrada, se encontravam
não somente as coisas mobiliárias, mas a cidade e o território. O mes-
mo, sendo vencedor, a maior parte do saque tomado dos faliscos foi re-
metida ao questor e assim não foi dado muito aos so]dados [162] . Assim
é que igualmente L. Manlius "vendeu uma parte do saque em proveito
do tesouro público e repartiu a outra entre os soldados,do modo mais
igual possível".Assim o afirma Tito Lívio [163].
2. As espécies em que o saque pode ser dividido são as seguintes:
os homens prisioneiros, os rebanhos de gado e animais menores, que os
gregos quando falam em termos apropriados chamam de "/ézbd', o di-
nheiro, as outras coisas mobiliárias, preciosas e de pouco valor. Quinto
Fábio [164] , depois de ter vencido os volscos, fez vender pelo questor o
saque vivo e os despojos; o dinheiro, ele mesmo o depositou no tesouro.
O mesmo [165], depois de ter derrotado os volscos e os équos, entrega
aos soldados os prisioneiros, exceto os tusculãnos, e no território de
Ecetra, entrega ao saque os cidadãos e os animais. L. Corne]ius [166],
depois da tomada deAnzio, deposita no tesouro público o ouro, a prata e
o bronze; vende através do questor os prisioneiros e o fruto do saque;

deixa para os soldados tudo o que constituía víveres e vestuário. Acon-


duta de Cincinnatus [167] não foi diferente, pois, ao tomar posse de
Corbio, cidade dos équos, mandou para Romã as coisas mais preciosas
da pilhagem e dividiu entre as centúrias o restante. Cami]o [168] , de-

[162] Tito Lívio, AÓ Z:rróe(bnd2fa, V. 19,8


[163] Idem, .4b Z]/}.ÉeCbndlfa, XXXVl11, 23,10
[164] Dionísio de Halicarnasso, livro Vl11, 82
[165] Idem, livro X, 21.
[166] Idem, na mesma passagem
[167] Idem, ]ivro X, 25
[168] Tito Lívio, ,4b Z]/róe(bnd2fa, V. 22,1
1158
H UGO GROTIUS

pois de derrotar os veios, nada depositou no tesouro público, excito o


dinheiro arrecadado com a venda dos prisioneiros. Depois de vencer os
etruscos e vender os prisioneiros, com parte desse dinheiro ele devolveu
às matronas o ouro que elas haviam doadocomocontribuição e enviou
três taças de ouro para o Capitó]io [169]. Soba ditadura de Cossus todo
o fruto do saque praticado contra os volscos, excetuando-se as pessoas
[ivres, foi entregue aos so]dados [170] .

3. Fabrício [171] , depois de ter derrotado os ]ucanos, os brúcios,


os samnitas, enriqueceu os soldados, devolveu aos cidadãos as contri-
buições que haviam dado, depositou quatrocentos talentos no tesouro
púb[ico [172]. Q. Fú]vio eApio C]áudio [173], depois de se terem apode-
rado do acampamento de Hannon, venderam os despojose distribuíram
o arrecadado, dando recompensas àqueles cujos serviços haviam sido
re[evantes. Cipião [174], depois da tomada de Cartago, permitiu aos
soldados pilhar as coisas que se encontravam na cidade, exceto o ouro,
o dinheiro e os dons piedosos. Ací]io [175] , depois da tomada de Lamia,
repartiu o saque em parte e em parte o vendeu. Cneius Man]ius [176],
depoisda derrota dos galo-gregos,mandou queimar as armas dosini-
migos, segundo uma superstição romana, ordenou a todos para reco-
lher o resto dos despojose vendeu a parte que devia reverter ao público
ou distribuir aos soldados, com um cuidado extremo e do modo mais
justo possível.

[169]Idem, .4ó [ã.ÉeObndlfa,V], 4,2


[170] Idem, .4ó Z]Zz.óe
(%ndlfa,V], 13,6.
[171] Dionísio de Halicarnasso, /ü'agmenfa.
[172] Fábio fez o mesmo com o dinheiro proveniente da venda dos prisioneiros
depois da tomada de Taranto, após ter distribuído entre os soldadoso restante
clo saque.
[173] Tiro Lítio, ,4ó ZZróe aonc#ta, XXVI 14,12
[174] Appius, .Be/7. PUnJC., 133.
[175] alto Lívio, ,4ó [ã.Ée OaVJdl'fa, XXXV]1, 5,3
[176] Idem, .4ó Z:ü-Ée(hndl'Éa, XXXVl11, 23,10
1159
CAPÍTULO VI - DO DIREITO DE ADQUIRIR AS COISAS APREENDIDAS NA GUERRA

XXI. O peculato pode ser cometido


com relação ao saque
1. Parece,por aquilo que dissemosantes (par. XV), que não so-
mente entre os romanos, mas junto à maioria das outras nações,o
saquepertencia ao povo romano, mas alguma liberdade era deixada aos
generais para fazer a distribuição, desde que prestassem contas de seus
atou ao povo. Isso é que, entre outros, nos ensina o exemplo de L. Cipião
que foi condenado como culpado de peculato, segundo a expressão de
Valério Máximo [177], por ter recebido480 libras de prata a mais do que
havia entregue ao tesouro e o exemplo de outras personalidades de que
fizemos menção antes (par. XV e seguintes)

2. Marcos Catão, no discurso que fez sobre o saque se queixou


com veemência e em termos célebres, segundo dizAulus Ge]]ius [178] ,
da permissividade e da impunidade do peculato. Desse discurso sobra
estefragmento: "Aqueles que roubam os privados passam sua vida nos
ferros, os ladrões do Estado vivem no ouro e na púrpura." O mesmo
havia dito em outro local que "ficava espantado que se tivesse a audácia
de mobiliar sua casa com estátuas tomadas na guerra" [179] . Do mes-
mo modo, Cícero]180] aumenta o odioso peculato repreendido a Verres,
insistindo que ele se havia apropriado de uma estátua e que a havia
tomado do saque feito aos inimigos.

3. Não eram somente os generais, mas ainda os soldados que


eram acusadosde peculato em razão do saque, se não o tivessem levado
ao tesouro público. Eles todos se comprometiam, de fato, por juramen-
to, comodiz Po]íbio [181], "a nada desviar do saque, mas a guardar a

[177] Limo V. cap. 3, e Tito Lívio, .4ó Z:/róeCbndfa, XXXVlll 55.6

[178] Livro XI, cap. 18.


[179] Prisciano, ]nsÉífuf. Grama., Vl1, 19,9
[180] in narrem ..4cÜa,]V, 41,88

[181] Livro X, 6
1160
H UGO GROTIUS

6delidade prometida em virtude da sacralidadedo juramento". A isso é


que se refere talvez a fórmula de juramento que seencontra emzulus
Ge[[ius [182], pe]a qua] é ordenado ao soldado de nada tirar do exército,
numa distância de dez milhas em derredor, nem um objeto valendo
mais de uma moeda de prata; ou, se o tivesse roubado, de leva-lo ao
cônsul ou de o declarar no decorrer dos três dias seguintes. Por isso
pode ser compreendido o sentido do que Modestino diz [1831:"Aque]e
que roubou o saque tomado dos inimigos é culpado de peculato." Mesmo
só isso deve ter sido suficiente para advertir os intérpretes do direito a
não acreditar que as coisas tomadas aos inimigos sejam de propriedade
doê privados, porquanto consta que o peculato não existe senão em
matéria de coisa pública, sagrada ou re]igiosa [184] . Tudo isso tende
esclarecer o que dissemos antes (par. XIII), isto é, que os objetos toma-
dos nos fitos de guerra se tornam, independentementeda lei civil e
primeiramente, propriedade do povo ou do rei beligerante.

XXjl. Alguma mudança pode ser trazida


a esse direito comum por uma ]ei
ou por um ato de vontade

1 .Acrescentamos "independentemente da lei civil" e "primeira-


mente", isto é, diretamente: primeiro, porque uma lei pode, em vista da
utilidade pública, estatuir coisasnão ainda anualmenteconquistadas,
emane essa lei do povo, como entre os romanos, ou emane de um rei,
como entre os hebreus e alhures. Sob o nome de lei, contudo, queremos
que mesmo um costume devidamente introduzido seja compreendido.
Segundo, para que saibamos que o saque, como as outras coisas, pode

[182] Livro XVI, 4


tt83À L í5, penu]t., Ad !egem Ju!. Pecu].
[184] Z. .C modem ÚÉ.
CAPÍTULO VI - DO DIREITO DE ADQUIRIR AS COISAS APREENDIDAS NA GUERRA

ser concedido a outros pelo povo, não somente após, mas mesmo antes
de sua obtenção,de modoque a captura que se segueàsaçõessejuntem
rapidamente, como falam os jurisconsultos. Essa concessão pode se fa-
zer não somente de modo claro, mas ainda em geral, comono tempo dos
Macabeus (17MacaÓeus,Vl11, 28 e 30) uma parte do saque foi dada às
viúvas, aosvelhos e às crianças em necessidade.Pode ser dado mesmo
em favor de pessoas incertas, a exemplo dos objetos lançados à multidão
que os cônsules romanos faziam tornar-se propriedade daqueles que as
apanhassem.

2. Essa transferência de direito que se faz por lei ou por conces-


são não é sempre uma simples doação, mas é por vezes um contrato ou

por vezes um pagamento do que é devido ou uma remuneração por


danos causadosou por despesasfeitas para a guerra, seja a título de
taxas, seja a título de serviços, como quando aliados ou súditos tomam
em armas sem receber nenhum soldo ou recebendo um soldo que não é
de natureza a responder ao serviço prestado. Vemos que, por essas ra'
zões, o saque é concedido geralmente em totalidade ou em parte.

XXIII. Assim os despojospodem


serconcedidos aos aliados

Por isso nossosjuristas [185] observamque é um usotacitamen-


te acatado quase em toda parte que os aliados ou súditos que fazem a
guerra sem soldo e a suas custas e perigos, se apropriem do que toma-
rem [186] . Arazão a respeito dos aliados é evidente [187] porque natu-

[185] Calderin. Cona. 85; Joh. Lupas, Z)e BeJ/o, / SI bebe adç'Crias; Jas., ]b Z. Quoc/
apud hostes, De Legatis 1, 'FraBC.a Roda, in L. 1, De acquir. passess.,n. 5,
Covarruvia, ad cnp. /)ec'calam, pari, Z / -ZJ; Bonfin, ]lu .rV dec. 5.
[186] Ver Cromer, /]o/on c., livro XIX
[187] Amalasunta se servedessa razão em sua carta a Justiniano (Procópio, Goffblc.,
1. 3)
1162
H UGO GROTIUS

ralmente o aliado é obrigado com relação a seu aliado à reparação dos


danos que sobrevêm por causa do negócio comum ou público. Acrescen-
te-se também que não se dá seu esforço por nada. Sêneca [188] diz:
"Assim, aos médicos se paga o preço do serviço que nos prestam, o tem-
po que nos consagram ao se desviarem de seuspróprios compromissos."
Quinti[iano [189] julga a mesma coisa justa para com os oradores por'
que o próprio trabalho que se dão e todo o tempo que consagram aos
negócios de outrem lhes tira a possibilidade de obter de outro modo, o
que Tácito [190] chamou de "co]ocar de ]ado suas preocupações domésti-
caspara seaplicar aosnegóciosde outrem". E, pois, crível, senão apa-
rece nenhuma outra razão, como seria uma pura liberalidade ou um
contrato anterior que a esperançade tirar um ganho dos inimigos é
considerada como uma compensação do dano e do serviço prestado [191] .

XXIV Muitas vezes também aos súditos.


o que é esclarecido por exemplos
variados em terra e no mar

1. A respeito dos súditos, isso não procede com uma evidência


igual porque devem seu serviço a seu Estado, mas se objeta em sentido
contrário que a partir do momento em que não são todos os cidadãos
mas somente alguns que tomam em armas, uma retribuição é devida a
esses últimos pelo corpo do Estado, em razão de que sacriãcam mais
esforço ou empenho que os outros e em razão, bem mais ainda, dos
danos que sofrem. A esperança de todo ou parte de um saque incerto

[1881Z)eZ?ene#c21b,
V], 15,2
[189] 1nsÓfuf. 0r., X]1, 7,10.
[190] .4nna/es, X], 7.
[191] Ver Plutarco, H'da de MarceZo, 302
1163
CAPÍTULO VI - DO DIREITO DE ADQUIRIR AS COISAS APREENDIDAS NA GUERRA

lhes é facilmente, e não sem razão, oferecido em lugar dessa retribuição


certa. Assim é que o poeta [192] diz: "Que este saque seja destinado
àqueles cujas fadigas o mereceram.

2. No que diz respeito aos a]iados [193], há um exemp]o no trata-


do romano pelo qual os latinos sãoadmitidos a uma parte igual do
saque nas guerras que eram feitas sob os auspícios do povo romano
[194] . Assim, na guerra que os etólios faziam com a ajuda dos romanos,
ascidadese oscamposeram atribuídos aosetólios, mas osprisioneiros
e as coisas mobiliários aos romanos [195] . Depois da vitória obtida so-
bre o rei Ptolomeu, Demétrio [196] deu aos atenienses uma parte do
saque.Ambrósio]197], tratando da história deAbraão, mostra a equidade
desse costume: "Ele sustenta que se deve atribuir uma parte do lucro
como recompensa por seu trabalho aos que tivessem estado com ele,
talvez na qualidade de aliados para auxiliar."
3. No tocante aos súditos, há um exemplo ho povohebreu (Nií-
/meros, XXXI, 27, 47; /Sa/nue7XXX, 22 e seguintes; 27Macabetzs, Vlll,
28, 30), no qual a metade do saque pertencia aos que estavam na expe'
dição [198]. Assim é que o soldado de Alexandre fazia seu o saque

[192] Propércio, E7%:, 111,4,21


[193] O povo romano, segundo afirma Plínio(.Ahfura/]ls .f?JsÉar2b,
XXXIX, 5), conce
dia aos antigos latinos um terço do saque. Os cantões suíços, segundo assina-
la Simler, partilham o saque proporcionalmente às tropas que cada um forne-
ce. O papa, o imperador, os venezianos, aliados contra os turcos, fizeram a
partilha proporcionalmente ao que cada um havia contribuído para a9 despe-
sas da guerra (Paruta, livro Vlll). Pompeu deu a pequena Armênia a Dejotarus,
rei da Galácia,porque havia ajudadona guerra contra Mitridates
[194] Tito Lívio, ]ivro 11,33 e Dionísio de Halicarnasso, livro VI, 95.
[195]Políbio,]ivro X], 15 e Tito Lívio, livro XXXl11,13,10
[196] Plutarco, Z)emóÉüo, 896 A.
[197]Z)e..4óraáam,
1, 3,17
[198] Oshabitantes da Pisídia davam uma parte do saqueaos que haviam custodiada
as casas(Chalcocondylas, livro V).
1164
H UGO GROTIUS

tomado dos cidadãos privados, exceto certas coisas de valor qué tinham
o costume de levar ao rei. Por isso, vemos que eram acusados aqueles
que se dizia ter, perto de Arbela, planejado tornar-se donos de todo o
saque, de modo a nada ]evar ao tesouro púb]ico [199] .

4. Os bens públicos dos inimigos ou do rei, contudo, estavam ao


abrigo dessa permissão. Assim lemos que os macedónios, quando inva-
diram o acampamento de Dado, perto do rio Piramo, haviam pilhado
uma enorme quantidade de ouro e prata e que nada haviam deixado de
intacto, à exceção da tenda do rei]200] . Quinto C]úrcio [201] diz: "A 6lm
de receber, segundo o antigo costume, o vencedor na tenda do rei venci-
do." Disso não se afasta o costume dos hebreus (/7SâJnue.CXl1, 30) que
colocavam a coroa do rei vencido sobre a cabeça do vencedor e Ihe con-
signavam, o que se ]ê no Digesto Ta]múdico [202], a bagagem rea] to-
mada na guerra. Por isso, lemos nos feitos realizados por Carlos Mag-
no, depois de ter vencido os húngaros, que ele cedeu aos soldados as
riquezas privadas e fez entrar em seutesouro as riquezas da realeza.
Entre os gregos, as Àa@opcr
eram consideradas bem público, como assi-
nalamos antes (par. XIV. 4); as ax-o,laeram destinadas aos cidadãos
privados. Chamam de aK-oÀaàs coisasque sãotiradas do inimigo du-
rante o combate e .lcr@opa,àquelas recolhidas após a batalha. Essa dis-
tinção foi de bom grado admitida por diversas outras nações [203].

[199] Plutarco, HpopÃíüe#:, 180 C.


[200] Ver também Diodoro, livro XVll, e Plutarco, ,4/exanc7er, 676. Ver exemplos
semelhantes em Xenofonte, ]ivro ]] sobre (Zro]]nsf, C)TJ]V 6,11] e livro IV
de sua expedição[.Erped. Cpv7.]V] 4,21].
[201] Livro 111,11,23

[202] glf. de .Rege.


[203] Árias, -De .Be/Zo, n, ]62; Be]]in., parte .Z Zlf. /& n. .Z Done]]., Cbmm.. ]lüro .rV
cap. 21; S\àvest.,in verbo beilum, l in princ. ex RoseH.\'Wesenbec., ad $ 17,
Instit. de rer. dias.
1165
CAPÍTULO VI - DO DIREITO DE ADQUIRIR AS COISAS APREENDIDAS NA GUERRA

5. Entre os romanos,porém, ao menosdurante a antiga repúbli-


ca, parece de modo suficiente pelo que dissemos anteriormente (par.
XIV e seguintes) que um direito tão extensonão havia sido concedido
aossoldados. Começou-sea dar um pouco mais ao soldado nas guerras
civis. Assim se pode ler que a cidade de Equulano foi pilhada pelos sol-
dados de Sila]204]. César, depois da batalha de Farsala, dá aos soldados

o acampamento de Pompeu para ser pilhado, com essaspalavras em


Lucano [205] : "Aqui está a recompensado sangue derramado. Toca a
mim mostra-lo e eu não chamaria, de fato, dar o que cadaum daria de
si mesmo." Os soldados de Otávio e deAntânio pilharam o acampamen'
to de Brutus e de Cássio [206] . Em outra guerra civil, os Flávios condu-
zidos a Cremona se apressam, apesar da proximidade da noite, de to-
mar de assalto esta rica colónia, temendo que, sem isso, as riquezas dos
habitantes de Cremona pudessempassar para as mãos dosprefeitos e
de seus assessores. De fato, sabiam, segundo a expressão de Tácito [207] ,
"que quando uma cidade é tomada à força, os despojos pertencem aos
soldadose que, quando se rende, pertence ao chefe"

6.A disciplina em decadência,isso foi concedido com maior mag-


nanimidade aos soldados, para impedir que no período de duração do
perigo, deixando de lado o inimigo, a pilhagem ocupassesuas mãos, o
que muitas vezes comprometeu vitórias. Córbulo, tendo-se apoderado
da fortaleza de Volanda na Armênia, "a multidão inábil ao combate

segundo relato de Tácito [208] -- foi vendida como escrava e o resto do


saque abandonado aosvencedores". Nessemesmo escritor]209], Sueünio,

[204] Apiano, -Be.]/.(Xz, 1, 51.


[205] Livro Vl1, 738 e seguintes
[206] Apiano, .Be/T.(Zz, ]V. 135.
[207]#bfonae, 111,19.
[208].4nnaJes,
X]11,39.
[209] ..!nnaJes, X]V, 36.
!166 H UGO GROTIUS

num combate contra os bretões, exorta os seus a massacrar sem per'


dão.,sem se ocupar do saque, acrescentando que a vitória entregaria
tudo em suas mãos. Podem ser encontrados em toda parte exemplos
desse tipo. Acrescente-se o que já citamos há pouco, no relato de Procópio
0
[210]

7. Há coisas, porém, de tão pouco valor que não merecemser


levadas ao tesouro público. Essas coisas são geralmente em toda parte
deixadas aos que as tomaram por uma concessãodo povo. Tais eram,
sob a antiga república romana, as picas, os dardos, a madeira, a forra-
gem, os odres, os sacosde couro, as tochas e tudo o que estava abaixo do
va[or de uma moedade prata. Lemos emAu]us Ge]]ius]211] que essas
exceçõeseram acrescentadasao juramento militar. O que não é dife-
rente do que se concede aos marinheiros, mesmo servindo sob soldo. Os
franceses chamam isso spo.Züüon ou p/Zhge [212] e compreendem as
vestes, assim como o ouro e a prata abaixo de dez escudos. Em outros
lugares, uma parte determinada do saque é dada aos soldados.Na
Espanha[213], por exemp]o, ora um quinto1214], ora um terço, outras
vezes a metade são reservados ao rei e um sétimo, por vezes um décimo
são reservados ao chefe do exército; o resto se torna propriedade daque-
[es que o reco]heram, exceto os navios de guerra [215] que são atribuí-
dos ao rei em sua totalidade.

[210] No livro UandnDc.,11,21, narra que os soldados de Salomão, numa expedição


contra os levatas, murmuravamcontra ele porquanto retinha o fruto do
saque. Ele dizia que o fazia para reparei-lo após o 6im da guerra, segundo o
mérito de cada um. O mesmohistoriador conta(Gofíüü., 11, 17) que todo o
saque recolhido em Picenasfoi entregue a Belisário para que o repartisse
segundo quanto cada um teria merecido. Como motivo, ac3'escentaque 'hão
era justo que, enquanto uns se empenhavam denodadamente para matar os
inimigos, os outros, que não haviam tomado parte alguma nesse esforço,
comessemc mei tranquilamente
[211] Livro XVI, 4
[212] (hnsf. Ga/Z, livro XX, tit. Xlll, art. 10 e 16.
[213] Zeg: .IZJsp.,
livro IVI tit. XXVI, parte 2.
[214] Leunclavius atribui o mesmocostumeaos turcos(livro 111e livro V).
[215] Assim é que as máquinas de guerra eram excluídas, em benefício dos reis,
entre os godos(Johannes Magnus, J7].sf.,Suedlb.,livro XI, cap. ll
1167
CAPÍTULO VI - DO DIREITO DE ADQUIRIR AS COISAS APREENDIDAS NA GUERRA

8. Há também países em que a distribuição se faz levando em


consideração o serviço, o perigo e as taxas. Entre os ita]ianos [216], por
exemplo, um terço do navio tomado é concedido ao dono do navio vence-
dor; aqueles cujas mercadorias se encontravam no navio tomam outro
tanto e outro tanto para aquelesquecombateram.Ocorreaté que fique'
les que fazem a guerra a seu próprio risco e despesasnão tomam todo o
saque, mas devem uma parte ao público ou ao que recebe seu direito do
público. Assim é que entre os espanhóis [217] , se numa guerra navios
são equipados às expensas de cidadãos privados, uma parte do saque é
devido ao rei e uma parte ao ministro do mar. Segundo os costumes da
França [218], o ministro do mar toma uma décima parte. O mesmo
ocorre entre os ho]andeses [219], onde, porém, um quinto do saque é
provavelmente deduzido pela república. Em terra, o costumejá se esta-
beleceu por toda parte, que, nos saques das cidades e nos combates,
cada um retenha para si o que saqueou. Os objetos tomados em incur-
sões,porém, pertencem aos que fazem parte da tropa e devem ser dis-
tribuídos entre eles, de acordocomo mérito de cadaum.

XXV Aplicação do que acaba de ser dito

Essas coisas têm o objetivo de saber se, junto a um povo que não
se imiscuiu na guerra, levanta uma contestação por um objeto tomado
na guerra, deve-seconceder esseobjeto àquele que as leis favorecem ou
os costumes do povo do lado do qual a coisa foi tomada. Se nada disso é
provado, a coisa deve ser, em virtude do direito comum das gentes,
concedidaao próprio povo, se contudo essacoisa foi tomada numa expe'

[216] Consulado do Mar, cap. CCLXXXV.


[217] Zeg. .]1lspan., ]ivro X]X, tit. XXV], parte 2, ]ei 14.
[218] GonsÉ.Ga/Z, ]ivrb XX, tit. 14, art. ].
[219] 1nsírucé. rel marlf., cap. XX]] (Groot P]acaetboeck, ]], p. 1535)
!168 H UGO GROTI US

dição de guerra. Parece bastante claro, pelo que já se disse antes, que
aqui[o que a]ega Quinti]iano [220] para os tebanos não é de todo verda-
de; em matéria de coisas que podem ser levadas à justiça, o direito da
guerra não tem nenhuma força e que aquilo que foi tirado pelas armas
não pode ser retido senãopelas armas.

XXVI. Se as coisas tomadas fora do território


de uma e de outra das partes beligerantes
sáo adquiridas pelo direito de guerra
1. Quanto às coisas que não pertencem aos inimigos, mesmo que
sejam encontradas em poder deles (ver cap. t-VI$ 7), elas não se tornam
propriedade daqueles que as tomam. Isso, de fato, comojá dissemos
antes (neste cap., $ 5), não é conforme ao direito natural, nem foi intro
duzido pelo direito das gentes.Assim é que os romanos dizem a Prúsias
[221j: "... Se não fez parte dos Estados de Antíoco, esseterritório não
teria podido, sobforma alguma, se tornar propriedade do povoroma-
no..." [222] . Se o inimigo, contudo, teve sobre essas coisas a]gum direito
anexado à posse, como um direito de penhora, de retenção, de servidão,
nada se opõe a que seja entregue aos que as tomaram.

2. Pergunta-se também geralmente se as coisas tomadas fora do


território de uma e de outra partes beligerantes sê tornam propriedade
daqueles que as tomaram. Isso é posto em questão, tanto a respeito das
coisas quanto das pessoas.Seconsiderarmos somente o direito das gen-
tes, penso que aqui o lugar não foi tomado em consideração, do mesmo

[220] De /nsfi'fuÚone (2rnfor7a, V. ]O,114.


[221] Tiro Lívio, .4ó Z]/róeaonc#fa, XLV] 44,11.
[222] Foi assim que, após a derrota de Jugurta, Bocchus não adquiriu as terras que
pretendia ter porque as mesmas não haviam pertencido a Jugurta, mas aos
filhos de Bocchus(Apiano,Zxaerpfa-Legalonum,28). Ver algo similar em
Crantzius (Snxomia,Xl1, 7).
1169
CAPÍTULO VI - DO DIREITO DE ADQUIRIR AS COISAS APREENDIDAS NA GUERRA

modo que dissemos que um inimigo pode ser legitimamente morto em


qualquer lugar que seja. Aquele que, nesselocal, possui a soberania
pode,por sua lei, interdizer que isso se faça e se se age contra a lei, pode
pedir satisfação como de um delito. Aqui ocorre como o que se diz do
animal selvagemapanhado no campo de outrem que setorna proprie-
dade daqueles que o apanharam, mas que o proprietário do campo pode
proibiro acesso [223].

XXVII. Como esse direito


de que falamos é próprio da guerra solene

Quanto a esse direito exterior de obter as coisas tomadas na guer-


ra, é de tal modo particular à guerra solene em virtude do direito das
gentes,que não ocorre nas outras guerras. Nas outras guerras entre
estrangeiros, uma coisa não se adquire pela força das armas, mas em
compensaçãode uma dívida da qual não se tem como receber o paga'
mento de outra forma [224]. Para o que diz respeito a guerras entre
cidadãos, sejam grandes ou pequenas, não se faz nenhuma mudança de
propriedade, a não ser pela autoridade dojuiz.

\223ÀL. 3, Quodenim, Dig., De acq. rer. dom.; L. 16, Divas Paus,Dig., De servil.
praed. rust.
12241 Si[vestr., ]z2 verbo .Be/Tum, pa/Ée .Z, / 3 e /], vens. octaro.
Vll

DO DIREITOSOBRE
OS PRISIONEIROS

Sumário

1. Todos aqueles que sãopresosnuma guerra solene se tornam


escra vos, segundo o direita das gentes.

li. E seus descendentes também.

111.0 que quer que seja feito contra eles, o éimpunemente.

IV: As coisas pertencentes aos que são presos, mesmo as


incorporais, seguem seu dono.

KRazão pela qualisso foi estabelecida.

vi. Se épermítida aos que são presos assim de fuga.

gll. Se épermitido resistir a seu dono.

VIII. Esse direito não esteve sempre em uso em todas a$


nações.

IX. Não estáem usohoje entre os cristãos;por que coisafoi


substituído.
CAPÍTULO Vll - DO DIREITO SOBRE OS PRISIONEIROS

l.Todos aqueles que são presos


numa guerra solene se tornam
escravos, segundo o direito das gentes

1. Segundoa natureza, isto é, independentementede um fato


humano ou no estado primitivo da natureza, nenhum homem é escra-
vo. como dissemos em outro local (livro 11,cap. XXll, $ 11).Nesse senti-
do é que pode ser bem acatado o que foi dito pe]os jurisconsu]tos [1] , isto
é, que essa escravidão é contra a natureza. Não repugna contudo à
justiça natural que a escravidãotenha tido sua origem de um fato do
homem,ou seja, de uma convençãoou de um delito, comoo mostramos
também em outro local (livro 11,cap. V. $ 27).

2. Por esse direito das gentes de que tratamos agora, a escravi-


dão se estende um pouco além, tanto com relação às pessoas como aos
bens pessoais. Se considerarmos as pessoas, não são somente aqueles
que serendem ou prometem escravidão que sãoconsiderados escravos,
mas todos aqueles que geralmente são tomados numa guerra solene
pública, a partir do momento, bem entendido, que foram conduzidos
para o interior das praças, como diz Pompânio [2]. Não é exigido um
delito, mas a sorte é igual para todos, mesmo para aqueles que por seu
azar, como dissemos (livro 111,cap. VI, $ 12,1), são surpreendidos no
interior das 6'onteiras dos inimigos, depois que a guerra tivesse repen'
tinamente ec]odido [3] .

3. Políbio diz no segundo livro de sua história [4]: "Por quais


suplícios poderiam receber um castigo que fosseigual à sua faltamTal-
vez se poderá dizer que bastaria vendê-los a eles, suas mulheres e seus

tX3L 4, LibeNus, $ 1, Dig., De statu hominum.


12\ L 5, PostiÍminÍum, $ !, Dig., De captivis-
\;\À L 12, in bebo, Dig., De captivís
[4] Livro 11,58
1174
H U GO Gxoíi os

filhos, depois que foram vencidos pelas armas. São coisas essas que,
segundo os direitos da guerra [5], devem ser suportadas por aque]es
mesmos que nada cometeram de ímpio." Assim é que ocorre o que Fílon
observa com estes termos [6] : "Muita gente de bem perdeu por variados
incidentes sualiberdade nativa"

4. Dion de Prousa [7] , depois de ter mencionado a]guns meios de


obter a propriedade, diz: "Quando na guerra alguém se apoderou de um
prisioneiro, o possui como tendo-o tornado escravo dessa maneira."As-
sim é que Opiano, no ]ivro ]] de seu 7}afado sobre a Pesca [8], chama
de "lei da guerra" o fato de levar crianças tomadas na guerra.

11.E seus descendentes também

Não são somente eles próprios que se tornam escravos, mas ain-
da seus descendentes para sempre, ou seja, aqueles que nascem de uma
mãe escrava, depois de sua escravatura. ]sso é o que Marciano [9] disse
ao aííJ'mar que, pelo direito das gentes aqueles que nascem de mulheres
escravas nossas se tornam nossos escravos. Tácito [lO] , fa]ando da es-
posa do chefe germânico, disse: "Seio materno votado à escravidão.:

[5] Servius, comentando o canto 11619] da EJlefda, diz ao fa]ar de Hércu]es: 'Como
Laomedon queria expulsa-!o desseporto, foi morto e sua &!ha Hesione fai
pomadapelo direito de guerra e entregue a Teiamon,companheirode líércules
que, por primeiro, havia escalado as muralhas; desse modo nasceu Teucer." O
mesmo, comentando o canto X da Elzezda, contando a mesma história, diz que
os gregos não quiseram entregar lÍesícne aos troianos, dizendo que a possuí'
am por dz)alfa de guerra': Josefo(.4nfl#üidades Judaicas, XIV. 12,2) diz
comohaviam sida aprisionados, em desacordocom o direito de guerra...", e em
outro \acab "Em vb'rude desse direito que foi estabelecido contra os prisionei-
]'os...': diz Menandro, o Protetor. Muitas coisas relacionadasa isso podem ser
encontradas no capítulo precedente porque os autores reúnem e colocam no
mesmo rol as coisas tomadas e as pessoasque são feitas prisioneiras
[6] No livro C2mnem tdrizm óonum esse #óerum, 3
[7] ardil'o .XZ

[8] HaZeuf., 11,316.


\qÀL. 5, Bt servorum, $ 1, i)ig., De statu homÍnum.
[10].,ÜlnaJes,
1, 59
1175
CAPÍTULO Vll - DO DIREITO SOBRE OS PRISIONEIROS

111.0 que quer que seja feito


contra eles, o é impunemente
1.Quanto aosefeitos dessedireito, sãoinílnitos, ao ponto de Sêneca
[11] dizer que não há nada que não seja permitido a um patrão sobre o
escravo.Nada há que não possa impunemente lhes fazer sofrem', não há
açãoque não possa lhes ser ordenada ou à qual não se possa coagi-los,
de qualquer maneira que seja, ao ponto mesmo que a crueldade dos
donos sobre as pessoas submetidas à escravidão é impune, a menos que
a lei civil imponha um ]imite a essa crue]dade e a puna. Gaius [12] diz:
"Em todas as nações igualmente podemos observar que os donos tive-
ram sobre seus escravos poder de vida e de morte." Acrescenta em se-
guida que os limites haviam sido postos a esse poder em virtude da lei
romana, isto é, sobre o solo romano. Aisso se referem estas palavras de
Donato, a Terêncio [13] : "Há para o patrão contra seu escravo, a]guma
coisa que não seja justa?
2. Do mesmo modo, todas as coisas que haviam sido tomadas são
consignadasao dono com a pessoa.O escravo que está em poder de
outrem, diz Justiniano [14], não pode ter nada seu.

IV As coisas pertencentes aos que sáo presos,


mesmo as incorporais, seguem seu dono
Por isso é refutada ou ao menos restringida a opinião daqueles
que dizem que as coisas incorporais não são adquiridas pelo direito da
guerra [15]. E verdade que não se conseguem de imediato e por e]as

111] aoníroç,ersfae, X, 34.


t\2À L 1, Díg., De hís quí suí suntjuris; Instit. de his qui sui ve} ali. buris sunt.
[13].4nd7b, ato ], cena1, 36.
t\4À Instit. per puas pera. cuique acquir., $ 3, item vobis.
[15] Valério Máximo (livro VI, cap. IX, 11) fa]a de Cneio Corné]io Asma que, 'pomo
cônsul, foi preso Feios cartagineses junto às ilhas Lipari, depois de ter perdido
buda pelo direito de guerra". H\om, ho Xxxro Omnem virum bonum esse !iberum
]\, esclewe'"0 escravoperdeu a propriedade de todos os outros bens, além do
de sua própz'ia pessoa.
!176 H u oo Gxoíi us

mesmas, mas por intermédio da pessoaà qual elas pertenceram. De-


vem ser excetuadas,contudo, aquelas que decorrem de uma proprieda-
de particular à pessoa e são, por conseguinte, inalienáveis, como o direi-
to paterno. Esses direitos, de fato, se podem subsistir, 6cam na pessoa,
senão se extinguem.

V Razão pela qual isso foi estabelecido

1. Tudo isso não foi introduzido por outra causa, pelo direito das
gentes de que tratamos, senãopara que, seduzidospor tantas vanta-
gens, aqueles que se apoderassem de prisioneiros se abstivessem de boa
vontade desse extremo rigor que poderiam exercer sobre eles, matan-
do-os de imediato ou após um prazo, como dissemos antes (livro 111,cap.
[V. $ 10). Pompânio [16] diz: "A denominação de escravos decorreu [17]
de que os generais têm o costume de vender os prisioneiros e por meio
disso conserva-los e não mata-los." Eu disse "para que se abstivessem
de boa vontade"; não é, de fato, como uma convenção que os coagida a
se abster, se não for considerado senão esse direito das gentes, mas é
um meio de fazê-los concordar pela consideração do que lhes é mais
vantajoso.

2. Também é pela mesma razão que esse direito se transfere a


outros, de modo igual como a propriedade das coisas.Por outro lado, foi
do agrado que essa propriedade se estendesse aos filhos porque, de outro
modo, se aqueles que úzeram os prisioneiros tivessem usado seu direito
rigoroso, esses filhos não teriam nascido. Disso decorre que aqueles que
nasceram antes da derrota, a menos que não tenham se tornado pri-

\16ÃL. Pupillus, 239, $ 1, Dig., De vero. signiHic.


[17] Ver também Servius em seus comentários ao canto V [327] da Eneida, onde
explica a origem do vocábulo saJfem.
1177
CAPÍTULO Vll - DO DIREITO SOBRE OS PRISIONEIROS

pioneiros eles também, não se tornam escravos.Arazão pela qual foi do


agrado das nações que os filhos fossem da mesma condição de sua mãe
é que as uniões de escravos não eram reguladas nem pela lei, nem por
uma vigilância segura, de modo que nenhuma presunção era suficiente
para conhecer o pai. Assim é que devem ser tomadas estas palawas de
Ulpiano [18]: "A ]ei da natureza é que aqueleque nascefora de um
casamento legitimo segue a mãe." Isso quer dizer que uma lei foi
estabelecida pelo costume geral em base a alguma razão natural, do
mesmo modo que mostramos em outro local (livro 11,cap. Xlll, $ 26)
que se tomava por vezes abusivamente a expressão de "direito natural".

3. Que essesdireitos não tenham sido introduzidos em vão pelas


nações,se podejulgar pelo exemplo das guerras civis, nas quais vemos,
na maioria das vezes,que os prisioneiros sãocondenadosà morte por'
que não podiam ser reduzidos à escravidão. Isso é que Plutarco notou
na vida de Otão [19] e Tácito no ]ivro segundo de suas -/]JkÉór7as[20] .

4. De resto, que aqueles que são presos sejam adquiridos pelo


povo ou pelos cidadãos privados, isso deve se decidir de acordo com o que
dissemos sobre o saque (livro 111,cap. VI, $ 12, 1). Nessa matéria, o
direito das gentes colocou os homens na mesma escala das coisas. O
jurisconsulto Gaius, no livro ll de ./\?i9gócybsCoü(Zzanos [21], diz: "De
modo similar, as coisas que são tomadas dos inimigos se tornam logo,
segundo o direito das gentes, propriedade daqueles que as tomam, a
ponto de mesmo os homens livres serem reduzidos à escravidão."

L\8ÃL. 24, Lex natwae, Dig-, De statu hominum.


[19] Oiço, 1073 C.

[20] Jnsfonae, 11,44, e 111,34, a respeito dos habitantes de Cremonafeitos prisionei


ro$ "0 consentimento da ltália tornava esse saque inútilpara os soldados.

L2\XL. 5e L 7, L. naturalem etl. adeo,Díg., De acq.rer. dam.


l
1178
Huco Gxotl us

VI. Se é permitido aos que são presos assim de fugir


1. Quanto ao que certos teó]ogos [22] acreditam, contudo, que
não é permitido àqueles que foram presos numa guerra injusta ou aos
6llhos nascidos desses prisioneiros de fugir, a não ser para sejuntar aos
seus, não duvido que nisso não se enganem. Há seguramente essa dife-
rença. Se eles fogem para os seus no decorrer da duração da guerra,
eles conquistam a liberdade pe]o direito de post]imínio [23] . Se fogem
para outros ou mesmo para os seus, depois da paz selada, deverão ser
entregues ao dono que os reivindica. Não se segue,porém, que haja
nisso alguma obrigação de consciência, visto que há vários direitos que
não dizem respeito senão aojulgamento exterior. Tais são os direitos da
guerra que expomosnesse momento. Não há o que objetar que da natu-
reza da propriedade resulta uma semelhante obrigação, ligando a cons-
ciência. Responderia, de fato, que comohá várias espéciesde proprieda-
de, pode também haver uma propriedade que não tenha força senão
segundo a justiça humana e mesmo segundo a justiça coativa, o que se
encontra em outros tipos de direito.

2. Tal é,de algum modo,o direito de declarar nulos testamentos,


por causa da ausência de alguma formalidade que as leis civis prescre-
vem. A opinião mais verossímil, de fato, é que o que foi deixado por um
tal testamento pode ser retido em consciência, ao menos enquanto não
esteja em oposiçãoa isso [24]. '1Yata-sequase da mesma coisa da pro-
priedade daquele que prescreveu de má fé segundo as leis civis, pois a
justiça civil protege aquele como proprietá;'io. Por essa distinção é que
se resolve de modo fácil essa dificuldade que Aristótes urdiu [25] : "Não

[22] Lessius, ]ivro ], cap. 5, dúv. 5.

[23] Ver cap. ]X, $ 5. No livro Nn6urai]s ,f]Zsfarlbe,V]1, 28, P]ínio diz a respeito de
Maxcus Selglus'. "Duas vezes preso porAníba], duas vezes ele escapou de seus
grilhões.
[24] goto, Z)e Jusüf. ef Ju/ Zero /K guesf. 4 aró, .Z].essius, /lwo ZZ c-ap./4, dtíK
3
[25] De aduz/aÉ., 11,5.
CAPÍTULO Vll - DO DIREITO SOBRE OS PRISIONEIROS

é justo que cada um tenha o seu? O que o juiz tiver julgado segundo sua
maneira de ver é ratificado pela lei. A mesma coisa, pois, será justa e
nãoiusta.
3. Em nossaquestão,porém, não se pode imaginar nenhuma
razão pela qual as nações teriam tido em vista outra coisa que essa
consideração externa. A possibilidade de reivindicar o escravo, de coa-
gi-lo, mesmo de acorrenta-lo e de se apropriar de seus bens, bastaria
para que aquelesque se tivessem apoderadodosprisioneiros quisessem
poupa-los;ou se tivessem sido bastante cruéis para não se deixarem
tocar põr essasvantagens, certamente uma obrigaçãoimposta à cons-
ciência não os teria tocado tampouco. Além disso, eles poderiam exigir
uma promessaou um juramento, se acreditassemque essaprópria
obrigação fosse absolutamente necessária para e]es [26]

4. Não se deve, pois, numa lei que não foi estabelecida em vista
da equidade natural, mas que foi feita para evitar um mal maior, admi-
tir levianamente uma interpretação que torne criminoso um ato que
por outra é lícito. O jurisconsu]to F]orentino [27] diz: "Não importa
como o prisioneiro voltou, se foi mandado embora, se escapou às perde'
guiçõesdosinimigos pela força ou pela esperteza." E que essedireito de
catividade é um direito de tal natureza que, em outro sentido, é no mais
das vezesuma injustiça e é sob esse nome que é designadopelo
jurisconsulto Paulo [28] : um direito, quanto a certos efeitos; uma injus-
tiça, se a natureza da coisa em si mesma é tomada em consideração.De
onde parecetambém que, se preso numa guerra injusta, alguém caiu
em poder dos inimigos, sua consciência não está manchada pelo crime

[26] Bembus(.]nsf., ]ivro X) diz que a consciência não bica carregada do crime de
furto se porventura se praticar o roubo de suas coisas.
t21\ L. 26, Nihil, Dig., De capt.
t28hL. 19,Postliminiumestjus in princ. eodemtit.
''q
1180 Hu GO GROTiUS

de furto se rouba seus bens ou setoma como sa]ário de seu traba]ho]29]


o que Ihe seria devido de modo justo, além dos alimentos, contando que
ele mesmo, nem em seu nome, nem em nome do Estado, deva alguma
coisa ao patrão ou àquele de quem seu patrão recebeu seu direito. Ê
indiferente que uma fuga e que uma subtração semelhantes sejam
usualmente castigadas de modo grave, quando são descobertas [30] .
Aqueles que têm a força de seu lado fazem essas coisas e muitas outras,
não porque sejam justas, mas porque isso lhes é vantajoso.

5. Quanto ao que certos cânones [31] proíbem persuadir um es-


cravo a abandonar o serviço de seu patrão [32], se essa proibição se
referir aos escravos que sofrem um justo castigo ou que se engajaram
na servidão por uma convençãovoluntária, é um preceito dejustiça. Se
a proibição se refere aosque foram feitos prisioneiros numa guerra
injusta ou que nasceram de prisioneiros, ela mostra que os cristãos

[29] A isso se referem as passagensde ]rineu e de Tertuliano que citamos antes


(livro 11,cap. Vll, $ 2), onde se trata dos hebreus que saíram do Egito. A esses
hebreus se aplica também esta passagem de Fílon, ao falar da vida de Moisés:
Comofossem rechaçadose expulsos,recordando em seu espírito a nobreza de
sua origem, eles empreenderam uma coisa digna de homens !ivres e que não
banham esquecido os maus tratos a que haviam sido injustamente submetidos.
De fato, eles levaram um grande montante de despojos, em parte dispostos
sobre seus ombros e em pape no dorso de seus animais de carga. Não que eles
fossem ávidos por riquezas ou que cobiçassemo bem de outrem, como
caluníadores poderiam acusa-los disso, pois de onde lhes teriam vindo tais
sentimentos? Mias quiseram primeiramente compensar com isso o salário que
lhes era devido por um tão !cago tempo de servidão; em segundo lugar,
gingar-se, mas não somente porque os egípcios o mereciam, da escravidão a
gue e/es os ãau7amreduz do..."Mais, tudo o que se segue nessa passagem.Há
semelhante história de um santo personagem, Malco, contada por Jerânimo,
em suas Cbrfas, e uma do longobardo Leupges que nos narra seu bisneto Paulo
Warnafried, em GesÉ/sLangoóardorum,IV. 4, 39. Pode-seacrescentar,se for
do agrado, a GonÉlisâopublicada sob o nome de Lanicius Patricius.
[30] Bannes, ZZ .Z quesf. 40.

[31] (Mnon SI quJ) serram, /Z quaesf. 4 e Cânones seguintes (C JZ causa mZ


quaest. 4).
[32] Do concílio. de Gangres. Ver o que foi dito no livro 11,6tnal do cap. V.
!181
CAPÍTULO Vll - DO DIREITO SOBRE OS PRISIONEIROS

devem dar aos cristãos o exemplo da paciência, antes que de uma coisa
similar que, embora lícita, poderia contudo indispor espíritos estranhos
ao cristianismo ou, por outra, fracos. Pode-se entender da mesma ma-
neira as exortações dos apóstolos aos escravos, a não ser que pareçam
antes exigir dos escravos a obediência durante o tempo em que estive-
rem a serviço de seu patrão, o que é conforme à equidade natural, pois
osalimentos e osserviços secorrespondemmutuamente.

VII. Se é permitido resistir a seu dono

De resto, sou de opinião que isso íoi dito de modo apropriado pelos
mesmos teólogos que comecei a indicar, ou seja, que um escravo não
pode, sem ferir o dever de justiça, resistir ao patrão fazendo uso desse
direito exterior. Há, de fato, entre isso e o que dissemos,uma manifesta
diferença. O direito exterior que não consiste somente na simples impu-
nidade da ação, mas que é colocado sob a tutela dos tribunais será inútil
se, de outra parte, o direito de resistir é mantido. Se é permitido resistir
pela força ao patrão, será permitido também resistir ao magistrado que
protege o patrão, quando contudo o magistrado, em virtude do direito
das gentes, deve manter o patrão em sua propriedade e no uso de sua
propriedade. Esse direito é, pois, semelhante ao que atribuímos em ou-
tro local (livro 1, cap. IV. $ 2) aos poderes soberanos de cada Estado,
dizendo que não é nem lícito, nem permitido em consciência resistir a
eles pela força. Por isso, Agostinho reuniu um e outro, quando disse:
"Os povos devem suportar os príncipes e os escravos seus donos, de tal
modo que os males temporais sejam tolerados como um exercício de
paciência e que os bens eternos sejam esperados.

VIII. Esse direito não esteve


sempre em uso em todas as nações

Deve-se saber que esse direito das gentes, relativo aos prisionei-
ros, não foi acatado sempre, nem junto a todas as nações, embora os
jurisconsultos romanos falem dele geralmente, designando nisso a par'
1182 H u oo GROTIUS

te mais conhecida pe]o nome do todo. Assim é que entre os hebreus]33]


que estavam por instituições peculiares separados do comércio dosou-
tros povos, um asilo foi aberto para os escravos(.DeuferonÓmJO,XVlll,
15), isto é, como o observam bem os intérpretes, aos que haviam caído
l nesse infortúnio, sem nenhuma falta da parte deles. Pode parecemque
daí tenha vindo o direito que, no solo dos francos, é concedido aos escra-
vos rec]amar sua ]iberdade [34], embora constatemos que esse direito é,
em nossos dias, concedido não somente aos prisioneiros de guerra, mas
também a todos os tipos de outros escravos.

IX. Não está em uso hoje ente'eos cristãos;


por que coisafoisubstituído.
=li $« «
1. 0s cristãos [35], porém, estão em gera] de acordo que, surgin-
il- «! #

't''rl'w' do a guerra entre eles, os prisioneiros não se tornariam escravos [36],


#ll .l#i
de maneira a poderem ser vendidos, coagidos a serviços e a suportarem
outros tratamentos infligidos aosescravos.Seguramente, é com razão;
porque haviam sido ou deviam ser muito bem instruídos por aquele que
lhes recomenda toda caridade para não terem podido ser desestimulados
a condenar à morte homens desafortunados; muito mais isso que pela
permissão de usar de uma crue]dade menor. Gregoras [37] escreveu

[33] Ver .F)zc'epÉ. HeZanf., CLXXX


[34] Bodin, .De -RepuóZ, ]ivro ], cap. 5
[35] E os essênios,dos quais os primeiros cristãos tiveram origem. Ver Josefo,
.4nÉlk'cidadesJudaJbas,XVl11, 1,5.
[36] Bartol., in .L .g4, nbsÉes, .22zg., De caFÉ.; Covarruvias, ín cap. /)eccafum, parte -Zl;
/ ]], n. ó; Vitoria, -De JU/e óe.tZ]; n. 4.Z Boerius, -Decai. ]78 Silvest., ]b I'ergo
Beilum. i. n. l
[37] Livro IV. 9, onde se encontram estas pa]avras: 'Z' um costume que passou dos
antigas a sua posteridade,que jamais se deturpou e que existiu não somente
entre os grego-romanose os tessalo11icenses,
mas também entre o$ ílírÍos, os
Eríbalianos e os búlgaros, por causa da fé que !hes era comum, que lhes permi'
bÍa de fazer saques das coisas,mas quenão se;podiafazer püsioneiros os
homens, nem mata-/o$ dará do pe/:üdo de c'omóafe."Adam de Bremen, falando
de Santo Anguário, diz: '7hde .Hammaóurgrel'ersus, de I'endlflone
(?Z/:rsí2'amaramNardaJÕJanos correxíf... " Boerius faz menção desse costume,
em .Dea7s.CLXXVlll, e acrescentaque se observa na França, na Inglaterra, na
Espanha que, se um duque, um conde,um barão é feito prisioneiro, não é
entregue aos soldados, mas ao príncipe que move a guerra.
CAPÍTULO Vll - DO DIREITO SOBRE OS PRISIONEIROS
1183

que, desde muito tempo, essa prática havia passado dos ancestrais a
seus descendentes, entre aqueles que faziam procissão da mesma reli-
gião e que não havia sido peculiar àqueles que viviam sob o império
romano, mas comum com os tessalianos, os ilírios, os tribalianos e os
búlgaros. Isso, ao menos, embora seja pouca coisa, é um resultado que
o respeito pela lei cristã rea]izou e ao qua] Sócrates [38], que o havia
aconselhado aos gregos em suas relações mútuas, não havia chegado.

2. O que os cristãos praticam a esserespeito, os maometanos o


observam de modo simi]ar entre eles [39] . O costume foi contudo con-
servado, mesmo entre os cristãos, de reter os prisioneiros até que te
nham pago o preço de seu resgate, cuja estimativa é deixada à discrição
do vencedor, a menos que não se tenha concordado algo de determinado
[40] . Esse direito de conservar os prisioneiros é concedido costumeira-
mente aos cidadãos privados que os prenderam, exceto se forem pessoas
revestidas de dignidade. Os usos da maioria das nações dá um direito
sobre essas pessoas ao Estado ou a seu chefe.

[38] Platão, ..4Eepúó/zba, V. 15.


[39] Ver Chalcocondylas, livro ]]], Leunc]avius, ]ivro ]]] e ]ivro XV]], Busbequius,
E8)hfo/a ExoÜc. lll
[40] Bartol., ]h .L .2q Nam ef se/'l'us, Duk., .Z)e negam. gesf.,' Boerius, Z)ecus. 278
Constit. Rege. Hisp., !ivre Vlil, tít. 26, parte 2.
Vlll

DA SOBERANA SOBRE
OS VENCIDOS

Sumário

1.Adquire-se também pela guerra opoder civil?residindo ele no


rei ou no povo; efeitos dessa aquisição.

11.Adquire-se também um poder de dono sobre o povo, que


cessa quando se torna um Estado.

111.Por vezes esses povos são misturados.

IV Adquire-se também os bens do povo, mesmoincorporais;


trata-se do compromisso escrito dos habitantes da Tessália.
CAPÍTULO Vlll - DA SOBERANIA SOBRE OS VENCIDOS
1187

1.Adquire-se também pela guerra


o poder civil,residindo ele no rei
ou no povo; efeitos dessa aquisição
1. Não há nada de espantoso que aquele que pode, em seu provei-
to, sujeitar cidadãos privados a uma servidão pessoal possa também se
tornar chefe de um conjunto de cidadãos, que sejam constituídos num
Estadoou numa parte de um Estado, impondo-lhes uma dependência
puramente civil ou puramente heril ou mista. Desseargumento é que
faz uso um personagem numa controvérsia de Sêneca [1] , a respeito de
Olinto: "Ele é meu escravo. Eu o comprei pelo direito da guerra. Isso vos
interessa, atenienses, de outro modo dever-se-ia reduzir vosso império,
tudo o que conquistastes pela guerra, a seus antigos limites." Por isso é
que Tertuliano [2] disse que conquistar Estados é estender suas 6'intei-
ras por vitórias. Quinti]iano [3] diz que no direito da guerra são com-
preendidos os reinos, os povos, os antigos limites das naçõese das cida-
des.A]exandre, em Quinto Cúrcio [4], afirma que as leis são ditadas
pelos vencedores, acatadas pelos vencidos. Minion assim se expressa
em seu discurso aosromanos [5]: "Por que, cada ano, enviais a Siracusa
e para as outras cidades gregas da Sicília um pretos investido do co-
mando com feixes e machadinhas? Tudo o que podeis dizer é que lhes
impusestesessasleis, depois de as ter submetido pelas armas."Ariovisto,
em César [6], diz: "E o direito da guerra, que os vencedores governem
como bem entendem aqueles que venceram." Diz igualmente que "os
romanos tinham por hábito impor leis aosvencidos, não segundo a opi-
nião dos outros, mas segundo sua própria inspiração"

11] aonírovers2be, X, 34
[2] HpaZoFeúcus, 25
[3] Z)e InsüfuÉ]'one (2mfoüa, V. lO,113.
[4] Livro IM 5,7
15]Tiro Lítio, .4ó CZ}.óe(;bndlfa, XXXV. 16,4.
[61 Caius Julius Caesar, Z)e .Be/7oGa//)bo, 1, 36
1188 H U GO GROTIUS

2. Justino narra [7], segundo Trogo, que aqueles que haviam


feito a guerra antes de Nino "não haviam buscadoo poder, mas a glória
e que, contentando-se em vencer, se haviam abstido de comandar". Nono
havia sido o primeiro que havia recuadoas fronteiras de seuimpério e
submetido os outros povos na guerra e, a partir dele, isso se havia tor-
nado costume. Bocchus diz, em Sa]ústio [8], que "havia tomado as ar-
mas para a defesa de seu reino, pois uma parte da Numídia, de onde
havia expulso Jugurta, sehavia tornado delepelo direito da guerra'
3. A soberania pode ser adquirida pela vitória, enquanto reside
num rei]9] ou em outro soberano.Então, se sucedesomentea seu
direito e nada mais. Pode também sê-lo, mesmo enquanto reside no
povo[10], nesse caso,o vencedor possui a soberania de tal maneira que

# [7] Livro 1, 1,7


[8] Z)e .Be//o Jugui«Éüz)lo,C]1, 12
[9] Alexandre, depois da bata]ha de Gaugamela, foi aclamado i'ei da Agia. Os romã
nos se apropriaram, por direito de guerra, das regiões que haviam pertencido a
Sifax (Apiano, Excerpfa Zegaf onum, X, 28). Os embaixador'es .dos godos, se
fundo relata Agatias(livro 1, 5), diziam de Teodoricoque 'êsserez; fe/]do vens/do
Odoacro, estrangeiro de Sito, tinha se tornado dono de todos os seus Estados
por dü'e/Éode guerra'{ Aos hunos, que diziam que os tépidas pertenciam a eles
porque haviam aprisionado seu rei, os romanos lhes negaram esse direito por-
que os gépidas não possuíam um rei mas um príncipe e que não estavam no
património dessepnncipe. Menandro o Protelar mencionaessefato (.Excerpf
Legar. Rom).
[lO] Os persas, no mesmoMenandro, dizem do território da cidade de Darás que,
"como esta cidade havia passado sob seu domínio por direito de guerra, era
razoável que tudo o que estivessesujeito a essacidade lhes pertepl:esse
Belisário, depois de ter'derrotado os vândalos, queria que a cidade de Lilibeo na
Sicília se tornasse dependente do império romano porque os godos a haviam
cedido aos vândalos, mas os godos negavam que a tivessem cedido (Procópio,
Hn/ldn/lc.. livro 11,5). Henrique, filho de Filipe Barbarroxa, depois de ter toma-
do a Sicília, reclamava para ele as cidades de Epidamna, Tessalõnicae outras
que os sicilianos possuíam (Nicetas, livro 1,cap. 7, sobre.AlexisLirmãode lsaac)
Baianos,' chefe dos avaros, dizia ao imperador a respeito de Sirmio que "esta
cidade Ihe pertencia porque havia pertencido aos gépidas e que os tépidas
Ãarlam s/do ve/?cJdospe/os avaros': Pedro, embaixadorde Justiniano, diz em
seu discurso a Cosroés: ':4que/e que ó dono do pr7hczba.Cc'omo/láo o serra do
acessório?Nem os suailos, nem os ]aciaís levantaram jamais qualquer dúüda
a respeito, que o território dos suados havia pertencido desde temposremotos
aos Jaclai's."As duas passagenssão tiradas de Menandro o Protetor (;Ekcerpf.de
7%af.J.Ver o que foi dito neste capítulo, parágrafo IV.
1189
CAPÍTULO Vlll - DA SOBERANIA SOBRE OS VENCIDOS

pode aliena-la, do mesmo modo que o povo o poderia. Dissemos em outro


local (limo, cap. 111,$ 11) que é assim que surgiu a existência de certos
reinos patrimoniais.

11.Adquire-se também um poder de dono sobre


o povo, que cessa quando se torna um Estado
1. Pode ocorrer também, a mais, que o Estado que existiu como
tal, cessa de ser um Estado, seja tornando-se um anexo de outro Esta-
do, como as províncias romanas, seja por ser reunido a algum Estado,
como se um rei fazendo a guerra a suas expensassubmete um povo de
tal forma que queira que seja governado em vista do interesse não de
seu povo, mas principalmente daquele que o governará, o que é próprio
do poder despótico, não da soberania civil. AJ:istóteles diz, no livro Vll de
seu 7}afado da Eepzíõd7ca [11] : "Uma coisa é o poder no interesse daque-

le que governa, outra coisa no interesse daquele que é governado. Esse)


ocorreentre os homens livres, aquele entre ossenhorese osescravos.
O povo pois que está submetido a um poder semelhante não será mais
no futuro um Estado, mas uma grande tropa de escravos. Foi, de fato,
muito bem expressopro Anaxandridas [12]: "Exce]entehomem]Em
lugar algum há um Estado compostode escravos.:
2. Tácito [13] opõe assim essascoisas entre si: "Que considerasse
não um patrão e escravos, mas um chefe e cidadãos..." Falando de
Agesi[au, Xenofonte [14] diz que "todas as cidades que e]e reduzia sob
seu poder, as dispeiasava dos deveres de escravos para com seus patrões
e só exigia as coisas pelas quais os homens livres obedecem aos magis-
trados'

lll] .rla/ftÜa,Vl1, 14
[12] Excerpfa ex gyug.of (nm. Gn
[13] .r]nJla/eS,X]], ll
[14] ,4gnsi7aus,1, 22
1190 H UGO GROTIUS

111.Por vezes esses povos sáo misturados

Disso se pode fazer uma idéia do que é essasoberania mista que


eu disse estar misturada com tanto de civil e tanto de heril; ocorre
quando a escravidão está misturada com alguma liberdade pessoal.Assim
é que lemos que foi tirado de povos o direito de possuir armas, que se
ordenou a eles de não ter ferro a não ser para usos agrícolas, que outros
foram coagidos a mudar de língua e de gênero de vida.

IV Adquire-se também os bens do povo,


mesmo incorporais; trata-se do compromisso
escrito dos habitantes da Tessália

1. Do mesmo modo que as coisas que haviam pertencido aos cida-


dãos privados são adquiridas pelo direito de guerra por aqueles que
J
submetem os cidadãos privados a seu poder, assim também as coisas
pertencentes a um todo se tornam propriedade daqueles que submetem
essetodo a seu poder, se o quiserem. O que T]ito Lívio [15] disse daque-
les que se rendem "Quando tudo foi entregue ao que é superior em
forças[16], é o direito do vencedor e depende de seu bom grado decidir do
que quer se apropriar de seus bens, se que os quer despojar" ocorre
mesmona guerra solene,para osvencidos.A submissãoconcedevolun-

[15] .4ó Z:&.óeaondlfa, XX]V, 57,7


[16] Ver no ]ivro ], cap. ]]], $ V]]]; ]ivro ]], cap. V. $ XXXI e livro 111,cap. V. $ 11i e a
seguir, cap. XX, $ XLIX. Acrescente-seesta passagemde Políbio (Excerpfa
Legationum, 'L4aà'"Aqueles que se entregam ao poder dos romanos lhes entre-
gam em primeiro lugar toda o território que possuíam com suas cidades; a
seguir, as pessoas,homens e mulheres, que nele se encontram; e ainda, todos
osrios, todos osportos, todas as coisassagradas,religiosas, numa palavra, tudo
o que lhes pertencia, de modo que os romanos se tornam donos de tudo;
aqueles que assim se entregaram não conservam mais absolutamente nada.
Ver o que foi dito no livro 1, cap.IV. $ VII. Justino,falandodosjudeus(livro
XX]N\, a,gà,à\z. "A seguir, quando os próprias persas caíram sob o domínio de
Alexandre Mlagno.
1191
CAPÍTULO Vlll - DA SOBERANIA SOBRE OS VENCIDOS

tariamente o que, se tivesse sido de outro modo, a força o teria arranca-


do. Scaptius, em Tito Lívio [17], diz que "o terreno contestado havia
feito parte do território dos coriolanos e que com a tomada de Coriola, o
direito da guerra havia transferido a propriedade para o povo romano".
Aníbal, numa conversa com seus soldados, que se encontra no mesmo
autor [18], diz: "Tudo o que os romanos conquistaram e acumularam
com tantos triunfos, tudo isso passará a nossas mãos, com os própmos
possuidores." Antíoco, no mesmo autor [19], diz que "pensava que o
antigo reino de seu inimigo Ihe pertencesse, porquanto, tendo sido ven-
cido, todos os seus Estados retomavam a Seleucopelo direito .da guer-
ra". De igual modo, Pompeu obteve para o povo romano as conquistas
que Mitridates havia acrescentado a seu império [20] .

2. Os direitos incorporais que haviam pertencido ao corpo do Es-


tado se tornarão pois propriedade do vencedor,se assim o quiser. Desse
modo é que Alba, sendo vencida, os romanos se atribuíram todos os
direitos que haviam pertencido aos a]banos [21] . Disso se segue que os
habitantes da Tessália haviam sido completamente liberados da obriga-
ção de pagar cem talentos, soma que deviam aos tebanos, mas que
Alexandre o Grande, tendo-se tornado senhor de Tubas,lhes havia feito
doação, pelo direito de vitória. O que é alegado em Quinti]iano122] em
favor dos tebanos não é verdade: que o vencedor nada pertence a não ser
o que ele mesmo conquista; que um direito sendo incorporam, não pode
ser apreendido com a mão; que uma é a condição do herdeiro e outra é a

[17].4ó Cã.be(bJldlfa, 111,71, 7.


[18] Idem, XX], 43, 6.

[19] Idem, XL]11, 40, 4

[20] Estrabão, ]ivro X]1, 3,1

[21]Dionísiode Halicarnasso,111,31.
[22] .De ]nsüfuüame Orafoda, V. ]O, 16
1192 H u co GROTIUS

do vencedor, porque o direito passa para aquele e a coisa para esse.


Aquele que é patrão de pessoaso é também dos bens e de todo direito
que cabe às pessoas.Aque]e que é possuído não possui para e]e [23] e
aquele que não é dono de si mesmo nada tem sob seu poder [24]

3. Mais ainda, mesmo que se deixe a um povo vencido o direito de


existir como Estado, pode-se tomar para si certos direitos que haviam
pertencido a esse Estado. Depende, de fato, do vencedor em conferir tais
limites, conformesualiberalidade. Casarimitou o ato deAlexandre, ao
remeter aoshabitantes de Dyrrachium uma dívida que haviam con-
traído para com não sesabequem da parte contrária [25]. Poderia ser
objetado aqui que a guerra de Casar não era do gênero daquelas que
deram [ugar a esse ./us.genüu/n [26]

t23ÀL. 118, QuíÍn servítute est, De reg. jur.


2.4ÀL. 22, Sic eveniet,Dig., Ad Leg. Ju}. De adula.
[25] Marcus Tullius Cicero (106-43 a.C.), .E»]sfo/a ad Bz'ufzzm, 1, 6.

[26] Antânio obrigou os habitantes de Tiro a devo]ver as coisas que haviam tomado
dos judeus e que não lhes haviam sido concedidaspelo senadoromano, por'
quanto não as possuíamantes da guerra de Cássio. Josefomenciona o fato. Ver
também Bizarro, J7zkó. Ganhe/7szk, livro X
lx

/
DO POSTLIMIMO

Sumário

1. Origem do termo postlimínio.

[[. Em que lugares se exerce o postlimínio.

111.Pelopostlimínio certas coisas retoi'nam, outras são recupe'


Fadas.

IV O direito depostlimínio ocorre na paz e na guerra; que deci-


dir quando dele não se fala na paz?

V Quando um homem livre, enquanto durar a guerra, retorna


pelo postiimínio?

VI. Quedireitos recupera e quais não recupera.

VII. Os direitos são restabelecidas também com relação a ele


propno.
tlimínio?
]
VIII. Por queos queserendem não têm direito ao po'

IX. Quando uln povo tem direito ao postlimínio.


X. Que coisas são de direito civil com relação aos que retornam
por postlimínio?
XI. Como os escravos, mesmo os trânsfugas, são recuperados
porpostiimínío. Como o sãa os que foram resgatados?

XII. Se os súditos sãorecuperados porpostlimínio.

Xlli. As terras são recuperadas por postiimínia.

XIVA respeito das coisas mobílíárías, que diferença se obser-


vava outrora?

XV. Qual é o (h'eito hoje com relação às coisas mobiliários?


XVI. Coisas que são recuperadas sem necessidade do
postlÍmínío.

XVII. Mludanças que as leis civis íãzell} a esse respeito, coili


relação aos que são submetidos a isso.

e
XVTll. Comoopostlimíníofoiobservado entre aqueres U ei'am
que z'

estrangeiros.
í)rl'er n
XIX. Quando isso ocde o:orrerhoje?
CAPÍTULO IX - DO POSTLIMÍNIO
1}95

1.Origem do termo postlimínio


1. Aqueles que, nos últimos séculos, fizeram procissão de conhe-
cer o direito, nada deixaram de razoável com relação às coisas que são
tomadas dos inimigos, do mesmo modo que sobre o direito de postlimínio.
Essa matéria foi tratada com mais cuidado pelos antigos romanos, mas
seguidamente de uma maneira por demais confusa, de modo que o lei-
tor não podia distinguir o que pretendiam que fosse de competência do
direito das gentesou do direito civil romano.

2. Sobre o termo posZ77)n.úlJadeve-se


rejeitar a opinião de Sérvio
[1] que pensa que a última parte desta palavra é uma terminação que a
alonga sem nada significar. Deve-se seguir Scaevola, que dizia que é
uma palavra composta derosé, que marca o retorno [2], e de Zz]né?n.
Na
verdade, .hímen e -Zünc?sdiferem pela desinência e pela maneira de decli-

nar, mas sãopor outro lado de mesma origem, vindo de fato de uma
antiga pa[awa, i])no [3], que significa colocadoem diagonal, e têm o
mesmo significado primitivo, do mesmo modo que mafer7b e mafer7bs,
pal'tzs e ramo, confagzb e coníages]4], cucumJSe cucumer, ainda que
um uso mais recente tenha pretendido que Jylnenfosse antes ligado a
coisas privadas, enquanto /lhes a coisas públicas. Assim é que os anti-
goschamavam eliminar o fato de rejeitar fronteiras e que denomina-
vam o exílio de e]iminação [5] .

[1] Marcus Tullius Cicero, 7tFüca, 8, 36


[2] De onde vem o nome da deusa /)osfvorfa.
[3] Ver Sérvio, no comentárioao canto X]1 [120] da Eneida, e Donato, nestas
palavras do Eunucüus, 601; "limas oculis". Festus diz: 'Limas oóZlguus,/d es4
íransversus. ande ef /ímlha." lsidoro, em Eéymo/.XV. 14, assim se exprime:
Limites appellati antiquo verbo transversi, nam transversa omnia antiqui lama
dicebant, a que et lâmina ostiorum, per quae foreset intus itur, et limites, quod
per eosabrasin arras eafur " No Glossário,encontra-se:'llipea, 7üapa oõoa':
[4] (bmpages e comparo, vocábulo que outrora foi comparem, como o indica seu
lenitivo e o verbo que dele deriva; como ocorre ainda com sanguese sangues.
[5] E cozan]nfum, em So]ino [cap. 15], é o coZZz
n]tíum que se usa popularmente.
1196 H UGO GROTIUS

11.Em que lugares se exerce o postlimínio


1. 0 postlimínio é,pois, um direito que nascedo retorno ao limite
[6] , isto é, às fronteiras púb]icas. Assim é que Pompânio [7] diz que está
de retorno pelo postlimínio aquele que começoua se encontrar dentro de
nossospostos mi]itares e Pau]o [8], quando tiver entrado em nossas
fronteiras. Em conformidade coma razão, as naçõestêm, por um con-
senso comum, estendido essedireito e concordaram que o postlimínio
ocorreria se um indivíduo ou se uma coisa do tipo daquelas às quais
fosseconveniente tornar o postlimínio aplicável, tinham vindo em dire-
ção a nossos amigos ou, como Paulo explica a título de exemplo, em
direção a um rei aliado ou amigo. Nessas passagens, por amigos ou
aliados deve-seentender não aquelescom os quais se está simplesmen-
te em paz [9], mas aque]es que, na guerra, seguem o mesmo parido. Os
que se aliaram àqueles, como diz Paulo, começam a estar sob a prote-
ção pública. Não importa, com efeito, que uma pessoa ou que uma coisa
setenha dirigido para elesou para os seus.
2. Entre aqueles que são amigos sem ter abraçado a mesma cau-
sa, os prisioneiros de guerra não mudam de condição, se não for em
virtude de uma convenção especial, como no segundo tratado celebrado
entre os romanos e os cartagineses, havia sido concordado que aqueles
que, presos pelos cartagineses entre povos amigos dos romanos, seriam
enviados a portos dos romanos, poderiam ser colocadosem liberdade e
que o mesmo direito existiria para os amigos dos cartagineses [lO] . Por
isso, aqueles romanos que, feitos prisioneiros na segunda guerra

[6] Por isso é que Tertuliano disse, em sentido metafórico: "0 rosé/])nih a da paz
eclesiástica" \De Pudicitia, L5À
Lll L Postliminíi, 5, $ !, DÍg., De capt.
t8ÀL. 19, Postlíminíum, $ 3 postlíminío, Dig., De capa.
[9] Para De Thou(livro CXXX,3, do ano de 1603)pareceque os reis do Matracase
de Fez assim o entendiam
[10]Políbio,]ivro 111,24
1}97
CAPÍTULO IX - DO POSTLIMÍNIO

púnica [11] e enviados à Grécia após terem sido vendidos, não gozaram
do direito de post]imínio [12] , porque os gregos se haviam conservado
neutros nessa guerra. Por causa disso foi preciso resgata-los para se'
rem liberados. Mesmo em Homero podemosver, em mais de uma pas'
vagem,os prisioneiros de guerra vendidos a países neutros, como
Licaonte na ]]íada [13] e Eurimedusas na Odisséia [14] .

111.Pelo postlimínio certas coisas .retornam,


outras sáo recuperadas
Uma antiga locução dos romanos dizia que mesmo os homens
livres eram recuperados pelo postlimínio. Gallus Aelius, no primeiro
livro dos Slkz.übados que se relacionam ao Direito, diz que é recupera
do pelo postlimínio aquele que, homem livre, retorna ao Estado que
havia deixado para se dirigir a outro país, conformando-se ao direito
estabelecido pelo postlimínio. Também o escravo que, saindo de nosso
poder para cair sob o poder dosinimigos, retorna em seguida a nós pelo
direito de postlimínio, para recair sobo poder sob o qual havia estado
antes. Os cavalos, os burros, os navios estão compreendidos nesse direi-
to de postlimínio (assim é que por meio de uma leve mudança, penso
que se pode conservar essas três palavras que Jacques Cujas [15] quer
suprimir, homem incomparável no estudo do direito romano) "como o
escravo;os tipos de coisas que, dosinimigos, retornam a nós pelo
postlimínio, podem retornar a nós pelo postlimínio e podem de nós
retornar aosinimigos"]16] . Osjurisconsultos romanos dos últimos tem-

[11] Plutarco, .Z?=/am]ruus,


376 F.
[12] Valério Máximo, livro V. cap. 11,6; Diodoro da Sicília, ExcerpÉa.LegaÉünum,n.
3. Foi assim que os habitantes de Bodes entregaram generosamente aos
atenienses os cidadãos de Atenas que haviam comprado na guerra de Filipe.
Políbio, Excerpéa ZegaÉlanum, n. 3
[13] ZEüda,XX], 35 e seguintes.
[14] Oá)sova, V]1, 8.
[15] 0ÓservaÉ.X], 23.
[16] Pub[ius Festus, .fbí?2pevus]i. v. .])osÉ/lminium]
!198 H U GO GROTI US

pos [17], porém, estabe]eceramcom mais precisão duas espéciesde


postlimínio: uma, quando retomamos; a outra, quando recuperamos
alguma coisa

IV O direito de postlimínio ocorre na paz e na guerra;


que decidir quando dele não se fala na paz?
1. Deve-se reter essa opinião de Monino [18] que diz que o direi-
to de postlimínio ocorre na guerra ou na paz. Num sentido um pouco
diferente daque[e no qua] Pompânio [19] havia dito a mesma coisa. Na
paz, o postlimínio, a menosque setenha concordadodiversamente, existe
para aqueles que não foram presos com as armas na mão, mas que por
seu azar foram surpreendidos [20] .Tais sãoos que, depois que a guerra
havia repentinamente eclodido,se encontravam entre os inimigos. O
postlimínio não ocorre na paz para os outros prisioneiros, a menos que
isso não estivesse compreendido nas convenções]21], segundo a exce-

ttl\ 1.. 14, Cum dure, Díg., De capa.et postiim. ver.


ttSà. L. 12, in be!!o, Dig., Eodem tit.
LIGAL 5, Postliminium, $ 1, Dig., De capa.
[20] Ver um exemp]o em Paruta, De -BeZ/o CZyprl]] livro ]
[21] Ver Josefo, .4nélb. .ÉÍ)kZ.,X]11, 2. Po]íbio cita c]áusu]as dizendo que os prisionei-
ros seriam devolvidos, na paz celebradacom Filipe, naquela com os etólios, com
uma exceção no entanto, e naquela com Antíoco(arcerpfa ZegaZlbnum, 9, 28,
35). Tito Lívio cita os mesmos exemplos e, mais, a cláusula da paz com Nabis.
Zósimo fornece alguns exemplos semelhantes, como aquele da paz concluída
entre Provo e os vândalos e os burgúndios, dizendo que 'todo trufa de saques
e fadosos p/vs/oneü'osserlbm devo/idos"(livro 1, 68). Fala de um tratado de
paz similar de Juliana com os germânicose daquele que celebrou em seguida
com os quados, povo da Germânia (livro 111,4 e 7). Amiano Marcelino (livro
XVII. l0.3-4) diz de Suomario, rei dos alamanos: ':E7epeayb a paz de Jbe/Zos e
eie a obteve com o perdão do passado,sob a condição de devolver todos os
pr7sToneúosáe/fos entre os nossos."Pouco adiante(XVl1, 12,11), diz dos sármatas:
Tendorecebido a ordem de guardar comintrepidez o território que ocupavam,
eles nos devolveram os prisioneiros que haviam feito dentre os nossos." D\z
ainda a mesmacoisade outra porçãode sármatas.Em Zonaras,há muitos
exemplos semelhantes.Dentre outros, na história de Michel, filho de Teófilo,
falando do rei dos búlgaros, diz Q(VI, 6,3): 'Promete aos pnsloneúos de ]Zes
concedera /lberdade."Nicetas(/Uanue/ aomneno, 11,8) diz que a liberdade fai
concedida a todos os prisioneiros, exceto aos coríntios e aos tebanos, homens e
mulheres. Por vezes, concorda-seem restituir somente os prisioneiros ligados
ao Estado, como se tem um exemplo em Tucídides (livro V. 18)
CAPÍTULO IX - DO POSTLIMÍNIO
1199

lente correção que o sábio Pierre du Faur [22] faz a essa passagem de
[lYifonino, sem ser desaprovada por Cujas, pois a razão que se segue e a
oposiçãoque a precede o provam de modo manifesto. Zonaras [23] diz:
"Havia celebrado a paz, tendo mandado embora os prisioneiros, pois
assim havia sido concordado." ]] Pompânio [24] : "Se um prisioneiro, do
qual se havia estipulado seu retorno em tempo de paz, ficou junto aos
inimigos por livre vontade, não subsiste mais depois disso o postlimínio
para ele." E ainda Pau]o [25] : "Se um prisioneiro de guerra fugiu para
sua casa depois da paz selada, pelo postlimínio retorna para aquele que
o havia feito prisioneiro na primeira guerra se, contudo, não se concor-
dou na paz que os prisioneiros seriam devolvidos.:

2. '1\'ifonino, segundo Sérvio, alega como razão pela qual preferiu


decidir assim a respeito daqueles que foram presos com as armas na
mão, porque "os romanos quiseram que seus cidadãos fundassem a es
perança do retorno em sua bravura, antes que pela paz". Desde os tem-
pos antigos, de fato, como o diz Tito Lívio [26], a sociedade não teve
nenhumaindulgência para comos prisioneiros. Essa razão particular
não pede constituir o direito das gentes, mas pede subsistir entre as
causas pelas quais os romanos tel'iam adotado também essedireito in-
troduzido pelas outras nações. Mais fundada é essa razão, isto é, que os
reis ou os povos que empreendiam uma guerra queriam que se acredi-
tasse que tinham causas justas para fazê-lo e que ao contrário aqueles
que empunhavam as armas contra eles pretendiam ataca-las. Ora, como
uma e outra das partes queriam que isso fossedifundido como verdade
e que não seria seguro para aqueles que desejassem conservar a paz

[22] Semesír., ]ivro ], cap. 7


[23] Tomo lll
t24ÀL. 20, Si capa.,Dig., De capa.
t25À L. 28, Si quid bello, dica. tit.
[26] .4ó Z]ü.ÉeC;bndfa, XXl1, 59,1
H UGO GROTIOS

envolver-se nessa contenda, os povos neutros nada puderam fazer de


melhor do que aceitar por direito o que poderia acontecer[27] e assim
considerar aqueles que teriam sido presos com as armas na mão, como
presos em virtude de uma causa justa.

3. A mesma coisa não podia ser dita daqueles que haviam sido
surpreendidos depois que a guerra havia eclodido, pois nenhum plano
de ataque poderia ser suposto neles. Não pareceria, no entanto, iníquo
relê-los no decorrer da guerra para diminuir as forças dos inimigos.
Terminada a guerra, nada podia ser alegadopara colocarobstáculo a
sua liberação. Por isso se chegou a um acordo sobre esse ponto, que tais
prisioneiros obteriam sempre a liberdade na paz, como sendo inocentes,
com a concordância das partes, mas que, como os outros, cada um usa-
ria do direito que seria reconhecido para eles, exceto quando as conven-
çõesprescrevessemalguma coisa determinada. Pela mesma causa é
que nem os escravos [28], nem as coisas tomadas na guerra não são
devolvidas quando houver paz, a menosque isso não tenha sido estipu-
lado em convenção, porque o vencedor quer que se acredite que tinha o
direito de obter essascoisase que, contradizê-lo,seria dar origem a
novas guerras eclodindo de outras guerras. Disso decorre que a passa'
gem seguinte, encontrada em Quinti]iano [29] , em favor dos tebanos, é
uma alegação engenhosa mas não conforme à verdade: "Por isso é que,
se os prisioneiros retomaram à sua pátria, estão limes porque as coisas
adquiridas na guerra só se conservam com o próprio emprego da força.:

[27] Ver Prisão, -Ercerpfa -Legz]lonum, 28, e Bizarro, .De .Beato Genuensium n
Uenefos,livro ll.
[28] Totila ordenou ao diácono Pe]ágio, que ]he havia sido enviado pelos romanos,
de não Ihe falar da restituição dos escravosdos sicilianos, dizendo que seria
iníquo que os romanos devolvessemseus companheiros de armas a seus anta
gos donos. A passagem se encontra em Procópio, GofÉÜ/a, 111, 16.
[29] .De ]nsüfuüone arufo/:ü, V. ]O, 115.
1201
CAPÍTULO IX - DO POSTLIMÍNIO

4. Na guerra retornam pelo postlimínio as pessoas que, antes de


serem presas, estavam ]ivres [30] ; são recuperados os escravos e certas
outras coisas.

V Quando um homem livre, enquanto durar


a guerra, retorna pelo postlimínio?
Um homem livre não retorna pelo postlimínio, a não ser sevolta
para os seus com a intenção de respeitar suas instituições, como foi
ensinado por 'lYifonino [31] . Arazão disso é que, para que um escravo se
torne livre, deve se comprar a si mesmo, por assim dizer, o que não se
pode fazer sem sua vontade. De resto, não importa que tenha sido toma-
do dosinimigos pela força das armas [32] ou que tenha fugido por a]-
gum artifício, como foi observado por F]orentino [33] . Seria a mesma
coisa se tivesse sido ]ibertado vo]untariamente pe]os inimigos]34] . Que
decidir se,vendido pelo inimigo, como isso ocorre, retornou para os seus
[35]? Essa questão é tratada em Sêneca [36], a respeito de O]into que
Parrhasius havia comprado. Pergunta, de fato, se essedecreto (emana-
do pelosatenienses que ordenavam que os Olintos fossem livres) previa
que se tornassem livres ou que fossem considerados livres; este último
sentido é o mais verdadeiro dos dois.

[301Juliana, em seu discursocontra os fa]soscínicos(Omf. Ka, diz: 'Z)essemodo,


seriam escravosmesmo os prisioneiros de guerra que libertámos. E, no entan-
to, as leis !hes concedema !iberdadé, a partir do momento que retomaram
junto a nós.
L3\X L 12, $ 9, Díg., in beijo, $manumittendo, eh 5, Postliminü, $ Captivus, i)ig.,
De capa.
[32] Como os prisioneiros feitos pe]os eslavos e que os hunos libertaram; em Procópio,
GoffüJb., 111, 14.
t33À L 26, Nihí!, Dig., De capa.
t34À L. 5, Cum non redemptum, Cod., De postiiminio.
[35] Assim é que na mesma obra de Procópio, um jovem chamado Chi]dubius dizia
que "tendo voltado para sua pátria, deveria õlcar imediatamente livre, segundo
as .õuk': Leunclavius observa que outrora, entre os turcos, não havia direito de
postlimínio para os prisioneiros
[36] Livro V. (]oúírove/slb .XXXrr
1202 H UGO GROTIUS

VI. Que direitos recupera e quais náo recupera


1. Desde que um homem livre está de volta entre os seus, não
somente se adquire a si mesmo, mas ainda volta para todas as coisas
que havia possuído entre os povos neutros, seja corporais, sda incorporais.
A razão é que, comoos povos neutros haviam tomado o fato pelo direito,
a respeito do prisioneiro, fazem a mesma coisa a respeito daquele que
foi libertado, a ülm de se mostrar justos a ambas as partes. O direito de
propriedade que tinha tido sobre seus bens aquele que o possuía pelo
direito de guerra não era, pois, absolutamente sem condição. Podia, de
fato, cessar malgrado o proprietário, se aquele que havia sido prisionei-
ro tivesse voltado para os seus.Perde pois essascoisas da mesma ma-
neira que a pessoapara a qual eram um acessório.
2. Que decidir, contudo, se as tivesse alienado? O terceiro que a
título daquele que era a essa épocaproprietário pelo direito da guerra,
será protegido pelo direito das gentes? Ou essas coisas também serão
recuperadas? Falo daquelas que se encontravam junto ao povo neutro.
Parece que se deve distinguir entre as coisasque são de natureza a
voltar pelo postlimínio e aquelas que não são dessa natureza e que se
deve dizer que aquelas parecem alienadas tal como estão e sob condição,
mas que essaso são pura e simplesmente. Entendo por alienadas mes-
mo aquelas que foram objeto de uma doaçãoou de uma aceptilação.

VII. Os direitos são restabelecidos


também com relação a ele próprio
Do mesmo modo que os direitos voltam para aquele que retorna
pelo postlimínio, assim também os direitos que se possuía contra ele
mesmo são restituídos e considerados, seguindo a expressão de Monino
[37] , como se jamais tivesse estado em poder dos inimigos.

t31\ L 12, in beijo, $ 6, Caetera ieg. muiier., Dig., De capt.


CAPÍTULO IX - DO POSTLIMÍNIO
1203

Vln Por que os que se rendem


não têm direito ao postlimínio?
Paulo [38] co]ocou com razão a essa regra concernente às pessoas
livres esta exceção:"São privados do postlimínio aqueles que, vencidos
pelas armas, sehaviam rendido aosinimigos."Arazão é que as conven-
ções feitas com os inimigos são válidas segundo o direito das gentes,
como o diremos em outro local (livro 111,cap. XIX), e que não há contra
elas postlimínio. Por isso é que, em Au]us Ge]]ius [39] , os romanos que
haviam sido presos pelos cartagineses declararam que "não podiam go-
zar do direito de postlimínio porque estavam ligados por juramento'
Disso decorre também que não há postlimínio durante o período de uma
trégua, como Paulo observou muito bem [40]. Aque]es que são entre-
gues aos inimigos, isto é, sem nenhuma convenção, Modestino [41] é de
opinião que retornam pelo postlimínio.

IX. Quando um povo tem direito ao postlimínio

1. 0 que dissemos dos indivíduos, penso que se possa dizer tam-


bém dos povos, de modo que aqueles que eram livres recuperam sua
liberdade se, por acaso, a força de seus aliados os liberta da dominação
dosinimigos. Se a multidão que havia constituído o Estado íor dissolvi-
da, penso por mais verdadeiro que não deve ser considerado o mesmo
povo e que seus bens não Ihe serão mais restituídos pelo postlimínio, em
virtude do direito das gentes, porque um povo, como um navio, perene
inteiramente pela dissolução de suas partes, consistindo toda sua natu-
reza em sua união perpétua. Não foi mais, portanto, a mesma cidade de

[38ÀL. 17, Postiiminium, dica. tit.


[39]Moelas.4fflbae,V], 18.
t4QÜL. 19, Postliminium, $ 1, Induciae, Dig., De capa.
[41] J,. 4, Eõs qual dlcó. zl'f.
1204 H oeo Gxoiius

Sagunta, quando foi restituída a seus antigos habitantes, oito anos após.
Nem bebas, depois que os tebanos haviam sido vendidos porAlexandre
como escravos. Disso decorre que aquilo que os habitantes da Tessália
de-viam aos tebanos não foi restituído a essestebanos pelo postlimínio.
E isso por duas razões: primeiro, porque era um novo povo; segundo,
porqueAlexandre, na épocaem que era governante, teria podido alienar
essedh'eito e de fato o alienou; e ainda porque uma dívida não se inclui
no número das coisas que retornam pelo postlimínio.

2. O que dissemos de um Estado não difere muito dessa regra,


segundo a qua], de acordo com o antigo direito romano [42], sob o impé-
rio do qual os casamentos eram dissolúveis, o casamento não era consi-
derado restabe]ecido pe]o post]imínio [43] , mas renovado por um novo
consentimento.

X. Que coisas são de direito civil com relação


aos que retornam por postlimínio9

1. Pode-se compreender com isso o que é, segundo o direito das


gentes, o postlimínio com relação às pessoas livres. De resto, esse pró-
prio direito, no que diz respeito aos fatos que se passam no interior do
Estado, pode ser tanto restrito pelo direito civil por meio de exceçõesou
condições, quanto ampliado, acrescentando-lhe outras vantagens. As-
sim é que os trânsfugas foram exc]uídospe]o direito civi] romano [44]

tAlA L 8, }gon ut !. cum dure, $ 1, Dig., De capa.


[43] Entre os cristãos, é diverso. O papa Leão (Leo Magnus, .qy])fa/a ISg .4dM'cedam
Aquileiensem Episcopumbdiz. "Que conforme o que se observa com relação
aos escravos ou às terras. ou mesmo às casas e outros bens suscetíveis de
serem possuídos, bem como aos prisioneiros de guerra, aos quais é conservado
o direito de pcstiimínio, quandoretornam da captividade,assim tambémos
primeiros casamentos sejam restabelecidas, se tiver havido segundas uniões
no intervalo." 'Ver H\hcmax, Opusc. De Dívortío l,otharií et Tethbergae, ad
Znfen'ogzf]onemXZZ7ef .Responszm Sfepáan] Papal, cap. XIX, tomo ll dos
Concílios da F'rança
L44À h 19, Postliminium, $ 4, '1kansfugae e $ 7, Filius queque.
1205
CAPÍTULO IX - DO POSTLIMÍNIO

do número das coisas que retornam pelo postlimínio, mesmo os filhos,


sobreos quais parece que essepoder paterno que era próprio dos Quirites
deveriam ter sido conservados pelo pai. Mas isso íoi assim convencionado,
diz Paulo, porque a disciplina dos acampamentos era preferida pelos
mais antigos pais romanos do que a afeiçãopor seusfilhos. Com isso
concorda Cícero [45] que diz de Manlio que tinha, ao preço da própria
dor, sancionado a disciplina do comando militar a 6m de garantir as-
sim a salvação dos cidadãos, na qual sabia que se encontrava a sua
também.Além disso, que o direito da autoridade havia sido preferido
por ele mesmo, em detrimento da própria natureza e do amor parei'nal.

2. O direito de postlimínio recebe também uma restrição do que


foi estabelecido pelas leis áticas [46] em primeiro lugar e a seguir pelas
leis romanas, ou seja, que aquele que Êoiresgatado do meio dos inimigos
seja escravo daquele que o resgatou, tanto que não terá o preço do res-
gate reembo]sado]47] . Parece que mesmo isso foi introduzido para favo-
recer a liberdade, de medo que suprimindo a esperança de retomar seu
dinheiro, muitos indivíduos não fossem deixados nas mãos dos inimi-
gos. Por isso essa mesma escravidão é abrandada de diversas maneiras
pelas mesmas leis romanas e pela última de Justiniano [48] segundo a
qual terminava após cinco anos de serviço. O direito de pedir o reembol-
sose extingue também pela morte daquele que foi resgatado [49]. De
igual modo, é considerado temido quando um casamento é contratado
entre a pessoa que resgatou e a que foi resgatada [50] . Perde-se pe]a

[45] De .F]h/Z)us,], ]0,35


[46] Demóstenes, in ./VlbosÉraftzm, ]].

[47] A mesma coisa é ordenada no edita de Car]os o Calvo publicado em Pistes


(.4Zon. Gera. #bf., Zeg-«, Seco. n, tom. tD.
tA8ÀL 20, Cod, De postlim. !ex uit.
IA9RL 15, Si paire, Dig., De capa.
t5QÜL 13, Si is qui te, Cod:,De postliminío.
1206 H U GO Gxotlus

prostituição da mu]her resgatada]51]. Muitas outras disposiçõesforam


estabelecidas também pelo dh'eito romano em favor daqueles que resga-
tam e para punir os parentes que não resgatam os seus.

3. Por outro lado, o direito de postlimínio foi estendido pela lei


civil, não somente com relação às coisas compreendidas no postlimínio,
segundo o direito das gentes, mas todas as coisas, todos os direitos são
conservados, de mesmo modo que se aquele que voltou não tivesse ja-
mais estado em poder dos inimigos, o que foi praticado também no di-
reito ático.Assim lemosem Dion de Prousa,DiscursoXV de um indiví-
duo que se dizia ser filho de Calhas, ter sido preso na derrota deAcanto,
e ter sido escravo na 'l.'rácia; tendo voltado a Atenas pelo postlimínio e
tendo reivindicado a herança de Calhas contra aqueles que a possuíam,
não se colocou outra questão perante o juiz senão a de saber se na rea-
111 [idade era o fi]ho de Ca]]ias. O mesmo conta que os messênios [52],
n!
depois de terem passado longo tempo em catividade, haviam recobrado
finalmente sua liberdade e sua pátria. Mais ainda, as próprias coisas
que ha-viam sido destacadas dos bens por usucapião ou por liberação ou
osdireitos quepareciam extintos pelafalta de usoforam restituídos por
açãorescisória [53] . No edito referente à restituição -ín.ínfegl"umdos
bens dos ancestrais está incluído aquele que está em poder dos inimigos
[54] . E isso, pe]o menos, provém do antigo direito romano.

4. Alei Cornélia previa mesmo aos interesses dos herdeiros da-


queles que, prisioneiros, seriam mortos entre os inimigos, conservando
seus bens, como se aquele que não retorna tivesse sido morto no mo-
mento mesmo em que havia sido preso. Se fossem supressas essas leis

[51] Z. Z Xoe(#snhae modemÓÉ.


[52] Dion Crisóstomoou de Prousa, Ora6zo.XV
t53ÀL 18,Ab hostibus, Cod., De postiiminio.
t5ü L 1, $ 1, Díg., Quíbus ex causa majores.
1207
CAPÍTULO IX - DO POSTLIMÍNIO

civis, semdúvida alguma, logo que um indivíduo tivesse sido preso


pelos inimigos, seus bens teriam pertencido aos primeiros ocupantes
[55], porque aquele que se encontra entre os inimigos é considerado
como se não existisse mais. Se aquele que havia sido preso retornasse,
recuperaria somente as coisas que, segundo o direito das gentes, com-
portam o postlimínio. Quanto à questão dosbens dosprisioneiros atri-
buídos ao cisco, se não houver nenhum herdeiro, é uma disposição par'
ticular do direito romano [56] . Vimos que é re]ativo aos que retornam;
vejamos o que diz respeito às coisas que são recuperadas.

XI. Como os escravos, mesmo os trânsfugas,


sáo recuperados por postlimínio. Como
o são os que foram resgatados?
1. Entre essascoisas estão os escravos e as mulheres escravas,
mesmo se tivessem sido muitas vezes alienados [57], mesmo se tives-
sem sido libertados pe]o inimigo [58] porque a ]ibertação, dada segundo
o direito dos inimigos, não pôde prejudicar nossoconcidadãodono do
escravo,como o observa muito bem Trifonino [59] . Para que o escravo
seja recuperado é necessário que seja efetivamente possuído pelo antigo
donoou que possafacilmente ser possuído. Por isso é que, enquanto

[55] Ver a ]ei dos visigodos, ]ivro V. tit. ]V. cap. 5.


t56ÀL 31, Dívus, Dig-, De jure âlsci; L. 22, Boda, $ 1, Apparet., Dig-, De capa.
[57] Foi estabe]ecido por um edito de Teodorico que 'bs esa'avos ou os co/anos Zeiéos
prisioneiros, ao voltarem, sejam restituídos a seu dono, se tiverem sido com-
prados antedarmente por outro dono que os teria comprado do inimigo". 'Vet
também Cassiodoro,111,43. Por força da lei dos visigodos (livro V. tit. IV. 21), o
escravorecuperado na guerra é devolvido a seu dono; aquele que o resgatou
recebe um terço do justo preço desseescravo.Se foi resgatado um escravo
vendido pelos inimigos, ele retorna a seu dono,-após o reembolso do preço e
outras despesas.
[58] Como aque]es que haviam sido libertados por Mitridates e que retomaram à
escravidão(Apiano, .Body.JlaÉür7d., 61)
L5qR
L. 12, in bello, $ 9, Manumíttendo.
1208 H UGO GKOíl US

basta, em matéria de outras coisas, que sejam reconduzidas ao interior


de nossos limites, isso não será suficiente para o postlimínio a respeito
do escravo, a menos que não se tenha conhecimento disso. Aquele que
se encontra na cidade de Romã, escondendo-seaí, não parece ainda
recuperado, segundo opinião de Pau]o [60]. Ora, como o escravo nisso
difere das coisasinanimadas, difere também do homem livre no fato
que, para ser resgatado por postlimínio, não é necessárioque ele retorne
com a intenção de conservar-se de nosso lado. Isso, de fato, é exigido
para aquele que deve se resgatar por si mesmo e não para aquele que é
resgatado por outro. E, como Sabino [61] escreveu: "Cada um tem a
total liberdade de escolherqualquer país que Ihe agrade, mas não qual-
querpatrãoquequeira.
2. Alei romana não excetua dessedireito das gentes os escravos
trânsfugas. A seu respeito também o dono recupera seu antigo direito,
l ÊI
como Pau[o nos informa [62] , para evitar que um direito contrário não
seja tanto uma marca para aquele que fica sempre escravocomouma
perda para o dono.Foi dito geralmente por imperadores, a propósito dos
escravos que são recuperados pela coragem dos soldados, uma â'ase que
alguns aplicam mal a propósito de todas as coisas: "Devemos consi-
dera-los como recuperados, não como presos e convém que nosso solda-
do seja seu defensor, não seu dono." [63]

3.Aqueles que foram resgatados dos inimigos se tornam logo, em


virtude do direito romano, escravosdaquele que os resgatou, mas o
preço sendo reembolsado, são considerados recuperados pelo postlimínio.
Na verdade, cabe aos intérpretes do direito civil explicar essas coisas
commais detalhes. Várias coisasforam mudadas pelas últimas leis e

t6qÜL. 30, Ult., Dig., De capt.

u6tX L 12, in beijo, $ 9, Mlanumittendo.


L62\ L. 19, Postiiminium, $ 5, Si vero servus.

u63ÀL 12, Ab hostibus, Ccd., De postliminio.


1209
CAPÍTULO IX - DO POSTLIMÍNIO

para que os escravosprisioneiros fossem convidados a retornar, a liber-


dade foi prometida aos que tivessem algum membro roto para gozar da
liberdade imediatamente; aos outros, depois de cinco anos, como se
pode ver nas leis militares recolhidas por Rufus.

XII. Se os súditos são recuperados por postlimínio


Essa questão nos diz respeito particularmente, se os povos que
foram submetidos à dominação de outrem, recuperem sua antiga con-
dição, o que pode se tratar supondo que não tenha sido aquele a quem
pertencia a soberania, mas algum aliado que os libertou do inimigo.
Penso que se deve dizer aqui a mesma coisa que a respeito dos escravos,
a menos que não se tenha concordado de outro modo no tratado de
aliança.

XIII. As terras sãorecuperadaspor postlimínio


1. Entre as coisas,em primeiro lugar vêm as terras que estão
compreendidas no postlimínio. Pompânio]64] diz: "E verdade que quan-
do osinimigos foram expulsosdas terras que tomaram, a propriedade
dessasterras retorna a seus primeiros donos."Os inimigos devem ser
considerados expulsos de um lugar quando não podem mais se aproxi-
mar abertamente, comoexplicamos em outro local (livro 111,cap. VI, $
IV). Assim é que os lacedemânios devolveram a seus antigos donos]65]
ailha de Egina que haviam tomado dosatenienses[66]. Justiniano [67]

u64ÀL. 20, Si captivus, $ 1, Verum est, Dig., De capa.


[65] Foi pelo fato de terem sido do partido dos ]acedemânios.
Ver o que foi dito no
cap. VI, $ VIII.

[66] Estrabão, livro Vl11, 6, 16


[67] ]Vovej7a
H U GO GROTI US

e outros imperadores]68] devolveram aosherdeiros dos antigos possui-


dores os campos que haviam recuperado dos godose dos vânda]os [69] ,
não admitindo contra os proprietários as prescrições que as leis roma-
nas haviam introduzido.

2. Quanto ao direito relativo às terras, pensoque é o mesmo


relativo a todo direito que está ligado ao solo. Os lugares tomados pelos
inimigos que haviam sido religiosos e sagrados, se fossem liberados
dessa calamidade, eram devolvidos a seu primeiro estado, como em vir-
tude de post]imínio, escreveu Pompõnio [70] . Com isso concordam estas
palavras de Cícero, em sua Verrina sobre as estátuas [71], a propósito
de Diana de Segesta: "Pelo valor de Públio, o Africano, ela recuperou
suas honras religiosas, ao mesmo tempo que o lugar em que era honra-
da." Marciano [72] compara com o direito de post]imínio, o direito em
virtude do qual o solo ocupadopor um edifício é reintegrado ao litoral,
depois que esseedifício veio a cair. Por isso é que se deverá dizer que o
usufruto do campo recuperado é também restabelecido, a exemplo do
que Pompânio responde no tocante a um terreno inundado [73] .Assim é

[68] Azove/y.Va]ent. De epJsc.Judia; Procópio, .Z)eBe/7o Banda/orum, 1, 3; Cujas,


0Óse/v., X, 12.
[69] E isso em consequênciade uma ]ei de Honório que, embora tenha deixado a
Espaiíha aosvândalos, não quis contudoque, durante a ocupaçãodos vânda-
los, a prescrição de trinta anos corresse em prejuízo dos proprietários das
terras. Procópiomencionaisso em UandaJib., 1, 3. Valentiniano, em sua Abre/Za
De epíscopali judício, à\ü "Ordenámos que os direitos que se conservavam
perpetuamente e durante uma sequência in6iníta de séculos sejam limitadas
por trinta anos, excetuando-seos negócios dos africanos que haviam provado
ber sofrido a dominação vândala e a respeito dos quais queremos que o tempo
durante o qual se puder demonstrar que sofreram essa dominação,seja dedu-
zido. "No concílio de Sevilha(causa XVI, questão 111,cap. 13) se diz: 'Z)o mesmo
modo que por força de !ei profana, as antigas posses são devoivídas aos que
retornam, invocando o postlimínio, depois de haver uma interrupção por uma
escravidão,à qual foram submetidospelos bárbaros.-" llâ rd\anãoentre essa
disposição e o C. Zr íransm )sa, De praesc'z'zbfzonóus. Ver também Cujas,
sobre o título do código, De praesc/'lb iene ínkínfa annorum(C. Vl1, 39)
tlaA h 36, Cum laca, Dig., De reiigiosis.
[71] Marcus Tullius Cicero, Zn Marram .4cÉÜ, ]V. 35,78.
t12À L. 6, in tantum, Dig., De divãs- rer.
TIRAL 26, Si ater, Dig., Quibusmod. usus&.amitt.
1211
CAPÍTULO IX - DO POSTLIMÍNIO

que, entre os espanhóis]74], íoi previsto por lei que os condadose outras
jurisdiçõeshereditárias utilizassem o instrumento do postlimínio: as
grandes, de qualquer forma; as pequenas, se forem reclamadas dentro
dos quatro anos de sua tomada, a não ser que o rei tenha o direito de
reter as fortalezas perdidas na guerra e retomadas de qualquer ma-
neira.

XIV A respeito das coisas mobiliárias,


que diferença se observava outrora?
1. Para as coisas mobiliárias a regra geral é, ao contrário, que
não retornem pelo postlimínio, mas que façam parte dos despojos, como
a6uma Labeon. Por isso é que também as coisas que foram conseguidas
pelo comércio, em qualquer lugar que se encontrem, pertencem ao que
as compra. Se sãoencontradas junto a neutros ou conduzidas para den-
tro de nossas fronteiras, o direito de reivindica-las não pertence a seu
antigo proprietário. Vemosque outrora se excetuavadessaregra as
coisas que servem na guerra, o que parece ter sido concordado entre as
nações, a 6im de que a esperança de recupera-las tornasse os homens
mais dispostosa procura-las. Naquele tempo, de fato, as instituições de
grande número de Estados eram voltadas para a guerra. Por isso, hou-
ve fácil consentimento. Devem servir para a guerra as coisas que aca-
bamos de mencionar, segundo GallusAelius, mas que são mais clara-
mente expostastanto em Cícero, em 7Zpicn [75], quanto em Modestino
[76]. '1.bata-sedos navios grandes e de transporte. Não ocorre o mesmo
com barcos cruzadores ou embarcações leves que foram reunidas se-
gundo o acordo. '.l.'rata-sedos asnos, mas que carregam os fardos; os

[74] J?eg.(bnsÉI'f. ]ivro X, tit. 29, parte 2


[75] 7bp/ca, 8, 37

[76] Z. .g e 4, Dvk., .De caFÉ.


1212
H UGO GROTIUS

cavalos e as éguas, mas que suportam o 6'eio. Todas coisas que os roma-
nos [77] queriam que pudessem ser va]idamente ]egadas e que fossem
compreendidas entre os bens passíveis de parti]ha de herança [78] .

2. As armas e o vestuário servem seguramente na guerra, mas


não faziam retorno pelo postlimínio porque aqueles que tivessem perdi-
do na guerra suas armas ou suas vestes não eram de todo tratados com
favor. Mais ainda, isso era considerado um crime, como aparece em
muitos lugares na história. Observa-se a esse respeito que as armas
diferem do cavalo porque o cavalo podia escapar sem que houvesse falta
do cavaleiro. Essa diferença das coisas nlobiliárias parece ter estado em
uso no ocidente, mesmo sob os godos, até o tempo de Boécio. Esse autor,
de fato, explicando os Tópicos de Cícero, parece falar desse direito, como
se tivesse conservado sua força até essedia.

XV. Qual é o direito hoje com relação


às coisas mobiliárias?

Nos tempos posteriores, senão antes, essa diferença parece ter


sido supressa. Aqueles que fizeram um estudo dos costumes relatam
em toda parte que as coisas mobiliárias não retornam pelo postlimínio
[79] . Vemos que isso foi estabe]ecido em muitos ]ugares a respeito dos
navios[80].

tll\ L 9, id quod apud hostes, Dig., De }eg.


LISAL 22 e 23, item Labeo cum L seq., Dig-, De famii. hera.
[79] Bartol., ]b .L 2& SI' guia óe/Za. .Dzk:, -De café.; Ange]. e Sa]icet, in Z. 2, .4b
hostíbus, Cod., De capa.\ Constit. Ga!!Íae, !ivro XX, tit. 13, art. 24; Consuiat.
maxis, cap. 287.

[80] Z)ecísia Genuenszb, ]O].


1213
CAPÍTULO IX - DO POSTLIMÍNIO

Xvl. Coisas que são recuperadas


sem necessidade do postlimínio

Quanto às coisasque não foram ainda levadas para dentro dos


limites da jurisdição., embora elas tenham estado em poder dos inimi-
gos,não têm necessidade de postlimínio porque não têm ainda mudado
de dono, em virtude do direito das gentes. Do mesmo modo, as coisas
que piratas ou bandidos nos tiraram não têm necessidade de postlimínio,
como disseram U[piano e Javo]enus [81], porque o direito das gentes
não lhes concedeu o poder de mudar o direito da propriedade. ];andan-
do-sesobre isso, os atenienses queriam receber como uma restituição
da parte de Filipe [82], não como uma doação, a ilha de Ha]oneso que
piratas a haviam tomado a eles e que Filipe havia tirado dos piratas
[83]. Por isso as coisas tomadas por eles podem ser reivindicadas em
toda parte onde estiverem, a não ser que nós decidamos, em virtude do
direito natural, que é preciso reembolsar aquele que adquiriu, a suas
expensas, a posse da coisa, um valor igual ao que o próprio proprietário
teria de boa vontade despendido para recuperar seu bem.

XVII. Mudanças que as leis civis


fazem a esse respeito, com relação
aos que são submetidos a isso
Outra coisa,contudo, pode ser estabelecidapela lei civil. Assim,
em virtude da ]ei espanho]a [84], os navios tomados pe]os piratas se
tornam propriedade daque[es que os tiram dos piratas [85] . De fato, não

t8'L\ L 24, Hostes, el,. 27, Latrones, i)íg., De capa.;L 19, Postliminium, $2,Apiratis
eodem tit.
[82] Ver a própria carta de Filipe, entre as obras de Demóstenes.
[83] Demóstenes, .De J7a/obeso.
[84] Reg. (hnsZJf., /)vro .X?K:PTZÉ]'f, .Pg paria .Z Covarruvias, ad cap. /)eccafum, parte
ll,$ 2, n. 8.
[85] O mesmo ocorre entre os venezianos. Isso se depreende das cartas de Du
Fresne, De La Canave, tomo l
H

!214 H UGO GROTlus

é iníquo que uma coisapertencente a um cidadãoprivado passepara a


utilidade pública, tendo em vista sobretudo a enorme dificuldade em
recupera-la. Tal lei, porém, não será um obstáculo para os estrangeiros
reivindicarem seusbens.

XVIII. Como o postlimínio foi observado


entre aqueles que eram estrangeiros
1. 0 que é mais surpreendente é o que atestam as leis romanas,
que o direito de postlimínio ocorria não somente entre inimigos, mas
ainda entre os romanos e os povos estrangeiros. Dissemos em outro
local (livro 11,cap. 15, $ 5) que eram resquícios da época dos nâmades,
em que os costumeshaviam enfraquecido o sentimento da sociedade
natural que existe entre os homens. Por isso é que, mesmo entre as
$l:$:
b
l ll l ll nações que não faziam guerra pública, se permitia entre os privados
#l' uma espécie de guerra, como declarada pelos costumes e para que essa
permissão não chegasseao ponto de matar os homens, foi concordado
que os direitos da catividade seriam introduzidos entre eles,de ondea
conseqüênciaque teria ocorridotambém o postlimínio, de outra manei-
ra que com os bandidos e os piratas, porque essashostilidades desembo-
cavam em convençõesjustas, que os bandidos e os piratas não têm o
hábito de respeita-las.

2. Parece que outrora se colocou em questão a questão de saber


se súditos de um povo aliado que são escravos junto a nós retornam pelo
postlimínio, no caso em que tivessem retornado a seu país. Cícero, no
livro primeiro de seu 7}afado do Oz'apor [86], propõe, de fato, assim
essa questão e Ga]]us Ae]ius [87] , por seu ]ado, se exprime nestes ter-

[86] .Z)e Ora6are, 1, 40, 182


[87] Festus, J. K .])osÉ/)}n]nium
1215
CAPÍTULO IX - DO POSTLIMÍNIO

mos: "Há postlimínio entre nós e os povos livres, os povos aliados, com
os reis, do mesmo modo que com os inimigos." Prócu]o [88] diz, ao con-
trário: "Não duvido que os aliados e os povos livres não soam estrangei-
ros para nós.Não há postlimínio entre nóse eles."
3. Eu penso que se deve distinguir entre os tratados e dizer que
sehouvesse deles que fossem concluídos somente para terminar ou para
prevenir uma guerra pública, não faziam obstáculo à captividade a se-
guir, nem ao postlimínio, mas se houvesse aqueles que contivessem que
os súditos de parte e outra circulassem sob a proteção da autoridade
pública,então, o direito de fazer prisioneiros cessando,o postlimínio
cessariatambém. Pompânio [89] me parece indicar isso, quando diz:
"Se ocorrer que não tenhamos com um povo nem amizade, nem direito
de hospitalidade, nem tratado celebrado por causa de amizade, não são
por isso nossosinimigos. Se uma coisa que nos pertence passa para
eles, se torna sua propriedade e o homem livre que é dos nossos, preso
por eles, torna-se também seu escravo. O mesmo ocorre se alguma coi-
sasdelespassapara nóse que assim, nessecasotambém,o postlimínio
foi concedido." Quando diz "tratado concluído por causa de amizade",
mostrou que podem existir outros tratados que não contêm nem direito
de hospitalidade, nem direito de amizade. Próculo também dá a enten-
der que considera povos confederados aqueles que teriam prometido ami-
zadeehospitalidade segura, quando acrescenta:"De fato, haveria ne-
cessidadede hospitalidade entre nós e eles,porquanto retêm entre nós
sua liberdade e a posse do que lhes pertence, do mesmo modo que se
estivessem em seus domínios e que nós mesmos temos vantagens entre
eles?"Esta é a razão do que se segue em Gallus Aelius: "Não há

t88ÀL. 7, Non dubito, Dig., De capa.


t89ÜDig., L. 5, Postliminíi, $2, in Face.
1216 H UGO GROTIUS

postlimínio com as nações que estão sob nosso domínio", como muito
bem ana]isa Cujas [90] que afirma que deve ser completado por este
acréscimo: "Nem com aqueles com os quais temos um tratado de ami-
zade.'

XIX. Quando isso pode ocorrer hoje?

1. Em nossostempos,não somente entre os cristãos, mas ainda


entre a maioria dosmaometanos[91], o direito de post]imínio foi aboli-
do, como aquele de captividade, fora da guerra. A necessidade de um e
outro, foi supressa, por causa do restabelecimento desse senso de paren'
pescoque a natureza quis estabelecerentre os homens.

2. Esseantigo direito das gentespoderia contudo ocorrer, seti-


vermos negócios com uma nação de tal modo bárbara que tenha por
legítimo tratar de modo hostil todos os estrangeiros e seus bens, sem
declaração ou sem motivo. Sob esse princípio, enquanto escrevo estas
coisas, foi julgado no alto parlamento de Paris, sob a presidência de
Nicolas de Verdun, que os bens que haviam pertencido a cidadãos fran-
cesese que haviam sido tomados pelos argelinos, povo habituado a exer-
cer pirataria marítima em todas as terras, haviam mudado de dono
pelo direito da guerra e que, por conseguinte, se fossem retomados por
outros, se tornariam propriedade daqueles que os tivessem retomado.
No mesmo processofoi também julgado que, o que dissemos há pouco,
os navios, hoje, não estão entre as coisas que são recuperadas pelo
postlimínio.

[90] OóserE .Z:X;cap. 23.

[91] Bodin, /lw'o ,C De Eep., c'ap. Z


X

ADVERTENCIAS
ARESPEITO DASCOISAS
QUESEIAZEMNUMA
GUERRAINJUSIA

Sumário

1. Em que sentido se diz que a honestidade proíbe o que a }ei


permite.

ll. Isso se aplica às coisas que classKicamos como permitidas


pelo direito das gen tes.

iH. O que refazem decorrência de uma guerra injusta éinjusto


por uma injustiça interior.
N. Quais são, em decorrência, os que são obrigados à restitui-
ção e até que pedi;o o são.

U Se as coisas tomadas numa guez'ra í1ljusta devem ser devol-


vidas por aquele que as tomou.

vl. Se devem sê-lo também por aquele que as retém.


1219
CAPÍTULO X - ADVERTÊNCIAS A RESPEITO DAS COISAS QUE SE FAZEM NUMA GUERRA INJUSTA

1.Em que sentido se diz que


a honestidade proíbe o que a lei permite
1.Torna-se necessário que retorne sobre meus passos e que reti-
re aosque fazem a guerra quase todas as coisas que possoparecer tê-las
conferido e que no entanto não as concedi a eles. Quando, pela primeira
vez, abordei a explicação dessa parte do direito das gentes(livro 111,cap.
4). declarei que havia várias coisasque eram ditas ser de direito ou
permitidas, porque sãofeitas impunemente ou mesmo também porque
a justiça coativa lhes empresta sua autoridade. Essas coisas,contudo,
saem da regra do justo que é colocada no direito estritamente dito ou no
preceito das outras virtudes ou, ao menos, são colocadas de lado por
uma conduta mais escrupulosa e mais digna de aprovação entre as
pessoas de bem.
2. Nas H'olnnas (342 ss.) de Sêneca, Pirro diz: "Nenhuma lei
poupa o prisioneiro ou impede seu castigo." Agamenon responde: "0 que
a lei não veta, a honra proíbe de fazê-lo." Nessa passagem, a honra não
significa tanto o respeito que se teria pelos homens ou pela reputação,
quanto ao que é justo e bom ou ao menos ao que é mais justo e melhor.
Assim é que lemos nas Znsüfuüones (11,23) de Justiniano que "os
fídeicomissos haviam sido assim chamados porque não repousavam sobre
nenhuma ligação de direito, mas somente na fé daqueles a quem se
havia rogado". Em Quinti]iano [1], pai, se diz: "0 credor não poderecla-
mar a caução, sem ferir a honestidade, porque não consegue obter pa-
gamento de seu devedor." Nesse sentido é que, se vê a justiça unida à
honra. Em Ovídio [2] se]ê: "Os crimes dos mortais não haviam ainda
expulsado a justiça que, a última das divindades, deixou a terra. Em
lugar do temor, a honra era o único freio dos povos." Hesíodo [3] diz:
"Em lugar algum, a honra; em lugar algum, a preciosajustiça! Cls
maus insultam ao extremo os homens de bem." Platão, no livro Xll,

[1] Dec/amaÉlones, 273


[2] ZasÜ 1, 249
[3] Opera, 192 ss
1220
H UGO GROTIUS

capítulo 2, de seu 7}aÉado dzs.Z,eZs,diz: 'TlocpOevoa'yctpa6ouaÕtKeÀeyeTCEt


TCKal ovioa etpe'rctt";retinquemos para "nctpeõpod'para que o sentido
seja: "A justiça foi chamada a companheira da honestidade e certamen-
te comrazão." Em outro ]oca],de fato, o mesmoP]atão [4] assim escre-
ve: "Temendo Deus que o gênero humano perecesselogo, deu aos ho-
mens a justiça e a honra, ornamentos dos Estados e laços para fumar a
amizade." P]utarco [5] chama igua]mente a justiça de "companheira
inseparáve[ da honestidade". Em outro ]oca] [6] , e]e reúne "a honra e a
justiça". Em Dionísio de Halicarnasso (VI, 36), "a honra, a bondade e a
justiça" são mencionadas ao mesmo tempo. De igua] modo, Josefo]7],
une a honra e a equidade.O jurisconsu]to Pauta [8] reúne também o
direito natura] e a honestidade. Cícero [9], por outro ]ado, traça os ]imi-
tes entre a justiça e a honra, estabelecendo que o próprio da justiça é de
não prejudicar os homens; aquele da honra, de não os ofender.

3. Com o verso que citamos de Sêneca, concordam muito bem


pa[avras do mesmo em seus escritos fi]osóficos [10] : "Que estrita ino-
cência é rea]mente boa para a ]ei? [11] Quanto mais amp]a se torna a
regra do dever que aquela do direito? Quantas coisas a piedade, a hu-

[4] .F>ofagora,12.
[5] .,4d ú?eru(#fum praes2'dem,781 B,C.
[6] 14fa TZesel; VI.
[7] .4nÉzku/Jades dada bas, X]11, 11, 3.
tg\ i,. !4, Adoptivos, $2, Díg., De Fita nupt.
[9] De OáZlcízi,1, 28,99.
[10] Z)e]z'a, 11,27
[11] O mesmo Sêneca, em Z)e .Bene#c7ük,V. 21, diz: 'Hã mufZas cou)asnas quais não
há !e{ e para as quais não há como aduar na justiça e que, contudo, podem ser
exigidas par regras de comércio da sociedade humana, superiores a todas as
/eJS êsc.r7fds. " Quintiliano, em Z)e ZnsÉafuÉlbne OraÉor7al111, 6, 84), diz: ':Hã. de
fato, certas coisas que não são louváveis segundo a natureza, mas que sãa
concedidas por !eÍ; assim é que, por exemplo, foi permitido pela ]ei das Xll
i'águas de partilhar G corpo do devedor entre seus credores, disposição legal
gue os costumes pEÍÓ/loasrecÜaç;arara." Cícero, em Z)e C2áZlcu)k]111,
17,68], diz
Uma é a maneira pela qual as !eis coíbemas injustiças; outra a dos 6llósofos
que as corrigem. As leis se !imitam ao que pode ser tocadopeia mão. Os âHóso
íos estendem sua anão sobre tudo o que pode ser captado peia razão e peia
in telligência .
1221
CAPÍTULO X - ADVERTÊNCIAS A RESPEITO DAS COISAS QUE SE FAZEM NUMA GUERRA INJUSTA

manidade, a beneficência, ajustiça e a honra exigem, das quais nenhu-


ma está gravada nas tábuas da leal" Pode-se notar que o direito é distin-
to da justiça porque entende pelo direito o que está em vigor nos julga-
mentos externos. O mesmo, em outro ]oca] [12], exp]ica isso de modo
primoroso, pelo exemplo do direito do patrão sobre os escravos: "Deve-se
considerar num escravo, não o que se pode fazê-lo sofrer impunemente,
mas o que a equidade e a bondade autorizam e que ordenam também
poupar os cativos e aqueles que são comprados a preço de dinheiro." E
depois: "Tudo é permitido contra o escravo, mas há coifas contra o ho-
mem que o direito comum de tudo o que respira proíbe." Deve-se obser-
var ainda nessa passagem a acepção diferente da palavra "permitido'
uma exterior e outra interior.

ll. Isso se aplica às coisas que classificamos


comopermitidas pelo direito das gentes
1.A distinção seguinte de Marce]o [13] no senado romano tem o
mesmo sentido: "A questão não é de saber o que 6iz, porquanto o direito
da guerra me põe a coberto de tudo o que pude fazer contra os inimigos,
mas somente de ver o que deviam sofrer", segundo o justo e o honesto,
bem entendido. Aristóte]es]14] dá a entender a mesma diferença, quan-
do discute se a servidão que nasce da guerra deve ser chamada justa:
"Alguns não considerando senãouma parte da justiça, pois a lei é, de
fato, alguma coisa de justo [15], dizem que a servidão em que se cai pela

[12] .De (:7emenÉfa,


1, 18.
[13] Tito Lívio, ,4ó CÜ.óe (bn(Ü'fa, XXV], 31,2.
[14].f)biytzba,
1,6.
[15] Sêneca. em Obeso/aüo ad J7ê/vl'am,V], 7, diz: 'y7gtzns consegue am peias
a/mas um dEz.e
'fo sopre regiõesperlencenfesa outros." Pareceque o direito e
a possede um bem de outrem sejam incompatíveis.Isso, porém, se concilia,
como essetexto o ensina. Acrescente-se o que foi dito no cap IY $ 1l deste livro
l
1222
H UGO GROTIUS

guerra é justa, mas negam que seja absolutamente justa, porquanto


pode ocorrer que a causa da guerra tenha sido injusta." Semelhantes
são estas pa]avras de ']'ucídides [16] no discurso dos tebanos: "Não nos
queixamos tanto com relação aos que matastes no combate; isso lhes
aconteceu de alguma forma legitimamente.'

2.Assim é que ospróprios jurisconsu]tos romanos [17] chamam


algures "injustiça" o que muitas vezes designam "direito de captividade'
e o opõem à equidade natura]. Sêneca [18], a respeito do que ocorre
seguidamente, diz que a denominação de escravose originou da injúria.
Em Tito Lívio [19] também os itá]icos, querendo reter as coisas que ha-
viam tirado dos slracusanos na guerra, sãoclassificados de obstinados
em conservar o fruto de sua injustiça. Depois de ter dito que os prisio-
neiros de guerra, se tivessem voltado para os seus, recuperariam a
[iberdade, Dion de Prousa [20] acrescenta: "Como tendo estado por in-
{: PÊ
tl
justiça na escravidão"

Lactâncio [21] diz, fa]ando dos fi]ósofos, que "quando tratam dos
deveres que se referem aos negócios militares, todo seu discurso não
tende nem à justiça, nem à verdadeira virtude, mas a essa vida e ao
costume civil". O mesmo diz logo a seguir que injustiças eram legitima-
mente cometidas pelos romanos.

[16] Livro 111,66


t\l\ 1,. !9, Postliminium in pr., Dig., De capa.
[18] .qp/blusa XXX], 12.
[19]..4óZ]/}.óe
Cbndfa,XX]X, 1,17
[20] (2móo .Xy

[21] -Z2zt-ÜaJ-tzm]nsélfuÉlam um, V], 6. Agostinho, em sua carta ]V. .4d ]]#h/ueZ/7$nzm,
assim se exDümG "Por isso mesmo, se os Estados deste mundo observam os
preceitos cristãos, as próprias guerras não serão feitas sem benevolência."O
[nesnn. en] De Diversas Ecclesiae Observationibus. à:d. "Entre os verdadeiros
adoradores de Deus, as próprias guerras são pacíficas.
1223
CAPITULO X - ADVERTÊNCIAS A RESPEITO DAS COISAS QUE SE FAZEM NUMA GUERRA INJUSTA

llt. O que se faz em decorrência de uma guerra


injusta é injusto por uma injustiça interior
Dizemos, pois, em primeiro lugar que, se a causa da guerra é
injusta, mesmose a guerra é empreendidade uma maneira solene,
todos os ates que dela decorrem sãoinjustos, de uma injustiça intemor,
de tal modo que aqueles que, sabendo-o, cometem tais atou ou cooperam
devem ser considerados como estando entre o número daqueles que não
podemchegar ao reino celestial sempenitência (/(l;ba:zhüos,VI, IO).A
verdadeira penitência, se o tempo e os meios o permitirem, exige de
modo absoluto que aquele que causou dano, seja matando, seja deterio-
rando osbens, seja fazendo pilhagens, repare essemesmo prejuízo [22] .
Por isso Deus declara que não gostava dos jejuns daqueles que reti-
nham prisioneiros feitos de modo injusto [23]. O rei, ao ordenar aos
ninivitas penitência pública, lhes prescreve de esvaziar suas mãos dos
bens que tivessem tomado de outros, reconhecendo, pela única luz da
razão natural, que, semtal restituição, o arrependimentoseria um
fingimento e inútil (donas, 111,8). Vemos, pois, que assim pensam não
somente os judeus [24] e os cristãos, mas ainda os muçu]manos [25] .

[22] ]\rtí/22erasV. 6. Jerânimo, em .4d J?usücum,diz: ';Se fado o que áof mamadonão
for devolvido, não se pode evitar a sentença da condenação."êKgostÀxiho,em sua
culta AdMacedonium, afirma; "Não é um verdadeiroarrependimento,mas um
arrependimentosimulado, quando, podendorestituir o bem de outrem, por
causa da qua/ se pecou, náo se /az. " Graciano menciona esta passagem em
Causa XiX quaestio 6.
[23] Há uma passagem notáve] em Zsaibs,l;Vl11, 5-7, transcrita em grego em Justino,
mártir, em seu Dvá/ogocom gl:í/ão, 15.
V24À
'l&íxo Praeceptorum LegisPareceptojubente,Pí\. Ve as CanonesPoenitentiales
cleMoisés Maimânides, cap. 11,2; também Moisés de Kotzi, .fbaec'epf.Juóenh,
XVI
[25] Ver Leunclavius, 7b/rü., V e XV]]
1224
H U GO GROTIUS

IV Quais são, em decorrência, os que são


obrigados à restituição e até que ponto o sáo

São obrigadosà restituição, segundoas regras que foram


explicadas de uma maneira geral em outro local (livro 11,cap. XVII),
aquelesque foram osautores da guerra, sejapor direito de autoridade,
seja por seu conselho. Trata-se, bem entendido, de todas as coisas que
seguem ordinariamente a guerra, mesmo conseqüências não habi-
tuais, se ordenaram ou aconselharam alguma coisa de similar ou se,
podendo impedi-lo, não o fizeram. Assim é que os generais são obrigados
a coisas que foram feitas sob seu comando e que os soldados que concor-
reram para algum ato comum, por exemplo ao incêndio de uma cidade,
são obrigados solidariamente. Nos atos cometidos separadamente, cada
um é obrigado pelo dano de que ele próprio foi a causa única ou, ao
menos, de que foi uma das causas]26].

V Se as coisas tomadas numa guerra in.justa


devem ser devolvidas por aquele que as tomou

1. Não penso que se deva admitir a exceçãoque fazem alguns


[27] a respeito daqueles que se utilizam de outros, se de algum modo
houver neles algum traço de culpa, pois a culpa sem dolo basta para
forçar à restituição. Há quem parece ser de opinião [28] que as coisas
tomadas na guerra, mesmo se não tivesse havido causa justa de guer-
ra, não devem ser restituídas porque os beligerantes, quando começa-
ram a guerra, estatuíram dar essascoisasaosque as tomassem.Nin-

[26] Silvestr., in rerúo .Be/7um, parte .C n. ](4 // e /Z Covarruvias, Hc/cap. recearam,


parte 11, $ 11, n. 8, LessXus, livro 11, cap. !3, dúüda 4 acxescenle-se: L. 21,
Fulgaris, $ 9, Si duo, Dig., De funis.
[27] Si[vestr., dlbéo coco, n. /O.

[28] Vasquez, (]onZro J7TusÉc, .C q n. /Z Molha, .22np. /.r8 / Z:rZverá.


!225
CAPÍTULO X- ADVERTÊNCIAS A RESPEITO DAS COISAS QUE SE FAZEM NUMA GUERRA INJUSTA

guémé presumido a renunciar facilmente a seubem-A guerra, por si


mesma, está bem longe da natureza dos contratos. Por outro lado, a íim
de que os povos neutros tivessem alguma coisa de certo que pudessem
seguir e para que não fossem implicados apesar deles na guerra, basta-
va introduzir essa propriedade exterior de que falamos que pode existir
com a obrigação interior da restituição. E essespróprios autores pare'
cem aderir a este pensamento a respeito do direito de catividade das
pessoas.Por isso é que os samnitas, em Tito Lívio [29], diziam: "Nós
deixamos as coisas dos inimigos tomadas no saque que pareciam nos
pertencer pelo direito da guerra." Diz "pareciam" porque essa guerra
havia sido injusta, como antes mesmo o haviam reconhecido os
samnitas [30] .
2. Não é dessemelhantea circunstância que, de um contrato fei-
to sem dolo em que se encontra uma desigualdade, nasça, em virtude
do direito das gentes, uma espécie de faculdade de coagir aquele que
contratou a cumprir seus compromissos e contudo, aquele que estipu-
lou mais do que era justo não é menos obrigado a retificar o negócio
para conduzi-lo à igualdade, segundoo dever de um homem probo e
honesto.

VI. Se devem sê-lo também


por aquele que as retém
1.Aquele que não causou realmente o dano ou que o causou sem
culpa de sua parte e que possui uma coisa tomada por outro numa
guerra injusta, é obrigado a restitui-la porque não há nenhuma causa
naturalmente justa pela qual seu proprietário deva ser privado dela:
nem consentimento dele, nem punição merecida, nem compensação(ver

[29] .4ó Urbe aonde'fa, ]X, 1,5.


[30] .4ó Z:ü.Beaonc#Éa,V]11, 39,10
1226 H U GO GROTIUS

[ivro [[, cap. 9). Há em Va]ério Máximo [31] uma história que vem a
propósito aqui: "0 povo romano, tendo vendido em leilão os camerinenses
vencidos e feito prisioneiros sob o comando de P. Claudius e sob seus
auspícios,embora visse seutesouro enriquecido por essedinheiro e suas
fronteiras ampliadas por esseterritório, resgatou contudo com o maior
cuidado os prisioneiros e restituiu as terras]32] porque não havia certe-
za se essa conquista teria sido feito comjustiça pelo general." Um de-
creto dos romanos devolveu igualmente aos habitantes de Fócia a liber-
dade [33], mesmo a ]iberdade púb]ica, e as terras que ]hes haviam sido
tomadas. A seguir, os ]ígures [34] que haviam sido vendidos por M.
Pompílio foram restabelecidosem sualiberdade, depoisda restituição
do preço a seus compradores e se tomou cuidado também que seus bens
lhes fossem devolvidos [35] . O senadoromano decretou a mesma coisa a
respeito dos abderitas, acrescentandopor razão que selhes havia feito a
guerra injustamente [36].

2. Se,contudo, aquele que detém a coisa fez algumas despesasou


teve algum trabalho, poderá deduzir o valor do que Ihe teria custado ao
proprietário para obter a recuperação que já não esperava, conforme o
que foi explicado em outro local (limo 11,cap. X, $ 1X). Se o possuidor da
coisa, isento de culpa, a dissipou ou a alienou, não será obrigado senão
em proporção do que poderia ser considerado como parcela de seu enri-
quecimento.

[31] Livro VI, cap. 5.


[32] Antânio forçou os habitantes de Tiro a devo]vér os bens que detinham dos
judeus. Ordenou que os prisioneiros que haviam vendido fossemsoltos e os
bens que haviam tomado dos judeus restituídos a seus donos(Josefo, .4nÉzku/-
dados Judaicas, XIV. 12,4). Macrino devolveu aos partas os prisioneiros e o
saque porque os romanos haviam rompido a paz com eles sem motivo(Herodiano,
livro IVI 15,6). O sultão Maomé fez soltar os prisioneiros que haviam sido feitos
na cidade de Santa Mana, na Acata(Chalcocondylas, livro IX).
[33] Tito Lívio, ..4ó C&óe C bnc#óa, À.x.x v i11, 39,12

[34]Ver .E:rrerpfadeDíodorodaSicíha,de Peiresc(Excerpfade Mkfuézbus


ef Wáús,D.
[35] Tifo Lívio, .4ó Z]Xrbe
aondlfa, XL]1, 8,7.
[36] Idem, .4ó Z:/róe(bnc#fa, XL]11, 4,13
XI

CONSIDERAÇOE8
ARESPEITODODIREITO
DE MA])\R NUMA
GUERRAJUSIA

Sumário

1. Numa guerra justa, certos alas são desprovidosde justiça


in.tenor.

11. Quepessoas podem ser mortas, segundo a justiça interior.


111.Ninguém pode serlicitamente morto por causa de seu in-
fortúnio, como aqueles que seguem um partido por serem
coagidos a isso.

IV Nem por causa de uma culpa posta entre o infortúnio e o


dolo; explica-se a natureza dessa culpa.
VIDeve-se distinguir entre os autores da guerra e aqueles que
os seguem.
VI. De acordo com ospróprios autores, deve-se distinguir entre
as causas prováveis e imprová vela.

VII. Muitas vezes convém conceder a graça do castigo, mesma


aos inimigos que merecem a Inox'te.

VIII. Deve-se tomarcuidado, quantopossível, para que inocen-


tes não sejaJn mortos, mesmo sem propósito premeditado.
!X. l)eve-se poupar sempre as crianças, as mulheres, salva se
cometeram algo grave, e os velhos.

X. Deve-se poupar também os que se ocupam somente de coi-


sas sagradas ou das letras.
XI. I'ambém os trabalhadores.

XII. Eainda os mercadores e seus similares.

XIII. E também os prisioneiros.


X]V. l)eve-se acolher aqueles que querem serender sob condi-
çoesrazoaveis.

XVI l)eve-se acolher os que se re1lderain sem condição.

XVI. Isso é verdade, salvo uln gra ve aten fada não tenha o
do antes; como entender isso.

â .s de seu grande nú
XVl}. Poupar os culpados é bom, p- r causa
mero.

XVIII. Os reféns não devem ser mortas, salva se os próprios


tiverem cometido um crime.

XIX. E preciso abster-se de todo combate inútí!.


1229
CAPÍTULO XI - CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DO DIREITO DE MATAR NUMA GUERRA JUSTA

1. Numa guerra justa, certos atos


são desprovidos de justiça interior
1. Não se deve admitir, mesmo numa guerra justa, o que se diz:
"Aquele que recusa as coisas devidas doa tudo" [1]. Cícero [2] diz me-
lhor: "Há certos deveres a observar mesmo com relação àqueles dos
quais serecebeuuma ofensa.Há, de fato, uma medida para sevingar e
punir" [3]. O mesmo [4] louva os antigos tempos dos romanos, quando
as guerras eram isentas de crueldades ou comandadas pela necessida-
de.Sêneca [5] chama cruéis aque]es que "tendo motivo para punir não
guardam medidas na punição". Aristides, em seu primeiro diálogo so-
bre Leuctres [6], exc]ama: "Sim, e]es podem, podem também, aque]es
que sevingam, ser injustos, seultrapassam a medida.Aquele que pu'
nindo vai até o que é injusto é um segundo autor da injúria." Assim é
que no julgamento de Ovídio [7], um rei "se vingando demais pe]a mor-
te dosculpados se tornou ele mesmo culpado'

11]Lucano,1, 349.
[2] .De0á7SZÍÜ,
1, 11,34.
[3] Ver livro 11,cap. XX, $ 2 e 28, a]ém das passagensde Agostinho que citamos há
pouco, a respeito da benevolência dos cristãos, mesmo em meio à guerra.
Aristóteles(Política, Y 6) narra que se haviam sido levados a efeito em bebas e
em Heracléia fitos de repressão mais rigorosos que a equidade o exigisse e isto
por um espírito de sedição.Tucídides(111,8) fala de 'tasÉlgosma 'aresdo que a
/usí2ba o exzkzb': Tácito(.4nnaJes 111, 28) diz: ':!)0/71pea era mala áunesfo pejos
remóc#osgue ap/lbaKa do gae os I'idas gue queria co/rlbú: " O mesmo historia-
dor(,4nnaJes,111,24) acusa Augusto de ter ultrapassado, na punição dos adúlte-
ros, os limites da clemência de seus antepassadose suas próprias leis. Juvenal
X, 3L4 ssl} ààz.' mas vezeseste flagelo leva a extremos mais terríveis que
budao que as leis jamais permitiram em favor do ressentimento." Segundo
Quintiliano(.Dec/amaüones, VI, 10): ':SÕmesmo pzzra os pa1:?7biaTosmala atro-
zes é que se pune um homem para além de qualquer medida." O Impe adn
Marco Antonind, segundo o que narra Vulcatius, na H'da de (;ãssz'o(11), diz: ':Eu
escreveria ao senado para que a prescrição não fosse por demais rigorosa e a
punição por demais cruel." )musõlüo(~Cupid.Crucíf., SSàescreve: TA vingança
paJ'eceser maior que seu cr:íme." Amiano(XXVI, 10, 6) diz: 'tortura'se muzfz
gente com maior rigor do que o pedem suas culpas ou seus delitos." tLâ uma.
passagemsemelhante em Agatias(IV, 19).
[4] ,De 0z2%Íis,11, 8,26.
[5] .Z)e(2emenÉía, 11.4.
[6] ZeucÉz2'ca. l

[71 Z)e Pondo, IX, 1,19


1230 H U GO GROTlüS

2. Os plateenses, num discurso de ]sócrates [8], pedem "se éjusto


infligir penas tão rigorosas e excessivas para tão pequenas faltas". O
mesmo Aristides [9], no segundo discurso peia paz, diz: "Não olheis
somente aquelas razões que tendes para infligir castigos, mas também
quem são aqueles que deveis punir, quem somos nós mesmose qual é o
justo limite das penas." Minos é elogiado por Propércio [lO] : "Embora
vencedor, foi justo com o inimigo" [11] . E também por Ovídio.[12] : "Le-
gislador cheio de justiça, impôs leis aosinimigos vencidos.:

11.Que pessoas podem ser mortas,


segundoa justiça interior
Quando matar é legítimo (é por esse ponto que é preciso começar)
numa guerra justa, segundoa justiça interior? Quando não é?Pode-se
ter uma idéia pelo que foi explicado por nós, no capítulo primeiro deste
livro. Ocorre, de fato, que se mata alguém por propósito deliberado ou
sem ter p[anejado isso [13] . Ninguém pode ser morto ]egitimamente de
propósito deliberado, salvo que seja por uma justa pena ou quando não
podemos defender de outro modo nossa vida e nossos bens, embora o
fato mesmo de matar um homem por coisas perecíveis, bem que não é
contrário à justiça estritamente dita seafasta contudo da lei de carida-
de. Quanto à pena, mesmo que seja justa, é preciso que aquele que
matou tenha cometidoum crime e mesmoum crime bastante grave

[8] Pyaóajc., 6.

[9] arado pro Face,


[10] E7eglía.ZZC19,27
[11] Ovídio, 7}7)Éla,1, 8, 35: 'Hã famóám uma p idade pai'a os háeJl2ese e/a éí
!ouvável mesmo para com um inimigo.
[12] Mefamarp/zoseon,
V]]], ]O] ss.
[13] Vitoria, .De Jure? .BeZ/l, n. 36 e 45
!231
CAPÍTULO XI - CONSIDERAÇÕES A RESPEITODO DIREITO DE MATAR NUMA GUERRA JUSTA

para poder ser punido como suplício da morte diante de um juiz justo
Falaremos menos dessa matéria agora porque tudo o que é preciso sa
ber foi explicado suficientemente, achamos, no capítulo das penas

llt. Ninguém pode ser licitamente morto


por causa de seu infortúnio, como aqueles
que seguem um partido por serem coagidos a isso
1. No livro 11,capítulo XXI, quando tratamos dos suplicantes
(comona paz, há também na guerra suplicantes) separamos o infortú-
nio e a injúria. Gylippus, na passagem de Diodoro da Sicí]ia [14] que
começamos a citar aqui, pergunta em que classe os atenienses devem
ser colocados, naquela dos infelizes ou laaquela dos culpados. Nega que
se deva considerar como infelizes aqueles que, por si mesmos, sem te-
rem sido provocados por nenhuma ofensa, teriam feito a guerra contra
os siracusanos, de onde se infere que, como haviam empreendido espon'
taneamente a guerra, deviam sofrer também eles próprios os males da
guerra. São exemplo de infelizes aqueles que, sem saber dos sentimen-
tos hostis, se encontram do lado dosinimigos. Assim eram os atenienses
do tempo de Mitridates, a respeito dos quais Ve]]eius Patercu]us [15]
fala assim: "Se alguém imputa aos atenienses a rebelião que foi causa
deAtenas ser atacada por fila, testemunha não conhecernem a verda-
de, nem a antigüidade, pois a fidelidade dos atenienses aos romanos
sempre foi assegurada, que sempre e em todas as coisas esses diziam
em todos os encontros em que se agia de boa'fé que era uma boa-fé de
Atenas. De resto, oprimidos pelas armas de Mitridates, esseshomens
haviam sido reduzidos à mais desastrosa condição porque, ao mesmo
tempo em que eram retidos por seus inimigos, eram atacados por seus

[1'4]X]11, 29
[15] 11,23
!232 H UGO GRDTI US

amigos, de tal modo que tinham o coração fora dos muros e o corpo do
lado de dentro deles pela necessidade a que eram forçados." Esta última
parte pode parecer ter sido tirada de Tito Lívio [16], no qua] o espanho]
Indibilis diz que seu corpo somente havia estado do lado dos caüagineses,
mas que seu coraçãohavia estado do lado dos romanos.

2. Como diz Cícero [17] : "Não é de estranhar que todos aque]es


cuja vida foi colocada nas mãos de outrem, pensam mais vezes no que
pode aquele sob a dependência e o poder de quem estão, do que naquilo
que deve fazer". O mesJnodiz, em favor de Ligário [18] : "Há um terceiro
tempo, durante o qual ficou na África, depois da chegada de Varus; se
isso é criminoso, é um crime de necessidade,não de vontade." Juliano
se regulou sobre isso na questão dos habitantes de Aquiléia, segundo
testemunho de Amiano [19] que, depois de ter contado o sup]ício de
pequeno número de pessoas,acrescenta: "Todos os outros se retiraram
sãos e salvos porque era a necessidade e não a vontade que os havia
arrastado no furor doscombates" [20]. Um antigo comentador diz, so-

[16] .4ó C#óe aon(#fa, XXV]1, 17,13.


[17] Pro é?u/bÉlb, 2,6

[18] Pro Zakall'o, 2, 5


E19]Livro XXI, 12, 20
[20] Ele acrescenta imediatamente depois que 'bife ]mpe2'apor doce e c'/emenfe
Élháa áeilo uso disso para segue' as regras da eguJdade': Tucídides(111, 39),
colocaessaspalavras no discurso de Cléo: ':Per(73o
aos gue nos abandonaram
por serem oóz:dados a Jbsope/o iblmJko. "Ê o que Paulo chama de '8onsz'deraçâa
de uma necessidadeexü'ema"(Sanfenf.,V. tit. 1, $ 1). Certamente, comodiz
Sinésio, 'b necessidndaó uma co ka poderosa e enárgfca'l Juvenil Q(V, 103 ss.)
diz a respeito dos calaguritanos: "Que .comem, qua/ deus Ãarer7ía de reausal'
seu perdão a guerreiros que suportaram tantos males cruéis e atrozes!"'íel a
respeito, ao que a fome podelevar, em Cassiodoro(IX, 13). Pertinax dizia de
Laetus e outros(Capitolinus, PerÉznax,
5): ':4pesarde fado, obedecerama
Cómodo,mas desde que tiveram a possibilidade, mostraram quais tinham sido
sempre seus senílhenfos. " Na história de Severo, de Xiphilinus(LXXIV. 9),
Cassius Clemens assim se exprime: 'l&u não conáecla nem a rós, nem a
Pescennius Niger, mas ao me encontrar entre os que haviam tomado seu
partido, ãz o que a necessidademe impelia a fazer. Obedeci ao que estava no
momento de posse do império, não com a intenção dê vos declarar guerra, mas
para expu/sal' Ju/Jante." Aureliano havia entrado em Antioquia, onde muitos
CAPÍTULO XI - CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DO DIREITO DE MATAR NUMA GUERRA JUSTA
}233

bre uma passagemde Tücídides[21] re]ativa aos prisioneirosdos


corcirenses que haviam sido vendidos: "Mostra uma clemência digna
do gênio dos gregos, pois é cruel para matar prisioneiros depois da bata-
lha, sobretudo escravos,que não fazem a guerra por sua própria vonta-
de." Os plateenses, no mencionado discurso, que seencontra em lsócrates
[22], dizem: "Não é por nossa vontade, mas como coagidos, que os servi-
mos (os lacedemânios)." O mesmo [23] diz dos demais gregos: "Eram
coagidosa seguir com o corpo seu partido (dos lacedemânios),mas com
seu coração estavam de vosso ]ado." Heródoto [24] havia dito dos habi-
tantes de Fócia: "Seguiam o partido dos medos, não voluntariamente,
mas por força da necessidade." A]exandre, como o re]ata Arriano [25],
poupou os zelitas porque "haviam sido coagidos a lutar do lado dos bár-
baros". Em Diodoro [26] , o siracusano Nico]au diz em seu discurso para
os prisioneiros: "Os aliados foram coagidosa tomar em armas por força
daqueles que os comandavam. Assim é que, como é justo que aqueles
que causam dano, por meio de desígnios premeditados, sejam punidos,
assim também é justo perdoar aos que pecam involuntariamente." As-
sim, em Tiro Lívio [27] , os siracusanos, justiHlcando-se perante os ro-

haviam seguidoo partido de Zenóbio,publicou um edito (Zósimo, 1, 51), no qual


Nxzxa
que "atribuía tudo o que se havia passadoà necessidade,mais do que à
l Belisário, em Procópio( UandaZíc.,1, 20), dizia que 'todos os a] :fcanos
haviam sucumbido apesar deles à dominação dos vândalos". 'Eio mesmo'küsto'
dador(Gofíüic., 111,7), Totila diz aos napolitanos que sabe que eles haviam
passado apesar deles sob o poder dos inimigos. Nicetas, ou o continuador da
história escrita por ele(ZI/rós (;2ipfa,12), diz de Henrique, irmão de Balduíno
Eie mandou matar todos os habitantes da cidade, como se fossem um rebanho
de animais grandes ou pequenos, e não de cristãos, sobretudo porque eles se
haviam submetido aos blocos não por persuasão, ma$ por força e sob hipótese
algumapor sua própria iniciativa.
[21]Livro 1, 55
[22] .FZZafa/c.,7
[23] .1)ZafaÜ., 7.
[24] Z:4anJ'a, ]X, 17
[25]Livro 1,17
[26] Livro Xl11, 27
[27] ,áó Z]üóe aondlfa, XXV. 29,3
1234 H u oo GROTIUS

manos, dizem que perturbaram a paz, oprimidos que estavam pelo ter-
ror e a traição. Por razão seme]hante, Antígono [28] dizia que a guerra
tivera lugar com Cleomenes e não com os espartanos.

IV Nem por causa de uma culpa posta


entre o infortúnio e o dolo; explica-se
a natureza dessaculpa

1. Deve-se observar que entre injúria plena e o mero infortúnio,


intervém muitas vezesalgo de intermediário e queé comoum composto
de uma e de outro, de modo que não se pode dizer que uma ação seja
puramente de desígniopremeditado e voluntário, nem puramente co-
metida na ignorância de causa ou involuntária.

2. Aristóteles assinalou a essaespécieo nome de "aHaptepcx"que


se pode traduzir em latim por cidra a7l&ua(simples culpa). Ele se expri-
me, de fato, assim no livroV. capítulo X de seu 7}afado dn ZÉüa."Entre
as açõesvoluntárias, há aquelas que fazemos por escolha e outras sem
determinação tomada de antemão. Feitas por escolhasão ditas aquelas
que são feitas depois de certa deliberação do espírito. Quanto àquelas
que se fazem de outro modo, são feitas sem escolha. Como há três ma-
neiras de prejudicar aosoutros nas relaçõesda vida, chama-seinfelici-
dade o que ocorre por ignorância, como se alguém cometesse alguma
coisa contra outra pessoa e não aquela que ele pensava, ou outra coisa
que não pensava, ou de outro modo que ele não queria, ou contra a
intenção que havia premeditado. De fato, ou não se esperava levar um
golpe, ou não seria com esse instrumento, ou para essa pessoa ou com
essaintenção, mas o ocorrido resultou em qualquer outra coisa que não
se esperava. Por exemplo, não çra para ferir, mas para provocar uma

[28] Justino, livro XXV]11, 4,13


1235
CAPÍTULO XI - CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DO DIREITO DE MATAR NUMA GUERRA JUSTA

simples picada, ou ainda, não seria para essa tal pessoa ou desse modo.
Quando, pois, o dano teve lugar ao contrário do que se poderia esperar,
isso seria uma infelicidade. Se, de qualquer modo, se pudesseesperar
tal desfechoe prevê-lo e que não subsistisse qualquer intenção maldosa,
haveria então uma espéciede culpa, pois isso aproxima muito de uma
culpa a quem traz em si mesmo o princípio do mal de que é acusado; em
vez disso, se o princípio vem de fora, não é senão desafortunado. Todas
as vezes,contudo, em que alguém executa com conhecimento de causa
o que faz, sem que seja no entanto com propósito deliberado, deve-se
admitir que há aí um ato injusto. Tais são os fitos que os homens come-
tem habitualmente por ira e outras perturbações morais similares, se-
jam naturais, sejam necessárias. Aqueles que, movidos pela ira, cau-
sam dano e cometem uma falta não são isentos de injúria, mas não são
classi6lcados, contudo, como injustos ou maus. Se alguém, no entanto,
comete a mesma coisa com propósito deliberado, esse será chamado
com razão mau e injusto.

3. "E portanto com razão que não se leva em consideração as


açõesinspiradas pela ira como o efeito de uma intenção premeditada.
Não é naquele que age de modo impulsivo que está a causa primeira do
dano,.mas naquele que provocou a ira. Disso decorre que muitas vezes
nos julgamentos de coisas desse tipo, coloca-se em questão somente o
direito e não o fato, porque a ira nasce do dano que se acredita ter
levado.Não se discute aqui, como nos contratos, se a coisa de que se
trata foi feita, pois com relação aos contratos, a menos que não haja
ocorrido algum esquecimento, aquela das duas partes que não cumpre
seucompromisso é necessariamente de má-fé, mas as partes pedem se
o que foi feito, foi feito de modojusto. Aquele que por primeiro urdiu
trapaças não fez nada por ignorância e, por conseguinte, não é de estra-
nhar seum acredita que foi prejudicado e seo outro não acredita tê-lo
feito. Alas se o dano foi causadointencionalmente, seu autor comete
uma injustiça eaquele que setorna culpadode tais arosé injusto, tanto
!236 H UGO Gxotius

se violar as leis da proporção, como aquelas da igualdade. Do mesmo


modo, alguém é justo quando pratica a justiça com reflexão; caso con-
trário, pode-seagir de modojusto por um movimento puramente espon-
tâneo, mas sem agir com deliberação.:

4. "Quanto às ações involuntárias, umas são dignas de perdão e


outras não o são. São dignas de perdão não somente aquelas que são
cometidas sem o saber, mas também aquelas cuja causa é a ignorância
[29]. Se a]gumas ações são cometidas sem o saber e, contudo, não por
ignorância, mas como conseqüência de uma doença da alma que ultra-
passa os limites comuns da natureza humana, não são dignas de serem
perdoadas." Reproduzi em latim toda esta passagem,certamente notá-
F. vel e de grande uso porque é habitualmente traduzida menos apropria-
damente e, por esta razão, não compreendida suficientemente.

5. Migue] de Efeso130] , interpretando essa passagem, coloca como


exemplo do que se poderia disso esperar, o fato daquele que, abrindo
uma porta, feriu seu pai ou que feriu alguém exercitando o lançamento
de dardo num local solitário. Cita como exemplo do que poderia ter sido
previsto, mas sem dolo, o fato daquele que lançou o dardo numa via
pública. O mesmo escritor colocacomo exemplo do que se faz por neces-
sidade, o caso daquele que é impelido pela fome ou pela sede a fazer
alguma coisa e coloca o exemplo de perturbações naturais, como o amor,
a dor, o temor. Diz que se agepor ignorância quando um fato éignora-
do, como se não se soubesseque uma mulher é casada. Diz que se age
sem o saber, mas não por ignorância, quando se ignora o direito. Por

[29] Dionísio de Halicarnasso(1, 58) diz que '?udo aquilo que ó]nva]unfá o merec'e
perdão'{ Procópio(GoÓÍÜJC.,
111,9) escreve: "Quandoa gente ofendeuaJyuám
por ignorância ou por esquecimento, é justo que aqueles mesmos que foram
vítimas desta ofensa perdoem.
[30] Ak., V]1, 2
1237
CAPITULO XI - CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DO DIREITO DE MATAR NUMA GUERRA JUSTA

vezes é escusável, por vezes inescusável ignorar o direito, o que concor-


da muito bem com o dizer dos jurisconsu]tos [31] . Há uma passagem do
próprio Aristóteles, não diferente dessa no livro sobre a ..4rfe (2rafóz:za
[32]: "A equidade nos ordena a não colocar as faltas no mesmo grau dos
crimes, nem as desgraças no mesmo grau das culpas. Por desgraças
entende-se o que ocorre sem que se possa prever e o que se faz sem
nenhuma má intenção. As faltas são o que se poderia prever, mas que
se faz sem má intenção. Os crimes, o que se faz com propósito delibera-
do e com má intenção." Os antigos notaram essas três coisas e se encon'
Eram neste verso de Homero sobre Aquiles, no último canto da -Zllbdn
[33] : "Seu espírito não é ignorante, nem imprudente, nem mau.'
6. Há uma divisão semelhante em Marciano [34] : "Peca-se com

propósito deliberado ou por impulso ou por acidente. Pecam com propó-


sito deliberado os bandidos que formam uma quadrilha; peca'se por
impulso quando, durante uma bebedeira, se cheg.aàs vias de fato com
as mãos ou com a espada; por acidente, quando na caça, a flecha atira-
da contra um animal mata um homem." Cícero [35] distinguiu assim
essas duas coisas que se fazem de propósito deliberado e por impulso:
"Importa muito considerar em todos os tipos de crime, se são cometidos
comqualquer problema de espírito, que no mais das vezes é de curta
duração e passageiro, ou com plano e propósito deliberadoE36] . As faltas

tStXDig. e Cod, De juras et facto ignor.


[32] .R/zefor.,1, 13.
[33] .ZZüda,XX]V 157 e 186.
t34À1,. !2, Perspiciendum, Dig., De poenis.
[35]Z)e0áZ7cÍzj,
1, 8,27.
[36] Sêneca, em .Z)eZra(1. 19), diz: '?Hu/fas vezes óeneálc/a o ciz/Dália. se ó evJdenfe
que o malnão provém do fundo da alma, mas se detém, comose diz, na super'
fície."'Dedo\s'. "As vezes, um grande crime será punido com menos rigor que um
mais deve.se num houver falta e não maldade, e noutro houver astúcia profun
da, áá70crJiza izzt'eÉernda."O mesmo filósofo diz que 'b mesmo de#fo náo exige
a mesmarepressão para um homem culpado por negligência e para aquele que
premeditou a ínfração".
1238
H UGo G ROT l U S

que ocorrem por um movimento repentino são bem mais leves que aque-
las que sãopremeditadas e preparadas." Na explicação das leis particu-
[ares, Fí]on [37] fala assim: "0 crime é diminuído pe]a metade, quando
nada foi precedido delonga deliberação do espírito."

7. Principalmente desse tipo são as coisas que a necessidade con-


tudo escusa, se não as justifica [38]. Como diz Demóstenes, em seu
discurso contra Aristocrates [39] : "0 impu]so da necessidade nos tira a
faculdade dejulgar o que se deve fazer ou não fazer. Por isso é que essas
açõesnão devem ser examinadas de uma maneira muito rigorosa por
juízes justos." Esse pensamento é desenvolvido mais longamente pelo
mesmo em seu discurso sobre o fa]so testemunho contra Estêvão [40] .
Tucídides [41] diz que "Deus teria sem dúvida indu]gência [42] por um
fato que era a seqüência inevitável das necessidadesda guerra, que as
faltas involuntárias teriam porrefúgio os altares,que se devetaxar de
crimes os que fazem o mal por sua livre vontade, não aqueles que o azar
impe[e à audácia." Os ceritas, em Tito Lívio [43], sup]icam aos roma-

[37] SPeczb/.-LeF:,11,17.
[381 Acrescente-se o que foi dito no livro ]], cap. XX, $ XX]X, e neste capítulo, $ 111.
Em Tucídides(111, 32), os enviados de gamos dizem ao lacedemânio Alcides, que
havia mandado matar prisioneirosde Quites,que 'hãa ern comJZisízçaqae se
dizia o libertador da Grécia, enquanto tirava a vida a pessoas que não haviam
tomado em armas contra eie e que não eram sequer seus inimigos, porquanto
se haviam tomadoo partido dos atenienses,o haviam feito por extrema neces-
sidade". Cüs6stomo ÇDeProvídentia, N) ààz."Os inimigos privados sabem per-
doar seus inimigos privados e cs inimigos públicos a seus inimigos públicos,
quando vítimas de um dano, por mais consideráve!que seja, desde quefeito
sem seu consenÉ7henfoe cona'a sua uonfade." Os misimianos, em Agatias(IVI
20), julgavam não ser totalmente indignos do perdão e de serem poupados,
porquanto, tendo sofrido numerosasinjúrias, haviam sido impelidas a aplicar a
lei do talhão, cedendo assim a um ímpeto digno dos bárbaros
[39] (bnÉra A7bfac2'atem, 148
[40] OraÉÓin Sfepáanum,1, 67
[41] Livro IV. 98
[42] .Deuferon(anJO,XX]1, 26. MoisésMaimânides,Dúecf. Duózf., 111,41
[43] .4b Z]j}.óe
aondfa, V]1, 20,5.
1239
CAPÍTULO XI - CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DO DIREITO DE MATAR NUMA GUERRA JUSTA

nos "de não classificar como intenção o que deveria ser chamado força e

necessidade". Justino]44] diz: "A ação dos habitantes de Fócia os havia


tornado a todos odiados por causa do sacrilégio. Ela atraiu, contudo,
mais ódio ainda sobre os tebanos que os haviam reduzido a esseextre-
mo do que sobre eles próprios." Assim, na opinião de ]sócrates [45],
aquele que para sua própria subsistência pratica atou de pilhagem "co-
bre sua injustiça com o véu da necessidade". Aristides diz em seu se-
gundo discurso a LeuctresE46l: "Os tempos difíceis fornecem uma espé-
cie de desculpa aos rebeldes." Filostrato assim se exprime a respeito dos
messênios, acusados de não terem recebido os exi]ados de Atenas [47] :
'Toda sua defesa consiste em pedir perdão e em dar, como pretexto de
sua conduta, Alexandre e o temor desse príncipe que todo o resto dos
gregoshavia pressentido tão bem quanto eles." Tal é também aquele de
quem fala Aristóteles [481:"Um tanto mau, mas não injusto, porque
não trama insídias" [49] . No e]ogio do imperador Valente, Temístio [50]
adapta assim para uso de nosso tema essasdiferentes espécies:"Distin-
guiste entre crime, falta e infortúnio [51] . Embora não estudei as pala-

[44] Limo Vlll, l,lO.


[45] Melhor, PorHirio, De .4bsf2henÉ7a, lll
[46] .Z,eucÉzl'ca, ]].

[47] }TfaeSoPÜÍsÉ.,
11,15,2.
[48] Élücaa ]Ulbómaco,V]], ll.
[49] Em Tucídides(111, 40), C]eonte torna assim odiosa a causa dos mitilênios: 'Z7es
não nos.prejudicaram malgrado eles, mas nos armaram, com propósito delibe-
rado, insídias. Não é digno de ser perdoado, senão somente o que se faz contra
a }'anfade."Fílon. em seu livro .De Gang fuendo .f#:zhczbe(13), diz: "Quando se
prata de vingar injúrias, sabe discernir entre aqueles que passam sua üda
armando ínsídias e aqueles que têm outro sentimento totalmente diverso. Há,
de fato. ferocidade e barbárie ao matar indistintamente a todos,mesmo os que
cometeram as menores faltas.
[50] OmÉÜVIL 93
[51] Sêneca diz, no livro Nafuz'ages uaesÉlones(11, 44), onde trata dos raios: "Qui-
seram advertir aqueles que estão encarregadosde fulminar os culpados que o
mesmocastigo não deve atingir todas as faltas, porquanto há raios para des-
truir. outros para tocar e aflorar, outros para avisar comsua apançao-
'H
1240
H UGO GROTIUS

vias de Platão e não cultivem Aristóteles, não deixas de praticar suas


máximas por tuas ações [52]. Não ju]gaste dignos do mesmo castigo
aqueles que, desdeo início, haviam aconselhadoa guerra e aqueles que,
a seguir, foram arrastados pela tomada em armas e aqueles que su-
cumbiram sob aquele que parecia ter-se tornado o dono de tudo. Conde-
naste, porém, os primeiros, locupletaste os segundos e tiveste compai-
xão dos últimos.

8. O mesmo, em outra passagem (53), quer que um jovem impe-


rador aprenda "a distância que há entre a felicidade, a falta, o crime e
como convém que um rei tenha compaixão do primeiro, corrija o segun-
do e não persiga com sua vingança só o ú]timo". Assim, em Josefo [54],
Tiro pune efetivamente o chefe de uma empresacriminosa e todos os
outros por simples repreensões.Os simples fitos infelizes não merecem
penas,nem obrigam à restituição do dano.As açõesinjustas obrigam a
um e outro. A falta média, por ser exposta à restituição, não merece
muitas vezes uma pena, sobretudo a pena capital. A isso se refere esse
pensamento de Va[ério Flaccus [55] : "Aque]es cujas mãos foram apesar
deles inundadas de sangue, se foi o acaso cruel mas próximo da culpa
que os feZ sucumbir sob essa infelicidade, são torturados de diversas
maneiras por sua consciência e suas ações os torturam quando volta-
rem a si mesmos.''

[52] Tal fai '].Yajano, um dos melhores imperadores romanos: ':8/e nâo possui'a essa
erudição cuidadosa que se manifesta peia linguagem, mas conheciao fundo
das calhas e ap/lcava o que e/e saó2b"(Xiphilinus). Herodiano (1, 2,4) diz de
M.arco}LuleiXo."Somente ele entre os imperadores se haja apegadoà filosofia
e se podia notar que dela estava imbuído, não por seus discursos ou por uma vã
ostentação de ciência, mas pela ponderação em seus costumes e peia regulari-
dade de sua wda. "Xiphilinus diz de MacriiM: 'Z7e oZ)sopravaas /ezb com ma/a'
exaúdáo do que as comZzeczn."Dá,
ó Deus, tais príncipes a nosso século!
[53] Temístio, OraÉlb ]X, 123.

[54] Guerras Judakas, V. 13.

[55]Livro 111,391ss
1241
CAPÍTULO XI - CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DO DIREITO DE MATAR NUMA GUERRA JUSTA

V Deve-se distinguir entre os autores


da guerra e aqueles que os seguem
Há na história freqüentes exemplos do preceito que Temístio dá,

que se deve distinguir entre aqueles que foram os autores da guerra


[56] e aqueles que seguiram a orientação dos outros. HeródotoE57] con-
ta que os gregos haviam infligido penas aos que haviam aconselhado os
tebanos a passar para o lado dos medos.Assim é que os primeiros cida-
dãos deArdea foram golpeados com o machado, segundo o relato de Tito
Lívio [58] . No mesmo autor [59], "Va]erius Levinus, ten]io tomado a
cidade deAgrigento, fez golpear com o machado, depois de tê-los açoita-
do com varas, os chefes da cidade. Os outros, os vendeu com o saque." O
mesmo diz em outra passagem [60] que "as cidades deAte]]a e de Ca]atia
serenderam e que lá também se torturou aqueles que haviam estado à
cabeça da revolta". E em outro ]oca] [61] : "Como os autores da derrota
receberam dos deuses imorais e de vós, pais conscritos, o justo castigo
que haviam merecido, que pretendeis fazer agora com essa multidão
inocente?Enfim, foram perdoadoselhes foi concedidoo direito de cida-
dania." Isso foi feito, como o mesmo fa]a [62], "a fim de que a pena se
detivesseno local de onde tinha vindo o crime". Eteoclus de Argos é
elogiado por Eurípides [63] porque "segundo sua opinião, era sempre o
próprio culpado que soõ'ia o castigo de sua falta e não a cidade que tinha

[56] Ver Gaillius, .De /hce Pub#ca 11. 9

[57] aaJ}2lpe,]X, 88
[58] .4ó Z:ü.óeaon(#fa, ]V. ]0,6.
[59] Idem, XXV], 40,13
[60] Idem, XXV], 16,5
[61] Idem, V]11, 20,11

[62] Idem, XXV]11, 26,3.


[63] .4s SupZcanóes, 878 ss.
l
1242 H UGO GROTIUS

comopátria e que suporta, na opinião equivocada,a responsabilidade


de um chefe perverso". Os atenienses também, segundo o relato de
Tucídides [64], se arrependeram de ter decretado,contra oshabitantes
de Mitilene, que "toda a cidade fosse exterminada, em vez de somente os
autores do de[ito". Em Diodoro [65] também se conta que, após a toma-
da de bebas, Demétrio havia mandado executar somente os dez autores
dadefecção.

VI. De acordo com os próprios autores,


deve-se distinguir entre as causas
prováveis e improváveis

1.Arespeito dos próprios autores da guerra, deve-sedistinguir as


causas que os ]evaram a agir [66] . Há, de fato, aque]as que seguramen-
te não são justas, mas que no entanto são tais que podem enganar os
espíritos não perversos. O autor da Retórica a Herennius [67] co]oca
como motivo muito justo de perdoar, quando aquele que pecou não foi
impelido por ódio ou crueldade, mas foi movido pelo dever e por um zelo
bem fundado. O sábio de Sêneca[68] "devo]verá prisioneiros de guerra
sãos e salvos, por vezes mesmo com elogio, se for por nobres motivos,
pela fé jurada, por tratados, pela liberdade que tomaram em armas"
Em Tito Lívio [69], os peritas pedem perdãope]a fa]ta cometida [70],
oferecendo auxílio aos habitantes de Focéia que eram unidos a eles por

[64] Livro 111,36


[65] Diodoro da Sicília, XX], ]O.
[66] Vitoria, Z)e JuJ«e .BeJ7J]n. 59
[67]Livro 11,17,25.
[68].DeC7emenda, 11,7
[69] ,4ó Z:üóeaon(üfa,V]1, 20.
TROA
"Deve-se por vezesperdoar a um príncipe vencido que não conheceu a justiça
da causa do vencedor."Amiano transcreveu isto de lsócrates, em seu livro
(XXX, 8,6)
1243
CAPÍTULO XI - CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DO DIREITO DE MATAR NUMA GUERRAJUSTA

laços de sangue. O perdão foi concedido pelos romanos aos caldidenses e


a outros que haviam socorrido Antíoco em virtude de um tratado [71] .
Em seu segundo diá]ogo sobre Leuctres, Aristides]72] diz que os tebanos
que sehaviam deixado levar pelos lacedemânios contra os atenienses,
"haviam, de fato, participado de uma açãoinjusta, mas que a cobriam
com alguma aparência de justiça, alegando o engajamento de sua fé aos
chefes de sua aliança

2. Cícero, no primeiro livro de seu 7}afado dos-Deç'ares[73], diz


que se deve poupar aqueles que não têm sido cruéis, que não foram
ferozesna guerra e que as guerras, nas quais a glória de comandar foi
o objeto que se havia proposto, devem ser feitas com menos rigor. Assim
é que o rei Pto]omeu ]eva Demétrio [74] a dizer que "não os outros bens,
masa glória eo império devem estar entre elescomoobjeto da guerra"
Severodiz, em Herodiano [75] : "Quando ülzemosa guerra contra Niger,
nãotínhamos razões bem plausíveis de sermos inimigos, pois não se
tratava entre nós senão da soberania que então ainda estava em contes-
taçãoe que cada um de nós puxava para si por um igual movimento de
ambição.:

3. Muitas vezes ocorre o que Cícero [76] diz da guerra de César e


de Pompeu:"Havia uma espéciede obscuridade.Havia uma luta entre
generaismuito célebres.Muitos hesitavam e se perguntavam qual se-
ria o melhor partido." O mesmo diz ainda em outro local [77]: "Se somos

[71] Apiano, Syr., 21.


[72] Z,euaÉr=ba, ]].

[73] Z)e 0ÕZI'Eles,


1, 11,35
[74] Plutarco, Dome rias, 891 A
[75] Livro 111,6,4.
1761Pro ]lZ iMarce//o, 10, 30.
[77] Idem, 5, 13.
'1
1244 H UGO GROTlus

culpados de alguma falta proveniente do erro humano, somos ao menos


isentos de crime." Julga-se, sem contradição, como dignas de perdão,
como se diz em Tucídides [78] , as coisas que são feitas "sem maldade e
antes por erro de julgamento". O mesmo Cícero [79] diz de Dejotarus:
"Nada fez por um ódio particular que tivesse contra vós, mas caiu no
erro comum." Em suas Hlbfár:zbs, Sa]ústio]80] diz: "0 resto da tropa se
comportou sobretudo à moda popular do que com discernimento; cada
um seguiu o outro, julgando-o mais sábio." O que Brutus havia escrito
sobre as guerras civis [81] , acredito que isso poderia ser aplicado bas-
tante a propósito com relação à maioria das outras guerras: "Compensa
mais empregar a severidade para as prevenir do que exercer sua cólera
contra os vencidos" [82].

VII. Muitas vezes convémconceder


a graça do castigo, mesmo
aos inimigos que merecem a morte

1. Mesmo quando ajustiça não o exige, isso contudo convém muitas


vezes à bondade, convém à moderação [83], convém a um espírito eleva-
do. Sa]ústio [84] diz: "A grandeza do povo romano cresceu perdoando."
São pa]avras de Tácito [85] que "se devefazer uso tanto de firmeza
contra o inimigo quanto de benevolência para com os suplicantes". E
Sêneca [86] : "Os animais ferozes só e ainda as raças menos generosas

[78] Livro 1, 32.


[79j Pro -Rege.Dó:»falto,3, 10.
[80] .1y]sfar2bq4cí (besâi'em da Rep., 1, 2,4.
[81] Marcus Tulhus Cicero, Ed)Jkfu/nad Brufum, 1, 2
[82] Bembus, ]ivro ]X.
[83] O rei Teodorico, em Cassiodoro (11, 41), dizia: 'Foram áe/zzes pai"a mlm as
guerras que terminei com moderação. Sempre é vencedor aquele que sabe
colocar moderação em buda.
[84] OpaÉÜ PÜIZÜ)PÉ6
[85].f]nna/es,X]1,20.
[86] Z)eC7emenÉ2b, 1, 5
1245
CAPÍTULO XI - CONSIDERAÇÕES ARESPEITO DO DIREITO DE MATAR NUMA GUERRA JUSTA

mordem o inimigo abatido e se enfurecem contra ele. Os elefantes e os


leões afastam seus agressores e se afastam." Este verso de Virgí]io [87]
émuitas vezesoportuno: "A vitória dostroianos não dependede meu
falecimento; a vida de um homem não importa nessa ponto para o su-
cesso.'

2.Há a esserespeito uma passagemnotável, no livro IV da .Refá-


ryca a .Z:EerennJus]88]: "Nossos ancestrais tiveram uma louvável máxi-
ma, a de não privar da vida nenhum dostrês que tomavam prisionei-
ros. Por que isso? Porque era indigno coroar o favor que a sorte nos
trazia pela morte daqueles que a mesma sorte que havia elevado pouco
antes a uma situação considerável. Poderia se dizer que comandou con-
tra nós um exércitos Não me lembro mais. Por quê? Porque é de um
coraçãomagnânimo não tomar por inimigos senão aqueles que dispu-
tam a vitória e considerar como homens aqueles que foram vencidos, a
Himde que essa magnanimidade possa acalmar a guerra e essa huma-
nidade ratiâcar a paz. Se ele tivesse sido vitorioso, teria agido da mes-
ma forma? Por que pois poupar? Porque tenho o hábito de desprezar,
não de imitar semelhante loucura." Se isto é de pensar dos romanos (o

que é incerto, pois este autor se serve de exemplos estrangeiros e fictí-


cios), isso é diretamente contrário ao que está contido no panegírico de
Constantino, olho de Constâncio [89] : "Há mais prudência em ganhar o
coraçãodos inimigos, perdoando-os, mas há bravura em calca-los aos
pés após tê-]os abatido. ]i'izeste reviver, imperador, esta antiga coragem
doimpério romano que se vingava dos chefes inimigos feitos prisionei-
ros, levando-os à morte. Então, de fato, estes reis cativos, depois de
terem servido à honra do triunfo do vencedor,desde a porta até a praça

[87]É)2ezda,
X, 528.
1881Livro IV. 16,23.

[89] Eumenius, /)a/7eg, VI, lO


1246 H uoo GKOiiUS

dostriunfadores, eram conduzidos ao cárcere tão logo o general voltava


seu carro em direção do Capitólio. E lá, eram levados à morte. Somente
Perseu, por intercessão de Paulo Emílio, a quem se havia entregue,
evitou esta ]ei rigorosa [90] . Os outros, privados da ]uz atrás das gra-
des, ensinaram aos outros reis a preferir buscar a amizade dos roma-
nos [91] do que irritar sua justiça." Este autor, porém, se exprime de
modo muito genérico. Josefo [92], é verdade, diz a mesma coisa sobre a
severidade dos romanos, na história de limão, filho de Jora, que eles
condenaram à morte, mas ele fala dosgenerais, comoo samnita Pontius,
não daqueles que detinham o título de rei. Segue-se,em latim, o sentido
de suas palavras: "0 triunfo terminava quando se chegava ao Capitólio,
onde estava o templo de Júpiter, pois segundo o antigo costume da pá-
tria, os generais eram obrigados a esperar lá a notícia que lhes era
trazida sobre a morte do chefe dosinimigos. Era limão, filho de Jura,
que era arrastado, no triunfo, entre os prisioneiros. Foi lançada então a
ele uma corda e foi arrastado pelo fórum com seus guardas humilhan-
do-ocom golpes. Nesse lugar é que os romanos têm o costume de entre-

[90] Plutarco, /]a u/us .4em]/uus, 274 F.


[91] Não gostaria que esse costume fosse reintroduzido. Vemos, contudo, que Josué
manda matar os reis que havia feito prisioneiros; Josefo, em .4nÉikuldades
Judaicas(M 1). Dion, dito Sossius(Dion Cássio, XLIX, 22), escreve ' ':nez açaífa/'
.'ínÉzgono, amarrado a uma cruz, " Mas acrescenta sabiamente que 'henÀum
rei havia sido tratado dessemodopelos romanos vencedores".
À. mesma Xüs\ó'
ria se encontra em Josefo, .4nÉlkzz/JadesaNdaIcas, XVI 1,2. Eutrópio(X, 3) diz
de Maximiano Hércules que 'tendo apr7sfanadoos reuk dos ázncos e dos ale-
mães, que havia retalhado em pedaços, os expôs a combater com animais
ferozes ncs magníâcos jogos que queria organizar". 'Ver Q que àiz êsnüaho
(XXVl1, 2,9) sobre um rei dos alemães que foi pendurado numa forca. Teodorico,
rei dos visigodos, mandou matar Atiulfo, rei dos suevos estabelecidos na
Espinha, como informa Jornandes, em ]glbéo/:ü Goffül'ca, 44. Esses são exem-
plos que devem ensinar aos reis a serem modestos e a refletir que também
estão sujeitos às vicissitudes humanas, se assim Deus o quiser. E, segundo as
palavras de cólon, das quais Cresci$e lembrou em semelhante perigo, que não
se deve contar na bondade do homem antes de sua morte.
[92] Gue/:ms Juda#as, V]1, 5,6.
1247
CAPÍTULO XI - CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DO DIREITO DE MATAR NUMA GUERRAJUSTA

gar ao suplício os condenados por crimes merecedores da pena de mor-


te. Quando foi anunciado que havia terminado sua vida, votos de pros-
peridade se seguiram, depois sacrifícios." Cícero]93] diz mais ou menos
a mesma coisa em sua Verrina sobre os suplícios.

3. No tocante aos generais, há exemplos em toda parte. Há al-


guns com relação aos reis, como aque]e de Aristõnico [94] , de Jugurta,
deArtabasde. Além, contudo, de Perdeu, Sifax [95] , Gentius, Juga, e da
épocados Césares, Caractacus, como outros, escaparam do suplício, o
que denota que as causas da guerra e a maneira de conduzi-la eram
levadas em consideração pelos romanos, embora Cícero,bem como ou-
tros, reconheçam que passavam os limites da equidade na vitória. Por
isso,M. Emílio Paulo, em Diodoro da Sicí]ia [96], apresenta não sem
razão aos senadores romanos, na questão de Perdeu, que "se não temem
nada doshomens, devem ao menos temer a vingança divina, prestes a
cair sobreaquelesque usam insolentemente da vitória". P]utarco [97]
observa que, nas guerras dos gregos entre si, os inimigos se abstinham
delevantar as mãoscontra os reis lacedemâniospor respeito a sua
dignidade.

4. O inimigo, pois, que quisesse considerar não o que as leis hu-


manas permitem, mas o que é de seu dever, o que é justo e honesto,
pouparia mesmo o sangue inimigo e não daria à morte ninguém, a não
ser para sepreservar da morte ou de alguma coisa semelhanteà morte

[93] in Uerrem ,4aÉÓ,V. 26,66

[94] Ver Apiano, .Be/U..4/]'ÉZ/:fd.,no fina].


[95] Os historiadores variam sobre esseponto. Vários relatam que ele morreu
perto de Romã antes do dia do triunfo; Políbio (XVI, 23) diz que foi levado no
percurso do triunfo; Apiano conta que morreu doente enquanto se deliberava
o que seria feito dele.
[96] Exc;erpfa,XXX], 2.
[97] H#&, 804 E
!248 H UGO GROTIOS

ou por crimes pessoais que atingiam a medida da pena de morte. Per-


doará mesmo toda pena ou da pena de morte a alguns daqueles que o
teriam merecido, seja por um motivo de humanidade, seja por outras
razões p]ausíveis. O mesmoDiodoro da Sicí]ia [98] de que fa]ei diz de
modo excelente que "a tomada das cidades, a vitória nas batalhas e
outras vantagens que sepodeter na guerra sãodevidas muitas vezesà
sorte mais do que à valentia. No seio do soberano poder, conceder graça
a inimigos vencidos é obra somente da sabedoria". Lemos em Quinto
Cúrcio [99] que "embora A]exandre pudessese irritar contra os autores
da guerra, contudo, concediao perdão a todos"

VIII. Deve-se tomar cuidado, quanto possível,


para que inocentes náo sejam mortos,
mesmo sem (/edil?D.fa premeditado

Porquanto se relaciona com a morte daqueles que são mortos por


acidente não premeditado, deve-sereter o que dissemos antes (livro lll,
cap. 1, $ IV) que é, senão da justiça, pelo menos da caridade, de nada
empreender que possa ameaçar inocentes, salvo que não sela por razões
de grande importância e que tendem à salvaçãode grande número de
pessoas. Po]íbio é da mesma opinião, quando fa]a [100] : "Pertence às
pessoasde bem não fazer, mesmocontra aqueles que são menos virtuo-
.sos,uma guerra de destruição, mas de não combater senão para cepa'
rar e corrigir os erros, de não envolver num mesmo castigo inocentes e
culpados, mas de poupar os próprios culpados, em consideração dos ino-
centes.:

[98] Livro XVl1, 38


[99] Livro IX, 1,22
[100] Livro V. ll.
1249
CAPÍTULO XI - CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DO DIREITO DE MATAR NUMA GUERRA JUSTA

lx Deve-se poupar sempre


as crianças, as mulheres, salvo
se cometeram algo grave, e os velhos

1. Conhecidas essas coisas, a determinação daquelas que são mais

particulares não será di6ici]. Sêneca [lOl] , nos livros em que entra em
cóleracontra a cólera, diz: "Que a idade escute a criança, o sexoa
mulher." O próprio Deus, nas guerras dos hebreus, quer que, mesmo

2?e]i:a 111 24. Plínio, em Arn uraJJkHz)forja (VT11,16), escreve: "0 /eão,
quando está furioso, se lança sobre os homens antes que sobre as mulheres
e não ataca as crianças, a não ser que uma graJlde fome o atormente." A.
respeito dessesversos de Horácio (IV. 6, 18), referentes a Aquiles: 'Z7e feria
queimado as mulheres dos gregos e as crianças.que ainda sequer falavam e
mesmo aquelas escondidas no seio materno...", deve-se nbserval que "o poeta
selevanta contra a ferocidade deAquiles que, seApoio o tivesse deixado viver,
não teria mesmo poupado as crianças no seio de suas mães." FUon, em De
/#lhczb. aonsólf., 13, escreveque "são dispensadasmoças e mulheres". Como
Talão, eXeà\z qxxe"é desumano tratar as mulheres como as cúmplices dos
homens que somente eles é que fazem a suei'ra". O mesmo, em De Specialibus
Legibus (:EI,tab, ààz. "Entre as pessoas de idade razoável, podem ser encontra
das ini] razõespara justiHlcar as querelas e as inimizades, mas com relação às
crianças que mal nasceram e entraram na vida humana, a própria calúnia
não saberia inventar qualquer coisapara tornar culpadas, com a mínima
aparénc/b, essas crJ'af iras zhocenfes." Falando de Manaém, em 4nízguidades
dada 'cas(IX, 11. 1), Josefo diz que 'bf hgfu o ma k e/suado grau de arde/dado
melhor de ferocidade, país não poupava sequer as crianças. Ates que não
poderiam ser perdoados, mesmo se cometidos contra estrangeiros vencidos,
ele os cometeu contra membros de sua própria nação". Q pr6pxia .baseia
(.4nÉJkuJdades
Judaicas, Xl1, 8,3) conta que 'í/tidas .a/ac-ateu,tendo fanada as
cidades de Bosta e de Efron, passou ao glo da espada todos os homens e todos
agua/esque esfaT'amem Idade de comóafez" Em outro local, ele chama de
uma vingança desumana, o castigo que Alexandre, apelidado o 'lYácio, infligiu
às crianças e às mulheres. Agatias(IV, 19) diz; 'Zbmo não era Justo forfurar
e se entregar à loucura da cólera contra crianças recém-nascidas, de todo
inocentesdas faltas de seus pais, seu cume não picouimpune." Eq\Getas,
au
aquele que continuou sua história até o reino do rei Henrique, diz dos citas
que haviam tomado a cidade de Atira: 'Z7es náo pouparam nem mesmo as
crianças de peito; essasjovens plantas foram ceifadas em seu primeiro brota
e em sua primeira flor pelo crime de homens que a piedade não havia podido
Lacare que não sabiamque é pecarcontraa naturezae violar o direito
comum dos homens. estender sua cólera além da vitória e da submissão de
seu ]hJhJko."Acrescente-se o que diz Beda(Hi)farta agcles., 11, 20) sobre a
crueldade'de Carevolas. Ver também em Simler(11) uma boa lei dos suíços e,
em Cambden,a respeito do ano de 1596, as ordens benevolentesda rainha
Elisabete
!250 HU GO GROTIUS

depois da paz oferecida e recusada, se poupe as mulheres e as crianças


(-Deuferon(ím.zb,
XX, 14), fora pequeno número de nações,exceto por
um direito especiale contra as quais a guerra não era uma guerra dos
homens, mas a guerra de Deus e assim era chamada. Quando quis que
fossem mortas as mulheres madianitas por um crime que lhes era pes'
soal, excetuou as jovens ainda virgens (.NümerosXXXI, 18).Mais ain-
da, quando ameaçou com extrema severidade os ninivitas (donas, IV.
11) de os destruir por seus enormes crimes, ele se deixou dobrar pela
compaixão em favor de tantos milhares de seres de uma idade que igno-
rava a diferença do que é honesto daquilo que não o é.Aisso se parece
este pensamento em Sêneca [102]: "Pode-se entrar em có]era contra
crianças, cuja idade não conheceu ainda a diferença das coisas?" E em
Lucano [103] : "Por qua] crime as crianças poderiam merecer a morte?"
Se Deus fez e ordenou estas coisas, ele que pode matar sem injustiça,
embora sem nenhuma causa, não importa quem, de que sexo ou de que
idade seja, como autor e dono da vida, seria justo que o fizessem os
homens, a quem não concedeu sobre os homens nenhum dü'eito que
não fosse necessário para a salvação dos homens e a conservação da
sociedade?

2. Aqui está, no tocante às crianças, o julgamento dos povos e dos


tempos em que a justiça esteve mais em vigor [104] . Cami]o, em Tito
Lívio [105], diz: "Temos armas, não contra essa idade que é poupada
mesmo depois da tomada das cidades, mas contra os homens armados."
Acrescenta que é uma das leis da guerra, isto é, das leis naturais.

[102] De ãz, ]], ]O.


llOS] Livro 11,108
[104] Vitoria, .De Jure .Be/Ü n. 36
[105]..4óUTZ)e
Cbndlfa,V] 27,7
CAPÍTULO XI - CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DO DIREITO DE MATAR NUMA GUERRAJUSTA

Plutarco[106], tratando da mesma coisa, diz que "entre as pessoas de


bem, observa'se mesmo algumas leis na guerra?" Nessa passagem cum-
ore observar a expressão "entre as pessoas de bem", a fim de estabelecer
a distinção entre esse direito e aquele que consiste no uso e na impuni-
dade. Assim é que F]orus [107] nega que se tenha podido agir de outro
modosemferir a probidade. Em Tiro Lívio [108], há num outro ]ugar:
"Os inimigos irritados se abstêm mesmo de lutar contra essa idade." E
em outra passagem [109] : "A có]era cruel chegou até o ponto de massa-
crar crianças.

3. O que sempre ocorre com as cmanças que ainda não atingiram


o uso da razão ocorre muitas vezes com as mulheres, isto é, salvo que
tenham cometido alguma coisa de particular que mereça uma punição
ou que não se entreguem elas mesmas a serviços viris. De fato, como
fala Statius [110] , é "um sexo que é estranho e inábil para as armas". A
Nero, numa tragédia [111] , que chama Otávio seu "inimigo", o prefeito
responde:"Será que uma mulher toma essenome?" [112].A]exandre
diz, em Quinto Cúrcio [1131:"Não tenho o costume de mover guerra
contra prisioneiros e mulheresl é preciso que aquele que odeio esteja
armado."Em Justino [114],Grypus diz: "Em tantas guerras externas

[1061H'fa CamJZ/2;
134 B
1107]Livro 1, 12.
[1081..4Z)C/róe CondJfa, XX]V. 26,11

[109] Idem, XXV]11, 20,6.


[110]Si7vae,1, 6,53
[111] Seneca, n'agoedlao

[112]Por essemotivo, Tbccae Varus queriam que fosseapagadodo segundolivro


da ,Eheidaos versos em que Enéias pondera se deve matar melena.
11131Livro IV. 11, 17.

[114]Livro XXXIX, 2. 7
!252
H U GO GKOTI US

ou domésticas, nenhum de seus antepassados havia, depois da vitória.


seviciado as mulheres, porquanto seu sexo devia subtrai-las tanto dos
perigos dos combates, quanto da crueldade dos vencedores."Outro, em
Tácito [115], a6lrma:"Não fazia guerra contra as mulheres, mas aber-
tamente contra homens armados."

4. Va]ério Máximo [116]chama de feroz e into]erável a crueldade


de Munatius Flaccus contra as crianças e as mulheres. Em Diodoro
[117], se conta que em Se]inonte os cartagineses haviam matado os
velhos, as mulheres, as crianças "sem senso de humanidade". Em ou-
tra passagem [118], e]e chama isso mesmo de crueldade. Latinus Pacatus
[119] diz das mu]heres: "Esse sexoque poupa as guerras." Semelhantes
são as pa]avras de Papínio [120] sobre os ve]hos: "Os velhos são uma
multidão que não pode ser atacada por arma alguma.:

X. Deve-sepoupar também os que se ocupam


somente de coisas sagradas ou das letras

1. Deve-se decidir a mesma coisa em geral das pessoas do sexo


masculino, cujo gênerode vida é incompatíve] com as armas]121] . "A
carni6lcina, segundo o direito da guerra, recai sobre os que estão arma-
dose que resistem...", comodiz Tito Lívio [122], isto é, segundoo direito

[115].4nJla/es,1,59.
[116] Livro IX, 2

[117] Livro Xl11, 57

[118] Livro XIV. 57

[li9] /)anel. ZZeod, 29.

[120] Statius, 7beóa7s, V. 238

[121] Vitoria, ,De Jure .BeZ/71

1122] .4ó Z:4-óe (b/2dl'fa, XXVlll 23,1


1253
CAPÍTULO XI - CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DO DIREITO DE MATAR NUMA GUERRAJUSTA

que é conforme à natureza. Assim é que Josefo [123] diz que é justo que,
na batalha, aqueles que tomaram as armas sejam punidos, mas que
não se deve prejudicar os inocentes. Cami]o [124], depois da tomada de
Veies,ordenou que se abstivessem de tocar aqueles que estavam sem
armas. Nessa classe devem ser incluídos em primeiro lugar aqueles
que tomam cuidado das coisas sagradas, pois o costume de todas as
nações, desde a antigüidade, foi que essas pessoas se abstivessem das
armas. Por isso é que, em retorno, se evitava a violência contra eles.
Assim é que os Êllisteus, inimigos dosjudeus, não faziam mal ao colégio
dosprofetas [125] que estava em Gaba, como sepodever em /Snmue/
X. 5 e 10. Assim é que Davi se refugiou com Samuel em outro local,
onde se encontrava um grupo semelhante, como estando ao abrigo de
toda injúria das armas (/SnmueZ, XIX, 18). Plutarco [126] re]ata que
oscretenses, dilacerados por guerras intestinas, se abstinham de fazer
qualquer mal aos sacerdotes [127] e aos que chamavam de KctTctKocUICEI

e que eram os encarregados da sepultura dosmortos. Aisso se relaciona


também este provérbio grego: "Não houve sequer um só porta-fogo sal-
vo".Estrabão [128] observa que outrora, quando toda a Grécia estava
no fogo das armas, os eleanos, em sua qualidade de consagradosa
Júpiter, eseushóspedeshaviam vivido numa paz profunda.

[123] ..4nÉl#uidadesJudaicas, Xl1, 3,1


[124] Tiro Lívio, Hb Z:/róe(h/?alfa, V. 21, 13.

':"'HHH#!$E'#@ÜWÜ5
(livro 1, tit. XI, 14)
[126] é?uaesf.Gn, 296 B-D.
[127] Sérvio, em seu comentário ao canto Vll da Eneida, diz: 'Zelava ao aõr7go dos
Éaóosde quer:m, senão pe/a zdnde, ao me/]os pe/o raspe fo dando ao sacerdote. '
[128] Livro Vl11, 3,33. Po]íbio (]V. 73) e Diodoro da Sicília (Zrcerpfa /)e] esc Excerpra
de Hrfuíuóus ef Hr is, 1). De igual modo, aquelesque iam combater nos jogos
de Olímpia, de Pítia, Neméia, lstmia gozavam de proteção e de segurança em
temposde guerra. Informam a respeitoTucídides(V. 49) e Plutarco (.4rafus,
1040 B)
1254
H UGO GROíiUS

2. Com razão, são colocados nesse ponto, na mesma classe dos


sacerdotes, aqueles que escolheram um tipo de vida semelhante, como
os monges, os irmãos conversor, isto é, penitentes, aos quais os cânones

segundo a equidade natural, querem por conseguinte que sejam poupa-


dos, da mesma maneira que os sacerdotes]129] . Pode-se a justo título
acrescentar a esses as pessoas que se dedicam ao estudo das letras
estudos honestos e úteis ao género humano.

XI. Também os trabalhadores

A seguir, os trabalhadores que os cânones colocam também nesse


número. Diodoro da Sicí]ia [130] refere, comelogios,oshabitantes das
Índias que, "na guerra, os inimigos se matam entre si, mas não tocam
os trabalhadores, considerando-os como úteis a todos". P]utarco]131]
diz dos antigos coríntios e megarenos que "ninguém fazia o menor mal
aostrabalhadores". Côro[132] ordenou anunciar ao rei dos assírios que
"estava disposto a deixar sãos, salvos e indenes aqueles que cultivas-
sem os campos". cuidas [133] diz de Belisário: "Ele poupava de tal modo
os trabalhadores e tinha um tão grande cuidado por eles que, sob seu
comando,jamais foi cometida violência contra algum deles.:

XII. E ainda os mercadores e seus similares

O cânon acrescenta os mercadores. Deve-se entender não aque-


les que passam algum tempo no território inimigo, mas também indi-
víduos estabelecidos desdesempre, pois sua vida não tem relação com

[129] Cap. 2, Z)eíreura alface (Z)ecrefa/.,1, 34)


[130]B?'Ó/,11,36
[131] é?t/aesÍ. Gc, 295 C
[132] Xenofonte, Z)e G VT/nsZzÉ.,V. 4,24.
[133] Suadas, i.v. .Be/i)ar7us.
1255
CAPiÍUto XI - CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DO DIREITO DE MATAR NUMA GUERRA JUSTA

as armas. Sob essa denominação se acham compreendidos, ao mesmo


tempo, os outros operários e artistas, cuja procissão ama a paz, não a
guerra

XIII. E também os prisioneiros


1.Chegandoaos que carregaram as armas,já referimos antes a
palavra de Pirro (livro 111,cap. X, $ 1), em Sêneca, que diz que a honra,
isto é, a consideração da equidade nos proíbe tirar a vida a um prisão'
neiro. Citamos um pensamento semelhante de Alexandre ($1X, 3) que
junta às mulheres os prisioneiros. Acrescentemosestaspalavras deAgos-
tinho [134]: "Que seja a necessidade [135], não a vontade que dá a morte

Íi3ãÍ'ãa'.BÓ,,üãf/um .EsPJkf., l.

i:;;'H% bZU :HZ%ZZigR


eles tivessem estado presentes, os tebanos não teriam tratado os orcomênios
cano o duram."Marcelo seguiu esta conduta após a tomada de Siracusa! como
Plutarco o a6uma na mesma passagem. Ver o próprio Plutarco em Uma de
Ca8aode Z:/É2cu,
787 D. Cabade rei da Pérsia, tendo tomado a cidade de Amida,
comose fazia uma grande carnificina dos habitantes, um velho sacerdoteo
interpelou dizendo-lhe que não era digno de um rei massacraros vencidos.
Este fato é narrado por Procópio(/)erszc., 1, 7) que diz em /brnc., 11,9: ';Sew-
CJbr os pnsJonelros Ó co/?Érár7;0â pzedãde. " No mesmo historiador se encontra
um belo discurso de Belisário a seus soldados,após a tomada de Nápoles
(GoÉfájc.,1, 9). Em Anna Comneno, o imperador Alexis responde a. alguém
que o aconselhava a matar os prisioneiros citas: 'lides//70que sqbm citas, e/es
são homens; e embora tenham sido nossosinimigos, são contudo dignos de
compaixão." Gregoras (livro VI, 8) escreve: "7bdo o que se Énz no ca/or do
combate é escusáve] de alguma maneira porque nesse momento ninguém ê
dono de si mesmo e porque se age por uma impetuosidade cega;idas passado
perigo e quando o espírito reposto em sua calma usual tem o tempo e a
liberdade de bem examinar todas as coisas,deixar à sua mão o poder de tudo
fazer é unia prova de intenções criminosas, se se cometeu algo contrário ao
deç,er."Acrescente se do mesmo Gregoras outra passagem que colocamos
nessas notas, ao final do capítulo Vll deste livro. Com relação a um elogiável
costume dos poloneses,ver Chalcocondylas, livro V. Juliana, tecendo.elogios
a Constâncio (O/.adio 11), assim descreve em sua pessoa o que constitui um
bom príncipe: 'Me/lcedorpor suas gratas, e/epóê um ]))nJfe âs obras da espa-
da, pensaiadoque era criminoso tirar a vida de um homem que não illazs
defellde sua vida.
!256
H UGO GROTIUS

ao inimigo combatente. Do mesmo modo que se devolve violência por


violência ao que combate e resiste, assim também se deve misericórdia
ao que é vencido ou feito prisioneiro, particularmente quando não se
tem motivo de apreensão que ele possa perturbar a paz." Xenofonte diz
de Agesilau [136] que "advertiu seus soldados de não punir os prisionei-
ros como culpados, mas vigia-los como sendo homens". Em Diodoro da
Sicí[ia [137], encontra-se: "Todos (os gregos) se opõem aos que resistem
e poupam aqueles que são submissos." Segundo a opinião do mesmo
[138], os macedónios que serviam sobAlexandre tinham agido, com rela-
ção aos tebanos, com mais rigor do que o permitia o direito de guerra".

2. Sa]ústioE139] tendo contado em Gue?:ra deluwÉa que púberes


haviam sido mortos depois de se terem rendido, diz que isso foi feito
contra o direito da guerra, o que deveser interpretado comocontra a
natureza da equidadee ocostume daquelesque vivem comhumanida-
de. Há em Lactâncio [140] : "Os vencidos são poupados e há lugar entre
as armas para a c]emência." Tácito [141] e]oglaAntânio Primo e Varus.
generais ílavianos, por não terem torturado ninguém fora da batalha.
Aristides [142] diz: "E próprio dos homens de nosso caráter forçar pelas
armas aqueles que resistem e de tratar com moderação aqueles que são
abatidos."

3. O profeta Eliseu (/7-Re/is,VI, 22) se dirige assim ao rei de


Samaria, a respeito dos prisioneiros: ' Matariam com tua espadae teu
arco os prisioneiros que farias?" Em Eurípides, nas J7e/ác7Jdes[143],

[136].4geSJ7aU,
1,21
[137] Livro Xl11, 24
[lS8] Livro XVl1, 13
11.39\De Bello Jugurthino. XCI 6-7
[140] Livro V. 9
[141] HJkÉo/:zbe,IV. 39
[142] .De Face, ll
[143] J7erac/I'd., 965
1257
CAPITULO XI - CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DO DIREITO DE MATAR NUMA GUERRA JUSTA

ao mensageiro que pergunta 'Vossa lei proíbe pois matar um inimigo'P',


o coro responde: "Aquele que Marte deixou sobreviver no combate." No
mesmo local [144] , o prisioneiro Euristeu diz: "As mãos que me darão a
morte não serãoinocentes." Em Diodoro da Sicí]ia [145], os bizantinos e
os calcedânios são diminuídos por essa apreciação, por terem matado
numerososprisioneiros: "Cometeram crimes de rara crueldade." O mes-
mo, em outra passagem [146] , chama de "direito comum" o fato de pou-
par os prisioneiros [147]. Diz que aqueles que agem de outra forma
pecamsem margem a controvérsia. A natureza do bom e do justo orde-
na a conservar os prisioneiros, comohá pouco seguimos Sêneca[148]
que o diz em seus escritos 6ilosó6icos.Vemos elogiados na história aque-
les que, quando a demasiado grande multidão de prisioneiros podia re-
presentar um fardo ou um perigo, preferiam manda-los todos de volta
do que mata-los.

XIV Deve-se acolher aqueles que querem


serendersob condiçõesrazoáveis
1. Pelas mesmas razões não se deve recusar acolher aqueles que
pedem a vida salva, seja num combate, seja num assédio [149]. Por
isso,Arriano [150] diz que o massacre daqueles que se haviam rendido,

[144] J?bracjld., ]Oll


[145] Livro Xl1, 82.
[146] Livro Xl11, 26
[la71 Capitolino diz de Marco Antonino: "Oóserç'oua equ Jade, mesmopara com os
inimigos prisioneiros.
[t48] De amei?2e/zíaa,
1, 18.
[149] Os romanos obrigaram os persas que se encontravam na cidadela de Petra a
dizer(Procópio, Goela,c.,IV, 12): 'Ue/nospiedade de vós que fzFaisde possas
cabeçaso jugo da escravidão;queremosvospoupar a vós quedesejaismorrer
:, apesar de vosso desprezopela vida, queremosvos conservar, pois isso
convém a cristãos e a cidadãos do império romano."'Ver Be Series, em Vida
de FraJlcísco le aqüeXa üe Henrique ll.
[150].Erped.,4/exanaCÜ
1, 9, 10
1258
H UGO GROTIUS

cometido pelos tebanos, não estava de acordo com os costumes gregos.


Tucídides, de igua] modo, no ]ivro 111[151] diz: "Vós nos recebestes sob
vosso poder, por nossa própria vontade e estendendo as mãos. E costu-
me dos gregos de não matar aqueles que se renderam desse modo." Em
Diodoro da Sicília [152] , os senadores siracusanos dizem: "E digno de
uma grande alma poupar um suplicante." Sopater diz: "E costume con-
servar nas guerras a vida aossuplicantes."

2. Isso era observado pelos romanos, nas sedes das cidades, antes
que o aríete tivesse derrubado as muralhas. César [153] leva a conheci-
mento dos aduáticos que conservara sua cidade, se se renderem antes
que o aríete tivesse tocado suas muralhas. Esse costume se pratica
ainda agora com relação a locais fracos, antes que as máquinas de fogo
sejam lançadas e comrelação às praças fortes antes que se tenha proce'
dido ao assa]to. De seu ]ado, Cícero [154], considerando não tanto o que
ocorre, mas o que é naturalmente justo, assim se pronuncia sobre o
assunto: "N ão somente se deve poupar aqueles que forçastes pelas ar-
mas, mas é preciso também dar tréguas aos que, depondo as armas, se
rendem à discrição do general, mesmo se o aríete já tivesse golpeado a
muralha." Os intérpretes hebreusobservam que seus ancestrais ha-
viam preservado o costume de não investir completamente a cidade que
situassem,mas deixar uma parte livre para aquelesque queriam fugir
[155], a 6lm de que a coisa se passasse com uma menor efusão de sangue.

[151] Livro 111,58


[lõ2] Livro XI, 92
[lõ3] Caius Julius Caesar, Z)e .BeZ/oGa.ÊZ/c'o,
11, 32
[154]Z)e (2#Íc71j,
1, 11,35
[155] Assim é que Cipião Emiliano, a ponto de destruir Cartago, fez correr o aviso
que 'bode/7bzn áug7r os gue quJsosseJ71
"(Apiano, Pu/z., 130)
!259
CAPÍTULO XI - CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DO DIREITO DE MATAR NUMA GUERRA JUSTA

Xy. Deve-se poupar os que


se renderam sem condição

A própria equidade ordena poupar aquelesque serendem sem


condiçõesà discrição do vencedor ou que se tornam suplicantes. Segun-
do Tácito [156], "é uma crueldade matar aqueles que se renderam"
Salústio [157], de igual modo, falando dos campanosque se haviam
rendido a Mário, acrescenta, depois de ter contado que aqueles que ha-
viam atingido a puberdade haviam sido mortos, que issohavia sido um
crimecontra o direito da guerra, isto é, contra o direito natural. O
mesmo diz em outra passagem [158] que "não se havia matado, segun-
do as leis da guerra, pessoasarmadas, nem no combate, mas suplican-
tes". Segundo Tito Lívio]159] também, como já o dissemos, "a matan-
ça, segundo o direito da guerra, não deve se exercer senão contra penso'
as armadas e que resistem." E em outro ]oca] [160] : ". .. E]e que, contra
o direito e a justiça, havia feito a guerra aos que se haviam rendido.:
Deve-se mesmo fazer de modo que sejam antes coagidos, pelo temor, a
se render do que mata-los. Isso é elogiado em Brutus [161] que "não
suportou que seus inimigos fossem atacados, mas os fez cercar pela
cavalaria, ordenando poupa-los como pessoas que Ihe deveriam perten'
cerlogo.

[156] .4nnaJes, X]1, 17

llÕ71 Z)e .Be/TOJUrUJ«fÜJZ?O,


XCl1, 7
[158] .De Xep. Ord, / .4d (pesarem 1. 4.1

[lS9] ÁÓ Z:&-óe
aonc#6a, XXV]11, 23,1
1160] Idem, XLl1, 21,3

[161] P]utarco, .8rufus, 996 A


'H
1260 H UGO GROTIUS

XVI. Isso é verdade, salvo se um grave atentado


não tenha ocorrido antes; comoentender isso

1.Alega-se geralmente contra essespreceitos da equidade e do


direito natural exceçõesque não são de todo justas, a saber: a vontade
de dar o troco, a necessidade de inspirar temor, a obstinação da resis-
tência. Aquele que se lembrar do que foi dito antes (livro 111,cap. IV),
relativamente àsjustas razõesde matar,compreenderáfacilmente que
essascoisas não bastam para justificar a matança. Não há perigo a
temer da parte dosprisioneiros e daquelesque se renderam ou que
desejam se render [162] . Para que sejam justamente mortos é preciso
que um crime preceda e um crime tal que um juiz justo o acharia digno
da pena de morte. Assim é que vemos que se torturou às vezes prisionei-
ros ou os que se renderam ou que se recusou receber aqueles que pe'
aliampela vida porque, convencidos da injustiça da guerra, eles teriam
persistido em ficar sob as armas; porque teriam dilacerado a reputação
do inimigo com enormes ultrajes; porque teriam violado a fé jurada ou
qualquer outra regra do direito das gentes, como o direito dos embaixa-
dores; porque teriam sido trânsfugas.

2. Quanto ao talhão, a natureza só o admite contra aqueles que


cometeram um delito e não basta que se apresente sob a idéia de que
todos os inimigos como um só corpo, por uma espécie de fingimento,
como se pode compreender por aquilo que foi desenvolvido por nós antes
(livro 11,cap. XXI, $ 18), no tocante à comunicação das penas Lemos
emAristides[163] : "Não é absurdo querer imitar, como se fossem boas,
as coisas que acusais e que classi6lcais de más?" P]utarco [164] acusa a

[162] Vitoria, .De Juz'e Be]b, n. 49 e 60

[163] De Face, ]]
1164] 7}moi., 282 C, e .Dio, 983 E.
1261
CAPÍTULO XI - CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DO DIREITO DE MATAR NUMA GUERRA JUSTA

essetítulo os siracusanosde que haviam matadoas mulheres e os fi-


lhos de Hicetas pela sórazão que Hicetas havia condenadoà morte a
irmã e o filho de Dion.

3.Autilidade que se espera do terror para o futuro não chega até

o ponto de dar o direito de matar. Se o direito existe, pode ser encontrado


entre as razões que podem impedir que se desconsidere esse direito.

4. Quanto ao zelo por demais obstinado por seu partido, se contu-


do a causa desse partido não é de todo desonesta, não merece o suplício
como,em Procópio]165], o sustentam osnapo]itanos.A]exandre]166],
tendo feito matar todos os homens púberes numa certa cidade que ha-
via resistido vigorosamente, pareceu aos habitantes das Índias que fi-
zesse a guerra ao modo dos bandidos, e temendo essa reputação, o rei
começoua usar da vitória com maior clemência. O mesmo,com maior
justiça, quis que se poupasse alguns habitantes de Mliles "porque os via
generosos e fiéis a seu partido", segundo as pa]avras de Arriano [167] .
Phyto, governador de Regium, sendo arrastado aos tormentos e à mor-
te, por ordem de Dionísio, por ter defendido a cidade com demasiada
obstinação,exclamou que era punido com o suplício porque não havia
querido trair a cidade e que Deus logo se vingaria disso. Diodoro da
Sicí[ia [168] chama essas penas iníquas de "vinganças injustas". O voto
que se encontra em Lucano [169] me agrada muito: "Que seja vencedor
qualquer um que não considere como necessário sacar a espada cruel
contra os vencidos e que não considere seus concidadãos como crimino-

[165]GofÍÜfa.,
], lO
[1661 Polien., ]V. 3, 30.

11671
Erped..4/eÂ-a/id?2;
1,19,8
11681Livro XIV. 112.

[169] .f)Barba/)a, Vl1, 312 ss.


}262 H UGO GROTIUS

sos por ter levado bandeiras contrárias." Com a condição, no entanto.


que se entenda pelo designativo de concidadãos não os cidadãos de tal ou
qual país, mas os cidadãos desse país comum de que se compõe o gênero
humano.

5. O despeito de uma derrota secatorna a matança ainda menos


justa, como lemos que Aquiles, Enéias, Alexandre haviam vingado a
morte de seus amigos derramando o sangue dos prisioneiros ou daque-
les que se haviam rendido. Por isso é com razão que Homero [170]
canta este verso: "Girava em seu espírito uma ação iníqua"]171] .

XVII. Poupar os culpados é bom,


por causa de seu grande número

Mesmo no caso em que os crimes são tais que possam parecer


dignos de morte, seria um dever de comiseração se afastar algum pouca
de seu direito rigoroso, em consideração ao grande número de crimino-
sos. Temos como exemplo dessa clemência o próprio Deus que quis que
uma paz fosse oferecida aos cananeus (.DeuÉeronánJb, XX, 10) e a seus
vizinhos, povos de longe mais cmminosos,paz que lhes concederia a
vida sob a condição de pagar um tributo. Aqui se aplicam as palavras de
Sêneca [172] : "A severidade do genera] se desdobra contra os privados,
mas quando todo um exército desertou, o perdão é necessário. O que é
que desarma a ira do sábio?A mu]tidão de cu]pados" [173] . E este verso

[170] ]7Ü(h, XX]11, 176.


[171] Sérvio, no comentário ao canto X (519) da .8ne2da,observa que isso pareceu
cruel nos séculossubseqüentes.
[172] Z)e/la, ]], lO.
[173] O esco]iasta de Juvena] (.4d SaÉ7ram,11, 46) diz, segundo Lucano (V 260), que
toda ÁaJfacomeÉldape/n mu/í7c/âoálc'almpuní?': Em Xiphilinus, segundoDion
(\N. 2ab, Ltv\a dxz. "Se alguén] quer punir com rigor todas estas faltas, i)ão vê
que será impelido comisso a fazer perecer a maioria dos home31s." fogos\Xl\ho,
na.EpistuJa m\1, 5, escreve "E melhor advertir que ameaçar.Assim é que, de
fato, é preciso agir quando os culpadossão a multidão; a severidade não deve
ser exercida senão com relação às faltas cometidas por ull] pequeno núznero
de pessoas," Acrescente-se Gaillius, De Pnce .Puó/lc'a, 11, 9,37
1263
CAPÍTULO XI - CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DO DIREITO DE MATAR NUMA GUERRA JUSTA

de Lucano [174]: "Quantos jovens sucumbem juntos num cruel


morticínio, sendo muitas vezes a fome sua causa, ou o furor do mar; são
ruínas súbitas ou flagelos do céu e da terra ou ainda derrotas em guer-
ras, jamais foi o castigo." Cícero [175] diz: "Para evitar que um dema-
siado número padeça o suplício, se pensou em tirar à sorte." Salústio
[176] diz a César: "Ninguém te leva a esses cruéis castigos ou a esses

julgamentos severosque destroem uma cidade em vez de corrigi-la."

Xylll. Os reféns não devem ser mortos,


salvo se os próprios tiverem cometido um crime

1. 0 que deve ser decidido segundo o direito natural com relação


aos reféns pode se deduzir das coisas que dissemos antes. Outrora, quan-
do seacreditava popularmente que cada um tinha sobre sua própria
vida o mesmo direito que sobre as outras coisas suscetíveis de ser objeto
de propriedade e que esse direito era por consentimento tácito ou ex-
presso passado dos privados ao Estado, havia menos do que se espantar
que reféns, embora inocentes, fossem, como lemos, condenados à morte
pelo crime de um Estado, ocorrendo isso em decorrência de seu consen-
timento particular ou em virtude de um consentimentopúblico, no qual
o delesestava compreendido. Depois que uma ciência mais verdadeira
nos ensinou que o direito de propriedade sobre nossa vida é reservada a
Deus [177], segue-se que ninguém pode, pelo só consentimento, dar di-
reito a alguém sobre sua vida ou sobre aquela de seu súdito. Por isso é
que,segundoo relato deAgatias [178] , pareceu atroz a Narsés, general

[174].f)Barba/ia,11, 198 ss

[175] Pro ayuenflo, 46, 12$.

[176] ,4d Chegarem, Z)e .Repuó.], ] 6,4

[177] Vitoria, .De Jure -BenZI,n. 43

[178]Livro 1, 12
!264
H U GO GROTIUS

humano, entregar ao suplício reféns inocentes. Outros autores relatam


a mesma coisa de outros generais, como Cipião [179] que dizia não que-
rer torturar reféns inocentes, mas somente os que se teriam revoltado
[180] e que não inf]igiria castigo a pessoasdesarmadas, mas a um ini-
migo armado.

2. Quanto ao que dizem certos juristas [181] não obscuros, entre


os modernos, que tais convenções são válidas se con6n'madas pelos cos-

tumes, aceito se chamam direito à impunidade somente que, nessa


matéria, é muitas vezes designada assim. Se pensam, porém, que são
isentos de pecado aqueles que tiram a vida de alguém em virtude de
uma simples convenção, temo que se enganam a si mesmos e que enga-
nem a outros por uma perigosa autoridade. Seguramente, se aquele
que vem como refém é ou foi antes do número dos grandes criminosos
ou se a seguir violou a palavra dada numa coisa de alta importância,
pode ocorrer que seu suplício seja isento de injustiça.

3. Acoragem de Clélia, porém, que viera como refém, não por sua
própria vontade [182], mas por ordem do Estado, quando se deu à fuga
atravessando oTibre a nado, "não somentenão foi punida pelo rei dos
etruscos, mas ainda foi elogiada", segundo as palavras de Tito Lívio
[183] , no re]ato desse trecho.

[179] Tito Lívio, ,4ó 27róe Cb/zdlfa, XXVl11, 34,9.


[180] Juliana diz a mesma coisa em Eunapius, Excerpra Z%af/o/]um, 9
[181] Menochius, .4ró. é?uaesé. Z

11821Acrescente-se'a história que se encontra em Nicetas (livro 11) de reféns que


pretendiam se subtrair dessa carga e que foram punidos por isso
[183].4b Z:&-óe
ao/]d)fa,11,13,9.
1265
CAPÍTULO XI - CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DO DIREITO DE MATAR NUMA GUERRA JUSTA

XIX. É preciso abster-se de todo combate inútil


Deve-se ainda acrescentar que todos os combates que não servem

para obter o que é devido ou para pâr fim a uma guerra, mas que não
tendem senão a se envaidecer de suas forças, isto é, como dizem os
gregos,"que não são senão uma ostentação de suas forças, antes que
um combate contra os inimigos" [184], estão em oposição com o dever do
homem cristão e com a própria humanidade. Por isso, os poderes supe'
dores que prestarão contas do sangue inutilmente derramado àquele
em nome do qual impunham a espada devem proibi-las seriamente. Os
generais, de fato, que conquistam a vitória sem efusão de sangue foram
elogiadospor Salústio [185]. Tácito [186] diz dos Gatos,povo de uma
conhecida bravura: "Fazem poucas incursões e evitam os encontros for-
tuitos" [187] .

[1841
Arriano,á:rped.,ryexandr2;1,22
[lS5] De .Baga JugurÉÜlho, XC]1, 4

[iS6] Gennanza, 30.

11871Plutarco (De/?leZrJus.908 C) censura Demétrio porque lançava seus soldados


em perigos e os expunha a combates, sobretudo por amor à glória do que para
conquistar vantagens reais.
Xll

CONSIDERAÇOES
SOBREA DE\üSIAÇAO
E OUTRASCOISAS
SIMILARES

Sumário

1. Que devastação ajusta e até que ponto.

11.Deve-se abster-se da devastação se a coisa nos é úti! e se


estáfora do alcance do poder do inimigo.

111. Se há grande esperança de uilla rápida vitória.

IV Se o inimigo teJn outra fonte de que se sustentar.

V Se a própria coisa não é de nenhum usopara entre l;er a

guerra.
]sa sa
VI. Que isso ocorre particularmente com relação a Bolsas
gradas ou que dependemdas coisassagradas.
VII. De igual 13aodo,com relação a coisas religiosas.

VIII. Mlostram-se as vantagens que decorrem de talilloderação.


1269
CAPÍTULO Xll - CONSIDERAÇÕES SOBRE A DEVASTAÇÃO E OUTRAS COISAS SIMILARES

1. Que devastação é justa e até que ponto


1. Para que se possa destruir sem injustiça os bens de outrem, é
necessário que antecede uma dessas três coisas ou uma necessidade
semelhante àquela que deve ser considerada como tendo sido excetuada
no estabelecimento primitivo da propriedade; como se alguém, para evitar
seupróprio perigo,lança no rio a espadade um terceiro que um furioso
poderia fazer uso; em tal caso,contudo, como dissemos em outro local
(livro 11, cap. 11, $ 9), segundo a opinião mais verdadeira, a obrigação de
reparar o dano subsiste. Ou alguma dívida procedente de uma desi-
gualdade, de maneira sem dúvida que a coisa destruída seja considera-
da como percebida em relação a essa dívida, pois de outro modo não
haveria direito. Ou ainda algum maleHicioque mereça um castigo slmr
lar ou que o castigo não exceda a medida, pois, assim como o observa
comrazão um teólogo de juízo sadio [1], a equidade não suporta que
para alguns rebanhos subtraídos ou algumas casas queim adas todo um
reino seja devastado. E também o que Po]íbio [2] percebeu, e]e que quer
que na guerra o castigo não chegue ao infinito, mas que vá até o ponto
em que os crimes sejam expiados numa justa medida. Essas razões, de
fato, e nesseslimites únicos, fazem com que não haja nisso injustiça.
2. De resto, salvo uma razão de utilidade que o aconselhe, é uma
estupidezprejudicar a outrem sem que disso resulte nenhum bem para
si próprio. Por isso, aqueles que têm sabedoria sedeixam geralmente
tocar pela consideração das vantagens a tirar, a principal delas assina-
lada por Onosander [3]: "Que se ]embre de destruir, de queimar, de
devastar o território dos inimigos. A penúria de dinheiro e de frutos da
terra diminui a guerra [4], como a abundância a aumenta." O seguinte

11]Vitoria, Z)eJure -Be/Ün. 52 e 56


12]LivroV l.
[3] SúaÉ., 6

l41 Fílon, em Z)e VJfa (b/zfemp/aÉ;ua, 2, diz: "Os lhlm gos óe/17
0 costume de devassar
as terras inimigas e despojo-las de suas árvores, a fim de que seus inimigos,
vencidos pela falta de coisas necessárias, se entreguem mais facilmente." O
mesma. em De Di!«is. \, escxewe."Causam unia dupla desgraça: a carestia para
seus al3}igos,a abundância para seus inimigos.
''H
1270
H UGO GROíiUS

pensamento de Proc[us [5] não difere daque]e: "Convém a um bom ge-


neral destruir por toda parte osrecursos dosinimigos." Quinto Cúrcio
[6] diz de Dado: "Ele acreditava que um inimigo que nada tivesse além
do que poderia se apoderar pela pilhagem, podia ser reduzido à ca-
restia.

3. Deve-se,na verdade, tolerar a devastação que reduz em pouco


tempo o inimigo a pedir a paz. Desse tipo de guerra é que usa Halyattes
contra os mi]esenses [7], os trácios contra os bizantinos [8], os romanos
contra os campanos]9], os capenates, os hispânicos, os ]íguresE10], os
nervienses, os menápiosE]l]. Pesando bem a coisa, na maioria das ve-
zes Isso se comete antes por animosidade que por razão prudente.
Ocorre geralmente que essas razões que aconselham a devastação
não existem ou que não há outras mais fortes para dissuadir que
isso seja feito.

11.Deve-se abster-se da devastação


se a coisa nos é útile se estáfora
do alcance do poder do inimigo

1. Isso ocorrerá primeiramente, se formos de tal modo donos da


coisa que produz os frutos que ela não possa servir aos inimigos. Alei
divina tem particularmente issoem vista (.DeuferonãnJO,
XX, 19-20)
quando quer que se empregue as árvores silvestres para os trabalhos de
defesa e as obras de guerra, mas que as árvores frutíferas sejam con-

[5] Platão, ,4 #epúó/vc'a, 111,3


[6] Livro IV 9,8
17]Heródoto, 1, 17
[8] Políbio, ]V. 45

19]Frontino, .SÉra6ege/17aÉa,
111,4,1

[i0] Tito Lívio, .4Ó Z://óe (b/7dl'fa, V. 12,5, XXXIV. 7,17 XL,38
1111Caius Julius Caesar,Z)c?-Bebo Ga//Jc;o,
VI, 3 e 6
127}
CAPÍTULO Xll - CONSIDERAÇÕES SOBRE A DEVASTAÇÃO E OUTRAS COISAS SIMILARES

servidas para a subsistência, acrescentando a razão que as árvores não


podem se erguer contra nós em combate como os homens, o que Fílon
[12] estende mesmo às terras por uma semelhante razão, emprestando

coisasnecessárias que podem não ter aprovlsionado para o futuro. De fato, os


antigos disseram muito bem que é preciso viver com seus amigos como se nao
se ignorasse que eles podem se tornar nossosinimigos e que, ao contrário, se
deve assumir o comportamento com aqueles com os quais se tem problemas,
comose a reconciliação fosse possível.'Primeiramente, deve-se provejl algum
recursopara ter segurançae para não se arrepender tarde demais de viver
vida muito fácil, expondo-semais do que o necessárioem suas açóesou em
seusdiscursos.Máxima muito importante, que os Estados.tambémdevem
observar com cuidado, com relação à paz, de modo que, de um lado, não se fiem
por demais em seus aliados, comose não pudessem c.cegara mudar para o
partido contrário, e que, por outro lado, não.desconfiemtotalmente de um
inimigo, como se jamais pudesse se tornar amigo: Mesmo que.não se devesse
fazer nada em favor dos'inimigos, na esperança de uma reconciliação,.não se
poderia em razão (dissoapoderar-se dos bens que a terra deles produz. Nada de
tudo issoprovoca a guerra. Tudo isso, ao contrário, nos traz a paz e nos faz bem
As árvoresfrutíferas principalmente e as plantas nos são realmente necessá-
rias porque seus frutos nos 'servem de alimento ou nos servem de outro modo;
Não se deve, pois, fazer a guerra ao que não quer nem pode nos fazer.mal
algum. Não se deve cortar, nem queimar, nem arrancar coisas que a propna
natureza cuida em formar e em fazer crescer,pelas águas com as quais as rega
e pela temperatura das estações,que ela administra com regularidade, a fim de
que todos os anos elas paguem tributo aos homens como a outros tantos reis.
Esta boa e sábia mãe de todas as coisas dá uma torça e um vigor .continuo nao

i:::=Bl=:S'«m Fn=i\a==:'É:=m::::=n::\=
1272
H UGO GROTIUS

essas palavras à lei: "Por que entrar em cólera contra as coisas que não
têm nenhum sentimento, que são boas e trazem bons frutos? Será que.
ao modo dos homens que são inimigos, as árvores dão sinais de inimiza.
de para que se deva arranca-las pela raiz em razão do que fazem ou do
que ameaçam fazer? Longe disso, elas são úteis aos vencedores e forne-
cem em abundância as coisas que a necessidade exige e mesmo aquelas
destinadas ao prazer. Os homens não pagam sozinhos os tributos. As
árvores pagam um tributo bem mais rico em suas estações,de tal modo
que sem elas não é possível viver." Josefo [13], por seu lado, diz sobre a
mesma passagem que, se as árvores pudessem proferir palavras, grita-
ram que, não sendo a causa da guerra, sofrem injustamente os casti-
gos da guerra. Não é de outro lugar, se não me engano, que vem esta
máxima pitagórica, em Jâmblico [14J:"Não se deve prejudicar nem
cortar uma boa árvore que produz frutos."

2. Porfírio, por seu lado, no livro IV de seutratado Denan Zdendk


.4n.zlrna/7Óus[15], descrevendo os costumes judaicos, estende essa lei
(fundando-se, como acho, na interpretação que o costume Ihe havia dado)
mesmo aos animais que servem ao trabalho dos campos. Diz que havia
sido prescrito por Moisés de poupa-los também na guerra. Quanto aos
escritos talmúdicos e aos intérpretes hebreus, acrescentam que essalei
deve ser estendida a toda coisa que seria destruída sem uti]idade [16]
como colocar fogo aos ediHicios,estragar coisas boas para comer e beber.
De acordo com essa lei está a prudente moderação do general ateniense
Timóteo que, segundoo relato de Po]ieno [17], "não tolerava que se

[1 3] .4n//ku/'Jades dada/bas, IV. 8.42


[14] Jâmblico, Hfa .lyfóagorae, XXI, 99.
[15] Estas são suas palavras (-De .4ósf/}7enÉla, IV. 14): 'H .reJ ordena pozzpa4 mesmo
10território inimigo, os animais companheirosde trabalho do homem. de tal
modo que 1lão é permitido mata-los
[16] Eles querem, ao contrário, que seja restringida, acrescentando-seesta exce-
çao .a menos que as árvores não se encontrem nos vilarejos e não impeçam os
movimentosdaquelasquelançamosdardos. ' ''
[17] Polyaenus, lll, l0,5
1273
CAPÍTULO Xll - CONSIDERAÇÕES SOBREA DEVASTAÇÃOE OUTRAS COISAS SIMILARES

derrubasse uma casa na cidade ou se devassasse área cultivada ou que


Há também uma lei de Platão, no
se cortasse uma árvore frutífera
jivro V da #ePÚZ)/)cn [18], que proíbe que "a terra seja devastada, que as
casassejam incendiadas

3. Isso teria lugar, porém, bem depois da vitória completa. Cícero


[19] não aprova que Corinto seja destruída, onde, contudo, os embaixado-
res dos mmanos haviam sido ignominiosamente tratados. O mesmo clas-
sifica em outro loca]L20] de horrível, abominável, cheia de ódio a guerra
que é feita às muralhas, aos tetos, às colunas, às portas. Tiro Lívio [21]
elogia a moderação dos romanos, depois da derrota de Cápua, porque não
seentregaram incêndios e ruínas contra tetas e muralhas inocentesE22].

ÍÍã] .De .RePuÓ/I'ca,V, 17


[101De OáZI'cÍzs,
1, 11,35.
12011)eZ)omosua ad PonZláces,23, 60.
1274
H UGO GROTIUS

Agamemnon diz, em Sêneca[23J:"Certamente confessaria, terra


argense, que me seja permitido dizê-lo sem te ofender, que gostaria de
abater os frígios e vencê-los,mas que teria impedido de destruir e de
arrasar sua cidade.

4. A história sagrada nos ensina, na verdade, que certas cidades


haviam sido condenadaspor Deus à destruição (Josué VI) e que mes-
mo, contrariamente à lei geral, a ordem havia sido dada de cortar as
árvores dos moabitas(ZTXevh,111,19). Na realidade isso não foi feito por
ódio ao inimigo, mas por uma justa execução dos crimes que eram
publicamente conhecidos ou taxados a tais castigos pelo julgamento de
Deus.

111.Se há grande esperançade uma rápida vitória

1. Em segundo lugar, o que dissemos ocorrerá, mesmo numa


posse incerta do território, se houver grande esperança de uma rápida
vitória, cujo preço serão as terras e seus frutos. Assim é que Alexandre
o Grande, segundo o relato de Justino [24], proibiu seus soldados de
devastar a Agia, dizendo que "era preciso poupar seus próprios bens e
não destruir as coisas de que haviam vindo tomar posse" [25] . Assim é
que Quintius, quando Filipe corria pela Tessália com tropas que devas-
tavam tudo, exortou seussoldados,comofala P]utarco [26], a seguir a

1231gloades, 285 ss
[24] Livro XI, 6,1

'"'
[26] .Fiam l/'us, 371 D
.
1275
CAPITULO Xil - CONSIDERAÇÕES SOBRE A DEVASTAÇÃO E OUTRAS COISAS SIMILARES

rota, comose estivessem atravessando uma região conquistada e torna-


dajá suapropriedade. Cresci,ao aconselharCito a não entregar a seus
soldados a Lídia para devasta-la, dizia [27] : "Não é uma cidade minha,
não serão meus bens que tu arruinarás, pois nada de tudo isso me
pertencemais. Sãoteus próprios bens. Sãoteus bens que eles vão des-
fruir
r

2.As palavras seguintes de Jocasta a Polínice, em .4s Zebanas de


Sêneca[28], vêm a propósito aplicadas aos que agem de outro modo:
"Perdeis vossa pátria buscando recupera-la. Para que se torne vossa,
quereis que não exista mais. Ao contrário, o próprio fato de devastar o
solocom vossas funestas armas, de arrasar as messesmaduras, de
semear a fuga em todas as campanhas, prejudica vossa própria causa.
Ninguém devasta assim seusbens. O que entregais ao fogo,o que partis
com a espada, credes que seja o bem de outrem." Nesse mesmo sentido
é que Quinto Cúrcio [29] fala assim: "Confirmavam com isso que tudo
aquilo que não haviam destruído era dos inimigos." Não se afastam
muito dissoos argumentos de Cícero [30] em suas cartas a Atico contra
o projeto de Pompeu de destruir sua pátria pela fome. Por causa disso
tambémé que Alexandre leio censura Filipe, fato descrito no livro de
políbio [31] que Tito Lívio [32] assim traduz em palavras latinas: "Na
guerra, Filipe não combatia em campo aberto. Não marchava com as
insígnias desfraldadas contra o inimigo. Toda a sua arte consistia em
fugir, em queimar as cidades, entrega-las ao saque e, quando era venci-
do, em fazer perder ao vencedor o fruto de sua vitória. Não era assim
queagiam os antigos reis da Macedânia. Acostumados a empreender

[27] Heródoto, 1, 88
[28] PUDE/2issae,
196 ss
[29] Livro IV. 14,2.
[30] EpJkÉu/ae ad,á]éjculn, ]X 7,4
[31] Livv'o XV]1, .3.
XXX]] 33,11-13
[32] .4b U/be aonde'Éa,
1276
H UGO GROTI US

batalhas regulares, poupavam sempre que possível as cidades, a íim de


ter Estados mais prósperos. Qual era o objetivo de Filipe, ao destruir as
possespor causa das quais se combatia, privilegiando somente a guerra
por si mesma?"

IV Se o inimigo tem outra fonte de que se sustentar

1. Em terceiro lugar, a mesma coisa será feita seo inimigo pode


ter outra parte para se sustentar, por exemplo, se o mar de outros ter'
ritórios Ihe sãoabertos.Em Tucídides[33], Archidamus, no discurso
pelo qual demove seus lacedemânios da guerra contra os atenienses
pergunta quais esperanças eles têm para fazer a guerra. Se, por acaso,
porque têm grande número de soldados, esperam que a campanha da
Anca poderia ser facilmente devastada por eles.Diz: "Eles têm também
outros territórios sob sua dominação (querendo falar da b'ácia e da
Jónia) e podem providenciar pelo transporte marítimo o de que necessi-
tam." O que há de melhor a fazer, em tal situação, é que a agricultura
fique em segurança, mesmo junto aos confins contíguos e vimos com
certeza isso praticado muito tempo na guerra belgo-germânica, sob a
condição de um tributo que devia ser pago de parte a parte.

2. Isso é também conforme o antigo costume dos povos das Ín-


dias,junto aosquais, comofala Diodoroda Sicí]ia [34], "os trabalhado-
res são invioláveis e como sagrados;mais ainda, junto aos acampamen'
tos e aos exércitos, se dirigem a seu trabalho ao abrigo do perigo". E
acrescenta: "Nem queimam os campos dos inimigos, nem cortam as
árvores." E depois: "Nenhum inimigo causa dano a um trabalhador;
essetipo de homens, sendo benfeitores de todos, é posto a coberto de
todasas agressões."

[33] Livro 1, 80-81


134] Livro 11, 36.
1277
CAPÍTULO Xll - CONSIDERAÇÕES SOBRE A DEVASTAÇÃO E OUTRAS COISAS SIMILARES

3. Xenofonte [35] diz que havia sido concordadotambém entre


Cito eo rei da Assíria que "haveria paz comos trabalhadores, guerra
com aqueles que empunhavam armas". Assim é que Timóteo [36] dava
para cultivo a parte do território que era mais fértj], como Po]ieno [37]
o relata. Mais ainda, acrescentaAristóte]es [38], vendia os frutos aos
inimigos e com esse dinheiro pagava o soldo dos soldados, o que foi feito
também por Vh'iato, na Espanha, segundo o testemunho deApiano [39]
Vimos que isso mesmo foi praticado com bons resultados, para espanto
dosestrangeiros, na guerra belgo-germânica de que falamos.
4. Os cânones [40] que ensinam a humanidade propõem essa
maneira de agir a ser imitada dos cristãos como devendo e professando
uma humanidade superior àquela do resto dos homens. Por isso que-
rem que não somente os trabalhadores, mas ainda os animais com a
ajuda dos quais trabalham e as sementes que levam pelos campos se'
jam postos ao abrigo do perigo da guerra. Sem dúvida, é por uma razão
semelhante que as leis civis [41] proíbem tomar como penhor as coisas
quegemempara o trabalho agrícola. Outrora, entre os frígios [42],
como entre os habitantes de Chipre, depois entre os atenienses [43] e os
romanos[44], era crime matar um boi de oração.

[35] Crropaedib, V. 4,24.

âZ';=J;;r a f:Irra .ãno o ÉazlãzoÃaÓjfua/menu em se«lança, soó a única


condição de /Ze pagar os fr7bufos. " Casais)dro(Xl1, 5) diz que 'b ma or e/og70
para aqueles que defendem o Estado.pelas armas é que, enquanto se empe=
nham em proteger seu país, os agricultores não cessamde cultivar o$ campos
[37] Livro 111,10, 5 e 9
1381 ECOnOmJb, ll

[39] ]iÜsPan., 64.


1401 C.2, De reugaalface (Z)ecreóa/es, ], 34)
[41] .L Z Erecuóo]«e8 aod, é?uae res pün
1421Nicol. Damascenus, 19.
[43]Aelianus. V. 14; Dion Crisóstomo, arado ZX7y

li:gH%H$::)Baile
El:,=qHq18
:%
.4ósÉn7en fia.'11. 28i. Vegécio(Z)e .4rfe Unfer2narla, 111, proleg. 6)
!278
H UGO GKOíiUS

V. Se a própria coisa não é de nenhum


uso para entretera guerra

Ocorre, en] quarto lugar, que certas coisassão de tal natureza


que não são de utilidade alguma para fazer a guerra ou para prolon-
ga-la. A razão quer que se poupe também essas coisas, no período da
guerra. A isso se refere o discurso dos habitantes de Rodei a Demétrio
[45] , o conquistador de cidades, sobre o quadro pintado de lalysus, dis-
curso expresso assim em latim porAu]us Ge]]ius [46] : "Que motivo te
leva a sepultar este quadro sob ruínas fumegantesP Se triunfas Sobre
nós, toda a cidade te pertence a com ela o quadro intacto, mas se teus
esforçossão inúteis, toma cuidado para que não digamos, para tua ver,
gonha, que não tendo podido vencer os de Rodes,Hlzestea guerra contra
o falecido Protogênio." Po]íbio [47] diz que é próprio de um espírito vio-
lento destruir coisas que, destruídas, não tiram do inimigo suas forças
e não trazem vantagem alguma ao destruidor, como templos, pórticos,
estátuas e outras coisas semelhantes. Marmelo, elogiado por causa disso
por Cícero [48], poupou todos os edifícios de Siracusa, públicos e priva-
dos, sagrados e profanos, "como se tivesse chegado para defendê-los com
seu exército, não para conquista-]os". O mesmo [49] diz a seguir: "Nos-
sos antepassados deixavam as coisas que pareciam agradáveis aos ven-
cidos e que nospareciam de pouca importância."

[45] Ver a respeito, Plínio (A/alara/lkHJsfor7a,Vl1, 38, XXXV. 10) e Plutarco


(Z)en7eÉr7us,
898 E). O mesmopensamentose encontra na carta de Belisário.
transcrita por nós há pouco
[46] Moelas .4fZ cae, XV. 31
[47] Livro VI ll
[48] /n Marram.4cf/b, 11,54, 120
[49] Idem, IV. 60, 134
1279
CAPÍTULO Xll - CONSIDERAÇÕES SOBREA DEVASTAÇÃOE OUTRAS COISAS SIMILARES

yl. Que isso ocorre particularmente


com relação a coisas sagradas
ou que dependem das coisas sagradas
1. Do mesmo modo que isso deve ser observado a respeito de to-
das as coisasde embelezamento, pela razão que acabamosde dizer,
assim também se deve ainda por uma razão particular, a respeito das
coisasque foram consagradas a usos sagrados. Ainda que essascoisas,
como dissemos em outra passagem (livro 111,cap. V. $ 11), sejam públi-
cas à maneira delas e que conseqüentemente possam ser impunemente
violadas segundooJusgenílu/n, contudo,senão representam nenhum
perigo, o respeito das coisas divinas aconse]ha [50] que tais ediHicios e

[50]

depositadosos ossosde Ezequiel e dos três companheiros de Daniel


1280
Huoo GROTIUS

suas dependências sejam conservados, sobretudo entre aqueles que ser-


vem o mesmo Deus em virtude da mesma lei, mesmo se, por acaso
estão em dissidência sobre certas questões ou ritos]51] .

2. Tucídides [52] diz que havia, entre os gregos de seu tempo:


uma lei que ordenava que "aqueles que faziam irrupção no território
inimigo se abstivessem de tocar nos lugares sagrados." Tito Lívio [53]
diz que, quandoAlba foi destruída pelosromanos, os templos dos deuses
foram poupados. Si]ius [54] fala assim dos romanos na tomada de Cápua:
"Eis que um respeito repentino percorreu o peito deles, sem que comu-
mcassem seu sentimento. Apazigua um sopro divino suas almas rústi-
cas e lhes proíbe de levar a chama e as tochas para reduzir a cinzas os
templos sob um só braseiro." Tito Lívio [55] re]ata que se havia dito
contra Q. Fulvius, o Censor, que "ele cometia, servindo-se dos escom-
bros dos templos, um sacrilégio do qual o povo romano se tornava res-
ponsável. Como se, em todos os lugares, os deuses imortais não,fossem
os mesmos e que se pudesse transferir os despojos de uns para o culto de
outros". Márcio Fi]ipe [56] , ao chegar a Dium, ordenou levantar o acam-
pamento sobo próprio templo, a fim de prevenir qualquer profanação
desse [ugar sagrado. Estrabão [57] conta que os tectosages que, com
outros, haviam pilhado os tesouros de Delfos, tinham, ao voltarem para
casa,consagradoessedinheiro, acrescentandoalguma coisa a mais para
aplacara divindade.

151] Silvestr., Z)e -Be//o, parte 3, n K

[52] Livro IV. 97.


[53].4ó Z:4.óe
aondlfa,1,29,6
[54] Pumba, X]11, 316 ss.

1551,4ó ZZrbe a0/2d7'fa, XLl1, 3, 9

[56] .4ó Urbe G0 7d2'fa, XLIV 7, 2

[57] Livro IV 1, 13
1281
CAPÍTULO Xll - CONSIDERAÇÕES SOBRE A DEVASTAÇÃOE OUTRAS COISAS SIMILARES

3. Falando dos cristãos, Agatias [58] lembra que os francos ha-


viam poupado os templos, como sendo da mesma religião que os gregos.
Mais ainda, havia o costume de poupar mesmo os homens, por causa
dostemplos. E o que Agostinho [59] e]ogia, nesses termos, nos godos,
conquistadores [60] de Romã (para não citar exemplos das nações profa-
nas, que são numerosos, pois os escritores [61] chamam essecostume
"um direito comumente estabelecido pelos gregos"): "Os locais santos
dosmártires [62] e as basílicas dos apóstolosdão testemunho, elas que
receberam,nesta devastação,os vencidos que nelas se refugiavam, vin-
dosdasfileiras dosfiéis e de outros lugares. Em qualquer outra parte o
inimigo sujo de sangue seviciava; lá, o furor da carnificina recebia hmi-
tesl era lá que os inimigos compadecidos conduziam aqueles que eles
haviam poupado, mesmo fora desseslocais (pre6uo "que e]es" [63], pois
distingue aqueles que eram moderados daqueles que eram mais impla-
cáveis),com receio de que caíssem nas mãos daqueles que não teriam
tido para com eles a mesma misericórdia. Por isso, de todo cruéis e de
todo dispostos a seviciar à maneira de inimigos que eles fossem em
outro lugar, mal chegavam a esseslugares sagrados [64] , onde se havia

[581 Livro ll, l


[59] Z)o CI'w'faço Z)el] l, l
1601Sob o ariano Alarico, cuja memorável ação seguinte é narrada em Cassiodoro
(Xl1. 20): "0 re!.Uanc-o, vendo chegar os vasos sagrados da ]greyb de São .f'Paro
que os soldadosIhe apresentavam, ordenou, logo que soube do que se tratava,
Idos perguntar, que fossem levados de volta até o local sagrado por aqueles que
os hajam tomado. a íim de expiar, por essa manifestação de respeito profundo,
a falta que a ambição e a paixão do saque haviam ]e\-ado a cometer.
[61] Diodoro, X]X, 73
[62] lsidoro copiou esta passagem, (;Zr0/72c.GofrÀJC.,pelo ano 447.
[63] Orósio,que re]ata a mesma história (Vl1, 28), mostra que deve ser exatamente
assim que se deve ler
[641 0s godos que situavam Romã sob Vitiges pouparam essas mesmas basílicas dos
ostolos' segundo o testemunho de Procópio (GoffÃlc., 11, 4). Os próprios
bárbaros. não cristãos, encontraram também um asilo em tais lugares. Ver
Zósimo (IV. 40), a respeito dos tomitanos. Acrescente-se uma lei dos helvécios,
transcrita por Simler. Ver Nicetas, em Fadade .'Uex/s,É77áo de 7üa/ ue/(5), e em
De .4ndro/nco(1, 8), no local em que censura os sicilianos por terem profanado
as igrejas dos habitantes de Antioquia
1282
H UGO GKOtiUS

proibido o que o direito da guerra permitia em outro lugar, que toda a


sua raiva e a paixão de que estão possuídospara fazer prisioneiros, se
dissipava e se acalmava.:

VII. De igual modo, com relação a coisas religiosas

1. 0 que disse das coisas sagradas deve se entender do mesmo


modo das coisas religiosas, mesmo daquelas que foram construídas em
honra dos mortos. Ainda que o direito das gentes conceda a impunidade
à cólera que se exerce sobre essascoisas, elas não podem ser profanadas
sem violar a humanidade. Os jurisconsu]tos [65] dizem que o que é do
intresse da religião deve ser de grande consideração.Há um pensamen-
to piedoso de Eurípides, em .4s 71}u/boas[66], tanto pe]as coisas religio-
sas como pelas coisas sagradas: "Todo homem que devasta as cidades,
as casas consagradas aos deuses manes e os templos não é dotado de
nenhuma prudência, pois o flagelo de uma ruína semelhante o espera a
ele mesmo." Apo]ânio de Tiana [67] interpreta assim a fábula do céu
sitiado pelos gigantes [68] : "Haviam forçado os templos e as casas dos
deuses." Segundo Statius [69] , Aníba] é sacrí]ego "por ter confundido os
altares dos deuses com sua tocha

2. Cipião, depois da tomada de Cartago, dá presentes a seus sol-


dados, "excetuando aqueles que se haviam tornado culpados contra o
temp[o de Apo[o", diz Apiano [70]. César, como re]ata Dion [71], não

L6bÀL. 43, Sunt personae, Dig. De religiosas.


[661 .4s 7}o?boas, 95 ss
[67] Filostrato, Hfa Hpo/70/7/}&anae/l V. 16.
[68] Como Diodoro da Sicília explica outro referente à Epopéia
169] Sl7une, IV. 6,82
[70] Puna'aa,133
[71] Livro XLl1, 48
!283
CAPÍTULO Xll - CONSIDERAÇÕES SOBRE A DEVASTAÇÃOE OUTRAS COISAS SIMI'LARES

ousouabater um troféu erigido por Mlitridates, "sendoconsagradoaos


deusesda guerra". Marco Marcelo, impedido pelo escrúpulo, não tocou
nas coisas que a vitória havia tornado profanas, diz Cícero em sua quarta
Verrina [72]. No mesmo local, acrescentaque há inimigos que respei'
tam na guerra os locais da religião e dos costumes. O mesmo disse em
outro local [73] que a guerra de Brennus feita contra o templo deApoio
havia sido ímpia. Tito Lívio [74] chama abominável e cheia de insolên-
cia para com os deuses, a ação de Pirro que havia pilhado os tesouros de
Proserpina.Diodoro [75] c]assiHicacomo impiedade e sacrilégio um fato
similar de Himilcon. O próprio Tito Lívio [76] chama de sacrilégio a
guerra de Filipe, pois teria sido feita contra os deuses superiores e infer-
nais. Diz também que é um furor e uma seqüência de crimes. Florus
[77] diz do mesmo: "Filipe, ultrapassando o direito da vitória, deu asas
a seu furor contra os templos, os altares, os túmu]os" [78] . Po]íbio [79],
falando dessefato, acrescenta esta apreciação: "Destruir coisas que não
podemnos servir para a guerra e cuja destruição não há de causar
nenhum dano aos inimigos, sobretudo os templos, as estátuas e outros
ornamentos semelhantes que neles se encontrarem, quem pode negar
queissonão seja a demonstração de um caráter violento, de um espírito
transtornado pela raiva?" Na mesma passagem, ele não admite a des-
culpa dotalião.

[72] in Uer7'em.4c'f70,IV. 55,122


[73]De Z)lvlnaÉlone,
1, 37,81
[74] .4ó Z:/}.úeCona)fa, XXIX, 18,4
[75] Limo XIV. 64.
[76] ,4b Z:/róeOoldlfa, XXX], 26,11, 30,4, 31,3.
177] Livro 11, 7.
[781 Um fato seme]hante de Prusias é severamente condenado por Políbio, cujas
palavras foram conservadaspor cuidas, no verbete Prusias, e nos Xkcerpfa
Perescialla ÇExcerpta de Virtutibus et Vitais, \à
179]Livro V. ll
1284
H U GO GROTI US

VIII. Mostram-se as vantagens


que deconem de tal moderação

1. De resto, embora não seja propriamente nosso intento buscar


o que é vantajoso fazer, mas levar a permissão sem coaçãoda guerra ao
que é naturalmente lícito ou ao que é melhor entre as coisas lícitas
contudo, a própria virtude, aviltada em nossostempos, deve me per-
doar, se, vendo-a ela própria desprezada, relevo seu mérito apresentan-
do os frutos que ela produz. Em primeiro lugar, pois, essa moderação
aplicada à conservaçãodas coisasque não servem para prolongar a
guerra tira do inimigo uma arma poderosa,o desespero.Em Tucídides
[80], se diz deArchidanaus: "Não julgueis que as terras do inimigo não
sejam outra coisa que um território de ocupação,tanto mais seguro
quanto melhor pode ser cultivado. Deve-se,pois, administrar esseterri-
tório com toda a prudência, temendo que o desespero torne mais difícil
de vencer os inimigos." Foi por um conselhosemelhante que Agesilau
181]deixou aoshabitantes da Acárnia, contrariamente ao que deseja
vam os habitantes daAcaia, toda a liberdade de semear,dizendo-lhes
que quanto mais semeassem,com mais facilidade alcançariam a paz
[82] . Arespeito disso fa]a a sátira [83] : "Aos que forem despojados, lhes
restam as armas." Tito Lívio [84], ao contar a tomada de Romã pelos
gauleses, diz: "Agradava aos chefes gauleses a opinião de que todos os
edifícios não deviam ser queimados, a fim de que o que restasse da
cidadefosseum penhor que poderia servir para dobrar os inimigos."

[80] Livro 1, 81

[8t] Plutarco menciona também o fato em ,ages/7at/(608 B)


[82] Xenofonte, J7lsfor. alaec., IV, 6,13
[83] Juvenal, SaÉFae,Vl11, 124
[84] .4b Z:4.óea0/2d)fa, V. 42,1-2.
1285
CAPÍTULO Xll - CONSIDERAÇÕES SOBRE A DEVASTAÇÃO E OUTRAS COISAS SIMILARES

2. Acrescente-se a isso que, no período de duração da guerra, essa

conduta é uma presunção de uma grande confiança que se tem de levar


a vitória e que a clemência é própria para acalmar e conciliar os espíri'
tos.Aníbal, em Tiro Lívio [85] , não comete nenhum estrago no territó-
rio degaranto. O historiador diz: "Era fácil ver que era menos um efeito
da moderação dos soldados e do general que o desejo de ganhar os espí-
ritos tarantinos." Por uma razão semelhante, o imperador Augusto se
abstinha de pilhar os panonianos. Dion [86] dá como motivo disso que
"eleesperavaatrai-los a si dessa maneira, semrecorrer à força". Polieno
[87] diz que entre outras vantagens, Timóteo ganhava, pela moderação
que relatamos antes, "uma grande benevolência por parte dos próprios
inimigos". Depois de ter relembrado Quintius [88] e os romanos que
estavam com ele o que dissemos anteriormente, Plutarco [89] acrescen-
ta: "Recolheram logo após o ü'uto dessa moderação. Apenas haviam en-
trado na Tessália, viram todas as cidades se entregando a eles. Os gre-
gossituados aquém das Termópilas temiam vendo Quintius chegando.
Oshabitantes deAcaia, renunciando à aliança de Filipe, se uniram aos
romanospara Ihe mover guerra." Frontino [90] re]ata sobre a cidade de
Lingons que havia escapadoà pilhagem que temia, na guerra feita sob
o comandode Cerealis e os auspícios de Domiciano contra o batavo
Civilis e seusaliados que, "tendo sido respeitada contra sua tentativa,
não havia perdido nada de seus bens e que, reconduzida à obediência,
Ihe entregou setenta mil homens armados'

1851
.4ó z:/]óe ao/]dlfa,xxlv. 20,10
[86] Livro XLIX, 37

[87] Livro lll, ]0,5


[88] Isto é, Tu]]ius Quintius Flaminius
[89] .F7a/nÚzjus,371 D.
[90]SüaÉegeJlla(a,
]V, 3,14
1286 H U GO Gx OTlus

3. Conselhoscontrários, resultados contrários também. Tito Lívio


[91] dá um exemp]o disso na pessoa de Aníba]: "Avaro e crue] ao mesmo
tempo, tomou a decisãode pilhar os lugares que podia defender, a fim de
não deixar ao inimigo senãoruínas, medida cujo princípio era odiosoe a
resultado não foi menos funesto. De fato, essestratamentos indignos
Ihe alienaram tanto aqueles que eram as vítimas, quanto aqueles, em
maior número, que tal exemplo ameaçava."

4. Tenho por verdadeiro o que foi observado por alguns teólogos


[92], que é do dever dos poderes superiores e dos chefes que querem
passar por cristãos diante de Deus e diante dos homens, prevenir essas
violentas pilhagens de cidades e todo excesso similar, que não podem
terminar sem causar males muito cruéis a grande número de inocen-
tes, além de trazerem muito pouco proveito para o objetivo principal da
guerra, de modo que a bondade cristã, quase sempre e a justiça tam-
bém, na maioria dasvezes,o rechaçamcom horror. O vínculo doscris-
tãos entre si, seguramenteé mais forte que não o foi outrora o dos
gregos, os quais, em suas guerras, por um decreto dos anfictiões, ti-
nham a proibição de destruir qualquer cidade grega. Os antigos rela-
tam que nenhum ato de sua vida causou a A]exandre o Grande [93]
maior arrependimento do que o de ter destruídoTubas.

[91] .4b Z:/róeao/]dl'éa, XXV], 38,3-4


[921Aegid. Regius, .De.4cí]óus Sizper]?.,Z)]bpuf. 3], dúvida 7, n. 127
1931P[utarco, .4]exa/zder, 671 B.
Xlll

CONSiOi!!!AÇQE$
SOBRE ASCOISAS
APREENDIDAS

Sumário

1. 0s bens dos súditos dos inimigos apreendidos na guerra são


retidos na medida do que é devido.

11.Não em punição do crime de outrem.

111.Deve-se entender aquipor dívida, mesmo aquela que surge


naguerra
}.:,". . .;fárin não usar acíui o direito caIU todo o
IV. E quem a
rigor.
1289
CAPiiUtO xlil - CONSIDERAÇÕES SOBRE AS COISAS APREENDIDAS

l Os bens dos súditos dos inimigos


apreendidos na guerra sao reuaos
na medida do que é devido

1.A apreensãodosbenspertencentesaoinimigo, nuncaguerra


justa, não deve ser considerada como isenta de pecado ou dispensada da
obrigação de restituir. De fato, se for considerado o que se faz com retl-
dão [1] , não é permitido tomar ou possuir além do que o inimigo pode
dever, a não ser que, mesmo fora da dívida, os bens podem ser retidos
quando é necessário para a segurança [2] . Devem, no entanto, ser res'
tituídos quandoo perigo cessar,ospróprios ou seuvalor corresponden-
te, segundo o que dissemos no limo 11,capítulo 11.0 que fosse permitido
comrelação aosbens dos neutros, bem mais o seria em relação aosbens
dosinimigos. E, pois, uma espéciede direito tomar, sem direito de se
apossar.
2. Como alguma coisa pode nos ser devida por causa de uma
lesão ou em virtude de uma punição [3], a coisa do inimigo pode ser
tomada em virtude de uma e outra dessas causas [4], mas com uma
diferença, contudo. Dissemos antes (livro 111,cap. 11,$ 11)que, em vir-
tude dessa primeira espécie de dívida, não somente os bens do devedor,
mas ainda aqueles dos súditos são obrigados, segundo o estabelecido
pelo direito das gentes, como por uma fidejussória. Esse direito das
gentes achamos que seja de outra natureza que aquele que consiste na
sóimpunidade ou no efeito externo dosjulgamentos. Do mesmomodo
que aquele com quem se tratou adquire por nossoconsentimento parti'

[1] Ver em Bembus, ]ivro l (fo1. 12), o que julgou o pontífice romano Inocência.
[2] Vitoria, .De Juro BeJ7J, n. 55, 56
[3] Os romanos ordenaram a Piusias de ressarcir a Abala e de Ihe pagar, a mais,
uma multa como punição
[4] Cajetan. , /n Suam. Peccaf., verbo Z?e//Jda/n/]uml Covari'uvias, 4d cap, /)eccafu/n,
pat'te11,n. 11;Vital'ia, Z)eJure Be/71,n. 39 e 41; Mo]ina, H'acf. ]l Z)]sP./ 7Z
1290
H UGO GROTIUS

Guiar um direito não somente externo, mas interno sobre o que nog
pertence, assim também adquire por efeito do consensogeral que con-
tém em si, por uma espéciede virtude, o consentimento de cada um dos
privados, no mesmo sentido que uma lei é chamada uma convenção
comum do Estado. E é tanto mais crível que, nesse tipo de negócio. a1l
nações tenham assim âlcado de acordo porque essa lei das nações não foi
somente introduzida para evitar um mal maior, mas também para dar
lugar a cada um recuperar seu direito.

11.Náo em punição do crime de outrem

O que diz respeito a outro tipo de dívida, aquela que é penal, não
vejo como tal direito sobre os bens dos súditos tenha saído do consenso
das nações. Tal obrigação envolvendo o bem de outrem é, de fato, Odiosa.
e por conseguinte não deve ser estendida além do que se tem pretendido
de modo manifesto. A utilidade não é a mesma nessa última espéciede
dívida que na primeira, pois a primeira faz parte de nossosbens.a
segunda não faz parte e em decorrência a persecução pode ser abando-
nada sem prejuízo. O que dissemos antes (livro 111,cap. 11,$ 111)do
direito ático não é um obstáculo.As pessoasnele são obrigadas não
propriamente em razão do que o Estado poderia ser punido, mas somen-
te para forçar o Estado a fazer o que deveria fazer, isto é, a dar um
julgamento contra o culpado. Essa obrigação, fundada num dever. se
refere à primeira espéciede dívida e não à última. Uma coisa, de fato, é
dever punir, outra coisa dever ou poder ser punido, embora um seja
geralmente a seqüência da recusa do outro, mas de tal modo que um é
a causa distinta e o outro é o efeito. Os bens dos inimigos, portanto, não
poderão ser tomados a título de punição, mas somente os bens daqueles
que se tornaram eles próprios culpados de um crime, no número dos
quais se incluem também os magistrados que não punem os crimes
cometidos.
1291
CAPÍTULO Xlll - CONSIDERAÇÕES SOBRE AS COISAS APREENDIDAS

HI. Deve-se entender aqui por dívida,


mesmoaquela que surge na guerra
De resto, os bens dos súditos podem ser tomados e adquiridos,

vencidossepode também exigir legitimamente por uma guerra.

lv. É questão humanitária não usar


aqui o direito com todo o rigor
1. Deve-se saber, como fizemos menção em outro local (livro lll,
cap.1, $ 1V,2),que as regras da caridade se estendem mais além que as
do direito. Aquele que tem abundância de riquezas será culpado de du-

[SISilvestr.,J]2verbof?e]7um,n, .7a Vitoria, n. 5]; Bart., h Z. 2& S] gaja be/7o,Duk.,


De capa.
[61 ,áb Z:/róe ao/]dlfa, XXVl1, 35,8
[7]

[8] Livro XXXl11, 1,5


l91Livro 1,117
1292
H U GO GROllUS

reza de coração, se despoja seu devedor pobre de todos os seus parcos


recursos, retil-ando-lhe até a última moeda.Ainda mais se o devedorse
obrigou por bondade, se, por exemplo, tomou o aval de um amigo e se
nada desse dinheiro deu lucro. "0 perigo daquele que respondeu por
outro é digno de compaixão" [lO], diz Quinti]iano, pai]]]]. Um credor
tão duro, contudo, nada faz de contrário ao direito estritamente dito.

2. E porque a bondade o exige [12] que se deixa, aos que não são
culpados pela guerra e que não sãotidos como obrigados soboutro título
que não seja o de caução, as coisas que podemos passar facilmente sem
elas, sobretudo se houver uma aparência suHlciente que não recupera-
rão da parte de seuEstado o que tiverem perdido dessamaneira.Aqui
se ap]ica o que Côro [13] diz aos soldados, depois da tomada de Babilânia:
;0 que detiverdes, não o possuireis certamente de modo injusto, mas se
não tirardes nada dos inimigos, isso será efeito de vossabondade.:

3. Cumpre observar ainda que essedireito sobre os bens dos súdi-


tos inocentes]14], tendo sido introduzido como um recurso, tanto que
há esperança de poder facilmente obter o que é nosso dos devedores
originais ou daquelesque, não nos fazendojustiça, seconstituem eles

UJ-üie acrescenta que o credor não pode honestamente acionar o avalista, a não
ser quando não há mais meio de cobrar o que Ihe é devido do próprio devedor
Tem razão em dizer que isso não se pode honestamente, pois parece que havia
alguma espécie de vergonha em tomar um avalista, como o diz Cícero a Atico
em suas cartas (Epjk u/Headdfílcu«:, XVI, 5)
lll] .Dec/an?aílones, 273

[12] Ptolomeu devolveu a Demétrio, filho de Antígono, sua tenda e todos os outros
objetos que serviam para os cuidados com seu corpo, com o dinheiro que Ihe
havia talhado, dizendo que combatiam entre eles pela glória e pelo império, e
não por todo tipo de coisas.Assim o conta Plutarco (Z)eineZrlus.891 A). Ver
também o que fez gancho, rei dos bascos,em Mariana, livro XI, cap. 16.
[13] Xenofonte, Çmopaedja,Vl1, 5,73
[14] Aegld. Regius, Z)e,4cZ/óusSuper/ af iralibus,
a disp. 31, dub 2'. /l 11?
1293
CAPÍTULO Xlll - CONSIDERAÇÕES SOBRE AS COISAS APREENDIDAS

próprios nossos devedores, dirigir-se aos que sãoisentos de í'alta, mes-


mo quando está concordado que não está em oposição ao direito estrito,
é contudo sair da regra de bondade.

4. Exemplos dessa bondade se encontram em toda parte, sobretu-


dona história romana. Quando os inimigos eram vencidos, as terras
eram concedidas sob a condição que retomassem ao Estado [15] , isto é,
aoEstado vencido ou quando, por deferência, se deixava uma pequena
porçãodelas]16] ao antigo possuidor]17] . Assim é que Tito LívioE18]
relata que os veios foram despojados por Râmulo de uma parte de seu
território. Assim é que Alexandre da Macedânia deu aos habitantes de
Uxia, sobum tributo, as terras que eram de]es [19] . Assim é que se
podemuitas vezes ler que cidades que se haviam rendido não foram
saqueadas.Dissemos antes (livro 111,cap. XI e cap. Xll, $ IV) que é
louvável e conforme ao piedoso preceito dos cânones poupar não somen-
te as pessoas, mas também os bens daqueles que cultivam a terra, sob
a condição, ao menos, de uma contribuição. Sob semelhante tributo é
queordinariamente seconcedetambém às mercadorias a imunidade
daguerra.

t\5À L. !6, in ágeis, Dig., De acq. rer, dom.

ttSIL. 16, in agris, L. 15, Si verberatus, $ Non si agem,Díg., De rei viildic.;N\La la


De Jure Bellí, n. 40, Süvestt., in verbo Bellum, parte 1, $ 10, n. 1, vers. 3
1171Apiano, em Be/7. Clv.(11, 140), diz que 'bs aní]kos rama/]os /7ão flua.ram de seus
inimigos vencidos todas as terras, mas as repartiam entre .eles".h'küs\6r\a Bos
ensina que foi assim que os vândalos se conduziram na Africa e os godos na
ltália
1181
Ab Cil-Ée
ao/?d)fa,1, 15,5
[19] Arriano, Zrped. .4/eÀa/?dr7, 111, 17
Xlv

CONSIDERAÇOES
SOBRE OS PRISIONEIROS

Sumário

1.Até que ponto é permitido pela justiça interna capturar os


homens.

11.0 que é permitido contra o escravo,segundoo direita de


justiça interna.
111. Não épermitido matar um inocente.

rVINem pul3i'Jocomrigor.
V Nem Ihe impor trabalhosmuito duros.
VI. Quando opecúliopertence ao dono e quan doaoescravo

VII. Se éperJaaitido aos escravosfugir.

Vila. Se os filhos dos escoa vos têm compromisso com o patrão e


a té que ponta.

xls o costuzne
IX. O quedeve serie ito onde não existe costulh de escoa
H vazar

os prislon eiras.
1297
CAPÍTULO XIV - CONSIDERAÇÕES SOBRE OS PRISIONEIROS

1.Até que ponto é permitido pela justiça


interna capturar os homens
1. Nos lugares em que a catividade dos homens e a escravidão
estão em uso, deve-se primeiramente, se considerarmos a justiça inter-
na [1], limita-los à maneira dos bens, isto é, de modo que tal aquisição
nãosejalícita senãoaté a concorrênciado montante da dívida original
ou subseqüente, a menos que, por acaso, se encontre nas pessoas um
crime particular que a equidade permite punir pela perda da liberdade.
Deacordocom esseslimites, pois, e não além, aquele que faz uma guer
rajusta tem, sobre os súditos do inimigo feitos prisioneiros, um direito
quetransfere validamente a outros.
2. Seria um dever de equidade e de bondade admitir igualmente
aqui as distinções que foram assinaladas antes(livro 111,cap. XI), quando
setratava de matar os inimigos. Demóstenes,em sua carta para os
61hosde Licurgo12] , elogia Filipe da Macedânia pelo fato de não ter feito
escravostodos aqueles que se encontravam entre os inimigos [3] e diz:
"Não pensava, de fato, que o mesmo tratamento fosse justo e honesto a
respeito de todos, mas examinando a coisa com a circunstância de que
cadaum teria merecido, agia com relação a eles como um juiz.

11.0 que é permitido contra o escravo,


segundo o direito de justiça interno
1.Antes de tudo, deve-seobservar aqui que o direito que decorre
comode uma espécie de íidejussória em nome do Estado não se estende
de modo algum como o direito que se origina de um delito contra aque

11] Vitoria, Z)e Jure ,Be,CÜ.n. 4.Z; Dec., /]vro ZZ cap. i% duó.4 Covarruvias, ]h c'ap.
Peccatum, p. 11, $ 11* Md\\na., Disp. 120 e !2}, Valer\ia, dísp. 3, quaest. 16.
iZXEpístola 111, De Lycurgl liberis, 3.
l31Alexandre, seu filho, depois da tomada de Tubas, excluiu do número dos prisio-
neiros que deviam ser escravos os sacerdotes e aqueles que não haviam dado
seu consentimento às decisões públicas tomadas contra ele. Plutarco o relata
quando descreve a vida dele (670 E).
1298 H UGO GROTA US

les que se tornam escravos da pena. Por isso um certo Spartanus [4]
dizia que era prisioneiro, não escravo[5]. Se observarmos bem, esse
direito geral sobre os prisioneiros, em virtude de uma guerra justa, é
igual ao direito que têm os patrões sobre aqueles que, coagidospela
pobreza, se venderam para ser escravos,exceto que a infelicidade des-
ses é mesmo mais digna de compaixão, por chegarem nessa situação,
não por suas ações,mas pela culpa dos governantes. lsócrates [6] o
atesta: "Tornar-se escravo pelo direito da guerra é a mais cruel das
coisas.'

2. Essa escravidão é pois uma obrigação perpétua de serviços em


troca de alimento igualmente perpétuo. A definição de Crisipo se aplica
perfeitamente a esse tipo de escravos: "0 escravo é um perpétuo merce-
nário" [7]. A ]ei hebraica compara formalmente a um mercenário
(-Deufe?'onÓm.zo,
XV. 18; Zel'íZ7co, XXV. 40 e 58) aquele que, premido
pela miséria, se vendeu e ela quer que, em seu resgate, seus serviços
tenham algum proveito para ele próprio, da mesma maneira que os
frutos percebidosde um campovendidoficariam em proveito do antigo
dono(-Z)euferonÓmJbXVl11, 50).

3. Há pois uma grande diferença entre o que se faz impunemente


contra um escravo, em virtude do direito das gentes e o que a razão
natural permite que se faça. Citamos antes este pensamento tirado de
Sêneca [8] : "Tudo é permitido contra o escravo, mas há coisas contra o

[4] Plutarco, .4popàÉüepm.Zac., 40; 234 C


ISI Fílon, em é?uod o/nn :s propus /]óer (6), diz: '7)aJS pagaram mu fas vezes un7
resgate por seus filhos e cs filhos por seus pais, levados pelos revoltosos ou
feitos prisioneiros, segundo Q costume da guerra.]: apesar das !eis da natureza,
mais poderosas que aquelas que são feitas no mundo, declaram estas pes-boas
/lutes." De fato, como melena o dizia em Teodecto(Aristóteles, /bi7hca, 1, 6)
Ousar-se-ía chamar de escrava uma mulher saída do sangue dos deusespor
seu pai e por sua mãe?"
[6] Ou-aüo .F?/afaJb.,9
[7] Sêneca,Z)e.Be/2eÉlcl]k,
111,22
[8] .Oe(geme/?fla,1, 18.
1299
CAPÍTULO XIV - CONSIDERAÇÕES SOBRE OS PRISIONEIROS

homemque o direito comum de tudo o que respira proíbe." Os versos


seguintes de Filemon [9] expressam o mesmo objeto: "Meu mestre, qual-
quer um que tenha nascido homem, embora submetido à escravidão,
não cessa contudo de ser homeml" Em outro local, de igual modo, Sêneca
[10] diz: "São escravos, mas são homens; são escravos, mas são compa'
nheiros;são escravos,mas são para nós companheiros de servidão.
pode-seler igualmente em Micróbio [11] uma passagem tendo o mesmo
sentido que a palavra do apóstolo Paulo (GoJossenses, IV. l): "Patrões,
dai a vossos servidores o que a equidade e a justiça pedem de vós, saben-
do que tendes tanto quanto eles um mestre que está no céu." Em outro
local (EH3s/os,
VI, 9), quer que os patrões não usem de ameaçaspara
com seus escravos, pela razão que já dissemos, que eles próprios têm no
céuum patrão que não tem nenhuma consideração por tais diferenças
dequalidade.Pode-seler isso em Consüz'uüones,
geralmenteatribuí-
das a Clemente Romano [12] : "Guardai-vos de comandar com amargor
a um servo ou a uma serva" [13] . C]emente deAlexandria [14] quer que
nos sirvamos dos escravos como outros nós mesmos, porquanto são ho-
menstanto quanto nós, seguindo nisso a palavra do sábio hebreu [1 5] :
"Setens um servo, serve-te dele como de um irmão, pois é igual a ti."

111.
Nãoé permitido matar um inocente
O direito que é dito de vida e de morte sobre o escravo faz com que
o patrão tenha uma jurisdição doméstica, mas que, bem entendido,
deveserexercida com a mesma circunspecção que é exercida a jurisdi-

l91 Estobeu, 62, 28.


[t0] EP/sfu/a XZTZZ
[lll SafurnaJlarzm.Lló/Ú], ]]
[12] Livro Vll, cap. X]V.
[13]Assim é que está escrito numa carta de Barnabé (cap. 19): 'B/ão mandes com
dureza a feu esc'raç,oou â fua será'a que esperam em Crlsfo, a Élm de nâo
demonstrarcaiu isso que tu não Lemeso mestre que é comum a ti e a eles
1141
Paedag,111,12, 91.
[15] Jesus de Sirac, 33, 31
1300
H UGO GROTI US

ção pública. E o que quis dizer Sêneca [161: "Deve-se considerar num
escravo, não o que se pode fazê-lo sofrer impunemente, mas o que auto-
rizam a equidade e a bondade que ordenam também poupar os cativos e
os infelizes compradosa preço de dinheiro." Em outro local [17] diz
ainda: "0 que importa que autoridade nos impele, seela é absoluta?«
Nessa passagem compara o indivíduo ao escravo e diz que tratamentos
iguais sãopermitidos contra eles sobum título diferente, o que é certa-
mente bem verdade com relação a esse direito de tirar a vida e ao que
pode aproximar de]a. O mesmo Sêneca[18] diz: "Nossosancestrais pen-
saram que nossa casa era uma pequena república." E Plínio [191:"A
casa é para os escravosuma espéciede república e como um Estado."
latão, o Censor, segundo re]ato de P]utarco [20], não iní]igia suplício a
um escravo que tivesse parecido ter cometido um crime, senão depois
que tivesse sido condenado no julgamento de seus companheiros de es-
cravidão. A isso se devem comparar as palawas de JÓ XXXI, 13 e
versículos seguintes.

IV Nem pum-lo com rigor

Mlesmono que diz respeito às penas menores, as chibatadas, por


exemplo, contra os escravos,deve-se respeitar a equidade, melhor ain-
da, a clemência. "Tu não o deves oprimir, tu não dominarás sobre ele
imperiosamente" [21], diz a ]ei divina sobre o escravo hebreu, o que

[16] .De(;7emen#2b,
1, 18
[17] .Oe.Be/2e#cJis,
111,18.
[18] ,gpJkfu/a XZUZZ 14.
[i9] 4pzkfu/a rZZZ 16
[20] Caio ./]a</ar,349 A
[21] Ver Moisés de Kotzi(.f)raecepf. ./uóe/7f., 174, 175, 178) e a aomparaç;âo dns ]e])
de JZol)ás com as /eJSromanas, tít. 111.Prisco, no local dos É'.rcerpfa l gafJonum
em que dá preferência aos romanos sobre os bárbaros diz: "Osromanos Émfam
]em melhor seus escravos.Eles se comportam a seu respeito comopais ou
pessoasencarregadasde lhes dar educação,pois é para desvia-los de certas
:ousasqug, segundo seus costumes, parecelldo-!hes ilícitas, quando cometem
alguma fale!, eles os castigam, como se fossem seus próprios filhos. De fato,
não têm o direito de mata-ios, comose faz entre os citas.'Eles têm vários tipos
]e liberdade, pelos quais os donos se mostram benignos para com seus escra-
CAPÍTULO XIV - CONSIDERAÇÕES SOBRE OS PRISIONEIROS

deve ser estendido a todos os escravos, uma vez que a qualidade de


nfÓXZ)no
recebeu agora maior amplidão (.Deuferonóm/o,XV. 17, 45 e
53). Fílon [22] se exprime assim sobre essa passagem: "Os escravos são,
defato, inferiores aos mestres pela fortuna, mas sãoiguais pela nature-
za e o que é conforme não à fortuna, mas à natureza, é a regra Justa
segundo a lei divina. Por isso é que não é preciso que os mestres usem
de seupoder contra os escravoscom orgulho, nem que se dêem ao orgu-
lho, à insolência e à cruel ferocidade. Estas são as marcas de um espíri:
to não pacífico e desregrado(tínhamos editado mal, ao dizer inofensivo)
e torturando por uma espécie de dominação tirânica aqueles que lhes
sãosubmissos." Sêneca [23] diz ainda: "E justo comandar com maior
rigor e dureza o homem que os animais mudos? E ainda, o hábil escu'
deito não doma por golpes redobrados o cavalo que quer domar. Ele o
tornaria arredio e revoltado, se não o fizessesentir uma mão acariciadora
para o acalmar." E logo após]24] : "0 que há de mais irracional? Envergo-
nhar-se de descarregar sua ira em animais de carga ou em cães e ainda
ter a condição do homem como a piora" Disso decorre que, em virtude da
lei hebraica, a liberdade era devida ao escravo, homem ou mulher, não
somentepor um olho vazado [25] , mas mesmo por um dente quebrado,
por agressão, bem-entendido (êxodo, XXI, 26-27) .

vos.1lãosomente com relação à sua vida, mas mesmono momento da morte e


bodadisposição tomada por aqueles que estão prestes a morrer, tem força de
/ei"Acrescente-se a lei dos visigodos (livro VI, tit. 1, cap. 12)
[221De S$pala/]óus Z,eglóus, 11, 25. Cipriano( 4d De/oefr7anum, 8) dize 'lSe e/e nâo
se submete a tuas fantasias, se não obedeceaos caprichos de tua vontade,
mperiosa e por demais clara para Ihe fazer sentir seu estado de escravidão,. tu 11
o açoitam,tu Ihe bates, tu o aíliges pela fome, pela sede, pela nudez, muitas l
vezespelos grilhões e pela prisão- Tu não reconheces,ó infeliz,. que Deus é teu
mestre, quando assim exercemteu domínio sobre um homem!
[23]De C7eneníla,1, 16,4.
1241Idem,1, 17,1 11
[25] Fílon, na passagem citada (Z)e Sy)eczaJJbus ZegT6us, 11, 35), escreve: 'assim ó
que será punido duplamente, porquanto perderá tanto o serviço do escoavo, HI
quanto o dinheiro que havia dado para compra-lo. A isso se acrescenta uma
punição ainda mais penosa que as duas primeiras, pois fica obrigado a fazer o
maior bem a uma pessoa que ele odiava e que desejaria poder sempre maltra-
Lá-la. Ele, ao coiltrái io, fica duplamente ressarcido dos males que sofreu, por'
quanto n ão só recobre a liberdade, mas ainda fica livre do jugo de um dono tão
arue}. HI

11
1302
H uco GROTIUS
'1
V Nem Ihe impor trabalhos muito duros

l . Os próprios serviços devem ser exigidos com moderação [26] e


se deve ter consideração com bondade à saúde dos escravos. Alei hebraica
independentemente de outras coisas,tem isso mesmo em vista na ins-
tituição do sábado, a Him de que sem dúvida algum descanso fosse dado
a seus trabalhos (Êxodo, XX, 10; XXl11, 12; .DeuferonÓmJ o, Xyl, 14). E
a carta de P]ínio [27] a Pau]ino, que começa assim: "Eu te confessaria
minha afeição por minha gente, tanto mais francamente porquanto sei
com que bondade tu tratas a tua. Tenho constantemente presente este
verso de Homero: Teve sempre para com eles um coração de pai e este
designativo de pane/:6aJZJ7lbs
que entre nós damos aos patrões."

2. Sêneca [28] observa também no mesmo vocábulo a bondade


dos antigos: 'Tqão vedes com que cuidado nossos pais faziam desapare-
cer o que tem de odiosoo designativo de dono e de humilhante o de
escravo? Eles chamavam a um paterfamílias e a outro membro da fa-
mí[ia" [29]. Dion de Prousa [30], descrevendoum rei muito bom, diz
que "?le usa tão pouco o designativo de patrão com relação a pessoas
livres, que se abstém até disso com relação aos escravos". Ulisses, em
Homero [31], diz que os escravosque achou fiéis estarão ao lado deleno
mesmo grau que os irmãos de Telêmaco,seu próprio filho. Segundo

[26] Ver o capítu]o X]V da carta dos bispos ao rei Luí$ que está incluída na (;apJéu/ar
de Carlos o Calvo. Sêneca(.8»Jkfu/a .XZ,KZZ4) diz: '%ousamos de/es como se
fossem óesías de ca/ga e não acne/7s." Sobre a meiguice dos atenienses para
com seus escravos,ver Xenofonte, em sua descrição sobre a república dos
atenienses
[27].qp/'s&uJa
K 19.
[28] ÊÜ2Jkfu/aXZKZZ 14
[29] Epicuro os chamava de amigos. Sêneca, .q7]kfo/a CTZZ l
[30] ])ion Crisóstomo, arado .[
[31] Odissáa, X]V, 138 ss. Eumeu elogia a bondade paternal que ele Ihe havia
testemunhado
1303
CAPITULO XIV - CONSIDERAÇÕES SOBRE OS PRISIONEIROS

Tertuliano [32] , "o vocábulo amizade é mais agradável que o vocábulo

poder [33] e os chefes de uma família são de preferência chamados pais


que patrões
Jerânimo [34], ou Pau]ino a Ce]antia, assim seexprime
'Administrai e governai vossa família de modo a passar de preferência
nor mãe do que por patroa de vossos servos, cuidando de atrair o respei-
to mais pela meiguice do que pe]a rudeza." Agostinho [35] diz: "Os pais
defamília justos conservavam outrora a paz em suas casas,distinguin-
do,é verdade, a condição de filhos com a de servos para o que se rela-
cionavaaosbens temporais, mas semdeixar de ter uma afeiçãoigual
obra com todos os membros de sua família, quando se tratava do servi-
ço de Deus. Isso também é o que prescreve de modo tão indispensável a
lei natural, que o próprio designativo de pai de família tirou daí sua
origem e que se tornou tão comum, que mesmo os que reinam de modo
injusto sentem prazer em serem chamados por essedesignativo. Ora,
osverdadeiros pais de família provêem para que todos os de sua família,
comoseus próprios filhos, sirvam a Deus e o tornem complacente.'

1321 JPO/ogeÚcus, 34

1331Cipriano dá também comomáxima que os patrões devem ser mais meigos para
com seus escravos. se tiverem abraçado a fé cristã (7bsfJm., 111,72 .4d
Quer:zhum).Ele o prova pelas palavras do apóstolo Paulo aos Eyêslos(VI, 9)
l,achàBdxo
qX.tsb escreve'."Não há outra razãopela qual nós nos chamamos
mutuamente irmãos, se não é porque nos cremos todos iguais. Se medirmos
bodasas coisashumallas, não com o corpo, mas com o espírito, ainda que sob o
ponto de vista material nossas condições sejam diversas, eles não são contudo
escravos para nós, mas os consideramos como irmãos, assim os chamamos
espiritualmente e segundo a religião, os chamamos também de companheiros
de escrav7cMo.
"Tratando dos costumes da Igreja católica(X, 30), Agostinho diz
Tu ensínas aos escravos de se apelar a seus patrões, 1lão tanto porque a Isso
sejam obrigados pela necessidade de sua condição, mas por amor do dever. Tb
jornas os patrões sensíveis para com seus escravos,em consideraçãode Deus
que é seu mestre comum, e mais propensos a atender a seus interesses do que
em c0/7üadJ2é-Jos. "Acrescente-se lsidoro de Pelusa (livro l, .EpisfoJa 471). Re-
portar'se ao que foi citado há pouco com relação a Prisco.
[34] EpJkfoJa C:XZ,UZZZ25.
[35] De Clwfaée .De?,XIX, 16
1304
H U GO GROTI US

3. Sérvio observou o mesmo sentimento afetuoso na palavra fi-


lhos, pela qual $e designava os escravos, a propósito deste verso de Mugílio
[36] : "Fechai os córregos, Hi]hos.. ." No mesmo sentido é que os heracleotas

chamavam seus escravos mariandinos de "õopoq)opoua" [37], isto é, por-

tadores de presentes, "para adoçar o amargor do nome", como o antigo


intérprete Calístrato, fazia a observaçãoa propósitodeAristóíanes. Tácito
[38] e]ogla os germânicos porque tratavam seus escravos como agricuj-
tores. Teano [39] diz numa epísto]a: "E saber usar seus escravos com
justiça não sobrecarrega-los de trabalho, nem de torna-los incapazes de
trabalhar ao deixa-los na indigência."

VI. Quando o pecúlio pertence


ao dono e quando ao escravo

[ . A]imentos são devidos ao escravo [40] , como dissemos, em tro-

ca de seu serviço. Cícero [41] diz: "Ordenam sabiamente aqueles que


prescrevem usar com os escravos como gente assalariada, fazendo-os
trabalhar e fornecendo-]hes as coisas necessárias." Aristóte]es [42] diz:

"Os alimentos servem de sa]ário para o escravo." Calão [43] diz: "Cuidam
de vossos escravos, a fim de que tenham o bem-estar, que não passem

[36] Não é de Virgílio, mas Êb7eszbsfes


111,110, melhor .8b7í?sl'asfes
VI 14

[37] HÉüenaeus, V], 18,84.

[38] Gera?1a ]Ja, 25

[391 ÊÓpjkfu/a3, no início


[401 Livro de Sirac, XXX]11, 25: ':rao, dJkcibJJhae fzaóa/Zo ao escravo.
[41] .De 0/n'cu]j, 1, 13,41
[42] Eco/?0/221'a, V.

[43] Z)e .Re Rus#lca, V. 2.


1305
CAPÍTULO XIV - CONSIDERAÇÕES SOBRE OS PRISIONEIROS

frio nem fome." Sêneca [44] também diz: "Há certas coisas que o patrão
deve fornecer a seu escravo, como a alimentação, o vestuário." A ali-
mentação era de quatro medidas de trigo por mês que eram dadas aos
escravos, como o relata Donato [45] . O jurisconsu]to Marciano [46] diz
que há coisas que o patrão deve necessariamente fornecer a seu escra-
vo. como túnicas e outros objetos similares..A crueldade dos sicilianos
[47], que faziam morrer de fome os prisioneiros atenienses, é condenada
peloshistoriadores [48] .
2. Sêneca [49] prova a mais
% que, com relação a certas coisas, o
escravoélivre eque ele tem também possibilidadepara setornar ben-
feitor, se fez algum ato que exceda a medida de seu dever de escravo,
não em virtude de um mandamento, mas por sua própria vontade, pas-
sandoassim do serviço que deve a uma afeição de amigo, o que explica
commais detalhes. De acordo com isso é que se um escravo,como é dito
em Terêncio [50] , acumu]ou a]guma coisa economizando ou conseguiu
algum objeto pelo trabalho de suas horas vagas, essa coisa se torna de
algum modo sua propriedade. Teófi]o [51] não definiu ma] o pecú]io:

[44]Z)e.a3izeõcíís,
111,21, 2. O mesmoautor, em Z)e n'angu]//]hfe .4n/mJ;8, 8, diz:
"Os escravosnecessitam de vesfuár70 e aJJme/?farão." Em Procópio(GoffÀlc;,
111.17), os romanos dizem a Bessas: 'Z)á-nospelo menos a/ihenfos, como se
6ssemos teus prisioneiros; não o dizemos porque nossa extrema necessidade
o pede, mas para aÉaséarde n(ãs z?morte. "João Crisóstomo, em seu comentaria
Epístola aos Efésios (N, 2\], escreve. "A partir do momento em que te.dá o
serviço de seu corpo, deves alimenta-lo e cuidar dele para que, além do alimen-
to, tenha com que se vestir, se calçar; esta também é uma espéciede servidão
Senão cumprires este teu dever para com ele, ele.não cumprirá o dele para
colltigo, mas será livre, e neJlhuma lei o forçará, se não for alimentado, de te
dar seu trabalho.
l4SIÁdPZorm,, ací. .Csc. /, 43.
t46ÀL 40, Pecuiium nascítur, Dig., De pecuiia.
1471E aquela de lsaac Angelo para com os prisioneiros sicilianos, de que fala .N.icetas
(livm 1,cap. Syque reproduz uma carta escrita a respeito pelo rei da Sicília ao
imperador grego.
[48] Tucídides, livro Vl1, 87; Diodoro da Sicí]ia, ]ivro X]11, 19
[49] Z)e Bnzeálc21s. 111. 19
[50]Phonnib,aaf, ]] sc, ], 44
1511/nsí. /V uod cir/?2eo qul h a/fpot.
1306
HU GO GROTIUS

"um património natura]" [52] , como se se deHmisse a união dos escravos

'um casamento natura]". U]piano [53] também, por seu ]ado, disse que

o pecúlio é um pequeno património. Não importa que o patrão possa,


por sua vontade, retirar o pecúlio ou diminui-lo, mas não vai fazer uma
coisa justa, se o fizer sem causa. Entendo por causa não somente uma
punição, mas também uma necessidade do patrão, pois o interesse do
escravoestá subordinado aosinteresses do patrão, até mesmo mais que
os negócios dos cidadãos o são aos do Estado. Sêneca [54] diz, a esse
respeito, com razão: "Não é um motivo, para provar que um escravo
nada tem, dizer que seu patrão pode não querer que ele tenha algo."

3. Disso decorre que um patrão não recebe, após a libertação, se


pagou a seu escravo alguma coisa que Ihe devia durante a escravidão
porque, como diz ']\'ifonino [55], quando se trata de perceber o paga'
mento, isso é colocado do ponto de vista da dívida natural, para saber se
há devido ou não devido; ora, um patrão pode dever a seu escravo natu-
ralmente. Por isso é que, do mesmo modo que lemos que clientes ha-
viam contribuído para as necessidades dos patrões e súditos para as
necessidades dos reis, assim também lemos que escravos contribuíram
[56] para as necessidadesde seuspatrões, como quando setratou de

[52] Eumeu, na Odlssáza (X]V. 63 ss.), diz: ':E7e me farta ando o que a vontade
generosa de um patrão daria a seus servidores: uma esposa como companhei-
ra, um óem, uma casa."0 próprio Ulisses diz a Eumeu e a Filécio(Odll$sáza,
XXÇ., 2'L4 ss). "Eu darei a cada um de vós companheiras para vosso leito, um
óen7e c'asasprárlhas â nossa."Varrão(Res .Rusúcae,1, 17,7) diz dos escravos
qxe "se tornam mais zelosospelo trabalho, quando são tratados com mais
iíberalidade, qualldo recebemaliluejltos e vestimentas mais abundantesou
quando .lhes é concedido algum descansoou quando !hes é permitido .levara
pastar em suas terras animais que fazem parte de seu pecúlio.
153ÀL 5, Deposiei, $ 5, Dig., De pecuiÍo.
[54] Z)e .Be/?eÁlcT]i. V]1. 4. No mesmo ]oca] do mesmo fi]ósofo. tem-se: ':g duwdoso
que o escravo não pertença ao patrão com seu pecúlio? E contudo, ele dá um
presente a seu patrão.
t55ÀL. 64, Si quid, Dig., De cond.índeb.
[56} Dionísio, ]], ]O
1307
CAPÍTULO XIV - CONSIDERAÇÕES SOBRE OS PRISIONEIROS

dotar sua filha, de pagar o resgate de seu filho prisioneiro ou de qual-


quer coisa seme]hante. P]ínio [57] , como e]e próprio o conta em suas
cartas, concedia mesmo a seus escravos certas coisas, como fazer testa-
mentos, isto é, repartir, dar, deixar aos escravos de sua casa. Lemos
que, em algumas nações,havia-se concedido, mesmo aos escravos,um
direito mais completo de adquirir, como foi dito por nós em outro local
(livro 11,cap. V. $ XXX), pois havia diversos graus de escravidão.

4. Mesmo entre diversos povos,as leis reduziram àjustiça inte-


rior de que tratamos aqui esse direito exterior dos patrões sobre os es-
cravos. Entre os gregos era permitido aos escravos, os quais eram tra-
tados de modo extremamente duro, pedir para serem vendidos e, em
Romã, se refugiar aos pés das estátuas ou implorar o auxílio dos prepostos
contra a crueldade ou a fome ou uma injustiça into]eráve] [58]. Por
outro lado, poderá ocorrer, não em virtude do direito estrito, mas em
virtude da bondade e da benevolência que por vezes é obrigação que,
apóslongos serviços ou serviços muito importantes, a liberdade seja
concedidaao escravo.

5. Depois que, por efeito do usgenóum (direito das gentes), a


escravidãoinvadiu o mundo, o benefício da libertação se seguiu, diz
Ulpiano [59] . Este verso de Terêncio [60] serve de exemp]o: "Fiz como
que de escravo tu te tornasses ]ivre porque me serviam ]ea]mente" [61] .

1571Livro Vll, .E»]klo/a 16


çb8À
Inst. 1, 8, $2, De his qui sui vei a!. Jur.
lbqAL. 4, Manumissione, Dig. De Just. et Jure.
1601
.4n»lã, 37 ss
ICl1 "0uod servlóas / pera/lfer'; assim é que traziam com razão os manuscritos.
Varrão(cf. Sérvio, ,4d Wbg..4e/l., Vl11, 564) conta que se dizia aos escravos,no
bosquesagrado da deusa Feronia: "Que os escravos que o meJ'ec'emtomem
asse/2fo.Oue e/es se /eua/ feia ]lures./" Era costume em alguns lugares alforriar
os escravos,quando tivessem acumulado oito vezes o valor que seu patrão
havia pago por eles
1308
H UGO Gxoíius

Salviano [62] diz que era de uso cotidiano que os escravos, mesmo quan-
do não apresentassem os melhores senriços, desde que não fossem per-
versos, eram gratificados coma liberdade. Acrescenta que "não lhes é
proibido levar da casa de seu patrão as coisas que haviam conseguido
durante a escravidão". Numerosos exemplos dessa bondade são mostra-
dos nos martirológios. Torna-se necessário elogiar aqui a clemência da
lei hebraica (DeuferonÓmJb, XV 13) que ordena categoricamente que o
escravo hebreu seja alforriado, depois de expirar certo tempo determi-
nado, e que não o seja sem presentes [63]. Os profetas se queixam amar
gamente do desprezo a esta lei. P]utarco [64] recrimina Calão, o Velho.
porque vendia os escravos enú'aquecidos pela velhice, esquecendo a na-
tureza que é comum entre os homens.

VII. Se é permitido aos escravos fugir

Uma questão se apresenta aqui, aquela de saber se é permitido


fugir para aquele que foi feito prisioneiro numa guerra justa [65] . Não
falamos daquele que mereceu essapena por seu próprio delito, mas
daquele que caiu num infortúnio por um fato público. Mais verdadeiro
parece que isso não Ihe seja permitido porque deve seus serviços em
nome do Estado, em virtude de uma convenção,como dissemos,comum
às nações. Isso, contudo, deve ser entendido assim, a menos que uma
crueldade intolerável não Ihe imponha essa necessidade. Pode-se ver a
esserespeito a resposta de Gregório de Nova Cesaréia.

[62] .4dz .4var7:ílbm, 111,7

[63] O uso interpretou esta lei de tal maneira que não se deveria dar menosde
trinta siclos. Ver /)raecepÉ. ./uóenf., 84. '- - -'' --v-vD HU

[64] Calo ]Uaybr, 338 E.

õ5ÀS\\Neste., in verbo Servitus, $ 3, 'Fa \ut\ius, in L 4, Manumissiones, Dig., De


Just. et Jure' Aegid. Reg., De Actibus Supernaturalibus, dispus. 31, dub. 7, n.
1309
CAPITULO XIV - CONSIDERAÇÕES SOBRE OS PRISIONEIROS

ylll. Se os filhos dos escravos têm


compromisso com o patrão e até que ponto
1.Levantamos em outro local (livro 11,cap.V. $XXIX) uma dúvi-
da[66] sobre a questão de saber se e até que ponto os filhos dos escravos
sãoobrigadospara com seupatrão, segundoa justiça interior. Questão
que não deve ser omitida aqui porque se relaciona especialmente aos
prisioneirosde guerra. Se os pais haviam merecidopor seucrime a
pena de morte, os descendentes que deles se esperava poderão, pela
conservaçãode sua vida, ser submetidos à escravidão porque de outro
modo não teriam existido; além do mais, os pais podem também vender
seusfilhos como escravos por causa de falta iminente de alimentos,
comoo dissemos na mesma passagem. Tal é o direito que Deus concede
aoshebreus sobre os descendentes dos cananeus]-DeufelonÓmJO, XX, 14] .

2. Aqueles que já haviam nascido podiam, na verdade, estar


engajadosem razão de uma dívida do Estado, como fazendo parte do
Estado, não menos que seus pais. No que concerne, contudo, àqueles
que não haviam nascido ainda, parece que essa razão não seja suficien-
te e que serequeira outra: ou é precisoque tenha havido um consenti-
mento expresso dos pais junto com a necessidade de nutri-los e mesmo
então puderam engajá-los para sempre; ou eles o 6lzeram em razão da
prestação dos alimentos, isto é, somente até que os serviços quitaram
tudo o que havia sido despendido. Se algum direito além disso é dado
sobreeles ao patrão, isso parece proceder da lei civil que lhes concede
mais do que o permite a equidade.

[66] Lessius, ]ivro ]], cap. 5, dub. 5


H UGO GKOílUS

IX. O que deve ser feito onde não existe


o costume de escravizar os prisioneiros

1. Nas nações em que essedireito de escravidão provindo da guerra


não está em uso, o melhor seria trocar os prisioneiros. O melhor, a
seguir, manda-los de volta por um preço razoável. Que preço deveria ser
esse?Não se pode determina-lo de maneira precisa, mas a bondade
ensina que não deve ser elevado, além de uma soma que o prisioneiro
não possa pagar sem que Ihe faltem as coisas necessárias. As leis civis
mesmo concedem essefavor a muitos indivíduos que se engajaram nas
dívidas por sua própria conta. Em outros lugares, essepreço é determi-
nado por convenções ou pelos costumes, como entre os gregos, outrora,
em que era fixado numa mina [67]. Hoje consiste num mês de paga-
mento para os so]dados. P]utarco [68] conta que outrora as guerras
entre oscoríntios e os megarenossefaziam comhumanidade e "como
convinha a povos oriundos do mesmo sangue". Se alguém era feito pri-
sioneiro, era tratado como um hóspede por aquele que o havia preso e
mandado de volta para sua casa, depois que se havia recebido sua pro'
mesma de regaste, de onde surgiu o nome de hóspedes de guerra.

2. A maneira de agir de Pirro, e]ogiada por Cícero [69], é de um


espírito mais elevado:"Não peçoouro para mim [70] e não me teríeis
dado resgate; levamos nossa vida, uns e outros com ferro, não com

1671Na guerra dos franceses contra os espanhóis,na ltália, o resgate de um cava-


leiro era o quarto de seu soldo anual. Nessa taxa, não eram incluídos os chefes
de esquadra e seus superiores, nem aquelesque eram feitos prisioneiros numa
batalha determinadaou depois de um cerco(Mariana, livro XXVl1, 18)
[68] é?uaesf. G?'aec., 295 B.

[69] .De(2á%lcJ]i,
1, 12, 38.
[70] Menandro o Protelar e]ogia um ato semelhante de bondade, da parte do impe-
rador cristão Tibério, para com os persas. Mariana elogia um ato similar de
Sisebue e de gancho, rei de Castelã (livro VI, 3 e XI, 5)
CAPÍTULO XIV- CONSIDERAÇÕES SOBRE OS PRISIONEIROS

ouro. Certo é que pouparia a liberdade daqueles cuja coragem foi poupa-
da pelasorte da guerra." Não há dúvida que Pirro não acreditou fazer
uma guerra justa*contudo achava que se devia poupar a liberdade da-

queles que razões prováveis teriam levado à guerra. Xenofonte [71] e]o-
gia um fato semelhante de Côro,Po]íbio [72] de Filipe da Macedõnia
depois da vitória de Queronéia, Quinto Cúrcio]73] deAlexandre contra
oscitas, Plutarco [74] do rei Pto]omeu eDemétrio que lutavam entre
elescom benevolência para com os prisioneiros, não menos que com
coragem na guerra. O rei dos getas, Dromichaetes [75], fez de Lisímaco,
preso na guerra, seu hóspede e, tendo-o tornado testemunha ao mesmo
tempo da pobreza e da cortesia dos getas, a6umou preferir tais pessoas
por amigos que como inimigos [76] .

[7110Ja'opaedia,
111,1, 28
[72] Livro V. IO

173]Livro Vl1, 9, 18.


1741Deme&r2us,891 A
[75] Diodoroda Sicília lembra o fato também em Excerpta Peiresc. (~Excerpta de
UFtufabusef Hí7)h l).
[76] Estrabão, livro Vl1, 3, 8.
xv

CONSIDERAÇÕES
SOBREACONQUISIA
DA SOBERANA

Sumário

1.Até que ponto a justiça interna permite que a soberania seja


adquirida.
11.Élou fiável abster-se desse direito com relação aos vencidos.

111.Seja misturando-os aos vencedores


IV Seja deixando a soberania aos que a possuíam
U As vezes dispondo guarnições.
VI. Ou mesmoimpondo tributos e outros ónus similares.
VII. Indica-se a vantagem resultante dessa moderação.
VIII. Exemplos e sobre a m udança da forma de governo para os
vencidos.

IX. Seforprecíso apoderar-seda soberania, convémdeixar uma


parte aos vencidos.
X. Ou, ao ]nenos, uilla espécie de liberdade.

XI. Principalmente caiu relação à religião.


XII. Ao menos se deve tratar os vencidoscom clemência e
Porque.
1315
CAPÍTULO XV- CONSIDERAÇÕES SOBRE A CONQUISTA DA SOBERANIA

1. Até que ponto a Justiça interna


' permite que a soberania sela aaquinaa
Se a equidade é exigida ou a bondade é elogiada nos cidadãos
crivados, muito mais devem sê-lo com relação a povos ou partes de
povosaté porque a injustiça e a benevolência exercidas com relação a
grande número de pessoas são mais notadas [1] . Como outras coisas
podemser adquiridas por uma guerra justa, do mesmomodo se pode
adquirir o direito daquele que reina sobre um povo e o direito que o
própriopovo tem com relação à soberania, mas bem entendido quanto o
comportaa medida do castigo decorrente do delito ou a de outra dívida
qualquer.A isso se deve acrescentar o objetivo de evitar um grande
perigo. Essa razão, que na maioria das vezes é misturada com as ou-
tras, dever ser, contudo, ela própria tomada particularmente em consi-
deraçãoe nas condições da paz e no uso da vitória. Em relação a todas
asoutras coisas se pode fazer uso do próprio direito de compaixão. Num
perigopúblico, a segurança que ultrapassa os limites é a dureza de
coração.lsócrates [2] diz a Fi]ipe: "Os bárbaros devem ser subjugados
por todo tempo que for preciso para colocar em segurança vosso país

ll.É louvávelabster-se desse


direito com relação aos vencidos
1. Sa]ústio [3] diz dos antigos romanos: "Nossospais, os mais
religiosos dos mortais, não tiravam dos vencidos senão o poder de preju-
dicar." Pensamento digno de ser proferido por um cristão, com o qual
concordamas seguintes palavras do mesmo autor [4]: "Os sábios fazem

111
Vitoria, Z)eJure .Be/#,n. 38 e 59
[21EPlsfola11,4.
[3] J)e an/4/uraÉl0/2eCâflnbae, X]1, 4
[4] Z)eJ?ep.Oz'dlh.,1, 6.
d 13}6 H UGO GKOTÍUS

a guerra em vista da paz e suportam a fadiga com a esperança de re-


pouso."Aristóte]es [5] havia dito mais de uma vez que "a guerra foi
imaginada para ter a paz e a inquietude dos negócios para buscar a
tranqüi[idade." Cícero [6] não quer outra coisa e pode ser constatada
nesta máxima: "Que a guerra seja empreendida de tal modo que pareça
que se tenha em vista a paz." Do mesmo autor [7] é também o seguinte
pensamento semelhante: "As guerras devem ser empreendidas para se
viver na paz, ao abrigo da injustiça.

2. Tudo isso não se distancia do que nos ensinam os teólogos [8]


da verdadeira religião, que o Hlm da guerra é de afastar o que perturba
a paz. Antes dos tempos de Nino, como começamos a dizer em outro
[oca[, segundo ']Fogo [9] , o costume era de defender as fronteiras de seu
império, antes que estendê-]as [10] . Os reinos eram ]imitados para cada
um pelos limites de sua pátria. Os reis buscavam não o poder para eles
mesmos, mas a glória para seus povos e, contentando-se com a vitória,
se abstinham da dominação. É o que dá a entenderAgostinho [11] quan-
do diz: "Que tomem cuidado para que não seja uma coisa indigna dos
homens de bem, a de encontrar prazer em estender seu império" [12]. E
acrescenta: "Há mais felicidade em ter um vizinho vivo em bom enten-

lõl .4 #epúó//ca, Vll, cap. 14 e 151 .E'róa a Aücómaco, cap. 7


[6] Z)e(2ÕZ7cv}),
1,23,80
[7] Idem, 11, 35
[8] Tomas de Aquino, 1, 2, quaest. 40, art. 1, ad 3i Wilh. Matth., Z)e BeZ/7Sec. Eequls.
q. 7
[9] Justino,1, 1,3
[10] O imperador Alexandre dizia a Artaxerxes,rei da Pérsia: 'l:hdn um deveper-
manecer de11trode seus !imitei, sela nada íllovar, Não se deve empreender
guerras eil] fuJIÇãode esperançasincertas, mas é preciso se contentar com
aqu 7o que se possui" (Herodian., VI, 2,4)
111] De ClrlfaÍe Z)eJ;IV, 15
1121Ver Cirilo, livro V. contra Juliana. Ele elogia, a esserespeito, os reis hebreus
que se contentavam com as tlronteu'as que possuíam
1317
CAPÍTULO XV - CONSIDERAÇÕES SOBRE A CONQUISTA DA SOBERANIA

alimentaconoscodo que subjugar um vizinho mau que nos move guer'


ra." Acrescente-se que o profeta Amós (1,13) recrimina severamente nos
próprios amonitas essedesejo de estender as fronteiras pelas armas.

111. Seja misturando-os aos vencedores


A prudente moderação dos antigos romanos se aproximou em
muito desseexemplo de inocência antiga. Sêneca[13] diz: "Que seria
hojeo império, se uma salutar previsão não tivesse misturado vencidos
evencedores?" Cláudio, em Tácito [14] , diz: "Nosso fundador Râmulo foi
dotadode tanta sabedoria que teve no mesmo dia a maior parte dos
povoscomo inimigos e em seguida como cidadãos." Acrescenta que nada
havia contribuído tanto para a perda dos lacedemânios e dos atenienses

quanto o de ter repelido os vencidos como estrangeiros. Tito Lívio [15]


diz que a república romana foi acrescida ao receber os inimigos na cida-
de.Há exemplos nas histórias dos sabinos, dos albinos, dos latinos e
outros povos da ltália; em último lugar, "César conduziu os gauleses
depois de seu triunfo até mesmo ao Senado" [16] . Ceria]is diz no discur-
so aos gauleses, transcrito em Tácito [17] : "Sois vós que muitas vezes
comandais nossas legiões. Sois vós que governais estas províncias ou as
outras. Entre nós, nada há de separado, nada de exclusivo." E logo em
seguida:"Amai, portanto, a paz. Enchei de respeito uma cidade, na
qual, vencedores e vencidos, somos igualmente cidadãos." Enfim, o que
é mais admirável, em virtude de uma constituição do imperador
Antonino, "todos aqueles que se encontram no universo romano se torna'

[13] De /ra, 11, 34,4


[14] .,4J]lajes, X], 24
[15] ..4ó Urbe Go ?dl'fa, V]11, 13,16
[16] Caius Suetonius Tranquillus anelar. 80

[17] HJsfo/:rae.IV. 74.


1318
H UGO GROTIUS

ram cidadãos romanos", conforme as pa]avras de U]piano]18]. Desde


então, como diz Modestino [19], "Romã é a pátria comum". C]audiano
[20] diz dela: "Todos nós devemos nos apelar aos costumes pacíficos
desta cidade para todos juntos formarmos uma só nação."

IV Seja deixando a soberania aos que a possuíam


1. Outro tipo de moderaçãona vitória consiste em deixar aosreis
ou aos povos vencidos a soberania que possuíam. Assim é que Hércules,
'vencido pelas lágrimas do jovem Príamo, Ihe diz: Toma em mãos as
rédeas do governo, senta no trono de teus pais, mas segura o cerro com
boa fé" [2 1] . O mesmo, depois de ter vencido Ne]eu, entregou o reino a
seu âi[ho Nestor [22] . Assim é que os reis da Pérsia deixavam a rea]eza
aos reis vencidos [23] .Assim fez Ciro em favor do reiArmênio [24]. E
assim também A]exandre, em favor de Porus]25]. Sêneca]26] elogia o
fato de nada retirar de um rei vencido, excetuando-se a glória. Políbio
[27] ce]ebra a bondade de Antígono que, tendo Esparsa em seu poder,
deixou a seus habitantes a forma de governo de seus ancestrais e a
liberdade. Conta-se no mesmo local que, por essefato, foi alvo dos
maiores elogios em toda a Grécia.

AS\ L. 17, in Orbe,])ig., De Star. hom.


[19] .L J.Z Rama., DTg.,Hd mün/cÜ.
[20] .De aonsy/afu Sfl77cüonzh, 111, 154, 159
[21] Lucius Annaeus Seneca, n'Dadas, 735 ss
[22]Ael., Uar JZJ)t.,]V15
[23] Heródoto,]ivro 111,15
124]Xenofonte,ClFopédlb, 111,1,33ss
125] Pepino deixou a coroa ao rei longobardo Astolfo
[26] Z)e (;7ene ]íla, 1, 21,3. Toda esta passagem merece ser lida, inclusive onde se
encontra esta bela f'Fase: 'Z fr7unÉar a é sopre a pr(»r7b vlfóda e mosü'ar
digllanleJlte que alada fo{ encontrado junto aos vencidos que fosse digno do
re/?ceder "Uma parte de seu reino foi deixada a Tigrano por Pompeu(Eutrópio,
Breviarium Historial Romance, N\, 'L3à
[27] Livro V. 9
1319
CAPITULO XV - CONSIDERAÇÕES SOBRE A CONQUISTA DA SOBERANIA

2. Assim é que foi permitido pelos romanos aoscapadóciosde


usar a forma de governo que quisessem e muitos povos foram deixados
livres após a guerra. "Cartago está livre, com suaspróprias leis", dizem
oscidadãos de Rodes aos romanos]28], depois da segunda guerra púnica.
Pompeu, dizApiano [29] , "deixou ]ivres algumas nações que havia sub-
metido" [30] .Aos habitantes da Etólia, que diziam que a paz não podia
ser sólida, a menos que Filipe da Macedânia fosse expulso de seus Esta-
dos,Quintius respondeu que eles haviam falado sem ter-se lembrado do
costumedosromanos de poupar os vencidos [31] .Acrescentou que "con-
tra os vencidos, aquele que é mais meigo tem a maior grandeza de
alma." Em Tácito [32] se pode ]er que "nada foi tirado de Zorzino ven-
cido"
0

y As vezes dispondo guarnições

Algumas vezes, com a concessãoda soberania, se provê ao mes-


mo tempo a segurança dos vencidos. Assim é que foi decidido por Quintius
[33] que Corinto seria entregue aos cidadãos daAcaia, na condiçãocon'
tudo que uma guarnição seria colocada na Acrocorinto. Também que
Calas e Demetríades seriam retidas até que não houvessenada mais a
temer da parte de Antíoco.

ÍiêÍliiiã Íivio, .4ó üróe a0/7difa, XXXVl1, 54,26.

[29] Jl©f&dd., 114

[aol Para saber quais eram as condiçõesdessesEstados livres, ver Políbio, .Ekcerpfa
Legal/onum, 6. Suetânio, em (lesar [25], onde faia da Gaita. Guilliman, em Z)e
Re6. /1e/u [1, 81,refere a]gumas coisas a esserespeito que são dignas de serem
lidas
[31] 'fito Lívio, .4ó C/róe aond7fa, xxx]11, 13,9

[32] .4nna/es,X]1, 19.


[33] Essa disposição foi, contudo, revogada a seguir. Ver Políbio, Excerpfa
Ée#afao/?tzm, Xl; Plutarco, /7ámihius(374 C)
1320
H UGO GROTI US

VI. Ou mesmo impondo tributos


e outros ónus similares

Muitas vezes também a imposição de tributos não diz respeito


tanto ao reembolso das despesas feitas senão à segurança para o futuro.
tanto do vencedor como do vencido. Cícero [34] diz, a respeito dos gre-
gos: "Que a Agia considere que não teria sido nunca isenta da calamida-
de, nem da guerra estrangeira, nem das discórdias internas, se não
tivesse sido sustentada por este império e porquanto não pode de manei-
ra nenhuma se conservar a proteção sem pagar subsídios que resgatem
generosamente por meio de uma parte de suas rendas uma paz eterna
e a tranqüilidade." Petilius Ceria]is, em Tácito [35] , fa]a assim pelos
romanos, diante dos lingones e outros gauleses: "Tantas vezes provoca-
dos por vós, não vos impusemos, a título de vencedores, senão os encar-
gos necessários para a manutenção da paz. Sem exércitos, de fato, não
há tranqüilidade para as naçõese, sem soldo,não há exército; sem
tributos, não há soldo." Sobre o'mesmo tema sereferem também outras
coisas que assinalamos quando tratamos da aliança desigual (livro ll.
cap. XV] $ VII), como entregar as armas, a frota [36], os e]efantes, o fato
de não ter fortalezas, exército.

VII. Indica-se a vantagem resultante dessa moderação


1. Que a soberania seja deixada aos vencidos hão é somente um
ato de humanidade, masmuitas vezesé também um ato de prudência.
Entre as instituições de Numa elogia-se a disposição que quis que toda
efusão de sangue fosse afastada dos sacrifícios ao deus Terma, fazendo

[S4] E»ljtuJae ad é?un um / abre/n, 1, 11,34.


[35] Hlkfor7ae,IV 74
[36] A respeito dos persas,ver Agatias, livro IV, 9
1321
CAPÍTULO XV - CONSIDERAÇÕES SOBRE A CONQUISTA DA SOBERANIA

ver com isso que nada é mais útil para a tranqüilidade e uma paz
seguraque manter-se dentro de suas próprias fronteiras [37]. F]orus
[38] dissede modoprimoroso que "é mais diücil guardar as províncias
do que conquista-lasl são conseguidas pela força e se conservam pela
justiça": A isso parece relacionado este pensamento que se encontra em
Tiro Lívio [39] : "E mais fácil buscar separadamente várias coisas que
guarda-las todas juntas." E as palavras de Augusto em Plutarco [40] :
"Custa menos conquistar um grande império que governa-lo depois de
conquistado."Os embaixadoresdo rei Dado diziam a Alexandre: "Um
império estrangeiro é coisa perigosa. E difícil não deixar escapar o que
não se pode tomar. E mais fácil ganhar certas coisas do que conser-
va-las. Por Hércules, não é mais fácil tomar alguma coisa com a mao
querelê-la?" [41] .
2. Isso é que o indiano Calanus [42], e antes dele Oebarus [43],
favorito de Ciro, explicavam pela analogia comum couro secoque se
endireita de um lado ao mesmo tempo que é pressionado com o pé do
lado Oposto.Tullius Quintius, em Tiro Lívio [44], pe]a comparação de
uma tartaruga ao abrigo de golpes quando se encolhe em seu casco [45] ,
expondo-se aos ataques e sem defesa, logo que faz sair uma parte de si
mesma.Platão, no H'alado (7ns.Leis [46], ap]ica aqui as palavras de

l3'rl Plutail=o QuaesZ.Xom., 15 (267 C).


1381Ed)lfomede GesZs Xomanorum, IV, 12.
[39] .4b Z:;i-ÓeaOIJd)'Éa,
XXXVl1, 35,6
[40] .4popáÉÜeg.,207 D.
[41] Curtius, ]V. 11,8
[42] Plutarco fala a respeito em .4/exa/7der,701 E.
[43] Aristides, Or ih J?oma n
[44] .4b Hróe aondlÉa, XXXV], 32,6
[45] P[utarco, em ]i7amlhJus (378 D), assim o relata: 'Hos Àaó fa ]fes da Hcala que
queriam se apoderar da J7Zade Zac'/hfo ]Zes dJZ,para demove-/os da idéva, que
se pusessem a cabeça para fora do Peloponeso,corriam o mesmo perigo das
:artarugas que põem a cabeça para fora do casco
1461.4sZ,eli, lll, lO
1322
H UGO GROTIUS

Hesíodo: "A metade vale mais que o todo." Apiano [47] observa que
vamos povos que queriam colocar-se sob a dominação romana haviam
sido repelidos pelos romanos; quanto a outros, até reis haviam sido
dados. Segundo a opinião de Cipião oAâ'icano [48], Romã possuía desde
sua época uma extensão de territórios tão grande que poderia ter-se
tornado insaciável em querer sempre mais. Devia dar-se por feliz em
nada perder do que possuíam Por isso, Romã corrigiu o hino de fecha-
mento do lustro, no qual osdeuseseram rogadospara melhorar e fazer
prosperar os negócios do povo romano, substituindo isso por uma ora-
ção para que os mantivessem perpetuamente ao abrigo de reveses [49] .

VIII. Exemplos e sobre a mudança


da forma de governo para os vencidos

Os lacedemânios e no começoos atenienses não reclamavam para


elesnenhuma dominaçãosobreos Estadosvencidos.Eles selimitavam
a desejar que tivessem uma forma de governo semelhante à deles, os
lacedemânios sob o poder dos principais cidadãos e os atenienses sob a
vontade do povo, como nos informam Tucídides [50], ]sócrates [51] e
Demóstenes [52] e aindaAristóteles em seu 7}aÉado da .RePÚÕ/7cu[53].
Heniochus [54], escritor dessaépoca,indica isso mesmo numa comé-

[47] P7ae/, 7

[48] Valerius Maximus, livro IV. l.lO.

H: EIH li ;='nz::;=:J ?il;E


]o que as possessões atuais eram' sunlcientes'
[50]Livro 1,19
[51] .F)aj7aÍÜen., 18.

[Õ2]Oral/o de (:berson.;Diodoro da Sicília, livros Xlll e XV.


[53] Livro IVI ll e V. 7
[54] Estobeu, 43, 27
1323
CAPITULO XV - CONSIDERAÇÕES SOBREA CONQUISTA DA SOBERANIA

dia, com estes termos: "Então avançaram em direção a elas duas mu-
lheresque conturbaram tudo. Uma se chamaAristocracia, a outra De-
mocracia.Soba influência delas mergulharam há muito tempo no delí-
rio." Semelhante é a conduta que Tácito [55] re]ata ter sido utilizada
Artabano na Selêucia: "Entregou o povo ao governo dos pnncipats
cidadãos,em vista de seu próprio interesse, pois o governo do povo é
próximo da liberdade, a dominação de um pequeno número se aproxima
mais do despotismo." A questão de saber se as mudanças desse tipo
contribuem para a segurança do vencedor não é nosso assunto.

IX. Se for preciso apoderar-se da soberania,


convém deixar uma parte aos vencidos

Sefor menos seguro se abster de toda dominação sobre os venci-


dos,a coisa pode, contudo, ser moderada, de modo que alguma porção
de soberania seja deixada a eles mesmos ou a seus reis. Tácito [56] faz
mençãoao hábito do povoromano de ter mesmo"reis comoinstrumen-
tos de sua dominação". Segundo o mesmo [57], "Antíoco era o mais rico
dosreis súditos". "Os reis súditos dos romanos", se diz nos comentários
sobre Musonius [58] e em Estrabão, quase ao final do livro sexto [59] .
Lucano [60] diz: "Toda púrpura que é escrava da espada latina" [61] .
Assim é que entre os judeus, o cerro ficava no sinédrio, mesmo depois
queo Estado foi confiscado de Arquelau. Evágoras, rei de Chipre, como

[55] ,4nna/es, V], 48

1561.4gr7coJa,
14
[57]HJ)forjam,
11,81
[58] Estobeu, 48, 67.

[59] Livro VI, 4,2.

[60].Fbarsa/)b,
V]1, 228
[61] Ver o /)a/?egyrlcum em honra de Maximiano
}324
H U GO GROíiUS

é descrito por Diodoro da Sicília [62], dizia que queria muito obedecerao
rei da Pérsia, mas comoum rei obedecea um rei. Alexandre [63] afere.
cia por vezes essa condição a Dado vencido; ele poderia comandar ou-
tros, ao mesmo tempo que obedecia a Alexandre. Falamos em outro
local (livro 1, cap. 111,$ XVll e livro 111,cap. Vlll, $ 111)das maneiras de
misturar a soberania. Para alguns foi deixada uma parte de seu Esta-
do, como se deixa uma parte das terras a seusantigos proprietários.

X. Ou, ao menos, uma espécie de liberdade

Mesmo que toda a soberania seja tirada aos vencidos, suas leis
[64], seus costumes, seus magistrados podem ser deixados a eles, no
que tange a seus negócios particulares e aos negócios públicos de pouca
importância. Assim é que na Bitínia, província proconsular, a cidade de
Apaméia teve o privilégio de se governar à sua vontade [65], comoas
cartas de Plínio]66] nos informam. Em outro local diz que os bitinienses
tinham seus magistrados, seu senado. Assim é que, no Ponto, a cidade
deAmisa se governava segundo suas próprias leis, por bene6cio conce-
dido por Lucullus [67] . Os godos deixaram as leis romanas aos romanos
vencidos.

[62] Limo XV 9.
[63] Diodoro da Sicília, livro XVl1, 54. Assim também ocorreu outrora na ltáha com
reis dependendo de outros reis, como se pode ver em Servius, BOcomentário ao
canto X da E}7e/da.Assim é que se pode ]er em Os /)essas de Esquilo: 'Os reli
suba'dJhados ao grande re]. " O mesmo ocorre junto aos.turcos conforme test.:
mundo de Leunclavius, livro XVlll
[64] Fílon, em .Legal/o ad (h um(23), diz: ':AUo me/]os calando fere .4ugusfo em
:oilservar as leis própz'ias de cada nação, ao invés de impor as roman.as.'

"H
[66] EP])fujam, X, 48, 84, 117e 119.
[67] Plínio, ÊbJkfuJae,X, 92
H
1325
CAP(TULE XV - CONSIDERAÇÕES SOBRE A CONQUISTA DA SOBERANIA

XI. Principalmente com relação à religião


1. Uma faceta dessa indulgência é não tirar aos vencidos o exer-
cício da religião de seus antepassados [68] , a menos que sejam converti-
dos,o que muito agrada aos vencidos e não acarreta mal algum ao
vencedor,como o prova Agrupa em seu discurso a Calígula que Fílon
mencionano relatório de sua ]egação [69] . Em Josefo [70] , tanto o pró-
prio Josefo como o imperador Tiro objetam aos rebeldes de Jerusalém
que, por beneficio dos romanos, gozavam de um direito tão amplo para
o exercício de seu culto que podiam expulsar do templo os estrangeiros,
mesmo sob pena da vida

2. Se houver nos vencidos uma religião falsa, o vencedor tomará


legitimamente medidas para que a religião verdadeira não seja oprimi-
da. Foi o que Constantino fez depois de ter esmagado o partido de Licínio
e o que 6lzeram depois dele os reis francos e outros reis.

xll. Ao menos se deve tratar


os vencidos com clemência e porquê
1.Aúltima observação é que, mesmo na dominação mais comple-
ta e semelhante àquela do patrão sobre o escravo, os vencidos sejam
.tratadoscom clemência e de tal modo que seus interesses estejam liga-
dosaosinteresses do vencedor. Giro [71] ordenava aos assírios vencidos
a recobrar coragem. Ele lhes dizia que sua condição seria a mesma de
antes, que haveria somente outro rei, que suas casas continuariam
deles,bem como suas terras, que conservariam seu direito sobre suas
esposas,sobreseus filhos, como o haviam exercido até então, mais ain-

lê®"E melhor que um deus qualquer seja adorado do que não adorar nenhum
como dissemos há pouco, ao citar as palavras de Severo. Foi assim que os godos
diziam que não haviam forçado ninguém a seguir a religião deles (Procópio,
GofÉÜc., 11, 16)
[69i .LegaÉ70 ad aaJizm, 36

[70] Z)e.BeatoJudaeo/'um, V, 9,4 e V], 2,1


171]Xenofonte, De OJv7InsfzÉ., IV. 4,10.
!326
H UGO GKOílUS

da que, se alguém os afrontasse com agressões, teriam ele e os seus


comovingadores. Lemos em Sa]ústio [72] : "Pareceumais Oportunoao
povo romano angariar amigos do que escravos, persuadidos que esta-
vam que é mais seguro comandar pessoas que o querem, do que aqueles
que são forçados a isso" [73]. Os bretões do tempo de Tácito [74] se
submetiam sem murmurar às convocações, aos tributos e a outros en-
cargos do império, contando que a agressão não estivesse presente. Su-
portavam com dificuldade essa última, bem submissos para obedecer.
muito pouco ainda para ser escravos.

2. Privernatus, a quem no senado romano se perguntava que paz


os romanos teriam que esperar de]es, disse [75] : "Se nos tratais bem. a
tereis segura e constante;se mal, poucoduradoura." A razão dissoé
dada: "Poderíeis acreditar que um povo ou um homem queira ficar numa
condição que Ihe é repugnante por mais tempo que o necessário?"Assim
é que Camião [76] dizia que o império mais firme é aquele em que se
obedecede bom coração. Os citas [77] diziam a A]exandre: "Entre o
patrão e o escravo não há amizade possível; mesmo no seio da paz sub-
sistem os direitos da guerra." Hermocrates, em Diodoro [78], diz que
"não é tão gloriosovencer quanto usar comclemência a vitória". A má-
xima de Tácito [79] é salutar na vitória: "Excelente 6im das guerras é
muitas vezes terminar perdoando". Há numa carta de César [80], dita-
dor: 'Vamos nos servir de um novo meio para vencer, armemo-nos de
clemência e liberalidade.

[72] .De .BeZ/oJugurfü]zlo, Vl1, 6


[73] Os lacedemânios dizem, em Tucídides (IV. 19): ';4cóamos que o meJZau'nela
para desarmar grandes ódios não é que, após a luta, uma das duaspaües abuse
]e sua superíoddade para impor à outra condiçõesíntoieráveis. Ao contrário,
se puder, dando prova de uma equidade não inferior à coragem que empregou
aa vitóüa, transida da maneira mais moderada possível."
[74] Hfa .4gz7co/ne, 13.
[75] Ttito Lívio, .4b Z:#óe aon(#fa. VIII. 21.4.
[76] Idem, .4b Z:&.óe(bndvéa, Vl11, 13,26
[77] Curtius, ]ivro V]1, 8,28
[78] Diodoro da Sicília, livro Xl11, 19
[79] .4/7na/es,X]1, 19.
[80] Àlarcus Tullius Cicero, E J)fu/ae ad.4fZlbum, IX, 7
XVI

CONSIDERAÇOES
$QlilW
ASCOISAS QUE,SEGUNDO
O DIREITO DAS GENTES.$AQ
/
DESPROWDAS DE POSTLIMINIO

Sumário

1.Ajustiça interna exige que as coisasquenossoinimigo tirou


de outro numa guerra injusta sejam devolvidas.

11. Exemplos.

111.Se alguma coisa pode ser deduzida.

IV Mesmo povos submetidos ou partes de povos devem ser


devolüdas a quempertenciam, seforam injustamente con-
quistadas pelo inimigo.

WEm quanto tempo expira a obrigação de devolver.

VI. O que fazer em casos duvidosos.


1329
CAPÍTULO XVI - CONSIDERAÇÕES SOBRE AS COISAS QUE. SEGUNDO O DIREITO DAS GENTES, SÃO DESPROVIDAS DE POSTLIMíNIO

1.A justiça interna exige queoutro


as coisas
que nosso inimigo tirou de
numa guerra injusta sejam devolvidas
1. Dissemos antes (livro 111,cap. VI) até que ponto, numa guerra

justa, os bens se tornam propriedade daqueles que os tomaram, de quais


bensdevem ser deduzidos aquelesque se recuperam pelo direito de
postlimínio. Esses bens, de fato, são como se não tivessem sido toma-
dos. Quanto às coisas que são obtidas numa guerra injusta, dissemos
(livro 111,cap. X, $ IV) que devem ser restituídas, não somente por
aquelesque as tomaram, mas ainda pelos terceiros nas mãos dos quais
essascoisasforam parar, de que maneira tenha sido, pois ninguém
podetransferir a outro o direito que não Ihe pertence, dizem os autores
dodireito romano [1] , o que Sêneca [2] exp]ica brevemente: "Ninguém
podedar o que não tem." Aquele que por primeiro tomou uma coisa nao
tevea propriedade interna. Nem a terá, por conseguinte, aquele que
detémo direito sobre ele. O segundo, o terceü'o possuidores receberam,
portanto, por este motivo, a propriedade que, para nos dar a entender,
chamamosde externa, isto é, esta vantagem de estar protegido em qual-
querocasiãocomo proprietário pela autoridade e pela mão da justiça.
Se,contudo, se faz uso contra aquele a quem a coisa foi subtraída por
uma ação injusta, não se age como homem de bem.

2. O que os célebres jurisconsu]tos [3] disseram a respeito de um


escravopreso por bandidos que logo tivesse caído nas mãos de seus
inimigos na realidade era um escravo roubado e que o fato de ter estado
em poder dos inimigos ou de ter voltado por postlimínio, não trazia
impedimento à coisa.A mesma resposta deve ser dada, segundo o direi-

tll\ L. 27, Sinoxale, $ ex his, Dlg., De noxal. act.; L. 20, Taditio, Dig., De acq.dom
[2] De .Be/7eÉlcJh,V. 12.

XSA
L. 27, Latrones,Dig., De capa.
1330
H UGO GROTIUS '1
to natural, ao súdito daqueleque, feito prisioneiro numa guerra injus-
ta, caiu logodepois,numa guerra justa ou por outra razão, sobo poder
de outrem. Segundo a justiça, uma guerra injusta não difere em nada
do [atrocínio[4] . Nesse sentido é que, consu]tado, Gregório de Neocesaréia
[5] aprovou, de fato, a circunstância em que certos habitantes do Ponto
haviam retomado dosbárbaros coisaspertencentes a seus concidadãos

11.Exemplos

1. Tais coisasdevempois ser restituídas àqueles de quem ha-


viam sido subtraídas. Vemos que isso foi feito muitas vezes.Tiro Lívio
[6], depois de ter re]atado que os vo]scose os équoshaviam sido vencidos
por L. Lucretius Tricipitinus, diz que o saque foi exposto no Campo de
Morte, a fim de que cada um pudesse durante três dias retomar seu
bem, após tê-]o reconhecido. O mesmo [7], depois de ter contado que os
volscos haviam sido derrotados pelo ditador Postúmio, diz que "uma
parte do saque, reconhecida pelos latinos e os hérnicos como pertencen-
te a eles, lhes foi restituída, tendo o ditador vendido o recto em leilão".
Por outro ]ado [8] , "um espaço de dois dias é concedido aos proprietários
para reconhecerseusbens". O mesmodiz [9], apóster narrado avitória
dos samnitas sobre os campanos: "0 que agradou sumamente aos ven-
cedores,foi o fato de ter resgatado sete mil e quatrocentos prisioneiros e

[4] Aegid. Regius, .De ací. supera., d)kÉlhcÉ.3.Z,duó. Z n. J.g2,


[5] Nisto e]e é seguido por Petr. Ant. de Petra, .De Poíesíaée /) bazbJS,cap. 3 quaest
4; Bruningius, De J7omagzls,concl. 241. Cbn, -r(epJséojae canoa cae)
[6]alto Lívio,.4ó Z:/róe
aon(#fa,]]], lO,l.
[7] Idem, Hb Z:/7óeGo ?alfa, ]V. 29,4

[8] Idem, .4ó Z]/róe (bndlfa, V. 16,7.


[9] Idem, .4ó t/rZ]e ao/](#fa, X, 20,15
1331
CAPÍTULOXVI - CONSIDERAÇÕES SOBRE AS COISAS QUE. SEGUNDO O DIREITO DAS GENTES. SÃO DESPROVIDAS DE POSTLIMÍNIO

um imenso saque que pertencia aos aliados. Um edita do general convi-


douosproprietários a comparecer,num prazofixado, para reconhecere
retomar o que lhes pertencia." Logo a seguir [10], e]e narra um fato
semelhante dosromanos: "Os samnitas se empenharam em se apode-
rar de Interamna, colónia romana, e não puderam se assenhorear da
cidade. Depois de ter devastado o território, como retomassem com sa-

que misto de homens e de animais e de colonos feitos prisioneiros, en-


contrarampor coincidência o cônsul vitorioso que voltava de Lucéria.
Não sóperdem o fruto de seu saque, mas, marchando em desordem em
longa fila atrapalhada pelas bagagens, eles são destroçados. O cônsul,
apóshaver publicado um edita convidando os proprietários a vir a
Interamna reconhecere recuperar seuspertences, deixou seu exército e

partiu para Romã, onde era esperado para os comícios." Em outro local
111],falando do saque que Cornélio Cipião havia levantado junto de
llipa, cidadeda Lusitânia, o mesmoescritor relata: "Os despojosforam
expostostodos diante da cidade. Cadaum teve a liberdade de vir reco-
nhecere retomar o que Ihe havia sido tomado. O resto foi dado ao questor
para ser vendido e o dinheiro resultante dessa venda foi distribuído
entre os soldados." Depois da batalha empreendida por T. Graco em
Benevento, "todo o fruto do saque foi deixado para os soldados, exce-
tuando-seos cativos. Foram excluídos também os animais. Seuspro'
prietários tiveram trinta dias para reconhecê-los", como relata o mes-
mo Tito Lívio [12] .

[10] Idem, .4ó Z:/rõeaondlfa, X, 36,16ss


1111Idem, HÓ Z:/róe(b/]d)fa, XXXV, 1,24
[121[dem, .4ó C/rbe (]0/7dlza,XX]V. 16,5.
1332
H UGO GROTIUS

2. Po]íbio [13] diz de Lúcio Emílio, vencedor dos gau]eses:"Resti-


tuiu os despojos àque]es de quem haviam sido tomados." P]utarco [14] e
Apiano [15] contam que Cipião havia feito o mesmo quando [16] , depois
da tomada de Cartago, encontrou numerosos tesouros oferecidos aos
deuses que os cartagineses haviam tirado de lá, das cidades da Sicília e
de outros ]ugares. Cícero [17] escreve em sua Verrina sobre a jurisdição
da Sicília: "Os cartagineses, tendo tomado outrora Himera que era uma
das mais florescentes e mais ricas cidades da Sicília, Cipião achou que
era digno do povo romano que, terminada a guerra, os aliados retomas-
sem por nossa vitória o que haviam perdido. Assim, depois da tomada
de Cartago, mandou devolver tudo o que pede a todos os sicilianos." O
mesmo [18] se estende bastante ]ongamente sobreessa ação de Cipião,
em seu escrito sobre as estátuas. Os habitantes de Rodei [19] devolve-
ram aosateniensesquatro navios ateniensesque haviam sido tomados
pelos macedónios e que haviam tirado deles.Assim é que o etólio Fanéias
era de opinião que era justo que se devolvesse aos habitantes de Etólia
as coisas que possuíam antes da guerra. Quinctius [20] não discordava,

[13]]7Jhfar7a,
11,31.
[14] HpWáü., 200 B

llS] .Pun., 133

[16] Também Diodoro da Sicília, em .Ercerpfa Pe }esc. (1) e Va]ério Máximo (V. 1,6).
A bo1ldadede Cipião Africano se propagou de modo notáve! e até !cnge. Depois
de se ter apoderado de Cartago, mandou avisar a todos os Estados livres da
Sicíiia para que viessemretomar, por meio de embaixadores,os or1lamentos
que pertenciam a seus templos e que os cartagineseshaviam !evado. Além
disso, que tomassem as medidas necessáriaspara recoloca-!osnos lugares de
onde haviam sido retirados.
[17] /n narre/n.4cílb, 11,35,86
[18] Idem,in Uen'em
.4cf70,
]V 33,73
[19] Tito Lítio, .4ó Z://óe aonde'fa, XXX], 15,5
[20] Idem, .4ó Z]&-Beao/?d)fa, XXX]11, 13,11
1333
CAPITULO XVI - CONSIDERAÇÕES SOBRE AS COISAS QUE. SEGUNDO O DIREITO DAS GENTES, SÃO DESPROVIDAS DE POSTLIMÍNi0

se fosse questão das cidades tomadas na guerra [21] e se os habitantes


da Etólia não tivessem rompido as condiçõesda aliança. Os romanos
também restauraram os bens que outrora haviam sido consagrados em
Efeso e que reis se haviam de]es apropriado [22].

111.Se alguma coisa pode ser deduzida


1. Se coisa semelhante tiver chegado às mãos de alguém pelo
comércio, poderia pagar àquele a quem a coisa foi subtraída o preço por
ele pago?E conforme o que dissemos em outro local (livro 11,cap. X, $ 9)
que essepreço pode ser levado em conta para o montante do que poderia
ter custado ao que havia perdido a coisa, a recuperação da posse do que
dava por perdido. Se semelhantes desembolsou podem ser recuperados,
por que não se recuperaria a estimativa do trabalho e do perigo, do
mesmo modo que se alguém tivesse retirado, mergulhando, uma coisa
de outrem perdida no mar?Ahistória deAbraão me pareceapropriada
para essa questão, quando, vencedor de cinco reis, voltava de Sodoma.
;Ele levou de volta todas essas coisas", diz Moisés (Géz2esh,XIV. 16), a
saber,aquelas que havia enumerado antes e que teriam sido tomadas
por essesreis.

2. Não se deve relacionar a outra coisa a condição que o rei de


Sodoma propôs a Abraço: devolver os prisioneiros e conservar para sl o

resto, por seu trabalho e o perigo enfrentado. Abraão(Gênesis )(IV 20-24),

[21] Pompeu devolveu a Paf]agânia a Abala e a Pilêmenes (Eutrópio, .Breu7arJum


H/kÉar7aeJ?on7anae.
VI. 14). No tratado de aliança entre o papa, o imperador
Carlos V e os venezianos contra Solimano, foi convencionado que cada um
recuperaria o que havia perdido (Paruta, livro IX). Por isso é que Cefalenia,
que havia sido tomada pelos espanhóis, foi devolvida aos .venezianos.Há tam-
bém uma passagem tratando disso em Anna Comnena (XI, 6), na passagem
que trata de Godofredo
[22] Estrabão, ]ivro X]V. 1,26
}334
H ueo GKOTius

homem de espírito não somente piedoso mas também e]evado [23], não
quis nada para ele, mas deu, contudo, como em virtude de um direito
que havia, a décima parte das coisas recuperadas a Deus, deduziu as
despesas necessárias e quis que uma porção do saque fosse distribuída
entre seusaliados.

IV Mesmo povos submetidos ou partes


de povos devem ser devolvidas
a quem pertenciam, se foram injustamente
conquistadas pelo inimigo

Do mesmo modo que os bens devem ser restituídos a seu proprie-


tário, assim também os povos [24] e as partes de povos devem sê-]o aos
que haviam tido um direito de soberaniaou mesmoser restituídos aos
próprios, seeram independentesantes da violência injusta. Assim sa-
bemos de Tito Lívio [25] que, na época de Camilo, Sutrium havia sido

[23] Foi o que observou muito bem Jaquíades, em seu comentário sobre Daniel V.
17. Sulpício(HJkf, Saca.,livro 1, 5) diz de Abraço que 'ê/e dl)&r7óuu o resto do
saque eJltre aqueles de quem havia sido tomado". êmblâs\o ÇDePatriarca., \. Zà
escxewG"Como não exigia recompensa dos homens, eie recebeu uma de Deus.
A conduta de Pittacus e Timoleonte não difere muito disso. 'Como ern oáerec7-
do, com o consentimento de todos, a Pittacus de A4itiiena uma porção do terra
tório que havia sido reconquistado, ele não quis receber essepresente, pensam
]o que era vergonhosodiminuir a glória de suas conquistaspelo tamanho do
saque de que se óeneácubr7a"(Valério Máximo, VI, 5,1).A respeito de Ttimoleonte,
P\utaxco ÇTímoieon,'àll Bà escreve. "Em semelhante caso, não é desonesto
receber, mas émaís bonito recusar, representando isto o mais alto grau de uma
eminente virtude que testemunha de modo ímpar que se pode dispensar coisas
gue ópe/m í7do amó clonar "Verificar o que foi dito no livro 11,cap. XIV $ VI e
cap. IX, $ 1l deste livro

[24] Os exilados de Sagunta foram restabelecidosapós seis anos de exílio. Antonina


devolveu a liberdade aos que haviam sido reduzidos à escravidão na guerra
contra Cássio e mandou devolver os bens a seus antigos donos. Foi assim que
o rei de Castelã e outros príncipes devolveram Calatrava aos cavaleiros dessa
Ordem, os quais .haviam sido dela despojadospelos mouros (Mariana, XI, 25)
Verificar o que foi dito neste livro, cap. X, $ VI. '
[25].4ó Urbe a0/2dl'6a,
V], 3,10
1335
CAPITULO XVI - CONSIDERAÇÕES SOBRE AS COISAS QUE. SEGUNDO O DIREITO DAS GENTES. SÃO DESPROVIDAS DE POSTLIMÍN10

retomada erestituída aosaliados.Os lacedemâniosmandaram de volta


os eginetas e os habitantes de Meios a suas cidades. Os Estados da
Grécia que os macedânios haviam invadido foram devolvidos à liberda-
de por Flamínio [26] . O mesmo também, em seu diálogo com os embai-
xadores deAntíoco, achou justo conceder a liberdade às cidades da Asia
de nome grego que Seleuco, bisavó de Antíoco, havia tomado na guerra
eque o mesmoAntíoco havia recuperado depoisque as havia perdido:
"De fato, colónias não foram enviadas para a Eólia e Jónia para serem
submetidas a uma escravidão real, mas para fortalecer uma raça, para
propagar no mundo uma nação muito antiga" [27] .

V Em quanto tempo expira


a obrigação de devolver

Pergunta-se geralmente também qual é o espaçode tempo pelo


qual a obrigação interna de restituir a coisa pode se extinguir. Essa
questão deve ser decidida entre cidadãos do mesmo Estado, segundo
suas próprias leis, se contudo concedem o direito interior e não se preo'
cupam somente com o direito exterior, o que se deve inferir dos termos
e da intenção das leis, após prudente exame. Entre aqueles que são
estrangeiros uns para com os outros, deve-se julgar segundo a única
conjectura de abandono, conjectura de que falamos em outro local(livro
11,cap. IV), parecendo que isso baste para nosso assunto.

[26] idem, .4b Z:ü'Z)e


(]0/7dlfa,XX]11,32; Xenofonte,J7isf. Graec.,11,2,9
[27] Tito Lívio, ,4ó Z:/róe (bndyfa, XXX]V. 57,13
!336
H UGO GROTIUS

VI. O que fazer em casos duvidosos

Se a justiça da guerra é realmente duvidosa, o melhor seria se-


guir o conselho de Aratus de Sicyo [28] que, de um dado, persuadiu aos
novos proprietários a preferir receber dinheiro e abandonar o que pos'
guiam, e de outro, aconselhouaosantigos proprietários considerar como
mais vantajoso receber em espécie o valor de seu bem do que recuperar
aposse dele.

128] Marcus Tullius Cicero [106-43 a.C.], Oe O/Zc/)s. 11. 23.82 Foi o que fez
Ferdinando, segundo relato de Mariana (livro XXIX, cap. 14).
XVll

CONSiPEKAÇQE8
SOBREAQUELESQUESAO
NEUTROSNAGUERRA

Sumário

1. Não se de ve tomarnada daqueles que são neutros, a não ser


em extrema necessidade com restituição do preço-

11.Exemplos de abstenção e preceitos.

[[[. Qual o dever dos neutros a respeito dos beligerantes.

!1
.E
1339
CAPÍTULO XVll - CONSIDERAÇÕES SOBRE AQUELES QUE SÃO NEUTROS NA GUERRA

1. Não se deve tomar nada daqueles


que são neutros, a não ser em extrema
necessidade com restituição do preço

Poderia parecer supérfluo falar daqueles que não são compreen'


lidos na guerra, porquanto consta de modosuficientemente claro que
nenhum direito de guerra existe contra eles. Como por ocasião da guer-
ra muitas coisassãoordinariamente empreendidascontra eles,sobpre-
texto de necessidade, sobretudo se forem vizinhos, deve-se acatar aqui
brevemente o que dissemos em outro local (livro 11,cap. 11,$ X): que,
para que a necessidade dê algum direito sobre o bem de outrem, deve
ser extrema; que é requerido a mais que uma necessidade igual não
exista para o próprio proprietário; que mesmo quando a necessidade é
constatada, não se deve nada tomar além do que ela exige; isto quer
dizer que, se a guarda de uma coisa basta, não se deve tomar o uso; que
se o uso é suficiente, não se deve tomar o direito de dispor da coisa; que
se é preciso dispor dela, o preço da coisa deve, contudo, ser restituído.

11.Exemplos de abstenção e preceitos


1. Como uma necessidade extrema o coagisse, ele e seu povo, a
passar pelo território dos idumeus, Mloisés(.Alma'os, XX, 17) diz pri-
meiramente que só passará pela via principal e que não invadirá os
camposcultivados ou os vinhedos e que, tendo necessidadede sua água,
pagaria por ela. Os célebres chefes dos gregos e dos romanos ülzeram a
mesmacoisa. Em Xenofonte [1] , os gregos servindo sob C]earco prome'
tem aos persas passar por suas terras sem lhes causar danos e que, se
lhes fornecessemvíveres a comprar, não tomariam de ninguém ali-
mentos nem bebidas.

li] Expert. (ZFcÚ11,3,23


1340
H UGO Gxotius

2. Dercilides, segundo o relato do mesmo Xenofonte [2], "condu-


ziu suas tropas pelas terras amigas, de tal modo que os aliados não
tiveram dano algum".Tito Lívio [3] diz dorei Perdeu:"Ele retornou
para seus Estados através da Ftiotida, daAcaia e da Tessália, sem fazer
qualquer estrago nem mal algum às terras pelas quais passou." Plutarco
[4] fala do exército do espartanoAgis: "Era objeto de admiração para as
cidades, atravessando o Peloponesoem ordem, sem causar dano a nin
guém e quase sem barulho" [5]. Ve]]eius [6] diz de fila: "Dava a impres-
sãoque tivesse vindo para a ltália não para mover guerra, mas para
estabelecer a paz, tanto ao se dirigir para a Campónia, conduziu seu
exército através da Calábria e da Apúlia com ordem, tomando um cui-
dado particular com as searas, os campos, as cidades, as pessoas." Cícero
[7] fala assim de Pompeu o Grande: "Suas legiões chegaram na Agia,
sem poder dizer que não somente as mãos, mas mesmo os pés de tão
grandeexército tivesse prejudicado a qualquer povoneutro." Frontino
[8] se exprime assim a respeito de Domiciano: "Quando acampava nas
fronteiras dos ubianos, ordenou pagar o preço dos frutos da terra ocupa'
da pelos esquadrões e a notícia de ação tão justa atraiu para si o respei-
to de todos." Falando da expedição de Alexandre Severo contra os par'
tas, Lampridas [9] diz: "Observou uma disciplina tão exata, inspirou
tanto respeito que seus soldadosnão eram chamados de guerreiros,

[2] J7Jsé. G?'aec., ]ll, l,lO

[3] HÓ Z:/róeCbndJ'éa,
XLI, 22,6.
[4] .4g7s,801 D.

lõ] Plutarco (371 D) dá semelhante testemunho a respeito de Titus Quintius


Flaminius

[6] HJsfor2b -Rama/?a, 11, 25

l71 /)ro ZeFe .4/an/7lb, 13, 39. Também Plutarco, em /)ompeius(624 A): ';gaóedor que
seus soldados se comportavam com desleixo, mandou colocar uma marca eln
suas espadas; quem leão a conservasse,seria punido
[8] SÓmf., 11, 11,7

[9] .mexa Jder gere/'us, 50


1341
CAPÍTULO XVll - CO.NSIDERAÇÕESSOBRE AQUELES QUE SÃO NEUTROS NA GUERRA

mas de senadores. Em todo lugar por onde seus soldados passavam, os


tribunos estavam cingidos de suas armas, os centuriões cheios de re-
serva, os soldados, amáveis. Quanto a ele, todas as províncias o rece-
biam como um deus, por causa de tantos e tamanhos bens que lhes
proporcionava." Latinus Pacatus [10] diz dos godos [11] , dos hunos, dos
alanos que estavam a serviço de Teodósio:"Não havia entre eles nem
tumulto, nem confusão, nem pilhagens, como ocorria com os bárbaros.
Mais ainda, quando o trigo vinha a faltar, suportavam pacientemente a
fome e procuravam aumentar por sua economiaas provisões que ha-
viam diminuído." Claudiano [12] atribui a mesmaconduta a Stilicon:
"A tranqüilidade foi tão grande, tão grande foi o temor que respeita o
que é honesto, sob teu comando, que nenhuma videira ou nenhuma
seara que foram objeto de furto fraudaram o cultivador de sua colhei-
ta." E cuidas a atribui a Be]isário [13] .

[10] Panegyrl'cum, 32.


[11] Encontramos muitas coisas sobre a moderaçãodesta nação em Cassiodoro,por
exemplo, em [gr7'as (V. ]O, 11, 13). No mesmo livro, (.Hpilsfo/a 26),.se. pode ler:
Não devasteis as casas, nem os prados dos donos, mas empenhei-vos para
serdes moderados em tudo, a nlm de que possamosnos regozijar pelos elogios
que vos serão tributados. Não suportemos voluntariamente o peso do serwço
militar para que a brandura e a ponderação sejam conservadas intactas nos
/homens a 'medos. " No livro IX, EJ7]kfo/a 25, há o seguinte: 'iscas a/'mas nâo
prejudicaram a nenhum dono de propriedade.
[12].DeOonsuJafu
SZl7zcüo/aii,
1, 162ss.
[13] Procópio, seu companheiro e testemunha de suas ações,elogia seguidamente
esta virtude em Belisário. Ver um notável discurso dele, com relação a isso,
dirigido a seus soldados, à Vista da Sicília, quando prosseguia para a Africa e a
releio de sua mai'cha pela Africa (UandaJlc.,1, 12 e 17). Eu ataria por inteiro a
passagem seguinte, extraída de GoffáJC.,111,1: 'Be/Jkár70se comportava com
tanta solicitude para com o$ habitantes dos camposquejamais tolerada qual-
quer violência por parte dos exércitos que c.onlandava.Pelo, contrário, sua
passagem os enriquecia a todos porque vendiam suas mercadorias aos solda
dos pelo preço que bem entendiam.' Quando as searas estavam maduras, eJe
tomava as medidas mais cautelosaspara que não fossem destruídas pela cava-
laria e a ninguém era permitido sequer tocar nos frutos que.pendiam das
ardores." Ver'bm .4/anui/ Gomneno(i, 4), de Nicetas, um elogio similar aos
alamanos, por ocasião de sua expedição ao Santo Sepulcro. Gregoras (IX, 5)
elogia a mesma moderaçãonos venezianos: 'Wão óav/a .n nguém gue nâo
Hlcasseadlnírado pela disciplina dos venezianose sua grandeza de alma junta-
mente co n sua justiça. Ninguém, de fato, de todo o exército,tocava em qual
quer coisa antes que por eia tivesse pago.
1342
H U GO GKOiiUS

3. Isso é o que produzia o cuidado meticuloso em prover às coisas


necessárias [14], o so]do pago em dia e o vigor da discip]ina, dos quais se
encontra emAmiano [15] uma dasleis: "As terras dosneutros não de-
vem ser pisoteadas". E emVopisco [16]: "Que ninguém tome o õ'ango de
outro, que ninguém toque na ovelha de outrem, que ninguém colha um
cacho de uva, que ninguém estrague os trigais, não tome à força óleo,
nem sal, nem lenha." De igual modo em Cassiodoro[171:"Que vivam
com os habitantes das províncias segundo as regras do direito civil, que
o espírito não se torne insolente por estar de possede armas, pois 0
escudo de nosso exército deve dar tranqüilidade aos que não são solda-
dos."Acrescente-sea isso estepensamento de Xenofonte [18], no ]ivro V]
de sua Expedlbão."Nenhum Estado amigo deve ser coagido a nada dar
a contragosto.

4. Segundo essaspassagens, pode-se interpretar perfeitamen-


te esta opinião de um grande profeta, para dizer melhor, daquele
que é maior que um profeta (.Lacas, 111,4): "Não uteis de vio]ência,
nem de fraude]19] para com ninguém, mas contentai-vos de vosso

[X4] Plínio, em Natura/is Hikéor7a(XXV],4), escreve:'7)ergueos generais romanos


sempre tiveram o cuidado de proteger o comércio durante as guerras?"
Cassiodoro(iV. 13) diz: "Quec, soldado fenda do qué?comprarpara não ser
/prado a saquear"Coisas similares volta a repetir em V 10 e 13

[15] Livro XVl11, 2,7. Também no ]ivro XX], 5,8


[16].4ure/]bnus, 7
[17] }grJbs, V]1, 4
[18].4JlaÓaSh,
V], 2,6
[19] ".4 ca/umnJa" pode ser traduzido por "a /ap/na", pois nesse sentido é que foi
tomado na versão grega (JÓ, XXXV, 9i Sa.ímo 119, 122i /boréró os XIV. 31,
XXl1, 16 e XXVl11, 3; .Eb/es/bsées,IV. 1; Z,ew'Zlbo,XIX, 11). A Uu7gafatraduz esta
mesma palavra por "deEraudard'(.Lacas, XIX, 8)
1343
CAPITULO XVll - CONSIDERAÇÕES SOBRE AQUELES QUE SÃO NEUTROS NA GUERRA

soldo" [20] .Aisso se parece esta passagem deAureliano, em Vopisco, no


local citado: "Que cada um se contente com sua colheita, que viva do
saquefeito ao inimigo, não das lágrimas doshabitantes das provín-
cias." Pode-se pensar que isso é bonito para dizer, mas impossível de
executar. Esse homem divino, de fato, não poderia dar o aviso ou os
sábios autores das leis não o teriam prescrito, se tivessem achado que
isso não poderia ser cumprido. Enfim, é necessário que notemos que
uma coisa pode ser feita, quando a queremos feita [21]. Por isso é que
citamos exemplos, aos quais se pode acrescentar este fato notável que
Frontino122] relembra, de Scaurus]23], a respeito de um pomar que o
traçado do acampamento havia incluído em seus limites e que foi deixa-
do, no dia seguinte, após a partida do exército, sem que fruto algum
houvesse sido tocado.

5. Tiro Lívio [24], depois de ter contado que os soldados romanos


sehaviam conduzido com insolência no acampamento perto de Sucron
e que alguns dentre eles, durante a noite, haviam exercido pilhagens

[20] Sobre esta passagem de nucas, Ambrósio (11,77) diz: ;H razão pe/a qua/ o se/da
foi estabelecido é para impedir que, procurando se reembolsar, não se chegue
a enriquecer pe/os saques."Agostinho transcreveu estas palavras(Se/mo XIX,
Z)e UarÓls.DamlnJ'secundam .ã/afíZaeum -- SerenoLXXXll, 1, in apêndice). A
respeito disso, há belas ordenaçõesem Gregório de Touro (11, 37); nas Capitu-
lar;s de Carlos e de seus sucessores(livro V tit. 189); nos concílios da França
(tomo 11);nas Capitulares de Luas o Piedoso (tomo 11,cap. XIV e tomo 111);no
concílio de S. Macram. Acrescente-se a Z,ex .BafoarJorzm(tit. 11,5). Guntherus
assim refere uma lei de Frederico l(Z,zkü/:zn., Vl1, 299ss.): 'Se dIgNam ííveZ'
incendiado os camposou as casasdo habitante pacífico, sua testa será marcada
por um sinete, depois de terem sido raspados seus cabelose, expulso do acam-
pamento, deverá se afastar, depois de ter levado grande número de chibatadas.

[21] Assim pensa Guichardin (livro XVI).


[22] SÉrafeg, ]V. 3,13.

[23]Ver Spartianus sobre a severidadecom que agiu Niger por causado roubo de
um galo.

[24] .4ó Z://Z)e ao/]dlfa, XXV]11, 24,9


1344
H UGO GROTI US

num território neutro dosarredores,acrescentaque "em toda parte o


capricho e o relaxamento do soldadovaliam como lei, que não havia
mais regra, nem disciplina militar". Há ainda do mesmo escritor outra
passagemnotáve] [25], em que seconta a marcha de Filipe nas terras
dos denteletas: "Eles eram seus aliados, mas pressionados pela falta de
mantimentos, os macedónios degolaram seu território como um país
inimigo, pilhando primeiramente as diversas granjas que se encontra-
vam em sua passagem,depois devastando mesmovários povoados,para
grande vergonha do rei que ouvia a voz de seus aliados implorando em
vão seu nome e os deuses protetores dos tratados." Em Tácito [26], a
fama de Pelignus é odiosa porque ele pilhava mais seus aliados que
seus inimigos. O mesmo [27] observa que os soldados de Vitélio perma
neciam ociosos em todos os municípios da ltália e só se tornavam incon-
venientes a seus hospedeiros. Aacusação seguinte se encontra em Cícero
[28], a propósito da pretura urbana: "Tivesseso cuidado de mandar
saquear e maltratar as cidades neutras de nossos aliados e de nossos
amigos.

6. Não posso omitir aqui a opinião dos teó]ogos [29] que considero
como verdadeira, que o rei que não paga aos soldados o soldo que lhes
deve não é somente obrigado com eles pelos danos que disso decorrem,
mas que o é ainda para com seus súditos e vizinhos que os soldados,
coagidospela fome, maltrataram.

l2õl 4b [/róe Cb/zdl'fa,XL, 22,10-11.


[26] -/{nnaJes, X]1, 49

[27]]7lkíar7be,111,2
1281 /n Marram ,4aflb, 1, 21,26

i291 Aegid. Regius, Z)e acf óus s /pera?afu/'allÓus. dispus. 31: dub. 7. n. 95.
1345
CAPÍTULO XVll - CONSIDERAÇÕES SOBRE AQUELES QUE SÃO NEUTROS NA GUERRA

111.Qual o dever dos neutros a respeito dos beligerantes


1. Em contrapartida, o dever daqueles que se mantêm fora da
guerra é de nada fazer que possa tornar mais forte aquele que sustenta
uma causa injusta ou que impeça os movimentos daquele que faz uma
guerra justa, segundo o que foi dito antes (livro 111,cap. 1). Em casos
duvidosos,ter uma conduta igual entre os dois no que diz respeito à
permissão da passagem, os víveres a fornecer às ]egiões [30] , a recusa
de socorro aos sitiados. Os corcirenses, em Tucídides [31] , dizem que é
dever dos atenienses, se não quiserem tomar partido, impedir os coríntios
de fazer algumas retiradas no território ático ou permitir a eles a mes-
ma coisa.Os romanos criticam Filipe, rei da Macedõnia, por ter violado
duplamenteo tratado, tendo de uma pane perpetrado injúria aosalia-
dos do povo romano e tendo, de outra, assistido seus inimigos com tro-
pas e dinheiro. Tullius Quintius, em seu encontro com Nabos, insiste
sobreas mesmas coisas [32] : "Não vos ofendi, dizeis, não violei vossa
amizade e vossa aliança. Quantas vezes é preciso que eu vos prove que
o fizestes? Não quero, contudo, entrar nesses detalhes. Resumo tudo
em poucas palavras. Como é que se viola uma aliança? Sobretudo de
duas maneiras: tratando de modo hostil os aliados de seus amigos e
juntando-se a seus inimigos.'
2. Em Agátias [33] se pode ]er que é inimigo aquele que faz o que
agrada ao inimigo. Em Procópio [34] , que é considerado fazer parte do
exército inimigo [35] aque]e que fornece ao exército intmlgo as coisas

[30] Ver um exemp]onotável a respeito, em Paruta (livro VIII)


[31] Livro 1, 35
[32] Tito Lívio, .4ó Z:/róe Cbndlfa, XXXIV. 32, 14.
[33] Livro IV. 4, no começo
[S41 Café/zjc., 1, 3
[35]Ao contrário, na carta de Amalasunta a Justiniano, diz-se que deve ser justa
mente chamado de amigo e aliado, não somente aquele que junta suas armas
a }..á". ....nlo
às vossas, mas tam n .p nhprtnmente fornece tudo o de que a

guerra precise
1346 H UGO GKOíiUS

que servem de modo próprio para a guerra. Demóstenes [36] havia dito
outrora: "Aquele que faz e trama coisaspara me fazer prender é meu
inimigo, mesmo se não me agride e sequer lança um dardo." Mlarcus
Acilius [37] declarou aos epirotas, que não haviam ajudadoAntíoco for-
necendo-lhe soldados, mas que eram acusados de Ihe ter enviado di-
nheiro, que não sabia se devia conta-los entre os inimigos ou os neutros.
O pretor Lúcio Emílio [38] acusou os habitantes de Teia de ter fornecido
víveres à frota inimiga e de Ihe ter prometido vinho, acrescentando que
se eles não dessem as mesmas coisas à frota romana, ele os considera-
ria como inimigos. Convém citar também as palavras de CésarAugusto
[39] que "um Estado que aco]he o inimigo perde o direito da paz:

3. Seria mesmo vantajoso seunir por aliança com as duas partes


beligerantes, de tal modo que seja permitido se abster da guerra com a
concordância de uma e outra e de prestar a ambas os deveres comuns
de humanidade. Há em Tito Lívio [40]: "Desejama paz,como convéma
amigos neutros e não intervêm na guerra."Archidamus, rei de Esperta
[41], escreveu aos e]eanosque pareciam se inc]inar para o dadodos
arcadianos uma carta contendo somente isso: "Ê bom manter-se
quieto.

136] PnJ7ÚPP.,111,17.

137]Tiro Lívio, .4ó Z:ãóeaondlfa, XXXVI, 35,9


[38] Idem, .4ó Z:/róe (hndlfa, XXXV]1, 28,2

[S9] Plutarco, Ba'ufus, 1011 D.

[40] ..4ó HrzJe aondlfa, XXXV. 48,9

[41] Plutarco, Hpopáíüegm., 219 A.


XVlll

DAS COISAS QUE


NUMAGUERRA
PUBLICA. SAO FEITAS
DE MODOPRIVADO

Sumário

1. Expõe-se, com distinção do direito natural, do direito das


gentes e do direito civi! se épermitido, comopúvado, prejudi
car o inimiga.

11.0 que épermítÍdo segundoajustiça interna contra osinimi-


gos,para aqueles quê fazem a guerra a suas expensasou
equipara na vias?

il!. O quelhes épermitido com relação ao Estado do qualsão


membros?

IV O que deles exige a regra da caridade cristã?

\4 Coillo a guerra privada se !nístura com a guerra pública.

VI. Explica'se colll unia distinção a que está obrigado aquele


que prejudicou o ínii}3igo sell] ter recebido ordem para
1349
CAPÍTULO XVlll - DAS COISAS QUE, NUMA GUERRA PÚBLICA, SÃO FEITAS DE MODO PRIVADO

1. Expõe-se, com distinção do direito natural,


do direito das gentes e do direito civil
se é permitido, como privado, prejudicar o inimigo
1. A maior parte das coisas que dissemos até o presente se apli-
cam àqueles que têm autoridade absoluta na guerra ou que executam
as ordens do soberano. Deve-sever também o que é permitido aoscida-
dãosprivados na guerra, segundoo direito de natureza,o direito divino,
o direito das gentes. Cícero conta no 7}afado dos.Demores[1] que o fi]ho
de Calão, o Censor, era soldado no exército do general Popilius, mas
que,logo depois,a legião da qual fazia parte foi licenciada; comoesse
jovem, por amor ao combate tinha ficado apesar de tudo no exército,
Calão havia escrito a Popilius para que seu filho, se quisesse ficar no
exército, o comprometesse ao serviço por um segundo juramento, acres-
centando, como razão, que o primeiro juramento havia sido anulado e
não poderia mais legitimamente combater contra os inimigos. Anexa os
próprios termos da carta de Calão a seufilho, pelos quais o adverte a se
guardar de se engajar no combate, porquanto não é regra que aquele
que não é soldado combata contra o inimigo. Assim é que lemos que
Crisanto [2] , so]dado de Cito, foi e]ogiado [3] porque, prestes a ferir um
inimigo, embainhou a espada logo que ouviu tocar a trombeta. Segundo
Sêneca [4], "é um mau so]dado aquele que não obedece ao sinal dado
para aretirada

2. Aqueles que pensam que isso vem do direito das gentes externo
se engana. Se for considerado esse direito, do mesmo modo que é permi-
tido a todo indivíduo se apoderar da coisa inimiga, como dissemos antes

[1] Z)e0áZ7'clãs,
1, 11,36
[2] Ver Xenofonte, (an ]ilsfzfuÉloJle, ]V. 1,3.
[31 P[utarco, Quaesf. Xom. 39 (273 F) e ]Uarc'e/7us(317 D)
[4] Z)e /ra, 1, 9
1350
H UGO GKOiiUS

(livro 111,cap. VI), assim também é permitido matar um inimigo, pois


em virtude desse direito os inimigos não sãoobrigados a absolutamente
nada. O aviso que Calão dava provém da disciplina militar romana, da
qua[ essa]ei fazia parte, segundo a observaçãode Modestino [5]: aque]e
que não obedecesse às ordens dadas seria punido de morte, mesmo se a
coisa tivesse se tornado boa. Considerava-se como não tendo obedecido

ordens mesmo aquele que, sem o comando do general, tivesse combati-


do fora das fileiras contra o inimigo, como nos informam as ordens de
Manlius [6]. O motivo disso éque, sefossepermitido livremente, ou os
postos seriam abandonados ou, maior desordem ainda, o exército ou
uma parte dele seencontraria empenhadaem combatespouco impor-
tantes [7]. Era abso]utamente necessário evitar isso. Por isso, quando
Sa[ústio [8] descrevea discip]ina romana, sa]ienta: "Na guerra, muitas
vezes foram punidos aqueles que haviam combatido contra o inimigo,
apesar das ordens que lhes haviam sido dadas e que, chamados de volta
do combate, sehaviam retirado muito tardiamente." Um lacedemânio
[9] que, prestes a atacar um inimigo, tinha detido o golpe porque acaba-
ra de ouvir o sinal de retirada, apresentoucomorazão que "é melhor
obedecera seuschefesdo que matar um inimigo". P]utarco [10] dá
como razão, pela qual o que está liberado do serviço militar não pode
matar um inimigo, a de que não está mais sujeito às leis militares.
A estas devem obedecer aqueles que marcham para o combate. Em

\:)ÀL. 3, Desertorem, Dig., De re milit.


[6] Tito Lívio, ,4ó Z:/róe (bndlfa, VIII. 7,22

[7] Avidius Cassius justificava assim sua ordem: ':PodgrT# cave/' aJgu// a e/zlóosca
dn. "E o que conta Vulcatius em .4uldl'us (hsslus, 4
[8] Z)e ao/Z/u/aÉJone Câf77ihae, IX, 4
[9] Plutarco, .4popáÉüegm., 236 E
[10] Plutarco, G?uaesf. J?oJn., 273 E.
CAPÍTULO XVlll - DAS COISAS QUE. NUMA GUERRA PÚBLICA. SÃO FEITAS DE MODO PRIVADO

Arriano [11] , Epicteto, ao relatar o fato que acabou de ser contado sobre
Crisanto, diz: "Assim agiu porque Ihe parecia preferível seguir a vonta-
de de seu general do que a sua própria.

3. Se observarmos o direito de natureza e o direito interno, pare

ce que seja permitido a cada um fazer numa guerra justa e dentro do


justo limite do exercício legítimo das hostilidades o que acredita poder
ser vantajoso ao lado que é inocente, não contudo de se apropriar das
coisas tomadas porque nada Ihe é devido a ele mesmo, salvo talvez que
não sejapara infligir uma penajusta, em virtude do direito comum dos
homens. Pode-sever, segundo o que foi tratado antes (limo 11,cap. XX,
g X), como esseúltimo direito foi restringido pela lei do Evangelho.

4.Aordem pode ser geral ou particular. Geral, como por ocasião


de tumulto, entre os romanos, o cônsul dizia [12]: "Que aqueles que
queiram salvar a República me sigam." Mais ainda, por vezes se dá aos
súditos tomados individualmente o direito de matar, mesmo fora de sua

própria defesa,quando o bem público assim o requer [13] .

11.0 que é permitido segundo a justiça interna


contra os inimigos, para aqueles que fazem
a guerra a suas expensas ou equipam navios7
1. Podem ter uma ordem particular, não somente aqueles que
recebemum pagamento, mas também aqueles que servem a suas
expensase mais ainda aqueles que sustentam uma parte da guerra a

[11]Livro 11,6
[12] Servius, comentários à .Ene/da, l
t\3À Cod.111,27, Quando !iceat unicuique, L. ! e 2.
1352
H U GO GKOíl US

suas expensas, por exemplo, equipando e mantendo navios a suas pró-


prias custas, pessoas às quais se deixa de ordinário os saques que fize-
rem em lugar do soldo, como dissemos em outro local (livro 111,cap. VI,
l$XXIV). Não é sem razão, porém, que se pergunta até onde isso possa
se estender sem ferir a justiça interior e a caridade.

2. Ajustiça considera o inimigo ou o próprio Estado com o qual se

faz contrato. Dissemos que se pode tirar do inimigo, em vista da segu-


rança, mas com o encargo de restituir, a posse de todas as coisas que
podem entreter a guerra: a própria posse até a compensação do que,
desde o começo da guerra, ou em virtude de um fato posterior, é devido
ao Estado que faz uma guerra justa, seja que os bens pertençam ao
Estado inimigo, seja que pertençam a privados, mesmo inocentes indi-
vidualmente. Quanto aos bens dos culpados, podem também ser tirados
a título de punição e ser adquiridos daqueles que os tomaram. Os bens
inimigos se tornarão, pois, para o que diz respeito ao inimigo, proprie-
dade daqueles que sustentam uma parte da guerra a suas custas, na
condição que o limite que expressei não seja ultrapassado, o que deve
ser objeto de uma justa estimativa.

111.0 que lhes é permitido com relação


ao Estado do qual são membros9

A respeito do Estado que se serve, a coisa seria Justa segundo a


justiça interior se houver igualdade no contrato, isto é, se as despesas e
os perigos respondem à esperança incerta de saque, pois se essa espe'
rança vale muito mais, seria preciso devolver ao Estado o que exceder.
Seria precisamente como se alguém houvesse comprado a um preço
muito baixo um conjunto de redes, inc.errona verdade, mas contudo
í'ácil e de grande esperança de auferir lucro
!353
CAPÍTULO XVlll - DAS COISAS QUE. NUMA GUERRA PUBLICA. SAO FEITAS DE MODO PRIVADO

IV O que deles exige a regra da caridade cristã?


De resto, mesmo quando a justiça estritamente dita não é lesa-
da, pode-se pecar contra o dever que consiste no amor que se deve ter
para com todos os outros, sobretudo contra aquele que a lei cristã nos
prescreve, como, por exemplo, se parece que tal depredação prejudica-
ria principalmente não à massa dosinimigos ott ao rei ou aosque são
pessoalmente culpados, mas a inocentes e isso a tal ponto que os mer-
gulhasse em desastres consideráveis, desastres que se revestiriam de
desumanidade mesmo para aqueles que são nossos devedores princi-
pais. Acrescente'se a isso que, se essa devastação não contribui de modo
notáve[ [14] para terminar a guerra ou para cortar as forças públicas
dos inimigos, então se deve considerar como indigno de um homem de
bem, sobretudo de um cristão, tirar proveito somente da infelicidade
dos tempos [15].

V. Como a guerra privada


se mistura com a guerra pública
Ocorre também às vezesque por ocasiãode uma guerra pública
nasce uma guerra privada. Quando, por exemplo, alguém é encontrado
pelos inimigos e que corre perigo de vida e dos bens. Em tal ocorrência
se deverá observar o que dissemos em outro local (livro 11, cap. 1, $ 111)
sobre a medida permitida na própria defesa. A autoridade pública se
junta ordinariamente também ao interesse privado, como quando al-
guém,vítima de um grande dano por parte dos inimigos, obtém o direi-
to de ser indenizado com os bens dos inimigos. Esse direito se deve
regular segundo o que foi ensinado antes, com relação à tomada de
penhores (livro 111,cap. 11,$ 11).

[14] Silvestr., ]J] Ueróo .Be/7um, n. & vens. 5.

[15] Esta é a razão peia qual Plutarco acusa Crasso (C>assus, 543 B): ':E7eacumu/ou
a ilaaior parte de seus bens com o fogo e a guerra, aproveitando-sedas calami-
dades públicas enl seu próprio beneficio
1354
H UGO GROTIUS

VI. Explica-se com uma distinção


a que está obrigado aquele que prejudicou
o inimigo sem ter recebido ordem para tanto

Sealgum soldadoou qualquer outro, mesmonuma guerra justa,


queimou edifícios dos inimigos, devastou seus campos e causou outros
danos semelhantes, sem ter recebido ordem, acrescente-se sem que hou-
vesse necessidade, nem justo motivo de o fazer, os teó]ogos [16] ensinam
com insistência que é obrigado a reparar o dano causado. Acrescentei
com razão "sem que houvessejusto motivo de o fazer", o que foi omitido
por eles, pois se houver algum motivo, seria talvez responsável diante
de seu Estado, do qual transgrediu asleis, mas não obrigado para com
o inimigo, a quem não fez nenhuma injúria. O que um certo cartaginês
respondia aos romanos que pediam que Ihe entregassemAníbal não é
diferente: "Penso que a questão é de saber, não se a empresa contra
Sagonte foi o resultado de uma vontade pública ou pessoal,mas sefoi
legítima ou injusta. Somente a nós, de fato, per'tendeo direito de inter-
rogar e de punir nosso concidadão se, por sua conta, transgrediu nossas
ordens. Um só ponto resta a discutir convosco:era permitido pelo trata-
dofazerisso?

[t6] Silvestr., /n UerÓo .Be/7uJ??, paJ«le /


Xlx

DAA(ANUTENÇAQ
DA PALA\aU
ENTREINIMIGOS

Sumário

1.A manutenção da palavra é devida aos inimigos, quaisquer


que sejam.
11.Refuta-se a opinião que nega que se deva manter a palavra
com os bandidos e os tiranos.

111.Apresenta-se solução ao argumento de que tais pessoas


merecem uma punição e mostra-se que isso não deve ser
levado em consideração, quando se tratou com elas como
tais.

IV O fato de que a promessa foi extorquida pelo temor não se


constitui em obstáculo,se a violêncianão foi feita àquele
que prometeu.

V Ou se um juramen to veio sejuntar, mesmo que diga respeito


somente aos homens, pode ser violado impunemen te con tra
uln bandido
VI. As inesnlas coisas são aplicadas aosindivíduos rebeldes.
VII. Descreve-se uma di6lculdade especial, relativa às promes
sas citas aos súditos e extraída do domínio eminente.
?'l11. Mostra-se que tais promessas são a&r11aadas pelo jura
mento do Estado.

iX. Ou se um terceiro se interpõe a quem se faça a promessa.

X. De que maneira sepode efetuar a mudança do Estado poético.

XI. A exceçãode violência não se aplacaà guerra solene do dírei-


Lo das gentes.

XII. O que se deve entender de uma violência que o direito das


gen tes reconh ece.

Xli!. Que se deve manter a palavra mesmo para com os pér-


fidos.

XIV. Não, se a condição viera 41altar,o que teria }ugarse um não


cumprisse uma parte de suas con menções.

XV. Nem, se uma justa compensação se opõe.


XVI. Embora em virtude de outro contrato.

XVII. Ou de um prejuízo causado.

XVIII. E mesmo de uma pena.

XIX. Coma essas coisas ocorrem na guerra.


1357
CAPÍTULO XIX - DA MANUTENÇÃO DA PALAVRA ENTRE.INIMIGOS

1. A manutenção da palavra é devida


aos inimigos, quaisquer que sejam
1. Dissemos que o que é permitido e que a extensão do que é
permitido na guerra sãoconsideradosem parte pura e simplesmentee
em parte comrelação a uma promessaanterior. O primeiro ponto já foi
analisado, resta o segundo, que é relativo à palavra dos inimigos entre
si. Há uma passagem excelente de um cônsul romano, em Silius ltalicus
[1] : "Perfeito é para o serviço das armas aquele que nada tem tanto a
peito comoguardar no meio das guerras a pa]avra jurada" [2] Em Éeu
discurso sobreAgesilau, Xenofonte [3] diz que "não há nada de tão gran-
de,nem de tão louvável em todas as pessoasseguramente, mas princi-
palmente nos chefes de exércitos, que ser e passar por observantes da
lealdade e da boa-fé." Em seu quarto discurso sobre Leuctres, Aristides
[4] diz que "é sobretudo respeito à paz e às outras convenções públicas
que se reconhecem os amigos da justiça". O mesmo disse Cícero [5] , em
seu livro .DeãmZ)us."Não há ninguém que não elogie e não aprove esta
qualidade da alma, em virtude da qual nenhum fim interesseiro é per-
seguido, mas a palavra é mantida, mesmo contra o próprio interesse.

2.A palavra pública, comoé dito em Quinti]iano [6], pai, faz as


tréguas entre os inimigos armados, guarda intactos os direitos das ci-
dades que se renderam. Em outro local, no mesmo escritor [7], se diz

[1] raDIca, X]V. 169ss


l21 Em Apiano (Be//. CJrz7.,IV, 68), o filósofo Arquelau diz: 'Vós se/asfes vosso
ralado por um juramento, vós vos destes as mãos. Isso tem força, mesmo
contra inimigos."D\aê.ara à.aS\clNxa.ÇExcerpta Peiresc., De Virtutibus et Vitais.\Ü
elogia Cipião, o Africano, por essa virtude.
IS].4gesT7as,
111,5.
[4] Z,eucÓÚca, ]V.

[5] .De ,ZQIII'ÓUS,


V. 22,63
[6] .Dec/amaÉI'o/les, 267
[7] .Z)ec7amaÉ70/1es, 343
'H

1358
H UGO GROTIUS

que "a boa-fé é o supremo vínculo das coisas humanas, que o mérito da
palavra mantida entre inimigos é uma coisa santa". Assim é que
Ambrósio [8] diz também: "Consta que, mesmo na guerra, se deve guar-
dar a palavra e a justiça." E Agostinho [9] : "Quando a pa]avra é dada,
deve ser mantida mesmo para com um inimigo a quem se move guer-
ra." Isso porque aqueles que são inimigos não deixam de ser homens.
Todosos homens que chegaram ao uso da razão estão aptos a adquirir
um direito em virtude de uma promessa. Em Tito Lívio [lO], Camilo
diz: "Entre ele eos faliscoshá uma sociedadeque a natureza criou."

3. E dessa comunidade de razão e de linguagem que nasce essa


obrigação de que falamos (livro 111,cap. 1, $ XVIII), proveniente.da
promessa. Não se deve certamente pensar que, porque dissemos que,
segundo opinião de grande número, é permitido ou isento de falta men-
tir ao inimigo, isso possa por uma razão igual se aplicar também à
palavra dada.A obrigaçãode dizer a verdadevem de uma causaque foi
anterior à guerra e pode por acasoser de algum modo anulada pela
guerra, mas a promessaconferepor ela mesmaum direito novo.
Aristóteles [11] viu essa diferença quando, ao tratar da veracidade, diz:
'Não falamos daquilo que é verídico nas convençõese no que se relacio-
na com a justiça e a injustiça; estas coisas dependem, de fato, de outra
virtude."

4. Pausânias [12] diz de Filipe da Macedõnia que "ninguém o


chamará com razão um bom general, ele que costumava desprezar o
juramento, violar em qualquer ocasião a palavra dada, a tal ponto que

[8] -Oe(2ó]cu]k-4/Jni)Írorzzm,
1, 29,140.
[9] .ZipJsfo/a / ac/ .BoJ?/7àc/um. 'rata também longamente do mesmo assunto na
Epístola \26
[10] ,4Ó Z:/rÓeaon(#fa, V. 27,6
[11]. #Í]'ca a Àrlcó/naco, IV, 13
[12] .4rcaduc;.,V]11, 7
1359
CAPITULO XiX - DA MANUTENÇÃO DA PALAVRA ENTRE INIMIGOS

nenhum homem faz menos caso da boa-fé." Va]ério Máximo [13] diz de
Aníbal que "ele havia declarado a guerra ao povo romano e à ltália, mas
que a fazia com mais animosidade ainda contra a boa-fé, sentindo pra'
zer somente nas mentiras e nos enganos, como se fossem excelentes
meios de sucesso. Por isso, ele que, sem isso, teria deixado uma memó-
ria gloriosa de sua pessoa,deixa ao contrário duvidar se deve ser consi-
deradoo homem maior ou pior de seu tempo." Em Homero [14], os
troianos, atormentados pela consciência,se acusam a si mesmos:"Clom-
batemos depois de ter violado a aliança sagrada e violado a palavra
dada sobjuramento, nossa guerra é um crime.

11.Refuta-se a opinião que nega


que se deva manter a palavra
com os bandidos e os tiranos

1. Já dissemos anteriormente (livro 11,cap. Xlll, $ XV) que não


se deve admitir este pensamento de Cícero [15] , que "não há sociedade
alguma entre nós e os tiranos, antes uma grande separação". E este
[16]: "11Jmpirata não está no número dos inimigos públicos; com ele
não deve haver nem boa-fé, nem juramento comum." Sêneca [17] diz
também de um tirano: 'Violando as leis da sociedadehumana, rompeu
todos os laços que me ligavam a ele." Dessa fonte é que decorreu o
erro de Miguel de Efeso, ao dizer que, pelo constante no livro V da
.Ff/ca a Nlcómaco [18], não se comete adultério com a mulher de

[13] Livro 11,6


[14] .ZZfbda,
V]1, 351ss
[15] De C2á7?azl),
111,6,32
[16] .De 0/n'cb), 111, 29,107
[17] Z)e .Be/meXI'cÍz:s,
V]1, 19,8

[18] Miguel de Efeso, .4d MJlsfof. Nicam.


!360
H UGO GROTI US

um tiranoÍ19], o que alguns doutores judeus]20], incidindo em geme


Ihante erro, disseram também dos estrangeiros, cujos casamentoscon
lideram nulos.

2. Cneio Pompeu [21], contudo, terminou com tratados grande


parte de sua guerra contra os piratas, prometendo-lhes a vida e mora-
das onde vivessem sem saquear. Tiranos também lhes deram por vezes
a liberdade, estipulando para eles a impunidade. Casar [22] escreveuno
livro sobre a Guerra C#u77queos generais romanos tinham feito acor-
dos com os bandidos e os fugitivos que se encontravam nas montanhas
dos Pirineus. Quem diria que, se tivesse sido estipulada alguma coisa
nesses tratados, alguma obrigação deles não haveria de decorrerá Gen-
te desse tipo, na verdade, não forma uma comunidade especíülcaque o
/us genÉ7um introduziu entre inimigos numa guerra solene e plena.
Sendohomens, porém, elesformam uma comunidade de direito natu-
ral, como o aülrma com razão Porfírio, em seu tratado De non esu
anJ[na/]u/n [23] , de onde nasce a obrigação de observar o que se prome'
te. Assim é que Diodoro [24] lembra que a palavra dada foi mantida por
Lucullus para comApolõnio, chefe dosfugitivos. Dion [25] escreveque
Augusto, para não faltar à palavra, pagou ao bandido Crocota, que ti-
nha vindo ele próprio se apresentar, o prêmio que havia sido estipulado
porsuacabeça.

1191Em Sêneca(ErcerpÉ. aonfroz, IV. 7), se pode ler: ':AUose deKpr7afrafa2' coJna
]m adultério o rata de corromper a esposade um tirano, do mesmo modo que
náo ser7b ÁomlcJ'd/b mala/' u/n f/Fado. "Ju]ius C]arus(no $ ]7o/n/c/d/um, n. 56)
emitiu a opinião que uma mulher banida poderia cometer adultério impune-
mente.
[20] O rabino Levi Ben-Gerson e o rabino Salomon em .4c/ Zev7É?cu/n .X:t /O.
[21] Assim é que a perfídia de Didius para com os celtiberos que viviam de saquesfni
criticada
[22]Z)e-Be//o0l't-7711
111,19
1231Porfírio, Z)e,4Z)sz//7e/
f/a, 111.25
[24] Diodoro da Sicília, in ,Ercerpfa .f%of/}: XXXVI, l
[25] Livro 56, cap. 43
1361
CAPÍTULO XIX - DA MANUTENÇÃO DA PALAVRA ENTRE INIMIGOS

111.Apresenta-se solução ao argumento


de que tais pessoas merecem uma punição
e mostra-se que isso náo deve ser levado
em consideração, quando se tratou com elas como tais

1.Vejamos, contudo, se não se pode alegar algo de mais específico


emfavor do que Cícerodisse. Em primeiro lugar, aquelesque sãomal-
feitores de modo atroz e que não fazem parte de nenhum Estado, podem
serpunidos por quem quer que seja, se considerarmos o direito de natu-
reza, comoisso foi explicado em outro local (livro 11,cap. XX, $ Vlll).
Aos que podem ser punidos até perder a vida, pode-se tirar deles tam-
bém seus bens e seus direitos, como perfeitamente o disse o próprio
Cícero [26]: "Não é contra a natureza despojar, se se puder, aquele que
épermitido matar." O direito adquirido em virtude de uma promessa
está entre os direitos. Pode-se também despojá-los a título de castigo.
Respondo que isso seria verdade, se não tivesse sido tratado como um
malfeitor. Seassim foi tratado, como ta] [27], sedeve presumir que a
remissão da pena está compreendida ao mesmotempo nesta convenção
quanto à coisa de que se trata porque sempre, como o dissemos em
outro local (livro 11,cap. XVI, $ XII), é preciso dar uma interpretação
que impeça que o ato fique sem efeito.
2. Não é sem fundamento que Nabos, em Tiro Lívio [28] , respon'
de a Quintius Flaminius que o repreendia por ser tirano: "Por esse
apelativo, posso te responder que, tal como sou, sou o mesmo que era
quando tu, Tullius Quintius, fizeste aliança comigo." E logo a seguir:

[26] De Oznclis, 111,6,32.

paz entre os príncipes e as ordens do império


[28] ,4Ó C/rÓe ao/ldJ'fa, XXXIV. 31,12ss
1362
H UGO GROTIUS

"Eu já tinha feito essascoisas,quaisquer que fossem,quando tu cele-


brante aliança comigo." E acrescenta:"Se tivesse mudado algo nesta
aliança, seria obrigado a prestar contas de minha má-fé, mas comoés
tu mesmo que mudaste, toca a ti ao contrário justificar a tua." Há uma
passagem não dessemelhante num discurso de Péricles a seus
concidadãos, em Tucídides [29] : "Vamos deixar as cidades a]iadas li-
vres, se elas o eram quando a aliança foi celebrada."

IV O fato de que a promessa foi extorquida


pelo temor não se constitui em obstáculo,
se a violência náo foi feita àquele que prometeu
Pode ser objetàdo a seguir o que dissemos em outro local (livro ll,
cap. XI, $ VII), que aquele que, por algum temor, deu ocasião à promes'
sa, é obrigado a liberar o prometente porque causou um dano por injus-
tiça, isto é,por um ato em oposiçãocoma natureza da liberdade huma-
na e com a natureza do próprio ato que devia ser livre. Como afirmamos
que isso pode ocorrer em qualquer circunstância, de igual modo isso
não se aplica a todas as promessas feitas aos bandidos. Para que aquele
a quem foi prometida alguma coisa seja obrigado a liberar o prometente,
é necessário que tenha ele próprio dado ocasião a essa promessa por um
temor injusto. Se alguém, pois, para libertar dos grilhões um amigo,
prometeu um preço, fica obrigado, pois ele não cometeu violência contra
aquele que se apresentou espontaneamente ao contrato.

V Ou se um juramento veio se juntar, mesmo


que diga respeito somente aos homens, pode
ser violado impunemente contra um bandido
Acrescente-se que aquele que prometeu sob a pressão de um te-
mor injusto poderá ser obrigado, se juntou à promessa a fé do juramen-
to. Por isso, como dissemosem outro local (livro 11,cap. Xlll, $XV), o

[29] Livro 1, 144


1363
CAPITULO XIX - DA MANUTENÇÃO DA PALAVRA ENTRE INIMIGOS

homem está ligado não somente para com o homem, mas ainda com
Deus, contra o qual não existe exceçãodeviolência. É verdade, contudo,
que essevínculo por si só não engaja o herdeiro daquele que prometeu,
porque as coisas que estão no comércio humano, em virtude da lei pri-
mitiva da propriedade, passam ao herdeiro, mas que essedireito adqui-
rido por Deus não se encontra por ele mesmo entre essas coisas. Deve-
setambém reproduzir o que foi dito antes (livro 111,cap. IV $ X) que, se
alguémviola a palavra dada comou semjuramento a um bandido, não
é passível de punição a esse título junto às outras nações, porque em
ódio aosbandidos as naçõespreferem passar sob silêncio o que se come-
te contra eles, mesmo ilicitamente.

VI. As mesmas coisas sáo aplicadas


aosindivíduos rebeldes

Que diremos das guerras dossúditos contra os reis e outros pode-


res superiores? Mostramos em outro local (livro 1, cap. IV) que mesmo
quando a causa que teriam para tanto não fosse injusta em si, o direito
contudode agir pela força lhes falta. A injustiça da causaou a
criminalidade da resistência podempor vezestambém ser tão grandes
que possam ser punidas severamente. Se foi, contudo, tratado com eles
como desertores ou rebeldes, a punição não pode se opor à promessa,
segundo o que acabamos de dizer. Apiedade dos antigos achava que era
preciso manter a palavra mesmo com os escravos e se acreditava que os
lacedemânios não teriam atraído sobre si a cólera divina senãopor te
rem matado os escravos de Tenaro contra a pa]avra dos tratados [30] .
Diodoro da Sicília [31] observa que a pa]avra dada aos escravos,no

[301 Aelianus, Uaz HJkí., VI, 7

[311 Livro XI, 89


1364
H UGO GKOiiUS

templo dos deusesPalacianos,jamais havia sido violada por nenhum


patrão. Quanto à exceçãode violência, poderia também ser tornada
inútil pela interposição de um juramento, como o fez o tribuno do povo
Mlarco Pompânio [32] que, ]igado porjuramento, manteve o que havia
prometido, sob a pressão do temor, a Lucius Manlius.

VII. Descreve-se uma dificuldade especial,


relativa às promessas feitas aos súditos
e extraída do domínio eminente

Além das diülculdades precedentes, há uma especial que faz nas-


cer tanto o direito de estabelecer a lei quanto o direito eminente de
propriedade sobre os bens dos súditos, que compete ao Estado e é exerci-
do em seu nome por aquele que possui o poder soberano. De fato, se esse
direito se estende sobre todas as coisas que pertencem aos súditos, por
que não se estenderia também sobre o direito que dá uma promessa
feita na guerra? Se isso for concedido, todos os tipos de convenções simi-
lares parecem dever ser inúteis e,em decorrência, não haveria nenhu-
ma esperança de terminar a guerra, a não ser pela vitória. Deve-se,
porém, observar, ao contrário, que essedireito eminente não se exerce
indistintamente, mas quando o pede a utilidade comum num governo
não senhoril, mas civil, mesmorégio. Na maioria dasvezesé vantajoso
para o público que tais convençõessejam mantidas. A isso se refere o
que foi dito há pouco (cap. XV), sobre a necessidade de manter o estado
presente das coisas. Acrescente-se, que quando a circunstância o exigir,
se faça uso dessedireito; uma compensação,contudo, deve ser feita,
como será explicado a seguir, com mais detalhes.

l32X "0 tribullo jurou e manteve ápaiavra. Prestou contas à asselnbiéia sobre o
!motivo de sua des:istência.Jamais outro havia telhado impor silêncio impu1le'
neníe a uin ár7buno"(Sêneca, Z)e Beneálcylb, 111, 37)
1365
CAPÍTULO XIX - DA MANUTENÇÃO DA PALAVRA ENTRE INIMIGOS

ylll. Mostra-se que tais promessas


são afirmadas pelo juramento do Estado
1.Além disso, as convenções podem ser sancionadas por um ju
ramento não somente pelo rei ou por um senado, mas também pelo
próprio Estado. Assim é que Licurgo [33] fez os ]acedemõnios jurarem
segundo suas ]eis, Só]on [34] os atenienses, e que ordenaram, a 6im de
que o direito do juramento não se extinguisse pela mudança das penso'
as, que o juramento fosse renovado a cada ano. Se isso ocorrer, de fato,
não haveria absolutamente necessidadede se afastar da promessa,
mesmono interesse da utilidade pública, pois um Estado poderia re-
nunciar ao que Ihe pertence e ostermos podemser de tal modo claros
que não admitem qualquer exceção.Valério Máximo [35] critica assim
Arenas:"Lê a lei que te mantém pelovínculo do juramentos" Os romã
noschamavam de sagradas [36] aque]as ]eis peias quais o povo romano,
comoCícero [37] o exp]ica em seu discurso em favor de Balbus, se sujei-
tava por força de juramento.

2. Há em Tito Lívio [38], uma discussão obscura em si mesma


que se refere a essa matéria. Diz, seguindo a opinião de muitos intér-
pretes do direito, que os tribunos são invioláveis, mas que não ocorre o
mesmo com os edis, os juízes, os decênviros, embora fosse agir contra o
direito de de atentar contra um deles.A causa da diferença é que os edis
. e outros estavam protegidos somente pela lei. O que o povo teria ordena-

133] Plutarco, &yc'u/Fus, 57 E

[34] Plutarco, So/on, 92 B

[35] Livro V. 3

1361Ver Manúcio, Z)e Zeglóus.

137] /}o Zulu'o .Ba/Óo 02'aÉI'o, 16, 35

[38] .4ó Z]/róe aoní#fa, 111, 55, 6-7


1366
H UGO GROTIUS

do em último lugar tinha força obrigatória. Enquanto uma lei durava.


contudo,o direito de agir contra ela não cabia a ninguém.A religião
pública do povo romano protegia os tribunos, porquanto havia intervin-
do um juramento que não podia ser revogado por aqueles que haviam
jurado, semferir a religião. Dionísio de Ha]icarnasso [39] diz: "Tendo
reunido a assembléia,Brutus propôsaosquirites tornar essemagistra-
do inviolável, não somenteem virtude da lei, mas também por um
juramento. Foi aprovado por todos." Por essarazão, essalei é chamada
sagrada. Por isso, os honestos desaprovaram a conduta de Tibério Graco
[40], quando depôs Otávio do tribunato, dizendo que o poder de tribuno
hauria do povo sua santidade e que não podia ser dirigido contra o povo.
Como dissemos, portanto, o Estado e o rei podem estar obrigados por
juramento, mesmo na causa dos súditos.

IX. Ou se um terceiro se interpõe


a quem se faça a promessa

A promessaseria validamente feita a um terceiro que não foi o


autor da violência. Não procuramos se há ou até que ponto há interes-
se, distinções que são sutilezas do direito romano. E naturalmente do

interesse de todos os homens procurar o bem dos outros. Assim é que


lemos que foi tirado de Fi]ipe [41] , pe]a paz que concluiu com os roma-
nos o direito de atacar os macedóniosque, na guerra, haviam desistido
de apoia-]o]42]

[39] Livro VI, 89.

[40] Ver o fato, detalhadamente relatado por Plutarco em óerJus Grnccóus, 831 D
[41] Tito Lívio, .4ó [/róe (bndlfa, XXX]X, 23,6.
[42] Exemplo semelhante pode ser lido em Paruta (livro VI).
1367
CAPÍTULO XIX - DA MANUTENÇÃO DA PALAVRA ENTRE INIMIGOS

X. De que maneira se pode efetuar


a mudança do Estado político
Como provámos em outro local (livro 1, cap. 111,$ XVII), existem
por vezes Estados mistos. Do mesmo modo que se pode por meio de
convençõespassar de Estado puro a um Estado puro, assim também se
pode passar a um Estado misto, de forma que aqueles que haviam sido
súditos começam a possuir o poder soberano, ou ao menos uma parte
dessepoder, com a faculdade mesmo de defender essa pane pela força.

XI. A exceção de violência não se aplica


à guerra solene do direito das gentes
1.Para o que serefere à guerra solene,isto é,pública de parte e
outra e declarada formalmente, do mesmo modo que tem outros efeitos
particulares de direito exterior, assim também tem aquele de tornar de
tal modoválidas as promessasfeitas nessaguerra, ou para a terminar,
que não podem ser anuladas sob pretexto de uma violência injusta,
malgrado aquele a quem as promessas foram feitas. Isso porque do
mesmo modo que há várias coisas que passam por justas segundo o
direito das gentes, embora não sejam sem algum defeito, assim tam-
bém essedireito autoriza a violência cometida de parte e outra numa
guerra [43] . Se não tivesse havido acordo sobreesseponto, não se pode-
ria impor nem limites nem um 6im a tais guerras que sãoextremamen'
te frequentes, o que é, contudo, do interesse do gênero humano que se
cheguea um acordo. E é isso o que se pode entender por essedireito da
guerra que Cícero [44] quer que seja observadoentre inimigos. Além
disso,ele diz que o inimigo conserva alguns direitos na guerra, isto é,
não somente direitos naturais, mas também certos direitos surgidos do
consenso das nações.

[43] Ver o mencionado autor do H'atado do Paz.


[44] De O#iclls, 111,29, 107 e in UerreJn,4aÓo,]V. 55, 122
!368
H UGO GROTI US

2. Não se seguedisso, contudo, que aquele que extorquiu alguma


coisa semelhante numa guerra injusta possa, com segurança de cons-
ciência e sem violar os deveres de um homem de bem, reter o que con-
seguir desse modo ou mesmo coagir o outro a manter seus compromis-
sos com ou sem juramento. Isso permanece como algo injusto interior-
mente e até pela própria natureza da coisasessainjustiça interna do
ato não pode ser eliminada senão por um consentimento novo e verda-
deiramente livre .

XII. O que se deve entender de uma violência


que o direito das gentesreconhece

De resto, ao dizer que a violência exercida numa guerra solene


passa por justa, deve-se entender dessa violência que o direito das gen-
tes não desaprova [45]. Se foi extorquida alguma coisa por temor de
uma violação ou por qualquer outro terror contra a palavra dada, seria
mais verdadeiro dizer que a coisa se reduz aos termos do direito natural
porque o direito das gentes não estende sua autoridade até a esse tipo de
temor.

XIII. Que se deve manter a palavra


mesmo para com os pérfidos

1. Dissemos antes em nossa exposiçãogeral (livro 11,cap. Xlll, $


XV[), e Ambrósio [46] nos ensina igua]mente, que é preciso manter a
palavra, mesmo para com os pérfidos, o que deve indubitavelmente ser
estendido também aos inimigos pérfidos; isso aconteceucom os
cartigneses, para com os quais os romanos mantiveram religiosamente

[45] Assim é que g promessaextorquida a um embaixador prisioneiro não traz


benefício a quem a extorquiu(Mariana, livro XXX, 12 e 19)
[46] Z)e0/?híz)M]/] kÉrorum,1, 29
1369
CAPÍTULO XIX - DA MANUTENÇÃO DA PALAVRA ENTRE INIMIGOS

a palawa. Aesse respeito Valério Máximo [47] diz: "0 senado não ]evou
em consideração com quem estava assumindo seus compromissos." E
Salústio [48] : "... Ainda que os cartagineses tivessem muitas vezes, tan-
to na paz quanto durante as tréguas, cometido atrozes perfídias, nossos
antepassados não aproveitaram jamais a ocasião para imita-los. . .'

2. Apiano [49] diz a propósito dos lusitanos, violadores dos trata-


dos,que Sérgio Galba havia trucidado, depois de tê-los enganado com
um novotratado: "Vingando-sede uma perfídia por outra perfídia, imi-
tava os bárbaros, contrariamente à dignidade romana." O mesmoGalba
foi, em seguida, acusadoem razão dêssefato pelo tribuno do povo Libo.
Contandoessefato, Valério Máximo [50] diz: "A compaixão,não a
equidade, conduziu esse negócio"; concordou-se, em consideração a seus
alhos, pelo perdão que não se podia ser concedido a sua inocência. Catão
havia escrito em suas (2z:(gang
[51] que, se não sefizesse referência a
seus filhos e suas lágrimas, ele teria sido punido.

XIV Náo,sea condiçãovier a faltar


o que teria lugar se um não cumprisse
uma parte de suas convenções
Deve-se saber ao mesmo tempo que pode ocorrer de duas manei-
ras que seesteja isento de perfídia e, contudo, semter cumprido o que
foi prometido, a saber, por falta de condiçõese pela compensação.O
prometedor não é verdadeiramente liberada por falta de condição, mas

[47] Livro VI, 6,3


[48] Z)e aoJ4/uraúo e aatrZüae, LI, 6.
[49] JiÍIW., 60.
[50] Livro Vl11, 1,2
[51] Marcus Tullius Cicero, De Orafore, [ 53.228 e Brutas de Ciarís Oratoribus, 2Q
80.
!370
H UGO GKOíiUS

a ocorrência mostra que não existe nenhuma obrigação, porquanto não


havia sido contratado senão sob condição. E preciso levar em conta o
casoem que um doscontratantes não cumpriu por primeiro o que esta-
va obrigado a cumprir de sua parte. Cada um dos artigos de um só e
mesmo contrato parecem estar contidos uns nos outros sob formas de
condição, como se tivesse sido expresso. Eu faria isso, se a outra parte
fizer o que prometeu. Por isso, ao responder aos a]banos [52], Tu]]us
"toma os deuses por testemunhas que aquele dentre os dois povos que
por primeiro tivesse recusadoo pedido dos delegados,deveria ver recair
sobre sua cabeçatodas as ca]amidades da guerra". U]piano [53] escre-
ve: "leão será considerado parte de uma sociedade aquele que renunciou
a uma sociedade porque uma condição sob a qual a sociedade se formou
não está de acordo com sua opinião." Por isso é que todas as vezesque a
intenção é outra, tem-se o costume de colocar em termos expressos que,
se alguma coisa é feita contra essa ou aquela parte do contrato, as
outras não deixam de ter seusefeitos.

XV Nem, se uma justa compensação se opõe

Indicamos em outro ]oca] [54] a origem da compensação,quando


dissemos que, se não podemos obter de outra forma o que nos pertence
ou que nos é devido daquele que detém o que nos pertence ou que é nosso
devedor, podemos tomar o valor de qualquer coisa que seja. Disso se
segue que podemosbem mais reter o que está em nossasmãos, seja
corporal ou incorporal. O que prometemos poderia não ser cumprido, se

lõ21Tiro Lívio, HÓ [/róe ao/]d)fa,1, 22,7


t53À L 1, Si conveilerit, Dig., Pro socio.

[54] Livro 11, cap. Vll, $ 11. Em Scorplae (6), Tertuliano escreve: 'Ninguém abre
achar ruim que se faça uma justa compensação do bem ou do mal de parte e de
ouvi'a.
1371
CAPITULO XIX - DA MANUTENÇÃO DA PALAVRA ENTRE INIMIGOS

o valor da promessa não excede a coisa que nos pertence, que se encon-
tra sem direito nas mãos de outrem. Sêneca,em seu glaíado dos.Bebe'
áãbs [55], escreve: "Muitas vezes o devedor é condenado em favor do
credor que Ihe tomou, a outro título, mais que o primeiro devia pelo
empréstimo. Não é somente entre o credor e o devedor que o juiz inter-
vém para dizer ao primeiro: Você Ihe emprestou dinheiro? E verdade?
Você está de posse da propriedade dele sem tê-la comprado. Fazendo os
cálculos, você é que se tornou devedor, de credor que você era.:

XVI. Embora em virtude de outro contrato

Seria o mesmo se, aquele com o qual o negócio se passa, me deve


mais 'ou tanto em virtude de outro contrato e que não posso obter isso de
outra forma. Na banca dos advogados, é verdade, como diz o mesmo
Sêneca[56] , certas açõessãoseparadas e a fórmu]a não é confundida.
Essesexemplos, porém, como se diz no mesmo local, são determinados
por leis especiais que é necessário seguir. Uma lei não se mistura com
outra lei. Deve-seir para onde se éconduzido.O direito dasgentes não
reconhece essasdiferenças, quando não houver, bem entendido, outra
esperança de obter o que nos é devido.

XVII. Ou de um prejuízo causado


Dever-se-ia dizer a mesma coisa se aquele que pressiona pelo
cumprimento da promessa não contratou, mas causou um dano. Sêneca
[57] diz, no mesmo ]oca]: "0 agricu]tor não está mais obrigado, ainda

[55] Z)e .Be/?eá7cÍz),


V], 4
[56] .Z)e.BeneÉlcJis,V], 6 e 7
[57] .De .Be/2e#czJb,
V], 4.
1372 H UGO GROTI US

que seu arrendamento persista, para com o proprietário que pisoteou


suas colheitas e cortou suas plantas. Não que esseúltimo tenha recebi-
do o que havia estipulado, mas porque tudo fez para nada receber."
Mais adiante acrescenta outros exemplos: "Tu levaste seu rebanho,
mataste seu escravo..." E depois [58] : "É permitido a mim pesar os bons
serviçose os erros de cadaum para comigo,para me pronunciar seme
é devido mais do que devo.

XVIII. E mesmo de uma pena


Enfim, o que é devido em conseqüência de uma pena pode ser
compensado com o que foi prometido, o que é explicado no decorrer da
mesma passagem [59] : "Ao serviço é devido reconhecimento, à injúria a
reparação. Não Ihe devo reconhecimento, ele não me deve punição.
Estamos quites um para com o outro." Mais adiante [60] : "Fazendo a
comparação entre o beneficio e a injúria, deveria ver se não me é devida
ainda alguma coisa.:

XIX. Como essas coisas ocorrem na guerra

1. Do mesmo modo que, se alguma convenção interveio entre


litigantes, não se poderia, enquanto perdurar o processo, opor ao que foi
prometido a ação que era objeto do litígio ou os danos e as despesas do
processo, assim também, enquanto perdurar a guerra, não se poderá
compensar o que foi a causa da guerra ou tudo o que se executou ordina-
riamente de acordo com o direito das gentes da guerra. A natureza do

[58] De .Be/7eã'cÍzh,
V], 6
[59] Z)e .BeneÉlcü),V], 5
[60] Z)o .Bene#cjz), V], 6
1373
CAPITULO XIX - DA MANUTENÇÃO DA PALAVRA ENTRE INIMIGOS

negócio,de fato, para que não se tenha agido em vão, mostra que a
convenção foi feita colocando à parte as rixas da guerra. De outra for-
ma, não haveria convenção alguma que não pudesse ser eludida. Talvez
não aplicaria aqui sem muito sentido este pensamento que se encontra
no mesmoSêneca]61] e quejá citei várias vezes:"Não admitiram(nos-
sos antepassados) nenhuma desculpa, a íim de ensinar aos homens que
devem a todo custo manter sua palavra. Seria melhor rejeitar pequeno
número de escusas mesmo fundadas que permitir a todos de inventar
màs.'

2. Quais são, pois, as coisas que poderiam ser compensadas com


o que foi prometido? E aquilo que o outro deve, embora em virtude de
outro contrato concluídodurante a guerra; secausaum danodurante o
tempo da tréguas se ultrajou embaixadores ou se cometeu algum outro
ato que o direito das gentes condena entre inimigos.

3. Deve-se observar, contudo, que a compensação se faça entre as


mesmas pessoas e que o direito de algum terceiro não seja lesado, de
modo que os bens dos súditos sejam considerados como incluídos segun
do o direito das gentes, naquilo que o Estado deve, como dissemos em
outro local (livro 11,cap. 11,$ 11).

4. Acrescente-se ainda que é de um espírito generoso manter a


palavra dos tratados, mesmo após ter recebido alguma agressão.A esse
títu[o é que o sábio indiano Jarcas [62] e]ogiavaum rei que, ]esadopor
um vizinho seu aliado: "Não se afastou da palavra empenhada, dizendo
que havia prestado um juramento tão santo que jamais faria mal ao
outro, mesmo depois de ter recebido uma agressão"

[61] Z)e .Be/?eálcul


s, Vl1, 15
162]Filostrato, livro 111,6.
1374
H UGO GKOiiUS

5. Quanto às questões que se apresentam ordinariamente sobre


a palavra dada aos inimigos, elas podem ser quase todas resolvidas, se
forem aplicadas as regras referidas anteriormente (livro 11,cap. XI ss.),
quando dissertamos sobre o efeito de todo tipo de promessas e em parti-
cular do juramento, do tratado edospatrocínios, do direito e da obriga-
ção dos reis e da interpretação das coisas duvidosas. Para que o uso,
contudo, do que foi dito antes seja mais manifesto e, se algum ponto
controverso se apresenta ainda para que seja esclarecido, não haveria
por que temer em recorrer a questões particulares mais freqüentes e
mais afamadas.
xx

/
DAS CON\WNCOES PUBLICAS
PELAS QtJMS SE TERMINA
A GUERRA, ONDE SE TRAIA
DO TRAJADO DE IUZ, DA SORTE,
DO COMBATE COUUi$412q
DAARBITRAGEM,DA
ll
CAPITULAÇÃO,DOS REFÉNS,
bÓS PENHORES

Sumário

1. Divisão das coi] venções entre inimigos, segundo 8 Ordem do


que va! se seguir.

11.Compete ao rei, num Estado monárquico, fazer a paz


111. Que decidirse o rei écriança, louco, prisioneiro, exilado.

IV Num Estado em que o poder é exercidopelos principais


cidadãos ou pelo povo, o direito de fazer a paz compete á
pluralidade.
V Como a soberania ou uma parte da soberania ou os bens do
reino podem ser validamente alienados em vista da paz.
VI. Até que ponto um povo ou os sucessores são obrigados em
virtude da paz feita por um rel.

VII. Os bens dos súdítos podem ser cedidos pela paz em vista
n n*P*'P-P :nlhTico.idas com o ónus da indenízação.
çlil. Que decidir quanto aos bensjápe!-ditos na guerras

IX. Não se distinguem aqui as coisasadquiridas pelo direito


das gentes da quedas adquiridas pelo direito civil.

X. Aos olhos dos estrangeiros,a utilidade pública passa por


comprovada.

XI. Regra geral para a interpretação da paz.


Xli. Na dúvida, acredita-sequefoi concordadoqueas coisas
piquem no estado em que estão; como isso deve ser en-
tendido.

Xlli. Que decidir, se foi concordado que todas as coisas sejam


restabeiecidasno estado em quese encontravam antes da
guerra.

XIV. Quando aqueles que, tendosidoindependentes, se subme-


teram voluntariamente à dominação de alguém, não de-
vem ser liberados.

XV. Na dúvida, os danos causados pela guerra são considera


dos temidos.

XVI. Não é o mesmo para as coisas que eram devidas a priva


dos antes da guerra.
XVII. Mesmo as punições merecidas pelo Estado antes da quer
ra são, em caso de dúvida, consideradas reunidas.
XVlli. Que decidir quanto ao direito de punir que c#sprivados
t;êm9
]

XIX. O direito pretendido pelo Estado antes da guerra, mas


que era contestado, se considera remado sem diâcuidade.
XX. As coisas apreendidas devem ser restituídas após a paz.

XXI. Algumas regras sobre a convenção de devolução das coisas


apreendidas duran te a guerra.
XXli. l)osfrutos.
XXIII. Dos nomes dos países.
m7rDa referência a uma convençãoprecedente e daquele que
cl"ía íinpedíin entes.
)ÇX v. .L)o prazo.

1.Na dúvida, a interpretação devepender contra aquele


que ditou as condições.
r a guerra e romper a paz
XXVII. Fornecer uma nova ca u sa para
são coisas distintas.

XXVlli. Cama serompe a paz violando as condições essenciais


de toda paz.

XXIX. Que decidir, se os aliados cometeraJn violênciasP

XXX. Que decidir, se são súbitos e como se deve presumir que


seu procedimento é aprovado?

XXXI. Que decidir, se os súditos $e põem a serviço de outros


poderes?

XXXII. Que decidir, se os súditos foram prejudicados? Uma


distinção éíeita.
XXXIII. Que decidir, se se prejudicou os aliados? Cabe igual-
mente uma distinção.

XXXIV: Como $e rompe a paz, agindo contra o que foi dito na


paz7
XXXV Se épreciso distinguir entre os artigos da paz.
XXXVI. Que decidir, se uma pena foiacrescida?

VII. Que decidir, se a necessidadepõe um obstáculo?

XXXVIII. MesJnoque a pala vra tiver sido violada, a parte íno


ce!] te pode conservar a paz.

XXXIX. Colmo se rompe a paz, violando o que é específico de


ullla certa espécie de paz.

XL. O que recai sob a denominação de amizade.

XLI. Se é agir contra a amizade acolher súdítos e exilados.

XI,ll. Como se termina a guerra por sorte.

XLlll. Como, por um combate combinado e se élícito

XLIV. Se o fato dosreis obriga aqui ospovos.


XLV. Quem deve serconsiderado vencedor.

XL;VI. Comose termina a guerra por uma arbitragem e que


aqui se entende uma arbitragem sem apelo.

XLVll. Na dúvida, os árbitros são considerados obrigados a se


pronunciar segundo o direito.

XLVlll. Os árbitros não devem sepronunciarsobre a posse.

XLIX Qual o efeito de uma submissãopura e simples.


L. O dever do vencedorpara aqueles queassim se rendem.
LI. Da submissão sab condição.

Lll. Pessoas que podem e devem ser dadas como reféns.

Llll. O direito que se possui sobre os reféns.

LIV Se é permitido ao refém fugir.

[;V. Se se pode ]egitimamente reter um refém por outro súdito.

]:;VI. Aquele para quem foi dado um refém, vindo a morrer, o


refém nlca livre.

LVll. Se um refém fica engajado quando o rei que deu o refém


morreu.

[.V]]]. Os reféns são por vezes obrigados de modo principal e


que um não éresponsável do fato do outz.o.

LIX. Qual é a obrigação a respeito dospenhores?

LX. Quando se perde o direito de retira-ln.


Y CAPITULO XX - DAS CONVENÇÕES PÚBLICAS PELAS QUAIS SE TERMINA A GUERRA. ONDE RETRATA DO TRATADO DE PAZ.
DA SORTE. DO COMBATE COMBINADO. DA ARBITRAGEM, 04 CAPITULAÇÃO. DOS REFÉNS, DOS PENHORES
!379

1.Divisão das convençõesentre inimigos,


segundo a ordem do que vai se seguir
As convençõesque intervêm entre inimigos consistem numa pro'
nessa expressa ou tácita. A promessa expressa é pública ou privada. A
promessa pública se faz pelos poderes soberanos ou pelos poderes infe-
riores. Aquela que se faz por poderes soberanos põe 6m à guerra ou tem
seu efeito durante a guerra. Entre as convenções que terminam a guer-
ra sedistinguem aquelasque sãoprincipais e as que sãoacessórias.As
principais $ão aquelas que terminam a guerra por seu ato próprio, como
ostratados, ou pelo consentimento dado de sereferir a alguma outra
coisa, como a sorte, o êxito de um combate, a decisão de um árbitro.
Dessas vias, a primeira depende puramente do acaso; as duas outras
combinam o acaso com as forças do espírito ou do corpo ou com o Qxer'
cicio do poder dado ao juiz.

11.Competeao rei, num Estado monárquico,fazer a paz


Aos que fazem a guerra é que compete concluí' tratados que a
terminem [1] , pois cada um é o dono de seus próprios interesses. Disso
sesegueque, numa guerra pública de parte e outra, essepoder perten'
ce aos que têm o direito de exercer o poder soberano. Isso será, pois, a
atribuição do reiE2] num Estado verdadeiramente monárquico, contanto
que esserei tenha um direito em que não subsista impedimento.

111.Que decidir se o rei é criança,


louco,prisioneiro,exilado
1. 0 rei que está na idade em que não tem a maturidade [3] do
juízo (o que em alguns reinos é limitado pela lei e em outros deve ser
estimado de acordo com conjecturas prováveis), o rei cuja inteligência

[1] Ver livro 11,cap. XV. $ 111.


[2] Mariana, XX], ].
[3] VeT-]ivro ], cap. ]ll, $ XXIV.
1380
H UGO GxOTiUS

está alterada não podeselar a paz.Deve-sedizer o mesmode um rei


prisioneiro [4] , se contudo a autoridade real extrai sua origem do con-
senso do povo. Não é crível que a soberania tenha sido deferida pelo povo
em tal condição, de modo que possa ser exercida por uma pessoa que
não fosselivre. Nessecaso,pois, não subsiste na verdade o direito intei-
ro da soberania [5], mas o exercício e a tutela do poder deverá estar na$
mãos do povo ou daquele a quem o povo delegou.

2. Seum rei, no entanto, mesmoprisioneiro, fez alguma conven-


ção sobre as coisas que Ihe pertencem em particular, isso seria válido, a
exemplo do que diremos a respeito das convençõesprivadas. Se um rei
está exilado, poderia se]ar a paz? [6] . Seguramente, se constar que não
depende de ninguém, de outro modo, sua condição diferida pouco da-
quela de um rei prisioneiro, pois há também vastas prisões. Régu]o [7]
recusou opinar no senado, dizendo que enquanto estivesse ligado por
juramento feito aos inimigos, não era senador.

IV Num Estado em que o poder é exercido


pelos principais cidadãos ou pelo povo,
o direito de selar a paz compete à pluralidade
No governo dos principais cidadãos ou do povo, o direito de tratar
pertencerá à maioria, ora ao conselhopúblico, ora aoscidadãos que têm
o direito de sufrágio, segundo o costume, conforme o que dissemos em
outro local (livro 11,cap. V. $ XVll). Por isso é que convenções assim

[4] Ver Guichardin, livro XVI e XVlll, onde só fala uma vez.
[5] Arumaeus em seu discurso sobre a Bu/a de Oui'o: "0 pa/aÉlbo Rodo.IHo
áav7a
:unido, por temor, para a Inglaterra. Henrique de Mogúncia havia sido violenta-
mente expulso pelo eleitor de Travese, no entanto, leãoperderam por isso seus
:lireites de eleitores.

[6] Em .f)farsa/zb(V. 28 ss.), Lucano diz: ':EJ)gua/JfoCâm 7o agrava e/n .Ro/na. Romã
aí estava também."NexChassagBe,De Gloria Mundo,parte \Cconsid. 89.
[7] Mal'cus ]\]]ius Cicero, Z)e O/nc7Ji, 111,27,100.
1381
CAPÍTULO XX - DAS CONVENÇÕES PÚBLICAS PELAS QUAIS SE TERMINAA GUERRA. ONDE SE TRATA DO TRATADO DE PAZ

DA SORTE. DO COMBATE COMBINADO. DA ARBITRAGEM, DA CAPITULAÇÃO. DOS REFÉNS. DOS PENHORES

feitas obrigam mesmo aquelesque pensam de outra forma. Tiro Lívio


[8] diz: "Quando as convenções de um tratado tiverem sido uma vez
estipuladas, até mesmo todos aqueles que antes não haviam concorda-
do com elas devem defendo-las como boas e vantajosas." Segundo Dionísio
de Halicarnasso [9], "deve-se obedecer às coisas que a maioria decidir"
Apiano [10] diz: "Todos são obrigados a obedecera um decreto, sem
admitir desculpa alguma." Plínio [11] diz que "todos devem observar o
que tiver sido resolvido pela grande maioria". A paz traz proveito mes-
mo para aqueles que ela obriga, se o quiserem.

V. Comoa soberania ou uma parte


da soberania ou os bens do reino podem
ser validamente alienados em vista da paz

1. Vejamos agora quais são as coisas que podem ser tema de um


tratado [12] . Os reis, como são a maior parte hoje, que não possuem seu
reino em património, mas como a título de usufruto, não têm o poder de
alienar a soberania por um tratado, nem em todo, nem em parte. Mais
ainda, antes de receber a coroa tais fitos podem ser por uma lei pública
declarados para o futuro inteiramente nulos, a ponto de não produzi-
rem sequerobrigação para os danos ou interesses.E provável que as-
sim o quiseram os povos, com receio de que se fosse concedida uma ação
ao contratante para poder receber indenização, os bens dos súditos fos-
semtomados como dívida do rei e assim a precauçãotomada para impe-
dir a alienação da soberania se tornasse inútil.

[8] ,4b Urbe ao/]dlfa, XXl1, 20,6

[9] Livro XI, 56


[10] Livro VI (melhor, Políbio, V, 49)

[11] .E]o])fujam,VI, 13
[12] Vasquez, 6b ]fro ]]7usfr., livro l cap. 4, ondecita muitos deles,e cap. 5; ver
livro 11, cap. VI, $ 111 e seguintes.
!382
H UGO GROTIOS

2. Para que todo um Estado seja validamente alienado é necessÉ


rio o consentimento de todo o povo, que pode ser dado por deputados da
partidos do povoque se chamam o/dons. Para que alguma porção d
um Estado sejaalienadavalidamente, énecessárioum duplo consenti
mento: aquele do corpo e especialmente aquele da parte de que setrate
como não podeladoser separada apesar dela do corpo ao qual está ligado
Caso contrário, esta porção, sem o consentimento do povo, transferir;
validamente a outro a jurisdição sobre ela própria, num casode extre
ma e inevitável necessidade,pois é provável que se tenha reservado est
direito quando do estabelecimento da sociedade civil.

3. Nos Estados patrimoniais nada impede que o rei aliene o rei

no. Pode, contudo, ocorrer que um tal rei não possa alienar algum:
parte de seu império, no casoem que tivesse recebido seus Estados en
propriedade, sobo encargo de não desmembrá-los. No tocante aos ben:
chamados da Coroa, podem também ser incluídos no património do rei
de duas maneiras: separadamente ou junto com o próprio reino. Se
ocorrer da segunda maneira, podem ser alienados, mas não sem o rei
no; se da primeira, podem ser alienados, mesmo separadamente,

4. Com relação aosreis que não têm o reino em património (ve]


livro 11,cap. VI, $ XIII), é difícil que o direito de alienar os bens do reine
seja considerado como lhes sendo concedido, salvo que isso não pareça
manifestamente pelos termos da lei fundamental ou por um costume
que jamais tenha sido contradito.

VI. Até que ponto um povo ou os sucessores


sáo obrigados em virtude da paz celebrada por um rei

Dissemos em outro local (livro 11,cap. XIV. $ X e seguintes) a e

que ponto o povo e ao mesmo tempo os sucessores são obrigados e


virtude de uma promessa do rei, isto é, enquanto o poder de obrigar fi l
1383
CAPÍTULO XX- DAS CONVENÇÕES PÚBLICAS PELAS QUAIS SE TERMINA A GUERRA. ONDE SE TRATA DOTRATADO DE PAZ,
DA SORTE.DO COMBATE COMBINADO. DA ARBITRAGEM, DA CAPITULAÇÃO, DOS REFÉNS. DOS PENHORES

compreendido na soberania [13], o que não deve ser estendido ao infini-


to, nem restrito por limites demasiado estreitos [14] , mas entendido de
tal forma que aquilo que se apóia numa razão provável seja válido.
Totalmente diverso será, se o rei é ao mesmo tempo o dono de seus
sÚditos, tendo recebido um poder não somente civil mas despótico (ver
livro 111,cap. Vlll, $ 11) , como aqueles que reduzem à escravidão os que
foram vencidos na guerra. Ou se, não tendo de fato poder absoluto sobre
a pessoa,mas tem um poder sobre os súditos, como ocorria com o faraó
sobreas terras do Egito que havia comprado e outros que receberam
estrangeirosem suaspróprias terras. Aqui o direito que orei tem, dife-
rente daquele da soberania, pode tornar válido aquilo que, sem isso, não
poderia subsistir pelo único direito da realeza.

yll. Os bens dos súditos podem


ser cedidos pela paz em vista do interesse
público, mas com o ónus da indenização

1. Pergunta-se ordinariamente também quais disposiçõespodem


tomar, em vista da paz, sobre os bens dos privados, aqueles que são reis
e que não têm outro direito sobre os bens dos súditos além do direito de
rei? Dissemos em outro local que os bens dos súditos são colocados sob o
domínio eminente do Estado [1 5] , de ta] modo que o Estado ou aquele
que representa o Estado pode usar desses bens e mesmo os destruir ou
os alienar, não somente num caso de necessidade extrema, mas tam'
bém para a utilidade pública, à qual aqueles que se reuniram em so-
ciedade civil devem ser considerados como que tendo querido sacrificar
os interesses privados.

[13] Vasquez, dict. cap. V. n. 9


[14] Ver Reinking, ]ivro ], c]asse 111,cap.V. n. 30. Ver também livro 11,cap.XIV, $ Vll
e XII)
[15]Gail., Oós.BeZ1,11,57
1384 H UGO GROTIUS

2. Deve-se acrescentar que, quando isso ocorre, o Estado é obri-


gado para com aqueles que perdem seu bem de indenizá-los com o di-
nheiro púb[ico [16], reparação púb]ica à qua] contribuirá também, se
necessário, aquele que sofreu o dano. O Estado não pode ser eximido
desseencargo se,por acaso,no momento presente, não tiver a possibili-
dade de o cumprir; mas todas as vezes que tiver os meios para tanto, a
obrigação voltará como se tivesse sido mantida em suspenso.

VIII. Que decidir quanto aos bens já perdidos na guerra?


Não admito sem distinção o que diz Ferdinand Vasquez [17], ou
seja, que o Estado não deve tomar a seu encargo o dano causado duran-
te a guerra porque o direito da guerra permite causar outros danos
semelhantes. Esse direito da guerra, como expusemosem outro local
(livro 111, cap. VI, $ 11), diz respeito a outros povos e se relaciona tam-
bém em parte aos inimigos entre si, mas não aos cidadãos entre si,
porquanto estãoassociadoseéjusto que partilhem entre elesas perdas
que sobrevêm por causa de sua associação [18]. Poderá, contudo, ser
estabelecido pela lei civil que nenhuma ação seja movida contra o Esta-
do em razão de uma coisa perdida na guerra, a ülm de que cada um
defenda mais vigorosamente o que Ihe pertence.

IX. Não se distinguem aqui as coisas


adquiridas pelo direito das gentes
daquelas adquiridas pelo direito civil
Há autores que colocam uma grande diferença entre as coisas
que pertencem aoscidadãos pelo direito das gentes e aquelas que não
possuem a não ser em virtude do direito civil, dando a essas um direito

[16] Vasquez,]ivro ], cap.5, $ 151Rom.,Cona.310;Silvestr., /n Ueróo.Be/7um,


1,$ 43
[17] Cbnór /77usÉr., ]ivro ], cap. IV. no final
11.8À
L. 52, Cum duobus,$ cuidam, Dig., Pro socio.
1385
CAPÍTULO XX- DAS CONVENÇÕES PÚBLICAS PELAS QUAIS SE TERMINA A GUERRA, ONDE SE TRATA DO TRATADO DE PAZ.

DA SORTE. DO COMBATE COMBINADO, DA ARBITRAGEM. DA CAPITULAÇÃO, DOS REFENS.DOS PENHORES

mais absoluto ao rei e tal que possa despojar os proprietários sem com-
pensação e não lhes conferindo o mesmo direito sobre as outras. Está
errado, pois a propriedade, de qualquer origem que provenha, tem sem-
pre seus efeitos próprios, segundo o direito natural, e não se pode privar
ninguém, a não ser por razões ligadas essencialmente à propriedade ou
que provenham de aros dos proprietários.

X. Aos olhos dos estrangeiros, a utilidade


pública passa por comprovada

Essa precaução de não alienar os bens dos privados serão para a


utilidade pública diz respeito ao rei e aos súditos, assim como aquela de
indenizar o dano diz respeito ao Estado e aosindivíduos. Para os estran-
geiros que contratam com o rei, o ato do rei lhes basta, não somente por
causa da presunção que leva em consideração a dignidade da pessoa,
mas também por causa do direito das gentes que tolera que os bens dos
súditos sejam empenhados por ates do rei(ver livro 111,cap. ll).

XI. Regra geral para a interpretação da paz


1. No tocante à interpretação das cláusulas da paz, deve-se ob-
servar o que estabelecemos antes (livro 11,cap. XVI, $ XII), ou seja, que
sedevetomar o que é mais favorável no sentido mais amplo, e dar ao
que é mais desfavorável um significado bem mais restrito. Se conside-
rarmos o mero direito de natureza, parece que essa máxima "Que cada
um tenha o seu" formulada assim pelos gregos "eKaalov eeclv lct coco'tou",
esteja no lugar das coisas mais favoráveis e, por conseguinte, a inter
pretaçãodas cláusulas ambíguas deve ter por resultado que aquele iãue
tomoujustamente as armas obtenha aquilo por que as tomou e recupe
re os danos e as despesas, mas não que ganhe alguma coisa por direito
de punição, pois isso é odioso.
1386
H UGO GKOiiUS

2. Como não ocorre que se chegue à paz pela confissão de uma


injustiça, deve-se nos tratados tomar a interpretação que torne mais
possivelmente igual a condiçãodas partes, com relação à justiça da
guerra, o que se faz principalmente de duas maneiras; uma, concor-
dando que as coisas cuja posse teria sido perturbada pela guerra [19] se
esvaziem segundo a fórmula do antigo direito que cada um tinha sobre
elas (essas são as palavras de Menippus [20] no discurso em que fala
das diferentes espécies);a outra, concordandoque as coisasfiquem no
estado em que estão, o que os gregos exprimem assim : "Que tenham o
que têm."

XH Na dúvida, acredita-se que foi


concordado que as coisas fiquem no estado
em que estão; como isso deve ser entendido

1. Desses dois meios se prefere, na dúvida, o segundo porque é


mais fácil e não traz mudanças. Daí a observaçãoque foi feita por
'h'ifonino [21] , isto é, que a paz não dá direito de postlimínio senão aos
prisioneiros dos quais se fez menção no tratado, como dissemos antes
(nesse livro, cap. IX) e que Du Faur havia judiciosamente corrigido,
como o provámos por razões evidentes. Por isso é que igualmente os
trânsfugas não serão devolvidos, salvo que se tenha concordado a res-
peito. Acolhermos trânsfugas [22] pelo direito da guerra é o que nos é
permitido por essedireito [23], isto é, admitir e contar entre nossos
próprios cidadãos aquele que muda de lado. As demais coisas ficam, em
virtude de tal tratado, com aquele que as detém.

[19] Ver Paruta, livro V.


[20] Tiro Lívio, .4ó [/róe Cnz2dfa, XXXIV. 57.8.
ZXX L. 12, in Bello, Dig., De captivis.
22À L. 51, Quallquam, Dig., l)e acquir. rer. dolnin.

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1387
CAPÍTULO XX - DAS CONVENÇÕES PÚBLICAS PELAS QUAIS SE TERMINA A GUER'RA.ONDE SE TRATA DO TRATADO DE PAZ.

DA SORTE. DO COMBATE COMBINADO. DA ARBITRAGEM. DA CAPITULAÇÃO. DOS REFÉNS. DOS PENHORES

2.A palavra manferé tomada não civilmente, masnaturalmen-


te. Nas guerras, de fato, uma possede fato basta e não se pedeoutra.
Para as terras [24], dissemos (livro 111,cap. VI, $ IV) que podem ser
mantidas se foram fechadas por algumas obras de defesa,pois aqui nao
seconsidera uma permanência temporária, comoum acampamento.
Demóstenes,em Ctesifonte [25], diz que Filipe se apressavaem tomar
tantos lugares quantos pudesse, sabendo muito bem que, como a coisa
era certa, após a paz negociada, ele ficaria com o que teria. Com relação
às coisas incorporais (ver livro 111,cap. Vll, $ IV), não podem ser pos'
puídas senão através das coisas às quais estão ligadas, como as posses
edificadas; ou das pessoasàs quais pertencem, contanto que não se
trate de exercer esses direitos no território que pertenceu aos inimigos.

XIII. Que decidir se foi concordado


que todas as coisas sejam restabelecidas
no estado em que se encontravam antes da guerra

No que diz respeito a outro meio de acomodamento, pelo qual se


restabelece a posse conturbada pela guerra, deve-se observar que se
leva em consideraçãoa última posseque existiu antes da guerra, de
modo que contudo seja permitido, aosprivados de posses,agir najusti-
ça por ação possessória ou por reivindicação

XIV Quando aqueles que, tendo sido


independentes, se submeteram voluntariamente
à dominação de alguém, não devem ser liberados

Sealgum povolivre sesubmeteuvoluntariamente a um dosbeli-


gerantes, a restituição não se estenderá a ele, pois ela não diz respeito
senão às coisas feitas por efeito da violência, dotemor ou de uma agressão

[24] Decius, tomo 111,Cona. 74


[25] Z)e oOU'OJ?a,26.
1388
H UGO GxOTiUS

que não seja permitida senão contra um inimigo. Assim é que pela paz
concluída com os gregos,os tebanos retiveram P]atéia [26], dizendo que
"deviam esse lugar não à violência, à traição, mas à livre vontade da-
queles a quem havia pertencido". Foi em virtude de semelhante direito
que Niséia ficou com os atenienses. Tu]]ius Quinctius [27] usava da
mesma distinção contra os habitantes de Etólia, dizendo: "Esta cláusu-
la dizia respeito às cidades tomadas, mas as cidades da Tessália volun-
tariamente se colocaram sob nossa dominação."

XV Na dúvida, os danos causados


pela guerra são considerados remidos

Se nada mais foi concordado, deve-se supor, em todo tratado de


paz, que se tenha definido que não possa ter lugar qualquer ação em
razão dos danos causados na guerra; o que deve se entender mesmo em
relação aos danos soü'idos por privados, pois esses são efeitos da guerra.
Na dúvida, de fato, presume-seque osbeligerantes quiseram que nem
um nem outro fosse condenado como culpado de injustiça.

XVI. Náo é o mesmo para as coisas que eram


devidas a cidadãosprivados antes da guerra
As coisas que começaram a ser devidas a privados antes do come-
ço da guerra não devem, contudo, ser consideradas restituídas [28],
pois essascoisasnão foram adquiridas pelo direito da guerra, mas é
somente a guerra que impede que o reembolso seja exigido. Por isso é

1261Passagem que se encontra em Tucídides, livro V. 17. Uma passagem semelhan-


te a havia precedido (livro 111,52): 'P7aÉÓ/b
náo áo devo/wdaporque Áaójra/ fes
da cidade se entregaram voluntariamente.
[27] Tiro Lívio, .4ó Z:/róeOo/?d;#a,XXXl11, 13,12
l2SI Dec. Co/?s.61
1389
CAPÍTULO XX - DAS CONVENÇÕES PÚBLICAS PELAS QUAIS SE TERMINAL GUERRA. ONDE SE TRATA DO TRATADO DE PAZ.

DA SORTE. DO COMBATE COMBINADO, DA ARBITRAGEM. DA CAPITULAÇÃO, DOS REFÉNS. DOS PENHORES

que, supresso o impedimento, retomam sua força. Quanto ao direito


existente antes da guerra, embora não deva ser considerado facilmente
tirado de quem quer que seja, porquanto foi sobretudo para manter
cada um de posse de seus bens que as Repúblicas e os Estados foram
estabelecidos, como o diz com razão Cícero [29], é preciso entender isso,
contudo, a partir daquele direito que surge da desigualdade das coisas.

XVII. Mesmo as punições merecidas


pelo Estado antes da guerra são,
em caso de dúvida, consideradas remadas
Não ocorre o mesmo com o direito de iní]igir castigos [30], pois
esse direito, enquanto se aplica entre os reis ou os povos, deve ser consi-
derado abandonado por temor que a paz não seja realmente paz, se
deixar subsistir antigas causas de guerra. Por isso é que as próprias
coisas que eram ignoradas serão compreendidas sob os termos gerais,
como aconteceu com mercadores romanos que, segundo relato deApiano
[31], os próprios romanos não sabiam que haviam sido afogados pelos
cartagineses. Dio.nísio de Ha]icarnasso [32] escreve:"As me]hores re-
conciliações são aquelas que abrandam a ira e apagam a lembrança das
ofensas." ]sócrates [33] diz que "na paz, não se deve recorrer aos crimes
anteriores

XVIII. Que decidir quanto ao direito


de punir que os privados têm?
No que diz respeito ao direito doscidadãos privados de infligir
um castigo, a razão não é tão grande para que seja considerado remido,
porque pode ser exercido por meio dos tribunais, sem recorrer à guerra.

[29] Z)e (2EZ7bz]s,


11, 21,73.
[30] Gail., Z)enresíl), cap. X]V. n. 7.
[31] PU/?J'Ca, 5.

[32] Livro 111,8


[33] P7aéalca, 7
l
1390
H U GO GKOtl US

Como esse direito, contudo, não nos pertence da mesma maneira que
aquele que nasce da desigualdade e como as penas têm sempre alguma
coisa de odioso, uma leve conjectura de palavras bastará para que esse
direito seja também considerado como reposto.

XIX. O direito pretendido pelo Estado


antes da guerra, mas que era contestado,
se considera remadosem dificuldade

O que dissemos a respeito do direito existente antes da guerra


que não deve facilmente ser considerado perdido, deve ser observado
geralmente a respeito também do direito dos privados. Quanto ao direi-
to dosreis e dospovos,há mais facilidade para que alguma reposição
seja considerada feita, se contudo os termos ou conjecturas não impro-
váveis permitem crer que assim seja e sobretudose o direito de que se
trata não era líquido, mas contestado.De fato, é benfazejo acreditar que
houve a proposta de aniquilar as sementes da guerra. O mesmo Dionísio
de Halicarnasso [34] , há poucocitado, diz: "Não é precisopensar tanto
em restabelecer a amizade no momentopresente, mas sim dispensar
cuidados para não sermos novamente envolvidos numa guerra. Nós
não vivemos em sociedadepara prolongar nossos males, mas para
extirpá-los." Estasúltimas palawas sãopraticamente copiadasliteral-
mente de lsócrates [35], de seu discurso sobre a paz.

XX. As coisas apreendidas devem


serrestituídas após a paz

Consta de modo suficientemente claro que as coisas que foram


tomadas depois da conclusão dos tratados devem ser devolvidas, pois o
direito da guerra já não subsistia mais.

134] Livro 111,9.


135] Z)e Face, lO
1391
CAPiTUtO XX - DAS CONVENÇÕES PÚBLICAS PELAS QUAIS SE TERMINA A GUERRA, ONDE RETRATA DO TRATADO DE PAZ.
DA SORTE, DO COMBATE COMBINADO, DA ARBITRAGEM. DA CAPITULAÇÃO. DOS REFÉNS. DOS PENHORES

Algumas regras sobre a convençãode devolução


das coisas apreendidas durante a guerra
Nos tratados [36] re]ativos à restituição das coisas apreendidas
na guerra, deve-seem primeiro lugar dar um sentido mais amplo às
cláusulas que são recíprocas do que aquelas que favorecem somente
uma das partes; em segundo lugar, aquelas que tratam dos homens são
mais importantes que aquelas que tratam das coisas; e entre aquelas
que são relativas às coisas, as que se referem às terras têm mais impor'
tância que aquelas que se referem às coisasmobiliárias. Os artigos que
tratam das coisas pertencentes ao público são preferidos aos relativos
às coisas pertencentes aos privados e entre os artigos que tratam do que
pertence aos privados, aqueles que ordenam devolver as coisas que se
possui a título lucrativo obrigam de modo mais incisivo que a devolução
do que se possui a título oneroso, como as coisas adquh'idas por compra,
por dote]37].

XX].l. Dos frutos

Quando se concede a alguém uma coisa pela paz, concede-se tam-


bém os frutos a partir do tempo da concessão e não retroativamente, o
que César Augusto [38] sustentava com razão contra Sexto Pompeu
que, depois que Ihe haviam cedido Peloponeso, reclamava ao mesmo
tempo para ele próprio os tributos que eram devidos de anos passados.

XXIII. Dos nomes dos países


Os nomes dos países devem ser entendidos segundo o uso do tem-
po presente [39] , não tanto de acordo com o uso popular, mas segundo o
das pessoas esclarecidas, pois tais negócios costumam ser tratados por
pessoasesclarecidas.

[36]Alc. V. resp. 17.


[37] Marcus Tullius Cicero, Z)e (2/õcíz:s,11, 23,81.
[38] Apiano, Z)e .Be/T.OIK, V. 77
[39] Ver Guichardin, livro V (]itígio entre franceses e espanhóis)
1392 H UGO GROllUS

XXIV Da referência a uma convenção


precedente e daquele que cria impedimentos
Aqui estão ainda regras que são de uso frequente. Todas as vezes
que houver referência a algum tratado anterior ou antigo, todas as
cláusulas e condições expressas no primeiro tratado devem ser tidas
por acatadas. Deve-sereputar comofeito aquilo que alguém quis fazer,
se foi impedido de fazê-lo por aque]e com quem estava em ]itígio [40].

XXV Do prazo

Aquilo que alguns dizem, que o atraso comporta uma desculpa,


quando foi encerrado em limites restritos, não é verdade, salvo que
uma necessidadeimprevista tenha sido a causa do impedimento [41].
Alguns cânones são favoráveis a essa desculpa, não é de estranhar,
porquanto seu dever é de levar os cristãos às coisas que convêm à cari-
dade fraternal. Mas nesta questão da interpretação dostratados, não
procuramos o que é melhor, nem mesmo o que a religião e a bondade
exigem de cada um. Procuramos sim aquilo a que se pode ser obrigado,
o que está totalmente compreendido nesse direito que chamamos de
exterior.

XXVI. Na dúvida, a interpretação deve pender


contra aquele que ditou as condições
Quando um sentido é ambíguo, é preferível que a interpretação
se volte contra aquele que ditou as condições [42] , o que de ordinário
está do [ado do mais poderoso. Aníba] [43] diz: "Compete ao que dá, não

[40] Marcus Fabius Quintilianus, .Dea/amaüones,


343
[41] Ver Albert Argent
[42] Plauto(Pera., 586) escreve: 'H mercadoria é fua, a íl c'oinpí?fe esfaóe/ecer o
preço." Deste modo, geralmente fala por primeiro aquele que é mais poderoso,
mas quandose trata de pedir condições,entãoé o mais fraco que começaa
EaJazÕ
Em guita(467 C), Plutarco escreve: 'Zbmpefe aos que p2'ec2)amde paz
falar primeiro. Ao vezlcedor, basta que se cale.
[43] Tito Lívio, ,4ó Z:/rbe a0/7difa, XXX, 30,24.
1393
CAPÍTULO XX - DAS CONVENÇÕES PÚBLICAS PELAS QUAIS SE TERMINA A GUERRA. ONDE SE TRATA DO TRATADO DE PAZ.
DA SORTE, DO COMBATE COM81NADO, DA ARBITRAGEM, DA CAPITULAÇÃO, DOS REFÉNS.DOS PENHORES

ao que pede, estabelecer as condições de paz." Precisamente do mesmo


modo que a interpretação se vo]ta contra o vendedor [44] .Aque]e que
não se expressoumais claramente tem, de fato, de se culpar a si pró-
prio. Quanto à outra parte, pede com direito interpretar o que tinha
vários sentidos, segundo aquele que Ihe era mais vantajoso. O que
Aristóteles [45] disse tem re]ação com isso: "Quando a amizade é funda-
da no interesse, a utilidade daquele que recebe é a medida do que é
devido.

XXVII. Fornecer uma nova causa para a guerra


e romper a paz sáo coisas distintas
A questão seguinte é também de uso quotidiano. 'l\'ata-se daque-
la de saber quando a paz é considerada rompida, o que os gregos cha-
mam "7tapctanovotlpa". Não é a mesma coisa fornecer uma nova causa
à guerra e romper a paz, mas há uma grande diferença entre elas,
tanto a respeito da pena em que deve incorrer o infrator, quanto com
relaçãoao que diz respeito às outras cláusulasdo tratado, ao
descompromissoda palavra daquele contra o qual alguém se tornou
culpado.A paz se rompe de três maneiras: agindo contra o que é essen-
cial a toda paz, ou contra o que foi claramente expressona paz, ou
contra o que se deve presumir da natureza de uma certa espéciede paz.

XXVIII. Como se rompe a paz violando


as condições essenciais de toda paz

Contra o que é essencial a toda paz: se for cometido algum ato de


hostilidade à mão armada, quando, bem entendido, não há nenhuma
causa nova para agir desse modo. Se for possível dar alguma razão

[44] .L Sg Referi'Óu8 Z)lb, De pacéÜ.


[45] .éfl'ca a NI'cómico, V]11, 15
1394
H UGO Gxoiius

plausível, seria melhor acreditar que uma injustiça foi cometida sem
perfídia antes que com perfídia. Vale a pena relembrar estas palavras
de Tucídides [46] : "Não sãoaqueles que rechaçam a força pela força que
rompem a paz, mas aquelesque por primeiro atacam os outros" [47].
Isto posto, é preciso ver da parte de quem e contra quem um ataque
armado rompe a paz.

XXIX. Que decidir se os aliados cometeram violências?

Sei que há autores que pensam que, se aqueles que foram aliados
fazem qualquer coisa semelhante, a paz será rompida. Não nego que se
possa concordar que sim, de modo que, não que um se torne, propria-
mente falando, responsável do fato de outrem, mas que a paz não pare-
ça plenamente selada e que não esteja sob condição, em parte sob a
égide do poder e em parte casual. Entretanto não se deve acreditar que
a paz tenha sido feita dessa maneira, a menos que isso transpareça de
modo manifesto. De fato, seria contra as normas e isso não convém ao
voto comum daqueles que gelam a paz. Aqueles, pois, que cometeram
esses atou de hostilidade, sem serem ajudados por outros, serão res-

[46] Livro 1, 123


1471Ver Amiano Marcelino que assim se exprime a respeito dos romanos, no início
la \talo mlX (\, \). "Retirando-se de modo premeditado para leão serem os
primeiros a atacar os adie!'safios e não serem acusadosde romperem a aliança,
não se !andaram ao ataque senão no momeJlto extremo." B.m Proc6y\a ÇPersÍc.,
11,3), os armênios dizem em seu discurso a Cosroé: 'Rompen] â paz náo aqueles
que por primeiro í;amam eln armas, Dias fique.les que, }llesmo no período de
vigor da aliança, são surpreeJldidos arfando ciladas a seus aliados." 'Eqomesma
historiador ( Banda/ic., 11, 11), os mouros dizem: "Os qz/e ro/npe/n a paz nâo são
aqueles que, vítimas de injúrias e queixando se abertamente, se pastam do lado
!o adversária do agressor,mas aqueles quelevam ameaçasà parte que desejam
por aliada, torna!\dc-se assim seguramente inimigos. Não são aqueles que,
rompendo com uln aliado, não o fazem senão em próprio beneHcic,mas aqueles
]ue, tomalldo os bens alheios, reduzem os legítimos praprietáüos à necessidade
i.e se exporem aos perigos da gue!'!a
1395
CAPÍTULO XX - DAS CONVENÇÕES PÚBLICAS PELAS QUAIS SE TERMINAA GUERRA. ONDE SE TRATA DO TRATADO DE PAZ.

DA SORTE,DO COMBATE COMBINADO. DA ARBITRAGEM. DA CAPITULAÇÃO. DOS REFÉNS, DOS PENHORES

ponsáveis pela ruptura da paz e subsistirá o direito de mover guerra


contra eles, não contra os outros. Disso é que os tebanos [48] por vezes
acusavam os aliados dos lacedemânios.

XXX. Que decidir, se são súditos e como se deve


presumir que seu procedimento é aprovado?
Se súditos cometem algum ataque à mão armada, $emordem da
autoridade pública, dever-se-áverificar se pode ser dito que a ação des-
sescidadãos privados é aprovada pelo Estado. Pode-se facilmente julgar
pelo que dissemos antes (livro 11,cap. XXI, $ 1l e seguintes) que por isso
três coisas sãorequeridas: o conhecimento, o poder de punir e a negli-
gência de o fazer. Fatos manifestos ou notificados provam o conheci-
mento. O poder se presume, salvo que não apareça que houve revolta. A
expiração de um espaçode tempo como aquele que, em cada Estado, é
ordinariamente tomado para punir os crimes, demonstra a negligência
e semelhante negligência vale tanto quanto um decreto. Por isso não se
deve entender de outro modo o que diz Agripa em Josefo [49], que o rei

dospartas considerava a paz rompida se seus súditos marchassem em


armas contra os romanos .

XXXI. Que decidir, se os súditos se põe a serviço de outros


poderes?

Pergunta-se muitas vezes se isso ocorre igualmente quando os


súditos de alguém não toma m suas próprias armas, mas se colocam a
serviço dosoutros que fazem a guerra. Seguramente os ceritas, em Tlito

[48] Pausânias, livro ]X, ].

[49] De .BeiçoJudaico, 11, 16,4


1396 H UGO GROTIUS

Lívio [50], se justificam a]egando que os membros de sua nação não


tinham tomadoem armas em virtude de um ato da autoridade Pública
A defesa dos habitantes de Redes [51] foi também a mesma. Parece
mais verdadeiro dizer, contudo, que isso não é permitido, a não ser que
pareça, por razões plausíveis, que se tem o direito de assim agir. Isso
acontece por vezes em nossos dias, seguindo o antigo exemplo dos habi-
tantes da Etólia [52], para osquais era comoque um direito estabe]eci-
do "saquear o que fora saqueado". Tal era a força desse costume, diz
Políbio [53], que, "se outros povos estão em guerra entre si, fossem e]es
amigos, aliados, nada impedia os etólios de se unirem a um ou a outro
[ado, sem qua]quer decreto público a respeito [54], e de saquear a am-
bos". Sobre os mesmos, Tito Lívio [55] escreve: "Permitem a seus jo-
vens de tomar partido contra seus aliados. A esse costume só falta a
autorização do Estado. Exércitos contrapontos entre si possuem muitas
vezes, cada um de]es, auxi]iares etó]ios." Outrora os etruscos [56] , recu-
sando auxílio aos veios, não impediam que seusjovens que quisessem
partissem para essa guerra.

XXXII. Que decidir, se os súditos foram


prejudicados? Uma distinção é feita

1. A paz deve ainda ser considerada rompida, não somente se for


atacado todo o corpo do Estado, mas mesmo quando se atacasse à mão
armada os súditos, bem entendido sem nova razão. Apaz é concluída

150] ,áó Z:ü-óeao/ldlfa, Vl1, 20,5


[51] Aulus Gellius, Àrocées .4fflcae, V], 3
[52] Tullius Maccius Plautus, 7}ucu/enfus, 567: 'Z'u gagueja o saque.
[53] Livro XVl1, 4,5. Ver também o próprio em .Eraerpéa,n. 6
[54] Agatias (livro IV. 13) conta a mesma coisa dos hunos sabírios de seu tempo
[55] .4Ó Z:XTÓc?
ao/]dl'fa, XXX]1, 33,5
[561 Tito Lítio, .4ó Z:/2-óeCo/ dv a, V. 17,9.
1397
CAPÍTULO XX - DAS CONVENÇÕES PÚBLICAS PELAS QUAIS SE TERMINA A GUERRA, ONDE SE TRATA DO TRATADO DE PAZ.
DA SORTE. DO COMBATE COMBINADO. DA ARBITRAGEM. DA CAPITULAÇÃO, DOS REFÉNS. DOS PENHORES

para que todos os súditos estejam em segurança. A paz é, de fato, um


ato do Estado para o todo e para as partes Moais ainda, mesmo se hou-
ver uma nova razão, será permitido durante a paz defender-se a si e aos
E natural, como diz Cássio157], rechaçar as armas pelas armas.
Por isso não é fácil acreditar que a isso se renuncie entre iguais. Não
será, contudo, permitido vingar-se t)u recuperar pela violência as coisas
levadas, a não ser que, após decisão judicial, persista a recusa em res-
tituir, porquanto uma coisa comporta mora, outra não.
2. Se o malefício dos súditos continua de tal modo sem interrup'

ção [58] e for de ta] modo contrário ao direito natural, que aquilo que
fazem, devem fazê-lo supostamente com a total desaprovação daqueles
que governam e que não se possa recorrer à justiça contra eles, como
sãoos que exercem a pirataria, será permitido recuperar de suas mãos
osbens que tomaram, vingar-se deles, como se tivessem sido entre-
gues.Por causa disso, porém, atacar com as armas outras pessoasque
sãoinocentes é agir contra a paz-

XXXlll. Que decidir se se prejudicou os aliados?


Cabeigualmente uma distinção.
1. Um ataque à mão armada contra aliados também rompe a paz
[59] . Contra somente aqueles que foram compreendidos na paz, como
mostramos quando examinámos (livro 11,cap. XVI, $ 13) a controvérsia
de Sagunta. Os coríntios insistem sobre esse ponto no discurso que se

[57] Z. ], Hh vl] 22ib, .De ü ef vl a/m

[58] Assim foi que Augusto se pronunciou contra Silas e em favor de Herodes
(Flávio Josefo, .4nólküJdades Judaicas, XVI, 16)
[59] De Thou, ]ivro XV, ano de 1578. Algo a respeito se pode ver também em
Haraeus, tomo ll da história de Brabante, comrelação ao ano de 1556
1398 H UGO GROTIUS

encontra em Xenofonte, no livro #7sfór:ü Gz'e#a [60]: "Todos nós jura-


mos a todos vós." Se os próprios aliados não estiveram presentes no ato
de firmar o tratado, mas outros os representaram, deve-se, no entanto,
decidir a mesma coisa, a partir do momento em que é suficiente que
conste que esses associados ratificaram a paz, pois enquanto perdurar a
incerteza de que quisessem ratifica-la são considerados como inimigos.

2. A causa dosoutros aliados, comotambém aquela dos indiví-


duos ligados pelo parentesco e afinidade que não são súditos, nem no-
meados na paz, é separada [61] e um ataque contra eles não pode ser
considerado como uma ruptura da paz. Entretanto, não se segue,como
o dissemos antes (livro 11,cap. XVI, $ XIII), que a guerra não possa ser
movida por este motivo, mas esta guerra teria lugar em virtude de
novacausa.

XXXIV Como se rompe a paz, agindo


contra o quefoidito napaz?

A paz se rompe também, comodissemos,fazendo alguma coisa


de contrário do que foi dito na paz. Sob o termo vaza'compreende-se não
fazer o que se deve e no tempo devido.

XXXV. Se é preciso distinguir entre os artigos da paz

Não admitiria tampouco aqui a diferença entre os artigos da paz


que são de grande importância e aqueles que são de pouca importância.
Aqueles, de fato, que foram inseridos na paz devem parecer suficiente-
mente importantes para serem observados.Abondade contudo, prin-

[601 J?Jb#.Graec.,V], 5,37


[61] Cep. Cons. 690; Dec. Cona. 531
1399
CAPÍTULO XX - DAS CONVENÇÕES PÚBLICAS PELAS QUAIS SE TERMINA A GUERRA. ONDE SETRATA DO TRATADO DE PAZ.

DA SORTE. DO COMBATE COMBINADO, DA ARBITRAGEM, DA CAPITULAÇÃO. DOS REFÉNS. DOS PENHORES

cipalmente a bondade cristã, perdoa facilmente leves faltas, sobretudo


sehouver arrependimento, a ülm de que esta máxima [62] encontre sua
aplicação: "Aquele que se arrepende de ter pecado é quase inocente."
Mas para conferir mais garantias à paz, seria conveniente acrescentar
aos artigos de menor importância (ver livro 11, cap. XV. $ XV) que, se
algo for cometido contra eles, isso não venha a romper a paz [63], ou
ainda que haja recurso a árbitros antes de permitir tomar em armas.
Isto estava estipulado no tratado do Peloponeso, como o relembra
'lUcídides [64] .

XXXVI. Que decidir, se uma pena foi acrescida?

Estou plenamente convencido que isso parece ter sido concordado


dessaforma, se alguma pena especial foi acrescida [65]. Não que eu
ignore que se possa contratar de maneira que a escolha caiba àquele
contra quem uma agressão foi feita, de preferir a pena ou de renunciar
à convenção, mas porque a natureza do negócio requer antes o que eu
disse. Nisso reside a verdade e isso foi já dito antes (livro 111,cap. XIX,
$ XIV). Além disso, foi provado pela autoridade da história que não
rompe a paz aquele que descura por último os compromissos contrata-
dospura e simplesmente, porquanto a isso não era obrigadosenão sob
condição.

XXXVII. Que decidir se a necessidade põe um obstáculo?

Seocorrer que alguma necessidadese torne causa para que uma


das partes não execute o que foi prometido, por exemplo, se a coisa
pereceu ou se foi roubada ou se algum acidente tornou o fato impossível,

[62] Sêneca, .4ganJen /]o, 244


[63] Ver um notáve] exemp]o no tratado de paz entre Justiniano e Cosroé. Menandro
o Protelar, menciona esse tratado (.8rcerp . Legal. Ro/n.)
[64] Livro V. 79
[65] Como nos pactos entre godos e francos. Ver Pi-ocópio,Gofóãic., 1, 12.
1400
H UGO GKOtiUS

a paz não deve ser considerada rompida. Como dissemos, não Costuma
depender de uma condição casual. Mas a outra parte poderá escolher, se
prefere esperar, no caso em que houver alguma esperança que a pro-
messa possa ser cumprida mais tarde ou então receber por estimativa a
coisa prometida ou ser desobrigadade outras cláusulas recíprocasou
equivalentesàquela.

XXXVIII. Mesmo se a palavra tiver sido violada,


a parte inocente pode conservar a paz

Seguramente, mesmo depoisque a palavra foi violada, existe a


liberdade para a parte inocente de conservar a paz, como fez Cipião
depois de numerosas perfídias dos cartagineses (ver, neste livro, cap.
XIX, $ Xlll e seguintes) porque ninguém se desliga de uma obrigação
agindo contra essa obrigação. Se foi acrescido que a paz deva ser conside-
rada comorompida por tal fato, essacláusula deve ser qualificada como
acrescida unicamente no interesse do inocente, se quiser dela se servir.

XXXIX. Como se rompe a paz, violando o que é


específico de uma certa espécie de paz

Em último lugar dissemos que a paz se rompe fazendo o que a


natureza particular da guerra repudia.

XL. O que recai sob a denominaçãode amizade

1. Assim, as coisas que são contra a amizade rompem a paz con'


tratada sob a condição de amizade, pois o que só o dever da amizade
exigiria entre outras pessoasse torna aqui obrigação pela lei do tratado.
Refiro a esse caso (mas de modo algum com referência a todo tipo de
paz, pois há também tratados que não são feitos com o fim de selar a
1401
CAPÍTULO XX - DAS CONVENÇÕES PÚBLICAS PELAS QUAIS SE TERMINA A GUERRA. ONDE SE TRATA DO TRATADO DE PAZ.
DA SORTE, DO COMBATE COMBINADO. DA ARBITRAGEM. DA CAPITUUÇÃO, DOS REFÉNS. DOS PENHORES

amizade conjunta, como nos ensina Pompânio [66]) muitas coisas que,
relativas às agressões feitas sem armas e aos ultrajes, são geralmente,

para osjurisconsultos, um assunto de dissertação. Veja-se especialmente


esta passagem de Cícero [67] : "Após a reconciliação, se alguma ofensa
for cometida, não é mais vista como um efeito de negligência, mas como
uma violação da amizade, nem como uma imprudência, mas como uma

perfídia." Aqui se deveainda, no entanto, tanto quanto possível,tirar


da ação seu caráter odioso

2. Por isso é que, ainda que a injúria tenha sido feita a uma
pessoaíntima ou submissa, não será considerada como feita contra
aquele com quem a paz foi selada, salvo que não tenha sido feita aberta-
mente para insultar. As leis romanas [68] seguem esta equidade natu-
ral comrelação aosescravoscruelmente maltratados. O adultério ou o
estupro deveriam ser imputados antes à paixão do que à inimizade. A
usurpação do bem alheio seria motivo de acusaçãode nova cobiça, antes
que de uma violação da palavra dada

3. Seguramente, ameaçasviolentas, sem que tenham sido prece'


lidas de um novo motivo para fazê-las, são incompatíveis com a amiza'
de. Referiria a isso as fortalezas erguidas junto às fronteiras, em vista
não de se defender, mas de prejudicar. Um recrutamento inusual de
tropas, se parecer, por indícios suficientemente plausíveis, que esses
preparativos não são feitos senão contra aquele com o qual a paz foi
selada

y66ÀL. 5, Postiiminii, Díg., De captivis-

[67] Pro Cabia.(em Jerânimo, Jpo/CZgla adç'ersus Litros RuÉ7n2,l, l)

VG8À
L. l, Item si cui, Díg., De injur.; Instit., $ Servis, eodemtit.;Alex., Cona.11,n. 3.
1402
H UGO GROtiUS

XLI. Se é agir contra a amizade


acolher súditos e exilados

1. Não é contra a amizade [69] aco]her indivíduos isolados que


querem passar de uma dominação a outra. Essa liberdade, de fato, não
é somente natural, mas é ainda favorável, como o dissemos em outro
local (livro 11,cap. W $XXIV). Colocono mesmo patamar o asilo dado
aos exilados. Nenhum direito é dado ao Estado contra os exilados, como
dissemos em outro local (ibidem, $ XXV), citando Eurípides. Com razão
é que Perdeu, em Tito Lívio [70], diz: "Para que serve que o exílio esteja
disponível para alguém, se não há lugar no mundo para acolher o exila-
do?"Aristides, num discursoem Leuctres [71], designaofato "de levan-
tar os que caem, direito comum dos homens; dar guarida aos exilados,
é também o direito comum dos homens'

2. Não é certamente permitido, como dissemosem outro local


[72], aco]her cidades inteiras ou grandes massas de homens que fazem
parte integrante de um Estado, nem aqueles que devem seu serviço ou
seu trabalho de escravos em vü'tude de um juramento ou por outro

[69] cólon (Plutarco, So/on, 91 F) não deixava inscrever no álbum dos cidadãos
senão aqueles que haviam sido rechaçados de sua pátria, condenadosa exiba
perpétuo, ou aquelesque tivessem emigrado com toda a família para Atenas, a
6im de exercer uma atividade. Em Apiano (ZrcerpÉa Zegaflbnum, n. 25). Perseu
hz "Agi em conformidade com o direito comum dos homens, segundo o qual
ç,cás
recebes es /#ua/me/?íe exz7adosde ou/ras nações." Esse direito comum é
geralmente confirmado ou fortalecido por tratados. Ver o tratado de paz de
Antíoco, em Políbio (Ercerpfa Z%af., n.'25) e em Tito Lívio; o tratado entre os
romanos e os persas, em Menandro, o Protelar; ver também Simler. sobre as
convenções dos suíços entre si. Estrabão (limo XVI, 2,14) atesta: "Os iaó/fan'
;es de Arádia, enquanto os reis da Síria guerreavam entre si, tiveram permis-
são de concederrefúgio aos fugitivos, mas sem poder rechaçá-los
[70] HÓ 27/Óeao/]dJ'fa,XLl1, 41,7
[71] .LeucÓÜaa, l

[72] Livro 11,cap.V. $ XXIV. Ver também Bizarro, livro Xll


1403
CAPÍTULO XX - DAS CONVENÇÕES PÚBLICAS PELAS QUAIS SE TERMINAL GUERRA.'ONDE SE TRATA DO TRATADO DE PAZ,

DA SORTE, DO COMBATE COMBINADO. DA ARBITRAGEM. DA CAPITULAÇÃO. DOS REFÉNS. DOS PENHORES

motivo. Lembramos antes (livro 111,cap.Vll, $VIII) que, entre alguns


povos, a mesma coisa foi introduzida pelolusgenüum (direito das gen-
tes), com relação àqueles que se tornaram escravos em decorrência da
guerra. Quanto à obrigação de entregar aqueles que, sem serem exila-
dos,fogem de uma pena legítima, já falamos em outro local (livro ll,
cap. XXI, $ 111e seguintes).

XLll. Comose termina a guerra por sorte

O êxito da guerra não pode semprelicitamente ser submetido à


chance da sorte, mas somente todas as vezes que se trata de uma coisa
sobrea qual temosum pleno direito de propriedade.Um Estadoestátão
rigidamente obrigado a defender a vida de seussúditos, seu pudor e
outras coisas semelhantes e um rei a proteger o bem do Estado para
poder omitir os meios que são mais naturais para a defesade si mesmo
e dos outros. Entretanto, se, no final das contas, aquele que for envolvi-

do por uma guerra injusta for de tal maneira inferior que não possa
alimentar qualquer esperançade resistir, pareceque possaoptar pelo
caminho da sorte, a fim de escapar de um perigo certo através de um
perigo incerto. Este, de fato, é, de dois males, o menor.

XLlll. Como,por um combate combinadoe se é lícito

1. Segue a questão muito debatida dos combates concordados


para pâr Rm à guerra, entre um número determinado de homens.Um
só,por exemplo, de parte e outra, como entre Enéias e Ttirnus, Menelau
e Pária. Dois contra dois, como entre os etólios e os eleanos [73] . T\'ês

[73] Pausânias, ]ivro V. 4,2


1404
H UGO GROTIUS

contra três, como entre os Horácios romanos e os Curiáceos albanos


[74]. b'ezentos dos dois lados, como entre os lacedemânios e os
argenses.

2. Se considerarmos somente o./usgenZlum externo, não há que


duvidar que tais combatesnão sãopermitidos por essemesmo direito.
Essedireito, de fato, permite indistintamente a matança dosinimigos.
Se a opinião dos antigos gregos, dos romanos e outras nações era verda-
deira, que cada um é dono absoluto de sua vida, a justiça interior não
faria tampouco oposição a esses tipos de combates. Dissemos já (livro ll,
cap. XIX, $ V e cap. XXI, $ 1), contudo, várias vezes que essa opinião
está em oposição com a regarazão e os preceitos de Deus. Demonstra-
mos em outro local (livro 11,cap. 1, $ Xll e seguintes), pela razão e pela
autoridade dosoráculos sagrados,que pecacontra o amor do próximo
aquele que mata um homem para conservar bens que deles nem pode-
ria precisar.

3. Acrescentaremos agora que peca contra si mesmo e contra


Deus aquele que estima tão poucosua vida que Deus Ihe concedeucomo
um grande benefício. Se se trata de uma coisa que exija mover guerra,
como seria a salvação de um grande número de inocentes, deve-seentão
empregar todas as forças. Fazer uso do combate concordado, como de
um testemunho da boa causa ou como de um instrumento do julgamen-
to divino, é uma coisa vã e estranha à verdadeira piedade [75] .

4. Há uma só coisa que pode tornar um tal combate legítimo e


justo, do lado somente de uma das partes. 'l)'ata-se do fato de se esperar
de qualquer modo que, agindo de outra maneira, aquele que sustenta a
causa injusta seja vencedor a preço de uma grande matança de inocen-

[74] Tito Lívio, .4ó Z://óe Cb/7d)Éa, 1, 24 e seguintes

l7õl TomasdeAquino, 11,2, quaest. 95, art. 8; ibid., Cajetan.)


!405
CAPÍTULO XX - DAS CONVENÇÕES PÚBLICAS PELAS QUAIS SE TERMINAL GUERRA,ONDE SE TRATA DOTRATADO DE PAZ
DA SORTE. DO COMBATE COMBINADO. DA ARBITRAGEM, DA CAPITULAÇÃO, DOS REFÉNS, DOS PENHORES

tes [76] . Não há, de fato, nada a imputar ao que prefere combater por
essemeio porque Ihe faz entrever uma esperança talvez mais provável.
Mas é verdade também que certas coisasque não convém fazer não são
comrazão aprovadas por outros, mas são permitidas para evitar males
mais graves que, de outra forma, seriam inevitáveis. Assim é que em
muitos lugares, a usura e a prostituição feminina sãotoleradas.

5. Assim, pois, o que dissemos acima (livro 11,cap. XXlll, $ X),


quando se tratava dos meios de prevenir a guerra, que se dois príncipes
entre os quais houver contestação pela coroa estão prestes a resolver
entre eles sua divergência pelas armas, o povo podetolera-lo para evitar
uma infelicidade maior, sem isso iminente [77] .A mesma coisa deveria
ser dita quando se trata de põr 6im à guerra. Assim é que Cito provocou
o rei da Assíria [78] . E também que, em Dionísio de Halicarnasso [79] ,

Menus diz que não seria injusto seos príncipes dospovosresolvessem


entre eles próprios suas diferenças pelas armas [80], se setratasse de
seupoder ou de sua dignidade e não daquela de seus povos Assim tam-
bém é que lemos que o imperador Herác]io [81] havia travado seu com-
bate singular com o filho do Cosroés, rei da Pérsia.

[76] Cajetan., na passagem mencionada.


1771Aegid. Regius, Z)i'sp. .7Z duó. 2, n. ]8.
[78] E que, bem antes, Halo provocou Euristeu. Ver Eurípides (.17erac/.,800 ss.).
[79] Livro 111,12

também o que os historiadores contam das provocaçõesentre o imperador


Cardos
V e o rei da Fiança,Francisco
l.
[81] Ver Aymoinus, livro IV. cap. 21 e Fredegário, cap. 64.
1406
H UGO GROTIUS

XLIV Se o fato dos reis obriga aqui os povos

De resto, aqueles que remetem assim a decisão de sua controvér-


sia ao êxito de um combate podem, na verdade, se tiverem algum direi-
to, se despojar a si mesmos, mas não podem conferir um direito à outra
parte que não o tem, ao menosnos Estadosque não sãopatrimoniais.
Por isso é que, para que o acordo tenha efeito, é necessário que consiga
o consentimento do povo e daqueles, sejá nasceram, que têm um direito
à sucessão. Nos feudos não â'ancos o próprio consentimento do dono ou
senhor.

XI.V. Quem deve ser considerado vencedor

1. Muitas vezes, nos combates, pergunta-se qual dos dois deve


ser considerado vencedor [82]. Não podem parecer vencidos senãoaque-
les que tiverem sucumbido ou foram postos em fuga. Assim, em Tito
Lívio [83], retirar-se em suas fronteiras ou em suas praças fortes é o
sina[ de ter sido vencido [84] .

2. Em três ilustres historiadores, Heródoto, Tucídides e Políbio,


três controvérsias sãolevantadas no tocante à vitória. A primeira se
refere ao combate, concordado. Prestando bem atenção, se poderá ob-
servar que em todos essescombates todos se retiram sem verdadeira
vitória. Os argenses [85] não haviam sido postos em fuga por Otriades,
mas ao sobrevir a noite eles se haviam retirado, persuadidos de que
eram vencedores e com o plano de levar a notícia aos seus concidadãos.

[82] Quintus Ennius(.4n/laJlum, 321) escreve: ':4que/e que conseguia/ a v/lcír7anâo


é o rencedoCa me]os gue o t'ei7c/doo /'ec'o/?áeç;a."Ver
Scaligersobreesta
expressão de Festus, "áerZzam c/a:
[83] .4ó Z://óeaonde'Éa,111,2,3
[84] E em Guichardin, ]ivro ]].
[85] Heródoto, ]ivro 1, 82
CAPÍTULO XX - DAS CONVENÇÕES PÚBLICAS PELAS QUAIS SE TERMINA A GUERRA. ONDE RETRATA DO TRATADO DE PAZ.
1407
DA SORTE. DO COMBATE COMBINADO. DA ARBITRAGEM, DA CAPtfUtAÇÃO, DOS REFÉNS. DOS PENHORES

Os corcirenses [86] também não haviam sido postos em fuga pelos


coríntios, mas os coríntios, depois de ter combatido de modo despreocu
pado, tendo percebido a poderosa frota dos atenienses, a eles se aliaram
semter feito uso de suas forças contra os atenienses. Quanto a Filipe da
Macedõnia, na verdade ele sehavia apoderadode um navio de Atala,
abandonado, mas segundo ele, teria posto em fuga a frota. Por isso é
que, como observa Po]íbio [87], e]e se fazia passar por vencedor mais do
que ele próprio se sentia ser.

3. Com relação ao fato de recolher osdespojos,de dar sepultura


aos cadáveres [88] , de oferecer novo combate, coisas que podem ser en-
contradas em tais passagens e por vezes em Tito Lívio [89], a]egadas
como sinais de vitória, nada podem por elas mesmas, mas só servem
em conjunto com outros indícios, para mostrar a fuga dos inimigos.
Certamente, na dúvida, há mais razões de acreditar que aquele que
abandona o local fugiu. Quando não houver fortes provas da vitória, a
coisa ülca no estado em que se encontrava antes do combate e se faz
necessário voltar à guerra ou a novas convenções

XLIVI.Comose termina a guerra por uma arbitragem


e que aqui se entende uma arbitragem sem apelo
1. Prócu]o [90] nos ensina que há duas espéciesde arbitragem:
uma, quando somos obrigados a obedecer, sendo a decisão justa ou in-
justa. Isso seobserva, diz ele,quando serecorre ao árbitro em virtude

[86] Tucídides, ]ivro 1, 51 e 54.


[87] Livro XVI, ].

zã8z:ã=z.::duzíuí? HI
les que haviam obtido a permissão de retirar seus mortos, eram vistos, segue
do o costume. como se tivessem renunciado à vitória e aqueles que a haviam
solicitadonão tinham o direito de esculpir troféus."
[89] ,4ó Z]&.óe (];am(#fa, XXIX e XL.
[90] Z. 7 Soez'efaóem, .Z)ib, Pro soez'o
!408
H UGO GKOtiUS

de um compromisso. Aoutra, quando se remete a questão a um homem


de bem. Temos um exemplo dessa última espécie na resposta de Celso
[91] : "Se um ]iberto prometeu por juramento tantos serviços quantos
seu patrão julgaria oportuno Ihe impor, a vontade do patrão não terá
efeito se não íor justa." Mas esta interpretação do juramento, que pode
ter sido introduzida pelas leis romanas, não convém à simplicidade das
palavras considerada em si mesma. O que, no entanto, permanece ver-
dadeiro é que um árbitro pode ser tomado de uma ou de outra maneira,
seja somente como um mediador, como lemos que haviam sido os
atenienses entre os habitantes de Rodei e Demétrio, seja como um juiz,
a cuja sentença é necessário de qualquer modo obedecer. Esta é a espé-
cie de que tratamos aqui e sobre a qual já dissemos alguma coisa ante-
riormente, quando falávamos dos meios de evitar a guerra (livro ll,
cap. XXlll, $ Vlll).

2. Ainda que a respeito desses árbitros aos quais se recorreu por


compromisso,a lei civil possaestatuir eem certospaísestenha estatuído
que se possa apelar de suas sentenças e que seja permitido reclamar de
uma injustiça por eles cometida, isso, contudo, não pode ocorrer entre
reis e povos [92] . Não há aqui poder superior que impeça ou que rompa
o vínculo da promessa. Deve-se, pois, absolutamente ater-se ao que pro'
nunciaram, sejajusto ou injusto, de modo que se podemuito bem apli-
car aqui estas palawas de Plínio [931:"Aque]e que alguém esco]heu
para ser o juiz de sua causa, é dela o juiz soberano." Uma coisa, de fato,
é procurar qual é o dever do árbitro, outra coisa qual a obrigação dos co-
prometentes.

t9\À 1'. 30, Si ]ibertus, Dig, De open. !ibera.

[92] Mariana, ]ivro XX]X, 15; Bembus, ]ivro ]V. 62. Há diversos exemp]os de trata-
dos feitos por meio de árbitros na história polonesa de Cromer, nos livros X,
XVI, XVlll, XXI, XXIV. XXVll, XXVIII. Há exemplostambémna história da
Dinamarca de Pontanus, livro 11.Conferir com o que dissemosno livro 11,cap.
xxm, $ vm.
[93] JUafuraJls J7ikfor7b, prefácio, 19.
1409
CAPÍTULO XX- DAS CONVENÇÕES PÚBLICAS PELAS QUAIS SE TERMINA A GUERRA, ONDE SE TRATA DOTRATADO DE PAZ,
DA SORTE,DO COMBATE COMBINADO. DA ARBITRAGEM, DA CAPITULAÇÃO. DOS REFÉNS. DOS PENHORES

Xl;Vll. Na dúvida, os árbitros


são considerados obrigados
ase pronunciarsegundo o direito

1. Com relação ao dever do árbitro, deve-se considerar se foi esco-


lhido na qualidade de juiz ou com um poder mais amplo, do qual Sêneca
[94] quer fazer uma espécie de atributo próprio do árbitro, quando diz:
"A sorte de uma boa causa parece melhor diante dojuiz que junto a um
árbitro porque os textos encerram o primeiro e Ihe põem limites que
não saberiaultrapassar, enquanto que o segundoé livre e nenhum vín-
culo acorrenta sua consciência. Pode cortar, pode acrescentar e regular
a sentença, não segundo a lei as prescrições jurídicas, mas segundo o
impulso da bondade e da piedade." Aristóte]es [95] diz também que é
"e7ttetKed',isto é, parte de um homem justo e mediador, "preferir recor-
rer ao árbitro do que ao juiz". Como motivo, acrescenta que "o árbitro
considera o que é justo, o juiz considera a lei; e, além do mais, o árbitro
foi inventado para fazer valer a equidade"

2. Nessa passagem a equidade não signiâca propriamente, como


algures, essa parte da justiça que interpreta mais rigorosamente os
termos gerais da lei, segundo o espírito de seu autor (porque ela é tam-
bém confiada ao juiz), mas exprime tudo o que é preferível fazer do que
não fazer, mesmofora das regras da justiça propriamente dita. Do mes-
mo modo que tais árbitros são de uso freqüente entre privados e cida-
dãos de um mesmo Estado e que sejam especialmente recomendados
aos cristãos pelo apóstolo Paulo, assim também, na dúvida, um poder
tão grande não deve ser concedidoa eles.Em matéria de coisa duvidosa,
de fato, seguimos o que representa o menor. Isso ocorre principalmente
entre aquelesque detêm o poder soberanoque, não tendo um juiz co-
mum, devem procurar colocar o árbitro dentro das regras, às quais o
ofício do juiz está geralmente sujeito.

[94] .De.Be/?eÉlcu]b,
111,7,5
195].RefÓÜca,
1, 13
H UGO GROTA US

XLIVlll. Os árbitros náo devem


se pronunciarsobre a posse

Deve-se, contudo, observar que os árbitros escolhidos pelos povos


ou pelos poderes soberanos devem pronunciar-se sobre a questão princi-
pa[ e não sobre a posse [96], pois os ju]gamentos sobre a posse são de
direito civil: o direito de posseseguea propriedade,segundoo direito
das gentes. Por isso, enquanto se conhecea questão, não se deve inovar,
tanto para não dar lugar a nenhum preconceito porque a recuperação é
diííci[. Tito Lívio]97] diz na história dosárbitros entre opovocartaginês
e Mlassinissa: "Os legados não mudaram o direito de posse."

XLIX. Qual o efeito de uma submissão pura e simples


1. Há uma escolha de árbitro de outro tipo, quando se remete ao
próprio inimigo o poder de dispor de si, o que é submissão pura, tornan-
do objeto aquele que se entregou e deferindo o poder absoluto àquele em
proveito de quem a submissão ocorre. "Entregar tudo o que se refere à
pessoa",dizem os gregos.Assim é que ]emos [98] que foi perguntado aos
habitantes da Etólia, no senado,se eles se entregavam à discrição do
povo romano. Pode-se ver emApiano [99] qual era, em torno do íina] da
segundaguerra púnica, o conselhode Lucius Cornelius Lentulus com
relação à questão dos cartagineses: "Que os cartagineses se entreguem
à nossa discrição, como os vencidos costumam fazer e como muitos o
fizeram até agora. Nós chegaremos a seguir. Se lhes concedermos gra-
ça, por menor que seja, eles nos serão reconhecidos, porquanto não po-

[96] É o que dizia o Duque de Savóia, na disputa que teve com re]ação à Sa]úcia. Ver
De Series, na história de Henrique IV
[97] .4ó Z]/}.óe aon(#óa, XL, 17,6
[98] Tiro Lívio, .4ó Z]/rbe (;o/]c#fa, XXXV]1, 49,4
[99]PunJba,X]V 4
CAPÍTULO XX - DAS CONVENÇÕES PÚBLICAS PELAS QUAIS SE TERMINA A GUERRA, ONDE SE TRATA DOTRATADO DE FAZ.

DA SORTE, DO COMBATE COMBINADO. DA ARBITRAGEM, DA CAPITULAÇÃO. DOS REFÉNS. DOS PENHORES

derão dizer que existe entre nós um tratado. Isso faz grande diferença.
Secelebrarmos tratados com eles, para os romper eles terão sempre
alguma razão para alegar contra alguma parte do tratado, como se
fossemparte lesada. Como há muitas cláusulas suscetíveis de interpre-
tação duvidosa, haverá sempre um modo de se equivocar. Mas quando
lhes tivermos tirado as armas, como fazemos com aqueles que se entre-
gam, depois de termos recebido a eles próprios sob nosso poder, haverão
decompreender então que nada têm dê próprio, haverão de se humilhar
e tudo o que receberem de nós o receberão com prazer, como se fosse
dado dos bens de outrem."

2. Deve-se também distinguir aqui que o vencido deve sofrer e


que o vencedor pode fazer legitimamente, mesmo sem agredir nenhum
dever, o que Ihe é mais conveniente fazer. O vencido, depois de sua
submissão, nada tem que não possa sofrer, pois se tornou súdito e se
considerarmos o direito externo da guerra, está numa situação em que
tudo pode ser tirado dele, mesmo a vida, a liberdade pessoal,muito
mais os bens, não somente os bens do Estado, mas ainda os dos cida-
dãos privados. Em outra passagem, Tiro Lívio [100] escreve: "Os habi-
tantes de Etólia, tendo-se rendido, temiam ser vítimas de maus tratos.'
Em outro local(livro 111,cap. Vlll, $ IV), citamos estas palavras: "Quando
tudo tiver sido entregue ao que é superior em forças, prevalece o direito
do vencedor; depende de sua vontade decidir se pretende se apropriar de
seusbens ou se quer despeja-lostotalmente." Esta passagemde Tiro
LíviollOl] serefere à mesmaideia: "Era antigo costume dosromanos
não conceder a paz a um povo vencido, com o qual não estavam unidos
por um tratado estabelecido sob iguais condições; além disso, que esse
povo não tivesse entregue todas as suas posses sagradas e profanas,

[100] .4ó Z]/róe aonc#fa, XXXV]1, 7,1

[lO1] .4ó Z:i]-Bea0/7dyfa, XXV]11, 34,7


1412
H UGO GROTIUS

transferido os reféns, rendido suas armas e recebido uma guarnição em


suas cidades." Mlostramos também (livro 111,cap. XI, $ XVI) que mes-
mo aqueles que se renderam foram algumas vezes condenadosà morte
de modo lícito.

L. O dever do vencedor para


aqueles que assim se rendem

1. Por outro lado o vencedor,para nada fazer de injusto, deve


primeiramente tomar cuidado de não matar nenhum indivíduo, salvo
que não o tenha merecido por seu crime, como também de nada tirar a
quem quer que seja, a não ser em decorrência dejusta punição. Mesmo
dentro desses [imites é sempre honesto [102] pender, tanto quanto o
permitir a segurança, para o lado da clemência e da liberalidade. Algu-
mas vezes, de acordo com as circunstâncias, isso é necessário, segundo
a regra dos bons costumes.

2. Dissemos em outro local (livro 111,cap. XV. no final) que é dar


um nobre fim à guerra todas as vezes que o perdão faz a acomodação.
Nicolau de Siracusa diz em Diodoro [1031:"E]es se entregaram com
suas armas, confiando na clemência do vencedor. Por isso é que seria
indigno que fossem enganados pela esperança de nossa bondade." Em
seguida [104]: "Quem a]guma vez, dentre os gregos, pensou que fosse
preciso punir com um suplício inevitável aqueles que se entregaram à
c[emência do vencedor?"EmApiano [105], César Otávio, dirigindo-se a

[102] A respeito disso, ver um notáve] exemp]o, o de Ferdinando, rei de León, em


Mariana(livro XI, 15). Convém relembrar aqui o que foi dito neste livro, cap
XI,$ XIVeXV.
[103] Livro Xl11, 21
[i04] Livro Xl11, 23
[105] .Be/7.C]v77.,V. 45
1413
CAPÍTULO XX- DAS CONVENÇÕES PÚBLICAS PELAS QUAIS SE TERMINA A GUERRA, ONDE SE TRATA DOTRATADO DE PAZ.
DA SORTE, DO COMBATE COMBINADO, DA ARBITRAGEM, DA CAPITUUÇÃO, DOS REFÉNS, DOS PENHORES

Lúcio Antânio, que havia vindo se render, diz: "Se tivessesvindo para
concluir um tratado, verias que souvitorioso e estouofendido.Mas
como agora te tendes à nossa discrição, tu, teus amigos e teu exército,
vós todos desarmais minha ira. Vós me tirais mesmo a vantagem que
estaríeis obrigados a me conceder numa negociação. Não devo olhar
somente o que vós mereceis, mas devo ver ao mesmo tempo o que é
conveniente que eu faça. E é isto que prefiro."

3. Encontra-se muitas vezes na história romana esta locução:


"Remeter-se à fé e à clemência." Assim, Tito Lívio [106] diz: "Recebeu
com benevolência as delegações dos Estados vizinhos que vinham con-
fiar suas cidades à sua fé..." Em outra passagem, onde se trata do rei da
Pérsia [107] , se ]ê: "... Pau]o, exigindo que conülassem à fé e à clemência
do povo romano suas pessoas e seus bens.. ." Torna-se necessário expli-
car que por essas palavras não se entende outra coisa senão uma sub-
missão pura e simples. A palavra fé não significa outra coisa, nestas
passagens, senão a própria probidade do vencedor, à qual o vencido se
confia [108]

4. Há, em Po]íbio [109] e Tito Lívio [110] , uma cé]ebre história de


Fanéias, embaixador da Etólia, que em seu discurso ao cônsul Manius
sedeixou levar até dizer que (assim o traduz Tito Lívio) "os etóliosse
entregavam a eles próprios e a seus bens à fé do povo romano".' Como, à
pergunta do cônsul, havia afirmado uma segunda vez isso, o cônsul
tinha pedido que alguns instigadores da guerra Ihe fossem entregues

[l06] .,áÓ UTÓe Conde'óa, XXXVl1, 9, 7


[107] .4ó U/Z)e ao/]dléa, X]i\C 4, 7.
[1081Políbio (ErcerpÉa Legal. Gene.)diz que, entre os romanos, é a mesma coisa 'Be
confiar à fé de alguém e deixar o vencedorfazer de alguém o que bem
el} tel) der

[109] .Excerpéa Zegaf., n. 13


[110] .4ó Z:4.óeaondlfa, XXXVI, 28,1
14}4
H UGO GROTI us

sem demora. Fanéias teria respondido: "Nós não nos constituímos vos-
sos escravos, mas nos entregamos à vossa boa fé." Teria acrescentado
que o que fazia não estava de acordo com os costumes dos gregos. O
cônsul teria respondido que não se preocupava em saber quais seriam
os costumes gregos e que ele tinha, segundo os costumes romanos, o
poder sobre aqueles que se haviam entregue por sua própria vontade. E
ele teria ordenado acorrentar os embaixadores. No grego se lê: "Aqui se
discute sobre o dever e a conveniência, desde que vos conÊiastes à nossa
fé." Por estas palawas se pode ver tudo o que pode ser feito impunemen-
te e sem violar o/usgenúum (direito das gentes), aquele de quem um
povo se entregou à íé. Entretanto, o cônsul romano não usou desse po'
der, mas libertou os embaixadores e permitiu ao conselho dos etólios
deliberar novamente. De igual modo se lê que o povo romano havia
respondido aos fa]iscos [111], isto é, que bem sabia que não se tinham
entregue ao poder, mas à fé dos romanos. Lemos ainda que os campa'
nos [112] não se haviam confiadoà fé por um tratado, mas por uma
submissão.

5. Não seria fora de propósito trazer aqui esta passagem de Sêneca


[113] re]acionada ao dever daquele a quem a submissão foi feita: "A
clemência tem seu livre arbítrio. Não julga segundo um texto, mas
segundo o que é justo e bom. Tem o direito de absolver e de regular o
litígio do modo que melhor convier." Acho que não importa que aquele
que se entrega diga que se abandona à sabedoria, à moderaçãoe à mise-
ricórdia do outro. Todasestas palavras não são, de fato, senão
abrandamentos de expressões.O fundo da questão permanece, isto é, o
vencedor se torna dono.

1111]Valério Máximo, livro VI, 5,1


[112] Tiro Lívio, .4ó Z:/róeaondlfa, Vl11, 2,13
lllS] .De (;Fome/?üa,11, 7
1415
CAPiTUtO XX - DAS CONVENÇÕES PÚBLICAS PELAS QUAIS SE TERMINA A GUERRA. ONDE SE TRATA DO TRATADO DE PAZ.
DA SORTE, DO COMBATE COMBINADO, DA ARBITRAGEM. DA CAPITUUÇAO. DOS REFÉNS. DOS PENHORES

LI. Da submissão sob condição

Há, contudo, também submissões sob condição: a favor dos pri-


vados, em proveito de quem, por exemplo, se estipula a vida a salvo; ou
a liberdade das pessoas,ou mesmo certos bens; ou ainda a favor do
corpo do Estado. Algumas dessas submissões podem mesmo revestir a
forma de uma soberania mista, de que falamos em outro local (livro l,
cap. 111,$ XVll).

Lll. Pessoas que podem e devem ser dadas como reféns

Os reféns e os penhores são acessórios dos tratados. Dissemos


que os reféns se entregam por livre vontade ou por ordem daquele que
tem a soberania [114] . O poder soberano, no governo civil, tem direito
tanto sobre as ações dos súditos quanto sobre seus bens. O Estado, ou
aquele que o governa, será obrigado a indenizar o refém ou seus paren'
tes do dano que venha a soâ'er. Se forem muitos e que seja indiferente
para o Estado qual dentre eles tenha comorefém, pareceque se deva
agir de modo que a questão seja resolvida por sorteio. O dono de um
feudo não tem esse direito sobre um vassalo, a menos que essevassalo
não seja também seu súdito. O obséquio e a obediência que Ihe deve não
se estende, de fato, até esseponto.

Llll. O direito que se possui sobre os reféns

Dissemos (livro 111, cap. XI, $ XVIII) que um refém pode ser leva-

do à morte, segundo o direito das gentes externo, mas não segundo o


direito interno, salvo que não venha se juntar de sua parte uma culpa
que mereça essecastigo. Não se tornam tampouco escravos, mas ain'

11141
Ver nesselivro, cap.IV. $ XIV e tambémcap.XI, $ XVlll
1416
H UGO GROTIOS

da, mesmo segundo o./usgenZlum (dh'eito das gentes), podem ter bens
e deixa-los a herdeiros, embora o direito romano [115] ordenasseque
seus bens fossem atribuídos ao asco.

LIV Se é permitido ao refém fugir

Pergunta-se se é permitido ao refém fugir. Certamente isso não


Ihe é permitido se, desde o começo ou a seguir, deu sua palawa para ter
mais liberdade. De outra forma, pareceque a intenção do Estadoque
deu o refém não tenha obrigado seu súdito não fugir, mas a dar ao
inimigo a faculdade de guarda-lo como quisesse. Assim é que pode ser
justi6cado o fato de C]é]ia [116]. Embora não tivesse cometido nenhuma
falta, o Estado contudo não podia recebo-la e retê-la, pois que era refém
[117] . Por isso Porsenna [118] declara que "se não Ihe for entregue esse
refém, considerará o tratado comorompido." E a seguir: "Os romanos
restituíram esse penhor da paz, em virtude do tratado."

l;V. Se se pode legitimamente


reter um refém por outro súdito

A obrigação dos reféns é odiosa, tanto porque é inimiga da liber-


dade quanto porque se origina do fato de outrem. Por isso é que há
lugar aqui para uma interpretação estrita. Assim, reféns dados por
uma causa não poderão ser retidos por outra. Isso deve ser entendido
assim: se foi prometida alguma outra coisa, sem acrescentar a estipu-

t\\5Ã L. 31, Divus, Dig., Dejure fisci.


[ii6] Tiro Lívio, ,4b [/róe Cb/ dlZa, 11,13

[117] Ver Plutarco, em Puó/lco/a, 107 A. A respeito deste verso de Virgílio "Hhclus
b ]a]«eÍ(#eJ7b2'upáls'; Sérvio diz que se trata dos 'q,7hcuJos
do Éraóado':
[118]Tiro Lívo, .4b [/róe Canal']a,11,13, 8-9
1417
CAPÍTULO XX - DAS CONVENÇÕES PÚBLICAS PELAS QUAIS SE TERMINA A GUERRA. ONDE SE TRATA DO TRATADO DE PAZ,
DA SORTE, DO COMBATE COMBINADO. DA ARBITRAGEM. DA CAPITULAÇÃO. DOS REFÉNS. DOS PENHORES

lação de reféns. Mas se a promessa já tiver sido violada em outra ques-


tão ou se uma dívida foi contratada, o refém poderá então ser retido,
não como refém, mas segundo esse./tzsgenÉlum, em virtude do qual os
súditos podem ser detidos, sob ordem daqueles que os governam, por
antro/eps/n (ver livro 111,cap. 11, $ 111).Entretanto, haveria como im-
pedir que isso ocorra, acrescentando uma cláusula referente à restitui-
ção dosreféns, quando a coisa em razão da qual foram entregues tives-
se chegado a termo.

].IVI.Aquele para quem foi dado um refém,


vindo a morrer o refém fica livre

Aquele que foi entregue como refém somente para resgatar outro
cativo ou refém fica livre com a morte deste, pois no momento em que
esseúltimo morrer, o direito de penhor se extingue em sua pessoa,
como o disse Ulpiano a respeito de um prisioneiro. Por isso é que, do
mesmo modo que na questão de U]piano [119] o resgate que tomou o
lugar da pessoa não é devido, assim também aqui a pessoa que se tor-
nou o substituto da pessoanão 6lcará obrigada. Assim, Demétrio não
pedia sem razão ao senadoromano ser libertado "após a morte deAntíoco,
porquanto fora entregue em seu lugar", segundorelato deApiano [120] .
Segundo Trogo, Justino [121] diz que "Demétrio, refém em Romã, ao
saber da morte de seu irmão Antíoco, se apresentou ao senado e que,
tendo vindo comorefém (prefiro, para que o discurso mantenha a liga-
ção, ler: declarando que havia vindo como refém), estando seu irmão
ainda vivo, tendo agora falecido, não entendia a que título era detido
ainda'

L\L9AL. 15, Sípatre, Dig., De captívis


[120] .De .Be/T. SDU, 47

1121] Livro XXXIV. 3, 6


1418
H UGO GKOiiOS

LIVll. Se um refém fica enganadoquando


o rei que deu o refém morreu

A questão de saber se o refém é mantido ainda, após a morte do


rei que fez otratado, dependedo que expusemosem outro local (livro ll,
cap. XVI, $ XVI): se o tratado deve ser considerado como pessoal ou real,
pois os acessórios não podem fazer com que se afaste da regra na inter-
pretação das coisas principais e eles próprios devem seguir nisso a na-
tureza.

l;Vlll. Os reféns são por vezes obrigados


de modo principal e que um não
é responsáveldofato do outro

Deve-se acrescentar de leve que, por vezes, os reféns não são um


acessório de obrigação, mas são na realidade a parte principal, como
quando alguém promete, em virtude de um contrato, um fato que não
Ihe é próprio e que, sendo obrigado a danos e interesses, em caso de
inexecução, os reféns se obrigam no lugar dele. Dissemos em outro local
(livro 11,cap. XV $ XVIII) que tal parece ter sido o sentido da questão de
Caudium. Não é somentedura, mas ainda iníqua, a opinião daqueles
que pensam [122] que os reféns podem, mesmo sem seu consentimento,
ser obrigados do fato um do outro

LIX. Qual é a obrigação a respeito dos penhores?


Os penhores têm certas coisas comuns com os reféns e certas
coisas que lhes são próprias. O que têm de comum é que são retidos em
razão de qualquer outra dívida, salvo que a palavra dada ponha obstá-
culo. O que têm de próprio é que a cláusula que se refere a eles não é

[122] A[berico Genti[i, livro ]], cap. 19


1419
CAPÍTULO XX - DAS CONVENÇÕES PÚBLICAS PELAS QUAIS SE TERMINA A GUERRA, ONDE SE TRATA DOTRATADO DE PAZ.
DA SORTE. DO COMBATE COMBINADO. DA ARBITRAGEM. DA CAPITUUÇÃO. DOS REFÉNS. DOS PENHORES

tomada de uma maneira tão estrita como aquela relativa aosreféns,


pois a matéria não é igualmente odiosa. As coisas, de fato, nasceram
para serem possuídas, mas não os homens.

LX. Quandose perde o direito de retira-los


Dissemos igualmente em outro local (livro 11,cap. IV. $ XV) que
nenhum lapso de tempo pode impedir que o descompromisso do penhor
não ocorra, se for executado aquilo pelo qual o penhor foi dado. Um ato
que tem uma causa antiga e conhecida não é considerado proceder de
uma causa nova. Por isso é que a mação do devedor é imputada ao
antigo contrato, não a um abandono do direito, salvo que conjecturas
certas não dêem lugar a outra interpretação, como se alguém, queren-
do retirar o penhor, tivesse sido impedido e tivesse passadoisso sob
silêncio durante um tempo bastante longo para poder bastar a estabele-
cer a presunção de um consentimento.
XXI

DAS CON\WNÇOES DURANTE


A GUERRA, EM QUE SE TRAJA
DA TREGtH, DO LIVRE
TRÂNSITO,DO RESGATE
DE PRISIONEIROS

Sumário

1. 0 que é a trégua e se esseintervalo é compreendidosob o


nome de paz ou de guerra.

li. Origem da palavra.


111.Não énecessária nova declaração de guerra após a trégua
IV Como se deve contar o tempo âlxado pela trégua.

W Quando a trégua começa a obrigar.


VI. O que épermitido fazer durante a trégua.
VII. Se épermitido se retirar, reparar as muralhas e outras
coisas similares.

VIII. Distinção quanto aos locais que se pode ocupar.

IX. Se aquele que foi retido por força maior perto da fim da
trégua pode retornar.
X. Cláusulas específicas de uma trégua e questões que dela
decorrem geralmente.
XI. Quando ascJáusulas de uma trégua são viola ias por uma
das partes, a outra pode recomeçar a guerra.
XII. Que decidir se uilla pena foi acrescida?

XIII. Quando os aros depravados rompem a trégua

XIV Qua[interpretação se deve dar ao direito de livre trânsito


concedido fora do período de trégua.

XV Que indivíduos são compreendidos sob o nome de soldados.

XVI. Como devem ser entendidas aspalavras ir, vir, voltar.

XVII. Da extensão dessas palavras às pessoas.

XVill. Aosbens.
XIX. Quem são aqueles que são compreendidos sob o
desígnatívo de séquito e de gente.

XX. Se a concessãodo direito de livre trânsito se extingue com


a morte.

XXI. Que decidir, sefoidadoportanto tempo quanto quilo que


o concedeu?

XXII. Se a segurança é devida, mesmofora do território.

XXIII. Caráterfavorável daresgate dosprisioneiros.

XXIV Explica'se por unia distinção se o resgate pode ser veta-


do por uma ]eã.

XX\C O direito sobre um prisioneiro pode ser cedido.

XXVI. Oresgatepodeser devidoa váriospor um só.


XXVll, Se a con venção pode serrescindida porque se ignora va
as riquezas do prisioneiro.

XXVIII. Quais os bens do prisioneiro que passam ao que o


prendeu.
] ê
XXIX. Explica'se por ima distinção se o herdeiro deve o res
gate.
r deve
rta outro
XXX. Se aquele que foi libertado para l. berrar
retornar, estando morto esseoutro.
1423
CAPÍTULO XXI - DAS CONVENÇÕES DURANTE A GUERRA. EM QUE SE TRATA DATRÉGUA. DO LIVRE TRÂNSITO, DO RESGATEDE PRISIONEIROS

1.0 que é a trégua e se esse intervalo


é compreendido sob o nome de paz ou de guerra
1. Certos comércios de guerra, para fa]ar como Virgí]io [1] e Táci-
to [2] , certos pactos, segundo Homero [3] , como a trégua, o ]ivre trânsi-
to, o resgate de prisioneiros, são geralmente concedidos, mesmo no meio
da guerra, pelos poderes soberanos.A trégua é uma convençãopela
qual, durante a guerra, se deve abster-sepor um tempo de fitos de
hostilidade. Digo durante a guerra porque, como Cícero [4] o diz nas
.HIZzblcas,
entre a guerra e a paz não há meio.A guerra é a designação
de um estado que pode existir mesmo sem produzir suas operações ex-
ternamente. Aristóte]es [5] diz: "Podeocorrer que um homem seja dota-
do de algum valor e que ele durma ou que leve uma vida sem ação." O
mesmo diz em outra passagem [6] que "a distância dos ]ugares não
destrói a amizade, mas interrompe somente o uso". SegundoAndrânico
de Redes [7] , "uma maneira de ser pode existir sem que haja atou exte-
riores". Eustrato diz, no livro Etica a Nicõmaco [8]: "0 hábito conside-
rado com relação ao poder puro e simples de agir se chama ato, mas se
for referido à ação ou à prática, se chama um poder, como a arte de
medir num agrimensor que dorme." "Como Hermógenes [9], quando se
cala, não é por isso um cantor menos exce]ente [lO] ; como esse ve]haco
deAlfenus, quando depôso instrumento de sua arte e fechou sualoja,
não era menos sapateiro..." [11].

[1] .Etze2da,X, 532


[2].4nna/es,X]V. 33 e .f?]sfol:zae,
111,61
[3] Mb(Ü, XX]1, 261.
[4] in ]Uarcum ,4nfonium Oz'aÉlones.])nJZápplcae,
Vl11, 1,4.
[5] .Óílcaa Nlb(5maco,
1, 3.
[6] Idem, V]11, 6
[7] Pz/laPA/.,1,14
[8] Livro VI, ].
E9] Sêneca, em .De .BeneÉlaízk(IV. 21), onde escreve: 'ZJm /zonlem pode sez' e/oqüen-
te sem pz'onunciarpalavra
[10] Na mesma passagem, Sêneca escreve ainda: 'bUo se deixa de ser a/lesão pou'
não ter às mãos os utensíliosda própria arte.
111] Quintus Horatius Flaccus, SaÉlFae, 1, 3
1424 H UGO GROTIUS

2.Assim, pois, comoo disseAu]us Ge]]ius]12], "a trégua não é a


paz.A guerra subsiste de fato. O combate cessa."Lemos no panegírico
de Latinus Pacatus [13] que "a trégua suspendia a guerra". Digo isso
para que saibamos que, se foi concordadoque uma coisa tenha seu
efeito durante o tempo da guerra, essacoisa terá também seu efeito
durante a trégua, salvo que não ocorra manifestamente que não era a
situação que se tinha em vista, mas as próprias operações.Ao contrá-
rio, se foi dito algo relativo à paz, issonão ocorreria durante o tempo de
trégua, embora Virgí]io [14] a tenha chamado de uma paz provisória,
Sérvio nessa passagem de uma paz temporária, como também o
esco[iasta de Tucídides]15] de uma paz passageira a ponto de gerar a
guerra, Varrão de a paz dos acampamentos, uma paz de poucos dias,
todas locuções que não são definições, mas tipos de descrição e descri-
çõesfiguradas. Tal é também essa expressão de Varrão que, tendo dito
que a trégua era as férias das guerras, podia dizer também que era o
sono da guerra. Assim, Papínio [16] chamou de paz as próprias férias do
banco dos advogados e Aristóte]es [17] disse do sono que é o bem que
acorrenta os sentidos; a seu exemplo, pode-semuito bem chamar a tré-
gua de o vínculo que acorrenta a guerra.

3. Com re]ação à exp]icação de Varrão que Donato [18] segue


igua[mente, Au]us Ge]]ius [19] reprova com razão que tenha acrescido
"de poucos dias", mostrando que se tem o costume de conceder também

[12] Mo.cães
.4tüc'ae,1,25
[13] /bnegyz2bum, 9.
[14] .Ehej'da, X], 133.
[15],4c/ZZuc7'dT'dem,
1, 40.
[16] Publius Papinius Statius, Sl7uae,]V. 4, 40
[17] Z)e So n ]o ef Uglba, ]
L\8ÀAd Tereiatium Eunuchus, act. 1, scella 1, 6Q
[191]Vocées
,4fÉ]'c'ae,
1, 25.
1425
2
CAPÍTULO XXI - DAS CONVENÇÕES DURANTE A GUERRA. EM QUE SE TRATA DATRÉGUA, DO LIVRE TRANSITO. DO RESGATE DE PRISIONEIROS

a trégua por algumas horas. Eu acrescentaria que pode ser concedida


mesmo por vinte, trinta, quarenta e mesmo por cem anos. Em Tito
Lívio há exemplos que refutam também essadefinição dojurisconsulto
Paulo [20] : "Há trégua quando se concorda de parte e outra de não se
atacar por poucotempo e pelo tempo presente.

4. Poderia, contudo, ocorrer que, se parecer que a razão unica e


exclusivamente determinante de alguma convenção tenha sido a cessa-

ção dos aros de hostilidade, nesse caso o que foi dito a respeito do tempo
da paz tem seuefeito durante a trégua, não pela força da palavra, mas
por uma indução certa da intenção de que falamos em outro local (livro
11,cap.XVI, $ XX).

ll. Origem da palavra


Parece que o nome ÍnducJbvem, não de jade uÉ7Jam,como o
quer Aulus Gellius, nem de ando/fu, isto é, /hÉrogressu,comoquis
Opílio, mas de que jade, isto é, a partir de um tempo fixado, há oüum,
"eKE(Etplcl",como o chamam os gregos. Parece, de fato, mesmo segundo
Aulus Gellius [21] e Opí]io, que os antigos escreviam com a letra f, nãa
a letra c, essa palavra que agora é empregadano plural, mas era
indubitavelmente empregadaoutrora no singular. A antiga maneira de
escrever foi JhdouÉ2b,
pronunciada então oáíum: o/ílum, da palavra a/í].
que pronunciamos agora uZI. como de .polz7a (ora escrevemos poema)
vem punho [22] e de .Roubo[que agora escrevemos poenus] vem pu.rz/cus.
Do mesmo modo que da palavra osízn,osúorum, derivamos o nome
próprio de osÉlb,osüae [23], assim também de .índolüa, hdo üorum,

t2QÀL 19, Postiiminium, Dig., De captivis.


[21] ]Uoafes,4fücae, XIX, 8.
[22]Ver Servius, em seu comentário à ErleJda,X, 24,com relaçãoà palavra moerorum
[23] E ainda de osfrea, osfreoru/n ].esultaram osfrea, oslreae.
1426
H UGO GROTIUS

derivamos .índoií7b,.íz7doJflbe,
em seguida .íz2duÉza,
do qual o plural.
como disse, está em uso somente. Outrora, segundo a observação de
zulus Gellius, era também empregadano singu]ar. Donato [24] não se
afasta muito dessaetimologia, quando quer que a palavra .índuczae
venha do fato que a trégua dê repouso por alguns dias. A trégua é pois
um repousona guerra, não é a paz. Por isso os historiadores [25] se
exprimem com exatidão, quando relatam muitas vezes que a paz foi
recusada, que uma trégua foi concordada.

111.Não é necessária nova declaração


deguerraapósatrégua
Por isso é que não será necessária uma nova dec]aração [26], pois
o obstáculo temporário sendo levantado, o estado de guerra, que não se
havia extinto, mas abrandado, se reproduz de pleno direito externa-
mente, como o direito de propriedade e o poder paterno na pessoa daque-
le que curou da loucura. Lemos, contudo, em Tito Lívio que, segundo
opinião dos sacerdotes feciais, a guerra havia sido declarada na expiração
da trégua, mas é que os antigos romanos quiseram mostrar por essas
precauçoes nao necessárias quanto amavam a paz e quão justas eram
as razões que os levavam a tomar em armas. O próprio Tito Lívio [27]
deu isso a entender: "Havia-se feito combate recentemente aos veios.
perto de Nomenta e de Fidenes, depois concluído um armistício e não a
paz. Havia expirado e eles não haviam esperadoo 6lm para retomar as
armas. Foram enviados a eles contudo os sacerdotes feciais. mas sua
recla-mação, apresentada na forma ordenada de nossospais, não foi
ouvida.

[24] .4d 7êrenflum X'unucüus, passagem citada


125]Tiro Lívio. Plutarco. Justino
[26] Angel., ib Z. .ZZ SI u/lus, J .Z, Z)ig., De pacÉlbl Mare. Laud., quaesó. .2g
[27] ..4ó Z:4.Ée Cb/2dl'Éa. ]V. 30. 14
1427
CAPÍTULO XXI DAS CONVENÇÕES DURANTE A GUERRA. EM QUE SE TRATA DA TRÉGUA. DO LIVRE TRANSITO, DO RESGATE DE PRISIONEIROS

IV Comose deve contar o tempo fixado pela trégua


1. Tem-se o costume de conferir à trégua um tempo, contínuo
como durante cem dias, ou com a designação de um termo, como até as
calendas de março. Na primeira designação o cálculo do tempo deve ser
feito contando os momentos, de fato, conforme a natureza, pois o cálculo

por dias civis vem das leis e dos costumes dos povos. Na noutra desig-
naçãolevanta-se geralmente uma dúvida sobre a questão de saber se,
quando foi dito que a trégua duraria até um certo dia ou um certo mês
ou um certo ano; esse dia, esse mês, esse ano são considerados excluídos

ou compreendidos [28].

2. Certamente há nas coisasnaturais duas espéciesde termos:


na coisa, como a pele é o termo do corpo; fora da coisa, como o rio é o
termo ou limite da terra. Os termos que são estabelecidos pela vontade
podemtambém ser conformes a uma ou a outra dessas duas maneiras.
Ostermos que são estabelecidospela vontade podem também estar em
conformidade entre si por essas duas maneiras. Parece, contudo, mais
natural tomar um termo que faça parte da coisa [29] .Aristóte]es [30]
diz: "Chamamos termo o que representa a extremidade de cada coisa.
Este uso não cria embaraço. "Se alguém disser que se faça alguma
coisa durante o período que preceder sua morte, o próprio dia em que
faleceu também é contado" [31]. Spurinna [32] havia predito a César

L28ÀL. 134, Anniculus, Dig., De vero. siga.


[29] Baldus, Z)e SéafuZ/i, na palavra usque] Bartol., lh .L 35, /)afr0/2us, Z)/r., Z)e
Legatis, 111e in L. 12, Nuptae, Dig., De Senatoribus, }adküd\aconus,in C.
Ebc7enas, Xlll, q. 1; Hieronymus de Monte, livro Z)e.Flnibus,cap 23
[30] .a4efaJ]bca,V. 17.
t3\ÀL. 133, Si quis, Dig., De vero. sígn.
[321 Caius Suetonius 'h'anqui]]us, (hesai', V. 81
1428
H UGO GROTIUS

um perigo que não deveria passar dos idos de março. Interpelado no


mesmo dia dos idos, disse que realmente o dia havia chegado,mas que
não havia ainda passado.Por isso é precisoaceitar de preferência esta
interpretação, quando a prorrogação do tempo é em si mesma favorá-
vel, como na trégua que poupa sangue humano.

3. O dia a partir do qual uma certa medida de tempo é dita para


começar não será compreendido na medida porque o efeito dessa prepo'
lição é de separar e não de unir.

V Quando a trégua começa a obrigar

Acrescentaria brevemente que a trégua e tudo o que se asseme-


lha a ela obriga os contratantes a partir do momento em que o acordo
foi concluído, mas que os súditos de parte e de outra começam a ser
obrigados, quando a trégua recebeu a forma de lei, o que compreende
uma espéciede publicaçãoexterna. Essapublicaçãofeita, a trégua co-
meça, é verdade, logo a ter efeito de obrigar os súditos, mas esseefeito,
se a publicação foi feita num só local, não produz efeito ao mesmotempo
em todos os locais da dominação. E preciso um tempo suficiente para
levar ao conhecimento em cada localidade. Por isso é que, se no interva-
lo foi feita alguma coisacontra a trégua pelossúditos, estarão imunes
das penas [33] . Entretanto, os contratantes não deverão se abster em
reparar os prejuízos [341.

l3SI BATE.,ad J,. O/n/lespopa//; Panormit., cap. 11, Cbnsr.,e ibid. Feliz., n. 7
[S4] Como a respeito de Scione, em 'lhcídides (IV, 122). O que Mariana relata (livra
XXVl11, 7): o que os espanhóis fizeram na ltália não pode, portanto, ser apto'
vago
CAPÍTULO XXI - DAS CONVENÇÕES DURANTE A GUERRA, EM QUE RETRATA DATRÉGUA. DO LIVRE TRANSITO. DO RESGATE DE PRISIONEIROS

yl. O que é permitido fazer durante a trégua


1. E dado a entender, pela própria definição, a extensão do que é

permitido durante a trégua e do que não é permitido. São, de fato, ilíci-


tos todos os aros de hostilidade contra as pessoas ou contra as coisas,
isto é, tudo o que se comete comviolência contra o inimigo, pois tudo
isso, durante o tempo da trégua, se comete contra o direito das gentes,
segundo a expressão de Lúcio Emílio num discurso a seus soldados, em
Tito Lívio [35] .

2.As próprias coisaspertencentes aosinimigos que caíram em


nossas mãos por algum acaso devem ser devolvidas, mesmo se ante'
dormente tivessem pertencido a nós porque, no que se relaciona ao
direito externo, segundo o qual isso deve ser julgado, se tornaram pro'

priedade deles. Por isso o jurisconsulto Pau]o [36] diz que em tempo de
trégua não há postlimínio porque o postlimínio exige um direito antece-
dentede tomar pela guerra, direito que não existe durante a trégua.

3. E permitido ir e voltar de parte e outra, mas com precauções


que não levem a temer qualquer perigo. Aobservação foi feita por Sérvio
[37], sobre este verso de Virgílio: "Os latinos impunemente mistura-
dos...", onde relata também que Romã, sendo sitiada por Tarquínio,
uma trégua havia sido concluída entre Porsennae osromanos e que,
como eram celebrados osjogos do circo na cidade, os chefes dos inimigos
haviam entrado e que lutaram no combate dos carros e foram coroados
como vencedores .

[35] ,4b U)óe aolld)Éa, XL, 27, 9

ú& L. 19, $ 1, Dig, XLIX, !5.


[37] Sobre a E12eida,canto XI, 134
1430
Huno Gp Oll us

VII. Se é permitido se retirar, reparar


as muralhas e outras coisas similares

Retirar-se no interior do país com seu exército (como se pode ler


em Tito Lívio [38] que Filipe assim havia agido) não é agir contra a
trégua, tampouco ao reparar as muralhas, retirar soldados,salvo se
houver alguma cláusula especia] a respeito [39]

VIII. Distinção quanto aos locais que se pode ocupar

1.Apoderar-se de lugares mantidos pelos inimigos, depois de ter


rompido as guarnições,é semdúvida violar a trégua. Tal aquisição,de
fato, só pode ser legítima em virtude do direito da guerra. Deve-se dizer
a mesma coisa se súditos querem passar para o inimigo. Há um exem-
p[o em Tito Lívio [40] : "Os coroneus e os haliartas, cedendo a seu pen'
dor natural pelosreis, enviaram para a Macedõniaembaixadorespara
pedir que forças fossemmandadas a eles para os proteger contra a insu-
portável tirania dostebanos. O rei respondeu a essesembaixadores que
ele não podia, por causa da trégua celebrada com os romanos, enviar
socorros." Em Tucídides [41], Brasidas recebeu durante o período da
trégua a cidade de Menda que havia passado dos atenienses para os
lacedemõnios. Como desculpa, se diz que ele próprio tinha algumas in-
frações a repreender aos atenienses.

2. Seguramente é permitido se apoderar de postos abandonados,


contanto que sejam verdadeiramente abandonados, isto é, com a inten'
ção que não sejam mais de quem haviam pertencido, mas não se estive-

[38] .4ó ZZróe(b/7dlía, XXXI, 38, 10 e Frontino, SÉrafeg-e/nata,


11,13, 8
[39] Como em Paruta, livro lll.
[401',4b Z:4-ÉeaOJld7'ía,XLl1, 46, 9
[41] Livro IV] 123
CAPÍTULO XXl- DAS CONVENÇÕES DURANTE A GUERRA. EM QUE RETRATADATRÉGUA,DO LIVRETRÂNSITO. DO RESGATEDE PRISIONEIROS '''''''

rem somentesem guarnição, seja que setenha deixadode guarda-los


antes da trégua, seja depois da conclusão da trégua. Permanecendo o
direito de propriedadetorna, de fato, injusta a possedo outro. Com isso
se refuta o ardil de Belisário contra os godos, quando sob tal pretexto se
havia apoderado [42] , durante a trégua, de postos de onde haviam reti-
rado as guarnições [43] .

IX. Se aquele que foi retido por força maior


perto do fim da trégua pode retornar
1. Pergunta-se se aquele que, impedido por uma força maior de
seretirar, é surpreendido nas terras dosinimigos apósa expiração da
trégua,tem o direito de retornar. Seconsiderarmoso direito das gentes
externo, não duvido que esse indivíduo não esteja na mesma situação
daquele que, tendo chegado em tempo de paz, é para seu azar surpreen'
dadono meio dos inimigos, tendo a guerra sido subitamente declarada.
Observamos antes (livro 111,cap. IX, $ IV) que esseúltimo fica prisio-
neiro até a paz. Ajustiça interna não faz falta, porquanto os bens e as
ações dos inimigos são recolhidos para a dívida do Estado e podem ser
tomados como pagamento. Esse indivíduo, portanto, não tem mais mo'
tivo de se queixar do que tantas outras pessoas inocentes sobre as quais
recaem os males da guerra.

2. Não se deve alegar o que se diz do caso de confisco relativo às


mercadorias [44], nem o que é contado em Cícero, em seu H'alado dn
Znvens;ão[45], de um navio de guerra levadopara um porto pela força
dosventos e que o questor queria vendê-lo de acordo com a lei. Nesse

[42] Procópio, Gofíüic., 11, 7


[43] Do porto, de Centoée]]e e Albano
lç4ÀL. 15, Caesar;L. 16, Interdum, $SI propter, Dig., De public.
[45].De]nç,enf]'o/]e,11,32, 98.
1432
H UGO GROTIUS

caso,defato, a força maior libera de uma punição.Aqui, não se trata


propriamente de uma pena, mas de um direito que não estava suspenso
senão por um certo tempo. Deixar partir um tal indivíduo é coisa que
não admite nenhuma dúvida, seja isso feito por maior benevolência ou
por maior generosidade, não importa.

X. Cláusulasespecíficasde uma trégua


e questões que dela decorrem geralmente

Há também certas coisasilícitas durante a trégua, por causado


caráter especial da convenção. Se, por exemplo, a trégua foi consentida
somentepara dar sepultura aosmortos,nada há a mudar; de igual
modo, se a trégua foi concedida aos sitiados unicamente para não lhes
dar o assa]to [46] , não ]hes será permitido deixar entrar reforços e pro'
visões, pois tais tréguas, estando em proveito de uma das partes, não
devem tornar durante esse período mas desfavorável a posição daquele
que a concedeu. Por vezes se concorda também que não é permitido ir e
vir. Por vezes, toma-se medidas em favor das pessoas, não dos bens [47]
e, neste caso, se para defender seus bens se prejudica as pessoas, nada
se comete contra a trégua, pois, comoé permitido defender seus bens, a
segurança das pessoas deve ser relacionada ao que é principal, não ao
que decorre como conseqüência de alguma outra coisa.

XI. Quandoas cláusulas de uma trégua são violadas


por uma das partes, a outra pode ]'ecomeçara guerra
Se o trato da trégua é rompido por uma das partes, duvida-se
semrazão se a parte lesada não é livre de retomar as armas, mesmo
sem declaração, pois os artigos de uma convenção são contidos na conven-

l461 Como isso foi concedido aos napolitanos por Totila, como se lê em Procópio
(GoffÜ]'c.,
111,7).
[47] Ver C Slg]7]HcarTf,Z)eJudae s (/7Z)ecrefa.Ê,V, 6). Sobre as tréguas com exce-
ção dos locais há exemplos em Procópio e em Menandro, o Protetor
CAPITULO XXI - DAS CONVENÇÕES DURANTE A GUERRA. EM QUE RETRATA DATRÉGUA. DO LIVRETRÃNSITO, DO RESGATEDE PRISIONEIROS

ção em forma de condição, como dissemos um pouco antes (neste livro,


cap. XIX, $ XIV e cap. XX, $ XXXVI). Pode-se,na verdade, encontrar na
história exemplos de quem teve paciência até o fim da trégua, mas
pode-se ler também [48] que a guerra foi feita aos etruscos e outros
porque haviam agido contra a trégua. Essa contradição é uma prova
que o direito é tal que dizemos que depende mais da vontade daquele
que foi lesado usar desse direito ou não.

XII. Que decidir se uma pena foi acrescidas

Consta que, se a execuçãoda pena concordada é requerida e que


seisso for satisfeito por aquele que agiu contra a trégua, o direito não
existe mais para retomar guerra, pois foi satisfeita a pena para que o
resto fique a salvo. Ao contrário, se a guerra é retomada, deve-se ser
considerado comotendo renunciado à pena, porquanto a opçãoíoi dada.

XIII. Quando os atos de privados rompem a trégua

Os fatos privados, contudo, não rompem a trégua, salvo se um


ato público se Ihe acrescente; uma ordem, por exemplo, ou uma ratifi-
caçãoque é mesmo considerada como uma intervenção, se os delin-
quentes não forem punidos, nem entregues, se os bens não forem resta
ruídos

XIV. Qual interpretação se deve dar


ao direito de livre trânsito concedido
fora do período detrégua
O direito de ir e vir, fora da trégua, é uma espéciede privilégio.
Por isso é que se deve seguir, em sua interpretação, o que é ensinado a
propósito dos privilégios. Esse privilégio não é prejudicial a um terceiro,

Í48]Fito Lív o HÓ ZI/rZ)e


Chndlfa,IX, 41 e X, 37ss
1434
H uoo GROtiUS

nem extremamente oneroso ao que o conceder. Por isso se deve, íicanda


dentro da propriedade dostermos, admitir uma interpretação mais ampla
que restrita e isso tanto mais se o benefício tem sido concedido àquele
que não o pedia, mas foi espontaneamente oferecido.Mais ainda se
independentemente da utilidade privada, há algum interesse público
que esteja ligado ao negócio.A interpretação estrita (ver livro 11,cap
XVI, $ XII), mesmo aquela que comporta os termos, deve pois ser rejei-
tada, a menos que de outro modonão decorressealgum absurdo ou que
conjecturas de todo prováveis da vontade conduzissem a isso. Mas aa
contrário, a interpretação mais ampla deverá ter lugar, mesmo para
além do que a propriedade dos termos comporte, para evitar um seme-
lhante absurdo ou para satisfazer a conjecturas muito urgentes.

XV Que indivíduos são compreendidos


sob o nome de soldados

De onde concluímos que o livre trânsito concedido aos soldados se


estende não somente aos chefes intermediários, mas ainda aos generais
porque a propriedade da palavra admite essesignificado, embora haja
também um mais restrito. Assim é que o bispo está compreendido sob a
designação dos clérigos [49]. Mesmo os que são marinheiros de uma
frota são considerados soldados, como todos aqueles que têm de modo
cabal prestado o juramento [50] .

XVI. Como devem ser entendidas


as palavrasir,vir,voltar

1. No ir também está estipulado o retorno e isso não pela força do


termo, maspara evitar um absurdo.Um benefício não deve ser inútil.
Um refúgio seguro deve ser entendido como:até que se tenha chegadoa

.49A Can. in c., Cum in cuilctis, $ Cum vero. De eleGE.

3qÀ L. 1, $ 1, Dig., De bon. possess.ex test. mil.


CAPÍTULO XXl-DASCONVENÇÕES DURANTE AGUERRA. EM QUE SETRATA DATRÉGUA.DO LIVRETRÂNSITO, DO RESGATE DE PRISIONEIROS '''':'''

um lugar seguro. Disso decorre porque a boa-fé de Alexandre [51] foi


acusada [52] porquanto ordenou matar, no trajeto mesmo, aqueles a
quem havia concedido o direito de ir embora

2. Quando foi permitido a alguém ir embora, não Ihe é permitido


retornar. Aquele a quem foi concedido vir não poderá voltar e vice-ver-
sa. São, de fato, coisas diferentes e não há razão que obrigue a se afas-
tar dos termos, de modo que, contudo, mesmo quando o erro não dá
direito, releva ao menosa pena, sehouver uma incluída. Também aquele
a quem foi permitido vir, virá uma vez, não duas, salvo que o acréscimo
do tempo dê lugar a outra conjectura.

XVII. Da extensão dessas palavras às pessoas


O filho não segue o pai, a esposa o marido. 'l.bata-se de outra coisa
bem diferente no direito de permanência, pois temos costume de perma'
tecer com nossa família, de viajar sem e]a [53] . Um ou dois servidores
serão, contudo, considerados compreendidos, embora não se faça men'
ção deles, quando se tratar de uma pessoa que não poderia viajar sem
tal acompanhamento, sem violar a conveniência. Também aquele que
concedealguma coisa concedeo que é necessário para tanto [54] .A ne-
cessidade deve ser entendida aqui moralmente falando.

[51] Diodoro da Sicília, livro XVl1, 84.

[53] .L .g], Pena/f., .De Precar70.

[54] .4óóas, ]h a é?uam slE., De Judne :s


1436
H UGO GROTIUS

XVIII. Aos bens

De igual modo, os bens não devem ser entendidos como todos e


quaisquer bens, mas somente aquelesque costumeiramente se carrega
numa viagem.

XIX. Quem são aqueles que são compreendidos


sob o designativo de séquito e de gente

Quando se faz menção do séquito não se deve entender aqueles


cuja causa é mais odiosa que a da pessoa para a segurança da qual se
provê. Tais são os piratas, os bandidos, os trânsfugas, os desertores. O
nome de uma nação empregada para indicar as pessoas do séquito mos-
tra de modo suficiente que essafaculdade não se estende a outros

XX. Se a concessãodo direito de livre


trânsito se extingue com a morte

O direito de ir e vir emanando do poder não se extingue, na dúvi-


da, pela morte daquele que o concedeu, segundo o que dissemos em
outro local (livro 11, cap. XIV, $ XI, XII) sobre os beneHicios dos reis e de
outros governos.

XXI. Que decidir se foi dado por tanto


tempo quanto quis o que o concedeu?

Discute-segeralmente sobrea proposiçãoque foi assim formula-


da: "Por tanto tempo quanto eu quiser."Aopinião daqueles que pensam
que tal benefício subsiste, mesmo quando não intervém ato novo de
vontade, é a mais verdadeira porque, na dúvida, o que basta para pro'
duzir um efeito de direito é presumidodurar. Não é a mesmacoisa
1437
CAPÍTULO XXI - DAS CONVENÇÕES DURANTE A GUERRA, EM QUE SE TRATA DATRÉGUA. DO LIVRETRÂNSITO, DO RESGATE DE PRISIONEIROS

quando aquele que concedeu o bene6cio cessoude poder querer [55] , o


que ocorre com a morte [56]. A pessoa, de fato, sendo supressa, esta
presunção de duração deverá cair também, como o acidente se esvaece
pelo aniquilamento da substância.

XXII. Se a segurança é devida, mesmo fora do território

A segurança do lide trânsito é devida àquele a quem foi concedi-


da. mesmo fora do território daquele que o concedeu, pois ela é dada
para derrogar o direito da guerra que, por si mesmo, não está encerrado
num território, comofoi dito por nósem outro local (livro 111,cap.IV. $
v ll l )

XXIII. Caráter favorável do resgate dos prisioneiros

O resgate dós prisioneiros goza de muito favor, sobretudo entre


os cristãos a quem a lei divina (Mnfeus, XXV. 36 e 39) recomenda par'
ticularmente essetipo de misericórdia. "0 resgate dos prisioneiros é
um grande e elevado dever de justiça", são palavras de Lactâncio [57] .
Resgatar os prisioneiros, sobretudo das mãos do inimigo bárbaro, é cha-
mado porAmbrósio [58] de uma ]iberalidade muito grande e superior.
Ele mesmo se justifica [59] , e]e com sua igreja, de ter partido os vasos
da igreja, mesmo aqueles que haviam sido consagrados, para possibili-

ÍEiÍ'a;ã'li ie gra /osa, Z)e /escl:iPf., h UZ

[57] Livro VI, 12


[58] .0e 0/ 'c)) Mlh strorum, 11,28, 71
[59] .DeOáZI'cul's
]]ãnzsÜ'ol-um,11,28.
1438
H UGO GROTIUS

tar o resgate dos cativos [60]. Diz ele: "0 resgate dos prisioneiros é a
ornamento dos sacramentos." Há vários outros pensamentos na mes-
ma linha.

XXIV Explica-se por uma distinção


se o resgate pode ser vetado por uma lei

1. Sou levado por essasconsideraçõesa não ousar aprovar indis-


tintamente as leis que proíbem que os prisioneiros sejam resgatados,
como as que lemos existentes entre os romanos [61] . "Em nenhum Es-
tado os prisioneiros sãomais desprezadosque no nosso", diz alguém no
secado romano. Tito Lívio [62] diz que já desde a antigüidade o mesmo
Estado não havia sido por sua vez indulgente para com os prisioneiros.
A ode de Horácio [63] sobre o tema é conhecida. Ele conclama pelo res-
gate dos prisioneiros: "Condições vergonhosas, um exemplo pernicioso a
seguir, um dano acrescido a uma ação desonrosa." Mas o queAristóteles
[64] critica nas instituições dos lacedemâniosé geralmente criticado
também nas romanas. E que tudo nisso se relaciona por demais direta-
mente às coisas da guerra, como se a salvação do Estado repousasse

160JAgostinho imitou esseato de Ambrósio, segundo relato de Possídio( Hía, 24).


que diz que tal ato havia sido executado contra o sentimento mundano de
algumas pessoas.O bispo Deogratias imitou este exemplo na mesma Africa,
segundoo relato de Vectorde Utica (livro 1, 8). Hincmar narra. na vida de
Remígio, que um vaso sagrado, que havia pertencido a este, foi cedido para
resgatar os prisioneiros feitos pelos normandos.Marc Adam relata, no capítulo
XXXll da Hzkfól:za á2:/es ásí7ba de .Bremen, semelhante ato de Rimberto.'arce-
bispo de Bremen. O VI Concílio universal aprovou isso e a decisãofoi incluída
em (brasa XZZ guaesf one /7 Estes fatos devem ser conectados com o aue
dissemos neste livro, cap. Y $ 11

[6i] Tito Lívio, .4ó [Õ.Üe aonde'fa, XX]1, 59, 2

[62] Idem, .4ó Z:/róe (bndlZa, XXl1, 61, 1

[63] Odarum seu Ca/mJhu/n])ór71111,5, 14-16


[64] .r;kz#Uca, 11, 7 e Vl1, 13
1439
.?
CAPÍTULO XXI -DAS CONVENÇÕES DURANTE A GUERRA. EM QUE SETRATA DATRÉGUA, DO LIVRETRÃNSITO. DO RESUME DE PRISIONEIROS

sobre elas. Além disso, se apreciarmos a coisa segundo a norma da


bondade, seria muitas vezes melhor que o direito perseguido pela guer-
ra fosseperdido, antes que deixar em tão cruel miséria [65] tão grande
número de homens que, de fato, são parentes ou compatriotas.

2. Uma lei semelhante não parece justa, a menos que a necessl'


dade não pareça de tal rigor para prevenir males maiores ou mais nu'
merosos, sem isso moralmente inevitáveis. Numa necessidade dessa
natureza, como os próprios prisioneiros devem em virtude da lei da
caridade suportar pacientemente sua sorte, isso pode lhes ser acrescido
e pode ser ordenado aos outros de nada fazer que seja contrámo a isso,
segundo o que escrevemos em outro local(livro 11,cap XXV. $ 111)sobre
o cidadão que é entregue para o bem público.

XXV. O direito sobre um prisioneiro pode ser cedido

Aqueles que são presos na guerra não são escravos, é verdade,


segundo nossoscostumes. Não duvido, contudo, que o direito de exigir
do prisioneiro o preço do resgate não possa ser transferido a outro por
aquele que mantém o prisioneiro, pois a natureza tolera que mesmo as
coisas incorporais sejam alienadas.

XXVI. O resgate pode ser devido a vários por um só


O mesmo pode dever o resgate a vários se, mandado embora por
um sem ter ainda pago seu resgate, foi preso por outro. São, de fato,
dívidas diversas provenientes de causas diversas.

[65] Ver Zonaras, sobre o sério arrependimento do imperador Maurício, por ocasião
de fato semelhante
1440 H UGO GROítUS

XXVII. Se a convenção pode ser rescindida


porque se ignorava as riquezas do prisioneiro

A convenção feita sobre o preço do resgate não pode ser rescindida


porque o prisioneiro é mais rico do que se acreditava, pois, segundo o
direito das gentes externo, de que nos ocupamos, ninguém é forçado a
completar o que, num contrato, prometeu menos do que o justo preço,
se não houver suspeita de dolo, como pode ser entendido segundo o foi
explicado por nós antes (li;ro 11,cap. Xll, $ XXVI) a respeito dos con-
tratos.

XXVIII. Quais os bens do prisioneiro


que passam ao que o prendeu

Do que dissemos que os prisioneiros não são mais nossos escra-


vos, segue-se que não há mais lugar para essa aquisição universal que
em outro local dissemos ser um acessório da propriedade sobre a pes'
soa. Quaisquer outros bens não serão pois exigidos daquele que se apo'
derou do prisioneiro, a não ser aqueles precisamente que tomou. Por
isso é que se o prisioneiro carrega consigo algo escondido,isso não será
cobrado porque isso não teria sido possuído. Assim é que o jurisconsulto
Paulo [66] respondeu, contra a opinião de Brutus e de Manilius, que
aquele que tomou posse de um terreno não tomou posse do tesouro que
está no terreno e de cuja existência não tem conhecimento. Porque aquele
que não sabe não pode possuir. De onde decorre que uma coisa escondi-
da desse modo pode servir para pagar o preço do resgate, estando a
propriedade dessa coisa como que retida.

.6GÀL. 3, Possideri, $ Neratius, Dig. De acquir. possess.


1441
CAPÍTULO XXI - DAS CONVENÇÕES DURANTE A GUERRA. EM QUE SE TRATA DATRÉGUA. DO LIVRE TRÂNSITO, DO RESGATE DE PRISIONEIROS

Explica-se por uma distinção


se o herdeiro deve oresgate

1 . Pergunta-se também habitualmente se o resgate concordado e

não pago antes da morte é devido pelo herdeiro. Aresposta me parece


fácil, dizendo que, se o cativo morreu na prisão, o resgate não é devido,
pois na promessase encontrava a condiçãode que seria libertado. Um
morto não é posto em liberdade. Se, ao contrário, morreu depois de ter
sido libertado, é devido. Tinha, de fato, já aproveitado daquilo pelo qual
o resgate havia sido prometido.
2. Confesso sem dificuldade que se pode também concordar de
outra maneira que o resgate seja devido pura e simplesmente a partir
do momento mesmo do contrato e que o prisioneiro seja somente retido,
não mais como cativo pelo direito da guerra, mas como tendo-se consti-
tuído ele mesmo como penhor. De outro lado, a convençãopode também
ser feita de modo que o pagamento do resgate tenha lugar se, num dia
determinado, aquele que foi feito prisioneiro vivo e em liberdade. Essas
cláusulas, sendo menos naturais, não se presume que sejam concorda'
das,salvo provas manifestas.

XXX. Se aquele que foi libertado para libertar


outro deve retornar estando morto esse outro

Propõe-se também a questão de saber se aquele que foi mandado


de volta sob a condição que outro seria mandado de volta, deve retornar

à prisão, quando esseoutro suspendeu por sua morte o efeito da pro-


messa. Dissemos em outro local (livro 11,cap. XI, $ XXll e cap. XV. $
XVI) que o fato de um terceiro gratuitamente prometido é cumprido
suficientemente se não há nada de omisso da parte do prometente, mas
que, nas promessas a título oneroso,o prometente é obrigado a dar um
equivalente. Assim, pois, na questão proposta, aquele que teria sido
1442 H UGO GKOii US

mandado de volta não seria seguramente obrigado a voltar para a pri-


são, pois isso não foi estipulado e o favor da liberdade não tolera que isso
seja considerado tacitamente concordado. Não deverá tampouco se be-
neficiar de sua liberdade, mas fornecerá a estimativa do que não pode
conseguir [67] . ]sso é, de fato, bem mais conforme à simp]icidade natu-
ra[ do que aqui]o que osintérpretes do direito romano]68] ensinam com
relação à aÇão praescr7bÍ/s verá)Jk e à ação pessoal por uma coisa dada
sob condição não cumprida.

[67] Foi o que não cumpriu Pau]o Ba]ioni que havia sido ]ibertado sob a condiçãode
pedir a libertação de Carvajali que morreu antes de ser libertado. Mariana
critica Balioni(livro XXX, 21). Paruta (livro 11),no entanto, conta as circuns-
tâncias do fato de modo um poucodiverso
&8Ã L 5, Naturaiis, $ 1, De praescript. vero.;L 16, Uit., Dig., De child. ob causa dali.
XXll

DASCONVENÇOES
DOS PODERES
SUBALTERNOS
NAGUERRA

Sumário

1. Diferentes espécies de chefes de exército.


n
11.Até queponto suas conTençõesobrigam o poder soberano
ill. Ou dão ocasião à obrigação.

IV Que decidir, se fazem alguma coisa contra o que lhes éorde


nado? Distinções acrescentadas.

U Se, em ta! caso, a outra parte é obrigada

VI. O que podem os chefes de guerra ou os magistrados, com


relação a seus inferiores ou em seu fa vor.

VII. Não compete aos generais 6lrmar a paz

VIII. Se podem fazer acordopor uma trégua; distingue-se.

IX. Qual segurança para as pessoas, quais coisas podem ser


concedidas por eles,

X. Taisconvençõesdevemserestritamenteinterpretadas epor
XI. Como deve serinterpretada uma submissão aceita por um
general.

XII. Colllo deve serinterpretada a cláusula "Se o rei ou opovo


consentem nisso

XIII. Como deve serinterpretada a promessa de entregar uma


praça forte.
1445
CAPÍTULO XXll - DAS CONVENÇÕES DOS PODERES SUBALTERNOS NA GUERRA

1. Diferentes espécies de chefes de exército


Ulpiano [1] tem também co]ocadoentre asconvençõespúb]icasa
seguinte espécie: "Todas as vezes que os chefes de guerra concordam
alguma coisa entre si." Para nós, dissemos que segundo as convenções
concluídas pelos poderes soberanos, teríamos de tratar daqueles que
formam os poderes subalternos entre elas e com outros, seja que esses
poderes subalternos toquem de perto os poderes soberanos, como os ge-
nerais ditos por excelência,a respeito dos quais se deve reter estas pala-
vras de Tito Lívio]2] : "Reconhecemos por general aquele sob os auspícios
do qual se faz a guerra", seja que não se encontrem mais afastados e
que César distinguiu assim [3]: "Um é o pape] de um tenente, outro
aquele de um general. Um deve agir segundo as ordens que recebe,
outro deve deliberar livremente sobre o conjunto das operações."

11.Até que ponto suas convenções


obrigam o poder soberano
Há duas coisasa examinar a propósito de suaspromessas.Per-
gunta-se se elas obrigam o poder soberano ou se obrigam por si mes
mas. Aprimeira questão deve ser decidida segundo o que dissemos em
outro local (livro 11,cap. XI, $ XII) [4]: somostambém obrigados por
aquele que teríamos escolhido como ministro por nossa vontade, seja
que essa vontade tenha sido especialmente expressa, seja que se deduza
da natureza mesma da delegação conferida. Aquele que confere uma
faculdade dá o quanto está em si, bem como as coisas necessárias a esta

\:LÀL. 5, Conventíonum, Dig., De pactos.


[2] HÓ Urbe aondlfa, ]v. 20, 6
[3] Goma. ]]](.De BeZ/o Clv77i; 51)

l41Ver Cambden, sobre os fatos do ano de 1594, onde relata o julgamento do conde
de Mirando na questão Hawkins.
1446
H UGO Gnoiius

faculdade, o que deve ser entendido de maneira ética em questões de


moral. Os poderesinferiores ligam, pois, de duas maneiras por seu ato
o poder soberano: fazendo o que é considerado de uma maneira plausí-
vel ser contido em sua missão ou agindo mesmo além dessa missão, em
virtude de um poder especial conhecido do público ou daqueles cujos
interesses estão em questão.

IH. Ou dáo ocasião à obrigação

Há ainda outras situações, nas quais o poder soberano se encon-


tra obrigado por um fato anterior de seusministros, não de tal modo
que esse fato seja a causa propriamente dita da obrigação, mas que seja
a ocasião, e isso ocorre de duas maneiras: por um consentimento ou
pela coisa mesma. O consentimento se manifesta pela ratificação não
somente expressa, mas ainda tácita, isto é, quando o poder soberana
soube o que se passou e que deixou fazer coisas que não podem verossi-
milmente ser relacionadas a outra causa. Expusemos em outro local
(livro 11,cap. IV. $ V e cap. XV. $ XVII) como isto ocorre. Os poderes
soberanos são obrigados pela coisa, nesse sentido que não devem se
enriquecer às expensas de outrem, isto é, que devem executar o contra-
to de que querem retirar uma vantagem ou renunciar a essavanta-
gem, princípio de equidade, tratado por nós em outro local (livro 11,cap.
X, $ 11). Nessa medida e não além dela é que pode ser entendido o que foi
dito que, se algum ato foi executadopara produzir vantagens, é válido.
Ao contrário, não podem ser eximidos da repreensão de injustiça, aque-
les que, contra as convenções, retêm o que não teriam sem essas con-
venções. Foi o que aconteceu quando o senado romano, segundo o relato
de Valério Máximo [5], não pede aprovar e não quis rescindir o que
havia sidofeito por Cneius Domitius. Há muitos exemplossemelhantes
na história.

[5] Livro IX, 6, 3


1447
CAPÍTULO XXll - DAS CONVENÇÕES DOS PODERES SUBALTERNOS NA GUERRA

IV Que decidir se fazem alguma coisa


contra o quelhes é ordenado?

1. Deve-se também acatar o que foi dito antes (limo 11,cap. XI, $
Xll e XIII), que aquele que encarregou alguém de conduza' um negócio
se encontra obrigado, mesmo se aquele que recebeu seuspoderes agiu
contra suas ordens secretas, contento que isso estej a dentro dos limites
de sua missão conhecida do público. O pretor romano se conformou com
razão a esta equidade na açãoinstitutória. De fato, tudo o que sefaz
com o lhsüfornão obriga aquele que a propôs, mas não há obrigação a
não ser que o contrato tenha sido celebrado em vista da coisa para a
qual o íz2süforteria sido proposto. Quanto àquele, com relação ao qual
se demonstrou publicamente que não havia mais porque contratar com
ele, não será mais considerado como preposto [6] . Se esta declaração
tiver sido realmente feita, mas não ao alcance de todos, apesar disso o
que a propôs é obrigado. As modalidades da missão conferida devem
também ser observadas,pois sealguém quis que o contrato fossefeito
sob certa condição ou por intermédio de determinada pessoa, seria mui-
to justo que a cláusula, em base à qual o Insófor foi preposto, seja
observada.

2.Aconseqüência disso é que os reis ou os povos podem ser obri-


gadosuns mais e outros menospelas convençõesde seusgenerais, se
suas leis e suas instituições são suficientemente conhecidas. Se não se
estiver bem informado, deve-se seguir o que a conjectura sugere e con'
sideral como permitido o que, sem isso as funções que fazem parte do
emprego não podem ser convenientemente exercidas.

3. Se o poder subalterno excedeu os limites do mandato, será ele


próprio obrigado, se não pode proporcionar o que prometeu, salvo que
alguma lei suficientemente conhecida não o impeça também. Se um

L. 1}, Sed si, $De que e $


16ÀL. 15, Cuicumque, $ Non tamen, Dig., De inst. act.
Proscribere e $ ProscHptum, eodem tit.
1448
H UGO GROTIUS

doloveio sejuntar, isto é, sese prevaleceude um poder maior que não


tinha, será obrigado pelo dano causado por sua falta e mesmo, em razão
do crime, a uma pena que corresponde ao crime. A razão do primeiro
caso de responsabilidade, os bens são enganados e se faltarem os servi-
ços ou a liberdade do corpo, em razão do segundo, a pessoa o é também

ou seus bens ou ambos, segundo a gravidade do delito. Quanto ao que


dissemos do dolo, esse terá lugar mesmo no caso em que se tivesse
protestado que não havia a intenção de se obrigar a si mesmo, pois a
dívida do dano causado e aquela de uma justa pena estão unidas com o
delito por um vínculo não voluntário, mas natural.

V Se, em tal caso, a outra parte é obrigada

Como o poder soberano ou seu ministro são sempre obrigados, é


também certo por essa razão que a outra parte é obrigada e que não
pode ser dito que o contrato é falho. Acabamos de falar daqueles que
detêm um posto intermediário, considerados com relação a seus supe'
dores.

VI. O que podem os chefes de guerra


ou os magistrados, com relação
a seus inferiores ou em seu favor

Vejamos também o que podem com relação a inferiores. Não pen-


so que seja duvidoso que um general não obrigue a seus soldados, um
magistrado aos habitantes da cidade, dentro do limite dos atou que são
geralmente comandados por eles. Fora isso tem-se necessidade do con-
sentimento. Por outro lado, a convençãodo general ou do magistrado
será de proveito para inferiores nas coisas puramente úteis [7] . ]sso se

[7] AJc., livro Vlll, cons. 40


1449
CAPÍTULO XXll - DAS CONVENÇÕES DOS PODERES SUBALTERNOS NA GUERRA

encontra, de fato, suficientemente compreendido em seupoder. Será de


proveito sem exceçãonas coisas, às quais está ligado algum cargo, nos
limites daquilo que é geralmente ordenado; fora desseslimites, será de
proveito se a tiverem aceito. Tudo isso é conforme ao que expusemos em
outro local (livro 11,cap. XI, $ XVIII), segundo o direito natural, com
relação à estipulação por um terceiro. As espécies seguintes tornarão
mais claras essasgeneralidades.

VII. Não compete aos generais celebrar a paz

Não compete ao chefe da guerra transigir sobre as causas da


guerra e suas consequências [8] , pois terminar a guerra não faz parte
da conduta da guerra e mesmo quando tivesse sido encarregado do co-
mando com o maior poder, essepoder não deveria ser estendido além da
condução dos negócios da guerra. Aresposta de Agesi]au [9] aos persas
foi que "o direito de decidir sobre a paz competia ao Estado". Salústio
[10] escreve: "0 senado rescindiu a paz que A. Albinus havia celebrado
com o rei Jugurta sem ordem do senado." Em Tito Lívio [11] se ]ê:
"Quem haveria de receber como válida uma paz que tivéssemos cele-
brado sem a autorização do senado, sem a ordem do povo romano/
Assim é que a decisãode Caudium, aquela de Numancia, não obriga-
ram o povo romano, como o expusemos em outro local (livro 11,cap. XV.
$ XVI, XVll). Por isso é que se tornam importantes estaspalavras de
Postúmio [12] : "Se o povo pode ser obrigado sobre um ponto, o pode ser

Í81 Belisário diz a aos godos: 'bUo remos o poder de dispor dos negóc/osdc7)ópera
dor" (Procópio,Go tblc., 11,6)
[9] Plutarco, .4gesl/as, 60] B)
[10] De .Be/7o JugurfÁlno, XXXIX, 3.
[11] ,4b C/rbe Oondiéa, XXXVl1, 19, 2
[12] Tito Lívio, 4b ZI/rbe Cb/2difa, IX, 9, 7
!450
H UGO GROTIUS

em todos", ou seja, com relação a todas as coisas que não dizem respeito
à condução da guerra, o que demonstram as palavras que precedem a
rendição, a promessa de abandonar ou de incendiar a cidade, de mudar
a forma do Estado.

VIII. Se podem fazer acordopor uma trégua


Compete aos generais e não somente aos generais em chefe, mas
ainda aos generais de segundo escalão conceder uma trégua [13] aos
que, bem entendido, atacam ou mantêm sitiados no que diz respeito a
eles e suas tropas. Eles não obrigam os outros generais que lhes são
iguais, o que faz ver a história de Fábio e de Marmelo,em Tito LívioF14]

IX. Qual segurança para as pessoas,


quais coisas podem ser concedidas por eles

1. Não compete aos generais dispor das pessoas,dos soberanos.


das terras conseguidas na guerra. Fundando-se nesse direito é que a
Síria foi tirada de Tigrana, embora Lucullus a tivesse dado a e]a [15]
Cipião [1 6] diz que não competia ao senado e ao povo romano julgar e
ordenar o que era necessáriofazer de Sofonisba, que havia sido tomada
na guerra e que assim também a liberdade não havia podido ser dada
por Masanissa, sob o comando de quem havia sido tomada

Vemos que algum direito é conferido aos que comandam sobre as


coisas que fazem parte do saque, não tanto em virtude de um direito
que lhes conferida seu poder [17], mas em virtude dos costumes de
cada povo. Já falamos o bastante sobreeste assunto anteriormente [18].

[13] Ver PáPuLa, livro V

[14] .4b [//óe Cbndifa, XXIV. 19.


[15] Justino, livro XL. 2
[16] Tiro Lívio, .4b Z:rrÓeCbndl'za. XXX 14. 10
[17] Castrens.,De]us#.ef/ure, livro l
[18]Livro111,
cap.VI,$XV
1451
CAPÍTULO XXll - D'AS CONVENÇÕES DOS PODERES SUBALTERNOS NA GUERRA

2. Não há impedimento ao poder dos chefes de concederas coisas


que não foram ainda conquistadas, pois na guerra a maioria das cida-
des e muitas vezes os homens se rendem sob a condição de ter a vida
salva ou a liberdade ou os bens, condiçõessobre as quais, na maior
parte do tempo, o negócio não permite que se peça a decisão do poder
soberano. Pela mesma razão esse direito deve ser também dado aos
generais que não comandam em chefe, na abrangência das coisas que
Ihe sãoconfiadas. Maharbal, enquanto Aníbal estava bastante afas-
tado dele, havia prometido a alguns romanos que haviam escapado
do combate perto de 'l.'rasimeno, não somente de lhes poupar a vida
("Tqaao'qeptcta", como o relata muito concisamente Po]íbio [19]), mas,
se entregassem suas armas, lhes permitiria de se retirarem, cada um
com as vestes que trajava. Aníbal os deteve, alegando como razão que
"Maharbal não tinha poder para fazer isso sem consulta-lo, nem de
prometer a pessoasque se rendiam que as protegeria ou as deixaria
partir i[esas" [20] . Segue-sea opinião de Tito Lívio [21] sobre essefato:
'A promessa foi mantida porAníbal com a fé púnica.

3. Por isso, na questão de Rabirius, devemos entender Cícero


comoum orador, não como um juiz. Ele sustenta que Saturnino, que o
cônsul Caio Mário havia feito sair do Capitólio sobsua palavra, tenha
sido legitimamente morto por Rabirius. Ele diz: "Essa palavra, como
poderia ter sido dada sem ordem do senado?" [22] . E]e trata a questão
comoseessapalawa estivesseligada somentea Mário. Entretanto Caio
Mário tinha recebido do senado o poder de trabalhar para a conservação

[19] Limo 111,84-85.


[2010s falsos fugitivos de que se serviu Bajazet num fato semelhante contra os
habitantes de Kratovo na Sérvia, segundoo relato de Leunclavius (livro VI),
não era mais plausível.
[21] .4ó Z]/róeaondlfa, XXl1, 6, 12
[22] Marcus ']h]]ius Cicero, .l)ro C .Raóirlb, 10, 28.
1452 H UGO GROTI US

do império e da majestade do povo romano. Quem pode negar que esse


poder, que era o mais elevado segundo os costumes romanos [23], não
compreendesse o direito de conceder impunidade se, dessa forma, todo
perigo fosse afastado da coisa pública?

X. Tais convenções devem ser estritamente


interpretadas e por quê?
De resto, nas convençõesdos generais, como tratam dos negócios
de outrem, a interpretação deve ser restrita tanto quanto a natureza do
contrato o permita, de modo que de um lado o poder soberano não seja
obrigado por seu ato além de sua intenção e que de outro lado não so-
fram dano algum ao fazer seu dever.

XI. Como deve ser interpretada


uma submissão aceita por um general

Assim, aquele que é acolhidopura e simplesmente à discrição de


um general é considerado como sendo recebido sob a condição que a
decisão sobre sua sorte deverá competir ao povo ou ao rei vencedor. Há
um exemplo disso na pessoa de Gentius, rei da llíria, e de Perdeu, rei da
Macedânia,que se renderam, aque]ea Anicius]24] , essea Pau]o]25].

1231Ver Salústio em Z)e ao/Z/uraÉ70né?


CaZl7lhae(XXX,
6). Em Ghichardin, livro VI,
encontra-se um caso semelhante ao de Cícero, do qual se serviu Consalvus
contra o duque de Valentino.
[24] Apiano, /7Z, 9
125] tito Lívio, ,4b Z:/róe an/ld)éa, XLV. 6
1453
CAPÍTULO XXll - DAS CONVENÇÕES DOS PODERES SUBALTERNOS NA GUERRA

XII. Como deve ser interpretada a cláusula


"Se o rei ou o povo consentem nisso"

Assim é que essareserva que podeser encontrada muitas vezes


nas garantias asseguradas "Que isso seja tornado válido se o povo ro'
mano o tiver ratificado", teria por efeito que, a ratificação não se se-
guindo, o general não seja obrigado a nada ele próprio, a menos que
tenha retirado da convenção algum proveito.

XIII. Como deve ser interpretada


a promessa de entregar uma praça forte
Aqueles que prometeram entregar um praça forte podemtam-
bém fazer partir a guarnição, como sabemos que os locrienses fizeram
[26]

1261Tiro Lívio, ,4b Z:/róe (bndlÉa, XXIV


XXlll

IH IULAVRA DADA
PORCIDADAOS
PRl\4ADOSNAGUERRA

Sumário

1. Refuta-se a opinião segundo a qual os privados não estão


vinculados pela palavra dada ao inimigo.

11.Mostra-se que estão vinculados mesmo para com um pirata


e uln bandido e até que ponto.

1.[1.Um menor de idade não éneste casoexcetuado.


IV Se o erro libera.

V Resolve-se a objeção tirada da utilidade pública.

VI.As coisasditas antesse aplicam à palavra dadaderetornar


à prisão
VII. De não mais retornar eill determinado lugar, de não mais
empunhar armas
VIII. De não fugir.

IX. Um prisioneiro nãopode se entregara outro.

X. Se os privados devem ser forçados por seus governantes a


cumprir o que ha viam prometido.
â e
XI. Qualinterpretação se deve dar a convenções desse tipo

XII. Como se deve tomar as palavras vida, vestuário, chegada,


socorro.

XIII. De quem se pode falar que voltou para o inimigo.

XIV. Quais são os auxílios su6icientesnuma rendição feita sob


condição.

X\( O que diz respeito a unia execuçãonão se constitui em


condição.

XVI. Dos reféns desse tios de con vencõe.


!457
CAPÍTULO XXlll - DA PALAVRA DADA POR CIDADÃOS PRIVADOS NA GUERRA

1.Refuta-se a opinião segundo


a qual os privados não estão vinculados
pela palavra dada ao inimigo
Esta passagem de Cícero [1] é bastante discutida: "Se privados,
coagidos pelas circunstâncias, prometeram alguma coisa ao inimigo, é
preciso que mantenham a palavra a respeito." Os privados, isto é, os
soldados ou os cidadãos; isso nada importa à palavra dada. E surpreen'
dente que se tenha encontrado mestres em direito12] que tenham ensi-
nado que as convençõesconcluídas pelo Estado com os inimigos empe'
nham a palavra, mas que não ocorre o mesmo com aquelas feitas por
privados. As pessoasprivadas, tendo direitos particulares que podem
comprometere osinimigos sendocapazesde adquirir um direito (ver
neste livro, cap. XIX, $ 11), qual pode ser o obstáculo que impeça a
obrigação?Acrescente-se a isso que se não for estabelecido, se dá ocasião
a matanças e se põe um entrave à liberdade. Se forem supressas as
promessas dos privados, essas matanças não poderão muitas vezes ser
prevenidas e a liberdade não poderá ser obtida pelos prisioneiros.

11.Mostra-se que estão vinculados mesmo


para com um pirata e um bandido e até que ponto
Mais ainda, a palavra dada pelos privados obriga não somente
para com esseinimigo que olusgenúum (direito das gentes) reconhece,
mas ainda para com um bandido e um pirata, como dissemos antes
(livro 11,cap. XI, $ Vll e livro 111,cap. XIX, $ V) a propósito da fé
pública. A diferença que existe é que, se um temor injusto, inspirado
pela outra parte, levou a prometer, aquele que prometeu pode pedir

[1] .DeOáZ?CJ}S,
1,13, 3
[2] Bartol., em .L 5; Ch;zvenflo/ztzm, Z)/g,, .Z)e pacfls; Zazius, em Hpo/og. C;b/7Éra
Eckiuln.
1458 H uoo GROTIUS

para ser dispensadoou, se o outro não o quiser, se dispensar ele próprio,


o que não ocorre num temor procedentede uma guerra pública do /us
genÉ7um[3]. Se um juramento foi feito, o que foi prometido deverá, sem
réplica, ser cumprido por aqueleque prometeu, sequiser evitar o crime
do perjúrio. TH peÜúrio, porém, se foi cometido contra um inimigo públi-
co, é geralmente punido pelos homens; se contra bandidos ou piratas, deve
ser passado sob silêncio, em ódio daqueles de cujo interesse se trata.

111.Um menor de idade não é neste caso excetuado

Nessa questão da palavra privada, não excetuaremos tampouco


o menor que está no estado de compreender o que faz. Os privilégios que
favorecem os menores existem em virtude do direito civil. Aqui, trata-
mos do ./us:genúum (direito das gentes) .

IV Se o erro libera

Dissemos também em outro local (livro 11,cap. XI, $ VI), a propó-


sito do erro, que ele dá o direito de renunciar ao contrato, se o que foi
creditado por erro teve, na intenção do prometente, a força de uma
condição.

V. Resolve-se a objeção tirada da utilidade pública

1. Até onde se estende o poder que têm os privados de prometer?


A apreciação é mais difícil. SuÊcientemente certo é que o que é do públi-
co não pode ser alienado por um privado, pois isso não é permitido,
mesmo aos comandantes de guerra, como provámos há pouco (cap. XXll,
$ VII); muito menos o será então a pessoas privadas. Mas a questão

la] O[dr., (]0/7s,Z Covar]'uvias,Z)emafr7m.,paria JZ cap. J, / 4, n. .2]


1459
CAPÍTULO XXlll - DA PALAVRA DADA POR CIDADÃOS PRIVADOS NA GUERRA

pode ser posta com referência a suas ações e a seus bens porque estas
coisas parecem também que não possam ser concedidas ao inimigo sem
algum prejuízo para sua parte. De onde decorre que semelhantes con-
venções podem parecer ilícitas aos cidadãos, por causa do direito
supereminente do Estado e aos soldados recrutados, por causa do jura-
mento que prestaram.
2. Deve-se saber que as convenções que tendem evitar a um mal
maior ou mais certo devem ser consideradas como mais úteis que pre'
judiciais, mesmopara o público, porque um mal menorreveste a natu-
reza de um bem. "Entre os males, deve-se escolher os menores", como
diz alguém emApiano [4]. Ademais, nem o compromisso somente, pelo
qual não se abdica do poder que se tem sobre si mesmo e sobre seus
bens, nem a utilidade pública, sem a autoridade da lei, podem fazer
com que o que foi cumprido (mesmo supondo que se tenha agido contra
o dever) seja nulo e desprovido de todo efeito de direito.

3. Alei, é verdade, poderia tirar essepoder aossúditos perpétuos


ou temporários, mas nem a lei o faz sempre, pois poupa os cidadãos,
nem pode fazê-lo sempre, pois as leis humanas, como dissemos em ou-
tro local (livro 1, cap. IV. $ Vll, XXI e livro 11,cap. XIV, $ XII), não têm
aforça de obrigar senãoestiverem formuladas na medida da humani-
dade, mas não se impõem um encargo que repugna de todo à razão e à
natureza. Por isso é que as leis e as ordens privadas que manifestam
abertamente alguma coisa similar não devem passar por leis. Quanto
às leis gerais, devem ser recebidas com uma interpretação favorável
que exclui os casos de extrema necessidade.

4. Se o ato que havia sido interditado por uma lei ou por uma
ordem e que sehavia impedido de valer pôdeser proibido comjustiça,
nesse casoo ato do privado será nulo, mas esseprivado poderia contudo
ser punido porque prometeu uma coisa que não tinha o direito de pro-
meter, sobretudo se o fez com juramento.

[4] PuJ21aa, 94
!460
H UGO GROtlUS

VI. As coisas ditas antes se aplicam


à palavra dada de retornaràprisáo

A promessade um prisioneiro deretornar à prisão é comrazão


tolerada, pois não torna pior a condiçãodo prisioneiro. MarcusAttilius
Regulus não agiu somentede maneira gloriosa, comoalguns pensam,
mas fez ainda o que devia. Cícero [5] diz: "Regu]us não teve de contur-
bar por um perjúrio as condiçõesda guerra e asconvençõesentre inimi-
gos." Isto não colocaobstáculo a]gum [6] porque "e]e sabia o que o bár-
baro algoz Ihe haveria de preparar. Ele já sabia, quando estava prestes
a fazer a promessa, que isso poderia acontecer. Assim, de igual modo,
dos dez prisioneiros (comoAulus Gel]ius [7] pelo menos conta o fato,
seguindo antigos escritores), oito responderam que não podiam invocar
o postlimínio porque estavam sob juramento" [8]

VII. De não mais retornar em determinado


lugar, de náo mais empunhar armas

1.Alguns têm também o costume de prometer de não retornar


em determinado local, de não mais empunhar armas contra aquele que
os tem em poder. Há um exemp]o do primeiro casoem Tucídides [9], no
qual os habitantes de ltoma prometem aos lacedemânios sair do
Peloponesoe nunca mais retornar. O segundocasoé frequente hoje. Há
um antigo exemp]oem Po]íbio [10], no qua] osnumidas sãomandados

[5] .De0áH7'c7]j,
111,29, 108
[6] Horário, Odarum seu (]a/]]] hum #ór7111,5, 49-50.
[7] Mocfes,4fílc'ae, V], 18.
18]"Z)qurJO v7naf/']]igados por juramento], isto é, "capJÍI) mJhoreJ' comose exprl
me Horácio (Odarum, 111,5, 42), falando de Regulus.
[9] Livro 1, 103
[10]Livro 1,78.
1461
CAPÍTULO XXlll - DA PALAVRA DADA POR CIDADÃOS PRIVADOS NA GUERRA

de volta porAmílcar, sob a condição de que "nenhum deles empunhasse


armas hostis contra os cartagineses". Procópio [11] cita uma convenção
semelhante, em sua história dos godos [12]

2. Algumas pessoas declaram essa convenção nula porque é con-


trária ao dever que se deve à pátria. Tudo o que é contrário ao dever não
é desde logo nulo, como dissemos antes (livro 11,cap. V. $ X). A seguir,
não é mesmo contrário ao dever buscar a liberdade, prometendo o que
já estánas mãos do inimigo. Aporte da pátria não setorna, de fato, pior,
porquanto deveconsiderar aquele que foi feito prisioneiro comoum ho-
mem perdido para ela, salvo que não se tenha libertado.

VIII. Denãofugir
Alguns prometem também não fugir. Essapromessaos obriga,
mesmo quando a tivessem feito estando acorrentado e isso, contraria-
mente à opinião de certos autores. Por esse meio a vida é geralmente
conservada ou se obtém uma vigilância um poucomais branda. Se o
prisioneiro foi posto aosferros depois, será desimpedido de sua palavra,
se não prometeu para não ser acorrentado.

IX. Um prisioneiro não pode se entregar a outro

Pergunta-se de modo incorreto a propósito daquele que foi preso,


se podese render a outro. De fato, é por demais certo que ninguém pode,
por pacto próprio, tirar um direito adquirido a outro. Um direito foi
adquirido por aquele que se apoderou do prisioneiro, em virtude do di
reito da guerra ou em parte por essedireito da guerra e em parte pela
concessãodaquele que faz a guerra, segundo o que expusemos antes
(livro 111,cap. VI, $ XXlll e seguintes).

[11] GotÉüJC.
11,14, sobre os hérulos
[12] GoféÜJc.,
111,36.
1462 H UGO GROTIUS

X. Se os privados devem ser forçados


por seus governantes a cumprir o
que haviam prometido

Há uma bela questão sobre os efeitos dos pactos. É de saber se os


privados que sãonegligentes em cumprir sua promessa podem ser for-
çadospor seusgovernantesa cumpri-la. Melhor é dizer que podemser
coagidos a isso, mas somente numa guerra solene, por causa do direito
das gentes, em virtude do qual os beligerantes são obrigados a se pres'
tarjustiça um ao outro, a propósito mesmo dosfatos dosprivados, como,
por exemplo, se os embaixadores dosinimigos tivessem sido insultados.
Assim é que Corne[ius Nepos,segundoo recato de Au]us Ge]]ius [13],
havia escrito que vários senadoreseram da opinião [14] de mandar de
volta, sob escolta, a Aníbal, aqueles dentre os dez prisioneiros que se
recusavam a retornar.

XI. Qual interpretação se deve


dará convenções
dessetipo
Quanto à interpretação, deve-seobservar as regras já várias ve-
zes referidas (livro 11, cap. XVI, $ 1l e neste livro, cap. XX, $ XXVI), de
não se afastar da propriedade das palavras, a não ser para evitar um
absurdo ou em virtude de alguma outra conjectura su6lcientemente
certa da intenção e que, na dúvida, as palavras sejam interpretadas
antes contra aquele que emana a lei.

[13] Moeres .4f/7bae, V], 18

[14] Já antes disso, o próprio senado romano havia obrigado aqueles que Pirro
havia mandadode volta sob condiçãode retornar para junto dele (Apiano,
Excerpta Legal., x- Sà.
1463
CAPÍTULO XXlll - DA PALAVRA DADA POR CIDADÃOS PRIVADOS NA GUERRA

XII. Como se deve tomar as palavras vida,


vestuário,chegada,socorro

Aquele que estipulou a vida não tem ao mesmo tempo direito à


liberdade. Sobo nome de vestuário, as armas não estão compreendidas,
pois são coisas diferentes. Diz-se muito bem que um socorro chegou
quando está ao alcance da vista, mesmo que não entre em ação, pois a
própria presença tem seu efeito.

XIII. De quem se pode falar que voltou para o inimigo


Não se deveria dizer, daquele que voltou clandestinamente para
se retirar logo, que retornou para o inimigo, pois não se deve entender
que tenha retornado, senão quando se encontra de novo no poder dos
inimigos. Uma interpretação contrária é, segundo Cícero [15], artifi-
ciosa,loucamente astuciosa, que reúne ela própria a fraude e o perjú-
rio. Ela é chamada por Aulus Ge]]ius [16] uma destreza â'audulenta,
classificada de infâmia pelo censor.Aqueles que a tivessem empregado
são classiÊlcados por ele de incapazes de testar e de odiosos.

XIV Quais são os auxílios suficientes


numa rendição feita sob condição
Os auxílios suHlcientesnas convençõesrelativas a uma submis-
são [17], que não deveria ocorrer se esses auxílios chegassem, devem
ser entendidos como auxílios que façam cessar o perigo.

[15] .De 0H71'clJ]s,


111,32, 113.
[16] ]Vocfes.4télcae,V], 18
[17] Em Procópio (GoffÃJC., 111, 7, 12, 30 e 37), há quatro exemplos desse tipo de
convenção. Há outro em Agatias (livro 1, 12), sobre a cidade.de Lucca. Outro em
Bizarro (Hiió. Gente/7s.,X) e outros no mesmolivro (XVTll); e ainda na guerra
contra os mouros. Cromer (livro XI) relata outro semelhante.
1464 H UGO GROTI US

XV. O que diz respeito a uma execução


não se constitui em condição

Deve-setambém observar que, quando se concordou alguma


cláusula relativa ao modo de execução,isso não introduz uma condição
na convenção,como sefossedito que se pagaria em determinado local
que teria em seguida mudado de dono.

XVI. Dos reféns desse tipo de convenções

A respeito dos reféns, deve-seobservar o que dissemos anterior-


mente (neste livro, cap. XX, $ 58) que, na maioria das vezes, são um
acessório do ato principal, mas que, contudo, pode também ser concor-
dado que a obrigação seja disjuntiva, isto é, que seexecuteuma certa
coisa ou que os reféns sejam retidos. Na dúvida, deve-seobservar o que
é mais natural, isto é, que sejam considerados somente como um aces-
sorio.
XXlv

IH l)ALAVRA DADA
TACITAMENTE

Sumário

i. Como a palavra se interpõe tacitamente.

11. Exemplo na pessoa daquele que pede a um povo ou a um rei


para ser acolhido sob sua proteção.

111.Daquele quesolicita ou queconcedeuma entrevista.


IV ilícito contudo àquele, contando que não prejudique a seu
interlocutor em seus negócios.

U Dos sinais mudos que significam alguma coisa, segundo o


costura e.

VI. Da aprovação tácita da garantia.

VII. Quando a pena é tacitamente perdoada.


1467
CAPÍTULO XXIV - DA PALAVRA DADA TACITAMENTE

1. Comoa palavra se interpõe tacitamente


Foi dito não sem razão por Javo]enus [1] que há certas c]áusu]as
com as quais se concorda pelo silêncio, o que se pratica tanto nas con-
venções públicas quanto nas privadas e nas mistas. A razão é que o
consentimento, de qualquer maneira que seja indicado e aceito, tem a
virtude de transferir um direito. Há outros sinais de consentimento
além das palavras e dos escritos, como já mostramos mais de uma vez
(livro 11, cap. IV. $ 1V e livro 111, cap. 1, $ Vlll). Alguns estão natural-
mente incluídos no ato.

11.Exemplo na pessoa daquele


que pede a um povo ou a um rei
para seracolhido sob suaproteção
Tomemosum exemplona pessoadaqueleque,vindo dosinimigos
ou dos estrangeiros, se coloca sob a proteção de outro povo ou de um rei.
Não se pode duvidar que não se obrigue tacitamente a nada fazer con-
tra o Estado onde pede asilo. Por isso é que não se deve imitar aqueles
que dizem que o fato de Zopiro [2] estava ao abrigo da recriminação.
Sua fidelidade para com seu rei não escusa sua perfídia para com aque-
les junto aos quais se havia refugiado. A mesma coisa deve ser dita de
Sextus,filho de Tarqüínio]3], que se havia retirado para Gabios. Virgílio
[4] diz, a propósito de Sinon: "Ficamsabendo agora das emboscadas dos
gregos e, pelo crime de um só, conhecei-os a todos.:

i:tX L. 51, Ea !ege, Dig, Locati.

[2] Justino, ], lO, 15ss

[3] Tiro'Lívio, .4b Z:rróe (hndlfa, 1, 53, 5

[4] Elles'da,
11,65
1468
H UGO GROTIUS

111.Daquele que solicita ou que concedeuma entrevista

Assim é que aquele que solicita ou concedeuma entrevista pro-


mete tacitamente que isso não será prejudicial a seus interlocutores
[5]. Tiro Lívio [6] declara que atentar contra os inimigos sob o pretexto
de uma conferência é violar o./usgenúum. Acrescenta que a conferên-
cia violada, o havia sido perdidamente, pois é erróneo o que está escrito
nessa passagem, per .idem. Cneius Domitius, por ter acorrentada
Bituitus, rei dos avernos, que havia chamado simulando um colóquio e
que o havia recebido como hóspede, torna-se merecedor desse julgamen-
to de Valério Máximo [7] : "Uma ambição de g]ória tamanha o tornou
pérfido." Por isso não é de se maravilhar que o autor do oitavo limo da
Guen'a dn Gá/)b de César [8], seja Hirtius, seja Oppius, re]atando um
fato semelhante de Tullius Labienus, tenha acrescentado: "Julgou que
sua infidelidade (a de Compus) podia ser punida sem nenhuma perfí-
dia." A menos que esse seja o julgamento de Labienus e não aquele do
escritor.

IV E lícito contudo àquele, contanto que não


prejudique a seu interlocutor em seus negócios
Não se deve estender essa vontade tácita além do que eu disse,
pois contanto que os interlocutores não sofram mal algum, desviar o
inimigo de seus projetos de guerra soba aparência de uma entrevista e,
durante essetempo, por em execuçãoseus própios projetos, é isento de
pera«adiae colocado no número das intrigas inocentes. Por isso é que
aque[es que insistiam em dizer que o rei Perseu [9] havia sido enganado

[5] Agatias (livro 11,14)critica comrazão o huno Ragnaris, por ter decididotrespas
sar Narsete com um dardo, quando este se retirava de um colóquio
[6] .4ó aPÕeaonde'za,XXXV]11, 25, 8.
[7] Livro IX, 6, 3
[8] Caius Julius Caesar, De .BeiçoGaZüao,V]11, 23
[9] Tiro Lívio, .4b Z:/róeOondlfa, XL]1, 47
1469
CAPÍTULO XXIV - DA PALAVRA DADA TACITAMENTE

por uma esperança de paz, não tomavam tanto em consideração o que


podem o direito e a boa-fé, mas o que é de um espírito elevado e da glória
militar, como isso poder ser suficientemente compreendido, segundo o
que dissemos (livro 111,cap. 1, $ VI e seguintes) das intrigas de guerra.
Do mesmotipo íoi a astúcia com a qual Asdrúbal salvou seu exército
dosbosquesdeAusetum e o estratagema como qual CipiãoAfricano, o
Velho, descobriu a situação do acampamento de Scyphax. Ambos os
casossão narrados por Tito Lívio [lO]. Lucius Sy]]a [11] imitou seu
exemplo na guerra social, perto de lsernia, como podemos ler em H'ontino
[12]

y Dos sinais mudos que significam


alguma coisa, segundo o costume
Há também certos sinais mudos, mas significativos segundoo
costume, como outrora as pequenas faixas e os ramos de oliveira; entre
os macedónios o ato de levantar as maças; entre os romanos, o escudo
colocadosobre a cabeça [13], todos sinais empregados para indicar a
súplice rendição [14] e que, por conseguinte, obrigam a depor as armas.
Quanto à questão de saber se aquele que dá a entender por sinais que
aceita a submissão é obrigado e até que ponto o é, deve-se extrair a

[101 .4ó Z]/}üeC;a12(#Za,


XXVI, 17 e XXX, 4
[11] E o ditador César contra os teucteres e os usipetas (Apiano, Erc'erpfa Zegaf., n.
16)
[12]Sfrafegemafa,1, 5, 17.
[13]Apiano, .Be/T.(:]v77.,11,42
[14]

rendem
nnp depõem
poe r n em súplicas
as armas
1470
H U GO GKOíiUS

solução do que foi dito antes (livro 111,cap. l\C $ Xll e cap. XI, $ XV). Em
nossosdias, as bandeiras brancas sãosinal tácito de uma entrevista
solicitada [15] . Obrigam não menos que se fosse pedida de viva voz.

VI. Da aprovaçãotácita da garantia


Até que ponto a garantia dada pelos generais deve ser considera-
da tacitamente aprovada pelo povo ou pelo rei? Isso também já o disse-
mos antes (livro 11,cap. XV. $ XVll e livro 111,cap. XXll, $ 111).Veri-
fica-se quando o ato foi conhecido e que houve alguma coisa de feito ou
de não feito, de que não se possa dar outro motivo, senão a vontade de
aprovaroacordo.

VII. Quando a pena é tacitamente perdoada

A remissão da pena [16] não pode ser inferida somente da dissi-


mulação, mas é necessário que intervenha um ato de natureza a de-
monstrar por elepróprio ou pela amizade, quandofosseum tratado de
amizade, ou ainda uma estima por um mérito tal que, em sua conside-
ração, os fatos anteriormente cometidos devem por direito ser conside-
rados perdoados, tanto se essa estima tenha sido manifestada por pala-
vras, quanto por açõesque, segundo o costume, são destinadas a seme-
lhante signiÊlcação.

[15] Entre os povos nórdicos, um fogo acesoé o sinal de pedido de entrevista. Jogo
Magnus e outros relembram isso. Plínio(livro XV 30) diz do loureiro: ':r)7nnfa
que traz a paz e que, mesmo no meio dos inimigos armados, quailda apresen'
cada:é um shla} de tranqüílídade
[16] Políbio, em passagemconservadaem ExcerpÉaZegaÉlo/u/n (n. 122), trata a
questão de saber se, quando se perdoou àquele próprio que cometeu o crime,
se está sob obrigação de perdoar também àquele por cuja ordem o crime foi
cometido. Não acho que seja assim, pois cada um é responsável por suas pró
prias faltas
xxv

CONCLUSÃO
COM
\ EXOlilAGOES
/ \
A BOA-FEE A IUZ

Sumário

1. Exortações para conservar a pala vra dada.

11.Na guerra, se deve sempre ter em vista a paz.

111.Ela deve ser mesmo abraçada quando seria desvantajosa,


sobretudo para as cristãos.

IV .[sso é úti! aos vencidos.

\( E também ao vencedor.

rl. Epara a queles cujos negócios são duvidosos.

VII. A paz feita deve ser observada religiosamente.


vlll. Votos e âlm da obra.
1473
CAPÍTULO XXV - CONCLUSÃO COM EXORTAÇÕESÀ BOA.FÉ E À PAZ

1.Exortações para conservar a palavra dada


1. Penso que posso terminar aqui, não que todas as coisas que
poderiam ser ditas o tenham sido, mas porque foi dito o bastante para
lançar os fundamentos sobre os quais, se alguém quer projetar obras
mais imponentes, longe de me tornar invejoso dele, teria mesmo meu
reconhecimento. Somente, antes de me despedir doleitor, como quando
tratava do projeto de empreender a guerra, acrescentei certas exorta-
çõespara evita-la, assim também, agora, acrescentaria um pequeno
número de avisos que possam servir na guerra e depois da guerra, para
inspirar o cuidado pela boa-fé e pela paz. Da boa-fé,seguramente, tanto
por outras razões, a fim de que a esperança da paz não seja perdida.
Não é somente todo e qualquer Estado que é mantido pela boa-fé, como
diz Cícero [1], mas é também essa sociedademais ampla das nações.
Comodiz com toda a verdadeAristóte]es [2], "suprima-a e todo comércio
entre os homens será aniquilado'
2. Por isso é que o mesmo Cícero [3] diz comrazão que é crimino-
so violar a fé que é o vínculo da vida. Segundo a expressão de Sêneca [4],
"é o bem mais inviolável do coração humano". Os chefes supremos dos
homens devem respeita-la tanto mais que pecam com mais impunidade
que os outros. Por isso, a boa-fé suprimida, serão semelhantes a ani-
mais ferozes[5] , cuja violência é para todos um objeto de horror. Ajus-
tiça, no resto de suas partes, tem muitas vezes alguma coisa de obscu-

[1] .De (2áZ]'cais,


11,24, 84.
[2] .Reza..4d TZeod., 1, 15.
[3] Pro a. .Rosc20
Concedo,6, 16.
[4] .Hpjkfo/aLXXXV]11, 29
[5] Em Procópio (PersJC.,]], ]O), os embaixadores de Justiniano assim se dirigem a
Cosxoê$ "Se não tivéssemos falado a ti pessoalmente, jamais teríamos acredita-
do, ó rei, que Cosroés, õlJho de Cabad, teria entrado nas terras dos romanos
armado, sem respeitar o juramento que acabara de fazer, ou seja, o que se
consideraentre oshomens como o penhor mais certo e mais sagrado da palavra
dada. Além disso, rompelldo os tratados que são o único recurso daqueles que,
por causa de seu insucesso na guerra, não têm segurança para o futuro. Não
seria isso. mudar a vida humana numa vida de a11imaisferozes?Se uma vez lias
tratador é traída a confiança, torna-se uma 31ecessídade que as guerras sejam
eternas. E as guerras seja â3n têm este efeito, a de manter para sempre os
h03neJls fora dos sentimentos de sua }latureza.
1474
H UGO GKOíiUS

ro, mas o vínculo da boa-fé é por si mesmo manifesto e é precisamente


por isso que a gente se serve dele também, a fim de extirpar dos negó-
cios toda obscuridade.

3. Competemuito mais aosreis cultiva-la religiosamente,pri-


meiro por causa de sua consciência, a seguir por causa de sua reputa-
ção, sobre a qual repousa a autoridade da realeza. Que não duvidem,
pois, que aqueles que lhes insinuam a arte de enganar não façam o
mesmo que ensinam. A doutrina que torna o homem insociável com
relação a outros homens (acrescente-se,e odiosa a Deus) não pode ser
proveitosa por muito tempo.

11.Na guerra, se deve sempre ter em vista a paz


Em segundolugar, em toda conduçãoda guerra, o espírito não
pode ser mantido em repouso e confiante em Deus, a menos que não
tenha sempre em vista a paz. De fato, foi dito com a mais transparente
verdade por Salústio [6] que "os sábios fazem a guerra em vista da paz"
Com isso combina esta máxima deAgostinho [7] que "não se deve pro'
curar a paz para se preparar para a guerra, mas fazer a guerra para
ter a paz". O próprio Aristóte]es [8] critica mais de uma vez as nações
que se propunham investidas guerreiras como se fosse seu objetivo su-
premo Aviolência, que domina sobretudo na guerra, tem alguma coisa
que a aproxima do animal selvagem. Torna-se necessário empenhar-se
com o maior cuidado para modera-la com a bondade, com receio de que,
imitando por demais os animais ferozes, desaprendamos o que é ser
homem.

111.Ela deve ser mesmo abraçada quando seria


desvantajosa, sobretudo para os cristãos

Se uma paz suficientemente segura pode ser obtida perdoando os


malfeitores, os que causam danos e despesas, não é desvantajosa, so-
bretudo entre os cristãos, a quem o Senhor legou a paz. Seu melhor

[6] OraÉloac/ Chegar.(De Rep. 1, 6, 2)


Ll\ Epístola ad Bonífatium, \, 6.

[8] /)o/z'fica.fV]1, 2 e 14
1475
CAPITULO XXV - CONCLUSÃO COM EXORTAÇÕES À BOA-FÉ E À PAZ

intérprete (-Romanos,Xl1, 18) quer que sefaçao possível,tanto quanto


estiver em nós, para buscarmos a paz comtodos oshomens. Faz parte
de um homem de bem empreender a guerra com remorso e de não
perseguir de boa vontade as últimas conseqüências,como lemos em
Salústio [9] .

IV Isso é útil aos vencidos


Somente isso, é verdade, deve ser suficiente, mas na maioria das
vezestambém a utilidade humana leva a isso. Em primeiro lugar, para
aqueles que são menos fortes porque uma longa luta com o mais forte é
perigosa e, como acontece num navio, deve-seresgatar uma calamida-
de maior por algum sacrifício, pondo de lado a cólera e a esperança,
enganosos conselheiros, como o diz muito bem ]:ito Lívio]lO] . Aristóteles
[11] enuncia ainda este pensamento [12]: "Ê preferíve] abandonar a]gu-
ma coisa de seus bens para aqueles que são mais fortes do que, vencidos
na guerra, perecer como que setem.

V E também ao vencedor
Ela interessa também aos que são mais fortes porque, como o
mesmoTito Lívio [13] diz com não menos verdade, a paz é vantajosa e
gloriosa para aqueles que a dão na prosperidade de seus negócios e que
é melhor e mais segura que uma vitória esperada. Deve-se pensar, de
fato, que Morte é acessível a todos. Aristóte]es [14] diz: "Deve-se consi-
derar como na guerra ocorrem geralmente mudanças numerosas e im-
previstas." Num discurso pela paz, em Diodoro [15], uma repreensão é
dirigida aos que "exaltam a grandeza de suas ações, como se isso não

l91 Melhor, Cícero, .6pJbfuJae, IV. 7.


[10].4b Z:/róeaondlfa, V]1, 40, 18.
[11] .1?Zeé.ad.4/ex., 3
[12] Fílon, em Z)e ConsfJf. /)r/ncib. (13), se exprime do modo seguinte: ':4 paz,
embo!'a com grandes desvantageJls,é mais útil que a guerra.

illiHKl: ll::ll; [
1476 H UGO GKOtiUS

fosse o costume da sorte da guerra, o de distribuir por turno favores"


Deve-se temer sobretudo a audácia daqueles que estão desesperados
[16], do mesmo modo que as mordidas dos animais moribundos que são
mais terríveis.

VI. E para aqueles cujos negócios são duvidosos

Se os dois inimigos acreditam estar em iguais condições, é então,


segundo a opinião de César [17], o me]hor momento para tratar da paz,
enquanto um e outro ainda têm confiançaneles mesmos.

VII. A paz feita deve ser observadareligiosamente


Feita a paz, em quaisquer condições,deve ser plenamente obser-
vada por causa dessa santidade da fé, de que falamos, e se deve evitar
com vigilância não somente a perfídia, mas também tudo o que exaspe'
ra os espíritos. O que Cícero [18] disse das amizades privadas pode ser
aplicado muito bem a essas amizades públicas. Deve-se vigiar sobre
todascom o maior escrúpulo e coma maior fidelidade, mas principal-
mente sobre aquelas que foram reconduzidas da inimizade para a re-
conciliação.

VIII. Votos e fim da obra

Que Deus, que só ele pode, grave essas coisas no coração daque-
les, nas mãos dos quais estão os destinos da cristandade. Que lhes dê
um espírito inteligente para captar o direito divino e humano e que
cada um deles pense sempre que foi escolhido como ministro para go'
vernar homens, seres tão caros a Deus]19] .

[16] Plutarco(Manas, 432 C) escreve: 'Z'proa/)o, com eáeJfo,temer o esconder7Üb


do
leão moribundo.
[17] .De.Be//oalv7Ul:]]], IO
[18] Em Jerânimo, HpoJaF7a adie sus Za2)ros J?uÉlb l l, l.
[19] Foi isso que Crisóstomo, em seu sermão sobre a esmo]a [no início], disse: '0
homem, este ser de predileçãopara Deus.

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