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HISTORIOGRAFIA

BRASILEIRA

Ana Carolina Machado de Souza

E-book 2
Neste E-Book:
INTRODUÇÃO����������������������������������������������������������� 3
HISTÓRIA DA HISTORIOGRAFIA – A
CONSTRUÇÃO DA IDEIA DE BRASIL NO
SÉCULO 19������������������������������������������������������������������ 4
A construção da nacionalidade e o Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro (IHGB)����������������������������������������������������4
Von Martius e o manual da escrita da História���������������������11
Varnhagen e a “História Geral do Brasil” (1854-1857,
reeditada em 1877)�����������������������������������������������������������������16
Capistrano de Abreu e a nova forma de se escrever o
Brasil����������������������������������������������������������������������������������������22
Oliveira Vianna e uma interpretação do Brasil����������������������30

CONSIDERAÇÕES FINAIS����������������������������������� 35
SÍNTESE��������������������������������������������������������������������36
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS &
CONSULTADAS������������������������������������������������������� 37

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INTRODUÇÃO
Neste e-book aprenderemos os conceitos de iden-
tidade e nação no Brasil do século 19, a criação do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e
sua importância para a prática historiográfica, fare-
mos uma análise sobre Karl Friederich Philip von
Martius (1794-1868) e Francisco Adolfo Varnhagen
(1816-1878), grandes intelectuais que contribuíram
para a construção de um olhar específico sobre a
História do país, e, para finalizar, conheceremos um
pouco outros dois intelectuais que trabalharam novas
concepções de História, Capistrano de Abreu (1853-
1927) e Oliveira Vianna (1883-1951).

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HISTÓRIA DA
HISTORIOGRAFIA – A
CONSTRUÇÃO DA IDEIA DE
BRASIL NO SÉCULO 19
O século 19 marcou transformações profundas
no Brasil, tanto no âmbito político, social e cultural
quanto em relação à produção historiográfica. Para a
História, a criação do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro (IHGB) em 1838 mudou a forma de se pen-
sar e escrever no país. O sentido de nação e iden-
tidade nacional, que são processos históricos, foi
trabalhado nesse período, mas também sofreu as
modificações do tempo, já que no início do século
20, com o advento da República, tivemos uma refor-
mulação dessas ideias.

A construção da nacionalidade
e o Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro (IHGB)

A criação da ideia de nação e de identidades na-


cionais são mecanismos muito importantes para a
transformação do discurso histórico. “Rememorar”,
ou seja, trazer antigas memórias à tona, tem um sig-
nificado próprio. A memória é formada a partir da vi-
vência e das experiências sociais, mas sempre tendo
em vista a parcialidade do discurso. Isto é, quando
se escreve um texto historiográfico, quando se ana-
lisa o que figuras do passado deixaram registrado

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em cartas, documentos oficiais, músicas e imagens,
parte-se de uma perspectiva particular.

No caso do século 19, o Brasil passava por mudan-


ças profundas. Em 1808, a corte portuguesa apor-
tou em Salvador e, depois, no Rio de Janeiro, onde
fez estadia, afetando não só a vida da população,
mas também a organização política e econômica
da colônia e da metrópole. A nova capital do Império
Português foi transformada a fim de que o espaço
fosse modernizado e civilizado para a chegada dos
europeus. Muitos colonos foram expulsos de casa
para se alocarem os membros da corte. Para facilitar
a administração, a burocracia foi deslocada para a
colônia, o que foi de bom proveito para os políticos
e membros de cargos governamentais daqui. Foram
essas pessoas, que também eram intelectuais, que
fundaram o IHGB.

O que os historiadores discutem hoje sobre esse


período é que a produção histórica estava voltada
para o processo de disciplinarização da mesma, ou
seja, para a criação de uma estrutura que deveria ser
seguida, o que era muito complexo porque abarcava
uma vasta gama de ideias e intenções. A afirmação
da nação brasileira teve dois momentos distintos no
século 19: o Monárquico e o Republicano, sendo que
neste último houve o “apagamento” do Império para
se instituir uma nova ideia de Brasil.

A História é a ciência que lida com o passado e a


História da Historiografia reinsere os textos na sua
própria historicidade. O surgimento do IHGB, em

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1838, normalizou a escrita da História, criou padrões
para que as obras fossem consideradas nacionais.
Os temas, como os ciclos econômicos, a cultura e
a política, deveriam ser analisados a partir do crivo
científico. Isto é, nasceu o “cientista da História” –
o historiador – que tinha uma série de regras para
seguir – a metodologia. Neste ponto se observa a
diferença entre as crônicas de viajantes e os textos
que deveriam ser feitos no século 19 para serem con-
siderados como História. Apesar do aprumo científi-
co, as particularidades de cada autor permaneceram,
por isso que os ler, hoje em dia, traz esclarecimentos
sobre a época, sobre a importância do instituto e so-
bre como a historiografia brasileira mudou ao longo
do tempo.

No dia 18 de agosto de 1838 foi realizada uma as-


sembleia na Sociedade Auxiliadora da Indústria
Nacional, presidida por Januário da Cunha Barbosa
(1780-1846) e Marechal Raimundo José da Cunha
Matos (1776-1839), na qual sugeriram a criação de
um instituto histórico. No dia 25 do mesmo mês, a
proposta foi aprovada e os membros convidados,
porque para fazer parte do grupo era necessário con-
vite e a maioria deles foram distribuídos a políticos,
intelectuais e membros da elite brasileira.

Foi no Segundo Reinado (1840-1889) que o IHGB


ganhou força e prestígio, tornando-se parte funda-
mental do projeto civilizador do Brasil, mas, no caso
da instituição, o foco era a construção historiográfica.
Dessa forma, o país ganhou um órgão que delibera-
damente estudaria o passado brasileiro. E qual era o

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ponto de vista do presente pelo qual as fontes seriam
interpretadas? A nação e o processo civilizatório.

A imagem que o Brasil deveria ter guiou a sua cons-


trução historiográfica, que era a de uma nação pro-
gressista nos mesmos patamares dos países eu-
ropeus. Para isso, os historiadores enxergavam o
tempo de forma teleológica, ou seja, encaixavam a
narrativa para que alcançassem o presente ou até
um futuro próximo. A cronologia era manipulada com
uma intenção definida.

No século 19, a busca pela origem foi um dos prin-


cipais destaques, criando e se aproveitando da nos-
talgia. Por exemplo, na Europa, as ruínas do Império
Romano começaram a ser restauradas por diversos
países. A França, por sua vez, reconstruiu cidades
medievais decadentes, como Carcassonne, porque
eram modelos vivos do próprio passado. Esse apego
às ruínas foi tanto que alguns burgueses que enri-
queceram com a Revolução Industrial construíam
palacetes e inseriam “ruínas” no paisagismo. Ou seja,
pediam aos mestres de obras e arquitetos para colo-
carem um monumento com a aparência de antigo na
sua propriedade. Existem diversas explicações para
isso. Uma é que a História (ou o passado) era muito
valorizado na época. Órgãos, institutos e socieda-
des análogas ao IHGB surgiram em muitos países.
Outra resposta era o poder do controle da narrativa,
o que também acontece com a escrita da História,
que se torna mais importante que a memória e essa
característica é muito importante para se entender
os textos de Von Martius e Varnhagen.

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Voltando ao conceito de nação.

REFLITA
Nenhum dos conceitos que aparecem aqui são es-
tanques, dessa forma, cabe a você procurar outras
bibliografias para aprofundar seu conhecimento.
No caso da ideia de nação, há inúmeros autores
que a trabalharam com diversos sentidos e finalida-
des. Um dos mais conhecidos e utilizados hoje em
dia é o de Benedict Anderson. Em Comunidades
imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão
do nacionalismo, ele afirma que a nação é uma
comunidade política imaginada. No caso do Brasil,
houve uma ruptura com o advento da República
e essa construção da imagem nacional brasileira,
permeada de mitos e símbolos, tentava “esquecer”
o passado recente.

O Estado nacional é a representação material da


ideia de nação (com fronteiras, leis e normas a serem
seguidas), que é mais “líquida”, modificável. Como
buscaram fortalecê-la? Através do passado, das ori-
gens, que eles, intelectuais, historiadores, governos,
escolhiam para explicar o presente. Quando se fala
que é um processo de escolha não significa que é
inventado e sim que alguns pontos são evidenciados
em detrimento a outros. Apesar dessa condição de
uma ideia de “nação brasileira” ter ocorrido sob o
ponto de vista institucional, a população também faz

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parte disso, pois, para a ideia se solidificar, precisa
do aval geral, criando uma identificação.

Um dos principais autores que discutiu a temática


foi Eric Hobsbawn, sobretudo em Nações e nacio-
nalismo desde 1780: programa, mito e realidade, de
1990, no qual definiu a nação como uma construção
da era pós-Revolução Industrial, pois seu ponto de
vista estava voltado à política e à economia. Além
disso, destacou que o conceito de nacionalismo é
anterior à própria nação. Por exemplo, a geração
republicana teve seus frutos mais longevos, haja
vista que o sistema político vigora até hoje. Porém,
o esforço empregado pelos intelectuais de silenciar
a monarquia denota a força que as ideias geridas
até então obtiveram.

Dessa forma, o trabalho feito pelos historiadores


no Império são fundamentais para se conhecer a
nossa História. Cronistas coloniais, como o próprio
André João Antonil (1649-1716), tiveram seus textos
resgatados e publicados em meados do século 19,
ampliando a compreensão sobre o passado. Muitos
documentos inéditos foram recuperados em arquivos
pelo mundo todo e dento do próprio país.

Com a proliferação das sociedades científicas nesse


período (como a Sociedade Brasileira de Geografia,
em 1883, os institutos históricos e geográficos em
todos os estados), revistas científicas e literárias
receberam um destaque especial. O próprio IHGB
lançou sua Revista Trimestral, em 1839, e se tor-
nou parâmetro para a pesquisa científica nas áreas

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correspondentes, até pela sua unicidade, já que não
existiam tantos exemplos no Brasil.

No contexto oitocentista brasileiro, o IHGB, delibe-


radamente, estabeleceu modelos para a produção
historiográfica. Uma das grandes questões aqui era
assegurar a veracidade dos fatos, isto é, por meio
de procedimentos considerados corretos, o leitor
saberia que estava em contato com uma informação
“verdadeira”. Uma das premissas da época é que o
documento era lido como real, como verdade abso-
luta. Portanto, os focos eram tanto na forma com
que deveriam ser escritas as pesquisas como na te-
mática, que se voltava para o discurso civilizacional.

O IHGB teve a função de consolidar o Estado nacional


pelas vias intelectuais e seus membros eram figuras
ilustres da elite e da política brasileira. Foi financiado
pelo Império, Dom Pedro II era um dos seus principais
apoiadores. Uma das primeiras ações foi conceber a
historiografia nacional a partir das fontes documen-
tais existentes. Com elas, o historiador conseguia
“refazer os caminhos” do passado, aquele que era
escolhido para aprofundar a mensagem.

Já que estabelecemos que a nação é uma constru-


ção, e que a História tem papel importante nesse sis-
tema, o próximo passo é analisarmos alguns textos
que exemplificam essa época. Nas assembleias do
IHGB, os membros escolheram um texto específico
que serviria de guia para a “operação historiográfica”,
o de Karl Friederich Philip von Martius (1794-1868),

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chamado Como se deve escrever a história do Brasil,
de 1843.

Von Martius e o manual


da escrita da História

O alemão Von Martius era médico e botânico, es-


pecializado na análise da flora. Como trabalhou
no Jardim Botânico de Munique e fazia parte da
Academia Real de Ciências da cidade, foi chamado
para vir ao Brasil com a missão científica da Baviera,
em 1816, que acompanhou a Dona Maria Leopoldina
de Habsburgo (1794-1826), com quem se casou Dom
Pedro I.

Para conhecer um pouco mais sobre o assunto,


atente-se ao podcast a seguir.

Podcast 1

Enquanto Von Martius estudava a botânica brasilei-


ra, seu colega Johann Baptist von Spix (1781-1826)
coordenava os estudos zoológicos. Eles viajaram
pelo Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Goiás,
Bahia, Pernambuco, Maranhão, Amazonas e Pará
recolhendo informações preciosas sobre a natureza,
nomeando e classificando as espécies. Após essa
missão exploratória, concluiu diversas obras: em
1838, a Viagem pelo Brasil, que foi escrita por vários
membros da comitiva. Em 1832, O Estado de Direito
entre os autóctones do Brasil, em 1839, O passado e
o futuro dos seus americanos, em 1831, Os nomes

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das plantas na língua tupi e, em 1863, o Glossarium
Linguarium Brasiliensium.

Apesar de ter voltado à Europa em 1820, tornou-se


sócio honorário do IHGB e escreveu o texto que foi
premiado sobre a metodologia e a temática histó-
rica brasileira: “Como se deve escrever a História
do Brasil”. É importante destacar-se que o trabalho
escolhido pelo instituto para balizar a historiografia
brasileira foi de um estrangeiro. Isso se relaciona ao
fato de buscarem a validação do outro, algo típico
dos nacionalismos no século 19. A construção inte-
lectual dessa identidade nacional é necessária para
se legitimar o poder e a ordem social, e a imagem
internacional acerca desse país se “descobrindo”
valorizava essas ações.

A situação do Brasil nessa época era difícil. Antes da


independência, vivemos momentos separatistas por
décadas, que contestavam o domínio português. A
Inconfidência Mineira (1789), a Conjuração Carioca
(1794), a Conjuração Baiana (1798) e a Revolução
Pernambucana (1917) ajudaram a aprofundar o clima
hostil que antecedeu o processo de independência.
Nos anos subsequentes a 1822, a situação não mu-
dou muito.

A política ficou marcada por uma Constituição (1824)


controversa, pela manutenção da Família Real que do-
minara a colônia por séculos, pela abdicação de Dom
Pedro I, em 1831, e, depois, pelos governos regen-
ciais. De certa forma, os conflitos continuaram, pois,
no Norte e no Nordeste, ocorreram a Confederação

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do Equador (1824), a Revolta dos Malês (1835), a
Cabanagem (1835-1840), a Sabinada (1837-1838) e a
Balaiada (1831-1841); no Sul, a Revolução Farroupilha
(1835-1845). O descontentamento com o governo era
grande, portanto, a necessidade de criar o sentimento
de identidade nacional para conectar todas as regi-
ões perante um denominador comum se tornou ur-
gente. O olhar estrangeiro, do outro, era fundamental
para que a imagem de Estado forte, consolidado e so-
berano se fixasse tanto externa quanto internamente.

A influência intelectual era basicamente francesa,


sobretudo o Instituto Histórico de Paris, assim como
a Academia Real de Ciências de Lisboa. Além de ser
estrangeiro, Von Martius desenvolveu um discurso
que corroborava o viés ideológico do IHGB, mais um
motivo a ser analisado.

O alemão inicia o texto expondo que os elementos


que desenvolveriam o homem brasileiro e sua his-
tória são encontrados na própria natureza, em si.
Pensando no ambiente, as particularidades do país
são uma das premissas que balizam a identidade
nacional. Lembra-se que falamos que o processo
de construção da ideia de nacional era hierarquiza-
do, de cima para baixo, mas deveria ser aceito pela
população no geral para dar certo? A fala de Von
Martius esclarece isso, pois a singularidade da na-
tureza brasileira, que passava a ser exaltada, além
da constituição do povo brasileiro – que foi descrita
pelo autor:

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São, porém, estes elementos de natureza muito diversa,
tendo para a formação do homem convergido de um
modo particular três raças, a saber: a de cor de cobre
ou americana, a branca ou caucasiana, e enfim a preta
ou ethiopica. Do encontro, da mescla, das relações
mútuas e mudanças d’essas três raças, formou-se a
actual população, cuja história por isso mesmo tem
um cunho muito particular (GUIMARÃES, 2010, p. 64).

É consenso na historiografia que esse discurso de


Von Martius sobre a importância das raças na cons-
tituição da nação brasileira é o grande ponto do seu
argumento. Se por muito tempo nos foi ensinado que
o país era formado pela união de indígenas, brancos
e negros foi por causa desse texto do alemão, que
inseriu esse ponto de vista sobre o Brasil.

Contudo, segundo seu ponto de vista, havia uma


raça superior, que eram os portugueses, que insti-
tuíram o desenvolvimento nesta terra desde o início
da colonização. O autor aponta que, mesmo com a
imponência dos europeus, não se deveria descartar
a relevância dos negros e indígenas na formação do
Brasil. Eles, inclusive, não teriam aceitado a domina-
ção pacificamente, amotinando-se diversas vezes:
“tanto os indígenas, como os negros, reagiram sobre
a raça predominante” (GUIMARÃES, 2010, p. 64).

A discussão sobre as raças era comum na Europa,


pois era a época em que o imperialismo das potên-
cias do Velho Mundo reconfigurou as fronteiras afri-
canas e de alguns países asiáticos. Em 1859, duas
décadas depois do texto de Von Martius, o inglês
Charles Darwin (1809-1882) publicou A Origem das

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Espécies, obra que revolucionou a ciência mundial. A
teoria da evolução das espécies é até hoje seminal,
mas foi problematicamente interpretada ainda no
século 19. Herbert Spencer (1820-1903), por exemplo,
aplicava o evolucionismo para o desenvolvimento
social, o chamado darwinismo social. Assim, alguns
povos estariam em um estágio de evolução maior
do que outros, estabelecendo diferenças sociais
profundas.

Von Martius estabelecia características particulares


do país que deveriam ser utilizadas como elementos
agregadores. Confira o trecho:

Tanto a historia dos povos quanto a dos individuos


nos mostram que o genio da historia (do mundo), que
conduz o genero humano por caminhos, cuja sabedoria
sempre devemos reconhecer, não poucas vezes lança
mão de crusar as raças para alcançar os mais sublimes
fins na ordem do mundo [...]. Jámais nos será permit-
tido duvidar que a vontade da providencia predestinou
o Brasil nesta mescla. O sangue portuguez, em pode-
roso rio deverá absorver os pequenos confluentes das
raças India e Ethiopica. Em a classe baixa tem lugar
esta mescla, e como em todos os paizes se formam
as classes superiores dos elementos das inferiores,
e por meio d’ellas se vivificam e fortalecem, assim se
prepara actualmente na ultima classe da população
brasileira essa mescla de raças, que d’ahi a seculos in-
fluira poderosamente sobre as classes elevadas, e lhes
communicará aquella atividade historica para a qual o
Imperio do Brasil é chamado (GUIMARÃES, 2010, p. 65).

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Mesmo apontando as diferentes raças, a perspectiva
desigual permanecia, haja vista que o autor define
como classe alta e baixa a partir de um critério social.
Ele introduz uma ideia sistematizada de que o portu-
guês foi fundamental para o andamento civilizacional
brasileiro. Tanto os grandes nomes como o colono
comum deveriam ser abordados, mas com destaque
aos relacionamentos construídos no Brasil. Contudo,
estes estavam conectados diretamente aos pensa-
mentos e ideias europeus. Já em relação às outras
raças, entre os indígenas e os negros, os primeiros
tiveram uma ênfase um pouco maior. Ao discutir
as diferentes raças, Von Martius dá um sentido de
unidade ao país, escolhendo fronteiras e costumes
típicos.

Esse discurso foi endossado pela intelectualidade


brasileira e deu origem a novas pesquisas sobre o
tema. Um dos principais expoentes da historiografia
que se destacou foi Francisco Adolfo Varnhagen
(1816-1878).

Varnhagen e a “História
Geral do Brasil” (1854-1857,
reeditada em 1877)

Conhecido como Visconde de Porto Seguro, no inte-


rior de São Paulo, Varnhagen era de família de classe
alta, sendo que o pai era alemão e engenheiro e a
mãe portuguesa. Estudou em Portugal sua vida in-
teira, ingressou na marinha do país e lá iniciou suas
pesquisas históricas. Era comum naquela época a

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pluralidade de ofícios. Um fato interessante é que em
suas idas a arquivos, sobretudo a Torre do Tombo,
em Lisboa, descobriu diversos documentos sobre a
História colonial brasileira, inclusive a obra de Gabriel
Soares de Sousa.

Ao se restabelecer no Brasil, em 1851, conseguiu sua


cidadania, havia se tornado membro do IHGB e suas
habilidades logo foram reconhecidas. Trabalhou na
biblioteca e no acervo documental e construiu uma
amizade próxima a Dom Pedro II. Assumiu cargos
na diplomacia brasileira, viajou para diversos países
e colecionou muitos (e diversos) materiais sobre a
História do Brasil.

Ele inicia seu primeiro tomo da obra em dois volu-


mes História Geral do Brasil com uma dedicatória
ao Imperador:

A Vossa Magestade Imperial, Senhor, Primeiro Estadista


brazileiro que reconheceu e sanccionou a importancia
do estudo da Historia da Nação, tanto para contribuir ao
maior esplendor della entre os estranhos, como para mi-
nistrar dados aproveitaveis na administração do Estado,
e tambem para fortificar os vinculos da unidade nacio-
nal, e aviventar e exaltar o patriotismo, e ennobrecer o
espirito público, augmentando a fé no futuro e na glória
das letras (VARNHAGEN, 1877, pp.1-2).

Varnhagen exalta Dom Pedro II, mas o que podemos


destacar além disso é o foco do texto, da definição
da História brasileira, que se inspirara na atitude do
soberano de “fortificar os vínculos da unidade na-
cional”. Na escrita da História, um ponto é sempre

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feito protagonista, enquanto outros são esquecidos
e cabe aos historiadores de agora ler esses hiatos e
preencher com informações. No século 19, a História,
a documentação e os arquivos ganharam destaque
no cenário político e intelectual, mas pouco se era
falado sobre as questões do presente, como a popu-
lação no geral. Os negros, por exemplo, eram descri-
tos como força de trabalho apenas, não estavam na
lista de prioridades desses intelectuais, mesmo que
a abolição fosse uma realidade em muitos países.

O Brasil foi pressionado pela Inglaterra para aca-


bar com a escravidão, mas desde a Lei Eusébio de
Queirós, em 1850, que proibiu o tráfico de escraviza-
dos, até a abolição, em 1888, o país negociou com
os senhores de escravizados para diminuir os seus
prejuízos econômicos. Pouco foi feito no intuito de
erradicar a desigualdade ou a situação desumana
dos negros, mas esta é uma visão contemporânea.
Naquela época, quando se pensava na construção da
História do Brasil, os principais fatos trazidos à tona
eram políticos e econômicos, já o desenvolvimento
social ou a perspectiva de outras classes não era
escutada.

Se o Brasil queria ser um dos bastiões da civilidade


no Ocidente, tinha que ter uma origem e um passado
à altura. Varnhagen publicou os dois volumes em
1854 e 1857, mas fez uma reedição cuidadosa em
1877. Para ele, quem conduziu o desenvolvimento
brasileiro foram os portugueses, que conseguiram
fazer a transição da Colônia para o estado indepen-
dente sem grandes atritos, ao contrário da América

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Espanhola e as diversas guerras civis que aconte-
ceram por lá. Ou os Estados Unidos, que também
enfrentaram um conflito longo desde a declaração
da independência até a sua consolidação.

Inclusive, o processo de colonização no Brasil teria


sido mais desafiador aos portugueses. Na América
Espanhola, as sociedades indígenas eram vistas
como mais civilizadas do que as encontradas aqui. O
fato de terem descoberto ouro e prata em abundância
teria auxiliado o estabelecimento do projeto colonial.
Já os ingleses encontraram um clima conhecido e
muitos rios de planície (o que facilitava a navegação),
e isso significa um ambiente menos inóspito do que
o vivido pelos lusitanos. Os trópicos se provaram
um problema, a serra do mar era difícil de subir, as
matas eram densas, muitos animais peçonhentos,
mas todo o mérito de ter “vencido” os obstáculos era
dos portugueses.

Varnhagen fazia parte da tradição que via a História


como “mestra da vida”, isto é, uma organizadora do
passado. Ele produz, então, o que chamamos no
início de teleologia, que, neste caso, é a reordena-
ção do tempo com uma finalidade. Sua formação
foi europeia, mas logo foi absorvida pelo IHGB, que
escolheu essa abordagem.

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SAIBA MAIS
Para se aprofundar na escrita da História feita
pelo IHGB, confira o livro de Manuel Luiz Salgado
Guimarães, Livro de fontes de Historiografia bra-
sileira, no qual foram selecionados nove docu-
mentos importantes, inclusive o de Von Martius.

Apesar da importância do texto de Von Martius apre-


sentado no Instituto Histórico, Varnhagen é conside-
rado o “pai da História brasileira” pois sua obra apre-
sentou uma vasta utilização documental, a primeira
que tinha como alicerce a reflexão histórica proposta
pelo IHGB. Era a imagem do Brasil já independente,
sem as amarras coloniais. Mesmo que, no seu ponto
de vista, o processo tenha ocorrido sem ruptura, ele
escreve no intuito de consolidar a imagem brasileira
no exterior. As influências europeias na sua forma de
enxergar a História são claras, sendo uma das mais
importantes o alemão Leopold von Ranke (1795-
1886) que, dentre tantas obras, escreveu a História
dos povos romanos e germânicos, em 1824. Ele es-
tudava o papel dos “grandes homens”, dos heróis, no
desenvolvimento da sociedade. Eram figuras com
consciência sobre a História que estavam vivendo
e decidindo.

Sua metodologia consistia em alguns pontos, pois a


História requer disciplina, sendo os mais importantes:
estudar os fatos e buscar a verdade. Isso só seria
possível com a leitura dos documentos. A procura por
fontes documentais aumentou consideravelmente no

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século 19, pois possuir esses materiais significaria
ter um pedaço do passado.

Varnhagen fez parte dessa tradição e inspirou cen-


tenas de novos trabalhos. A investigação exaustiva
foi a força motriz da sua obra. A narração era di-
reta, numa espécie de apresentação dos eventos.
Naquele momento, havia o predomínio da crônica
dos acontecimentos na qual a verdade estava in-
trínseca ao discurso do historiador. Este era visto
como um narrador onisciente, característica que só
foi descontruída no século 20.

A História Geral do Brasil é uma obra que analisa


o particular, mas visando à perspectiva geral, isto
é, escolhe-se uma história para conduzir a narrati-
va. Dessa forma, homogeneíza a História brasileira,
aparando as arestas que contradissessem o seu
discurso, que era o do Brasil monárquico forte e co-
mandado pelo Imperador Dom Pedro II. Essa relação
era mútua, haja vista os problemas enfrentados no
país, que já discutimos anteriormente. Além disso,
pesa o fato dele ser tão jovem e seu acesso ao trono
ter sido tumultuado e adiantado.

O Brasil precisava de “referências históricas”, ou seja,


precisava de explicações sobre o passado que se en-
caixassem nesse modelo de história “acontecimen-
tal” disseminado no século 19. Vale ressaltar-se que
Varnhagen não inventava fatos, ele apenas conduzia
a narrativa histórica a partir de um ponto de vista
definido, que no caso era o dos grandes eventos.

21
O Brasil precisava se reconhecer e o autor sugeria
esse tipo de espelho, com marcações determinadas.

Sua influência foi tão grande que foi difícil se des-


vencilhar do seu estilo narrativo e das suas teorias.
Os historiadores deviam à sua obra, porém existe
um consenso de que quem conseguiu construir uma
historiografia tão importante quanto, mas com ca-
racterísticas próprias, foi Capistrano de Abreu.

Capistrano de Abreu e a nova


forma de se escrever o Brasil

João Capistrano Honório de Abreu (1853-1927) foi


um dos principais historiadores brasileiros. Nascido
no Ceará, foi um leitor voraz na infância. Teve vários
empregos até passar no concurso para trabalhar na
Biblioteca Nacional e daí passou a estudar História.
Chegou a publicar artigos e análises literárias, mas
começou a analisar criticamente a História do Brasil
e Varnhagen foi um dos primeiros autores. Abreu era
da geração que foi influenciada pelo Visconde de
Porto Seguro e suas bases teóricas. Além disso, o au-
tor se enveredou por novas ideias que surgiram após
a década de 1850, como Herbert Spencer, Auguste
Comte e Hippolyte Taine. O legado mais interessan-
te desses pensadores era o protagonismo dado ao
desenvolvimento social, o que diferenciará a obra de
Abreu e de Varnhagen, por exemplo.

O “cientificismo” e o positivismo fizeram com que


o ponto norteador da nova geração de historiadores
fosse o “brasileiro” e não as grandes figuras políticas.

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Isso não significa que criou uma crítica social à de-
sigualdade racial. O determinismo e o ponto de vista
científico, como falamos anteriormente, estabeleciam
uma perspectiva evolucionista para a sociedade, o
que colocava um povo como melhor do que o outro.

Podcast 2

Havia uma “disputa” comum na época: o debate en-


tre a teoria historicista e a cientificista/positivista. A
primeira se baseava na forma de entender os docu-
mentos, que eram manifestações de verdade, e de
conseguir distinguir os fatos com clareza. Já a segun-
da enxergava a História como uma ciência análoga
às exatas e biológicas, isto é, procurava explicá-la
a partir de leis universais que davam o tom “casu-
al” à narrativa. Se existiam as Leis de Newton, por
exemplo, que embasavam o pensamento científico
na Física, o mesmo poderia ocorrer com a História.

Capistrano de Abreu estava imerso nas duas tradi-


ções, pois da mesma maneira que acreditava nas
fontes, na existência da verdade, via o historiador
como um cientista objetivo e imparcial. Portanto, na
sua obra nos deparamos com a “voz do documento”
e, também, com a causalidade e a “verdade histórica”,
assim como de teorias sobre a sociedade. Por isso
sua contribuição foi tão singular para a Historiografia.

Dentre suas obras, encontram-se tanto análises lite-


rárias e biográficas – como José de Alencar (1878)
e Estudo sobre Raimundo da Rocha Lima (1978) –

23
quanto históricas: O descobrimento do Brasil (1883);
A língua dos Bacaeris (1897); Capítulos de História
Colonial (1907) e Dois documentos sobre Caxinauás
(1911-1912). Postumamente, foram publicados
Caminhos Antigos e o Povoamento do Brasil (1930);
Ensaios e Estudos (1931-1933); Correspondência
(1954) e Cartas de Capistrano de Abreu a Lino de
Assunção (1946).

Seu encaminhamento intelectual se distanciou de


História Geral do Brasil, de Varnhagen, porque sua
preocupação era dar feições aos agentes da História
brasileira. A obra do Visconde foi transformada no
manual oficial do país e se distanciou da questão das
raças proposta por Von Martius. Abreu acreditava que
era preciso mais destaque para o brasileiro, para a
sociedade aqui formada, resgatando, de certa forma,
o que o alemão disse na década de 1830.

Dentre a vasta contribuição bibliográfica de Abreu,


alguns trechos de Capítulos de História Colonial fo-
ram destacados. De início, confira o sumário:

I) Antecedentes indígenas;
II) Fatores exóticos;
III) Os descobridores;
IV) Primeiros conflitos;
V) Capitanias hereditárias;
VI) Capitanias da Coroa;
VII) Franceses e espanhóis;
VIII) Guerras flamengas;

24
IX) O sertão;
X) Formação dos limites;
XI) Três séculos depois (ABREU, 1998)

O primeiro ponto é a quebra com a cronologia tradi-


cional, linear, que era encontrada em algumas crôni-
cas de viajantes e no próprio Varnhagen, que narra a
História brasileira a partir de 1500 com a chegada de
Cabral. Já Abreu propõe uma nova forma de enxergar
a cronologia, e seu texto começa com uma acurada
descrição geográfica aliada aos habitantes nativos.

Cercam-no ao sul, a sudoeste, oeste e noroeste as na-


ções castelhanas do continente, exceto o Chile, por
se interpor a Bolívia, e o Panamá, por se interpor a
Colômbia. Se confrontará algum dia com o Equador hão
de decidir negociações ainda ilíquidas. Desde o alto rio
Branco até beiramar seguem-se colônias de Inglaterra,
Holanda e França, ao norte (ABREU, 1998, p. 13).

Ele estabelece a fronteira física do país, algo que


mudara muito no século 19. É um ponto importante
para o professor se recordar ao trabalhar esse pe-
ríodo em sala de aula. Desde a independência, em
1822, o território brasileiro incorporou e perdeu novos
espaços, reconfigurando seu mapa.

25
SAIBA MAIS
Uma dica de atividade para sala é apresentar aos
estudantes os mapas do Brasil no século 19 e
identificar os diferentes conflitos e acordos que
auxiliaram naquela configuração. Além disso, o
professor pode sugerir um trabalho valendo nota,
no geral ele pode dividir as regiões e províncias
do Brasil entre grupos de estudantes e exigir a
pesquisa de algumas informações. Essas depen-
derão do ano daquela turma, então podem ser mais
simples, como dados políticos e guerras/conflitos
que existiram ali, até um pouco mais complexos,
como descobrir que povo indígena vivia ali, qual a
principal atividade econômica e descrevê-la, entre
outros.
Outra dica: sempre peça ao estudante escrever
à mão os trabalhos, pois, com isso, ele aprende
o poder de síntese – já que não conseguirão co-
piar tudo da internet – e o ensinará sobre a pes-
quisa adequada quando há muita informação à
disposição.

A História e a Geografia estavam muito presentes na


obra de Abreu, pois ele acreditava na influência do
meio no desenvolvimento social. Essa perspectiva
era atrelada ao cientificismo ao mesmo tempo que a
tradição historiográfica tradicional, à la Ranke, tam-
bém enaltecia a História Natural. O que se observa,
portanto, é um amálgama de ideias que produzem
uma forma particular de se entender a História.

26
Voltando ao sumário, seu primeiro capítulo é dedi-
cado à natureza (flora e fauna), mesmo que no título
mencione os indígenas. São citados rapidamente
os tupis, os tremembés, os cariris e os tupiniquins.
Seu olhar sobre eles era o de observador, tendo um
distanciamento acerca do tema. Veja só:

As guerras ferviam contínuas; a cunhã prisioneira


agregava-se à tribo vitoriosa, pois vigorava a idéia da
nulidade da fêmea na procriação, exatamente como
a da terra no processo vegetativo; os homens eram
comidos em muitas tribos no meio de festas rituais.
A antropofagia não despertava repugnância e parece
ter sido muito vulgarizada: algumas tribos comiam os
inimigos, outras os parentes e amigos, eis a diferença.
Viviam em pequenas comunidades [...]. O chefe apenas
possuía autoridade nominal. Maior força cabia ao poder
espiritual. Acreditavam em seres luminosos, bons e
inertes, que não exigiam culto, e poderes tenebrosos,
maus, vingativos, que cumpria propiciar para apartar
sua cólera e angariar-lhes o favor contra os perigos:
eram as almas dos avós. Entre eles contava-se o cura-
dor, pajé ou caraíba, senhor da vida e da morte, que
ressuscitara depois de finado e não podia mais tornar
a morrer. Tinham os sentidos mais apurados, e inten-
sidade de observação da natureza inconcebível para
o homem civilizado. Não lhes faltava talento artístico,
revelado em produtos cerâmicos, trançados, pinturas
de cuia, máscaras, adornos, danças e músicas (ABREU,
1998, p. 22).

O grifo em negrito destaca o momento em que se


pode captar a posição de Abreu em relação aos in-
dígenas. Havia um povo civilizado, mas esse não
era o português que chegou ao Brasil em 1500. Na

27
verdade, era o homem do século 19, mais evoluído
tanto social quanto em matéria de tecnologia. Esse
ponto de vista se relaciona com o viés positivista da
Física Social, na qual o homem passava por etapas
até alcançar o patamar do progresso. Mesmo que
muitos não considerassem o estágio em que esta-
vam o mais alto, eram claramente superiores a indí-
genas e negros, por exemplo. Aqui vale uma reflexão.

Esses autores acreditavam, muitas vezes, que, ao


apontar as diferenças evolutivas das espécies a
partir de um critério social, estavam auxiliando os
desfavorecidos. Ou seja, demonstravam através de
argumentos científicos qual caminho esses povos
deveriam seguir. O problema dessa abordagem é que
a História e as Ciências Sociais têm o ser humano
como matriz de estudo e não uma substância confi-
nada a um laboratório. Estabelecer regras e passos a
serem seguidos dentro de uma pesquisa em Química,
por exemplo, tem uma finalidade pontual, o resultado
pode ou não dar certo e cabe ao cientista fazer o
relatório e interpretá-lo.

No caso das Ciências Humanas, dizer que uma raça


é mais evoluída do que a outra, partindo da premissa
tecnológica, é abrir um precedente discriminatório
por diversos motivos. E a História mostrou como,
mesmo com as melhores intenções, países foram
subjugados e destruídos, à exemplo do que ocorreu
no continente africano.

Desde o século 16, quando a escravidão se tornou


um sistema lucrativo para os europeus e colonos,

28
os africanos perderam séculos de sua História, haja
vista que milhões foram sequestrados e transfor-
mados em escravos. Suas línguas e costumes, que
estavam ameaçados, sofreram um forte golpe no sé-
culo 19 com o Neocolonialismo. As fronteiras plurais
e complexas foram destruídas e países com novas
configurações de espaço surgiram. Os 54 países na
África foram criados a partir da interferência direta
dos europeus, feita com a justificativa científica de
que os nativos eram inferiores. Esse tipo de reflexão
deve ser levada para a sala de aula e a Historiografia
auxilia os professores a encontrarem mecanismos
de compreensão do texto que melhoram o ato de
ensinar.

O capítulo 2, chamado “Fatores Exóticos”, demons-


tra a visão que Capistrano de Abreu queria imputar
ao seu texto, pois só aqui ele começa a mencionar
Portugal e sob a alcunha de exótico. A História lusi-
tana passou por diversas turbulências até conseguir
se estruturar e iniciar a colonização do Brasil. Ele
descreve a composição política e social, dando um
pano de fundo para aqueles que queriam entender
a história colonial, pois as decisões institucionais
eram tomadas a partir do desejo e das necessidades
da metrópole.

Para finalizar, Abreu não via uma ruptura durante o


processo de independência, mas não por mérito dos
portugueses, como Varnhagen, e sim pela absorção
e certa passividade desenvolvidas aqui. Seu texto
foi feito no período republicano, mas não adquiriu a
simbologia construída na época, que destacava os

29
conflitos existentes entre colonos e a dominação
portuguesa.

Oliveira Vianna e uma


interpretação do Brasil

Francisco José de Oliveira Vianna (1883-1951) foi


um jurista e sociólogo fluminense, nascido em uma
família tradicional. Formou-se em Direito e ocupou
cargos nas mais importantes instituições do Rio de
Janeiro, como a Faculdade de Direito de Niterói, o
Instituto de Fomento do Estado do Rio de Janeiro e
o governo brasileiro.

Vianna foi lido pela Historiografia contemporânea


a partir do viés crítico ao autoritarismo que estava
embutido em seu discurso. Por exemplo, ele escre-
veu, em 1936, o anteprojeto da fundação da Justiça
do Trabalho no país. Antes do estabelecimento das
leis trabalhistas, ocorreu um extenso debate entre
juristas e intelectuais sobre a necessidade, ou não,
de desvincular os Direitos Trabalhistas do Direito
Comum. Escreveu, em 1938, os Problemas de Direito
Corporativo, defendendo essa separação e o surgi-
mento da Justiça do Trabalho. Porém, Populações
Meridionais do Brasil, publicado em 1920, e o
Instituições políticas brasileiras, de 1949, que nos
interessam para entendermos sua concepção para
a História brasileira.

Uma das maiores historiadoras que analisou as obras


de Oliveira Vianna foi Maria Stella Bresciani, que
afirma não haver muita diferença entre Vianna e ou-

30
tros autores da sua época, pois eles faziam parte
de uma mesma tradição determinista e racista. As
explicações sobre a colonização, sejam para afirmá-
-la ou questioná-la, partem da mesma premissa: os
problemas enfrentados em Portugal, sua posição
ambígua na Europa e a chegada a um local inóspito
e desafiador como o Brasil.

As duas obras acima representam fases diferentes da


sua vida. Em 1920, o Brasil ainda vivia na República
Velha (1889-1930), na qual, tirando o breve perío-
do militar, a política era dominada pelos oligarcas
brasileiros, com destaque para os do Sudeste. Com
Populações Meridionais do Brasil, chamou a aten-
ção da intelectualidade e dos políticos da época,
inclusive Getúlio Vargas, que utilizou as palavras do
autor para embasar seu próprio projeto político. Essa
relação estreita com a ala conservadora e autoritária
lhe rendeu diversas críticas de seus pares. Alguns
autores apontam que seu esquecimento dentre os
nomes fundadores da historiografia moderna brasi-
leira – Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda
e Caio Prado Júnior – se dá pela manutenção de
uma ideia antiga de História, com o determinismo
geográfico muito forte.

Nessa primeira obra ele destaca que o povo brasileiro


se constitui em três tipos de sociedade: o sertanejo;
o das matas e o dos pampas. Apesar da intenção de
elaborar uma análise com base nacional, ou seja, sem
copiar modelos europeus, ele silencia outras regiões
em prol de um projeto de nação homogênea que,
para ele, deveria ser tipicamente brasileira. Porém,

31
existe um ponto de partida para isso, o fio condutor
que costuraria a diversidade: o estado forte. Se a
colonização não conseguiu dar conta da vastidão
territorial e cultural da colônia, foi por causa da falta
de um estado soberano e unitário. Você consegue
entender por que esse tipo de discurso foi tão aplau-
dido por Vargas, não?

Um aspecto interessante é que, apesar de manter


algumas características da tradição historiográfica
cientificista do século 19, ele introduz sua forma par-
ticular de escrever a História:

Para a perfeita compreensão do passado, a investiga-


ção científica arma hoje os estudiosos com um sistema
de métodos e uma variedade de instrumentos, que lhes
dão meios para obterem dele uma reconstituição, tanto
quanto possível, rigorosa e exata. No estado atual da
ciência histórica, o texto dos documentos não basta só
por si para permitir reviver uma época ou compreender
a evolução particular de um dado agregado humano.
É preciso que várias ciências, auxiliares da exegese
histórica, completem com os seus dados as insufici-
ências ou obscuridades dos textos documentários ou
expliquem pelo mecanismo das suas leis poderosas
aquilo que estes não podem fixar nas suas páginas
mortas. O culto do documento escrito, o fetichismo li-
teralista é hoje corrigido nos seus inconvenientes e nas
suas insuficiências pela contribuição que à filosofia da
história trazem as ciências da natureza e as ciências da
sociedade. Estas, principalmente, abrem à interpretação
dos movimentos sociais do passado possibilidades
admiráveis e dão à ciência histórica um rigor que ela
não poderia ter, se se mantivesse adscrita ao campo
da pura exegese documentária (VIANNA, 2005, p. 50).

32
Vianna discorre sobre a maneira como se utiliza a
documentação, que seria com as perguntas e os
problemas apresentados pelo historiador que a fonte
poderia ser passível de utilização. Percebe-se uma
transformação na percepção do fazer historiográfico,
pois, com a problematização do documento, o rompi-
mento com as certezas e os sistemas explicativos, a
narrativa teleológica da história realizada pela escola
tradicional não possuiria mais sentido. A questão é
que mesmo com a entrada de ciências auxiliares
para a construção da escrita da História e a defesa
de se produzir uma História de si, o autor defendia
estruturas sociais que fomentavam a desigualdade.

Outra questão que aparece em sua obra é o racismo,


e isso explica o porquê de ele ter saído do plantel
dos grandes escritores sobre o Brasil. Parte con-
siderável dos teóricos que embasam sua análise
pertencem a uma vertente do chamado “racismo
doutrinário”. Por exemplo, ele cita a importância de
Arthur de Gobineau (1816-1882), um dos primeiros a
teorizar o racionalismo, e da antropossociologia de
Georges Vacher de Lapouge (1854-1936), um dos
pais da eugenia.

REFLITA
Arthur de Gobineau (1816-1882) esteve no Brasil
em 1869 e teorizou sobre o que chamou de deca-
dência da civilização, pois a ideia era explicar como
as raças humanas se influenciaram ao longo da
História. Aqui, a sua conclusão residiu no fato de

33
termos uma população mestiça, portanto, o Brasil
se extinguiria em pouco mais de 200 anos.

Em 1934, Vianna publicou Raça e Assimilação, que


foi muito bem aceito na época. Nele, o autor esta-
belece uma metodologia científica para analisar a
raça. Na Europa não haveria tanto espaço para se de-
senvolver esse tipo de pesquisa porque os estágios
evolutivos das raças seriam parecidos. A América,
por sua vez, com a sua mestiçagem, seria o cenário
ideal para esse experimento.

Que os estudos do passado e as investigações dos


archaeologos assignalam a existencia dos grandes
centros de cultura nas regiões centraes da Africa, é o
que não ponho em duvida; mas que estas civilisações
sejam criações da raça negra é o que me parece con-
testavel. Não sei si o negro é realmente inferior, si é
igual ou mesmo superior ás outras raças; mas julgando
pelo que os testemunhos do presente e do passado
demonstram, a conclusão a tirar é que, até agora, a
civilisação tem sido apanagio de outras raças que não
a raça negra; e que, para que os negros possam exercer
um papel civilisador qualquer, faz-se preciso que elles
se caldeiem com outras raças, especialmente com as
raças aryanas ou semitas. Isto é: que percam a sua
pureza (VIANNA, 1939, p. 285).

O discurso científico avalizaria qualquer tipo de “re-


sultado”. A eugenia e o embranquecimento da po-
pulação foram ideologias impressas em suas obras,
o que demonstra seu viés evolucionista baseado
naquelas tradições do século 19.

34
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O século 19 foi permeado de diversas modificações
dentro do processo de construção da História brasi-
leira. Primeiro, houve a criação do IHGB, o Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, que formalizou a
escrita historiográfica. Junto disso, a ideia de nação
e identidade se solidificaram, mas sempre com um
ideal em mente. Logo na sua inauguração, o texto es-
colhido que simbolizava a forma de se fazer História
foi o do alemão Karl Friederich Philip von Martius,
o Como se deve escrever a história do Brasil, de
1843. Nele, foi dito pela primeira vez a importância
das raças para se entender o passado e o presente
brasileiro. O maior expoente da tradição “História
mestra da vida” foi Francisco Adolfo de Varnhagen,
com a sua Historia Geral do Brazil, que estabeleceu
os traços da história acontecimental no país.

Em contrapartida, Capistrano de Abreu escreveu


sobre o Brasil a partir da premissa científica e posi-
tivista, criando uma perspectiva própria, quebrando
as cronologias dadas como certas e amalgamando
a História com a Geografia, tendência que seria se-
guida a partir desse momento. Para finalizar, a obra
de Oliveira Vianna é um bom exemplo de escrita
da História, que inseria as ciências sociais, como a
sociologia e a antropologia, para auxiliá-la. Apesar
disso, as teorias raciais do século 19 ainda vigoravam
e seus textos foram contestados tanto pelo autori-
tarismo quanto pela eugenia explícita.

35
SÍNTESE

HISTORIOGRAFIA
BRASILEIRA
A CONSTRUÇÃO DA IDEIA
DE BRASIL NO SÉCULO XIX

IHGB (Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro) (1838)

• Século 19 – formalização da escrita da História no país;


• Criação de uma metodologia – alicerce para novos historiadores;
• Intenção: consolidação da Nação e da Identidade Nacional;
• Projeto civilizador do Brasil.

Karl Friederich Philip von Martius (1794-1868) - Como se deve escrever a história do Brasil
(1843)

• Trabalho escolhido logo após a inauguração do IHGB;


• Estrangeiro – outro olhar sobre o país;
• Interesse deveria residir na Natureza e na Sociedade (raças)

Francisco Adolfo Varnhagen (1816-1878) – Historia Geral do Brazil (1854-1857/1877)

• Primeiro manual do IHGB – grande influência;


• História “acontecimental”;
• Narrativa linear – exaltação dos portugueses�

Capistrano de Abreu (1853-1927) – e a nova forma de se escrever o Brasil

• Outra perspectiva sobre a História do Brasil – Positivismo;


• Capítulos de História Colonial (1907) – mudança na cronologia e no enfoque�

Oliveira Vianna (1883-1951) – e uma interpretação do Brasil

• Destaca as Ciências Sociais como aliadas da História;


• Manteve ideias racistas do século 19 – determinismo racial;
• Estado forte, autoritarismo e eugenia�
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