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Canto X

Lamentações e profecia de futuras glórias nacionais


Reflexões do poeta 

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Nô mais, Musa, nô mais, que a Lira tenho Favorecei-os logo, e alegrai-os
Destemperada e a voz enrouquecida, Com a presença e leda humanidade;
E não do canto, mas de ver que venho De rigorosas leis desalivai-os,
Cantar a gente surda e endurecida. Que assi se abre o caminho à santidade.
O favor com que mais se acende o Os mais exprimentados levantai-os,
engenho Se, com a experiência, têm bondade
Não no dá a pátria, não, que está metida Pera vosso conselho, pois que sabem
No gosto da cobiça e na rudeza O como, o quando, e onde as cousas
Dũa austera, apagada e vil tristeza. cabem.

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E não sei por que influxo de Destino Todos favorecei em seus ofícios,
Não tem um ledo orgulho e geral gosto, Segundo têm das vidas o talento;
Que os ânimos levanta de contino Tenham Religiosos exercícios
A ter pera trabalhos ledo o rosto. De rogarem, por vosso regimento,
Por isso vós, ó Rei, que por divino Com jejuns, disciplina, pelos vícios
Conselho estais no régio sólio posto, Comuns; toda ambição terão por vento,
Olhai que sois (e vede as outras gentes) Que o bom Religioso verdadeiro
Senhor só de vassalos excelentes. Glória vã não pretende nem dinheiro.

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Olhai que ledos vão, por várias vias, Os Cavaleiros tende em muita estima,
Quais rompentes liões e bravos touros, Pois com seu sangue intrépido e fervente
Dando os corpos a fomes e vigias, Estendem não sòmente a Lei de cima,
A ferro, a fogo, a setas e pelouros, Mas inda vosso Império preminente.
A quentes regiões, a plagas frias, Pois aqueles que a tão remoto clima
A golpes de Idolátras e de Mouros, Vos vão servir, com passo diligente,
A perigos incógnitos do mundo, Dous inimigos vencem: uns, os vivos,
A naufrágios, a pexes, ao profundo. E (o que é mais) os trabalhos excessivos.

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Por vos servir, a tudo aparelhados; Fazei, Senhor, que nunca os admirados
De vós tão longe, sempre obedientes; Alemães, Galos, Ítalos e Ingleses,
A quaisquer vossos ásperos mandados, Possam dizer que são pera mandados,
Sem dar reposta, prontos e contentes. Mais que pera mandar, os Portugueses.
Só com saber que são de vós olhados, Tomai conselho só d' exprimentados,
Demónios infernais, negros e ardentes, Que viram largos anos, largos meses,
Cometerão convosco, e não duvido Que, posto que em cientes muito cabe,
Que vencedor vos façam, não vencido. Mais em particular o experto sabe.
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De Formião, filósofo elegante, Pera servir-vos, braço às armas feito,
Vereis como Anibal escarnecia, Pera cantar-vos, mente às Musas dada;
Quando das artes bélicas, diante Só me falece ser a vós aceito,
Dele, com larga voz tratava e lia. De quem virtude deve ser prezada.
A disciplina militar prestante Se me isto o Céu concede, e o vosso peito
Não se aprende, Senhor, na fantasia, Dina empresa tomar de ser cantada,
Sonhando, imaginando ou estudando, Como a pres[s]aga mente vaticina
Senão vendo, tratando e pelejando. Olhando a vossa inclinação divina,

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Mas eu que falo, humilde, baxo e rudo, Ou fazendo que, mais que a de Medusa,
De vós não conhecido nem sonhado? A vista vossa tema o monte Atlante,
Da boca dos pequenos sei, contudo, Ou rompendo nos campos de Ampelusa
Que o louvor sai às vezes acabado. Os muros de Marrocos e Trudante,
Nem me falta na vida honesto estudo, A minha já estimada e leda Musa
Com longa experiência misturado, Fico que em todo o mundo de vós cante,
Nem engenho, que aqui vereis presente, De sorte que Alexandro em vós se veja,
Cousas que juntas se acham raramente. Sem à dita de Aquiles ter enveja.
 

Luís Vaz de Camões

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