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Um estado de nervos...
Paula Gomes*
RESUMO
Introdução: Na prática clínica, o Médico de Família lida, frequentemente, com doentes com sintomas físicos para os quais não
há uma causa orgânica ou mecanismos fisiológicos conhecidos explicativos. Estes doentes constituem um desafio, pela sobre-
utilização de consultas e cuidados de saúde, pela necessidade frequente de investigação clínica e pela difícil aceitação da ine-
xistência de doença orgânica, levando à resistência ao tratamento e perpetuação de sintomas. Com a apresentação deste caso,
pretende-se rever e ilustrar o papel do Médico de Família na abordagem do doente com perturbação conversiva, nomeadamente
no diagnóstico, enquadramento biopsicossocial, relação médico-doente, objectivos terapêuticos, medidas farmacológicas, ar-
ticulação com outras especialidades e follow-up.
Descrição do Caso: Mulher de 35 anos, funcionária de uma empresa de auto-serviço grossista, casada, com uma filha, na fase
IV de Duvall, Graffar III.Antecedentes patológicos de perturbação depressiva/ansiosa. Inicia um quadro de paraparesia e hiposte-
sia bilateral dos membros inferiores, de instalação súbita, recorrendo ao serviço de urgência, tendo sido internada. Após avalia-
ção clínica e estudo neurológico, tem alta, sem melhoria sintomática, com o diagnóstico de perturbação somatoforme de meca-
nismo conversivo, no contexto de stress laboral. Desde então, a doente manteve contacto frequente com o Médico de Família,
numa aliança médico-doente efectiva e em coordenação com as especialidades de Psiquiatria, Medicina Física e Reabilitação e
Neurologia.
Comentário: Pela sua frequência, é necessária ao Médico de Família a aquisição de competências que lhe permitam a correcta
identificação e abordagem dos doentes somatizadores. Torna-se basilar uma abordagem centrada no doente, com integração
dos aspectos psicossociais e biomédicos.A principal modalidade terapêutica é a relação médico-doente, baseada na legitimização
dos sintomas, num ambiente de confiança, empatia, suporte e acompanhamento contínuo, em articulação com os diferentes
níveis de cuidados do sistema de saúde.
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a dimensão cultural e existencial. O objectivo é centrar quadrando-se, a nível sócio-económico, na classe III
a raiz do problema, possibilitando um tratamento efi- de Graffar. Não tem hábitos tabágicos, etílicos e toxico-
caz, assim como a articulação com os cuidados secun- lógicos.
dários. Salientam-se, dos seus antecedentes pessoais, os se-
Descreve-se o caso de uma mulher com 35 anos, com guintes (ver biopatografia – Figura 1):
antecedentes de síndrome depressivo/ansioso, segui- • Amaurose esquerda, por catarata congénita, em
da regularmente nas consultas de medicina familiar, 1980, tendo sido submetida a cirurgia oftalmológi-
que inicia um quadro de paraparesia e hipostesia bila- ca, com recuperação parcial da acuidade visual. Re-
teral dos membros inferiores, de instalação súbita. O fere, posteriormente, diminuição progressiva da
diagnóstico final foi o de perturbação conversiva. acuidade visual à esquerda, com amaurose em 2000.
Com a apresentação do caso, pretende-se rever o pa- • Gastrite crónica e hérnia do hiato, diagnosticadas
pel do MF na abordagem do doente com perturbação em 1989.
conversiva, nomeadamente no diagnóstico, enquadra- • Hérnia discal L5-S1, com eventual compromisso ra-
mento biopsicossocial, relação médico-doente, objec- dicular L5-S1 direito, diagnosticada em 2005, com
tivos terapêuticos, medidas farmacológicas, articula- episódios de lombociatalgia, mais intensa à direita.
ção com outras especialidades e follow-up. • Antecedentes psiquiátricos:
– Depressão pós-parto em 1995.
DESCRIÇÃO DO CASO – Síndrome depressivo major recorrente, com iní-
AMMC, sexo feminino, 35 anos, raça caucasiana, fun- cio em 1995. Agravamento desde 2005.
cionária de uma empresa de auto-serviço grossista. É – Medicada, habitualmente, com fluoxetina 20 mg/
natural do concelho do Porto, passando a residir num /dia.
concelho limítrofe a partir dos 20 anos. É casada desde É seguida pelo MF de forma regular, com necessida-
há quinze anos e tem uma filha com onze anos, en- de frequente de consultas não-programadas no contex-
Figura 1. Biopatografia.
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siatra «é muito bruto», «puxa muito» e que até a «ma- Considera que, desde o internamento, tem recebido
goou no pé» ao fazer o exercício, mas que gosta muito apoio das suas colegas, que lhe contam que a sua che-
das sessões. fe as questiona, várias vezes, pelo seu estado de saúde.
Quando questionada sobre as circunstâncias fami- Em termos de dinâmica familiar, refere que a filha está
liares, sociais e laborais no período prévio ao início dos mais triste, mais dependente, procurando passar mais
sintomas, a doente refere uma situação de conflito tempo com a família. O relacionamento conjugal me-
constante com a sua chefe, que adjectiva de «mal-edu- lhorou, afirmando que valoriza mais o marido e o seu
cada, arrogante, prepotente e má», que a está sempre a papel na família.
criticar e que lhe grita com frequência. Esta situação Descrevem-se, de seguida, os resultados dos méto-
agravou-se nos dois meses anteriores ao internamen- dos de avaliação familiar, aplicados com o objectivo de
to, quando foi «castigada», tendo de permanecer oito avaliar a estrutura da família, padrão de funcionamen-
horas por dia num espaço pequeno, na posição erecta, to, padrões relacionais, recursos psicossociais, desen-
com as mãos atrás das costas, referindo dores intensas volvimento e risco familiar.7-8
nos membros inferiores, no final do período de traba-
lho. Refere que se sentia desanimada, triste, sem von- Genograma e Psicofigura de Mitchel
tade de ir trabalhar, sem vontade de realizar as suas ac- O agregado familiar é constituído por três pessoas:
tividades sociais e lúdicas habituais com as amigas. Re- a doente, o marido e a filha de 11 anos de ambos (Figu-
fere, também, insónia inicial e diminuição do apetite. ra 2). A doente nunca teve contacto com o pai, que fa-
Relata, ainda, o episódio de dor pré-cordial no local de leceu com 26 anos, após acidente de viação, quando a
trabalho, que motivou a sua ida ao serviço de urgência, mãe estava grávida de três meses. Nessa altura, passou
negando a sua recorrência. a residir com a mãe e os irmãos na casa dos avós ma-
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a 10:1), em geral entre o final da infância e o início da rador de conflito (castigo com obrigação de permane-
idade adulta, sendo rara antes dos 10 ou depois dos 35 cer na posição ortostática) e os sintomas expressos (pa-
anos. É mais frequente em indivíduos residentes em raparesia). Pode-se, ainda, estabelecer uma associação
áreas rurais, de meios sócio-económicos mais desfavo- entre a área atingida com uma condição médica que
recidos e menos familiarizados com conceitos médicos previamente afectou a doente (patologia discal – já cau-
e psicológicos.9,12 A forma do sintoma conversivo é in- sadora de sintomas nos membros inferiores).
fluenciada pelas ideias culturais locais sobre os modos Desde o aparecimento dos sintomas e ao longo da
aceitáveis e credíveis de expressar o sofrimento. Cerca sua evolução, a doente aparentava uma relativa falta de
de dois terços dos doentes têm sintomas de outras per- preocupação face aos mesmos – trata-se de «la belle in-
turbações psiquiátricas, sendo as mais frequentes as différence», que é uma característica típica, mas não es-
perturbações depressivas e da ansiedade. Outras per- pecífica, da perturbação conversiva.13 É, ainda, de no-
turbações associadas são as perturbações de persona- tar que a doente já tinha, previamente, utilizado sinto-
lidade: personalidade histriónica, anti-social e depen- mas físicos (paresia e anestesia das pernas e dor pré-
dente, e perturbações relacionadas com o consumo de cordial sem causa orgânica explicativa aparente) para
substâncias.4,9 expressar conflitos psicológicos, como se verifica fre-
No caso clínico apresentado, a doente provém de um quentemente nestes casos.12
nível sócio-económico médio, com baixa escolarida- Para se estabelecer o diagnóstico de perturbação
de, com patologia depressiva recorrente desde há 10 conversiva é, ainda, importante excluir doenças orgâ-
anos e que apresentava défices motores – paraparesia nicas, nomeadamente neurológicas, que possam expli-
dos membros inferiores – e défices sensoriais – hipos- car os sintomas ou défices.6 Por este motivo, uma his-
tesia dos membros inferiores. No entanto, os sintomas tória clínica e exame físico detalhados e vários exames
não se ajustavam a vias anatómicas conhecidas, não auxiliares de diagnóstico foram realizados, com resul-
correspondendo a um défice num padrão de inervação tados negativos. No entanto, o diagnóstico deve ser vis-
motora ou sensorial. Reflectiam, no entanto, a con- to como experimental e transitório, uma vez que a etio-
ceptualização da doente quanto à sua condição e à sua logia médica geral, para muitos casos de aparente per-
própria anatomia. Para além disso, foram detectadas in- turbação conversiva, pode levar anos até se tornar evi-
consistências nos défices em exames físicos repetidos dente. A percentagem de diagnósticos incorrectos é de
e quando a atenção da doente era dirigida para outro cerca de 4%, sendo os diagnósticos médicos, posterior-
ponto (por exemplo, na transferência do leito para a mente estabelecidos, mais frequentemente relatados,
cadeira). Associadamente, e diminuindo a probabili- de epilepsia, perturbação do movimento e esclerose
dade de se tratar de uma doença orgânica, o restante múltipla.14
exame neurológico era normal. No processo diagnóstico foram, ainda, excluídas ou-
Esta sintomatologia pode ter estado relacionada (ou tras perturbações psiquiátricas, nomeadamente: per-
ter sido despoletada) por alterações nas condições de turbações factícias e simulação, perturbações psicóti-
trabalho, com conflitos externos com a chefe, que se ti- cas e outras perturbações somatoformes, com as quais
nham intensificado nos dois meses anteriores e para as se deve estabelecer o diagnóstico diferencial.3,9
quais a doente não tinha adquirido mecanismos de co- A abordagem terapêutica dos doentes com pertur-
ping. Assim, os sintomas somáticos podem representar bações somatoformes é baseada em princípios simila-
uma resolução simbólica deste conflito (conflito exter- res e deve passar, essencialmente, pelo MF.15 Este é o
no com uma figura de autoridade), reduzindo a ansie- profissional médico estrategicamente mais bem colo-
dade e permitindo à doente evitar uma actividade labo- cado para fazer uma abordagem somática e psicológi-
ral que não lhe dava satisfação, esquivando-se do «cas- ca integrada, abordando os problemas individuais nas
tigo», e obter apoio, atenção e compreensão por parte suas dimensões física e mental e enquadrando-os no
da família, colegas de trabalho e da própria chefe. contexto de circunstâncias familiares, redes sociais e
Saliente-se, ainda, que, para além de uma relação culturais e circunstâncias domésticas e laborais.
temporal, há uma relação conceptual entre o factor ge- Assim sendo, com vista a estabelecer uma relação
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terapêutica efectiva, é fundamental saber escutar o duas a quatro semanas, mesmo se os sintomas estive-
doente, com disponibilidade afectiva e intelectual. De- rem estáveis. Estas marcações regulares de consultas
ver-se-á adoptar uma atitude empática, de suporte e co- breves (por exemplo: 15 minutos) visam diminuir a de-
laboração, para ajudar o doente a iniciar um trajecto pendência de consultas não-programadas, devido a
para a compreensão da natureza da sua doença e de si sintomas novos ou agravantes, evitando recompensar
próprio. É fundamental legitimizar os sintomas físicos estes desenvolvimentos com consultas antecipadas.
perante o doente uma vez que, sendo a somatização um Para além disso, diminuem o medo do doente de ser
processo que não se encontra sob controlo voluntário, abandonado pelo médico, que é uma razão importan-
este pode interpretar uma explicação psicológica como te de «doctor-shopping». Por último, permitem uma
uma acusação de estar a mentir ou a imaginá-los. As- avaliação regular das queixas do doente, de forma a mi-
sim, é essencial que o doente sinta que o médico com- nimizar a não detecção de sinais físicos e evitando exa-
preende as suas queixas e que não o julga ou culpa.3,15,16 mes auxiliares diagnósticos desnecessários.3,15,16 O foco
Em relação ao médico, este deve estar preparado da atenção deve ser, progressivamente, desviado dos
para alterar as suas expectativas relativamente aos ob- sintomas físicos do doente, para o seu contexto psicos-
jectivos e sucesso do tratamento. Os objectivos tera- social. A técnica BATHE (Backgroud, Affect, Trouble,
pêuticos habituais, visando a cura, melhorando, ou, Handle, Emphathy), por exemplo, constitui uma ferra-
pelo menos, explicando os sintomas ao doente do pon- menta útil para a exploração de factores psicossociais
to de vista patofisiológico são raramente tangíveis. Al- causadores de stress, proporcionando informação rele-
ternativamente, os objectivos terapêuticos deverão fo- vante para o médico, assim como um suporte valioso
car-se na modificação do comportamento do doente para o doente.17 Uma vez estabelecida uma relação te-
em relação à doença e no seu estado funcional. Objec- rapêutica, a frequência das consultas poderá ser ajus-
tivos iniciais razoáveis poderão ser diminuir a frequên- tada às presentes necessidades do doente.3,15,16
cia de consultas não-programadas ou admissões hos- No caso clínico apresentado, a doente manteve con-
pitalares. Posteriormente, os objectivos poderão incluir tacto frequente com o MF em consultas programadas,
ajudar o doente a adquirir mais controlo sobre si pró- inicialmente mensais. Nessas consultas, que cumpriu
prio e os seus sintomas, melhorar o seu papel social ou de forma regular, a doente foi questionada quanto ao
ocupacional ou ajudá-lo a comunicar sem ser através início, características, localização, duração, factores de
dos sintomas. O médico deverá evitar assumir toda a alívio e exacerbação dos sintomas e a forma como es-
responsabilidade pela definição e alcance dos objecti- tes passaram a afectar a sua vida. A doente foi encora-
vos terapêuticos e deverá partilhar estas funções com jada a falar livremente dos seus problemas e preocupa-
o doente, numa verdadeira aliança médico-doente.3,15,16 ções e foram exploradas as suas relações familiares e la-
Para os doentes com perturbação conversiva, é reco- borais, tentando perceber quais os seus recursos psicos-
mendada uma abordagem conservadora e sugestiva, sociais, os seus padrões relacionais, acontecimentos
sendo mais útil conceber os fenómenos conversivos vitais e as suas repercussões subjectivas. Procurou-se
como sintomas e não como uma perturbação psiquiá- estabelecer uma relação médico-doente de abertura,
trica per se. Transmitir aos doentes que se pensa que os confiança, empatia e suporte. Os sintomas foram legi-
seus sintomas sejam psicogénicos, resulta, frequente- timados perante a doente, evitando abordá-los como
mente, num agravamento dos mesmos. É mais vanta- uma perturbação psiquiátrica, mas reforçando a au-
joso enfatizar as boas notícias de que os resultados dos sência de resultados positivos nos exames auxiliares de
exames auxiliares de diagnóstico são negativos e expli- diagnóstico e, posteriormente, a melhoria progressiva
car que os sintomas se irão resolver rapidamente e que dos défices.
está no preciso momento a começar a recuperar. Espe- Relativamente à terapia farmacológica, poderá ser
cificar uma sequência gradual de eventos que será de necessário prescrever medicação para tratamento sin-
esperar numa recuperação pode fornecer sugestões so- tomático, que poderá contribuir para melhorar as quei-
bre como o doente pode melhorar.2,3,17 xas do doente e ser vista como um sinal de aceitação e
Inicialmente, deverão ser marcadas consultas a cada compreensão dos sintomas.18 Nos doentes com pertur-
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bação depressiva ou ansiosa concomitante, o seu tra- A perturbação conversiva tem, tipicamente, um iní-
tamento com antidepressivos e ansiolíticos melhora os cio agudo (embora também possa ocorrer uma sinto-
sintomas da perturbação somatoforme. No entanto, es- matologia com aumento gradual) e, em 90% dos casos,
pecialmente no caso dos antidepressivos, dever-se-á os sintomas individuais têm curta duração.17 Em doen-
começar com doses baixas e aumentar progressiva- tes hospitalizados, os sintomas geralmente apresentam
mente, de forma a evitar efeitos laterais (especialmente remissão em 2 semanas. A recorrência é comum, ocor-
no início do tratamento) que podem desencorajar o rendo em 20 a 25% dos indivíduos em 1 ano, sendo que
doente a cumprir o tratamento.3,16 Nos casos em que uma única recorrência prediz episódios futuros.9 Os
não há perturbação depressiva, o uso de antidepressi- factores associados a bom prognóstico incluem um iní-
vos (antidepressivos tricíclicos, antidepressivos anti- cio agudo, a presença de um factor de stress claramen-
-serotoninérgicos e inibidores selectivos da recaptação te identificável no início dos sintomas, um curto inter-
da serotonina) é moderadamente eficaz na melhoria valo entre o aparecimento dos sintomas e a instituição
dos sintomas somáticos (OR=3,4 em relação ao pla- do tratamento, ansiedade ou depressão coexistente e
cebo).18,19 inteligência acima da média. Sintomas de paralisia, afo-
No caso clínico, foi instituída terapêutica com sertra- nia e amaurose estão associados com um bom prognós-
lina, trazodona e cloxazolam, atendendo à patologia tico, ao contrário de tremores e convulsões.9,23 Os acon-
depressiva e perturbação da ansiedade co-mórbidas, e tecimentos vitais e as circunstâncias sociais podem al-
à insónia inicial referida. terar dramaticamente o prognóstico, sendo que os
Nas situações em que o diagnóstico é incerto (espe- doentes que sofrem mudanças nas suas circunstâncias
cialmente se existir suspeita de perturbação psiquiá- e acontecimentos de vida, após o início dos sintomas,
trica major), quando não se consegue estabelecer um têm melhor prognóstico.10
plano terapêutico, quando o plano estabelecido não Na doente apresentada, os sintomas tiveram um iní-
está a ser eficaz e quando o doente deseja psicoterapia, cio agudo, mas não melhoram até à alta do hospital
deverá ser efectuada referenciação a Psiquiatria.15,20 Há (passados 10 dias), persistindo por mais três meses,
evidência que demonstra a eficácia da terapêutica an- com melhoria lenta mas progressiva. Apesar disso, a
tidepressiva (já mencionada) e da psicoterapia.3,16,21 A doente tem um prognóstico favorável pela detecção
forma mais comummente recomendada de psicotera- precoce do factor desencadeante, pela perturbação de-
pia é a terapia comportamental ou cognitivo-compor- pressiva / ansiosa associada, pela instalação precoce do
tamental, que visa atingir a recuperação do doente, aju- tratamento e pela natureza dos sintomas físicos (para-
dando-o a modificar as crenças e comportamentos que lisia). No entanto, trata-se de uma doente com mani-
perpetuam a doença.21 festações prévias de sintomas conversivos e que pode
A referenciação à Consulta de Psiquiatria, no caso ter maior probabilidade de recorrência, especialmen-
actual, foi realizada visando a orientação na elaboração te quando retomar a actividade laboral, caso ainda não
de um plano terapêutico. Essa referenciação foi prepa- consiga resolver o conflito externo com a sua superior
rada cuidadosamente, de forma a que a doente a enca- hierárquica de uma forma mais saudável. Neste senti-
rasse como uma possibilidade de ajuda suplementar e do, torna-se fundamental a manutenção da continuida-
não como uma rejeição.15 de de cuidados e preservação da relação médico-doen-
A doente foi, igualmente, referenciada à Consulta de te para acompanhamento, escuta terapêutica e detec-
Medicina Física e Reabilitação,22 tendo realizado, pos- ção precoce e tratamento de eventuais recorrências.
teriormente, várias sessões de fisioterapia com melho- A família deverá ser envolvida neste processo, como
rias progressivas. elemento vital de suporte e estabilidade para a doente,
O MF foi o elemento coordenador da partilha de cui- apoiando, informando e esclarecendo, evitando confli-
dados com as outras especialidades, numa aliança de tos e assegurando um padrão de funcionalidade. Espe-
trabalho permanente, que foi explicitada ao doente, e cial atenção deverá ser prestada à filha da doente, uma
foi o elo de ligação entre os cuidadores e a doente e a vez que os sintomas conversivos são mais frequentes
sua família. em parentes de doentes com esta perturbação,9 poden-
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ABSTRACT
Introduction: In everyday practice, physicians are often faced with patients with symptoms for which an organic medical con-
dition or a physiological explanation cannot be found. These patients represent a challenge for the Family Physician due to the
use of inordinate amounts of health care resources, the persistent request for medical investigation, the difficult acceptance of
a non-organic disease, leading to treatment resistance and the perpetuation of symptoms. The aim of this case report is to re-
view and illustrate the role of the Family Physician in the management of patients with conversion disorder, namely in the
diagnosis, psychosocial context, doctor-patient relationship, therapeutic goals, pharmacological treatments, articulation with
other levels of care and follow-up.
Case description: It’s described the case of a 35 years old woman, worker of an auto-service wholesale company, married, mo-
ther of one child, in stage IV of Duvall’s family cycle, stage III of Graffar’s socio-economical scale, with family Apgar of 8 points.
She has a history of depression/ anxiety disorders. She presents to the emergency department with acute onset paraparesis
and anaesthesia of the lower limbs, being admitted to the neurology department. After clinical evaluation, she is discharged
with the diagnosis of conversion disorder in the context of stress in the workplace. Since then, the patient maintained frequent
appointments with the Family Physician in an effective doctor-patient relationship, in articulation with psychiatric, neurologi-
cal and physiotherapeutic care.
Comment: Considering the high prevalence of somatizing patients, the Family Physician must have the necessary skills for its pro-
per identification and management.A patient-centred approach, considering the psychosocial context, should be followed.The pri-
mary therapeutic modality for the treatment of all somatoform disorders is the doctor-patient relationship, based upon the legi-
timization of the symptoms, in a comprehensive, supportive and continuous approach, articulating with other levels of care.