Resumo
Diabetes melito (DM) abrange um grupo de distúrbios metabólicos que têm em comum a presença de hiperglicemia.
Além das manifestações sistêmicas, o DM mal controlado apresenta importantes repercussões sobre a saúde oral (e.g.,
doença periodontal, xerostomia, hiposalivação, susceptibilidade a infecções, dificuldade de cicatrização). Este trabalho
tem por objetivo destacar a importância do conhecimento básico do odontologista sobre DM e propor um protocolo de
atendimento dentário para esses pacientes. A revisão bibliográfica foi realizada nos bancos de dados MEDLINE e
LILACS, com pesquisa em artigos publicados nos últimos dez anos, a partir das palavras-chave: diabetes mellitus,
dentistry, oral health e periodontal disease. Os resultados são estruturados em tópicos. Na primeira parte, são atualizadas
informações sobre diagnóstico, manifestações clínicas, repercussões orais e tratamento do DM. Na segunda parte,
propomos um protocolo de atendimento, no qual são discutidas, de modo didático (e.g., anamnese, exame físico,
exames complementares, conduta), as dúvidas mais comuns em relação à consulta odontológica do diabético (e.g.,
profilaxia antibiótica em procedimentos com risco de bacteremia, uso de antiinflamatórios, sedativos e anestésicos com
vasoconstrictores, tratamento paliativo versus definitivo, como proceder em casos de hipoglicemia e hiperglicemia,
quando suspeitar de um DM não diagnosticado). Ao final, uma ficha clínica sumariza os principais aspectos da consulta
odontológica do paciente diabético. Conclui-se que diabéticos bem controlados e sem complicações podem ser tratados
de modo similar a não-diabéticos, para a maioria dos procedimentos de rotina. O cirurgião-dentista, em comunicação
com o médico assistente, desempenha um importante papel na promoção e manutenção do bem-estar e qualidade de
vida do paciente diabético.
INTRODUÇÃO
1 Professor Assistente de Pediatria. Faculdade de Medicina. Universidade Federal da Bahia – UFBA. Salvador - BA. Coordenador da
Residência em Endocrinologia Pediátrica. Hospital Universitário Professor Edgard Santos. Universidade Federal da Bahia – UFBA.
Salvador - BA
2 Professora Assistente de Odontologia Social. Fundação Baiana para o Desenvolvimento das Ciências – FBDC. Salvador - BA
3 Acadêmico de Odontologia Faculdade de Odontologia – UFBA. Salvador - BA
requer ajuda de outra pessoa para tratar a - Tratamento: nos casos leves, o paciente
hipoglicemia). fará os ajustes de doses orientados por seu mé-
- Diagnóstico: a suspeita de hipoglicemia dico. Na hiperglicemia grave, o paciente deverá
deve ser confirmada medindo-se a glicemia ca- ser encaminhado para uma Unidade de Emer-
pilar. Caso isso não seja possível, o paciente sin- gência.
tomático deverá ser tratado como se apresen-
tasse uma verdadeira hipoglicemia. Manifestações bucais
- Tratamento: o tratamento depende da As manifestações bucais observadas no
gravidade. O paciente consciente deverá inge- paciente com DM, embora não específicas des-
rir o equivalente a 15 gramas de glicose: 1 com- sa doença, têm sua incidência ou progressão
primido de glicose, 1 sachê de mel ou açúcar, 1 favorecida pelo descontrole glicêmico. Os dis-
copo de suco de frutas ou de refrigerante, 1 co- túrbios da cavidade bucal mais freqüentes nos
lher de sopa rasa de açúcar, 2 balas de mel ou 3 diabéticos são: xerostomia, hiposalivação,
colheres de geléia. Na falta desses, ingerir qual- síndrome de ardência bucal, glossodinia, dis-
quer outro alimento com açúcar. Em seguida, túrbios da gustação, infecções, ulcerações na
monitorar a glicemia capilar a cada 15 minu- mucosa bucal, hipocalcificação do esmalte, perda
tos, até a sua normalização. O paciente incons- precoce de dentes, dificuldade de cicatrização,
ciente não deverá receber nada por via oral, com doença periodontal, hálito cetônico e líquen
exceção de um pouco de açúcar aplicado na plano (SOUZA et al., 2003; VERNILLO,
bochecha. O tratamento ideal para esses casos é 2003).
a administração de glicose a 10% por via Existe controvérsia sobre a associação en-
endovenosa (em média 30-50 mL). tre diabetes e cáries (VERNILLO, 2003). Se,
por um lado, poder-se-ia supor maior suscepti-
2. Hiperglicemia bilidade à cárie entre diabéticos (maior concen-
- Definição: em diabéticos, glicemia > tração de glicose salivar, aumento da acidez do
140-180 mg/dL, a depender do grau de con- meio bucal, aumento da viscosidade e diminui-
trole desejado. ção do fluxo salivar, hipocalcificação do esmal-
- Causas: omissão ou subdose de insuli- te, distúrbios salivares e periodontais), outros
na ou hipoglicemiantes orais, excessos alimen- fatores, como menor ingestão de sacarose, po-
tares, medicamentos que aumentam a glicemia deriam contribuir para diminuir sua ocorrên-
(corticóides), infecções, cirurgia, estresse físico, cia (SOUZA et al., 2003; AMARAL; RAMOS;
traumático, metabólico ou emocional. FERREIRA, 2006). Alguns autores não encon-
- Sintomas: poliúria, polidipsia, polifagia, traram relação entre essas duas doenças
perda de peso, hálito cetônico (odor de maçã (MIRALLES et al., 2002), enquanto outros re-
ou fruta passada, na respiração). Se não contro- latam que pacientes com controle metabólico
lada, a hiperglicemia pode evoluir para inadequado apresentam piores resultados nos
cetoacidose diabética, que se caracteriza por índices CPO-D (Dente Cariado/Perdido/Ob-
taquicardia, hipotensão, náusea, vômito, dor turado) (FERREIRA; VANNUCCI, 2004).
abdominal, desidratação (mucosa oral seca, sa- A produção e o fluxo salivar são
liva espessa), respiração de Kussmaul (respira- mediados pelo sistema nervoso autônomo, atra-
ção rápida e profunda), alteração do sensório, vés da ação do neurotransmissor colinérgico
choque e coma. acetilcolina. A xerostomia (sensação subjetiva
- Classificação: casos leves (poliúria, de boca seca que, geralmente, mas não necessa-
polidipsia, polifagia) e casos graves (cetoacidose riamente, está associada com a diminuição da
diabética). quantidade de saliva) é relatada por 10 a 30%
- Diagnóstico: a suspeita de hiperglicemia dos diabéticos (NEVILLE et al., 2004; COS-
deve ser confirmada pela medida da glicemia TA et al., 2004; TÓFOLI et al., 2005). A
capilar. hipossalivação pode causar glossodinia, úlceras,
queilites, língua fissurada, lesões cariosas e difi- 2003). A manifestação inicial é gengivite
culdade de retenção das próteses, com trauma (sangramento, recessão gengival), que, se não
dos tecidos moles, o que predispõe a infecções cuidada, progride para doença periodontal se-
(VERNILLO, 2003). Ela tende a se agravar em vera, com formação de bolsas periodontais ati-
fases de descontrole metabólico, pelo fato de a vas, abscessos periodontais, osteoporose
desidratação aumentar os gradientes osmóticos trabecular e destruição do suporte periodontal
dos vasos sanguíneos em relação às glândulas (SOUZA et al., 2003; PALMER; SOORY,
salivares, limitando a secreção de saliva 2005).
(MOORE et al., 2001). O uso de drogas com Algumas hipóteses consideram uma as-
ação anticolinérgica é outra condição que leva à sociação bidirecional entre diabetes e doença
redução da produção e do fluxo salivar. Os prin- periodontal. Nessas hipóteses, o diabetes alte-
cipais medicamentos com efeitos anticolinér- raria a resposta imunológica e metabólica do
gicos são: antidepressivos (amitriptilina organismo, favorecendo e exacerbando a doen-
[Amytril®, Tryptanol®], sertralina [Zoloft®], ça periodontal, e ela contribuiria para o mau
paroxetina [Atropax®]), anti-histamínicos controle dos níveis glicêmicos (WEHBA;
(loratadina [Claritin®, Loralerg®], prometazina RODRIGUES; SOARES, 2004). Assim, a ma-
[Fenergan®]) e derivados benzodiazepínicos nutenção da saúde dos tecidos periodontais con-
(alprazolam [Frontal®], diazepan [Valium®, tribui para um melhor controle metabólico,
Diempax®], lorazepan [Lorax®]) (WYNN; reduzindo as necessidades de insulina e os ní-
MEILLER, 2001). veis de hemoglobina glicosilada (KAWAMURA,
Indivíduos com DM estão mais propen- 2002).
sos a desenvolver infecções e abscessos na cavi-
dade bucal, o que pode agravar o controle me-
tabólico. A susceptibilidade para infecções orais, DIABETES MELITO: PROTOCOLO DE
a exemplo da candidíase oral, é favorecida pela ATENDIMENTO ODONTOLÓGICO
hiperglicemia, diminuição do fluxo salivar e al-
terações na composição da saliva, através de Nas consultas eletivas, é útil obter um
modificações em proteínas antimicrobianas relatório do médico assistente, enquanto nas
como lactoferrina, lizozima e lactoperoxidase consultas de emergência, pode ser necessário um
(VERNILLO, 2003; TEKELI et al., 2004). contato telefônico com o mesmo. Lembrar que,
A susceptibilidade e a progressão da do- muitas vezes, o problema dentário é a causa de
ença periodontal, no paciente diabético, está descompensação do DM e que seu tratamento
associada ao descontrole metabólico, à presen- pode ser a única maneira de restaurar controle
ça de complicações, ao espessamento dos vasos metabólico.
sanguíneos, à redução da quimiotaxia dos
neutrófilos, à glicosilação (ligação de glicose a Anamnese
proteínas) de proteínas estruturais, formando Grande parte dos pacientes com DM2
produtos avançados de glicosilação (AGEs), fun- desconhece a sua doença. Portanto, o cirurgião-
ção reduzida dos fibroblastos e alterações gené- dentista deve estar atento para suspeitar dos casos
ticas, como herança de determinados antígenos não diagnosticados, encaminhando para o mé-
de histocompatibilidade (SOUZA et al., 2003; dico assistente aqueles indivíduos que apresen-
ANTUNES et al., 2003; SOUTHERLAND et tem sintomatologia oral (candidíase, xerostomia)
al., 2006). Um estudo mostrou prevalência de ou sistêmica sugestiva de DM1 (poliúria,
9,8% de doença periodontal em pacientes com polidispsia, polifagia, perda de peso) ou DM2
DM1, quando comparados a 1,6% em não di- (obesidade, dislipidemia, hipertensão).
abéticos (CIANCOLA et al., 1982). No DM2, Nos pacientes com diagnóstico prévio, o
o risco de doença periodontal é três vezes maior dentista deve se informar sobre o tipo da doen-
do que na população em geral (VERNILLO, ça (DM1, DM2,), duração da enfermidade,
miocárdio (SOUZA et al., 2003). Em pacien- autores recomendam evitar uso de soluções com
tes com descontrole metabólico, a indicação de vasoconstrictores à base de adrenalina e
anestésico com adrenalina é controversa. Alguns noradrenalina, pois essas promovem a quebra
Situações especiais
a) Insuficiência renal: não administrar CONSIDERAÇÕES FINAIS
drogas excretadas por via renal (gentamicina,
amicacina). Os antibióticos, analgésicos ou O DM é considerado um grave proble-
antiinflamatórios de escolha são os ma de saúde pública, devido ao aumento de
metabolizados pelo fígado. AINES devem ser sua incidência. Por ser uma doença sistêmica,
usados com cautela, porque podem promover tem influência em todo o organismo, inclusive
retenção de sódio e água e provocar sangramento na cavidade oral, aumentando a susceptibilida-
gástrico (SANCHES et al., 2004). de à xerostomia, hiposalivação, candidíase e
b) Hipoglicemia: o cirurgião-dentista doença periodontal. Essa predisposição é maior
deve estar preparado para eventuais emergênci- em pacientes mal controlados.
as relacionadas ao DM durante o tratamento Por isso, é importante que o cirurgião-
odontológico, e o paciente deve ser encorajado dentista faça parte da equipe multiprofissional
a comunicar qualquer sensação de mal-estar que cuida dos pacientes com DM. Cabe ao den-
(MEALEY et al., 1999; SOUZA et al., 2003). tista conhecer melhor essa patologia e suas ma-
Se o paciente desenvolver sintomatologia suges- nifestações bucais, estando preparado, inclusi-
tiva de hipoglicemia, o procedimento deverá ser ve, para atuar em casos de hipoglicemia duran-
te o tratamento. Pacientes bem controlados de-
Quadro 3 - Ficha de atendimento odontológico do paciente com diabetes melito (Parte I).
Quadro 4 - Ficha de atendimento odontológico do paciente com diabetes melito (Parte II).
vem ser tratados como não diabéticos, sem ne- ções. Infelizmente, a literatura é pobre em es-
cessidade de cuidados especiais. Pacientes com tudos com boa qualidade metodológica para
descontrole metabólico deverão receber trata- apoiar a maioria das condutas recomendadas,
mento paliativo até a restauração do controle as quais se apóiam principalmente em concei-
glicêmico. Pacientes com complicações crôni- tos teóricos.
cas serão tratados de acordo com suas limita-
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