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Maria Lúcia Boarini

Organizadora

RAÇA,
HIGIENE SOCIAL
E NAÇÃO FORTE
MITOS DE UMA ÉPOCA
RAÇA, HIGIENE SOCIAL
E NAÇÃO FORTE
mito s d e u ma épo ca
Editora da Universidade Estadual de Maringá
Reitor: Prof. Dr. Júlio Santiago Prates Filho. Vice-Reitora: Profa. Dra. Neusa Altoé. Diretor da Eduem: Prof. Dr. Ivanor Nunes do
Prado. Editor-Chefe da Eduem: Prof. Dr. Alessandro de Lucca e Braccini.
Conselho Editorial
Presidente: Prof. Dr. Ivanor Nunes do Prado. Editores Científicos: Prof. Adson C. Bozzi Ramatis Lima, Profa. Dra. Ana Lúcia
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de Souza Tasso, Prof. Dr. Evaristo Atêncio Paredes, Prof. Dr. João Fábio Bertonha, Profa. Dra. Larissa Michelle Lara, Profa. Dra.
Luzia Marta Bellini, Prof. Dr. Manoel Messias Alves da Silva, Profa. Dra. Maria Suely Pagliarini, Profa. Dra. Maria Cristina Gomes
Machado, Prof. Dr. Oswaldo Curty da Motta Lima, Prof. Dr. Raymundo de Lima, Prof. Dr. Reginaldo Benedito Dias, Prof. Dr. Ronald
José Barth Pinto, Profa. Dra. Rosilda das Neves Alves, Profa. Dra. Terezinha Oliveira, Prof. Dr. Valdeni Soliani Franco, Profa. Dra.
Valéria Soares de Assis.

Equipe Técnica
Fluxo Editorial: Edilson Damasio, Edneire Franciscon Jacob, Mônica Tanamati Hundzinski, Vania Cristina Scomparin. Projeto
Gráfico e Design: Marcos Kazuyoshi Sassaka. Artes Gráficas: Luciano Wilian da Silva, Marcos Roberto Andreussi. Marketing:
Marcos Cipriano da Silva. Comercialização: Norberto Pereira da Silva, Paulo Bento da Silva, Solange Marly Oshima.
Maria Lucia Boarini
(organizadora)

RAÇA, HIGIENE SOCIAL


E NAÇÃO FORTE
mito s d e u ma épo ca

Prefácio
Oswaldo H. Yamamoto

Maringá
2011
Copyright © 2011 para os autores

Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo mecânico,
eletrônico, reprográfico etc., sem a autorização, por escrito, dos autores.
Todos os direitos reservados desta edição 2011 para Eduem.

Revisão textual e gramatical: Raul Pimenta


Normalização textual e de referências: Marinalva Aparecida Spolon (CRB 9-1094)
Projeto gráfico/diagramação: Marcos Kazuyoshi Sassaka
Capa - imagem: Escultura em bronze, medindo 2 metros de altura e pesando mais de 200 kg, apoiada sobre
um pedestal de granito. Representa a deusa romana Minerva que nesse caso seria uma alegoria à industria.
Esta escultura foi encomendada na Italia, no início do século XX, e seria instalada em uma industria no Rio
de Janeiro, mas, com sua falência, ela foi entregue ao Sr. Hostino Dutra que a presenteou ao farmacêutico
José Brancaglione, seu genro. Ele a colocou em sua farmácia. Com seu falecimento a família doou para a
Prefeitura de Santo Andre. Foi reinstaurada e instalada em 1997, definitivamente, no jardim do Museu de
Santo André Dr. Octaviano Armando Gaiarsa, na rua Senador Flaquer, 470 em Santo André/SP.
Capa - imagem (crédito da foto): Daniel Boarini de Souza
Capa - arte final: Luciano Wilian da Silva
Ficha catalográfica: Edilson Damasio (CRB 9-1123)
Fonte: Goudy Old Style
Tiragem - versão impressa: 500 exemplares

Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)


(Eduem - UEM, Maringá – PR., Brasil)

R111 Raça, higiene social e nação forte : mitos de uma época / Maria Lucia Boarini (organizadora) ;
prefácio Oswaldo H. Yamamoto. -- Maringá : Eduem, 2011.
252p. : il.

Vários autores.
ISBN 978-85-7628-379-9

1. Higiene social. 2. Higienismo. 3. Eugenia. 4. Educação escolar. 5. Raça. 6.


Antialcoolismo. 7. Deficiente mental. I. Boarini, Maria Lucia, org. II. Título.

CDD 21.ed. 363.92

Eduem - Editora da Universidade Estadual de Maringá


Av. Colombo, 5790 - Bloco 40 - Campus Universitário
87020-900 - Maringá-Paraná - Fone: (0xx44) 3011-4103 - Fax: (0xx44) 3011-1392
www.eduem.uem.br - eduem@uem.br
Sumário

Prefácio
Oswaldo H. Yamamoto.............................................................. 7

Apresentação
Maria Lucia Boarini................................................................... 11

Reflexões sobre eugenismo à francesa: Alexis Carrel


Marcos Alexandre Gomes Nalli................................................. 21

Soldados de todo o país: higienizai-vos! A Liga Brasileira


de Hygiene Mental e as Forças Armadas (1914-1945)
Durval Wanderbroock Junior.................................................... 49

A eugenia sob a lente de Lima Barreto


Maria Lucia Boarini................................................................... 75

A eugenia pela arte cinematográfica


Durval Wanderbroock Junior, Renata Heller de Moura, Saulo
Luders Fernandes....................................................................... 97

As campanhas antialcoólicas nas escolas primárias - nas


décadas de 20 e 30 do século xx no Brasil
Marcos Maestri........................................................................... 129
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

A Educação Escolar do deficiente mental: a proposta


higienista
Milena Luckesi de Souza. .......................................................... 157

A pedagogia médico-higiênica de Manoel Bomfim: um


olhar sobre a criança nas primeiras décadas do século
XX
Roselania Francisconi Borges.................................................... 175

A participação da família na escola higienizada


Maria Silvinha Carraro Martins................................................ 209

Referências..................................................................... 235

Sobre os autores............................................................. 251

6
Prefácio
Oswaldo H. Yamamoto

O início do século XX foi cercado por um clima de


grande otimismo, criado pela expectativa de realização do
avanços que a ciência estava anunciando. E havia razão para
tal, a julgar pelo que a ciência e a tecnologia nos reservaram
nos cem anos seguintes: o notável desenvolvimento dos
transportes, da comunicação, da medicina, enfim, qualquer
que seja o campo que focalizarmos, veremos que aquelas
expectativas da passagem do século XIX eram modestas frente
às realizações do homem.
A despeito desse extraordinário avanço científico e
tecnológico, o clima do final de século foi muito diverso. As
avaliações como as de Isaiah Berlin, de que teria sido o mais
terrível e destrutivo século da história da humanidade, estavam
próximas do consenso. Ao finalizar o livro A era dos extremos,
Eric Hobsbawm1 afirmava que o ‘breve século XX’ terminava
com a humanidade tendo a tarefa de enfrentar problemas para
os quais ninguém tinha, ou dizia ter, soluções.
Iniciamos, desta forma, o novo século e milênio de uma
forma totalmente diversa do anterior: o otimismo propiciado

1 HOBSBAWN, Eric J. A era dos extremos: o breve século XX. (1914-1991). São Paulo: Companhia
das Letras, 1995.
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

pelas perspectivas do avanço científico no início do século XX


é substituído por um pessimismo em relação à nossa própria
capacidade de lidar com o futuro. Razões para essa preocupação
não nos faltam: para lembrar alguns pouquíssimos exemplos,
a degradação ambiental, o extraordinário poder destrutivo do
arsenal bélico armazenado pelos países do capitalismo central
e, mesmo, periférico, e a imensa desigualdade social exacerbada
no último século criando uma outra cisão no mundo, no dizer
de J-C. Ruffin, “os novos bárbaros”2.
Uma das grandes questões postas para a humanidade,
sobretudo na primeira metade do século XX, foi a possibilidade
de, conforme a premissa da eugenia galtoniana e com os
conhecimentos científicos então disponíveis, manipular ‘os
fatores físicos e mentais socialmente controláveis’ que poderiam
melhorar a espécie humana.
Eis que, sem termos tido a capacidade de equacionar
satisfatoriamente os problemas deixados pelo século que findou,
o desenvolvimento científico recente nos coloca diante de novos
desafios. Com uma diferença não-desprezível com relação ao
início do século XX: o desenvolvimento de campos como a
biotecnologia, a engenharia genética, a nanotecnologia abre a
possibilidade real de realizar o ideal galtoniano.
Marcos Nalli, em um dos estudos que compõem esta
coletânea, lembra com muita propriedade que existem
componentes éticos, políticos e epistemológicos a serem
considerados no debate sobre a eugenia. Se, porventura, como

2 RUFFIN, Jean-Christophe. L’Empire et les nouveaux barbares. Paris: Editions Jean-Claude


Lattès, 1991.

8
PREFÁCIO

Liliam Mai e Emília Angerami3 ao discutir as chamadas ‘eugenias


positiva e negativa’ denunciam a virtual ausência de debate
sobre as implicações éticas e sociais entre médicos, geneticistas
e cientistas de domínios conexos, o mesmo não pode ocorrer
entre os cientistas sociais. E, mais do que isso, é tarefa urgente
ampliar esse debate.
Mas posturas obscurantistas não nos ajudam nesta questão.
Não podemos substituir a indispensável interlocução pela
defesa míope de posições unilateralmente definidas, como é,
infelizmente, prática corrente no meio acadêmico. O antigo
antagonismo nature-nurture não pode ser reeditado para segregar
os campos. Como lembra muito bem Nalli, não é o caso de
tratar a eugenia como um embuste, inclusive, porque nós nos
defrontamos cotidianamente com decisões que a envolvem,
eventual e por vezes inadvertidamente, tomando posições. O
que dizer do aborto eugênico, legal em diversos países? Ou das
técnicas de reprodução assistida? Sempre é conveniente lembrar,
com Habermas4, que a fronteira entre a terapia e a eugenia é
muito tênue.
Talvez seja imperioso no combate da tese da ‘nova eugenia’ –
de que as decisões sejam fundamentalmente de ordem médica –,
discutir as ‘barreiras normativas’ à intervenção na vida humana
propostas por Habermas, o que demandará a consideração dos
componentes políticos, éticos e epistemológicos discutidos por
Nalli.

3 MAI, Lilian D.; ANGERAMI, Emília L. S. Eugenia negativa e positiva: significados e


contradições. Revista Latino-Americana de Enfermagem, vol. 14, no 2, pp. 251-258, 2006.
4 HABERMAS, Jürgen. O futuro da natureza humana. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

9
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

É nesse difícil terreno que se move a presente obra.


Estimular o debate, com base sobretudo nos estudos de
caráter histórico, sobre temas que orbitam em torno das
questões acima aludidas – eugenia, higienismo, raça – é a
tarefa a que se propõe o livro. E o faz a partir de análises que
partem de angulações teóricas e posicionamentos diversos,
que é a marca do debate acadêmico.
Por tudo o que foi dito, a conclusão só pode ser uma: a obra
que o leitor ora tem em mãos é mais do que atual; ela é uma
leitura indispensável.

10
Apresentação
Maria Lucia Boarini

Eugenia, higiene mental - parecem termos tão distantes da


atualidade ou mesmo desconhecidos e, não raro, provocam no
mínimo curiosidade; entretanto a ausência destes termos no
repertório verbal da sociedade do século XXI não é sinônimo de
seu desaparecimento no campo das ideias. Temos por hipótese
que, se atentos ao nosso cotidiano, vamos nos surpreender com
situações que nos revelam a presença no imaginário popular do
ideário da eugenia e da higiene mental. Além disto, fatos que
alcançaram visibilidade são indicativos de que os princípios da
eugenia e da higiene social e mental mantêm-se como orientação
de algumas propostas de práticas sociais. Neste sentido podemos
citar, à guisa de ilustração, a proposta apresentada pelo Grupo
16, participante da VII Conferência Nacional de Saúde, realizada
em 1980, em Brasília. Este grupo tratou do subtema 8 intitulado
Saúde Mental e Doenças Crônico-Degenerativas e os Serviços Básicos
de Saúde, e no que tange à saúde mental, e mais especificamente
à “personalidade psicopática” e às “psicoses”, apresentou como
medida preventiva e de tratamento o seguinte:

Personalidades Psicopáticas. Prevenção: Tão só aos


‘desenvolvimentos’ psicopáticos, através do saneamento
moral da comunidade e das suas distorções socioeconomicas.
Tratamento: não há, a rigor, tratamento. Para aqueles psicopatas
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

de alta periculosidade a cirurgia de comportamento é a solução,


embora de resultados nem sempre satisfatórios. [...] Psicoses
afetivas. Prevenção: difícil. O aconselhamento, nesses pacientes,
para a não procriação seria desejável .[...] Psicoses Esquizofrênicas.
Prevenção: difícil, à equipe de saúde mental cabe conscientizar
a comunidade sobre o caráter heredofamiliar dessa doença.
A única medida profilática seria a não procriação dos enfermos
esquizofrênicos (CONFERÊNCIA NACIONAL DE SAUDE,
1980, p. 180, grifo nosso).

Ressalvando-se o tempo transcorrido, tais propostas guardam


semelhança com os princípios que orientaram a esterilização
humana propalada pelos adeptos da eugenia e, de fato,
realizada em vários países da Europa e nos Estados da América
do Norte, nas primeiras décadas do século XX. Nestes países a
esterilização eugênica tinha como função preservar “de prole
aqueles que são manifestamente incapazes de procriar crianças
sadias ou de facultar a essas crianças um ambiente salubre para
o seu desenvolvimento”. Com este encaminhamento, como
justificavam os eugenistas, faz–se “necessariamente decrescer
a miséria.... [sendo] uma das medidas indispensáveis em
qualquer programa que vise o bem estar da sociedade.” Desta
forma entendiam qu além de ser um programa que visava ao
“bem-estar da sociedade”, era uma cirurgia simples, pois feita
“sem remover glândulas ou tecidos, sem alterar a circulação e
inervação, sem, afinal de contas, produzir outro efeito que não
seja a mera esterilidade [...] (ESTERILIZAÇÃO, 1929... p. 4, grifo
nosso).
Retornando a proposta do Grupo 16 da Conferência
Nacional de Saúde, citada anteriormente, não há menção do
termo “esterilização”; todavia, a não explicitação do significado
do termo “medida profilática” e “cirurgia do comportamento”
12
APRESENTAÇÃO

permite supor esterilizações ou coisas do gênero. Há ainda outro


fato que merece atenção: a apresentação desta proposta em um
evento do porte de uma Conferência Nacional de Saúde nem
sequer provocou questionamentos, pelo menos não consta no
Relatório Final qualquer sinal neste sentido.
Em data mais recente, novembro de 2007, ocupou espaço na
mídia impressa e televisiva o projeto de pesquisa que se propunha
a estudar as causas da criminalidade e do comportamento
agressivo de 50 adolescentes autores de homicídios e internados
na Fundação de Atendimento Socioeducativo (FASE) de Porto
Alegre. Além da utilização de aparelho de ressonância magnética
previsto para fazer o mapeamento cerebral destes adolescentes,
este estudo devia contemplar aspectos genéticos e psicológicos,
de acordo com informações publicadas em um dos jornais
de maior circulação no Brasil (GARCIA, 2007). Este projeto,
cuja coordenação, na época, estava a cargo de pesquisadores
da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
(PUCRS) e da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS), suscitou polêmica. A respeito deste assunto muitos
profissionais e entidades de classe se posicionaram solicitando
maiores informações, como foi o caso do Conselho Federal de
Psicologia. Entre outras colocações, este Conselho considera
inadequado “confrontar razões biológicas e genéticas com
razões culturais e sociais, de forma polarizada, simplificando
a compreensão de fenômenos complexos como é o caso
das questões relacionadas à violência e responsabilizando
unicamente o sujeito por atos violentos.” Aponta também o
caráter discriminatório que envolve esta população carcerária:
“Não por acaso, e em sua esmagadora maioria, tais adolescentes
pertencem às camadas mais pobres da população.”. E finaliza
13
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

afirmando: “Entendemos, também, que a pesquisa situa “o ato


criminoso” como um fato individual, de responsabilidade do
sujeito e não como um fenômeno extremamente complexo.”
(CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2008). Muitos
profissionais, por meio de uma nota de repúdio, manifestaram
“tristeza e preocupação” com o fato de que universidades de
“grande visibilidade na vida acadêmica brasileira” destinarem
recursos e investimentos para velhas práticas de exclusão e
de extermínio” que nos fazem retornar às “mais arcaicas e
retrógradas práticas eugenistas do início do século 20”.
A propósito, esta polemica nos faz recordar o emérito jurista
brasileiro Tobias Barreto de Menezes ao analisar a celebre obra
intitulada “O homem delinquente” de autoria do médico
italiano Cesare Lombroso (1835-1909). Nessa obra lançada
em sua primeira edição em 1876, Lombroso defendia a tese
que os criminosos poderiam ser reconhecidos por uma gama
de anomalias e estigmas de origem atávica ou degenerativa.
A respeito desta tese, Tobias Barreto, em 1884, assim se
posiciona:

O conhecimento exato do criminoso não se compõe somente


de dados psicológicos, fornecidos pela observação interna,
direta ou indireta; mas é igualmente certo que não se compõe
só de dados craniometricos, dinamometricos, oftalmoscópicos e
todos os mais epítetos sesquipedais, de que soí usar a tecnologia
medical (MENEZES, 1951, p. 107).

Enfim, são acontecimentos desta natureza que alcançaram


importante visibilidade, e diante deles desnecessário seguir com
novos exemplos. Apenas, é importante destacar que são estes
fatos e tantos outros do nosso cotidiano que dão atualidade
14
APRESENTAÇÃO

à questão da eugenia e da higiene mental, travestida, quiçá,


de outras denominações. Assim, este ideário não é coisa do
passado, somente.
Sendo este um campo de estudo rico, farto e não
suficientemente explorado, o Grupo de Estudos e Pesquisa sobre
o Higienismo e Eugenismo – GEPHE, que há algum tempo vem
olhando com mais cuidado para esta temática, e aqui traz mais
algumas contribuições.
Para abrir esta coletânea, Marcos Alexandre Gomes Nalli,
rebuscando as prateleiras das bibliotecas francesas, apresenta-
nos instigantes informações sobre Alexis Carrel (1873-1944),
médico e biólogo francês, natural de Lyon. Carrel, que recebeu
o prêmio Nobel de fisiologia ou medicina em 1912, era um
entusiasta da eugenia. No texto intitulado Alexis Carrel:
eugenismo à francesa, Nalli nos traz a importante polêmica que
se travou recentemente na França sobre os posicionamentos
desse cientista francês.
Em seguida temos as reflexões de Durval Wanderbroock
Júnior sob o título Soldados de todo o país: higienizai-vos!
A Liga Brasileira de Hygiene Mental e as Forças Armadas
(1914-1945). Neste texto o autor discute as preocupações dos
associados da Liga Brasileira de Hygiene Mental em relação às
alterações psíquicas dos soldados que constituíam o exército
brasileiro. Crentes na força da hereditariedade, os membros
da Liga propunham examinar os antecedentes familiares dos
soldados e avaliá-los, por meio de testes psicológicos, a fim de
que o exército não fosse saturado de degenerados. Afinal, se
eram necessáriom cuidados com a imigração porque os perigos
15
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

poderiam vir de fora, “no exército o perigo era ainda maior, pois
não somente estava ‘dentro’, como também armado”.
No capítulo terceiro, intitulado A Eugenia sob a lente
de Lima Barreto, de nossa autoria, recuperamos alguns
posicionamentos do escritor brasileiro Lima Barreto em
relação à ciência produzida e veiculada na época. Do rico
legado literário de cunho memorialístico deste escritor
circunscrevemos suas críticas e dúvidas a algumas “certezas” e ao
caráter discriminatório de algumas produções cientificas. Além
disto, dando voz à literatura imbricada em sua historicidade,
objetivamos demonstrar a literatura como fonte relevante para
leitura e compreensão da produção social de uma época, e
nesta medida constatar o profícuo diálogo entre a ciência e a
literatura.
Na sequência vem o texto intitulado A eugenia pela arte
cinematográfica, de autoria dos jovens cientistas Durval
Wanderbroock Junior, Renata Heller de Moura e Saulo Luders
Fernandes. Focalizam para análise os fatos e acontecimentos
expressados pelos comentários “Homo Sapiens 1900” e
“Arquitetura da Destruição”, dirigidos pelo diretor sueco Peter
Cohen (1946-). Tomando como instrumento de análise a arte
cinematográfica, os autores discutem a limpeza racial como forma
de aperfeiçoar a espécie humana e criar um novo homem.
A seguir, Marcos Maestri, com o texto intitulado As
campanhas antialcoólicas nas escolas primárias - nas décadas
de 20 e 30 do século XX, no Brasil, indica quão antigo é o
fenômeno do abuso de bebidas alcoólicas. Maestri demonstra a
grande preocupação dos membros da Liga Brasileira de Hygiene
Mental ante a alta incidência de consumo de bebidas alcoólicas
16
APRESENTAÇÃO

revelada na época. Por meio de conferências, palestras, folhetos,


semanas antialcoólicas, concursos e, sobretudo, de campanhas
nas escolas primárias, os higienistas não economizaram empenho
na tentativa de resolver esta questão. Não obstante, o problema
mantém-se na atualidade, com agravantes, como por exemplo, a
sinistra dobradinha álcool/trânsito.
Milena Luckesi de Souza, estudiosa da área de conhecimento
sobre as pessoas com necessidades especiais, apresenta-nos suas
reflexões acerca de A educação escolar do deficiente mental:
a proposta higienista, título do texto em tela. De acordo com
Milena, a educação escolar do deficiente mental foi uma das
estratégias propostas pelos membros da Liga Brasileira de Hygiene
Mental para evitar a proliferação de criminosos e desajustados
sociais, além de economizar na manutenção de manicômios,
asilos e penitenciárias. Esta estratégia reitera o raciocínio
determinista sustentado por características particulares do
indivíduo.
Roselania Francisconi Borges, na sequência, apresenta suas
reflexões no texto intitulado A pedagogia médico-higiênica
de Manoel Bomfim: um olhar sobre a criança nas primeiras
décadas do século XX. Aqui a autora discute a ideia da
educação como redentora da Nação, defendida, em geral, pela
intelectualidade brasileira das primeiras décadas do século XX,
sobretudo por Manoel Bomfim, importante membro da Liga
Brasileira de Hygiene Mental, reconhecido por seus pares pelo
mérito do seu trabalho em defesa da educação. Acreditava que
a educação, enquanto adaptação e busca da perfeição moral, era
o caminho que levaria o Brasil a ser uma grande nação.
17
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

Finalmente, temos o texto intitulado A Participação da


Família na Escola Higienizada, em que a autora, Maria Silvinha
Carraro Martins, aponta a preocupação dos educadores e
higienistas quanto à reprovação, evasão e faltas escolares nas
escolas primárias da época, fenômeno já de grande destaque na
ocasião. Maria Silvinha nos relata também quanto as famílias
da classe operaria eram consideradas incapazes de educar seus
filhos dentro das normas de higiene e bons costumes. Para
tanto, os higienistas propunham orientar os pais quanto aos
padrões de higiene e de moral. Para levar avante esta ideia os
pais eram convidados a participar das reuniões escolares, bem
como a receber a visita da educadora sanitária às suas moradias,
a qual observava as condições de saúde e higiene e ofereciam a
orientação necessária.
Estes textos, resultado de cuidadosas pesquisas bibliográficas,
não esgotam a riqueza de informações produzidas ao longo de
décadas; informações que se constituíram em preocupações
de pessoas que protagonizaram e fizeram a história de uma
determinada época da sociedade ocidental. O que mudou,
de fato, nesta história produzida há quase um século? Não é
o propósito dos autores aqui reunidos buscar resposta a esta
questão, mas sim, com este retorno aos diferentes campos
percorridos pelos eugenistas e higienistas nos idos das primeiras
décadas do século XX, obter informações que possam auxiliar
nas reflexões sobre este assunto. Em nosso entender, uma das
lições importantes a nós deixadas por estes homens que fizeram
a história do período estudado é a necessidade de certa cautela
ao atribuir ao indivíduo e às suas características pessoais ou
de classe social responsabilidades por fenômenos produzidos
pela forma de organização da sociedade da época. A mesma
18
APRESENTAÇÃO

ciência que há muitas décadas coloca a pessoa de pele negra


no ostracismo, com a justificativa que é de raça inferior, indica
que, se toda a população da Terra fosse destruída (em um
exemplo fantasioso, é claro), “deixando ilesa apenas a população
africana, 93% da diversidade humana total seria preservada!
Se apenas os indivíduos da população zulu da África do Sul
sobrevivessem, mesmo assim 85% da variabilidade total seria
resguardada” (PENA, 2008, p. 38). A desmistificação de ideias
tão ardorosamente defendidas em outras épocas nos faz lembrar
o velho e talentoso escritor brasileiro Lima Barreto quando,
em tom de nostalgia, relembra as incertezas dos “grandes
sábios” na medida em que revelavam “dúvidas, reservas quanto
à verdade das suas observações e resultados gerais”, ao passo
que, “modernamente, com a democratização da ciência e seu
fracionamento necessário, não há mediocridade mais ou menos
sabichona, neste ou naquele campo da ciência que não se
arrogue infalível” (BARRETO, 2004b, p. 237-238).
Outrossim, há que se cuidar para “não jogar a criança
com a água do banho”, como se diz em linguagem popular. É
impossível não reconhecer os benefícios que o avanço da ciência
tem trazido para a humanidade, mas tampouco as desgraças
humanas favorecidas pelo uso da mesma ciência. Com isto
estamos querendo afirmar que a ciência não é autônoma, não
tem poderes próprios; é apenas uma criatura que deve estar sob
o domínio do seu criador: a sociedade humana.

19
Reflexões sobre eugenismo à
francesa: Alexis Carrel
Marcos Alexandre Gomes Nalli

Falar da eugenia e do eugenismo é sempre um processo


complicado. Primeiramente, não é fácil construir uma leitura
deste fenômeno típico de nossa contemporaneidade sem correr
o risco de imputar-lhe qualquer julgamento de ordem ética
ou política; em segundo lugar, geralmente por conta daquela
dificuldade, sempre nos deparamos também com a dificuldade
de evitar, ‘pura e simplesmente’, qualquer desqualificação
epistemológica; ou seja, ao se falar em eugenia e eugenismo
considerando-se o que eles significaram, especialmente na
primeira metade do século XX, é muito difícil evitar condená-los
de um triplo ponto de vista: ético, político e epistemológico.
A causa disto é que, ao menos aparentemente, depois
que a humanidade tomou conhecimento do que foi feito na
Alemanha na época do III Reich, com os nazistas e Hitler
no poder - os crimes contra a humanidade, a política racial e
genocida adotada pelo regime nazista em nome da defesa do
direito de supremacia ariana e, por conseguinte, em nome
da eugenia - tornou-se extremamente difícil isentá-la, e a seus
defensores, de qualquer responsabilidade moral ou política.
Por isso tende-se sempre a ver na eugenia - na sua totalidade,
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

em suas práticas, em suas propostas e em seus discursos - uma


nebulosidade estranha margeando as ciências, e às vezes até
contaminando-as. Jamais, porém, ela é vista como ciência, e sim,
como embuste, ideologia, pseudociência; e muito prontamente
busca-se isentar alguns dos grandes nomes, dos grandes heróis
das ciências, de qualquer envolvimento ou comprometimento
com causas político-sociais ‘tão pouco nobres’. É assim que,
entre os autores que pudemos consultar para a feitura deste
texto, deparamo-nos com os textos de Patrick Tort (1998) e de
Jean Gayon (2006) que buscam inocentar Darwin de quaisquer
vínculos diretos com o eugenismo. Afinal, nossa tradição
aprendeu, ao menos desde Descartes, que a verdade científica,
isto é, a verdade alcançada metodicamente, origina-se não apenas
de um método bem-empregado, mas de um ato da vontade
racional em buscá-la, de tal modo que há uma coincidência
entre retidão científica e retidão moral. Eis uma das razões
pelas quais, ainda que de modo extremamente simplificado,
pode-se entender a função da quarta parte do Discurso do método
(1637); pois, como já preconiza o adágio bíblico, “A verdade
vos libertará”. Será necessário esperarmos por Max Weber para
assistirmos de modo contundente a separação axiológica entre
ciência e política (e, por conseguinte, entre ciência e moral). E
esta cesura é fundamental, não porque ela jogue a ciência num
campo de neutralidade e amoralidade, mas justamente porque
a ciência, seja em seu processo mesmo, seja em seus produtos -
preconcebidos ou inesperados - sempre está sujeita à avaliação
moral e política de seu tempo ou dos tempos vindouros, de
alguma forma, positiva ou negativamente, atingida pelos efeitos
das pesquisas científicas. Contudo, só para ficar ainda na
relação entre darwinismo e eugenia, também nos deparamos
22
REFLEXÕES SOBRE EUGENISMO À FRANCESA

com o livro de André Pichot, que não se sente constrangido


em poupar Darwin de possuir algum vínculo com o eugenismo
para além dos familiares (como se sabe, Francis Galton era seu
primo, e seu filho Leonard Darwin foi o dirigente da Eugenic
Education Society, entre os anos de 1911 e 1928), ainda que seja
difícil precisar. Assim Pichot resgata um trecho emblemático e
polêmico de A descendência do homem (The descent of man, and
selection in relation to sex, 1871), que tomamos a liberdade de citar
aqui:

Todos aqueles que não podem evitar uma abjeta pobreza aos
filhos deveriam evitar se casar, pois a pobreza é não apenas um
grande mal, mas tende a crescer e a incrementar um descaso
no casamento. Por outro lado, como observou Sr. Galton,
se as pessoas prudentes evitam o casamento, enquanto os
descuidados se casam, os indivíduos inferiores da sociedade
tendem a suplantar os indivíduos superiores da sociedade (apud
PICHOT, 2000, p. 181, tradução nossa)1.

1 É possível consultar o texto em inglês, diretamente no sítio eletrônico dedicado à obra de


Charles Darwin. O trecho em questão se encontra na página 403-404 da edição inglesa de
1871, e que pode ser consultado on line. Reproduzimos a seguir o parágrafo na íntegra: “The
advancement of the welfare of mankind is a most intricate problem: all ought to refrain
from marriage who cannot avoid abject poverty for their children; for poverty is not only a
great evil, but tends to its own increase by leading to recklessness in marriage. On the other
hand, as Mr. Galton has remarked, if the prudent avoid marriage, whilst the reckless marry,
the inferior members will tend to supplant the better members of society. Man, like every
other animal, has no doubt advanced to his present high condition through a struggle for
existence consequent on his rapid multiplication; and if he is to advance still higher he
must remain subject to a severe struggle. Otherwise he would soon sink into indolence, and
the more highly-gifted men would not be more successful in the battle of life than the less
gifted. Hence our natural rate of increase, though leading to many and obvious evils, must
not be greatly diminished by any means. There should be open competition for all men; and
the most able should not be prevented by laws or customs from succeeding best and rearing
the largest number of offspring. Important as the struggle for existence has been and even
still is, yet as far as the highest part of man’s nature is concerned there are other agencies
more important. For the moral qualities are advanced, either directly or indirectly, much
more through the effects of habit, the reasoning powers, instruction, religion, &c., than
through natural selection; though to this latter agency the social instincts, which afforded

23
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

A polêmica Carrel

Como facilmente se depreende da citação de Darwin, a


tentativa retrospectiva de imputação moral e política contra
a eugenia e o eugenismo, com vistas a desclassificá-la como
empreendimento científico próprio de seu tempo, facilmente
se torna bem mais complexa e confusa se o personagem a ser
criticado for alguém que não pode simplesmente ser tachado de
obscuro ou de embusteiro da ciência! Tomemos outro exemplo
a partir do contexto francês, isto é, Alexis Carrel (1873-1944),
prêmio Nobel e entusiasta do eugenismo. Outro caso similar é
o do geneticista americano Hermann J. Muller, prêmio Nobel
de 1946, comunista e franco partidário do eugenismo (cf.
TESTART, 1992). Para os propósitos deste texto, tomaremos
como exemplo o que a partir da última década do século XX
ficou conhecido na França como a ‘Polêmica Carrel’. Mas o que
foi a ‘Polêmica Carrel’?
Em 1991, o Front National (FN), partido francês de extrema-
direita e ultranacionalista, sob a direção de Jean-Marie Le Pen
– que por muito pouco não se tornou presidente da França nas
eleições de 2002 - lança uma campanha para fazer de Alexis
Carrel um herói, uma das referências ideológicas de base de
seu partido. Uma das principais bandeiras de Le Pen e de seu
partido é a proposta da adoção de uma política extremamente
restritiva aos imigrantes que vivem na França e à entrada de
novos imigrantes naquele país. Os Verdes – partido de esquerda
e de bandeira ecológica – se opunham vigorosamente a essa
proposta e aos ataques racistas de Le Pen aos estrangeiros. Em

the basis for the development of the moral sense, may be safely attributed”. Disponível em:
<http://darwin-online.org.uk/content/frameset?viewtype=text&itemID=F937.2&keywor
ds=galton&pageseq=420>.

24
REFLEXÕES SOBRE EUGENISMO À FRANCESA

resposta, o Front National redige um manifesto citando Carrel


como ‘o primeiro francês verdadeiramente ecologista’, uma
vez que segundo Carrel, os imigrantes poluíam a população
francesa.
Em 1992, Lucien Bonnafé e Patrick Tort – o primeiro
um famoso psiquiatra francês envolvido com o movimento
desalienista e proponente da psiquiatria de setor2; e o segundo
um filósofo, especialista em filosofia da biologia, especialmente
em darwinismo e teoria da evolução – publicam um livro
intitulado L’Homme, cet inconnu? Alexis Carrel, Jean-Marie Le Pen
et les chambres à gaz [O homem, este desconhecido? Alexis Carrel, Jean-
Marie Le Pen e as câmaras de gás (1992)]. Neste livro os autores
denunciam a posição defendida por Carrel: no livro L’Homme,
cet inconnu, originalmente publicado em 1935 e traduzido para
inúmeras línguas, Carrel

[...] recomenda o extermínio por gás de certas categorias de


delinquentes e de doentes mentais, revezando assim as teses
eliminacionistas do higienismo alemão, que foi a principal
referência do nazismo, e aquelas do eugenismo esterilizador
americano. Em 1941, Carrel retorna de Nova York para tomar a
frente de uma Fundação criada para ele pelo governo de Vichy
(BONNAFÉ; TORT, 1993).

Além disso, ainda em 1992, em outro livro – Une inconnue des


sicences sociales: la Fondation Carrel, 1941-1945 [Uma desconhecida

2 A chamada psiquiatria de setor consiste na setorização dos cuidados psiquiátricos, isto é,


a cuidar do doente na área geográfica próxima de seu domicílio. Pelo desenvolvimento
de estruturas intermediárias extra-hospitalares, ela permite assegurar a continuidade dos
cuidados, permitindo a manutenção das pessoas fora dos muros, constituindo uma ruptura
total com o asilo (considera-se o nascimento oficial da setorização em 1958, mas a primeira
circular ministerial francesa, dotando-a de um caráter de política pública de saúde, é de
1972).

25
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

das ciências sociais: a Fundação Carrel, 1941-1945], de Alain


Drouard – se mostram os vínculos de Carrel com o Partido
Popular Francês, pró-nazista, durante o período de Vichy.
A contundência e a gravidade dessa dupla denúncia
desencadearam em toda a França um movimento que levou à
retirada massiva do nome de Carrel de ruas, praças e mesmo
universidades. Foi assim que, por exemplo, a faculdade de
Medicina de Lyon, até então Alexis Carrel, foi rebatizada como
René Laënnec em 1996. Apesar disso, em 1993 seu nome ainda
figurava em cerca de setenta localidades e edifícios públicos por
toda a França, e que em fevereiro de 2001, segundo informe
do Mouvement contre le Racisme et pour l’Amitié entre les Peuples
(MRAP), seu nome batizava lugares públicos em pelo menos
22 comunas francesas, o que levou o MRAP a conclamar os
candidatos políticos a se empenharem pelo movimento de
retirada do nome de Carrel das ruas e lugares públicos dessas
comunidades. Paris foi a última cidade a retirar seu nome de
uma de suas ruas, o que só aconteceu em 2003. Ironicamente
essa rua situava-se próxima ao Monumento aos Mártires Judeus
do Velódromo de Inverno – em homenagem aos judeus retidos
pela guarda do governo de Vichy, antes de sua deportação para
os campos de concentração em 1942 (conhecido como Rafle du
Vel’d’HiV).

Quem foi Alexis Carrel

Alguns dos principais traços de quem foi Alexis Carrel já


estão suficientemente expostos, principalmente sua vinculação
26
REFLEXÕES SOBRE EUGENISMO À FRANCESA

ao regime de Vichy e ao partido pró-nazista, suas posições sobre a


câmara de gás e sua adoção para eliminação dos ‘biologicamente
indesejáveis’, ou ‘racialmente poluidores’. Consideremos,
porém, ainda outros pontos, bem como o epicentro de toda esta
polêmica, a saber, as páginas de seu livro L’Homme, cet inconu,
nas quais expõe suas posições eugênicas.
Alexis Carrel (1873-1944) foi um médico e biólogo francês,
natural de Lyon. Já na época de sua residência médica ele se
orientou para a área de cirurgia e se especializou nos estudos
sobre o problema da compatibilidade dos tecidos e as suturas.
Em 1904 mudou-se para os Estados Unidos, atuando como
pesquisador na Universidade de Chicago e no Instituto
Rockefeller (Rockefeller Institute for Medical Research), a partir de
1906 até 1939. Neste ambiente realizou uma série de cirurgias,
ainda de caráter experimental - o primeiro autotransplante renal
numa cadela em 1908, por exemplo; e a partir de 1910 dedicou-
se a aperfeiçoar as técnicas de anastomose vascular (uma
técnica até então inovadora para sutura dos vasos sanguíneos),
o que lhe permitiu aplicá-las para demonstrar a possibilidade
de funcionamento de órgãos reimplantados por um período
superior à média. Malgrado todas as precauções técnicas até então
conhecidas, os transplantes de órgãos de um animal em outro
não funcionaram por muito tempo. Carrel identificou assim uma
patologia de rejeição, que ele sugeriu ser um comportamento de
reação do organismo hospedeiro ao órgão transplantado. Seriam
necessários cerca de quarenta anos para a descoberta das drogas
imunodepressivas, que permitiriam conter o comportamento
orgânico da rejeição e tornar viáveis as esperanças da aplicação
das técnicas cirúrgicas de transplantes como prática terapêutica.
Foi por seu esforço conjunto no desenvolvimento da técnica da
27
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

anastomose vascular e sua aplicação eficaz aos transplantes de


órgãos que recebeu o prêmio Nobel de fisiologia ou medicina
em 1912. Nessa época tornou-se pesquisador pleno do Instituto
Rockefeller.
Com a eclosão da Primeira Guerra Mundial, em 1914, Carrel
voltou à França como médico voluntário, assumindo a patente
de Major. Foi nessa época que, em parceria com o bioquímico
inglês Henry Drysdale Dakin (1880-1952), desenvolveu e
aplicou em feridos em combate uma solução de hipoclorito de
sódio, diluída a 5%, como antisséptico eficaz (o antisséptico é
conhecido até hoje como líquido de Dakin) – o que lhe valeu a
condecoração da Legião de Honra, e foi a partir dessa época que
se iniciaram seus contatos com o Marechal Pétain, considerado
um herói da Primeira Guerra, o quao se tornou nos anos
seguintes, durante o Governo de Vichy, o presidente da França.
Terminado o conflito, Carrel retornou ao Instituto Rockefeller
e às suas atividades de professor e pesquisador sobre cultura de
tecidos e manutenção de vida in vitro de órgãos (o caso mais
famoso é o do coração de frango, que, segundo informações
desencontradas, teria se mantido vivo, e batendo, durante 28 ou
37 anos!). Lá permaneceu até sua aposentadoria, em 1938-39,
quando, a convite de Pétain, retornou à França para assumir
a direção geral da recém-criada Fondation Française pour l’Étude
des Problèmes Humaines (Fundação Francesa para o Estudo dos
Problemas Humanos), que ao fim da Segunda Guerra deixou
de existir e foi substituída pelo INED – Institut national d’études
démographiques (Instituto Nacional de Estudos Demográficos),
fundado em 1945.
Parece inevitável, neste contexto, tentar compreender um
pouco mais de perto como Carrel se insere nesta polêmica
28
REFLEXÕES SOBRE EUGENISMO À FRANCESA

em torno de sua personalidade e, por conseguinte, da eugenia


francesa, e como a alimenta. Para isto, apresentaremos agora
alguns dos elementos constituintes do “olho do furacão”, ou
seja, algumas das teses inerentes ao livro de Carrel e da Fundação
criada e dirigida por ele durante o Regime de Vichy.

O olho do furacão 1: o livro L’Homme cet


inconnu

O livro L’Homme cet inconnu foi originalmente publicado em


1935, e como já foi observado, traduzido em seguida para várias
línguas - 18 línguas, para ser exato. Afinal, não apenas é um
homem de ciências, mas uma figura mundialmente notável que
se põe a discutir e a propor soluções para o devido conhecimento
deste ente tão falado e tão mal conhecido: o homem. Se nos
tempos atuais Carrel parece desacreditado, não era desta má
fama que ele gozava nos anos trinta do século passado: cirurgião
notável e de reconhecimento mundial, prêmio Nobel de
fisiologia ou medicina (esta é a caracterização precisa do prêmio),
e pesquisador titular da Fundação Rockefeller – instituição que
teve papel capital em vários cantos do mundo, inclusive na
Europa e na França. André Pichot observa contundentemente
que a Fundação Rockefeller, se não teve papel capital no
desenvolvimento da eugenia, foi de importância significativa no
financiamento de muitos dos grandes eugenistas em diversos
países da Europa e mesmo nos Estados Unidos. Por exemplo,
ela foi uma das financiadoras da Associação Americana de
Eugenismo e da famosa Station for the Experimental Study of
29
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

Evolution de Cold Spring Harbor, dirigido por Charles Davemport,


um dos pioneiros americanos da genética e, certamente, o nome
mais representativo da eugenia norte-americana. A influência
desta fundação não foi exclusiva à eugenia, mas estendeu-se à
biologia como um todo, de tal modo que, como diz Pichot (2000,
p. 219), “diz-se às vezes que a biologia moderna é praticamente
sua criação”. Claro que em 1935 Carrel já não se encontrava
na dianteira nas pesquisas que lhe valeram o prêmio Nobel de
1913, e mesmo nessa época, estava já prestes a se aposentar, o
que aconteceu efetivamente em 1938.
Seu livro não representa o modelo francês de eugenia, se é que
se pode realmente falar algo assim, mas um modelo mais concorde
com o americano, em que ele fez toda sua carreira acadêmica e
científica. Deve-se observar, inclusive, que o eugenismo francês
nunca chegou a vingar realmente. Apesar de ter sido criada, em
1912, a Sociedade Francesa de Eugênica (também financiada
pela Fundação Rockefeller), esta não teve nenhum impacto em
solo francês, inclusive foi incapaz de propor qualquer legislação
eugenista. Houve vários motivos para isto, mas basicamente
três se impõem de modo decisivo: primeiramente, a devoção
chauvinista dos franceses ao pastorismo, isto é, às ideias de
Louis Pasteur sobre os vetores de transmissão de doenças e sobre
sua profilaxia; em segundo lugar; sua estreita ligação com o
lamarckismo e, por conseguinte, suas reticências ao darwinismo;
e por fim, a influência que sofreu do catolicismo e seu repúdio
institucional às medidas eugênicas (basta conferir a Encíclica
Casti connubii, de 1930, que reprova as pretensões eugenistas de
controle do casamento, considerado um direito natural, bem
como de controle dos nascimentos). Este, porém, é um elemento
que deve ser relativizado ao se comparar a história da eugenia
30
REFLEXÕES SOBRE EUGENISMO À FRANCESA

na França com a de outros países. O argumento da força de


oposição do catolicismo ao eugenismo certamente decorre do
fato de que os comentários tomam como contraposição o que se
passou em países onde o catolicismo não tem grande força, mas
sim, variações do protestantismo, como é o caso da Inglaterra,
dos Estados Unidos e da Alemanha. Contudo, ao se comparar
o contexto francês com o de países marcantemente católicos,
como o Brasil, vê-se que se trata de um argumento bastante
débil, pois no Brasil, a despeito do catolicismo, o movimento
eugenista foi forte o bastante para possuir associações, propagar
suas ideias por veículos de divulgação diferentes e mesmo com
campanhas, tendo sido aceito por indivíduos de convicções
partidárias antagônicas, e mesmo forte o bastante para impor
uma série de medidas legislativas eugenistas (BOARINI, 2003;
NALLI, 2003, 2005; STEPAN, 2005).
Assim, em linhas gerais, pode-se afirmar com bastante
segurança que o eugenismo francês foi mais propriamente
um higienismo social, ligado à questão da natalismo, isto é,
na adoção massiva de medidas de higiene da mulher grávida,
durante o parto, e do recém-nascido, com vistas a garantir bons
nascimentos, em grande parte motivadas pela queda das taxas
de natalidade (PICHOT, 2000; CAROL, 1995; TESTART,
1992, GAYON, 2006). Deste modelo Carrel parece realmente
não compartilhar: não porque fosse contrário ao programa do
natalismo, mas porque o concebia como limitado em relação
a propósito de conhecer o homem do modo mais completo
possível.
Tanto é assim que, a despeito de Carrel ser um católico
conservador e ligado aos movimentos integristas na França,
seu livro é reprovado pelos católicos franceses, como R.
31
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

Soupault, biógrafo de Carrel, observa: “Os católicos se


insurgem violentamente sobre três pontos [do livro L’Homme
cet inconnu]: a tese da desigualdade dos indivíduos, a seleção
eugenista, as comunidade laicas inspiradoras da moral pública.
Era inevitável” (SOUPAULT apud PICHOT, 2000, p. 175).
Obviamente, aos nossos propósitos não convém considerar o
livro como um todo, mas apenas as páginas dedicadas à defesa
de uma intervenção eugênica na tessitura social, a qual, como
veremos na seção seguinte, Carrel teria a oportunidade de tentar
aplicarna sociedade francesa sob o regime de Vichy, sabidamente
pró-nazista.
A leitura de L’Homme, cet inconnu sugere uma visão de
mundo e uma visão antropológica de alguém marcantemente
afetado por seu ofício. É como médico, e principalmente como
cirurgião especializado no trato e preservação dos tecidos e
dos ‘humores’ (numa referência indeterminada à medicina
hipocrática dos humores, que prevaleceu até meados do século
XX), que Carrel apresenta sua antropologia. Em suas linhas
gerais, é o homem concebido como um organismo complexo,
considerado prioritariamente a partir de sua fisiologia, a partir
da qual se poderiam deduzir também suas características
mentais, intelectuais e morais. É neste contexto que, para ele,
é importante compreender a constituição das células e seu
substrato químico (o que, ainda nos anos 30, não tem conexão
expressa com a estrutura do DNA e seu papel no mecanismo
da hereditariedade, só sugerida em 1944 pelos trabalhos de
Oswald Avery, e da estrutura bioquímica do DNA em 1953,
com o famoso trabalho de Watson e Crick). É também notória
sua caracterização do organismo humano e da constituição do
corpo como um organismo formado de tecidos e humores, o que
32
REFLEXÕES SOBRE EUGENISMO À FRANCESA

é uma constante em todo o livro e afeta mesmo sua interpretação


do adaptacionismo. É ainda aí que se coloca toda a sua reflexão
sobre a fisiologia como reguladora temporal e ao mesmo tempo
como determinante da condição adaptacionista do organismo
humano,, ou seja, as funções adaptativas intraorgânicas -
pela “regulação automática da composição do sangue e dos
humores” (CARREL, 1997, p. 278), e recuperação dos tecidos,
e a adaptação do organismo diante das ameaças microbianas) e
de adaptação extraorgânica, ou seja, a adaptação do organismo
às condições física do meio, e ao meio social:

A adaptabilidade é um caráter à cada vez dos elementos dos


tecidos, dos tecidos mesmos, e dos organismos inteiramente.
[...] Nós devemos observar que as funções adaptativas não têm
por substractum um sistema especial do qual nós poderíamos
dispensar quando não tivéssemos necessidade delas. Elas são a
expressão de todo nosso corpo (CARREL, 1997, p. 278-279).

É a partir deste ponto que Carrel começa, enfim, a expor


sua visão do homem, estreitamente ligada à sua leitura do
adaptacionismo, e de certo modo próxima e distante do eugenismo
(isto é, ainda que importante no tocante ao conhecimento
integral do homem, apresenta algumas perspectivas bastante
setorizadas, portanto, ainda não completas do homem):

Nós utilizamos muito menos que nossos ancestrais nossas


funções adaptativas. Depois de um quarto de século sobretudo,
nós nos acomodamos ao meio pelos mecanismos criados por
nossa inteligência, e não pelos nossos mecanismos fisiológicos.
A civilização científica nos deu os meios de conservar nosso
equilíbrio intraorgânico que são mais agradáveis e menos
laboriosos que os processos naturais. Ela tornou quase
invariáveis as condições físicas da vida quotidiana. Ela
padronizou o trabalho muscular, a alimentação, o sono. Ela

33
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

suprimiu o esforço e a responsabilidade moral. Por conseguinte,


ela transformou os modos da atividade de nossos sistemas
muscular, nervoso, circulatório e glandular. [...] Em suma, o
modo de vida engendrado pela civilização científica tornou
inúteis os mecanismos donde a atividade foi incessante, durante
milênios entre os seres humanos (CARREL, 1997, p. 278-282).

Destarte, ainda que seja inegável que a modernidade, a


‘civilização científica’, contribuiu - e de modo patente - para
a melhoria da qualidade de vida dos indivíduos, não se pode
também negar que ela também alterou estruturalmente nossa
relação animal, ou em linhas gerais, nossa relação de seres
adaptacionistas, com o meio no qual vivemos. A expressão
corrente para designar o meio no qual as espécies vivem e lutam
para sobreviver e se perpetuar, ou seja, o meio ambiente, perde
todo seu sentido de base. A revolução tecnológica, cultural,
e científica foi tão radical que adulterou completamente não
apenas o meio ambiente, transformando-o em algo plenamente
novo e totalmente diferente do meio natural, mas afetou
nossa inserção no meio e nossa relação vital com ele. Para
Carrel, estas alterações implicaram num comprometimento
radical de nossa capacidade adaptacionista, a qual, não
mais forçada a agir, tende a inibir-se, se não a desaparecer,
pela lei clássica (preconizada a partir do evolucionismo e
adaptacionismo lamarckista) do uso e desuso - uma vez que
não há condições para o esforço orgânico, intelectual e moral
dos indivíduos; que todo o ambiente foi transformado a
ponto de facilitar o acesso à comida, ao conforto, à proteção
das intempéries climáticas; que o homem não tem mais que se
portar como o bom selvagem (à moda do mito rousseauista)
e pode se locomover de maneira rápida e confortável entre
as localidades; que não há mais desafios nem à inteligência
34
REFLEXÕES SOBRE EUGENISMO À FRANCESA

nem ao vigor moral (concebidos aqui, obviamente, como


solucionadores de desafios e ‘superadores’ de obstáculos),
já que tudo lhe é suprido facilmente; e que a ciência e a
medicina moderna conferiram qualidade confortável de
vida e anos de sobrevida. O efeito de todos estes fatores é
um só, e extremamente deletério para o indivíduo e para o
homem em geral: um homem fraco, débil, sobrepujado por
sua própria escalada civilizatória e tendente a pagar o preço
com a própria vida e a da espécie:

É então evidente que as mudanças produzidas em nosso meio


pelas aplicações das ciências tiveram sobre nós efeitos evidentes.
Estes efeitos têm um caráter inesperado. Eles são bem diferentes
daqueles que se esperava, e que se podia legitimamente esperar
das melhorias de todas as sortes empregadas no habitat, o modo
de vida, a alimentação, a educação e a atmosfera intelectual dos
seres humanos. Como um resultado tão paradoxal foi obtido?
(CARREL, 1997, p. 68).
O homem devia ser a medida de tudo. De fato, ele é um estranho
no mundo que criou. Ele não soube organizar este mundo
para si, pois ele não possuía um conhecimento positivo de sua
própria natureza. [...] O meio construído por nossa inteligência
e nossas invenções não é ajustado nem à nossa medida, nem à
nossa forma. Ele não nos serve. Nós somos infelizes nele. Nós
degeneramos moral e mentalmente nele. São precisamente
os grupos e as nações onde a civilização industrial atingiu seu
apogeu que se enfraqueceu mais. São neles donde o retorno à
barbárie é mais rápido. Eles permanecem sem defesa diante do
meio adverso que a ciência lhes forneceu. Em verdade, nossa
civilização, como aquelas que a precederam, criou condições
onde, por razões que não conhecemos exatamente, a vida
mesma tornou-se impossível (CARREL, 1997, p. 74).

Citações como essas, por outro lado, não nos permitem ler
o livro de Carrel como um manifesto pessimista da civilização
moderna, da civilização científica de seu tempo. Claro que é
35
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

inegável que sua avaliação da modernidade em seu tempo é


marcada por certo pessimismo; mas ele não é uma exigência de
retorno a uma condição pré-moderna, de um pseudossaudosismo
de uma época que para ele já não existe. Perderam-se, ou melhor,
atrofiaram-se as aptidões adaptacionistas do homem, próprias
de ‘nossos ancestrais’, por causa do conforto, da comodidade,
das facilidades, da rapidez, e do domínio absoluto do meio, a
ponto de impedir que os mecanismos adaptacionistas ainda
exerçam suas funções. A seleção natural deixou de exercer sua
função, como ele diz; mas Carrel reconhece os méritos dos
avanços científicos, em especial, daqueles ligados à medicina e à
biologia humana (geralmente em crítica aos avanços no campo
das ciências físicas e químicas, que às vezes, ele simplesmente
chama de ‘ciências da matéria inerte’). No livro, as passagens que
sugerem este reconhecimento às ciências biológicas e seu papel
para o conhecimento integral do homem são constantes. Assim,
presenciam-se os elogios aos avanços em cirurgia e no melhor
controle dos riscos cirúrgicos às infecções, ou as referências aos
trabalhos de Pasteur (CARREL, 1997, p. 327):

As ciências biológicas nos desvelaram o mais precioso dos


segredos: as leis do desenvolvimento de nosso corpo e de nossa
consciência. É este conhecimento que nos dá o meio de nos
renovar. Enquanto as qualidades hereditárias da raça serão
intactas, a força e a audácia de seus ancestrais poderão se revelar
nos homens modernos. [...] A ciência, que transformou o mundo
material, nos deu o poder de nos transformar a nós mesmos.
Ela nos revelou o segredo dos mecanismos de nossa vida. Ela
nos mostrou como provocar artificialmente sua atividade, como
nos modelar segundo a forma que nós desejamos. Graças a seu
conhecimento de si mesma, a humanidade, pela primeira vez
desde o início de sua história, tornou-se mestra de seu destino.
Mas será ela capaz de utilizar em seu proveito a força ilimitada
da ciência?

36
REFLEXÕES SOBRE EUGENISMO À FRANCESA

É então que Carrel se põe a advogar em seu livro panfletário


as medidas que precisariam ser implementadas. O traço patente
de suas propostas é que elas não chegam a ser realmente
apresentadas em detalhes e de modo consistente, mas de maneira
débil, desordenada e pouco definida. Isto se pode facilmente
confirmar a partir de sua confrontação com eugenistas como,
por exemplo, o brasileiro Renato Kehl, que em seu livro Lições
de eugenia se esmerou em apresentar uma concepção clara,
ainda que controversa, de sua concepção eugênica do homem,
valendo-se das teorias da hereditariedade conhecidas e aceitas
nos anos 20 e 30 do século passado, isto é, reclamando, para sua
exposição, a teoria mendeliana, a teoria do plasma germinativo
de August Weismann, a teoria cromossômica de Thomas Hunt
Morgan e a teoria da seleção natural de Darwin – e, se não
bastasse isso, formulando uma série de propostas de intervenção
eugênica na sociedade (BOARINI, 2003; NALLI, 2003, 2005).
Neste sentido, é de se reconhecer que trabalhos como aqueles de
Renato Kehl foram bem mais consistentes do que o do prêmio
Nobel Alexis Carrel; no entanto, a proposta de Carrel é bastante
clara: não se deve ‘nivelar por baixo’ a população:

É necessário fazer uma escolha entre a multidão dos homens


civilizados. Nós sabemos que a seleção natural não exerceu
seu papel durante muito tempo. Que muitos indivíduos
inferiores foram conservados graças aos esforços da higiene e
da medicina. Que sua multiplicação foi danosa à raça. [...] Há
um único meio de impedir a predominância desastrosa dos
fracos. É a de desenvolver os fortes. A inutilidade de nossos
esforços para melhorar os indivíduos de má qualidade tornou-se
evidente. É muito melhor fazer crescer aqueles que são de boa
qualidade. É fortalecendo os fortes que se fornecerá uma ajuda
efetiva aos fracos. [...] No lugar de nivelar, como fazemos hoje,
as desigualdades orgânicas e mentais, nos as exageraremos e
construiremos os maiores homens. É preciso abandonar a ideia

37
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

perigosa de restringir os fortes, de elevar os fracos, e de fazer


assim pulular os medíocres (CARREL, 1997, p. 348-349).

É neste contexto de radicalização das diferenças, do


‘fortalecimento dos fortes’ contra a proteção dos medíocres,
que Carrel sugere a adoção e vê vantagens no que ele chama
de eugenismo voluntário (CARREL, 1997) - que não significa
algo como a divisão de eugenismo positivo e negativo, mas uma
espécie de clamor ao espírito, ao mesmo tempo individual e
coletivo, de abnegação e de sacrifício em prol da raça, dando-
se espaço ao fortalecimento dos mais fortes e os mais fracos
renunciando aos apoios que lhes são oferecidos com vistas a
garantir sua sobrevivência, mas que ameaçariam a existência
mesma da raça pelos indivíduos superiores. É um clamor ao
espírito de sacrifício (CARREL, 1997) que, se não voluntário,
poder-se-ia adotar, como forma mais econômica e racialmente
viável para o fortalecimento das aptidões adaptativas do homem
e seu vigor físico, intelectual e moral. Tal questão, praticamente
nas últimas páginas do livro, ele considera muito rapidamente,
mas de maneira suficientemente escandalosa “o problema não
resolvido da imensa multidão de deficientes e criminosos”,
que custam muito caro à população e para os quais as grandes
prisões e os grandes asilos não são soluções efetivas:

Os anormais impedem o desenvolvimento dos normais. [...]


Nós só faremos desaparecer a loucura e o crime a partir de
um melhor conhecimento do homem, pelo eugenismo, por
mudanças profundas da educação e das condições sociais.
Mas enquanto isto, nós devemos nos ocupar dos criminosos
de forma efetiva. Talvez se poderiam suprimir as prisões. Elas
poderiam ser substituídas por instituições menores e menos
custosas [...] Quanto aos outros, aqueles que mataram, que
roubaram à mão armada, que sequestraram crianças, que

38
REFLEXÕES SOBRE EUGENISMO À FRANCESA

despojaram os pobres, que enganaram gravemente a confiança


do público, um estabelecimento eutanásico, provido de gases
apropriados, permitiria dispor deles de forma humana e
econômica. O mesmo tratamento não seria aplicável aos
loucos que cometeram atos criminosos? (CARREL, 1997, p.
371, grifo nosso).

Este trecho, por si só, foi um dos principais fatores que


levaram à polêmica do início dos anos 90 na França, e culminou
numa massiva campanha de eliminação do nome de Carrel dos
espaços públicos em toda a França. Voltaremos a falar dele mais
adiante. Pelo momento basta, e podemos agora tecer algumas
considerações sobre a Fundação Francesa para o Estudo dos
Problemas Humanos.

O olho do furacão 2: a fundação francesa para


o estudo dos problemas humanos

É bastante conhecido o fato que Alexis Carrel tinha estreitos


laços com o Marechal Pétain já desde a Primeira Guerra
Mundial. Em 1938, Carrel se aposentou de suas funções na
Fundação Rockefeller e tentou, sem resultado, criar em Nova
Iorque a Fundação para o Estudo dos Problemas Humanos. Em
seu livro do qual expusemos alguns pontos na seção anterior
existem algumas páginas que sugerem a criação de um tal
instituto (CARREL, 1997, p. 344):

Nós sabemos que a solução dos problemas humanos é lenta,


que ela demanda a vida de muitas gerações de sábios. E que
há a necessidade de uma instituição capaz de dirigir de forma

39
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

ininterrupta as pesquisas donde depende o futuro de nossa


civilização. [...] A criação de uma tal instituição constituiria um
acontecimento de grande importância social.

Ou seja, já em 1935 Carrel concebia a criação de uma


instituição com tais finalidades, e o sucesso internacional de seu
livro parecia lhe permitir tal pretensão, mas ele só iria conseguir
realizar esse intento após seu retorno à França.
Dadas as suas ligações com o Marechal Pétain, Carrel
conseguiu a aprovação da criação da Fundação Francesa para
o Estudo dos Problemas Humanos, também chamada de
Fundação Carrel. A lei de sua criação, que é de 17 de novembro
de 1941 (publicada em diário oficial no dia 5 de dezembro do
mesmo ano), em seu art. 2º designa Alexis Carrel como seu
regente. Esta lei é complementada com a lei de 14 de janeiro
de 1942, que aprovou os estatutos e fixou a doação inicial de 40
milhões de francos. Convém mencionar aqui os dois primeiros
artigos desta lei, que vêm atender diretamente aos anseios de
Carrel já em 1935, no seu livro:

Artigo primeiro – A Fundação francesa para o Estudo dos


problemas humanos tem por objeto o estudo, sob todos os
aspectos, das medidas as mais apropriadas para salvaguardar,
melhorar e desenvolver a população francesa em todas as suas
atividades.
Ela é encarregada, em particular, de proceder em entrevistas
tanto na França quanto no estrangeiro, de estabelecer estatísticas,
de constituir uma documentação sobre todos os problemas
humanos, de equipar laboratórios, de pesquisar todas as soluções
práticas e de proceder a todas as demonstrações com vistas a
melhorar o estado fisiológico, mental e social da população.
Art. 2. – Para este fim:
1o Ela recebe subvenções públicas ou privadas, doações e legados
em dinheiro e em natura;

40
REFLEXÕES SOBRE EUGENISMO À FRANCESA

2o Ela assegura o financiamento das enquetes, das pesquisas


científicas ou práticas e dos centros de demonstração necessários
ao cumprimento de sua missão;
3o Ela consente subvenções em espécies ou em natura e préstimos
sem interesse às diversas associações e obras de utilidade social
cujo fim está em conformidade ao seu, assim como às pessoas
cuja atividade concorre para a realização de seu objeto. Ela
atribui encorajamentos e recompensas;
4o Ela assegura, em cada país, o concurso de delegados,
correspondentes e centros de informação (apud PICHOT,
2000, p. 220).

O curioso de tudo isto é que sua criação legal não foi


acompanhada de uma implementação burocrática adequada,
o que sugere fortes dúvidas quanto ao real valor de tal
empreendimento para o governo de Vichy, parecendo tratar-se
mais de uma cortesia entre dois velhos amigos que se admiravam
mutuamente. A prova disso vem do fato de que o governo
de Marechal Pétain ‘se esqueceu’ de disponibilizar um local
adequado para abrigar e instalar a Fundação. o que leva Carrel
a recorrer ainda uma vez mais à Fundação Rockefeller, que lhe
cedeu um imóvel em Paris para abrigar o projeto (PICHOT,
2000). Da mesma forma, é interessante notar que o descaso
do governo para com a Fundação acabou por permitir alguma
autonomia na composição de seus quadros, de modo a contar
com pesquisadores que colaboravam com o regime e mesmo
tempo acolher pesquisadores ligados à resistência. Segundo
algumas pesquisas, dada a autonomia da Fundação, a despeito da
mentalidade evidentemente racista de Carrel e de suas vinculações
política com o regime de Vichy, a Fundação acolheu bem mais
pesquisadores ligados à Resistência do que propriamente
colaboracionistas (DROUARD, 1992; ROSENTAL, 2004).
Este, porém, é um dado a ser visto com muito cuidado, pois não
41
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

se deve esquecer que, se a Fundação Carrel foi extinta logo após


o fim da Segunda Guerra e substituída pelo INED (Instituto
Nacional de Estudos Demográficos), Carrel mesmo só veio a ser
execrado no final do século passado (conta-se que, ‘por ironia
do destino’, foi expedida a ordem de sua prisão praticamente no
mesmo momento em que ele vinha a falecer em decorrência de
um infarto grave, sofrido alguns dias antes). Da mesma forma, é
preciso observar que não existe relação estreita entre racismo e
colaboracionismo, assim como entre antirracismo e resistência,
tanto é que se identificam na França casos de colaboracionistas
que não eram antissemitas e racistas, assim como se encontram
racistas e antissemitas que eram contrários ao jugo hitlerista
imposto aos franceses e admitido por Pétain. Afinal, a resistência
na França durante o Regime de Vichy e a ocupação nazista
foi um movimento complexo, formado por diferentes grupos,
e geralmente motivado por causas geopolíticas, com matizes
variados, inspirados por interesses pessoais e de grupo. Assim,
não há contradição direta da participação de vários membros
ligados clandestinamente à resistência durante o governo do
Marechal Pétain com a participação nos quadros da Fundação
Carrel, francamente eugenista e racista.
As principais frentes de trabalho da Fundação Carrel
ocuparam-se de demografia (com a participação de Robert
Gessain, Paul Vincent e Jean Bourgeois), de nutrição (Jean
Sutter3), de moradia (Jean Merlet) e das primeiras pesquisas
por sondagem na França (Jean Stoetzel); e há indícios de que
a Fundação pode ter influenciado, em sua origem, a lei que

3 ‘Curiosamente’, Jean Sutter trabalhou nos anos seguintes no INED e é o autor do n. 11


do Caderno do Ined, cujo título é l’Eugénique, em 1950, costumeiramente mencionado em
trabalhos como os de Pichot e Testart.

42
REFLEXÕES SOBRE EUGENISMO À FRANCESA

instaurou a medicina do trabalho, o certificado pré-nupcial


(lei de 16 de dezembro de 1942) e a caderneta escolar. Com a
libertação de Paris e a instalação provisória da IV República, sob
o governo do General De Gaulle, Carrel foi suspenso de suas
funções em 21 de agosto de 1944, a Fundação foi extinta e foi
dada a ordem de prisão a Carrel – ordem que não foi cumprida,
uma vez que ele morreu em 5 de novembro em sua residência.

Considerações finais

Obviamente, o traço mais patente do escândalo que se


formou em torno de Alexis Carrel foi sua afirmação um tanto
eufemística quanto à ideia de eutanásia e à possibilidade de se
empregarem câmaras de gás para eliminar criminosos, inimigos
políticos (afinal, o que mais se pode entender da expressão
‘enganaram gravemente a confiança do público’?) e loucos.
Enquanto eugenista, sua argumentação gira todo o tempo
apenas em torno da ideia da adaptabilidade diante do meio e de
degenerescência. Ele considera os avanços científicos, inclusive
os médicos, biológicos e higiênicos (no caso, a partir de Pasteur)
como avanços no momento, mas como um comprometimento
radical com a realização das potencialidades e da capacidade
adaptativa dos indivíduos, pois o meio ambiente transformado
artificialmente e de modo a facilitar confortavelmente a vida
humana não propicia mais o desenvolvimento humano pela
adaptação ao meio, o que, portanto, ele interpreta como traço
patente da degenerescência humana. O seu raciocínio comete
um erro fundamental contra toda a sua argumentação: ao tomar
43
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

o homem e o indivíduo humano como um ser adaptacionista,


Carrel considera o meio ambiente uma condição intocável da
realidade, devendo a relação do homem com ele ser a mais
passiva possível, apenas um movimento de reação às intempéries
naturais. Além disso, tal reação deve ser sempre uma espécie
de automodelagem do homem diante dos desafios do meio.
Carrel, ao admitir que o homem é um animal adaptacionista,
parece se esquecer de que ele é também um animal capaz de
transformar e processar seu meio de modo a moldá-lo às suas
necessidades, movimento transformador que ele interpreta
como sinal evidente da decadência e degenerescência humana.
Ora, tal ideia, mesmo em termos eugenistas, por mais polêmica
que seja, é ainda um equívoco, pois uma das marcas mais
patentes e menos consideradas da eugenia é seu esforço por
aprimorar e melhorar o homem que está por vir, o que significa
torná-lo um ente transformável, modelável e modificável. Tal
processo se poderia dar tanto por medidas legais e intervenções
políticas e governamentais (geralmente autoritárias) quanto na
sua atual versão mais ‘liberal’, como as medidas empregadas no
diagnóstico pré-natal e o aconselhamento de casais com fins
seletivos. Ademais, esse processo atenderia a velhos interesses
epistemocráticos (NALLI, 2003, 2005), presentes em médicos,
biólogos, geneticistas, ou mesmo em políticos e governos,
inclusive e principalmente os ditos democráticos, da primeira
metade do século passado, bem aos interesses ‘pseudoestéticos’
e preferências questionáveis de pais, como evidente sintoma da
força segregacionista que ainda perpassava as sociedades em
geral. Ora, a melhoria da condição humana pode ser buscada
tanto pela melhoria das condições ambientais da vida como
pelo refinamento da ‘cepa’, das características que se quer que
44
REFLEXÕES SOBRE EUGENISMO À FRANCESA

prevaleçam diante de outras. É esta significação fechada até


mesmo de muitos eugenistas que é o seu traço mais radical e que
volta à tona com os recentes avanços tecnológicos presenciados
a partir do último quarto do século passado, com os avanços
em biotecnologia, engenharia genética e nanotecnologia. É
muito neste sentido que se pode refletir sobre o enigmático e ao
mesmo tempo provocante título do livro publicado na França,
sob a organização de Jean Gayon e Daniel Jacobi, O eterno
retorno do eugenismo (2006). ‘Curiosamente’, foi no movimento
eugenista brasileiro que esta significação fechada se mostrou
de modo patente e consistente, pois no Brasil, eugenismo e
higienismo, ainda que movimentos distintos em vários pontos,
eram movimentos que comungavam de um mesmo ideal, a
ponto de muitos eugenistas também serem higienistas e verem
nas medidas higienistas medidas de melhorar o ‘haras’ humano
e social (evidentemente, as palavras ‘cepa’ e ‘haras’ são utilizadas
aqui à título de provocação).
Bem mais sério do que propriamente as atividades da
Fundação, que se mostraram de baixo impacto social e político,
é outro aspecto a ser considerado daquela declaração de
Carrel, em suas estreitas vinculações históricas: o emprego de
câmaras de gás sob o eufemismo da ‘eutanásia’. Ora, como já
é suficientemente público e notório, as câmaras de gás sob seu
eufemismo foram largamente utilizadas na Alemanha durante o
regime nazista e antissemita do III Reich; mas é preciso atentar
para um aspecto nesta ‘macabra coincidência histórica’: o livro
de Carrel foi publicado em 1935, e não temos como precisar
se ele teria feito acréscimos e atualizações nas edições que se
seguiram até sua morte em 1944. É possível que sim, mas não
temos como comprovar ou invalidar tal hipótese.
45
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

Hitler, como se sabe, tornou-se o chanceler do Reich em


1933 e o chefe maior do Estado em 1934. Em 28 de fevereiro de
1933, valendo-se do incêndio do Reichstag, ocorrido alguns dias
antes, como pretexto, Hitler assinou o ‘Decreto do Presidente
do Reich para a proteção do povo e do Estado’, cujo primeiro
artigo institui a ‘detenção de proteção’ suspendendo assim
todos os direitos civis e dando início aos primeiros campos de
concentração, dos quais o de Dachau foi não apenas o primeiro,
mas o exemplar do regime (ZÁMECNÍK, 2003). Uma das
principais finalidades dos campos e das menos consideradas de
maneira suficientemente clara ainda hoje é que tais locais não
se destinavam apenas aos judeus, mas a todos os considerados
inimigos do Reich e maculadores da raça ariana: os presos
políticos, os homossexuais, os ciganos, os padres, os Bibelforscher
(Testemunhas de Jeová), os eslavos e toda sorte de gente que
fosse encarada como indigna de viver. É assim que, já em
1934, Himmler pessoalmente se encarregou de determinar os
encarceramentos (função exercida por sua polícia) e o trabalho
forçado como formas de enriquecimento ilícito e, ao mesmo
tempo, como prática corrente de extermínio. Mas foi só em
primeiro de setembro de 1939 que o III Reich adotou uma
legislação única, criando assim seu programa de eutanásia,
que consistia em não somente autorizar, mas em implementar
um programa massivo de execuções por toda a Alemanha e
territórios ocupados.
As câmaras de gás só foram empregadas massivamente
a partir da implantação de um novo programa, numa nova
fase do programa de eutanásia, a saber, a partir da adoção e
implantação do programa da ‘solução final da questão dos
judeus’, na famosa Conferência de Wansee, em 20 de janeiro
46
REFLEXÕES SOBRE EUGENISMO À FRANCESA

de 1942. As práticas de fuzilamento empregadas até então já


não bastavam, e não se visava mais ao extermínio pelo trabalho
forçado, como inicialmente concebido. Originalmente criadas
para a execução rápida, menos dispendiosa - e por isso mesmo
mais ‘racional’ - dos prisioneiros soviéticos, as câmaras de gás
foram originalmente concebidas com câmaras hermeticamente
fechadas e conectadas a motores que lançariam grandes doses de
monóxido de carbono, asfixiando assim todos seus ocupantes.
Mas ainda era um sistema dispendioso. Certo dia, o SS Karl
Fritzsch, então chefe da guarda do Campo de Auschwitz,
percebeu os efeitos do gás Zyklon B (isto é, o nome comercial
do ácido cianídrico, utilizado como pesticida) sobre um de seus
guardas subalternos ao abrir acidentalmente uma lata contendo
os cristais do veneno. Em seguida, em 3 de setembro de 1941,
ainda em Auschwitz, realizou uma ‘experiência’, sob a supervisão
de Brigadeführer Richard Glücks, o inspetor dos campos de
concentração: numa instalação improvisada nos subterrâneos,
Fritsch encarcerou alguns prisioneiros de guerra soviéticos, pôs
uma máscara de proteção contra o gás e liberou no interior da
instalação os cristais do zyklon B. Em seguida mandou instalar
uma dessas câmaras em Mathausen para novos ‘testes’ contra
os prisioneiros soviéticos, e depois fez o mesmo em quase todos
os campos de concentração, sendo a maior delas instalada em
Auschwitz-Birkenau, e junto com elas, os fornos crematórios.
Teria Carrel, sob o Regime de Vichy e como seu colaborador,
antevisto tais práticas do regime nazista nos últimos anos da
guerra? Teria Carrel, ao contrário, sabendo dessas práticas,
inserido en passant tão bizarra sugestão nas últimas páginas de
seu livro-panfleto? É difícil precisar. Mas é inegável seu caráter
polêmico e escandaloso. Tais medidas não foram adotadas
47
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

em território francês, como é sabido, mas não é possível


negligenciar a Rafle du Vel’d’HiV, entre os dias 16 e 17 de
julho 1942, quando quase 13 mil judeus foram recolhidos e
encarcerados no Velódromo de Inverno, em Paris, para serem
primeiramente enviados aos campos de detenção de Drancy,
Beaune-la-Rolande, e de Pithviers, e em seguida deportados aos
campos de Auschwitz para serem exterminados. Por outro lado,
se as câmaras de gás não tiveram como fim dar cabo dos doentes
mentais , isto não quer dizer que, durante os terríveis anos de
guerra, eles tenham tido sorte melhor: estima-se que foram
vítimas do que se chamou na França de ‘extermínio brando’ ou
‘suave’, pelo qual cerca de 48 mil pessoas morreram de fome nos
estabelecimentos psiquiátricos franceses entre 1940 e 1945. Se
na Alemanha hitlerista os loucos foram eliminados nas câmaras,
na França sob Vichy eles foram eliminados pela fome, sem que
fosse ‘necessária’, neste país, qualquer deliberação governamental
para isto ou qualquer esforço no sentido de purificar a raça e
evitar a degenerescência (MICHINE, 1998). Bastou a bizarra
equação de descaso, com a eleição de prioridades diante de
tempos tão difíceis.

48
Soldados de todo o país: higienizai-
vos! A Liga Brasileira de Hygiene
Mental e as Forças Armadas
(1914-1945)
Durval Wanderbroock Junior

O primeiro quartel do século XX marcou uma série de


grandes acontecimentos na história da humanidade. A Primeira
Guerra Mundial mal tinha terminado quando as trombetas
anunciavam outros combates de iguais ou maiores proporções.
A harmonia e a tolerância tornaram-se lugares-comuns entre
aqueles que aspiravam à paz, ao passo que não passavam de
sentimentos vazios entre aqueles que da guerra dependiam para
seu enriquecimento.
Os fundamentos que edificaram o capitalismo estavam
corroídos. A crise mundial rufava seus ensurdecedores tambores.
A quebra da bolsa de Nova Iorque transformou em ‘anemia’ a
antiga ‘congestão’ econômica dos Estados Unidos. Ninguém
poderia passar indiferente a esses acontecimentos. Com a
guerra, toda neutralidade foi conduzida ao museu das palavras.
Nem por isso a economia deixou de se expandir de um país
imperialista a outro periférico.
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

Apesar da sua dependência em relação ao capital estrangeiro,


a crise aberta entre os países imperialistas alimentou os sonhos da
burguesia brasileira de consolidar-se como nação desenvolvida,
despertando o nacionalismo ufanista de vários setores sociais,
entre os quais a Liga Brasileira de Hygiene Mental1.
Os problemas sanitários estiveram na ‘ordem do dia’ para
o governo e os higienistas durante longo período. Pouco a
pouco o quadro das cidades foi redesenhado com novas cores.
A industrialização e a urbanização da cidade atraíram muitas
pessoas das zonas rurais, de outras regiões e de imigrantes, os
quais ampliavam o exército de desempregados em busca de uma
forma de sobrevivência. A ascensão do capitalismo significou
a mudança do polo produtivo do campo para a cidade e com
isso ampliou-se a concentração de força de trabalho nas zonas
urbanas.
Muitos operários brasileiros eram oriundos de classes não
proletárias, como pequenos agricultores falidos, comerciantes
arruinados nos negócios, escravos ‘livres’ e diversos tipos de
pessoas que, por força da situação miserável e da dificuldade em
conseguir um emprego em funções do setor público, ingressavam
nas fábricas para garantir uma forma de subsistir.
Além disso, a classe trabalhadora vivia em condições
precárias. A organização interna das cidades ainda não estava
preparada para receber aquela massa populacional. As ruas
pequenas, tortas, escuras e malpavimentadas foram aos
poucos se transformando e se adaptando ao novo contingente
populacional – mas não sem morosidade.

1 Doravante também chamada de Liga.

50
S O L DA D O S D E T O D O O PA Í S

A pobreza, as condições de vida, de moradia e de trabalho da


população formavam um quadro preocupante. Metaforicamente
falando-se, o ‘organismo social’, com baixa imunidade,
engendrava enfermidades perigosas, que, se não combatidas a
tempo, poderiam alastrar-se rapidamente, criando uma situação
endêmica.
Esses foram os problemas contra os quais as guarnições
do exército, por mais competentes que fossem, não poderiam
lutar. As epidemias, doenças e demais enfermidades desafiavam
a sociedade. A cada dia uma nova pessoa era afetada pelas
doenças. Os que as contraíam formavam um vasto contingente
moribundo, e a proliferação não precisava de outro aliado que
não a própria condição miserável em que a população vivia.
Nessa luta, o exército estava condenado à esterilidade e
à impotência. No lugar das armas de fogo surgiram armas
ideológicas, que alguns setores da sociedade empunhavam com
disciplina militar. Os novos ‘oficiais’ não saíram da Academia
Militar, eles foram educados nas faculdades de medicina. As
reivindicações não previram eleições diretas, nem melhores
salários, muito menos mudanças governamentais. O inimigo
foi outro: a doença. O movimento teve outro nome: higiene
mental.
Alguns higienistas, como Renato Khel, Plínio Olinto,
Mirandolindo Caldas, entre outros, passaram a localizar o
problema na ‘hereditariedade’, nas ‘raças inferiores’ e na
‘degeneração mental’ dos indivíduos. Os problemas nacionais
eram os principais alvos das discussões naquele momento
da história brasileira. Segundo os higienistas, as doenças da
população eram as causas- e não os sintomas - de uma enfermidade
51
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

social e econômica. O binômio pobreza-doença sugeria a


identidade de um campo social com outro, completamente
distinto, de natureza biológica.
A cidade crescia e se (des)organizava, porém havia um
matiz diferente, que parecia realçar um desarranjo na estética
da paisagem. Homens com um andar, trejeitos e indumentárias
excêntricas erravam pelas ruas, sem destino e sem lugar fixo
para viver. A ‘loucura’ abandonava a vida privada para ganhar
os espaços públicos. A doença mental entrava em cena.
Dentre os ‘doentes mentais’, muitos eram recém-chegados
que perambulavam pelas cidades, chamando a atenção das
autoridades, que percebiam esse fenômeno como um problema
a mais para resolver.
A ‘ordem’, o ‘progresso’, a ‘civilização’ e a ‘Nação’ dependiam,
na ótica positivista que orientava o pensamento dominante de
então, de uma organização sanitária para se desenvolver. Mas
isso não bastava. Era preciso avançar e corrigir outro problema
importante que, aos olhos dos higienistas, produzia um efeito
desestabilizador na ordem e na Nação: os doentes mentais. O
critério de civilização deslocou-se, assim, do aspecto objetivo
do ambiente físico para o aspecto subjetivo do homem. O
progresso da Nação não dependia somente da erradicação de
epidemias, mas também, e sobretudo, de uma mente sadia. A
doença mental começou a ser alvejada com o arsenal positivista,
segundo o qual a desordem deve ser atacada em sua verdadeira
fonte, necessariamente mental e moral.
Os médicos prosélitos do movimento pró-higiene mental
trabalhavam não só no atendimento, mas também nos estudos,
nas pesquisas e classificações dos doentes mentais, a fim de
52
S O L DA D O S D E T O D O O PA Í S

encontrar as causas de suas doenças e seus sintomas sociais.


Para tanto, precisaram desenvolver um espectro de conceitos
que respondesse ao problema nevrálgico dos diversos doentes
mentais, cuja existência preocupava as autoridades da época.
Nessa fundamentação ‘científica’ da doença mental não faltaram
associações da loucura com a desordem, o crime, o alcoolismo,
a raça, a falta de inteligência, a preguiça e tantos outros termos
que tipificavam o que os higienistas entendiam como obstáculos
ao desenvolvimento da Nação.
A concepção positivista da Liga Brasileira de Hygiene Mental
apareceu por meio da identificação da Nação como ‘organismo
social’ e pela defesa da ordem estabelecida como pré-condição
de progresso. As fronteiras entre saúde e doença no plano físico
foram se separando entre doença e saúde no plano mental.
A medicina ampliou seu raio de ação e a higiene mental foi
ocupando um papel preponderante na educação e consolidação
de hábitos higiênicos.
A Liga foi a primeira associação de medicina social criada
na América do Sul, em 1922, por obra do médico Gustavo
Riedel (1925). No seu interior habitavam distintas correntes
de pensamento. Entre elas havia pelo menos três formas de
os membros da Liga se identificarem. Como ressaltou Neto
(2001, p. 50), “a primeira estava impregnada de um cunho
normatizador de hábitos e costumes. A segunda assumia caráter
preventivista. A terceira, finalmente, era orientada por uma
lógica eugenista”. Embora não fossem exatamente opostas,
essas correntes de pensamento eram variações de um ideário
cuja lógica predominante era a de naturalizar os fenômenos
sociais. Embora a proposta de regeneração racial, sustentado
pela corrente eugenista, tenha sido predominante a partir de
53
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

1930 (REIS, 2003), a Liga mantinha em seu meio um forte


debate acerca das formas de resolver os problemas da Nação.
Ao lado do ‘aperfeiçoamento da raça’, uma de suas maiores
preocupações referia-se à prevenção de ‘fatores de degeneração
mental’, cuidados que estavam subordinados à saúde e ao bem-
estar da nação brasileira.
Naquele momento as forças armadas foram objeto de grande
atenção por parte da Liga, porquanto o mundo atravessava uma
preocupante etapa de guerras, crises e revoltas militares, que
sacudiam também o Brasil. O desenvolvimento da indústria
trouxe consigo também a preocupação com a mensuração,
já que a improvisada produção nacional aos poucos ganhava
soluções mais elaboradas e científicas, dando lugar aos números
e medidas. A engenharia foi a última palavra no desenvolvimento
tecnológico e a mensuração tornou-se um paradigma, fortalecida
com o advento da física. Era como se a ciência nada pudesse fora
da quantidade. Semelhante ‘clima’ influenciou os membros da
Liga, que procuraram também na mente humana um objeto de
medidas. Com a ajuda dos testes, como o Binet-Terman, a Liga
deslocou os critérios quantitativos da física e os transportou
para dentro do domínio humano (LOPES, 1931). Com isso
pretendia fazer dos testes o critério mais seguro para medir o
indivíduo. Como toda ciência comporta uma concepção de
homem, os testes não ficaram livres dessa determinação.
Era preciso então que estes instrumentos fossem submetidos
à prova da realidade. A tradução, criação, adaptação e
consolidação dos testes dependiam de sua utilização. Para isso, a
Liga precisaria resolver dois problemas: o primeiro, de natureza
técnica, era saber quais eram os melhores testes, seus limites e
alcances; o outro, de natureza social e econômica, era descobrir
54
S O L DA D O S D E T O D O O PA Í S

em quais domínios eles seriam mais bem aplicados. Embora a Liga


atuasse sobre uma constelação de espaços humanos, que passava
pela família, os tribunais ou a imprensa – para ficar só nesses – o
processo de seleção militar ocupou um papel nada desprezível
entre as atividades desenvolvidas pela Liga. O presente capítulo
é uma tentativa de compreender esse processo, durante o qual
médicos de vocação higienista, organizados na Liga Brasileira
de Hygiene Mental, procuraram prestar seus serviços às forças
armadas com propostas desenvolvidas no sentido de selecionar
seu contingente durante os idos de 1914 a 1945.
Como parte do movimento pró-higiene mental, a Liga nutria-
se de um ideário, uma orientação teórica e prática, custodiada
por uma concepção de mundo e de homem, com forte apelo ao
indivíduo e à hereditariedade como princípios de uma nação
saudável. Esse ideário, fruto das contradições históricas, teve
forte impacto na proposta de seleção militar, motivo pelo qual
se impôs a necessidade de descortinar esse fenômeno não a
partir das formalidades técnicas, mas sob a luz da história.

A seleção militar vista pela história

O método a partir do qual se analisou a proposta de seleção


militar pela Liga é tributário de uma concepção histórica
que procurou compreender o fenômeno a partir das relações
objetivas que ele estabeleceu com determinado contexto
histórico. O referencial teórico e metodológico utilizado sustenta
que o conhecimento humano, para além do esforço individual,
possui uma dimensão histórica, fundamentada nas operações
55
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

que os homens realizam no plano produtivo e em sua forma de


organização social.
As relações entre os homens dependem do desenvolvimento
alcançado pela sociedade em sua luta com a natureza pela
sobrevivência, com o fito de satisfazer suas necessidades.
Segundo o método aqui utilizado, nosso objeto não pode ser
pensado fora das relações que os homens estabeleceram entre si
em sua permanente luta por satisfazer suas necessidades. Assim,
os homens vivem sob determinadas circunstâncias históricas,
com as quais contraem certas relações que exprimem, por via do
pensamento, do conhecimento, da linguagem, etc., essas mesmas
relações, que correspondem ao grau de desenvolvimento e de
complexidade por eles alcançado em sua luta com a natureza
para satisfazer suas necessidades.
No marco desse gigantesco e complexo processo histórico,
procuramos localizar os esforços empreendidos por um pequeno
grupo social que expressou, por meio de suas atividades,
concepções e propostas, as contradições manifestas daquele
período. Uma dessas atividades se materializou nas páginas do
órgão denominado de Archivos Brasileiros de Hygiene Mental2
(Archivos Brasileiros de Hygiene Mental, na grafia de então), que
se transformou na revista oficial da Liga naquele período, no
interior da qual se encontram dezenas de informações sobre o
uso e as propostas com relação aos testes psicológicos.
A despeito dos fins para os quais os testes foram originalmente
criados, procurou-se entender como e por que eles foram
utilizados pela Liga no processo de seleção militar.

2 Doravante chamado apenas de Arquivos ou ABHM.

56
S O L DA D O S D E T O D O O PA Í S

Embora seja uma análise histórica, o trabalho procurou


não reduzir o objeto às condições que lhes são exteriores, tendo
o cuidado de permitir que os próprios membros da Liga se
manifestassem a propósito de suas atividades e aspirações.

A Liga no marco das guerras e revoltas


militares

Nem todas as guerras são iguais. Do ponto de vista


histórico, há guerras progressivas, justas, em geral defensivas,
já que embasadas no direito de um país oprimido se defender
ou se libertar da opressão de outro. Há, por outro lado, guerras
reacionárias, que servem unicamente para preservar a dominação
e a opressão sobre outro país ou região. Há, ainda, as guerras
de guerrilha, as guerras civis, as insurreições armadas, etc. As
guerras são confrontos entre grupos devidamente armados
com instrumentos de morte ou extermínio, com a finalidade
de derrotar o inimigo. As guerras variam segundo o tempo, de
modo que os métodos usados, a técnica, os procedimentos,
os regulamentos, os instrumentos, etc., dependem igualmente
das condições históricas. Diferente dos exércitos de Aníbal,
de Alexandre, o Grande, ou das infantarias alemãs do século
XV, a Primeira Guerra Mundial demonstrou uma capacidade
de destruição até então sem paralelos na história. Além da
economia, o capitalismo internacionalizou também as catástrofes
bélicas, numa profundidade até então desconhecida.
Países beligerantes de todo o mundo se debatiam em torno
da questão da guerra, que se avizinhava como um dos maiores
57
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

pesadelos já vividos pela humanidade. A iminência deste fatídico


episódio colocou, para a maioria dos países do mundo, a questão
da preparação de seus exércitos, quer para participar da guerra,
quer simplesmente para se defender de eventuais ataques.
No Brasil a situação do exército não era das melhores.
A preocupação com as forças armadas se expressava com o
orçamento destinado à contratação de pessoal. Basbaum (1986)
salienta que, no orçamento de 1907, 83% da verba do Ministério
do Interior e Justiça eram destinados ao pagamento do pessoal,
enquanto no Ministério de Guerra o percentual era 79%. Em
1914, no início da I Guerra Mundial, o deputado Carlos Peixoto
Filho perguntava, com espanto, às autoridades de então: “temos
um Exército que não é Exército?” (PEIXOTO FILHO, 1978, p.
353-354).
Além disso, o Brasil era sacudido por inúmeras revoltas no
seio do exército, tendo o ‘tenentismo’ como uma das expressões
mais avançadas do ponto de vista organizativo. Apesar disso,
explica Sodré (1976, p. 318, grifo do autor),

[...] o tenentismo, fenômeno típico de classe média, era muito


mais superficial em sua interpretação e muito mais modesto em
suas reivindicações. Começava por supor que tudo dependia
dos homens que estavam no poder, e que a simples substituição
deles levaria a resultados significativos. [...] O que mais feria
a classe média, sofrendo as consequências do agravamento a
que levava a política de concentração da renda [...], era a falha
eleitoral.

Com os graves problemas que sacudiam o país, a pequena-


burguesia ocupou o vazio de poder deixado pelo proletariado
ainda em formação e pela burguesia negligente. O ‘tenentismo’
foi esse fenômeno transitório que impeliu a pequena-burguesia à
58
S O L DA D O S D E T O D O O PA Í S

luta por reivindicações que até então eram insatisfeitas. Embora


se limitasse, estrategicamente, a reformar, e não pretendesse
revolucionar o regime, o ‘tenentismo’ preocupou os governantes
da época.
Ao findar a Primeira Guerra Mundial as coisas se
acomodaram, mas os resultados dos processos ‘intestinais’ pelos
quais passava o país nesse período só tiveram visibilidade depois
dos conflitos. Com a ‘poeira baixa’, as coisas começaram a se
acomodar, tendo-se como resultado o processo que desencadeou
a Revolução de 30.
Nesse processo, a classe operária, ainda desorganizada,
esteve ausente, portando-se de forma passiva e cumprindo um
papel apenas coadjuvante. Os propósitos desse breve retrospecto
servem unicamente para ilustrar a importância que tinha o
exército nesse momento, como força precípua que ajudou a
definir momentos decisivos na história do país.
Mesmo com o fim da Primeira Guerra Mundial as relações
entre os países continuavam tênues, a ponto de irromperem
novos conflitos. A pólvora dos canhões mal tinha se esvaído
em fumaça e as forças imperialistas já se preparavam para novos
combates. Às vezes a calmaria precede a tempestade e é em
tempos de paz que são preparadas as novas batalhas. O Brasil
não desprezou essa possibilidade. Três anos depois de assumir
o poder, o governo Vargas (1943, p. 249) já manifestava essa
preocupação, insinuando que,

[...] atravessa o Mundo uma hora particularmente inquieta,


cheia de ameaças e incertezas, que impõem às nações a obrigação
de preparar-se para enfrentar quaisquer eventualidades. Não
podemos, por isso, descurar do nosso aparelhamento bélico, e o

59
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

estamos processando ordenadamente, de acordo com as nossas


necessidades e recursos.

A Primeira Guerra Mundial deixou algumas lições


importantes. Uma delas é que não bastavam recursos bélicos
para vencer. A questão da unidade era vital para qualquer
iniciativa bélica, e as revoltas militares eram incompatíveis
com essa unidade. Era preciso unidade, coesão e preparação
das tropas, coisa que só seria possível mediante a inoculação
de hábitos cívicos e morais compatíveis com a formação de
um exército organizado. A Liga deu sua interpretação desses
hábitos. Chegara a hora da higienização das tropas. Como
um clamor, a Liga parecia manifestar: soldados de todo o
país, higienizai-vos!

A Liga presta seus serviços: é melhor prevenir


que remediar

As primeiras tentativas de implementar um atendimento


médico aos militares no Brasil data do fim do século XVIII,
quando começou a funcionar o primeiro hospital militar no país.
Até então, a assistência era prestada por religiosos nas Casas de
Misericórdia. Havia uma divisão de tarefas entre médicos. Uma
dessas tarefas era a do então chamado Físico-mor, encarregado
do controle da medicina; outra era a do Cirurgião-mor, com
poder similar em relação à cirurgia. Segundo Machado (1978, p.
26), “a separação entre médicos e cirurgiões era completa: nem
os físicos podiam exercer a cirurgia, nem os cirurgiões curar de
60
S O L DA D O S D E T O D O O PA Í S

medicina”. Tal terminologia só foi mudada após a proclamação


da Primeira República, quando então esse chefe de serviço
passou a ser chamado ‘Inspetor Geral do Serviço Sanitário
do Exército’, permanecendo esse nome até 1904, quando “os
diretores passam a ser aludidos unicamente pela sua patente
militar, modelo vigente até a atualidade” (TOLEDO, 2006, p.
18).
Por volta de 1816 há uma regulamentação do corpo de saúde
de apoio às tropas e em 1851 surge um programa de admissão de
médicos; mas foi só em 1933 que foi criada a Escola de Saúde
do Exército, que, além dos serviços de atendimento, também
pressupunha o caráter de ensino, regulamentando ainda que
somente por intermédio de concursos se poderia fazer parte do
corpo de saúde (TOLEDO, 2006).
Se em 1867 houve uma reorganização do serviço de saúde
para auxiliar as tropas na guerra contra o Paraguai, depois da
Primeira Guerra Mundial essa necessidade era muito mais
urgente e necessária. Desta vez, entretanto, foi a Liga quem
ofereceu seus serviços às forças armadas brasileiras. Ela o fez,
mas - como não poderia ser diferente - do ponto de vista médico-
higienista. A preocupação neste período consistia mais em
preparar soldados disciplinados e obedientes do que em realizar
cirurgias em feridos em combate. A reorganização do exército
dependia, em última instância, de serviços de prevenção, seleção
e higienização moral. Para a Liga, antes do corpo, era a mente
o principal objeto de seus cuidados, principalmente porque ela
entendia as atuais guerras como “guerras de nervos” no curso
das quais “muito se vale da psicologia como arma ofensiva”
(BICUDO, 1944, p. 64).
61
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

Não que, por estar preocupada com a mente do homem, a


Liga desprezasse os conflitos bélicos espalhados pelo planeta;
ao contrário, guardava especial preocupação por esses conflitos,
mas os interpretava na perspectiva médica, analisando seus
reflexos na mente e suas consequências psíquicas. Como
assinalou Campos (1925, p. 92),

[...] se em tempo de paz, as circunstancias próprias à profissão


militar constituem uma pedra de toque para os psicopatas, em
tempo de guerra as emoções violentas, a fadiga física e mental
em constante acúmulo, os modernos meios de destruição, ainda
mais favorecem a sua eclosão.

Analisando os últimos conflitos bélicos que ocorreram no


planeta, a Liga aplicava seu crivo higiênico e os cuidados que
deveriam ter as forças armadas na preparação das tropas para
evitar certas enfermidades mentais que se abatiam sobre os
militares. Tais enfermidades, no entanto, não eram as mesmas
das guerras antigas. Elas apareceram a partir do que a Liga
considerava ‘guerras modernas’, realizadas principalmente
no marco das guerras austro-prussiana e franco-alemã. Desta
forma,

[...] o flagelo da guerra, depois das recentes invenções,


revelou-se outrossim, mais que antigamente, fator de
distúrbios mentais até entre os não combatentes, pela
possibilidade de ataques aéreos ou de artilharia de grande
alcance às cidades abertas, o que entretém forte tensão
emotiva durante semanas e meses. Findo o conflito
armado, chega a vez das múltiplas dificuldades novas da
vida inerentes à fase de pós-guerra, resultando ainda daí
desadaptações e psicoses entre os frágeis de mentalidade
(TOULOUSE; TARGOWLA, 1925, p. 169).

62
S O L DA D O S D E T O D O O PA Í S

As guerras, portanto, significavam o acréscimo de novas


enfermidades mentais, as quais a Liga deveria estudar e para
as quais propunha os mesmos métodos de profilaxia. Como
afirmou Vianna (1925, p. 176), “hoje, ao lado da profilaxia física,
existe a profilaxia mental, cuja importância as perturbações
trazidas pela grande guerra vieram pôr em pleno relevo”.
Para a Liga importava, antes de tudo, entender quais tipos
de enfermidade mental se abatiam sobre os soldados antes,
durante e depois das guerras, para saber qual tipo de tratamento
endereçar para cada etapa determinada.
Durante os conflitos, vários estudos foram desenvolvidos.
Cada guerra trouxe enfermidades diferentes e cada função na
tropa concorria para uma ‘enfermidade’ distinta. Na maioria dos
casos, não obstante, as enfermidades apareciam sob a rubrica de
‘degeneração mental’. Como afirmou Campos (1925, p. 91),

[...] no que respeita à discriminação diagnóstica dos transtornos


mentais verificados no soldado enquadram-se sobretudo
na degeneração mental – na psicose alcoólica, na demência
precoce, na psicose maníaco-depressiva e na epilepsia. Os que
ocorrem entre os oficiais, filiam-se principalmente a paralisia
geral, a paranóia e estados paranoides, e a psicose alcoólica.

Se todas as patologias eram abarcadas pela denominação


de ‘degeneração mental’, na maior parte dos casos ela aparecia
acompanhada do álcool como principal ‘ingrediente’, e, dentre
seus ‘usuários’, os oficiais pareciam ser os mais inclinados.
Na guerra russo-japonesa, por exemplo, os excessos alcoólicos
concorriam com 7,5% dos casos de psicose entre os praças e com
30%, entre os oficiais, enquanto na Primeira Guerra Mundial
63
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

predominaram os casos de alcoolismo agudo (CAMPOS,


1925).
Em geral, a medida contra a utilização do álcool era a
repressão ao seu consumo, com ênfase dada pela Liga aos
processos psíquicos relacionados a esse problema social.
Das doenças psíquicas relacionadas ao álcool, uma chamou
a atenção da Liga, por ser algo novo, embora não estivesse
necessariamente entre as degenerações mais graves. Como
anunciou Campos (1925, p. 92),

[...] na fase da luta nas trincheiras, consecutivamente ao emprego


dos explosivos em forte carga, surgiram as chamadas psicoses de
guerra, verificando-se, desde logo, que, pelo prognóstico benigno
e rápido tratamento, sem internações, muito se afastavam das
psicoses ordinárias.

Entre todos os fatores que desencadeavam as degenerações


mentais a Liga destacava três principais. O primeiro deles eram
as causas predisponentes, determinantes e ocasionais; o segundo
correspondia às infecções ou às intoxicações; o terceiro eram
as causas que, insuficientes por si mesmas para determinar a
doença nos indivíduos resistentes, poderiam desencadeá-las nos
predispostos (TOULOUSE; TARGOWLA, 1925). Por essa razão,
as causas mais importantes para a Liga eram as ‘predisponentes’,
que, segundo assialavam, “encontram-se em todas as doenças ou
intoxicações que, acometendo os genitores, possam ser causa de
degeneração nos filhos” (TOULOUSE; TARGOWLA, 1925, p.
169).
Aí residia a principal preocupação da Liga, pois não se tratava
somente de cuidar das doenças ‘ocasionais’ que assaltavam os
64
S O L DA D O S D E T O D O O PA Í S

soldados durante a guerra ou daquelas causas ‘determinantes’


que provocavam alterações mentais. A partir de uma orientação
eugenista, que atribuía a causa dos problemas a elementos
provenientes de forças hereditárias, a Liga julgava que era preciso
entender quem eram os ‘predispostos’, inquiri-los do ponto de
vista hereditário, examiná-los em suas antecedências familiares
e constatar seus precedentes ‘morais’ para que o exército não
fosse saturado de degenerados. Se com os imigrantes o perigo
poderia vir de fora, no exército o perigo era ainda maior, pois
não somente estava ‘dentro’, mas também armado.

A seleção militar pelas mãos da Liga

A seleção dos soldados, então, tornou-se um problema de


primeira grandeza e o exame para a depuração do exército se
tornou uma tarefa de importância capital. A hereditariedade
deveria ser investigada. Assim, “ao médico torna-se possível, por
ocasião do registro de incorporação, verificar detalhes relativos
aos antecedentes hereditários e pessoais dos soldados, assim
como certos estigmas psíquicos e mentais” (CAMPOS, 1925,
p. 95).
Parte da influência desses exames psicológicos era
proveniente da França, país no qual a Liga se nutria quanto
aos procedimentos de investigação hereditária. A esse respeito,
assinalou Campos (1925, p. 96),

[...] no exército francês, uma circular de 1913, determina o


exame psíquico dos indiciados, preventivo do conselho de

65
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

guerra, sempre que haja dúvidas sobre sua integridade mental,


ou em virtude das circunstâncias em que forem cometidos os
crimes, ou ainda em atenção à existência de certos antecedentes
pessoais e hereditários.

Tais exames ainda não eram realizados no Brasil, o que


se tornou motivo de lamentações por parte da Liga, que não
encontrava outra opção para a seleção dos candidatos a não
ser esses exames. Como se queixou Campos (1925, p. 96), “no
nosso Código de Organização Judiciária e Processo Militar,
não há dispositivo expresso a respeito do exame psíquico dos
delinquentes”, o que explicava até certo ponto “a frequência
dos casos de alienação mental entre os sentenciados”. Os
‘delinquentes’ a que se referia a Liga eram os militares acusados
de algum delito no exército. Caso fossem considerados doentes
mentais, a proposta da Liga era que passassem das mãos do
Conselho Militar para as dos psiquiatras da Liga (CAMPOS,
1925). Com isso, franqueavam um lugar no exército para
julgarem os considerados doentes – portanto, inculpáveis – e
aqueles que deveriam ser condenados. O exame psicológico,
neste caso, era o principal instrumento por meio do qual a Liga
propunha decidir quem eram os sujeitos investigados e quem
deveria tutelá-los. Uma vez realizado esse exame,

[...] a título preventivo, por ocasião do inquérito policial


militar, evitar-se-ia de um lado a condenação dos alienados que
nenhum alcance repressivo ou disciplinar pode ter, e de outro, a
instauração inútil do conselho para julgar indivíduos isentos de
culpabilidade, em face do próprio Código Penal Militar (art. 27)
(CAMPOS, 1925, p. 96).

O critério de culpabilidade do acusado, portanto, era


relativizado pela Liga, pois se tratava, antes de tudo, de
66
S O L DA D O S D E T O D O O PA Í S

determinar o estado mental do indivíduo. Conforme ressaltou


Carrilho (1925, p. 137-138),

[...] o velho erro de punir de acordo com as proporções do crime


e as errôneas fórmulas contidas nas tarifas das penas, segundo as
quais a tal delito deve corresponder tal tempo de ‘sequestração’,
terá, assim, que ser substituído por esse outro critério, o da
individualização que encontra nos meios e na finalidade da
profilaxia mental o seu mais formal elogio.

Com esse critério, a Liga pleiteava seu lugar no processo de


acusação de algum ‘delinquente’, ganhando seu espaço também
na lei e nos processos criminais. Assim, estaria garantindo sua
função como parte do Estado, ajudando a selecionar aqueles
que deveriam ser encarcerados na prisão e os que mereciam
outro tipo de encarceramento: o hospício.
Como no Brasil ainda não estava regulamentado este tipo
de exame, a Liga se inspirava nos procedimentos da França
para tentar implementar no Brasil pelo menos mecanismos
que garantissem que os antecedentes dos candidatos fossem
assegurados pelo governo ou pela prefeitura. Ao lado disso,
manter-se-iam os exames psicológicos para total segurança de
que nenhum soldado ingressaria mentalmente comprometido.
Recomendava-se, por isso, além do exame rigoroso, “a exigência
de um atestado do prefeito da localidade de procedência
do voluntário de que a notoriedade pública não lhe atribui
nenhuma enfermidade mental” (CAMPOS, 1925, p. 95).
Na aparência, o que pretendia a Liga era afrontar o problema
da doença mental, mas fazê-lo criando um marco de segurança
que impedisse pessoas com predisposição à doença mental de
ingressar nas fileiras do exército. Na essência, porém, o que os
67
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

higienistas pretendiam mesmo era que esse atestado mental


fosse expedido não pela prefeitura, mas pela própria Liga – daí a
importância do ‘exame mental rigoroso’ como procedimento de
seleção dos militares. Mas, o que queria evitar a Liga com esses
procedimentos seletivos?
A primeira questão está relacionada à preocupação com
um contingente de ‘doentes mentais’ que pudesse debilitar
o exército, fragilizando seu principal fator: os soldados. Os
‘distúrbios mentais’ eram frequentes entre as tropas, e a Liga
queria evitar que esses distúrbios tomassem conta de todo
o contingente. O processo seletivo, neste caso, era essencial
para transformar o exército em um ‘organismo’ forte e sadio;
e foi nos Estados Unidos que a Liga buscou sua inspiração
para aplicar os testes psicológicos no exército brasileiro.
Comentando os resultados da aplicação de testes nos
Estados Unidos, Roxo (1925, p. 8) assinalou que,

[...] no exército americano basta que haja qualquer pequeno


defeito sob o ponto de vista mental ou nervoso, para que
desde logo o indivíduo seja eliminado, e por este processo
durante a grande guerra 680.000 homens foram tirados das
fileiras.

Os defeitos a que se referia o autor eram de ordem hereditária,


como se a guerra afetasse principalmente os predispostos.
Como afirmou a esse respeito Pacheco e Silva (1925, p. 28),
“os indivíduos que participaram da guerra tornaram-se
excessivamente predispostos e não estão, na maioria das vezes,
em condições de resistir ao esgotamento físico exigido pela
concorrência vital em nossos dias”.
68
S O L DA D O S D E T O D O O PA Í S

Os problemas mentais são vistos, nessa perspectiva, como


causas, e não como efeitos da guerra. Determinados indivíduos
estariam limitados a exercer funções militares em que seriam
submetidos a situações ante as quais sua ‘predisposição’
conspiraria contra seu equilíbrio psicológico. A contradição
era que não se poderia responder se os transtornos psicológicos
seriam as causas ou os efeitos da guerra.
A Primeira Guerra Mundial não deixou de oferecer
pretextos para que a Liga se empenhasse na aplicação dos testes
ao exército. A própria entrada do Brasil no conflito exigiu
atenção redobrada da Liga às forças armadas. Como recordou
Lopes (1925a, p. 161), “a grande guerra veio das múltiplas
confirmações do valor prático da psicologia experimental, para
a seleção dos conscritos, sendo notáveis os trabalhos realizados
a respeito”.
Assim, buscaram apontar os países em que os testes tiveram
bons resultados para justificar por que eles deveriam ser
aplicados também no Brasil, explicando que “coube ao exército
dos Estados Unidos, em 1917, demonstrar a exequibilidade
e as vantagens práticas do exame psíquico sistemático dos
conscritos” (CAMPOS, 1925, p. 94). A eleição dos Estados
Unidos como modelo não se dava somente pelos méritos na
aplicação dos testes. Além de ser o país que recebeu o apoio do
Brasil durante a guerra, os Estados Unidos eram uma referência
enquanto país beligerante. O orientação norte-americana, longe
de ser um parâmetro de doutrina de combate defensivo, era uma
filosofia de combate ofensivo, com a clara finalidade de atacar o
inimigo, ao invés de defender-se dele. Mas, que teste era usado
nos Estados Unidos que foi capaz de apresentar semelhantes
‘vantagens práticas’? Campos (1925, p. 94), explica que,
69
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

[...] por meio de testes, organizados segundo uma modificação da


escala de Binet-Simon, rapidamente é feito o exame de centenas
de homens, procedendo-se imediatamente ao exame individual
dos que apresentam situação psíquica muito inferior à média,
cerca de 2 a 3%. Do resultado deste exame dependia a exclusão
ou a inclusão num batalhão de desenvolvimento.

Entenda-se por ‘exclusão’ e ‘inclusão’ o processo mediante


o qual eram ‘excluídos’ os ‘predispostos’ e incluídos aqueles
considerados intelectualmente superiores. Para compor o
‘batalhão de desenvolvimento’, a Liga imprimia no exército
o processo de ‘depuração social’, elegendo os mais aptos para
as funções de oficiais e excluindo os que considerava que
integrariam o ‘batalhão’ de degenerados.

A higiene mental na manutenção da ordem


militar

O que, efetivamente, os testes queriam diagnosticar? Que


tipos de conduta a Liga queria evitar no exército, que lhe
cobravam tamanha responsabilidade? Que tipos de distúrbio
os testes foram chamados a denunciar? Nesse ponto o ideário
higienista é descortinado, revelando sua adesão à ideologia da
classe dominante da época e indicando claramente atrás de que
tipos de ‘distúrbio’ a Liga estava. Como explica Campos (1925,
p. 96-97), “os testes empregados informam não só sobre o bom
senso, como também sobre a compreensão mais ou menos justa
e rápida das ordens recebidas, sobre o espírito de iniciativa e de
decisão”.
70
S O L DA D O S D E T O D O O PA Í S

Deixemos de lado se há ou não alguma possibilidade


de um soldado agir com ‘bom senso’ no período de guerra.
O que importa nessa definição é o que a Liga assinala
como ‘compreensão rápida das ordens recebidas’, pois isto
constitui o cerne da questão para a qual os testes deveriam ser
empregados.
O que a Liga propunha testar, neste caso, era a possibilidade
de o soldado se rebelar contra o comando dos oficiais,
comprometendo o que se considera o principal alicerce das
forças armadas: a disciplina e a hierarquia. Era esse ‘espírito
de reação’ que a Liga estava interessada em medir, tanto que
entre os distúrbios que caracterizava como os mais perigosos
no exército encontravam-se “o abandono do posto, a deserção,
a insubordinação, a inutilização de armas” e, finalmente, a
‘rebeldia’, ‘degenerações’ que a Liga chamava de “reações
mórbidas” (CAMPOS, 1925, p. 95-96). A preocupação,
portanto, era que não houvesse o que em linguagem militar
costuma-se chamar ‘rebelião de base’. São essas rebeliões o que
a Liga chamava de ‘distúrbios’, e elas ocorriam com frequência
nesse período. Entre os anos de 1906 a 1916, por exemplo, na
guarnição da Capital, a frequência de tais distúrbios atingiu 4,2
de cada grupo de 1.000 soldados do efetivo médio (CAMPOS,
1925). Essa constatação é corroborada pelo comentário de
Sodré (1976, p. 318), de que “em torno de rebeldias militares
esporádicas, para as quais gravitavam crescentes apoios de
inconformismo político, giram os acontecimentos internos mais
importantes”.
Assim, a preocupação da Liga era dar um marco de
contenção a essas ‘rebeldias’, usando os testes como medida
de ‘depuração militar’, não somente com o fim de excluir os
71
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

‘predispostos’, mas também para fazer sua divisão hierárquica,


elegendo os ‘aptos’ para funções de comando e os ‘aptos’ para
funções de subordinação. Assim, com os testes psicológicos
“faz-se ao mesmo tempo a classificação dos recrutas em diversos
grupos, o que facilita a escolha dos que têm aptidão para oficial”
(CAMPOS, 1925, p. 96).
Era a lógica segundo a qual cada soldado certo deveria estar
no lugar certo. Uma vez eleitos segundo suas aptidões, os oficiais
já não mais precisariam se submeter aos testes psicológicos, pois
estaria provado que não possuíam determinações hereditárias que
os comprometessem no futuro. Como assinalou Campos (1925,
p. 95), “o exame periódico da oficialidade, como requisito de
promoção, bastaria para o afastamento desse inconveniente”.
A Liga estava interessada não somente em aplicar os testes nos
soldados, mas também em preparar os oficiais para assumirem
essa tarefa. A finalidade, como confirmou Campos (1925, p.
100), era “instruir o soldado, desenvolver-lhe a educação moral,
fortificar-lhe a coragem, inculcar-lhe o justo uso da iniciativa e o
sentimento da disciplina”. Selecionar era higienizar.
Com essa finalidade a Liga queria pôr em prática uma série
de medidas com o fim de auxiliar o exército. Uma delas era
criar um núcleo de assistência psiquiátrica ao soldado, formado
por pessoal especializado, tendo como principal tarefa a higiene
mental nos exércitos (CAMPOS, 1925). A outra medida foi
criar, na própria Liga, uma seção responsável unicamente
pelas questões militares. A formação, segundo a ‘Relação dos
Membros Titulares da Liga Brasileira de Hygiene Mental’, era
composta por professores universitários, membros do Exército,
Marinha e, naturalmente, médicos ligados à Liga.
72
S O L DA D O S D E T O D O O PA Í S

Com essa seção, de cujos membros a maioria pertencia às


Forças Armadas, a Liga criava em seu próprio seio o ‘Estado
Maior’ da Higiene Mental. Isso significava que, se membros
importantes das Forças Armadas estavam na Liga e a penetração
desta naquela seria fácil, estariam abertas as portas à prática
de higiene mental e, por isso mesmo, à inoculação do ideário
higienista também entre os soldados.
Destarte, questão que parece central é que a preocupação da
Liga estava associada, submetida e determinada aos interesses
das próprias forças armadas; ou seja, os soldados eram apenas os
meios pelos quais se poderia garantir a manutenção do exército
no país.
Como ‘braço armado do Estado’, o exército é praticamente
a última garantia de sobrevivência do regime burguês. Em
certo sentido, a Liga se colocava como a quinta coluna das
Forças Armadas, ajudando a promover não a saúde, mas uma
instituição, responsável, dentre outras coisas, pela guerra, tanto
interna quanto externa.
Além disso, a Liga não tomava como referência os exércitos
de países cuja filosofia central era a defesa, mas sim, países de
filosofia de combate ofensivo, países que se preparavam para a
guerra, não para a paz. Não estava no horizonte da Liga questionar
os motivos de tantas revoltas e crises no seio do exército, com
a possibilidade de sua dissolução, ao contrário, seus esforços
se dirigiam no sentido de reformar, manter e fortalecer essa
instituição, preparando seus membros para situações de guerra,
não de paz.
Essa perspectiva só pode ser entendida a partir das
contradições a que também os membros da Liga estavam
73
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

submetidos naquele período, no curso do qual o mundo


passava por uma forte crise que terminou na explosão de guerras
mundiais que colocavam em dúvida não somente o modo pelo
qual a sociedade organizava sua forma de produzir, mas também
as formas de defender essa organização, baseada na propriedade
privada dos meios de produção. Sem uma proposta de superação
dessa forma de produção, os membros da Liga limitaram-se a
garantir apenas a manutenção desse sistema e as forças militares
que o asseguravam.

74
A eugenia sob a lente de Lima
Barreto
Maria Lucia Boarini

Nas ciências naturais, com em outra qualquer, toda classificação


há de ser um produto do nosso espírito em função do nosso
poder de abstrair. Fora dele, ela não existe, não é. (BARRETO,
1919/2004).

Pensar a humanidade em determinada época examinando a


pintura, a literatura, a música, enfim, a arte produzida na ocasião,
tem revelado importantes aspectos da história não oficial. Além
do clássico estudo de Áries (1978), que buscou informações,
principalmente, no exame das pinturas renascentistas para
explicar a História social da criança e da família (título de sua obra),
há outros importantes estudos nesta linha de trabalho. A título
de ilustração destacamos o estudo de Nagel (1983) intitulado
Um modo de pensar a humanidade fazendo arte, o qual, entre outras
questões, afirma que a compreensão da arte enquanto produção
da vida de uma época exige o rompimento com as especializações,
a despreocupação com os métodos e técnicas ou o pertencimento
do artista à escola x, y ou z. Para essa estudiosa, a arte de
qualquer natureza existe vinculada à dinâmica da sociedade da
qual faz parte, o que significa dizer que a temática expressada
pela arte de uma época era a preocupação que estava ‘invadindo
a cabeça dos homens’ daquele momento, independentemente
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

da especialidade ou genialidade do seu criador. Outra instigante


reflexão sobre o papel da arte - no caso, a literatura - no processo
de humanização da história encontramos em Figueira (1995).
Esta autora recupera alguns literatos do século XVI e início do
XVII, tomando como questão principal para análise, o debate
que se travava nessa época do início do Mundo Moderno,
cenário dos grandes descobrimentos, e justifica a literatura
como recurso:

As relações entre a época histórica e aquilo que os seus


personagens pensam dela são relações muito mais complexas
do que a primeira vista parecem. Sobretudo, são muito menos
diretas do que tais historiadores parecem crer. Mesmo porque a
época não tem uma explicação do autor independente dele, já
que, sem ele, a própria época não tem explicação (FIGUEIRA,
1995, p. 47).

Ao tirar da penumbra “os pensadores que falam dos hábitos,


atitudes, habilidades, comportamentos, desejos, sonhos,
dores, prazeres e contradições que corporificam as relações
sociais” (NAGEL, 2006, p. 16) de sua época, estes autores, que
interpretam a arte como uma significativa forma de expressar a
vida, estimularam-nos a examinar algumas das ideias do escritor
brasileiro Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922)
contidas em algumas de suas obras de cunho memorialístico
produzidas nas duas primeiras décadas do século XX, período
de importante efervescência das ideias em prol da eugenia.
Lima Barreto, como é conhecido no campo da literatura,
fez-se reconhecido pelo seu indiscutível talento de escritor,
por seu gosto pelas palavras, por seu estilo crítico e polêmico
expressado em linguagem simples e fluente, bem como pelas suas
contundentes críticas aos aspectos burocráticos da sociedade
76
A EUGENIA SOB A LENTE DE LIMA BARRETO

brasileira. Apesar disso, são raros os estudos que o reconhecem


como um contestador dos pressupostos científicos que explicavam
as mazelas sociais como resultantes de fatores hereditários ou
justificavam as desigualdades sociais apoiados no paradigma da
ciência da natureza, tal como supunha o ideário da eugenia.
Neste particular ele é um tanto esquecido. É a interlocução deste
escritor com os cientistas da época, defensores da eugenia, que
nos propomos a recuperar, em parte, neste texto. Vale lembrar
que Lima Barreto não viveu o período áureo do movimento
eugenista no Brasil, se considerarmos como tal o 1º Congresso
Brasileiro de Eugenia, realizado no Rio de Janeiro em 1929,
pois sua morte ocorreu em 1922; porém ele deixou uma vasta
produção literária denunciando a discriminação racial subjacente
às explicações científicas inspiradas neste ideário, bem como
tantos outros questionamentos sobre orientações científicas
propostas na época para resolver problemas de natureza social -
problemas que, diga-se de passagem, permanecem fortalecidos
até os nossos dias. É esta vitalidade dos problemas sociais,
os quais atravessaram incólumes o século XX e cuja solução
científica era vista com desconfiança por Lima Barreto, que nos
autoriza a afirmar que a literatura produzida por este escritor
é uma obra clássica e histórica, no sentido apresentado por
Leonel (1998, p. 88):

Pode-se dizer que as obras clássicas são tão mais históricas


quanto mais colaboraram para tornarem obsoletas as ideias,
os sentimentos e os personagens de sua época e quanto menor
quantidade de presente, de passado e maior quantidade de
futuro contem em si. É por traduzirem o movimento da
sociedade em sua profundidade mais recôndita que nos fazem
pensar em nós mesmos, por mais afastada que estejam do tempo
e [...] das borrascas em que vivemos.

77
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

Lima Barreto e sua época

O Brasil, desde a segunda metade do século XIX, vinha


dando sinais da sua transformação em direção a uma sociedade
fundamentada no trabalho livre e na produção de bens em
grande escala por meio da industrialização. Tanto a abolição da
escravatura (1888) quanto a proclamação da República (1889)
foram acontecimentos significativos na vida nacional brasileira,
à medida que impulsionaram o primeiro surto industrial, que,
por sua vez, desencadeou a organização do trabalho livre e,
com a queda do Império, inaugurou a experiência de um novo
regime político, o republicano. Desde esse período não apenas
apontou-se para a necessidade de modernização da sociedade
brasileira, mas acirraram-se as contradições próprias de uma
organização socioeconômica de caráter burguês, exigindo, em
decorrência, que o novo governo, os políticos e os segmentos
progressistas da sociedade apresentassem solução.
Os problemas eram dos mais variados matizes, a começar
pela crise em seu sistema de produção decorrente da falta
de mão-de-obra qualificada em contraposição ao grande
contingente de pessoas pobres desempregadas, que, em busca
de trabalho, amontoavam-se no meio urbanizado, em casarões
em condições precárias. Sem saneamento básico e em meio a
muita sujeira, a proliferação de doenças endêmicas e epidêmicas
como a febre amarela, a malária, a varíola, a tuberculose e tantas
outras era comum nas cidades em processo de urbanização. Em
meio a tantos problemas, o uso abusivo de bebidas alcoólicas
e o índice ascendente de criminalidade que se constatava na
ocasião agravavam o rol das questões sociais que tiravam o sono
da sociedade brasileira. Ora, esta situação em nada favorecia
78
A EUGENIA SOB A LENTE DE LIMA BARRETO

a construção do Brasil no sentido de transformá-lo em uma


sociedade moderna, a exemplo dos países europeus e da América
do Norte. Assim, o debate sobre a identidade nacional tornou-
se tema obrigatório no cenário da intelectualidade brasileira,
envolvendo cientistas, artistas, políticos, profissionais liberais e
outras categorias. Modernizar o Brasil e transformá-lo em uma
grande Nação eram a meta e o discurso hegemônico da elite
intelectual brasileira nas primeiras décadas do século XX. Para
alcançar este objetivo foram inúmeras e variadas as propostas de
encaminhamento, e nomes ilustres se apresentaram dispostos
a assumir tal tarefa. ‘Grosso modo’, para resolver a falta de
mão-de-obra qualificada, a saída encontrada foi o incentivo à
imigração europeia; e para ‘salvar o país doente’ apresentaram-
se os homens de ciência, sobretudo os médicos , determinados
a levar avante esta nobre ‘missão política’. Vale lembrar que
é deste período, final do século XIX e início do século XX, o
desenvolvimento da ciência microbiana que elucida a conexão
entre micróbios e doença, revelando a origem biológica da
doença. As ciências naturais registram significativos avanços, e,
mediante o desenvolvimento tecnológico (o microscópio, por
exemplo) viabiliza-se a microbiologia. Os avanços da ciência
biológica, imbricados às necessidades da industrialização e
da urbanização já consolidadas na Europa, necessariamente,
redirecionaram as políticas de saúde. Concomitantemente
desenvolve-se a antropometria, que se constitui em uma serie
de técnicas para medir, comparar, classificar, interpretar
a variabilidade das diferentes partes do corpo e da mente
humana. Nas palavras de Blanckaert (2001) “A antropometria
é um método estatístico de análise do corpo humano criado
por volta de 1850 para precisar o lugar do homem na natureza
79
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

e definir os caracteres das raças humanas”. Estas questões, entre


outras, vão ressoar em solo brasileiro por meio das especulações
filosóficas acerca do método científico, do rigor, da busca de
provas empíricas. Eram exigências não apenas para garantir ‘as
verdades’, mas principalmente para colocar o Brasil na marcha da
“ordem” e desta forma alcançar o “progresso”. Entre os debates
científicos destacou-se o movimento em prol da eugenia, que se
apresentava como o símbolo da modernidade científica.
Na Europa este movimento em prol da eugenia estava em
curva ascendente desde 1869, quando Francis Galton (1822-1911)
publicou o livro intitulado Hereditary genius. O termo ‘eugenia’
foi cunhado por Francis Galton em 1883 em seu livro intitulado
Inquiries into human faculty and its development, em que definia a
eugenia como ciência biológica. Em 1905 a Universidade de
Londres convocou o Primeiro Congresso de Eugenia, realizado
em Londres sob os auspícios da Eugenics Education Society, ao
qual compareceram representantes não apenas da Inglaterra,
mas de toda a Europa, além de comitês oficiais de professores
das universidades da França, Alemanha, Bélgica, Itália e Estados
Unidos (KEHL, 1922). Daí por diante a eugenia foi “fascinando
e apaixonando todos os povos civilizados”, e a partir de 1920
foram realizados congressos internacionais nas cidades de
Londres, Paris, Viena, Milão, Berna, Bruxelas, Nova York, São
Francisco, Roma e Praga, e em países como a Ioguslávia e a
Tchecoslováquia (MONTELEONE, [1930], p. 10), tendo como
temática principal a eugenia e a higiene.
Estas ideias aportaram em solo brasileiro por volta de 1913,
quando o primeiro artigo sobre eugenismo, intitulado Eugênese
ou a seleção das raças humanas feito pelo próprio homem, de autoria
de Horácio de Carvalho é publicado no jornal O Estado de S.
80
A EUGENIA SOB A LENTE DE LIMA BARRETO

Paulo. No mesmo período foi publicada uma breve nota por João
do Rio, e em 1914 Alexandre Tepedino apresentou à Faculdade
de Medicina do Rio de Janeiro uma tese intitulada Eugenia. No
dia 13 de abril de 1917 foi proferida pelo médico Renato Ferraz
Kehl (1889-1974) a primeira conferência sobre Eugenia no
Brasil, realizada na Associação Cristã dos Moços (ACM) de São
Paulo, a convite de seus diretores. Esta Conferência foi publicada
na íntegra no dia 19 do mesmo mês, no Jornal do Comércio.
A eugenia foi tomando o seu lugar nos debates científicos
propriamente ditos em janeiro de 1918, com a fundação da
Sociedade Eugênica de São Paulo por Renato Ferraz Kehl, sob o
patrocínio de Arnaldo Vieira de Carvalho, diretor da Faculdade
de Medicina de São Paulo. Esta Sociedade contava inicialmente
com 140 médicos associados e era a primeira instituição desse
gênero constituída na América do Sul (KEHL, 1922). Nesse
período, as propostas e encaminhamentos de caráter eugênico
já contavam com defensores contundentes tais como, Afrânio
Peixoto, Belisário Penna e outros.
Nas palavras do médico Renato Ferraz Kehl (1922, p. 27,
grifo do autor), importante publicista do ideário da eugenia,

A definição da Eugenia é curta, os seus fins são imensos: é a


ciência do aperfeiçoamento moral e físico da espécie humana
[... tendo] a ‘felicidade humana’ como meta eugenizar quer dizer
selecionar a espécie humana, fazendo que o planeta se povee de
gente sã, isto é, sã moral e somaticamente.

A ação da eugenia nas palavras de Kehl (1922, p. 27) deve ser


contínua e sistematicamente distribuída e o seu programa deve
“organizar a sociedade humana contra os fatores de degeneração,
em controlar os casamentos, evitando o matrimônio entre tarados
81
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

e degenerados, em vulgarizar e aplicar os conhecimentos úteis


para a proteção individual e das raças”. Este esforço deveria ser
no sentido de mobilizar os poderes públicos e os mais letrados
da sociedade, tais como os médicos, farmacêuticos, advogados
e educadores. Também o ensino deveria ser desenvolvido com
o elevado propósito de despertar, no espírito dos alunos, o
respeito por si próprios e por seus semelhantes, tendo sempre
em vista que

Por em execução os sábios princípios da Eugenia é praticar a


higiene e a profilaxia. É defender a saúde e a beleza contra os
elementos naturais ou criados pelos próprios homens, que as
possam perturbar ou alterar. É formar uma infância sadia e
uma mocidade robusta e operosa. É, sobretudo, sanear e apurar
a raça, tornando-a vigorosa, destemida, alegre, produtiva e
vitoriosa (PENNA, 1922, p. 3-5).

Assim se pronunciava Belisário Penna (1922, p. 3-4) ao


prefaciar o livro intitulado Melhoremos e prolonguemos a vida, de
autoria de Renato Ferraz Kehl. Esta ideia fascinava, sobretudo,
os médicos da época, e a prova disto são as manifestações
públicas de importantes nomes da ciência, como, por exemplo,
Gustavo Riedel, fundador da Liga Brasileira de Hygiene Mental.
Em matéria publicada no Jornal do Comércio em 1922 Riedel
afirma

[...] Apurando as qualidades da raça, evitando a reprodução


dos defeituosos nocivos à espécie pela transmissão de taras aos
descendentes e prevenindo os fatores de degeneração humana
[...], a Eugenia paira hoje acima de devaneios biológicos.
Exprime uma ciência natural e matéria subsidiaria da política e
da sociologia (RIEDEL, 1922, p. 4).

82
A EUGENIA SOB A LENTE DE LIMA BARRETO

A empolgação pela eugenia, no Brasil, sustentou-se até 1939,


quando se deu a eclosão da II Grande Guerra. As atrocidades
cometidas na Alemanha nazista em nome da purificação da raça
levaram os eugenistas brasileiros ao silêncio.
É necessário ressaltar que a eugenia enquanto ‘higiene e
melhoramento da raça’ não foi apropriada igualmente pelos
defensores desta ideia, visto que se inspiravam em diferentes raízes
teóricas da ciência biológica; e no cenário da intelectualidade
brasileira a ideia da eugenia também não era hegemônica. Havia
aqueles que discordavam dos encaminhamentos propalados
pelos eugenistas, mas, não obstante a falta de consenso, em
geral eles participavam das mesmas associações, congressos, etc.
Temos como exemplo a Liga Brasileira de Hygiene Mental, criada
em 1923 por um grupo de médicos, sob a liderança de Gustavo
Riedel. A partir de 1928 a Liga Brasileira de Hygiene Mental
incorporou em seu Estatuto as ideias eugenistas enaltecendo-
as como uma das grandes soluções para os difíceis tempos que
atravessava a sociedade brasileira. Outrossim, as divergências
teóricas entre os defensores da eugenia, ‘grosso modo’, consistiam
em que, de um lado, se os seguidores da teoria de Jean Baptiste
Lamarck1, cuja premissa é que os hábitos adquiridos durante
a existência de uma pessoa seriam reproduzidos através das
gerações, já com um caráter de herança (como defensor desta
perspectiva temos o médico Renato Ferraz Kehl); e por outro

1 Para Lamarck, não são os órgãos que condicionam os hábitos e as faculdades vitais, mas,
ao contrário, são os hábitos e a maneira de viver que condicionam os órgãos; com isso,
há uma atrofia pelo desuso e um desenvolvimento anormal pelo uso intensivo. Ele cita
vários exemplos cabíveis em sua teoria: a necessidade de flutuação das aves aquáticas fê-las
desenvolver um tipo especial de pés; na girafa, um pescoço agigantado foi produzido para
alcançar as arvores cujas folhas lhe servem de alimento; nas serpentes, a necessidade de
rastejar acarretou o desaparecimento dos membros, entre outros (STEBBINS, 1974, p. 9).

83
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

lado temos as posições do professor Octávio Domingues, que se


fundamentava na teoria de Gregor Mendel, que estabeleceu a
existência dos genes e definiu a teoria cromossômica da herança.
Apesar desta divergência de caráter teórico, os eugenistas
convergiam em um ponto: a hereditariedade era a causa do mal
para a sociedade, como afirma Varigny (1931), traduzido por
Octávio Domingues:

Diversas categorias humanas existem que não deviam ser


autorizadas a reproduzir-se porque elas fornecem geralmente,
uma progênese decaída de indivíduos mal-nascidos fisicamente
e mentalmente tarados. Tais indivíduos seriam bois ou batatas
que seriam eliminadas simplesmente; em eugenia humana
é necessária somente uma oposição à sua procriação [...] As
categorias inferiores na raça humana são diversas. Os resíduos
humanos são numerosos. Evidentemente não é preciso ir longe,
e considerar como indigno de colaborar na geração seguinte
todo individuo débil, mal são [...].

Em que pese às divergências teóricas, o ideal dos eugenistas


era obter a saúde total por meio da seleção hereditária, isto
é, mediante a permissão de que apenas as pessoas realmente
saudáveis tivessem direito à ‘perpetuação da espécie’. Urgia que
todos os esforços fossem feitos com a finalidade de poupar os
sãos do ‘fardo’ causado por aqueles considerados ‘inúteis’ à
sociedade. O eugenista Julio Dantas questiona: “[...] qual é a
violência, qual é a tirania maior, - proibir os débeis e os enfermos
de se casarem ou mandar os homens sãos e fortes morrerem na
guerra? Se aceitamos uma por que não havemos de aceitar a
outra, mil vezes mais útil, mais generosa e mais humana?” Em
sua explanação, Júlio Dantas (1930, p. 5) é enfático: “não pode
se reconhecer a um enfermo, a um degenerado, a um débil, a
um intoxicado grave, o direito de perpetuar o seu sofrimento, a
84
A EUGENIA SOB A LENTE DE LIMA BARRETO

sua deformidade e a sua miséria. A geração atual tem obrigação


de proteger e defender as gerações futuras”. Nestes termos, a
conservação do tipo eugênico ideal dependia, também, da
proibição de casamentos “[...] dos doentes de espírito e de corpo,
dos monstríparos, dos cacoplastas, dos tarados, dos geradores
de abortos e de mártires [...]”. Estes casamentos deveriam ser
proibidos ou “não sancionados pela lei” (DANTAS, 1930, p. 5).
Na prática foram apresentadas várias propostas, destacando-se
entre elas “a exigência do exame pré-nupcial e a proibição para
o matrimônio de todos os indivíduos degenerados, criminosos,
ou que, por qualquer circunstância sejam considerados inaptos
para as boas procriações” (KEHL, 1922, 78) pois “o exame pré-
nupcial é a salvação da raça, pelo saneamento do amor e da
família” - enfatizava Afrânio Peixoto (apud MONTELEONE,
[1930], p. 13). Com esta campanha, a exigência do exame
pré-nupcial foi instituída na Constituição Federal do Brasil
de 1934, no art. 145, que estabelecia como obrigatoriedade a
“[...] apresentação pelos nubentes de provas de sanidade física
e mental, tendo em atenção as condições regionais do país”; e
obedecendo à ordem econômica e social, todos deveriam “[...]
cuidar da higiene mental e incentivar a luta contra os venenos
sociais”. Além desta avaliação médica, seguindo-se exemplos
de vários países da Europa e de alguns Estados da América do
Norte, também foi proposta, embora não aceita, a esterilização
daqueles considerados inaptos geneticamente, ou disgênicos,
e o incentivo à procriação dos indivíduos eugenizados. Com
a doção destas práticas, na perspectiva eugenista, a sociedade
brasileira garantiria um futuro isento de doenças transmitidas
hereditariamente.
85
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

Na defesa destes encaminhamentos, os eugenistas


argumentavam que o Brasil vinha sofrendo, desde os primeiros
anos de sua colonização, as consequências da produção de
um grande contingente de mestiços, resultado da união
entre brancos, pretos e índios, em sua maioria “elementos
feios e fracos, apresentando com frequência vícios de seus
ancestrais. Apresentam [também] grande instabilidade de
caráter e constituem elementos perturbadores do progresso
nacional, sob o ponto de vista étnico e social” (KEHL, 1929b,
p. 3). Aliás, a questão dos malefícios do cruzamento de raças
e de línguas já provocava polêmica desde as últimas décadas
do século XIX, quando ilustres viajantes estiveram no Brasil,
como, por exemplo, o conde Gobineau (1816-1882), que
afirmava ser o mestiço “sub-raça decadente e degenerada”
(SCHWARCZ, 1993, p. 64). Importantes literatos como
Sílvio Romero (1851-1914), José Veríssimo (1857-1916),
Araripe Junior e Capistrano de Abreu (1853-1927), entre
outros, conhecidos como integrantes da ‘geração 1870’,
eram exemplo de defensores da não miscigenação, haja vista
a exaltação de Sílvio Romero (apud AZEVEDO, 2008, p.
90) ao homem branco e o estímulo à imigração europeia
publicada, em fevereiro de 1880, em sua obra intitulada A
literatura brasileira e a crítica moderna:

A minha tese, pois, é que a vitória na luta pela vida, entre


nós, pertencerá no porvir ao branco; mas que este, para essa
mesma vitória, atento às agruras do clima, tem necessidade
de aproveitar-se do que é útil às outras duas raças lhe podem
fornecer, máxime a preta, com que tem mais cruzado. Pela seleção
natural, todavia, depois de prestado o auxílio de que necessita,
o tipo branco irá tomando a preponderância até mostra-se puro
e belo como no velho mundo. Será quando já estiver de todo
aclimatado no continente. Dois fatos contribuirão largamente

86
A EUGENIA SOB A LENTE DE LIMA BARRETO

para tal resultado: de um lado a extinção do tráfico africano e o


desaparecimento constando dos índicos, e de outro a imigração
europeia!

Lima Barreto, leitor crônico de livros e dos jornais da época,


portanto sempre atualizado em relação aos acontecimentos que
ocorriam no Brasil e em outros países, já em 1905 confessava ao
seu Diário intimo:

Vai se estendendo, pelo mundo, a noção de que há umas certas


raças superiores e umas outras inferiores, e que essa inferioridade,
longe de ser transitória, é eterna e intrínseca a própria estrutura
da raça. Diz-se ainda mais: que as misturas entre essas raças
são um vício social, uma praga e não sei que coisa feia mais.
Tudo isso se diz em nome da ciência e a coberto da autoridade.
Atualmente, ainda, não saíram dos gabinetes e laboratórios, mas
amanhã, espalhar-se-ão, ficarão à mão dos políticos, cairão sobre
as rudes cabeças da massa, e talvez teremos que sofrer matanças,
afastamentos humilhantes, e os nossos liberalíssimos tempos
verão uns novos judeus (BARRETO, 1998, p. 71).

De fato, no Brasil, alguns anos mais tarde, estas ideias,


amplamente discutidas no cenário intelectual europeu e norte-
americano, saíram ‘dos gabinetes e laboratórios’ brasileiros,
socializando-se entre importantes políticos e intelectuais
de diferentes profissões, destacando-se, nesta discussão, os
médicos. Estas ideias foram se transformando em movimento
social, embora não popular, em prol da eugenia e da
higiene, social e materializando-se em sociedades científicas,
associações, organização de congressos, etc., “pois se não
houver o necessário cuidado com a eugenização dessa gente
depauperada e ignorante, nada poderemos esperar para o
futuro da nacionalidade brasileira”, afirmava Kehl (1922, p.
40). Condenavam, principalmente, a mistura entre brancos e
87
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

as raças ‘inferiores’, como negros, índios, ciganos, “igualmente


as camadas mais inferiores das sociedades civilizadas v.g., a
constituída por criminosos habituais, vagabundos, imbecis,
indivíduos maldotados não melhora com a mudança de
ambiente [...] Dificilmente se removem os efeitos prejudiciais
de misturas raciais desfavoráveis ou combinações hereditárias”
(LUNDBORG, 1930, p. 2).
Estas ideias permaneceram vigorosas durante décadas, haja
vista as afirmações de Kehl, em 1935:

O cruzamento entre raças é um fator de perturbação da evolução


natural e portanto não constitui meio de aperfeiçoamento étnico.
Os que sustentam o contrário não o fazem com fundamento
científico. Sob o ponto de vista eugênico contraindicamos
toda e qualquer união de raça, isto é, entre indivíduos da raça
branca com a negra, da branca com a selvagem, da branca com
a amarela e assim por diante [...]. Os mestiços colocados em
paralelo com os representantes de raças não cruzadas, sem
mesclas, não resistem a termos de comparação; só a falsa visão
poderá aceitar a sua igualdade ou a sua superioridade (KEHL,
1935, p. 249-251).

A justificativa para a proibição da miscigenação tinha como


fundamento a diferença de valor entre as raças, sobretudo entre
as raças branca e negra.

O branco, sempre considerado como raça superior, é ortognata,


tem o ângulo facial apurado e o índice encefálico tão exagerado
que, sem a menor dúvida, marca o sensível afastamento das raças
inferiores [...]. O negro mora do lado oposto. Como constituinte
da raça inferior, o negro é prognata, tem o ângulo facial exagerado
e índice encefálico quase nulo. Ninguém ignora que o índice
encefálico é a expressão da espiritualidade e o ângulo facial
reflete a animalidade [...]. A eugenia estabelecendo o perfeito
equilíbrio das energias física e psíquica rege a indispensável

88
A EUGENIA SOB A LENTE DE LIMA BARRETO

harmonia entre a individualidade e a personalidade (SILVA,


1931, p. 3).

Cumpre lembrar que a imigração europeia foi pensada e


aprovada pelos eugenistas, também, como uma possibilidade
de ‘branqueamento’ da raça brasileira, muito afetada pela
miscigenação entre brancos, pretos e índios, e pela predominância
de mulatos na população. Nesta linha de pensamento, foi
sugerido que a escolha do imigrante deveria priorizar “a raça
branca, seja ele italiano, português, alemão, espanhol ou
austríaco”, considerando que:

[...] a raça branca é a que ocupa o primeiro lugar na classificação


de valores pelas suas altas qualidades intelectuais, não só de
assimilação como principalmente de criação. Temos depois, em
segundo lugar, a raça amarela, que é, mais imitadora do que
realizadora. Por últimos temos a raça negra, que é a mais inferior
da escala dos valores humanos, e que sempre deve ser dirigida
pelas outras (MONTELEONE, [1930], p. 119).

Nesta perspectiva, o incremento da imigração europeia era


avaliada por Renato Ferraz Kehl da seguinte forma:

[...] a preponderância do elemento branco torna-se dia a dia


mais evidente, graças à imigração cada vez maior de indivíduos
dessa cor (portugueses, italianos, alemães e polacos). [...] e
em consequência do desaparecimento gradual, pela morte de
grande numero de mulatos e caboclos [...] a população brasileira
modifica-se rapidamente tomando um aspecto acentuadamente
europeu (KEHL, 1929b, p. 3, grifo do autor).

Sensível a esta discriminação racial em curva ascendente,


Lima Barreto, em 1919, fez-lhe contundentes críticas em sua
crônica Considerações oportunas:
89
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

Nada mais falso do que apelar para a Ciência em tal questão.


O que se chama Ciência nesse campo da nossa atividade
mental ainda não é nem um corpo homogêneo de doutrinas.
Cada autor faz um poema à raça de que parece descender ou
com que simpatiza, por isto ou aquilo os seus dados, as suas
insinuações, os seus índices, todo aquele amontoado de coisas
heteroclíticas que vemos, no nosso comuníssimo Topinard2
são interpretados ao sabor da paixão oculta ou clara de cada
dissertador (BARRETO, 2004a, p. 582).

Por outro lado, se a diferença racial e, sobretudo, a suposição


de que o negro pertencia a uma raça inferior era uma ideia
preponderante, a diferença das condições sociais, sobretudo as
precárias condições de habitação, saneamento, etc. vividas pela
maioria da população brasileira, principalmente a população
negra, eram concretas e distantes do campo das suposições.
A urbanização acelerada da época não apresentava condições
básicas para atender ao crescente número de pessoas procedentes
do êxodo rural e ao grande impulso da corrente migratória da
Europa que ocorreu entre os anos de 1887 e 1914 “quando cerca
de 1,6 milhão de pessoas imigraram para São Paulo, entrando
pelo Porto de Santos” (FAUSTO, 1997, p. 66).
De acordo com Fernandes (1978), a moradia representava
um dos problemas básicos na luta pela sobrevivência. A
locação de imóveis sempre despertava polêmica. O locador
receava alugar quartos para negros, pois sabia que a maioria
não tinha pagamento regular, isto é, trabalho fixo. Assim, não
raro os alojamentos continham elevado número de moradores
que viviam em condições anti-higiênicas, uma vez que essas
habitações eram mal ventiladas, mal-iluminadas e com pequeno
espaço útil. Em grande parte, os cortiços eram construídos

2 Paul Topinard (1830-1911) adepto e divulgador da antropometria.

90
A EUGENIA SOB A LENTE DE LIMA BARRETO

dessa forma propositalmente, fazendo com que aqueles que


trabalhassem fora saíssem com frequência pela manhã e só
retornassem à noite. Assim, viviam “[...] aglomerados na
cidade, sem as garantias sociais a que faziam jus e das quais
necessitavam [..] expelidos dos centros de interesses vitais para o
crescimento econômico e para o desenvolvimento sócio-cultural
da coletividade” (FERNANDES, 1978, p. 151).
Atento à lamentável situação de ‘miséria física’ em que
se encontrava grande parte da população nacional, Barreto
questiona sarcasticamente as explicações medicas e cientificas:

Pelo que leio em seus trabalhos, pelo que a minha experiência


pessoal pode me ensinar, me parece que há mais nisso uma
questão de higiene domiciliar e de regime alimentar. O problema,
conquanto não se possa desprezar a parte médica propriamente
dita, é de natureza econômica e social [...]. O senhor Chagas
(aqui se refere ao médico sanitarista Carlos Chagas) é o mais
alto representante da presunção médica. Não vê que é preciso
dinheiro para se ter uma boa alimentação, vestuário e domicílio,
condições primordiais da mais elementar higiene. Entretanto,
por isto ou por aquilo, a maioria da população do Brasil se
debate na maior miséria, luta com as maiores necessidades, não
podendo obter aqueles elementos de vida senão precariamente,
mesmo assim custando-lhe os olhos da cara. Sua Excelência antes
de expedir regulamentos minuciosos sobre tantos atos da nossa
vida doméstica, devia ter o cuidado de facultar-nos os meios de
realizar as suas exigências (BARRETO, 2004b, p. 237).

O abuso de bebidas alcoólicas era outra questão social


preocupante da época, e não estava ausente da agenda dos
eugenistas. Estes entendiam que o alcoolismo era responsável
não somente pela perda da saúde física e mental do indivíduo,
mas também pela degeneração da raça pois “[...] o álcool é causa
ocasional, quando não é a concorrente ou a determinante [...]
91
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

pois os filhos de alcoolistas são tarados, predispostos na primeira


infância à meningite, às convulsões, à deficiência intelectual,
depois à loucura, ao crime” (LIGIERO, 1930, p. 19).
Ora, Lima Barreto era alcoolista e por duas vezes foi internado
no hospício devido a delírios provocados pelo abuso de bebidas
alcoólicas. Em seu Diário do hospício critica o reducionismo das
explicações cientificas e expressa a dor de ser um alcoolista.
Ao se expor revela tantos outros fatores determinantes que o
levaram a tal situação:

Muitas causas influíram para que eu viesse a beber. Mas de


todas elas foi um sentimento ou pressentimento, um medo,
sem razão, nem explicação, de uma catástrofe doméstica sempre
presente. Adivinhava a morte de meu pai e eu sem dinheiro
para enterrá-lo; previa moléstias com tratamento caro e eu sem
recursos; amedrontava-me com uma demissão e eu sem fortes
conhecimentos que me arranjassem colocação condigna com a
minha instrução; e eu me aborrecia e procurava distrair-me, ficar
na cidade, avançar pela noite adentro; e assim conheci o chopp,
o whisky, as noitadas, amanhecendo na casa deste ou daquele
(BARRETO, 1998, p. 161).

A ideia da criminalidade como disposição hereditária,


presente na época, também inquietava o escritor Lima Barreto.
Esta ideia, inscrita na tradição teórica do médico César
Lombroso3 (1835-1909), entendia que os alcoólatras ou os
tísicos eram os maiores responsáveis pela geração de criminosos,
e seguiu fortalecida por muitas décadas. A prova disto é a
reafirmação e o reconhecimento de Renato Ferraz Kehl dos
resultados da investigação realizada nas prisões de Londres pelo
Dr. Goering e publicados no Boletim de Eugenia:

3 .
César Lombroso (1835-1909) desenvolveu estudos e definiu perfis de criminosos

92
A EUGENIA SOB A LENTE DE LIMA BARRETO

1. a disposição ao crime é hereditária;


2. os caracteres morais são diretamente transmitidos dos pais
aos filhos;
3. existe uma diátese criminal de família;
4. os caracteres considerados são mais acentuados quando
os dois pais são afetos, simultaneamente, da referida diátese.
Ao lado da herança como fator da criminalidade, devemos
acrescentar o alcoolismo como responsável por grande parte dos
crimes, agindo por si só ou provocando a tara criminal que se
achava em latência (KEHL, 1929a, p. 3).

Sendo filho de um alcoólatra, Lima Barreto, perplexo,


afirmava:

De mim para mim pensei: se um simples bêbado pode gerar


um assassino, um quase-assassino (meu pai) bem é capaz de dar
origem a um bandido (eu). Assustava-me e revoltava-me. Seria
possível que a ciência tal dissesse? Não era possível. Havia ali, por
força, uma alusão científica, um exagero, senão uma verdadeira
imperfeição [...] (BARRETO, 1961, p. 128).

Lima Barreto não se rendia aos estudos de caráter cientifico


que defendiam a teoria da herança dos defeitos e vícios e
mantinha-se implacável em seus questionamentos:

Apela-se para a hereditariedade que tanto pode ser causa nestes


como naqueles; e que, se ela fosse exercer tão despoticamente
o seu poder, não haveria um só homem de juízo, na terra. É
bastante pensar que nós somos como herdeiros de milhares de
avós, em cada um de nós se vem encontrar o sangue, as taras
deles; por força que, em tal multidão, há de haver detraqués,
viciosos, etc., portanto a hereditariedade não há de pesar só
sobre este e sobre aquele, cujos antecedentes são conhecidos,
mas sobre todos nós homens (BARRETO, 1961, p. 186).

Apesar de suas críticas às explicações científicas, Lima


Barreto assumia ter o ‘vício da intemperança’ e reconhecia que
93
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

a ingestão de bebida alcoólica lhe era muito prejudicial: “Ela


me abala, combale, abate todo o organismo, desde os intestinos
até a enervação. Já tenho sofrido muito com a teimosia de bebê-
la. Preciso deixá-la inteiramente” (BARRETO, 1998, p. 135).
Em virtude de sua impotência para se livrar do vício e pela
desconfiança nas explicações científicas e do grande poder que
ela exerce sobre a vida das pessoas, Lima Barreto confessava o
temor de ser cobaia de experiência científica. Em seu Diário
intimo, em tom de desamparo, Lima Barreto (1961, p. 220)
desabafa: “[há] um processo novo de curar alcoolismo em que se
empregasse uma operação melindrosa e perigosa. Pela primeira
vez, fundamentalmente, eu senti a desgraça e o desgraçado.
Tinha perdido toda a proteção social, todo o direito sobre o meu
próprio corpo [...]”. E neste desamparo Lima Barreto continua
“Até hoje tudo tem sido em vão, tudo tem sido experimentado;
e os doutores mundanos ainda gritam nas salas [...] que a ciência
tudo pode”.
Enfim, sem esgotar as inúmeras possibilidades de análise
desta possível interlocução entre os cientistas defensores da
eugenia e o escritor Lima Barreto, tentamos demonstrar que a
arte - no nosso caso, a literatura quando observada além de sua
técnica, de seu estilo, da escola a que pertence o autor, da sua
especialização ou da genialidade do artista, como já colocado
anteriormente, é a expressão das contradições sociais e das
necessidades de uma época. Como afirma Xavier (2002, p.
1): “Encontramos, nos textos literários do período, uma farta
descrição de práticas, hábitos e costumes da sociedade e a tentativa
de expressão, direta e indireta, da cultura ou da mentalidade da
época, tanto das elites econômicas e políticas como a do povo,
segundo a elite culta que as retrata ficcionalmente”.
94
A EUGENIA SOB A LENTE DE LIMA BARRETO

O mesmo raciocínio pode se aplicar aos movimentos


científicos. Eles não surgem por acaso, fruto de ideias
iluminadas de um ou outro cientista. As ideias são precedidas
de uma prática, e neste sentido são geradas no bojo de uma
organização social caracterizada pelo antagonismo das classes
sociais que constituem esta sociedade e pelas lutas e embates
produzidos a partir deste antagonismo. Aqui vale repetir as
colocações de Figueira (1995, p. 47): “Mesmo porque a época
não tem uma explicação do autor independente dele, já que,
sem ele, a própria época não tem explicação”. Nesta perspectiva,
a eugenia não foi um movimento oriundo de uma idealização
particular deste ou daquele cientista, mas expressava os interesses
de uma época; interesses que se traduziam na necessidade de
dar resposta e apresentar solução aos complicados problemas
sociais que, contraditoriamente, acirravam-se à medida que
a modernidade avançava nas principais cidades brasileiras.
Assim, tomando como referência os pressupostos das ciências
naturais, os eugenistas justificavam as mazelas sociais a partir
de problemas circunscritos ao indivíduo enquanto um ser
biológico, coisificado, descontextualizado do seu estatuto de
ser social, e nestes termos, emancipado das relações sociais das
quais era produto e produtor. Na vertente teórica de inspiração
marxista esta crença caracteriza o fetiche, ou seja, naturaliza-
se algo que é da ordem social. É o caso de atribuir poderes
absolutos e determinantes à hereditariedade, quando, na
realidade, são comportamentos e atitudes sociais construídos
historicamente. Desta forma, como se fosse uma condenação,
o homem nasce determinado para ser isto ou aquilo e assim o
seu percurso pela vida ocorrerá conforme o que está inscrito
nos seus gens.
95
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

Um século transcorrido, a própria ciência reconhece que,


embora diferentes na cor da pele, na cultura e na linguagem,
geneticamente somos “uma única e enorme família”, como
afirma o ilustre cientista Sergio D. J. Pena, membro da Academia
Brasileira de Ciências, em sua mais recente publicação intitulada
Humanidade sem raças? Em suas reflexões sugere uma mudança
de paradigma “que nos permita eliminar a noção perniciosa de
raças humanas da nossa sociedade, do nosso vocabulário, das
nossas vidas. O conceito de raça está e sempre estará ligado à
crença de que os grupos humanos existem em uma escala de
valor” (PENA, 2008, p. 51).

96
A eugenia pela arte
cinematográfica
Durval Wanderbroock Junior, Renata Heller
de Moura, Saulo Luders Fernandes

Temos presenciado uma ampla discussão acerca das questões


raciais no Brasil. Segundo Machado (2000), sob os auspícios
da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência
e Cultura (Unesco), várias investigações foram realizadas
recentemente em diferentes pontos do país acerca das ‘relações
raciais’. A legislação brasileira, com a Constituição de 1988,
tornou a prática do racismo crime sujeito à pena de prisão
inafiançável e imprescritível, mas a legislação brasileira já
definia, desde 1951, com a Lei Afonso Arinos Lei n.º 1.390/51,
denominada “Lei Afonso Arinos”, os primeiros conceitos de
racismo, apesar de não classificá-lo como crime, e sim, como
contravenção penal (ato delituoso de menor gravidade que o
crime).
Recentemente temos assistido à polêmica discussão em
torno da política de cotas nas universidades públicas brasileiras
como medida para atenuar as desigualdades raciais. A presença
dessa polêmica, além de evidenciar a inexistência de uma
democracia racial no Brasil, também mostra um discurso que
atribui o sucesso ou insucesso do indivíduo unicamente às
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

suas características pessoais ou biológicas (cor da pele, gênero,


situação socioecômica, etc.), discurso que pode ser constatado
em nosso meio há no mínimo um século, sendo possível
recuperá-lo mediante estudos sobre os ideais do movimento
eugenista.
Longe da pretensão, de nossa parte, de definir tal movimento
no limitado espaço deste texto, temos o propósito apenas de
aqui recuperar algumas informações sobre o rico conteúdo e a
significativa influência que este movimento teve na construção
de uma ideia de limpeza racial. Essa ideia, que repercutiu
amplamente no início do século XX, tendo atingido seu ápice
de expressão por meio de práticas nazistas, se vista com um olhar
atento e com outras roupagens, parece não ter envelhecido.
Assim, focalizaremos em nossa análise fatos e acontecimentos
documentados pelos filmes do sueco Peter Cohen (1946-),
os quais, baseados em extensa pesquisa de fotos e raras cenas
de arquivos, discutem como a limpeza racial foi defendida
enquanto forma de aperfeiçoar a espécie humana e criar um
novo homem.
Os filmes dirigidos por este cineasta – Homo sapiens 1900 e
Arquitetura da destruição – documentam fatos e acontecimentos
de um momento histórico que Hobsbawm (1995) chamou de
‘a Era das Catástrofes’. A ‘Era das Catástrofes’ foi marcada
pelas Duas Grandes Guerras, pelas ondas de revolução global
e pela virulência da crise econômica de 1929. Também nesse
período, os fascismos surgem como propostas mundiais. Esses
dois filmes, que se complementam na apresentação dos fatos
documentados, colocam em evidência um tema polêmico
presente nesse momento histórico: a eugenia e as teorias
98
A EUGENIA PELA ARTE CINEMATOGRÁFICA

de limpeza racial presentes no nazismo e em outros sistemas


políticos de diversas nações, em nível mundial.
Tanto as ideias e preocupações dos cientistas (evidenciados
em Homo sapiens 1900) como as artes e os ideais políticos
(evidenciados em Arquitetura da destruição) estão em íntima
relação com as relações sociais até então existentes, expressando
questões determinadas historicamente. Este é o ângulo a partir
do qual queremos analisá-los.
Os filmes de Peter Cohen pretendem revelar esse encontro
da eugenia com a História. O acervo de Cohen sobre a eugenia
é vasto. Fotos, discursos, imagens e até propagandas públicas
foram utilizadas no filme. Embora a eugenia seja o fio condutor,
os filmes desnudam a ingenuidade do conhecimento. Médicos
que estariam encarregados de salvar vidas humanas tornaram-
se, paradoxalmente, os mais fiéis tributários de um domínio
do conhecimento cujos fundamentos foram responsáveis pela
morte de milhares.
A crítica de Cohen não é endereçada ao eugenismo em si, mas
às consequências que dele resultaram. Para Cohen, o problema
surge quando a eugenia transcende a esfera do conhecimento
e passa a ser utilizada para finalidades de limpeza racial. Ao
contrair matrimônio com determinados regimes políticos, a
eugenia deixa de ser uma simples área do conhecimento para se
tornar um instrumental perigoso de destruição humana.
A tese central dos filmes é que, no início do século XX,
os regimes políticos1 não passaram imune às influências

1 Por regime político compreendemos “a combinação ou articulação específica das instituições


estatais, utilizada pela classe dominante, ou por um setor dela, para governar” (MORENO,
2003, p. 17).

99
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

da eugenia. É como se Cohen quisesse parafrasear Marx,


sustentando que o espectro que rondava o mundo não era
o do comunismo, mas o da eugenia. Embora as variações
práticas fossem distintas em cada regime, nem a democracia,
nem o stalinismo e muito menos o nazismo faltaram ao
encontro com a eugenia.

Breve relato dos filmes

Homo Sapiens 1900 é um documento precioso que retrata


de que maneira a manipulação biológica se tornou uma arma
para eliminar todos os que não se adaptavam ao ‘padrão racial’
imposto por um modelo ideal de homem burguês. Em diversos
países (Suécia, EUA, Alemanha, ex-URSS, entre outros) o
processo teve consequências fatais, apesar de ter caminhado em
sentidos diversos. Na Alemanha, por exemplo, a limpeza racial
passava pelo corpo, pela perfeição e beleza física, enquanto na
ex-União Soviética a eugenia tinha como foco o cérebro e o
intelecto.
Este filme mostra a organização científica do final do século
XIX e início do século XX tentando ‘harmonizar’ o homem e a
máquina. “A ânsia pela civilização leva o homem ao desejo de
melhorar não só as condições materiais, mas a si mesmo”, diz o
narrador de Homo sapiens 1900 (1998).
Na apresentação dos fatos, o documentário tece a rede de
ideias e de encaminhamentos tomados por cientistas e líderes de
diversas nações, os quais atribuíram à hereditariedade o papel
de guardiã do poder de um povo e à biologia o papel de ciência
100
A EUGENIA PELA ARTE CINEMATOGRÁFICA

redentora, na busca pelo aperfeiçoamento da humanidade. A


ciência, que se apresenta no iluminismo como conhecimento
libertador do homem, aprisiona esse mesmo homem e torna-se
um saber técnico que não reflete os fins pelos meios.
No filme, Cohen (1998) consegue caracterizar muito bem
esta ciência técnica, que perde a perspectiva dos fins pelos
meios quando apresenta a metáfora do Frankstein, na qual o
cientista busca dar vida a um homem, mas produz um monstro.
A premissa lógica ou racional da ciência que emanciparia o
homem agora o domina.
Embora houvesse divergências entre os cientistas, eles
concordavam em dizer que a grandeza de um povo estava na raça
e no sangue. A higiene racial passou a ser vista como necessária
ao bem-estar social, e assim foram propostos várias soluções
e encaminhamentos para os difíceis problemas da época (as
doenças contagiosas que se disseminavam entre a população,
o grande número de indigentes e a alta taxa de mortalidade).
Algumas das soluções apontadas foram: campanhas de
higienização do corpo e do ambiente físico, esterilizações dos
considerados ‘menos qualificados’ e condenação à morte de
crianças ‘malnascidas’.
Arquitetura da destruição documenta o nazismo como um
faraônico projeto estético e artístico, fortemente arquitetado
pela fixação de Adolf Hitler na Antiguidade Clássica e pelo
seu grande interesse pelas artes. Influenciados pelas ciências
biológicas e por sua concepção estética do mundo e dos homens,
Hitler e seu grupo político projetaram embelezar o mundo e
criar uma raça pura e superior – a raça ariana – mesmo que para
isso fosse necessário um extermínio em larga escala.
101
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

A pintura, a escultura e o cinema apoiaram, com a mesma


disposição, campanhas de higiene nos escritórios e fábricas,
como o ‘Bureau de Beleza do Trabalho’. A ideia transmitida a
partir dessa campanha propagava a libertação dos trabalhadores
pela limpeza. “O despertar estético iria libertá-los de sua classe
e libertar a sociedade do conflito da luta de classes”, conta o
narrador de Arquitetura da destruição.
Uma propaganda nazista apresentada pelo documentário,
intitulada Vítimas do passado (1937), explorava imagens de
doentes mentais, culpabilizando os ‘loucos’ por ocuparem
‘palacetes’, enquanto ‘pessoas saudáveis’ viviam em guetos. Dizia
a propaganda: “Nós humanos pecamos contra a lei de seleção
natural [...] Não só aprovamos formas de vida inferiores, como
encorajamos sua propagação”. Assim, justificava-se o fato de
que, em 1941, cerca de 70 mil doentes mentais foram mortos.
A partir de 1933 o público alemão passaria a frequentar
um célebre evento das artes plásticas sob o III Reich: a série de
exposições da ‘Arte Degenerada’. A arte assumiu um papel quase
policial na discriminação dos judeus. Cohen (1998) apresenta
uma analogia de Hitler a respeito do povo judeu: “Sinto-me
como o Robert Koch da política. Ele descobriu um micróbio
e mudou a medicina. Eu expus o judeu como o micróbio que
destrói a sociedade”. O Führer, mesmo após a queda do III
Reich, deu prosseguimento à eliminação dos judeus, passando a
ser esta a sua prioridade, uma ‘missão sagrada’, diz o narrador.
Estava selado o destino de 11 milhões de judeus em toda a
Europa. Perder a guerra não significaria o fim do ideal nazista.
Para Hitler, apesar da queda da Alemanha, os ideais nazistas
poderiam inspirar futuras gerações.
102
A EUGENIA PELA ARTE CINEMATOGRÁFICA

Em janeiro de 1945 as tropas russas chegam a Auschwitz,


localizada no Sul da Polônia, e lá encontram provas de que o
inconcebível, de fato, ocorrera: montanhas de óculos, cabelos,
dentes, sapatos, galpões lotados com roupas, latas de gás, pilhas
de cadáveres.
Resumindo, os dois filmes mostram a maneira como as
artes e as ciências respaldaram essa mensagem de purificação da
raça, limpeza social e elevação da humanidade, nesse período
marcado por guerras e crises econômicas. Passemos, então, a
uma breve discussão das ideias científicas que embasavam as
propostas de limpeza racial que marcaram a época apresentada
nos filmes.

A ciência não é autista

Os ideais eugênicos apresentam-se como ideais científicos


de limpeza racial para os regimes políticos do início do século
XX, como forma de aperfeiçoar a espécie humana e criar um
novo homem, adequado às necessidades da modernidade. A
ciência, para o homem moderno, apresenta-se como um alicerce
concreto para a explicação dos fenômenos e da realidade. Na era
moderna ela é instaurada como a lei da verdade. Sai o divino e
em seu lugar instaura-se o conhecimento científico como a base
estruturante da realidade e o único saber válido. Na ciência,
o homem vê a oportunidade de conhecer o desconhecido e
desenvolver todas as suas potencialidades. É ela que oferece
espaço para as necessidades emergentes daquele homem, imerso
em um novo modo de produção, o capital.
103
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

Os filmes de Peter Cohen, mais que documentários, são


denúncias; mais ainda do que isso, são alertas, são avisos de que
a ciência não é politicamente isenta de interesses, socialmente
neutra ou divorciada das circunstâncias históricas. Seu papel,
função e objetivos dependem muito mais de condições que lhes
são exteriores do que dos artífices que a engendraram.
A ciência não é autista. Ela fala com o mundo, cria audiência
e sua tarefa só pode ser realizada dentro de determinadas
condições históricas, sem as quais não passará de quimeras
metafísicas ou futurismos teleológicos.
A ciência avança na medida em que a história o reclama.
Ela não surge somente do acaso ou da imaginação de mentes
brilhantes, mas sua existência depende também das reservas
sociais de conhecimento que foram acumuladas anteriormente.
Nenhum conhecimento ocorre à margem da história. É preciso
que a aurora da história lance luz sobre o astro do conhecimento
para que a ciência possa reluzir. Por emergir no horizonte da
história é que toda ciência é histórica.
Com o desenvolvimento destes ideais da ciência moderna,
o racionalismo, que emanciparia o homem por meio do
conhecimento, na realidade o domina. A racionalidade
científica moderna, que tem como finalidade o conhecimento
das leis que regem os objetos para dominá-los, também subjuga
este homem, fazendo dele seu objeto. O homem, maravilhado
pela sua criação, perde-se nela. A ciência passa a responder
por si mesma, reificando o homem. Naturaliza-se a dimensão
humana e a perspectiva histórica e das relações sociais se perde,
tornando-se o homem um mero sistema físico-mecânico que
deve ser determinado por leis naturais.
104
A EUGENIA PELA ARTE CINEMATOGRÁFICA

Ao construir uma ciência que prioriza a produção técnica


acima do próprio homem, esse homem, que acreditava na
emancipação pela razão, vê-se dominado por ela. Esta
ciência está pautada no que Adorno e Horkheimer (1986)
denominam de razão instrumental: uma razão segmentada,
que instrumentaliza e molda os objetos de investigação para
uma finalidade prática, a qual tem como objetivo conhecer
para dominar.
Este modelo instrumental e tecnicista de ciência fundamenta-
se nas necessidades históricas do período de sua emergência. No
universo capitalista não há necessidade de uma ciência que não
seja prática e relevante para aquilo que proporciona a produção.
A razão instrumentalizada vem dar respaldo a este modelo
produtivo. A ciência se torna um objeto de produção, e não
de reflexão, embora o importante, efetivamente, seja o destino
social para o qual essa produção seria dirigida. Seja como for,
como afirma Silva (1997, p. 5), “o modelo objetivista triunfou
na teoria da ciência como o único possível, não porque seja o
único racional, mas porque é o único em que a razão se mostra
produtiva”.
Nesta razão instrumental perde-se a perspectiva da
racionalidade dos antigos gregos, na qual havia uma
perspectiva teórica que reflete sobre o objeto e, por esta
via reflexiva, constrói os meios que orientam a prática e
discerne os fins do conhecimento produzido. Neste modelo
racional instrumentalizado, conhecer é saber fazer. A ciência
é levada a um modelo técnico de produção. A razão é vista
como uma técnica dominadora da natureza, e o que antes
permitia ao homem refletir sobre a realidade, agora o faz agir
sobre ela (ADORNO; HORKHEIMER, 1986). Ainda que o
105
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

domínio sobre a natureza pela técnica seja um avanço no


desenvolvimento humano, a dimensão reflexiva é fortemente
desvalorizada.
A ciência, com seu instrumental técnico, passou a ser
vista como a engrenagem motora do progresso humano, que
levaria o homem ao ápice do desenvolvimento. Como afirma
Cohen (1998), “a ânsia pela civilização leva o homem ao desejo
de melhorar não só as condições materiais, mas a si mesmo”.
Neste anseio, o final do século XIX é marcado por um grande
desenvolvimento das ciências naturais e das ciências exatas. Estas,
por meio de descobertas e inovações no campo da biologia, da
botânica, da física, da química, da geologia, etc., fermentaram
a expectativa do homem em superar sua vulnerabilidade e
aperfeiçoar sua força.
Perdendo o caráter divino, as explicações nesse momento
histórico (final do século XIX e início do século XX) precisam
do respaldo científico do laboratório. O experimentalismo
caracteriza esse momento e expressa uma nova organização
econômica e social, em que a verdade está baseada nos moldes
metodológicos da ciência. Segundo Kevles (1995), esse período
foi marcado por descobertas como o uso das ondas hertzianas,
das vitaminas, do bacilo de Koch, das vacinas de Pasteur, do aço,
da eletricidade, do aproveitamento do petróleo como fonte de
energia, de inovações como o avião, o submarino, o cinema, o
automóvel e outras, tudo isso como reflexo do avanço científico.
Logo, esse avanço científico passou a ditar um novo ritmo, uma
nova maneira para o homem produzir e reproduzir a sua vida.
Assim, um novo padrão de conduta e atitudes passou a ser
exigido pela modernização.
106
A EUGENIA PELA ARTE CINEMATOGRÁFICA

Nessa trama, as explicações e experimentos das ciências


naturais e exatas passaram a intervir na organização social.
As descobertas da biologia se dispuseram a responder e a dar
encaminhamentos para solucionar problemas difíceis da época,
como o controle epidemiológico e a alta taxa de mortalidade
presente mesmo em países desenvolvidos. A doença era o
grande obstáculo a ser superado. A imagem de um povo doente
condenava o país ao atraso.
Desde o início do século XIX, como mostra Engels (1985),
a falta de saúde da população, mesmo nos grandes centros
mundiais, estava intimamente relacionada com o intenso
período de industrialização, que minou os campos e deslocou
uma grande parcela da população para as cidades. Em cada país,
a corrida às cidades industrializadas ocorreu com características
e em tempos históricos peculiares a cada nação. O modo de
produção industrializado pedia passagem e, à sua maneira, cada
país foi lhe dando abertura, de acordo com suas possibilidades. As
precárias e desumanas condições de saúde, de alimentação e de
habitação da classe trabalhadora eram algo comum. Submetida
a essas e outras carências, a classe trabalhadora e pobre estava
sujeita a ampla variedade de doenças, que se disseminavam mais
facilmente pela grande concentração urbana.
Já no início do século XX, como aponta Cohen (1998),
a utilização de medidas higiênicas pela população pobre e
trabalhadora passou a ser vista como uma possibilidade de
solução das contradições presentes na época. Não que as medidas
higiênicas estejam reduzidas a práticas ideológicas de disfarce das
diferenças sociais, afinal elas propiciaram uma melhor qualidade
higiênica à população; no entanto, no filme Arquitetura da
destruição fica bastante evidente como na Alemanha nazista os
107
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

ideais de higiene são transplantados para a organização social


do trabalho, como solução para luta de classes.
De acordo com Cohen (1998), a campanha alemã de higiene
nos escritórios e fábricas – ‘Bureau de Beleza do Trabalho’ –
transmite a ideia de libertação da classe trabalhadora pela
limpeza. Como sustentou Gehrard Wadgner, médico idealizador
da campanha nazista, “se a luta de classes morrer, ao menos o
trabalho e a criatividade devem perder o estigma da sujeira. Se
mostrarmos ao trabalhador como deve se lavar e o elevarmos
ao nível da burguesia, ele entenderá que não há por que lutar”
(COHEN, 1998).
Os fatos apresentados nos dois filmes nos ajudam a visualizar
o caráter ideológico presente nos encaminhamentos político-
sociais da época, na medida em que as explicações das ciências
naturais foram sendo transportadas para as relações sociais,
naturalizando as contradições ali presentes. Na apresentação dos
fatos específicos acima descritos pelo filme, vê-se a naturalização
da luta de classes, propondo-se um encaminhamento de ordem
biológica (higiene) como solução para um problema social e
econômico.
O corpo robusto e harmonioso, acompanhado da
disciplina, da higiene e do hábito polido e contido, tornou
o ideal do gentleman e do petit bourgeis na Europa (COSTA,
1999). A burguesia branca, detentora dos meios de produção e
representante de tais características, logo assumiu historicamente
o lugar de raça superior. Todos os que, por suas características
étnicas ou pela marginalização socioeconômica, não fossem
‘bem-dotados’ das características eleitas como ideal de raça,
108
A EUGENIA PELA ARTE CINEMATOGRÁFICA

deveriam ser submetidos às exigências de adaptação ao ideal


estabelecido.

A eugenia e os ideais de limpeza racial

A pretexto de cuidados higiênicos, a eugenia e os ideais


de limpeza racial surgiram como teorias voltadas à depuração
social. Como as soluções de ordem higiênica e biológica não
deram conta de anular a pobreza e as precárias condições de
vida da classe trabalhadora, pois em nada alteravam a produção
da miséria à qual esta classe estava submetida, doença e pobreza
foram associadas. Doença e pobreza tornaram-se as grandes vilãs
a serem combatidas pelo capital, pois colocavam em evidência
as contradições das relações sociais geradas por esse modo de
produção: a produção da riqueza e a produção da miséria.

Apesar de todas as tentativas para conter o custo do serviço social,


as enormes despesas da Inglaterra somente aumentaram. [...] leis
de impostos compulsórios foram impostas a cada comunidade
para pagar pelas casas dos pobres e outras instituições que
cuidavam dos destituídos, dos doentes e dos decrépitos. Naquele
momento havia os pobres e os desamparados contra o resto da
sociedade (BLACK, 2003, p. 52).

Para manter as condições de produção existentes foram


criadas complexas instituições de custódia patrocinadas pelo
Estado. Com o tempo, a proliferação de asilos para pobres,
hospícios, orfanatos, clínicas de saúde, colônias de epilépticos,
abrigos para desalojados e débeis mentais e prisões começou a
ser vista como uma ‘praga social’. Os proprietários, comerciantes
109
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

e industriais, em geral, passaram a se rebelar contra a taxação do


trabalhador que sustentava o indolente.
Black (2003) aponta que, enquanto essa ‘praga social’ se
intensificava, uma nova filosofia científica passou a se desenvolver
na Europa, primeiro com Thomas Malthus, em 1798, depois
com Herbert Spencer, em 1850, com Robert Charles Darwin,
em 1859, e posteriormente, em 1892, com Francis Galton, seu
primo.
Thomas Malthus (1766-1834) publicou uma teoria para
o problema de ordem econômica e social baseada na ideia de
que o suprimento finito de alimentos inibiria ‘naturalmente’
a expansão numérica da raça humana. Assim, o problema
da miséria seria resolvido com o controle populacional, por
restrição e coibição moral (KEVLES, 1995).
Herbert Spencer (1820-1903), um pouco mais tarde,
popularizou a expressão: ‘a sobrevivência do mais capaz’. Spencer
declarou que “o homem e a sociedade evoluíram de acordo
com a natureza que herdaram. Nessa evolução, os mais capazes
continuariam naturalmente a aperfeiçoar a sociedade” (apud
BLACK, 2003, p. 53, grifo nosso). Assim, podemos perceber
que teorizações baseadas em princípios naturalistas passaram a
explicar as contradições e misérias sociais. De acordo com essa
filosofia científica, os incapazes se tornariam naturalmente mais
empobrecidos e ignorantes, desaparecendo aos poucos, ‘como
nas leis naturais’.
Alguns anos depois, em 1859, Robert Charles Darwin
(1809-1882) escreve A origem das espécies. Analisando o mundo
natural, um mundo de recursos limitados e de constantes
110
A EUGENIA PELA ARTE CINEMATOGRÁFICA

mudanças ambientais, esse cientista teoriza que o processo de


sobrevivência está submetido a ‘leis de seleção naturais’.

Darwin estava escrevendo sobre um ‘mundo natural’, diferente


do homem. Mas não demorou para que importantes pensadores
começassem a destilar as ideias de Malthus, Spencer e Darwin
num conceito novo, carregando um nome jamais usado pelo
próprio Darwin: o darwinismo social. Naquele momento, os
planejadores sociais começaram a defender a noção de que na
luta para sobreviver num mundo difícil, muitos seres humanos
não eram apenas menos valiosos, e sim efetivamente destinados
a morrer e a desaparecer como um rito do progresso. Preservar
o fraco e o necessitado era, em essência, um ato não natural
(BLACK, 2003, p. 54-55, grifo do autor).

A partir dos estudos de Darwin, Francis Galton (1822-1911),


na Inglaterra, utilizando-se da lógica progressiva, da ciência e da
matemática, passou a sistematizar um estudo sobre os fatores
hereditários na determinação da raça humana. Galton postulou
que a hereditariedade não somente transmitia as feições físicas,
mas também as qualidades mentais, emocionais e criativas. Ele
passou, então, a defender que uma raça de homens altamente
dotados poderia ser construída por meio de casamentos
criteriosamente selecionados de acordo com um padrão de alta
qualidade humana (KEVLES, 1995).
Assim, desse prisma histórico, entendemos que o período do
final do século XIX e início do século XX tornou-se um momento
propício para a difusão desses ideais de higiene racial. Os fatos
apresentados pelos filmes como atrocidades e teorias absurdas
estavam entrelaçados e entranhados na vida dos homens desse
período, alguns dos quais (Spencer, Galton, Hitler) foram seus
expoentes, como nos mostram os filmes.
111
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

O aparato científico da época disseminou a ideia de que


a força de um povo estava na raça e no sangue, tal como está
evidenciado em Homo sapiens 1900. “As diferenças de etnia
passaram a ser entendidas como sinais da própria natureza para
indicar a superioridade ou inferioridade entre as classes sociais
e, em consequência, o domínio de uma classe sobre a outra”
(BOARINI, 2003, p. 23).
Galton apenas cunhou o termo Eugenia, palavra derivada
da junção de dois vocábulos gregos: eu (bem) + genos (raça,
linhagem, espécie), que s significa então bem-nascido, boa
linhagem, boa espécie. A palavra eugenia foi definida por ele
como um estudo, um método protocientífico que procurava
assegurar a boa formação de futuras gerações e, com isso,
o bem-estar da Nação. Galton havia descrito o homem
eugenicamente bem-nascido como uma tendência científica e
procurou quantificar esse processo biologicamente (KEVLES,
1995).
O filme Homo Sapiens 1900 mostra como as ideias de
Galton tiveram grande repercussão e que muitos cientistas se
empenharam, tanto quanto ele, na quantificação e na busca
por métodos que permitissem o aperfeiçoamento da raça
humana e a extinção dos menos favorecidos. Em muitos países
(Suécia, Noruega, Dinamarca, Suíça, Áustria, EUA, Alemanha)
a esterilização dos desvalidos tornou-se uma prática comum e,
muitas vezes, legalizada. O filme apresenta a seguinte frase: “A
eugenia é a religião do futuro e aguarda seus profetas”.
Foi esta protociência – a eugenia – que respaldou a ideia
nazista de que o povo judeu era um povo inferior, o que resultou
no Holocausto.
112
A EUGENIA PELA ARTE CINEMATOGRÁFICA

É preciso salientar, no entanto, que Galton não era a


favor de que suas ideias fossem impostas para a população, até
mesmo porque elas ainda não estavam de todo comprovadas
cientificamente. Ele acreditava que, aos poucos, a população,
percebendo o benefício de se construir uma raça superior, iria
aderir espontaneamente à sua causa.
Além disso, os filmes ressaltam que “a ideia de poder se
aperfeiçoar por meios biológicos acompanha o homem há
milhares de anos” e que “A eugenia é o sonho do homem
mensurável” (COHEN, 1998).
Até aqui, entendemos que o momento histórico
apresentado pelos filmes foi caracterizado pela efervescência
científica e que as teorizações baseadas na naturalização do
homem e suas relações passaram a explicar as contradições
e as misérias sociais postas pela organização social do
trabalho. Os pressupostos científicos eugenistas justificavam
e desconsideravam as condições sociais existentes, colocando
sobre o indivíduo pobre e desvalido a responsabilidade por
sua saúde e pela demonstração de bons hábitos e limpeza.
Naturalizavam, assim, as diferenças estabelecidas pelas
relações sociais e velavam as contradições do momento
histórico apresentado.
Antes que eliminar, a tarefa da eugenia era a de fazer
proliferar o número de famílias sadias, razão pela qual
Galton defendia uma ‘eugenia positiva’. O conceito de
eugenia, portanto, nasceu na Inglaterra, mas foi nos Estados
Unidos que prosperou, tendo alcançado seu ponto máximo
de aplicação na Alemanha.
113
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

A eugenia prospera em solo americano

Diferentemente do que ocorreu na Inglaterra, a eugenia


sofreu uma inversão de termos nos Estados Unidos.
Preocupados com a entrada massiva de imigrantes provenientes
das partes mais pobres da Europa e com a imensa população
negra libertada legalmente em meados do século XIX, a eugenia
estadunidense privilegiava o polo negativo, ou seja, a eugenia
negativa, que procurava, por métodos de esterilização, eliminar
a reprodução da parcela da população considerada incapaz. Os
problemas sociais, assim como na Inglaterra, ganharam também
nos Estados Unidos justificativas biológicas, hereditárias e
eugenistas. A pobreza, como fenômeno social, foi naturalizada.
O meio de ação eugênico priorizado nos Estados Unidos foi
a esterilização compulsória. Embora as práticas de isolamento
para doentes mentais e a restrição de casamentos, especialmente
entre brancos e negros, fossem também vitórias dos eugenistas
americanos, a maior conquista foi terem conseguido aprovar leis
estaduais que permitiam aos médicos esterilizar seus pacientes.
Seguramente, o nome mais importante da eugenia norte-
americana foi o de Charles Davenport, chefe do laboratório Cold
Spring Harbor, ligado ao Instituto Carnegie, sob cujo comando
foram realizados as principais pesquisas e estudos legais que
deram as bases às leis de esterilização compulsória.
Os principais alvos da eugenia norte-americana eram os
negros, os imigrantes e os considerados doentes mentais. Uma
das preocupações centrais dos eugenistas era diminuir os gastos
com os deficientes reduzindo o número de doentes mentais nos
hospitais públicos subvencionados pelo Estado. O liberalismo,
114
A EUGENIA PELA ARTE CINEMATOGRÁFICA

doutrina que orientava o regime político do Ocidente, defendia


a ideia segundo a qual o Estado deveria reduzir ao máximo seus
investimentos nos problemas sociais, abrindo passagem para a
iniciativa privada.
O liberalismo norte-americano não suprimiu a democracia,
mas foi obrigado a incorporá-la como forma de manter a
cidadania - uma cidadania que tinha cor, tamanho e raça, segundo
defendiam os eugenistas. A esterilização não era incompatível
com essa democracia, ao contrário, uma complementava a outra.
A questão não era discutir se a esterilização era uma prática
arbitrária ou violenta: o fulcro do problema era saber quem
detinha o monopólio dessa prática. No caso norte-americano,
o Estado tinha a prerrogativa de praticar a esterilização. Com
isso, a reprodução humana deixava o foro íntimo para tornar-se
objeto de intervenção estatal.
As leis liberais da competição, do ‘cada um por si’,
estimularam o nacionalismo de forma desenfreada, criando
as bases para o severo controle racial da imigração que
ameaçava os empregos dos trabalhadores americanos ‘puros’.
A intolerância racial foi incentivada, despertando o racismo
materializado em organizações fascistas como a Klu-Klux-Klan,
sem contar a xenofobia e a histeria anticomunista, sob cuja
influência acabaram sendo esterilizados estrangeiros tidos como
‘criminosos’.
Como demonstrou Cohen (1998), a eugenia não foi
incompatível com regimes democráticos burgueses e o
liberalismo não se divorciou dela, ao contrário, manteve
com ela o mais forte laço. Esse nexo entre o liberalismo e
a eugenia estava tão intimamente relacionado que a sorte
115
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

da eugenia dependia da sorte do liberalismo. Prova disso


é que precisamente a crise liberal que sacudiu os Estados
Unidos depois da crise da Bolsa de Nova Iorque, em 1929,
foi o marco do declínio do protagonismo da eugenia norte-
americana. Na esquina da década de 30 a eugenia se despediu
dos Estados Unidos e dobrou as curvas da história em outra
direção: foi para a Alemanha.

A eugenia, o nazismo e a depressão de 1929

No início do século XX, como afirma Hobsbawn (1995),


após a Primeira Guerra Mundial, houve um aumento nos
custos de produção, devido a maiores salários e a menos horas
de trabalho, como também um aumento inflacionário drástico,
que levou a Alemanha, por exemplo, a pedir empréstimos
financeiros externos. Após a queda da grande inflação, em
1923, as poupanças privadas desapareceram e os investimentos
chegaram a índices mínimos, desenvolvendo uma insatisfação
geral na população.
Toda esta crise do capital levou a uma desestabilização
econômica geral, que desembocou na chamada grande
depressão de 1929. A crise econômica atingiu todas as faixas
da sociedade, com o aumento extremo do desemprego e
miséria. Tal crise econômica obrigou os governos, em suas
políticas de Estado, a dar prioridade às condições sociais
sobre as econômicas, tendo havido o abandono da lei do livre-
comércio e aumento do protecionismo Estatal (HOBSBAWN,
1995).
116
A EUGENIA PELA ARTE CINEMATOGRÁFICA

Com a grande crise estabelecida, houve uma procura,


como necessidade histórica da época, pelos regimes políticos
de esquerda e, como ocorreu na Alemanha, de extrema direita,
como a solução para tamanha depressão. Para a burguesia,
que ainda se mantinha no poder, restava o apoio aos regimes
de extrema direita, que, mesmo colocando o Estado como
dominador total da economia, ainda priorizava a propriedade e
a divisão do trabalho, algo que os partidos comunistas estavam
dispostos a diluir.
O Nacional-Socialismo de Hitler e os movimentos fascistas
estavam pautados no retorno às tradições. O homem moderno,
para eles, necessitava de uma purificação, encontrava-se em um
estado deplorável, e a única saída para a purificação da sociedade
era o retorno ao clássico.
Tal retorno fica explicitado no filme Arquitetura da destruição,
em que o regime nazista, apoiado na arte clássica e iluminista,
retoma o homem puro, forte, sábio e dono de si. A arte deve
exaltar e promover a busca do homem pela perfeição e pureza,
e não almejar a loucura e o deplorável, expressos na degenerada
arte moderna, ou no ‘bolchevismo cultural’, como o descreviam
os nacional-socialistas alemães.
A arte moderna expressava a situação do homem no Pós-
Guerra, que estava circundado pelos escombros das cidades,
pela morte e destruição. Este movimento artístico demonstrava
o ápice da degeneração humana diante da guerra, à qual a
razão pautada nos fundamentos iluministas e o conhecimento
científico levaram o homem.
Ao considerarmos a arte como a representação do homem
e das relações estabelecidas em uma determinada época, a
117
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

negação da arte moderna e a imposição do modelo de homem


do classicismo são vistos como rejeição ao homem moderno,
como uma imposição ideológica de um modelo de homem que
não corresponde ao seu tempo. A retomada da arte clássica pelo
Nacional-Socialismo pôde ser compreendida como uma forma
de propagar de forma ideológica os ideais nazistas.
A busca por este homem puro e forte, que iria promover
a purificação moral e física da sociedade, fortaleceu-se na arte
clássica e encontrou a sua base científica no eugenismo. A
eugenia encontrou solo fértil no Estado Nazista e foi, talvez,
neste terreno que chegou aos seus limites extremos.
Com o ideal da sociedade perfeita por meio da purificação
das raças, a eugenia nazista se utilizou tanto da eugenia positiva
(promulgando leis pelas quais o casamento era permitido apenas
para casais que comprovassem a sua descendência ariana) quanto
da eugenia negativa, como sua face mais obscura, começando
com a esterilização dos pobres e incapazes e posteriormente com
o programa de extermínio dos impuros, em hospitais e campos
de concentração (BLACK, 2003).
O extermínio é denunciado no filme Arquitetura da
Destruição, principalmente no que diz respeito à comunidade
judaica. No filme são apresentadas propagandas do regime
que comparam os judeus a ratos ou pestes que consomem as
provisões e corroem o solo fértil do povo alemão. Devemos,
não obstante, compreender que o eugenismo não pregava
a extinção do povo judeu, ele tomou estas roupagens no
percurso histórico da Alemanha nazista. É importante lembrar
que com a ascensão da burguesia ao poder e a implantação
do capital, o povo judeu foi o que mais enriqueceu, pois,
118
A EUGENIA PELA ARTE CINEMATOGRÁFICA

diferentemente do cristianismo, o judaísmo não compreendia


o acúmulo de capital como um pecado. Isso levou este
povo a um nível de ascensão privilegiado, de modo que os
grandes bancos internacionais e as grandes corporações
pertenciam à comunidade judaica. Isso nos leva a pensar
que não só na Alemanha, mas principalmente nela, após a
grande depressão de 1929, o povo sem recurso financeiro
e desempregado recorria a empréstimos oferecidos pelos
bancos, que pertenciam, em sua maioria, à comunidade
judaica, a qual passou a ser vista como exploradora e culpada
pelo sofrimento do povo alemão (HOBSBAWN, 1995).
A prática do genocídio e o extermínio dos pobres
puderam se legitimar naquela época, pois a pobreza e a
miséria não são bem-vistas, já que evidenciam ainda mais as
contradições existentes nesta forma de organização social.
Destarte, para escamotear tais contradições e retornar a uma
estabilidade econômica, legitimou-se o extermínio com base
em um discurso natural eugenista, já que por meio dele é
que os famintos seriam eliminados e a estabilidade social se
restabeleceria.
Neste sentido, quando a contradição atingiu o seu ponto
limítrofe, ocorreu uma desestabilização na sociedade e uma
crise generalizada na economia, nas relações sociais e na cultura,
levando o humano a práticas irracionais. A ciência eugênica
encontrou terreno produtivo na Alemanha da pós-depressão
de 1929, vindo a justificar a situação de miséria e os conflitos
sociais postos naquele período e procurando solucionar os
problemas de ordem social por meio de um discurso biológico
de purificação racial.
119
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

Nexos do eugenismo norte-americano com


nazistas: um capítulo preterido

Um capítulo da história da eugenia mundial não desenvolvido


nos filmes de Peter Cohen merece maior atenção de nossa parte.
Trata-se dos nexos materiais e teóricos dos eugenistas norte-
americanos com o nazismo. A eugenia norte-americana não
morreu, ela apenas deslocou seu local de realização. O sonho
de Galton permanecia vivo. Era preciso apenas atravessar o
oceano.
Segundo Black (2003, p. 418-419),

[...] os eugenistas alemães estabeleceram relações acadêmicas


e pessoais com Davenport e com o establishment eugenista
americano, desde a virada do século XX [...] mesmo depois da
Primeira Guerra Mundial [...] suas ligações com Davenport e
com o resto do movimento americano permaneceram fortes e
inabaláveis.

Para além das questões puramente teóricas, os laços


dos eugenistas americanos com os alemães se efetivaram
também financeiramente, por meio de contribuições e
patrocínios. Como observou Black, “fundações americanas,
como a Carnegie Institution e a Rockefeller, patrocinaram
generosamente a biologia racial alemã com centenas de
milhares de dólares, mesmo quando os americanos estavam
ns filas da sopa durante a Grande Depressão” (2003, p. 418-
419). Pioneiros em matéria de legislação sobre a esterilização
compulsória, os norte-americanos serviram de fonte de
inspiração para os alemães nazistas simpáticos e praticantes
do eugenismo.
120
A EUGENIA PELA ARTE CINEMATOGRÁFICA

Na recuperação da historia constatamos que os norte-


americanos não criaram a eugenia, também não foram os
pioneiros do racismo. As origens dos preconceitos raciais se
perdem nos tempos, mas o racismo moderno encontra fôlego
principalmente na obra do conde de Gobineau chamada Ensaio
sobre a desigualdade da raça humana (Essai sur l’inégalité dês races
humaines). Essa obra, escrita entre 1853 e 1855, é considerada
por muitos como a ‘bíblia do racismo moderno’. A tese
fundamental de Gobineau é que existe uma superioridade
geral da raça branca sobre as outras, sobretudo dos arianos,
identificados por ele como louros e de descendência germânica.
A interpretação histórica de Gobineau é sintetizada em sua
avaliação sobre a Revolução Francesa, onde sublinha a vitória de
uma raça inferior sobre uma superior, sendo a queda da bastilha
uma mera vingança celto-romana contra os franco-germânicos,
cuja consequência foi a decadência da França.
Um dos principais discípulos de Gobineau foi o inglês
Houston S. Chamberlain, membro da Sociedade Gobineau, que
viveu a maior parte de sua vida na Alemanha, tendo publicado
o trabalho Os fundamentos do século XIX (Die Grundlagen dês
Neunzehnten Jahrhunderts), de 1899, no qual defende a ideia de
que a superioridade do ser teutônico, louro, alto e dolicocéfalo,
do tipo ariano, primava sobre as demais raças. A partir dessa
obra, Chamberlain ficou consagrado como o ‘imperador da
antropologia alemã’.
Não obstante, as referências dos nazistas não se reduziram
a consultas aos ‘clássicos do racismo’. Elas tiveram forte
influência também nos pensadores eugenistas norte-americanos
que professavam ideias sobre a superioridade e inferioridade das
raças.
121
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

Em 1916, o norte-americano Madison Grant declarou que


a raça branca, nórdica, estava destinada a dominar o mundo,
ressaltando o papel da raça ariana em seu livro O fim da grande
raça (The Passing of the Great Race). Ao enaltecer a raça ariana,
Grant contribuiu com o nacionalismo alemão, reforçando o
nazismo e reconhecendo sua superioridade, o que despertou o
interesse de vários cientistas pela eugenia.
Por outro lado, não foram somente cientistas que
emprestaram novo aditivo às aspirações racistas dos nazistas. O
próprio Henry Ford, conhecido pelas indústrias automobilísticas
que levaram seu nome, escreveu uma obra chamada O judeu
internacional (The international jew), na qual a vocação antissemita
do autor aparece sem disfarces. Löwy e Varikas recordaram que
essa obra, “traduzida a partir de 1921 para o alemão, foi uma
das principais fontes do antissemitismo nacional-socialista e
das ideias de Adolf Hitler” (2007, p. 3). Não espanta, portanto,
que na parede situada atrás da mesa de Hitler estivesse um
quadro representando Henry Ford, que, posteriormente, em
1938, recebeu das mãos do cônsul alemão nos Estados Unidos
a condecoração, outorgada por Hitler, com a Grande Cruz da
Ordem Suprema da Águia Alemã, distinção criada em 1937
para homenagear personalidades estrangeiras importantes para
os nazistas (LÖWY; VARIKAS, 2007).
Destarte, a eugenia norte-americana se realizou não nos
Estados Unidos, mas no nazismo de Hitler. O tribunal da
História não poupou os eugenistas norte-americanos por
terem sido menos antissemitas, mas por terem sido menos
consequentes que os eugenistas nazistas. Talvez por isso, Joseph
DeJarnette, superintendente do Western State Hospital da
122
A EUGENIA PELA ARTE CINEMATOGRÁFICA

Virgínia, reclamou em 1924 que “os alemães estão nos vencendo


em nosso próprio jogo” (BLACK, 2003, p. 447).

Eugenia e nazismo: um pacto pelo extermínio


racial

Todo o racismo silencioso dos tratados teóricos sobre


eugenia manifestou-se aos gritos na Alemanha. Com o nazismo
a eugenia atingiu seu paroxismo.
A vocação imperialista da Alemanha foi traduzida em
termos biológicos pelo social-darwinismo. A concepção de que
‘só os mais fortes sobrevivem’ serviu de justificativa para que
os ‘mais fracos’ fossem atacados, a pretexto de representarem
raças inferiores. Os fundamentos do social-darwinismo foram
encontrados na eugenia. Assim, as ‘raças inferiores’ precisavam
ser eliminadas, dentro e fora do país. A ideologia da pureza
racial estava plenamente justificada. Era preciso aplicá-la em sua
plenitude.
As leis eugenistas aplicadas na Alemanha durante o
nazismo podem ser divididas em três grandes categorias: a
esterilização, a eutanásia e o extermínio. Essas três dimensões
das aplicações eugenistas no nazismo produziram catástrofes de
proporções incalculáveis. O que foi possível nos Estados Unidos
transformou-se em necessidade no regime nazista.
Em matéria de esterilização, o procedimento era praticado
contra pessoas consideradas insanas, idiotas, pervertidas,
criminosas ou supostamente pertencentes a raças inferiores. A
123
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

primeira lei de esterilização aplicada na Alemanha apareceu em


1933, com a Lei da Profilaxia dos Descendentes com Doenças
Genéticas (lei de proteção hereditária), na qual estava prevista a
esterilização à força nos casos de debilidade mental congênita,
esquizofrenia, transtornos maníaco-depressivos, epilepsia e
alcoolismo grave. Black (2003, p. 481) nos informa que, a partir
do decreto, o Reich “anunciou que 400 mil alemães seriam
imediatamente submetidos ao procedimento”. Menos de um
ano depois, o Reich esterilizou pelo menos 56.000 indivíduos,
um a cada 1.200 alemães.
A esterilização ia desde crianças com 10 anos de idade até
homens acima dos 50 anos. Os esterilizados não eram somente
os confinados em instituições, mas também – e principalmente
– aqueles livres. Em 1937, os médicos Rüdin e Lenz, numa
operação em conjunto com a Gestapo (polícia secreta do
nazismo), realizaram uma acintosa identificação e prisão de
cerca de 500 a 600 “bastardos da Renânia”, juntamente com
os quais foram esterilizados descendentes de soldados negros
da França, tudo secretamente. Nesse ano, “cerca de 200.000
alemães de toda espécie de ascendência foram esterilizados”
(BLACK, 2003, p. 505).
Os casamentos também não escaparam. Em 1933 foi
sancionada a Lei do Subsídio ao Casamento, que visava estimular
os casamentos puros, baseados na eugenia positiva. Com base
na eugenia negativa, predominante durante o nazismo, foi
aprovada, em 1935, a Lei de Proteção do Sangue e da Honra
Alemã (leis de Nuremberg), que proibia os casamentos mistos,
especialmente com os judeus. Os casamentos mistos foram
declarados ilegais e os casais, obrigados a se separar (KEVLES,
1995).
124
A EUGENIA PELA ARTE CINEMATOGRÁFICA

Em 1939 a eutanásia compôs as letras da lei, estando


autorizadas as execuções de indivíduos considerados loucos,
doentes incuráveis, velhos senis e crianças excepcionais.
Mas foi a partir do ano de 1940 que a prática eugenista
adquiriu seus contornos mais sinistros. Como ressaltou Black
(2003, p. 507), “a partir de 1940, milhares de alemães foram
tirados de asilos de velhos, de institutos de doentes mentais e
de outras instituições de custódia, e, sistematicamente, mortos
nas câmaras de gás”. Naquele ano foram mortos cerca de 50 a
100 mil indivíduos, não apenas judeus, mas todos aqueles que
pelo crivo do Nacional-Socialismo fossem intitulados como
inferiores.
Talvez Galton não tivesse em mente exatamente essa
finalidade para sua eugenia positiva. Quiçá, no melhor dos casos,
tivesse desaprovado completamente semelhantes atrocidades.
Teve a má sorte de sua teoria ter encontrado eco em um país
que se debatia com os desafios de emergir de uma crise social
sem precedentes; um país cuja direção máxima procurava um
inimigo e um fundamento que justificasse as medidas internas e
externas contra seus adversários; um país que dispunha de armas
e forças materiais suficientes para implementar suas concepções.
A força da eugenia no regime nazista foi tutelada pelos canhões,
tropas e câmaras de gás. A História é repleta de curvas, e ao virar
uma delas, o nazismo pegou carona na eugenia. O pacto com o
extermínio foi realizado.
Os médicos Fisher, Lenz, Rüdin e Joseph Mengele não eram
apenas homens de saúde. No lugar do estetoscópio portavam
pistolas. Seus jalecos eram decorados de símbolos suásticos e
suas graduações foram traduzidas em patentes. Como recordou
125
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

Black (2003, p. 505), “Fisher, Lenz, Rüdin e outros (eugenistas)


radicais se tornaram os generais médicos da campanha de Hitler
contra a humanidade”.
A salvação da ‘raça ariana’ pressupunha a destruição dos
inferiores e com eles a dos judeus. Sob o signo da eugenia, a
medicina lança seu grito de morte ao mundo, em especial aos
considerados indignos de existência ou de indulgências próprias
das quimeras comunistas que advogavam em nome do fim das
desigualdades sociais. Ao naturalizar tais desigualdades, coube
ao nazismo selecionar aqueles que deveriam ser sacrificados
para que a utopia da raça superior fosse realizada.
Em 1942 houve a Conferência de Wansee, em Berlim,
contando com a participação de todos os ministérios
coordenados pela SS. Durante o evento foi oficializado o
programa da ‘solução final’ da questão judaica em campos de
extermínio. Segundo Kevles (1995) estimou-se o genocídio de
10 a 12 milhões de judeus europeus e de 200 a 300 mil ciganos.
Entre 1941 e 1945 o programa vitimou cerca de 6 milhões de
pessoas (BLACK, 2003).

Considerações finais

Diante de tudo o que foi exposto, podemos afirmar


que ‘ciência’ não significa necessariamente progresso,
desenvolvimento ou avanços. A ciência não está entregue
somente às mãos dos cientistas, ela também responde por
necessidades que lhe são exteriores. Por mais bem intencionado
126
A EUGENIA PELA ARTE CINEMATOGRÁFICA

que seja o cientista, nem sempre o fruto de seu conhecimento


resultará em benefícios humanos.
O destino da ciência está sempre alguns palmos acima dos
interesses dos cientistas. Em matéria de produção humana, são
as relações entre os homens que continuam dando a última
palavra. Os documentários de Cohen provam uma coisa: que
a eugenia, nascida, prosperada e elevada ao padrão de ciência
no início do século XX, não resistiu ao exame histórico. Ao
contrário de ciência, tornou-se ideologia racial. Ao contrário de
progresso, tornou-se uma utopia reacionária.
A eugenia traz em seu bojo a negação da história dos homens
e a legitimação da história natural. No momento em que crê na
solução dos problemas sociais por meio de processos biológicos
como a seleção natural ou a hereditariedade, ela transfere os
conflitos sociais para uma esfera biológica natural que é externa
às relações de produção social da vida humana.
Depois de duas seguidas revoluções industriais, a preocupação
daquele momento histórico era explicar a divisão do trabalho
e a exploração do proletariado. Por que alguns homens estão
voltados para o trabalho braçal, enquanto outros se dedicam ao
trabalho intelectual?
O pensamento eugênico, pautado em um discurso natural,
que não realiza a leitura das bases materiais e das relações
sociais da época, cria uma realidade falseada e descolada do real,
justificando a divisão e a exploração do trabalho por meio da
diferença entre os mais aptos para o trabalho braçal e os capazes
para o trabalho intelectual.
Não é difícil pensar que Galton, nos seus estudos eugênicos,
privilegia o homem burguês como aquele que possui as melhores
127
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

características gênicas hereditárias, e por esta razão é o que deve


ser responsável pela administração, pelo governo, pela direção;
ele deveria tomar as rédeas da sociedade.
É nesse sentido que as ideias e preocupações dos cientistas
(evidenciadas em Homo sapiens 1900) e os ideais políticos
(evidenciados em Arquitetura da destruição) apresentam-se como
um artifício ideológico. A naturalização do social, documentada
nos filmes, esconde as contradições produzidas na organização
de vida material dos homens. Ao naturalizar os fenômenos
sociais e históricos, os encaminhamentos e propostas eugênicas
terminam justificando a ordem social fundada na desigualdade,
produzida pelo capitalismo, sendo essa desigualdade social
também naturalizada.
É nesse sentido, também, que entendemos que estes
filmes nos convidam a uma reflexão sobre as atuais propostas
e encaminhamentos existentes no Brasil sob as insígnias de
‘NÃO ao preconceito racial’. O caráter de denúncia existente
nos filmes em relação às atrocidades realizadas outrora é
evidente, mas a reflexão sobre os desdobramentos dessas teorias
de limpeza racial em ideias de que o sucesso ou insucesso do
indivíduo depende unicamente de suas características pessoais
ou biológicas (cor da pele, gênero, situação socioecônomica,
etc.) cabe a nós realizar.
Sem a pretensão de esgotar a complexidade da temática
aqui apresentada, queremos apenas levantar pontos a fim de
contribuir para o debate. Acreditamos que, de forma silenciosa
(ou não? Só o tempo o dirá!), a concepção eugênica de
superioridade racial ecoa em nossos dias.

128
As campanhas antialcoólicas nas
escolas primárias - nas décadas de
20 e 30 do século xx no Brasil
Marcos Maestri

Trabalhemos, pois, pela Higiene Mental, trabalhemos pela


Eufrenia. Procuremos arrancar das garras da loucura e do crime
o maior numero possível de pessoas. Mas, façamos uma obra
de profilaxia completa, profunda e eficiente (CALDAS, 1929,
p. 57).

O propósito deste texto é descrever o ‘Programa de Higiene


Mental e Eugenética’, no que tange às campanhas antialcoólicas
encaminhadas pela Liga Brasileira de Hygiene Mental - LBHM,
especialmente as desenvolvidas nas escolas, no período entre as
décadas de 20 e 30 do século XX, no Brasil.
É necessário ressaltar que, embora tenhamos privilegiado
as campanhas antialcoólicas desenvolvidas nas escolas, os
higienistas se utilizaram de diversos meios (rádio, conferências
públicas, folhetos, campanhas financeiras, etc.) para ‘educar’
a população quanto aos malefícios do uso indevido de
bebidas alcoólicas. Reconhecemos também que as campanhas
antialcoólicas realizadas nas escolas (educação formal) atingiam
um pequeno segmento da população, visto que, no período em
estudo, a instituição escola atendia a uma minoria ‘privilegiada’
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

de alunos, se comparada aos dias de hoje. Só para exemplificar,


segundo Nagle (1976), dados do censo de 1920, 80% da
população brasileira era analfabeta. Para Souza (1998), neste
mesmo período de 1920, havia no estado de São Paulo, neste
ano, 547.975 crianças em idade escolar. Deste número, 175.830
freqüentavam escolas, fossem públicas ou privadas e o restante,
67,9%, não frequentavam escolas. O número de analfabetos
chegava a 74,2% das crianças residentes no estado. Já na década
de 1990, o número de analfabetos baixou para 14,7%. O número
de crianças de 7 a 9 anos, freqüentando a escola, em 1981, era de
70,7% e, em 1997, o número subiu para 93,1% (IBGE, 1997).
Pode parecer estranha a escolha deste tema para estudo,
por ser algo de um passado distante e, aparentemente, sem
muita relação com a atualidade; mas quando presenciamos,
na atualidade, a aprovação pelo Congresso Nacional Brasileiro
e a sanção da ‘Lei seca’ (BRASIL, 2008) pelo Presidente da
República, destaca-se a relevância desta temática, que há várias
décadas preocupa a sociedade brasileira.
Nas décadas de 20 e 30 do século XX a sociedade brasileira
foi marcada por significativas mudanças em sua prática
social, fruto da alteração da forma de prover sua existência.
Tais mudanças provocaram, igualmente, sérias crises sociais.
Analisar como a sociedade brasileira reagiu às mudanças e
quais os encaminhamentos pensados e adotados pode nos
oferecer subsídios para compreender melhor os problemas
que estão ocorrendo hoje, e sobretudo, comprovar quais os
encaminhamentos que resistiram ao tempo, eficazes ou não, na
solução dos problemas sociais. Ou ainda, como afirma Cella
(1996, p. 3, grifo nosso):
130
A S C A M PA N H A S A N T I A L C O Ó L I C A S N A S E S C O L A S P R I M Á R I A S

Estudar como a sociedade se comporta num momento de crise


ou de transformações substanciais, como os homens percebem
e vivem este momento, quais os encaminhamentos que eles dão
às questões e às dificuldades que vão surgindo, no mínimo pode
nos ajudar a compreender melhor o comportamento humano
quando pressionado por elementos desestruturadores, que
induzem a mudanças de hábitos.

Nesta linha de raciocínio, lembramos que o Brasil, no final


do século XIX e início do século XX, foi o maior produtor
e exportador de café do mundo (FAUSTO, 1982). O café
representava quase 70% de todas as exportações brasileiras. A
partir da década de 20 do século XXo café passou, gradativamente,
a deixar de ser o produto mais exportável e de maior aceitação
internacional, até que, com a crise de 1929, gerada pela quebra
da Bolsa de Valores de Nova Iorque, ocorreu a desvalorização
da moeda brasileira, abalando a estrutura socioeconômico-
política do país. Essas mudanças na economia, entre outras,
foram ‘forçando’ o Brasil a mudar sua forma de prover à
existência, que ocorreu através do embate da luta social travada
entre a oligarquia rural-agrário-exportadora (principalmente,
a cultura cafeeira), defensora da ‘inclinação natural do Brasil
para a agricultura’, e a burguesia industrial e o proletariado em
formação e ascensão nos centros urbanos.
Desta transição social recortamos para análise as campanhas
antialcoólicas propostas pela LBHM para formação do novo
modelo de homem brasileiro (ideal burguês), destacando algumas
normas e regras que deveriam ser seguidas pela população, para
‘manter-se mentalmente sã’ ou higienizada mentalmente.
Para isso, baseamo-nos, inicialmente, no periódico publicado
pela LBHM “Archivos Brasileiros Hygiene Mental (ABHM)”
publicado no período de 1925 a 1934. Entre tantas atividades
131
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

através das quais os higienistas divulgaram suas ideias, o periódico


por eles editado foi extremamente relevante na divulgação e
registro de suas ideias. É essa publicação que percorremos para
apreender as propostas da LBHM, cujos intelectuais deram forma
e voz ao que, historicamente, denominou-se como movimento
em prol da higiene mental.
Em relação à estrutura do trabalho, buscamos identificar
nas primeiras décadas do século XX, no Brasil: as questões
e as necessidades advindas do processo de transição do
trabalho escravo para o trabalho livre; as implicações, as
consequências e as transformações ocorridas na sociedade
brasileira na mudança da estrutura da sociedade rural-agrário-
exportadora para a sociedade urbano-industrial, provocadas
por determinantes externos e internos, que contribuíram para
o surgimento do ‘Programa de Hyigiene Mental e Eugenética’
da LBHM. Em seguida, apresentaremos as medidas profiláticas
e as campanhas antialcoólicas realizadas nas escolas, dentre as
várias medidas propostas pela LBHM. Por fim, esboçaremos
algumas considerações finais, apontando algumas evidências e
contradições/limites das atividades da LBHM.

O Brasil nas três primeiras décadas do


século xx

As primeiras décadas do século XX foram uma época de


muitas transformações nos cenários nacional e internacional.
No Brasil, a sociedade, mais especificamente nas regiões Sul-
Sudeste, passou por grandes transformações socioeconômico-
132
A S C A M PA N H A S A N T I A L C O Ó L I C A S N A S E S C O L A S P R I M Á R I A S

político-culturais: de baseada que era no sistema escravocrata, a


sociedade passou para o sistema de assalariamento (trabalho livre);
de uma economia rural-agrária passou para para uma economia
urbano-industrial; de uma economia agrário-exportadora, para
uma economia industrial de autodesenvolvimento; de uma
mão-de-obra voltada para o setor primário para uma mão-de-
obra voltada para o setor industrial, e outras alterações. Estas
mudanças nas relações de trabalho, entre outros fatores,
desencadearam a política de imigração e a exigência de mão-
de-obra mais qualificada para atender às necessidades do
mercado de trabalho. Deixaram, em decorrência, ex-escravos e
trabalhadores à margem do processo produtivo e do consumo
dos bens produzidos na forma de organização da sociedade por
meio do assalariamento.
Ao mesmo tempo em que a nova organização da sociedade
trouxe ‘progresso’, riqueza material, desenvolvimento dos
centros urbanos etc., não houve o mesmo investimento na
infraestrutura urbana para acolher a demanda populacional
vinda do campo, nem planejamento para acompanhar o
rápido crescimento urbano-industrial. Disso resultaram graves
problemas socioeconômicos, tais como: o déficit habitacional;
a falta de higiene pela ausência de esgotos, de tratamento e de
canalização d’água; o precário sistema de transporte; reduzido
acesso à energia elétrica; o sistema educacional defasado para
as novas exigências do mercado de trabalho; proliferação de
doenças como a tuberculose, a sífilis, a cólera e, epidemias, além
de outros problemas.
A produção e a exportação do café foram dois pilares básicos
da economia brasileira, especialmente da metade do século XIX
até as duas primeiras décadas do século XX. Concomitantemente
133
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

a este fato, foram criadas pequenas indústrias, espalhadas em


vários pontos do país, que não chegaram a provocar mudanças
profundas na dinâmica da sociedade brasileira até o final
do século XIX e começo do século XX, quando ocorreu a
intensificação e o aumento da exportação do café. A exportação
do café trouxe recursos financeiros para investimentos no país
e criou, entre outras, a necessidade de melhoria dos transportes
desse produto (BASBAUM, 1986).
Ao lado desse processo de transformação ocorria a abolição
dos escravos. Basbaum (1986) relembra que os interesses foram
puramente econômicos e que não foi oferecida nenhuma
assistência aos ‘libertos’ por parte da sociedade, na passagem
da escravidão para a ‘liberdade’, e que os ex-escravos foram,
simplesmente, despejados e abandonados ao deus-dará,
agravando os conflitos urbanos.
Esse descaso para com o negro gerou problemas sociais
sérios. Os poucos que tinham alguma profissão faziam biscates
(bicos), comiam e dormiam onde fosse possível. Outros iam
sendo forçados à marginalidade, vivendo do roubo ou da
caridade pública, embriagando-se. Alguns foram vitimados pela
tuberculose ou por outras doenças, favorecendo, dessa forma, a
organização de instituições de cunho social, tais como as Santas
Casas de Misericórdia, o Hospital Psiquiátrico D. Pedro II, os
asilos São Vicente de Paulo, entre outros.
Segundo Basbaum (1986), com a abolição da escravatura o
Brasil colocou-se no caminho do desenvolvimento já conquistado
por vários países europeus e do Norte da América. A passagem
da manutenção do trabalhador (escravo) para a ‘mercantilização
da sua força de trabalho’ (assalariamento) foi um dos pontos
134
A S C A M PA N H A S A N T I A L C O Ó L I C A S N A S E S C O L A S P R I M Á R I A S

fundamentais que favoreceram as transformações na sociedade


brasileira. O escravo não era mais propriedade do senhor da terra,
mas proprietário de si mesmo, isto é, da sua força de trabalho.
Com isso, o latifundiário ficou desonerado da manutenção
da mão-de-obra. Pagava a força de trabalho na medida em que
produzia. Com custo menor, podia investir em mais produção,
conseguindo competir com o mercado externo.
Para suprir a necessidade de mão-de-obra qualificada exigida
pelas transformações socioeconômicas, implementou-se no
Brasil uma ‘política de imigração’. Só para ilustrar o crescimento
da imigração, “entre 1890 e 1900, por exemplo, a população, no
Brasil, aumentou em cerca de 3.000.000 de pessoas, passando de
14 para 17 milhões” (COSTA, 1985, p. 38). Assim, a imigração
para o Brasil começou a tornar-se significativa a partir da
abolição da escravatura.
A Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e o período
subseqüente (especialmente, décadas de 20 e 30), dentre outros
fatores, provocaram transformações sociopolítico-econômicas
na maioria dos países do mundo, como a retração de mercados,
a substituição das importações, a criação de novos produtos,
etc., que também se constituíram em impulso para o processo
de industrialização do Brasil. Vale lembrar que o fato do Brasil
ser um país fornecedor de matéria-prima e gêneros tropicais
deixava o país em desvantagem em relação a outros países já
industrializados e com o comércio intensificado. Segundo
Arruda e Piletti (1994), o conflito bélico mundial foi decisivo
para o Brasil expandir-se industrialmente. Esta expansão
industrial e o crescimento populacional urbano, sobretudo
do Rio de Janeiro e de São Paulo, não foram acompanhados
do desenvolvimento urbanístico e do saneamento básico para
135
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

‘acolher’ esse contingente humano. Basbaum (1986, p. 124,


grifo nosso) traz um retrato da cidade do Rio de Janeiro em
relação à infraestrutura:

Até fins do século passado, e princípios deste, era o Rio uma


cidade de ruas tortas, estreitas e mal calçadas, traçadas ao acaso
por entre os vales, que nas épocas chuvosas se transformavam
em lamaçais com as águas que desciam dos morros. Não tinha
esgoto, a luz de gás, precária, fazia das ruas lugares perigosos à
noite [...] A cidade, ao começar o século XX, conservava ainda
o mesmo aspecto - apenas crescera um pouco - de duzentos anos
atrás.

Essas precárias condições de vida, a falta de infraestrutura


básica, o atraso urbano em relação ao advento do processo
industrial, entre outros fatores, foram forçando o surgimento de
movimentos e associações reivindicatórios nos centros urbanos,
como o eugenismo, o higienismo, o sanitarismo, a reivindicação
pelo desenvolvimento educacional, movimentos políticos, etc.,
como forma de ‘solução’ aos problemas enfrentados. A classe
trabalhadora foi se organizando, denunciando a exploração
do trabalho nas indústrias e as precárias condições de vida dos
trabalhadores por meio de manifestações grevistas, especialmente
no período de 1917 a 1920, tendo à frente,os imigrantes
europeus, que possuíam mais conhecimentos e experiência na
organização do movimento operário e mais consciência dos
direitos trabalhistas.
Entre os vários movimentos e associações figura a Liga
Brasileira de Hygiene Mental, criada em 26 de janeiro de 1923,
no bojo da efervescência da industrialização no Brasil, tendo
como pano de fundo todas as contradições próprias de uma
sociedade que se consolidou na forma do capitalismo. Foi criada
136
A S C A M PA N H A S A N T I A L C O Ó L I C A S N A S E S C O L A S P R I M Á R I A S

com o objetivo, entre outros, de prevenir “as doenças nervosas


e mentais pela observância dos princípios da higiene geral e
especial do sistema nervoso” (BRASIL, 1925, p. 223).
A proposta da LBHM era oferecer vários serviços à
população, por meio dos seus laboratórios de psicologia
aplicada, ambulatórios de psiquiatria, consultórios gratuitos de
psicanálise, aplicação de testes psicológicos em escolas públicas
e em fábricas. Também organizou semanas antialcoólicas, com
repercussão nacional, desde 1927, além da montagem da Clínica
de Eufrenia Infantil e outros serviços.
A LBHM passou por várias crises financeiras ao longo de
sua história. Apesar dessa situação, a entidade conseguiu manter
seus estudos, publicações, trabalhos, palestras, etc. durante
décadas do século XX (1925-1947). As ações empreendidas pelos
membros da LBHM demonstram o empenho, a determinação e
a convicção que eles tinham nos encaminhamentos dos diversos
problemas da época. Um dos problemas que os inquietavam
era o ‘uso abusivo de bebidas alcoólicas’. É o que podemos
observar nas intervenções da LBHM por meio das campanhas
antialcoólicas, que discutiremos a seguir.

A Liga Brasileira de Hygiene Mental: objetivos


e atividades

A LBHM tomou várias medidas profiláticas em prol da


higiene mental, entre as quais podemos citar: a) impedir
matrimônios dos degenerados, dos oligofrênicos, dos doentes
137
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

mentais; b) assistir mulheres em período de gestação para


auxiliá-las no que fazer para o futuro psíquico do nascituro; c)
combater o analfabetismo; d) rever a distribuição das matérias,
dos programas, dos horários etc. nas escolas secundárias a fim
de incluir mais conteúdos sobre higiene, a exemplo do que já
ocorria na Escola Normal do Rio de Janeiro e no sexto ano
da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro; e) investir na
propaganda para uma formação moral mais apurada por meio da
disciplina Educação Moral e Cívica; f) orientar cientificamente
a escolha das profissões de acordo com as inclinações, as
tendências e as capacidades verificadas por exames adequados
(ESPOSEL, 1925).
Além das atividades que desenvolveu quanto “à propaganda
da higiene mental” (LBHM, 1934, p. 67), estabeleceu outras
medidas voltadas para o público em geral, como: consultórios
gratuitos de profilaxia mental; serviço gratuito de consultas
para doentes nervosos; uma biblioteca de obras de psicologia
e educação, com sala de leitura pública; gabinete de clinica
psicanalítica; curso prático de psicologia aplicada á orientação
e á seleção profissional, que pela primeira vez era realizado no
Brasil; palestras de vulgarização, essencialmente populares, quer
mediante conferências técnicas para meios cultos, quer, enfim,
por meio de publicações avulsas ou periódicas, destacando-
se entre as últimas os Archivos Brasileiros de Hygiene Mental.
Enumeramos algumas das medidas tomadas pelos membros da
LBHM para demonstrar como os higienistas estavam empenhados
na realização do ‘Programa de Higiene Mental e Eugenética’,
intervindo em diferentes aspectos da vida social. Entre as várias
propostas profiláticas apresentadas e desenvolvidas pela LBHM,
138
A S C A M PA N H A S A N T I A L C O Ó L I C A S N A S E S C O L A S P R I M Á R I A S

destacam-se as campanhas antialcoólicas, que descreveremos a


seguir.

As campanhas antialcoólicas

A cruzada antialcoólica ocupou um destaque especial dentro


do ‘Programa de Higiene Mental e Eugenética’, pensado pela
LBHM para ‘combater a degeneração nervosa e mental’. Pela
frequência com que alguns termos aparecem nos ABHMs e pela
forma como se referiam ao alcoolismo [“a maior das endemias”
(LBHM, 1930a, p. 270), “o demônio da humanidade” (BRAGA,
1930, p. 273), é possível afirmar que este item foi o que agregou
maior empenho por parte dos membros da LBHM. Uma das
estratégias mais utilizadas pela LBHM no combate ao consumo
de bebidas alcoólicas foi a organização da ‘Semana Antialcoolica’
promovida anualmente desde 1927. Tais campanhas tomavam tal
intensidade que, em algumas ocasiões, a LBHM era confundida
como ‘Liga Antialcoólica’. Com esse evento a LBHM pretendia
sensibilizar a população de um modo geral e, para isso, contava
com o apoio dos poderes públicos, representados pelo Presidente
da República e seus Ministros:

De todos os pontos do país, chegam-nos adesões valiosas e


espontâneas que põem em evidência a veracidade do terreno
em que a Liga semeia as suas ideias. Não podemos deixar de
salientar e enaltecer aqui a atuação do Governo Federal e dos
poderes públicos estaduais que, em sua grande maioria, têm
concorrido do modo mais eficiente para o êxito dessa campanha.
O Sr. Presidente da Republica deu-nos a honra de patrocinar a
3a. semana antialcoólica [1929], fazendo-se representar na sua
sessão inaugural por um dos ilustres membros do seu gabinete.

139
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

Por intermédio do Sr. Ministro da Justiça que, todos os anos


se tem dignado telegrafar aos Governadores e Presidentes dos
Estados, solicitando o apoio para a luta contra o alcoolismo [...]
(CALDAS, 1929, p. 58, grifo nosso).

Para alguns Estados da Federação, os ABHMs registram


menções dos delegados regionais da LBHM pelo empenho na
organização e mobilização das pessoas em torno das ‘Semanas
Antialcoólicas’. Entre eles, destacam o de Santa Catarina
(LBHM, 1930d, p. 49):

Como é sabido, em 1927, na 1ª Semana Antialcoólica, foi o


Estado de Santa Catharina o que consideramos ter exercido mais
eficiente propaganda [...]. É com mais vivo prazer, entretanto,
que registramos ter havido um de nossos Delegados Regionais,
o ilustre e esforçado Sr. Professor Laércio Caldeira de Andrade,
de Santa Catarina, que continuou, em 1929, como nos anos
anteriores, a enviar-nos, logo após a Semana, o seu minucioso
Relatório dos trabalhos realizados.

Também é citado o Estado do Amazonas: ‘na 2ª Semana,


em 1928, coube o voto de louvor ao Estado do Amazonas’. O
Estado de Pernambuco, Rio Grande do Norte, entre outros, são
citados frequentemente.
Quanto aos municípios, os higienistas tinham uma
consciência da penetração e da adesão às campanhas
antialcoólicas, como revela Caldas (1929, p. 59): “Nos próprios
municípios, o problema está sendo estudado e, podemos até
dizer, resolvido, pois, temos a satisfação de comunicar que,
no Brasil, já existe uma unidade municipal onde não se bebe
álcool, onde impera a lei seca”. Para ilustrar essa afirmação,
trazemos o exemplo do município de Campina Grande do Sul,
Paraná, “onde a habilidade do seu Prefeito e Chefe Político,
140
A S C A M PA N H A S A N T I A L C O Ó L I C A S N A S E S C O L A S P R I M Á R I A S

Sr. Feliciano Ribeiro, conseguiu abolir a venda de bebidas


alcoólicas, instaurando a lei seca, sem a menor revolta por parte
dos seus munícipes” (CALDAS, 1929, p. 59).
A intensificação das campanhas e do estudo sobre o
alcoolismo era justificada pelo fato de o alcoolismo ser
considerado o verdadeiro “flagelo da humanidade”, um forte
fator de debilitação racial. Magalhães (1929, p. 81), numa
das palestras na Terceira Semana Antialcoólica, definiu o
alcoolismo como o ‘inimigo da raça’, demonstrando que “sua
eliminação é assunto eugênico, ligado à defesa nacional e à
constituição da nacionalidade”. Roxo (1925) apontou a sífilis
(50%) e o alcoolismo (30%) como os principais responsáveis
pelas internações psiquiátricas, totalizando 80% dos casos.
Estes números indicam a opção dos higienistas pelo combate
ao alcoolismo, embora a sífilis ocorresse em números mais
preocupante. Para Reis (1994, p. 85, grifo nosso),

é possível que a preferência da LBHM pelo combate ao


alcoolismo, em detrimento da sífilis, se devesse ao fato desta
última já ser motivo, como dizia Riedel, de grande ‘atenção dos
poderes públicos’ tendo inclusive o Departamento Nacional
de Saúde Pública, por ‘brilhante conquista de Carlos Chagas na
reforma de nossa Higiene’ criado uma ‘Inspetoria exclusiva para
profilaxia de moléstias venéreas’.

Gustavo Riedel (REIS, 1994, p. 86), apresentando dados


estatísticos de Belisário Penna, de 1921, no Congresso Médico
de Havana, em 1922, acusava o consumo de 171,4 litros por
habitante e por ano só de cachaça ou ‘paraty’, num total de
435.000.000 litros anuais. Se a esses números se acrescentassem
outras bebidas alcoólicas, ter-se-ia, então, a cifra de 834.685.000
litros de álcool potável consumidos no país, o que representava
141
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

“grave fator deprimente da nacionalidade”, além de enorme


gasto de dinheiro. Além disso, “o alcoolismo era apontado por
Gustavo Riedel como responsável por 70% dos casos de detenção
penal no país e por 32% (estatística de Roxo) ou 28% (estatística
de Afrânio Peixoto) da quota de alienados internados” (REIS,
1994, p. 87).
Eram estes números que preocupavam e estimularam os
higienistas a levantar a bandeira da ‘luta antialcoólica’.
A LBHM ganhou fôlego e entusiasmo no combate ao
alcoolismo com a Revolução de 19301. Nesse ano, Belisário
Penna, diretor do Departamento Nacional de Saúde Pública,
Ministro Interino da Educação e Saúde Pública no período,
foi chamado de ‘evangelizador-higienista’, sendo escolhido
para patrono da Quarta Semana Antialcoólica. Mais ainda,

a República Nova [inaugurada pela Revolução de 1930]


inaugurou-se sob os melhores auspícios para os amigos da
temperança. Sensatos dispositivos de proibicionismo parcial
foram em numerosos centros do país das primeiras medidas de
emergência tomadas pelas autoridades da nova administração
(LBHM, 1931a, p. 168).

O novo Governo Federal2 de início apoiou as propostas


antialcoólicas da LBHM. As estratégias para viabilizar essas

1 “Foi um movimento da parte da oligarquia brasileira, insatisfeita com o predomínio dos


poderosos do café, com apoio de setores sociais, cansados da velha e corrupta república tal
como os tenentes e as classes médias urbanas. Esta parcela da oligarquia [...] queria acabar
com domínio da oligarquia cafeeira mineiro-paulista [...]” (ARRUDA; PILETTI, 1994, p.
289). Getúlio Dornelles Vargas foi quem assumiu o poder provisório, como delegado da
Revolução, em nome do Exército, da Marinha e do Povo.
2 Refere-se ao governo liderado por Getúlio Dornelles Vargas, que governou o Brasil de 1930-
1945 e de 1951-1954 (ARRUDA; PILETTI, 1994, p. 320).

142
A S C A M PA N H A S A N T I A L C O Ó L I C A S N A S E S C O L A S P R I M Á R I A S

propostas incluíram um programa composto de palestras,


de campanhas educativas nas escolas e junto às famílias,
programas radiofônicos e outros. Houve também, por parte da
LBHM, a intenção de medidas mais repressivas e autoritárias
em relação ao combate ao alcoolismo; primeiramente,
tentando aprovar, no Congresso Nacional, o ‘anteprojeto de
lei antialcoólica’ para conseguir “[...] o dever de estimularem
os Poderes Públicos a obra da propaganda e da educação
antialcoólica” (LBHM, 1930a, p. 270); em seguida, querendo
convencer as autoridades governamentais para a adoção da
‘lei seca’, a exemplo dos Estados Unidos. O novo Governo
Federal pareceu concordar com essa aspiração da LBHM,
num primeiro momento.
Essas campanhas chegaram a mobilizar o Congresso Nacional
no sentido de aprovar um anteprojeto de lei que ‘taxasse o álcool-
bebida’ e proibisse a venda de bebidas alcoólicas aos domingos
e feriados.

Eis aqui alguns resultados da nossa campanha, que entrou agora


na sua fase de objetivações. Na câmara dos Deputados encontra-
se um projeto do eminente Deputado Dr. Plínio Marques,
aguardando o momento oportuno para a sua transferência em
lei. Esse projeto procura taxar proibitivamente o álcool-bebida
e proibir a venda dos inebriantes nos domingos e feriados
(CALDAS, 1929, p. 58).

Quanto ao anteprojeto de lei antialcoólica, em agosto de


1930, a posição era essa: “[...] já está anunciado que o projeto de
lei antialcoólica - relatado pelo Deputado Afrânio Peixoto - foi
assinado unanimemente pela Comissão, devendo ir, dentro em
breve, ao plenário da Câmara” (LBHM, 1930a, p. 270).
143
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

Em relação ao seu desfecho, não encontramos, nos ABHMs,


dados que confirmassem a aprovação. Ao contrário, sim: “Esse
projeto, entretanto, sabem todos que no seu andamento estava
encontrando os maiores óbices, pois, sempre, há grandes
interesses em torno do álcool e a organização dos Corpos
Legislativos, na chamada República Velha [...]” (LBHM, 1931a,
p. 168).
No Editorial (LBHM, 1931a, p. 168, grifo nosso) ficaram
registrados os impasses e as dificuldades dentro do Poder
Legislativo da ‘República Velha’3 para o sucesso da campanha
antialcoólica:

Surgiu [...] no antigo Congresso Nacional, um projeto de lei


antialcoólica, brilhantemente redigido por uma comissão de
competentes. Esse projeto, entretanto, sabem todos que no seu
andamento estava encontrando os maiores óbices, pois, sempre,
há grandes interesses em torno do álcool e a organização dos
Corpos Legislativos, na chamada República Velha, permitia a
infiltração fácil dos interessados nos arraiais das boas intenções,
entravando e paralisando as melhores iniciativas.

Na prática, a política do novo Governo Federal para


afastar os ‘os interessados nos arraiais das boas intenções’, que
paralisavam as melhores iniciativas no combate ao alcoolismo,
não teve sucesso, isto é, permaneciam os entraves a qualquer
medida que propusesse a contenção do consumo de bebidas
alcoólicas. O problema agravou-se quando o projeto de lei foi

3 É o período do Brasil Republicano (1889-1930), onde os poderes político e econômico


estavam nas mãos das oligarquias estaduais, dominadas pelos coronéis. Este período ficou
conhecido por Coronelismo ou a política do Café-com-Leite, onde havia a alternância, no
governo federal, entre São Paulo (maior produtor de café do país) e Minas Gerais (maior
produtor de leite do país) (ARRUDA; PILETTI, 1994).

144
A S C A M PA N H A S A N T I A L C O Ó L I C A S N A S E S C O L A S P R I M Á R I A S

analisado pelo Ministério da Fazenda. A intenção era boa, mas a


ideia da adoção de uma ‘lei seca’, a exemplo dos Estados Unidos,
representava um “déficit superior a 200 mil contos [...] à receita
geral” (REIS, 1994, p. 82). Diante dessas contingências, os
membros da LBHM alteraram seu discurso, afirmando, a partir
de então, que era necessária a adoção de medidas mais simples,
sendo ‘aconselhável’ a não aprovação de medidas proibicionistas
radicais, pelo menos de imediato (LBHM, 1931b).
Embora este não fosse o pensamento original dos membros
da LBHM, foi uma forma de saírem do impasse. Senão vejamos:
era problemático para a LBHM, que vinha passando por sérias
dificuldades financeiras, sem sede própria, e solicitava e esperava
auxílio do Governo Federal, propor uma lei que trouxesse como
consequência a diminuição de receita dos cofres públicos.
Nessas circunstâncias, a cruzada antialcoólica empreendida
pela LBHM foi adotando um discurso menos radical e
propondo, então, encaminhamentos que não ferissem o erário
público. Colocava, desta forma, a educação na rota principal,
como definiu o deputado federal e alienista Penafiel (1925a,
p. 151, grifo nosso), ao escrever no Jornal do Comércio em
16/12/1923:

1° O alcoolismo é uma doença moral e seu remédio está na


educação;
2° O alcoolismo é uma doença social e seu remédio está na
ordem, uma vez que o pessimismo reinante, que leva o homem
a embriagar-se, procede da angústia de uma transição, fruto da
anarquia mental dos tempos que atravessamos.

Nesta citação Penafiel demonstra estar sensível as questões


emergentes da época. De fato, a sociedade brasileira vivia um
145
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

momento de transição de um sistema produtivo fundamentado


no sistema agrário para um sistema industrial com todas as
contradições e mazelas sociais, que geravam muita angústia
e dificuldades para a população. Exemplo disso foi o êxodo
rural, que produziu o crescimento demográfico desordenado da
cidade; as condições precárias de habitação

[...} sobre o trabalhador recai não só a forma absoluta de extração


do excedente como ainda a contínua insegurança. Em regra,
nada impede [impedia] a despedida imediata após longos anos
de serviço, os frequentes acidentes não indenizados, inexiste
[inexistia] a previdência social; no horizonte, não se desenha
[desenhava] a expectativa da aposentadoria [...] (FAUSTO,
1986, p. 105).

o conflito entre o trabalhador nacional e o estrangeiro, caso


típico dos italianos em São Paulo, que, num primeiro momento,
foram incentivados à imigração para a lavoura do café, e não
para a indústria, e que, com o declínio da exportação do café,
foram “migrando” para o setor industrial, dominando o setor,
até pela sua cultura e experiência trazida da Europa, conflitando
com o trabalhador nacional.
Ianni (1965, p. 132) também aponta várias questões que na
passagem da década de 20 para a década de 30 do século XX,
necessitavam de respostas, desembocando na Revolução de 30,
tais como:

A luta pelo saneamento das práticas eleitorais, pela adoção de


uma legislação trabalhista sistematizada e adequada à situação
emergente, pela proteção da indústria nascente, pela reforma
do sistema de ensino, pela revisão do organismo militar, pela
reforma da administração pública, pela assistência à áreas
empobrecidas[...]

146
A S C A M PA N H A S A N T I A L C O Ó L I C A S N A S E S C O L A S P R I M Á R I A S

Diante de tantas dificuldades, revelando muita preocupação


com a crescente incidência do uso abusivo de bebidas alcoólicas,
a LBHM explicitou alguns princípios que deveriam nortear as
campanhas de antialcoolismo:

1. Elementos essenciais da educação - saúde, meio, lar, recreio.


2. O ensino antialcoólico deve ser ministrado no conjunto de
processos educativos referentes à saúde.
3. Cumpre distinguir entre propaganda em educação - o ensino
antialcoólico não deve ser processado nas escolas fora da
educação sanitária.
4. Os textos didáticos deverão incorporar dados científicos
positivos, não só sobre o efeito patológico das bebidas alcoólicas,
como também sobre os valores práticos, morais e sociais, da
temperança.
5. A escola é o laboratório das reformas sociais. A escola
brasileira tem por centro as matérias e não o aluno. Ainda
assim é valioso elemento que deve ser utilizado na cruzada
antialcoólica (BRAGA, 1930, p. 275, grifo nosso).

Em relação a esses princípios, destacamos que o combate


ao alcoolismo no ‘conjunto de processos educativos referentes à
saúde’, juntamente com a ‘educação sanitária’, não significava
que fosse algo a ser tratado em separado ou se constituísse como
tema à parte da saúde. Era um problema de saúde, sem dúvida,
embora não possamos perder de vista que, em geral, o prejuízo
à saúde do consumidor de bebidas alcoólicas era apenas a
chegada de um longo percurso traçado pela industrialização,
distribuição, comercialização do setor de bebida alcoólica com
todos os custos/benefícios que este processo representava.
Devemos levar em conta que a produção e o consumo de bebidas
alcoólicas eram interessantes tanto para a indústria quanto para a
classe trabalhadora, na medida em que garantiam o lucro para o
empregador e emprego para o trabalhador. Isso, provavelmente,
147
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

justificava, em parte, a resistência a encaminhamentos que


propunham a repressão desta atividade, tal como as campanhas
empreendidas pela LBHM. Tais campanhas, via de regra, não se
aproximavam da raiz do problema, mas fundamentavam-se em
apelos de caráter moralista, como podemos observar na citação
a seguir:

As considerações que precedem, levam-nos à dedução de que


a educação antialcoólica deve enquadrar[se] no programa geral
da educação sanitária. Não deve constituir um tópico à parte
acrescido ao programa geral de ensino sanitário. Não poderá
faltar como elemento predominante da educação moderna,
porque o álcool é o ‘demônio da humanidade’, é um dos
maiores flagelos sociais. Falha é a educação que não tiver
em conta os inimigos da felicidade humana, com os quais o
indivíduo que hoje vive tem de lutar e que, tem de subjugar
para viver bem, para saber viver (BRAGA, 1930, p. 273, grifo
nosso).

Dessa forma, “a escola é o lugar ideal” para se conscientizar


dos males que o alcoolismo provoca, pois “as gerações velhas
são difícil campo de propaganda para as ideas novas” (BRAGA,
1930, p. 275). Esse discurso oficializado pela LBHM já havia
sido afirmado por Franco da Rocha numa conferência proferida
sobre ‘Alcoolismo e Loucura’, na Sociedade de Medicina de
São Paulo, em 16/08/1918 e que foi transcrita e publicada nos
ABHM em 1930:

[...] A escola é que deverá ser o campo principal da luta. A


sugestão bem dirigida criará raízes no espírito das crianças e
terá efeito duradouro. Os meninos devem crescer imbuídos
de horror ás bebidas alcoólicas. A criança, com o espírito em
formação, receberá as ideias que lhe serão continuamente
sugeridas e as guardará no subconsciente, intimamente
associadas ao sentimento de terror que o mestre lhe saberá

148
A S C A M PA N H A S A N T I A L C O Ó L I C A S N A S E S C O L A S P R I M Á R I A S

incutir e constituirão assim uma força criptomnésica para influir


mais tarde sobre os atos do homem já formado, afastando as
más sugestões e inspirando-lhe sempre salutar repugnância ao
veneno traidor (LBHM, 1930c, p. 249, grifo nosso).

As campanhas Antialcoólicas nas escolas

Nas escolas, os higienistas adotavam como um dos


encaminhamentos principais a integração do corpo docente às
suas campanhas. Uma das formas era a adesão do professor ao
‘Livro dos Abstêmios’:
O objetivo desta iniciativa era que os professores
assumissem “[...] o compromisso formal de nunca mais
fazerem uso de bebidas alcoólicas e de se tornarem apóstolos
do ensino antialcoólico nas escolas” e levarem os “discípulos
a seguirem o seu mestre”. Essa proposta foi feita por Ernani
Lopes, então Presidente da LBHM, por meio de um ofício
enviado em 03/10/1929 a Jonathas Serrano, subdiretor
técnico da instrução pública do Distrito Federal (LBHM,
1930b, p. 132).
A intenção era que se conseguisse, no mínimo, um ‘educador
abstêmio’ que assumisse o compromisso publicamente em cada
uma das escolas públicas da rede de ensino e que servisse de
exemplo para outros educadores e outros alunos. Do ofício,
registramos o seguinte:

Sem duvida nenhuma, o aspecto que deve caracterizar o educador


antialcoólico há de ser a força sugestiva do seu ‘exemplo’. Se ele,
portanto, vai pregar o abstencionismo, deverá começar por ser,
ele próprio, abstêmio. Desde o início de sua campanha tem

149
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

defendido a nossa Liga, esse ponto de vista, aliás de elementar


coerência (LBHM, 1930b, p. 133, grifo nosso).

Mais adiante, o autor também propunha que seria


importante haver um ‘livro dos alunos abstêmios’, embora seu
compromisso renovado anualmente e com consentimento dos
pais.

Propõe, por isso, a Liga, que em cada Escola, onde haja uma
educadora abstêmia, exista, aos cuidados desta, um pequeno
‘livro dos alunos abstêmios’, rubricado pelo inspetor escolar ou
pelo inspetor médico-escolar, ou pela diretora da Escola, no qual
cada assinatura implique o compromisso formal da abstenção de
bebidas alcoólicas durante o prazo de um ano. Decorrido este,
deverá ser o compromisso reiterado, por escrito, para outros
doze meses [...] (LBHM, 1930b, p. 133).

Além desta iniciativa, durante a realização da Terceira Semana


Antialcoólica, promovida pela LBHM, instituiu-se o ‘concurso
de composições literárias de propaganda antialcoólica’. A
vencedora foi a professora paulista Maria Antonietta de Castro.
Na entrega do prêmio, Erasmo Braga (LBHM, 1929, p. 140) fez
a seguinte saudação:

A Liga Brasileira de Hygiene Mental incumbiu-me de apresentar-


vos a expressão de seus aplausos ao magnífico trabalho com
que enriquecestes a nossa literatura infantil. Ao lado da ação
didática direta, necessitamos de uma literatura sadia, com
esse elemento emotivo que torna encantador o vosso trabalho
agora premiado. [...] Vosso trabalho de pioneira será semente
fecunda - outras mulheres de talento, homens de espírito
fulgurante sentir-se-ão estimulados a escrever para as crianças.
E assim formaremos uma geração com uma atitude correta de
cujas mãos nos dias de próximo futuro a causa da redenção da
humanidade hoje escravizada ao alcoolismo receberá a palma da
vitória definitiva.

150
A S C A M PA N H A S A N T I A L C O Ó L I C A S N A S E S C O L A S P R I M Á R I A S

Durante a realização da Quarta Semana Antialcoólica, dos


vários estados brasileiros que desenvolveram atividades, dois
ficaram registrados nos ABHM: Pernambuco e Santa Catarina.
Dentre as atividades - como textos em jornais locais, entrevistas
em rádio e - cartazes, as palestras foram o meio mais utilizado
para sensibilizar a população sobre os malefícios do consumo
de bebidas alcoólicas. Foram diversos os profissionais (médicos,
professores, acadêmicos, etc.) que proferiram palestras e se
revezaram para atender a vários grupos escolares.
Sobre as atividades desenvolvidas em outros estados, os
ABHMs (LBHM, 1933) registram o empenho de diversas
entidades e materiais produzidos para auxiliar nas campanhas.
É necessário destacar que no Estado do Rio Grande do Sul já
existiam campanhas antialcoólicas anteriores a 1927, quando
aconteceu a Primeira Semana Antialcoólica promovida pela
LBHM.
Enfim, o que podemos depreender dos registros constantes
dos ABHMs é que havia um grande empenho e concentração
de esforços dos membros da LBHM na luta para a erradicação
do alcoolismo da sociedade brasileira. Em todos os números dos
ABHMs, no período por nós analisado, aparecem referências,
trabalhos científicos, discussões e eventos promovidos, dentre
outros, sobre o assunto.
Não obstante, o tempo passado prova que o consumo de
bebidas alcoólicas não é apenas uma questão de saúde, nem se
resolveu (ou se resolverá) por meio de medidas legais coercitivas
ou proibitivas, de palestras para escolares ou da exigência de
constar nos livros escolares “lição magistralmente preparada
contra o uso [indevido] do álcool” (LBHM, 1930c, p. 249). É
151
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

uma questão cuja solução não habita no terreno particular da


educação, da família ou de outra instituição qualquer, tomada
isoladamente, pois são inúmeros e complexos os interesses
antagônicos envolvidos nesta questão.
Nesta breve retrospectiva sobre as atividades da LBHM,
como as descritas nas campanhas antialcoólicas, entre outras,
fica evidente o empenho e a crença dos higienistas neste tipo
de encaminhamento. Entendiam que é pelo cuidado com
as crianças na mais tenra idade e por meio de campanhas
antialcoólicas, dentre outras, que iriam se resolver e prevenir
alguns dos problemas da sociedade brasileira.
Assim, subsistiam problemas como a sífilis, e o alcoolismo,
que, como já referimos anteriormente, representavam,
respectivamente, 50% e 30% das internações nos hospitais
psiquiátricos; a exploração do trabalhador que não tinha quase
nenhum direito trabalhista até o início da década de 30 do século
XX, trabalhando até 12 a 16 horas diárias, às vezes, em lugares
insalubres, forçando-o a deflagrar greves; as precárias condições
de habitação da população, como temos o exemplo na cidade
do Rio de Janeiro: “Não tinha esgoto, a luz de gás, precária, fazia
das ruas lugares perigosos à noite [...] A cidade, ao começar o
século XX, conservava ainda o mesmo aspecto - apenas crescera
um pouco - de duzentos anos atrás” (BASBAUM, 1986, p. 124),
além de tantos outros.
A instituição escola, na sua prática, também denunciava
questões que necessitavam de novos encaminhamentos diante
dos ineficazes resultados escolares. Dos alunos matriculados,
“[...] a frequência não chega[va] a 70%. E sobre a frequência
reduzida, a deserção escolar é sintoma impressionante. Mesmo
152
A S C A M PA N H A S A N T I A L C O Ó L I C A S N A S E S C O L A S P R I M Á R I A S

para o ensino fundamental comum, a taxa dos alunos que


chegam a concluir o curso não atinge seis por cento [...]”
(FREITAS, 1934 apud BOARINI, 1993, p. 35).
Estes problemas sociais são produções históricas, o que
significa que é no bojo do desenvolvimento de sua organização
produtiva que a sociedade produz suas contradições sociais.
Assim, as mazelas sociais não têm sua origem na maior ou menor
capacidade intelectual, natural e hereditária de sua população, ou
na predisposição ao consumo de bebidas alcoólicas, portanto não
podem ser explicadas desta forma. Podemos afirmar, em relação
às campanhas antialcoólicas descritas anteriormente, que, por
mais divulgação que se tenha feito por meio de conferências,
palestras, folhetos, semanas antialcoólicas, concursos, etc.,
não foi resolvida a questão do consumo abusivo de bebidas
alcoólicas, pois o alcoolismo, certamente, era a denúncia de algo
mais profundo e estrutural, e é nesta perspectiva que tentaremos
esboçar algumas considerações finais.

Considerações finais

Esta breve recuperação da história indica a grande


preocupação dos membros da Liga Brasileira de Hygiene Mental
com os problemas e questões sociais da época, que, por sinal,
não eram poucos. Essas pessoas viveram, na época, grandes
conflitos na área política. Era a oligarquia rural (República
Velha) resistindo à industrialização, eclodindo, por fim, com a
Revolução de 1930, que levou Getúlio Vargas ao poder. Sofreram
as influências do imperialismo, da euforia trazida pelo progresso
153
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

advindo do processo de industrialização e urbanização, pelo


desenvolvimento e descobertas feitas pelas ciências naturais e
exatas. Os problemas e questões que se enfrentavam não diziam
respeito só aos higienistas ou a um grupo social específico, mas
eram problemas que afligiam e atingiam todos os membros da
sociedade. Ser alcoolista ou sifilítico, por exemplo, não é só
problema do indivíduo ou da sua família, mas uma questão
social, visto que os problemas daí decorrentes generalizam-se.
Apesar de todas as dificuldades financeiras, de não
conseguirem o apoio governamental na exata medida de
sua reivindicação, da falta de espaço físico para organização
dos trabalhos e das várias mudanças de sede, por vezes até
trabalhando em espaços inadequados, os membros da Liga
Brasileira de Hygiene Mental não abandonaram o trabalho em
prol do movimento educacional contra o uso abusivo de bebidas
alcoólicas, mobilizando vários setores da sociedade brasileira.
Por outro lado, tal empenho e sensibilidade em relação aos
problemas da época, na perspectiva social, não os isentavam
de alguns limites teórico-metodológicos, comprovados pelo
transcorrer da história. No combate ao alcoolismo, em um
primeiro momento, os higienistas tentaram medidas mais
abrangentes, buscando apoio do Congresso Nacional e do
Presidente da República Getúlio Vargas, para a aprovação do
anteprojeto de lei antialcoolismo, mas eram muitos os óbices
a serem enfrentados, como: as objeções do Ministério da
Fazenda de que tal anteprojeto, se aprovado, provocaria uma
baixa na arrecadação para os cofres públicos; a necessidade de a
indústria do álcool manter-se em funcionamento, até para gerar
empregos e evitar outros problemas sociais, a necessidade de
ajuda financeira que a LBHM tinha para dar prosseguimento
154
A S C A M PA N H A S A N T I A L C O Ó L I C A S N A S E S C O L A S P R I M Á R I A S

aos seus trabalhos, entre outros fatores. Diante dessa situação os


higienistas passaram a defender medidas paliativas, que muito
pouco se aproximavam da raiz do problema.
Enfim, a recuperação da história vai deixando claro que
consumir bebidas alcoólicas não é apenas uma questão de
predisposição pessoal para o vício, mas são inúmeros os interesses
político-econômicos na industrialização e consumo de bebidas
alcoólicas ou qualquer outra droga. A não aprovação do projeto
de lei de antialcoolismo, proposto pela LBHM é a prova disso.
A aprovação desta lei exigia o enfrentamento com a oligarquia
agrária, produtora do álcool, com o Governo, interessado na
arrecadação fiscal, com os distribuidores e os comerciantes de
bebidas alcoólicas, entre outros.
Ademais, os higienistas, orientando seus trabalhos a partir da
‘concepção biológica’ do ser humano e adotando a metodologia
das ciências naturais (biologia, botânica, física, química etc.),
limitaram-se a entender o alcoolismo apenas como uma questão
do indivíduo. Para eles, os problemas sociais eram causados
pelo indivíduo, porque era ‘indolente, ocioso, indisciplinado,
pouco inteligente, etc.’, sendo, então, provenientes da própria
constituição biológica do indivíduo, devido à ‘miscigenação das
raças, das taras sexuais, da má formação genético-hereditária,
da ignorância cultural da maioria da população’ etc. Desta
forma, a resolução dos problemas sociais estaria em impedir,
os casamentos inter-raciais, a vinda de imigrantes que
apresentassem ‘alguma anomalia’ ou em fazer a orientação
profissional utilizando-se dos recursos científicos, dentre outras
medidas. Entender dessa forma é negar o processo histórico,
desconsiderando o palco onde se trava o embate de interesses
155
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

conflitantes; é analisar a realidade a partir de uma ótica linear,


naturalizada dos acontecimentos.
As explicações biológicas não foram suficientes ou foram
reducionistas para abarcar a totalidade das causas que envolvia
o alcoolismo. Isso talvez explique o motivo pelo qual, apesar
de tanto esforço e tantas campanhas antialcoólicas, o índice de
pessoas que faziam (e fazem) o uso abusivo de bebidas alcoólicas
não diminuiu. Enfim, o tempo passado indica que, apesar do
empenho e da tenacidade demonstrados pelos membros da
LBHM, as causas do abuso do consumo de bebidas alcoólicas
e os consequentes problemas não podem ser compreendidos e
enfrentados apenas como uma questão individual, nem podem
ser combatidas com campanhas realizadas no âmbito escolar.

156
A educação escolar do deficiente
mental: a proposta higienista
Milena Luckesi de Souza

Ao refletir sobre as primeiras iniciativas governamentais e


da sociedade civil, no Brasil, relacionadas à sistematização da
educação dos portadores de deficiência mental, Jannuzzi (2004)
destaca o pioneirismo da classe médica. Para a autora, o despertar
dos médicos nesse campo educacional pode ser interpretado
como a procura de respostas ao desafio apresentado pelos
casos mais graves, resistentes ao tratamento exclusivamente
terapêutico, quer no atendimento clínico particular, quer no
encontro dos médicos com os deficientes abrigados junto aos
doentes em hospitais psiquiátricos. Tendo como orientação a
importância da pedagogia, os médicos foram responsáveis pela
criação de instituições de caráter educacional ligadas a hospitais
psiquiátricos (JANNUZZI, 2004). Em Pernambuco, o médico
higienista Ulysses Pernambucano publicou, em 1918, o trabalho
Classificação de crianças anormais, considerado como a primeira
tese brasileira no campo da deficiência mental.
Desde o Império, um serviço ligado ao campo médico o
qual, em algumas províncias teve repercussão na educação do
deficiente mental foi o ‘Serviço de Higiene e Saúde Pública’. Em
São Paulo, esse setor deu origem à ‘Inspeção Médico-Escolar’,
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

que em 1911 foi responsável pela criação de classes especiais e


formação de pessoal para trabalhar com ‘crianças anormais’.
No Rio de Janeiro a educação do deficiente mental esteve mais
ligada à rede regular de ensino, tendo sido editado em 1911 o
Decreto nº 838, da ‘Reforma do Ensino Primário, Normal e
Profissional’, que propunha subclasses especiais para crianças
hígidas e retardadas nas escolas-modelo da capital.
São estas algumas das informações que nos levaram a
recuperar os Archivos Brasileiros de Hygiene Mental (ABHM),
publicados no período de 1925 a 1947 pela Liga Brasileira de
Hygiene Mental (LBHM), entidade civil criada em 1923, no Rio
de Janeiro, e primeira associação de medicina social da América
do Sul. Com esta recuperação tivemos como objetivo conhecer
as concepções deste grupo de intelectuais, em sua maioria com
formação médica, e as suas propostas de atendimento escolar
destinado ao deficiente mental.

A educação do deficiente mental na perspectiva


higienista

De acordo com Lopes (1925c, p. 96), no Brasil existiam


poucas instituições especializadas no atendimento educacional
destinado a pessoas com deficiência mental, enquanto na Itália a
‘Liga de Higiene e Profilaxia Mental’ esteve fortemente envolvida
na organização da assistência médico-pedagógica para crianças
deficientes. O regime escolar especial nesse país era indicado
para o grupo de crianças denominadas “falsos anormais” e para
os “verdadeiros anormais da inteligência e do caráter”, isto é,
158
A EDUCAÇÃO ESCOLAR DO DEFICIENTE MENTAL

débeis e instáveis. Neste último grupo também eram inseridos


os anormais dos sentidos e da palavra e ainda os adenoides, os
distraídos, os débeis físicos e, por fim, os atrasados por motivos
externos, sociais.
Ainda de acordo com Lopes (1925c), para os ‘falsos anormais’
era recomendada a escola diferencial, que poderia ser anexa às
escolas comuns, ao passo que para os verdadeiros anormais
psíquicos era indicada a escola autônoma, completamente
separada. No caso dos ‘falsos anormais’ verificava-se que,
removendo-se o defeito físico ou o estorvo social responsáveis
pelo déficit psíquico de certas crianças, logo se começava a ver
alterar-se o seu quociente intelectual até o nível normal de sua
idade. A obtenção desse nivelamento tornava-se assim o objetivo
das escolas diferenciais, que deveriam ter o mesmo programa
e horário das escolas comuns, com ensino individualizado. As
escolas autônomas, ao contrário, deveriam ter os programas
das aulas divididos em dois períodos, férias reduzidas, horário
especial, rotação escolar, ortofonia, etc. Em vista da permanente
incapacidade de adaptação dos anormais, o trabalho educativo
deveria ser orientado para um dado ofício.
Ao tratar sobre a higiene mental e pedagogia na França,
Toulouse afirmava que caberia ao professor apontar ao
médico inspetor as crianças que, pela sua falta de progresso
no estudo ou pela indisciplina, afigurassem-se deficientes
mentais. Confirmado o déficit, os retardados por insuficiência
escolar deveriam receber aulas de repetição; os atrasados por
fraqueza física, escolas ao ar livre; os débeis intelectuais, escolas
de aperfeiçoamento; e os perversos, escolas de reforma (apud
LOPES, 1925b).
159
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

Segundo Toulouse, “A obra profilática começa na escola por


uma seleção não só dos retardados como dos bem-dotados, de
modo que, constituídos em grupos homogêneos, possam ser-
lhes aplicados os métodos adequados de ensino” (apud LOPES,
1925b, p. 172).
Caldas (1932) faz referência ao ensino de crianças anormais
no Canadá, onde existiam institutos públicos com capacidade
de internato para 3.000 deficientes mentais e escolas para
‘anormais’, sendo que cerca de 6.000 crianças recebiam instrução
em classes especiais.
Na Tchecoslováquia, no período de 13 anos foram criados
180 cursos de

[...] educação especializada de crianças anormais [...], 11 internatos


para meninos débeis mentais, quatro escolas maternais para
crianças difíceis, seis classes para crianças paralíticas e aleijadas,
uma classe para diminuídos da audição, outra para diminuídos
da visão, duas classes ambulantes, quatro internatos para débeis
físicos e oito classes para crianças débeis nos institutos de surdos-
mudos (FATOS E COMENTÁRIOS, 1933a, p. 61).

Ao se referir à higiene mental nos Estados Unidos, Camargo


(1945-1946) aponta que o aumento espantoso do número de
oligofrênicos deveria ser encarado com maior rigor dentro
do capítulo da prevenção das doenças mentais. Relata que a
Conferência da Criança, realizada na Casa Branca em 1930,
revelou existirem, nos Estados Unidos, 850 mil oligofrênicos
em idade escolar. Em 1945, calculava-se que apenas 10% dos
oligofrênicos estariam internados e que os demais permaneciam
na comunidade, por falta de instalações para ‘recolhimento e
tratamento extramural’. O autor ainda menciona que em certos
160
A EDUCAÇÃO ESCOLAR DO DEFICIENTE MENTAL

estados norte-americanos existiam amplas provisões para o


tratamento de escolares deficientes mentais. Em Massachusetts,
por exemplo, havia nas escolas e nas instituições mais de
900 classes especiais para retardados, com cerca de 12.000
alunos. Os diretores das escolas faziam, no fim do ano, uma
relação dos alunos que estavam atrasados três ou mais anos no
trabalho escolar e os encaminhavam ao exame dos psiquiatras
e psicologistas. O resultado desse exame era encaminhado
às autoridades escolares, e sempre que houvesse dez ou mais
crianças nessas condições era criada uma classe especial na
escola. O trabalho das classes especiais, segundo Camargo,
figurava como ótimo fator na prevenção das doenças mentais,
porquanto prevenia o desenvolvimento de um sentimento de
inferioridade nas crianças que repetiam e não conseguiam
avançar como os demais alunos.

A educação do deficiente mental no Brasil

Diante destas informações, Roxo (1939) reconhece que,


no Brasil, o atendimento prestado aos deficientes mentais era
precário em relação aos países citados, e menciona o debate
sobre a questão de assistência às crianças anormais trazida pelos
jornais da época, a propósito da ideia de criação de um grande
recolhimento para tal fim, no Estado de Minas Gerais. Faz
referência à existência de atendimento para essas crianças anexo
a hospitais psiquiátricos e a instituições de caráter privado.
Corroborando esta afirmação, ao descrever os principais tipos
de psicopatas encontrados nos manicômios judiciários, Carrilho
161
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

(1932, p. 20) inclui “os débeis mentais e imbecis, indivíduos


muito sugestionáveis, que obedecem às ordens dos amorais,
dos perversos e servem de ligação entre enfermos de reações
perigosas”.
Roxo (1939) relata ainda que o Dr. Haroldo Leitão da Cunha
criou em Petrópolis, Estado do Rio de Janeiro, um sanatório-
escola para crianças anormais, e que poucos meses antes os
professores Martagão Gesteira e Xavier de Oliveira também
fundaram um sanatório-escola na Gávea, no mesmo Estado do
Rio de Janeiro. Henrique Roxo assinala que, em parceria com
Eurico Sampaio ,criou no “sanatório da Rua Voluntários da
Pátria uma seção para crianças anormais”, e avalia tais iniciativas
como um avanço, já que “ alguns anos atrás, pais que tinham o
infortúnio de ter filhos anormais, não tinham onde os colocar,
para educação e tratamento”, embora a internação da criança
nestes estabelecimentos só seria possível se os pais dispusessem
de altos recursos financeiros. Na tentativa de solucionar esta
questão, em 1938 foi criado o Instituto 7 de Setembro de
caráter público, destinado a crianças abandonadas. Desde sua
criação esta instituição vivia superlotada. De lá as crianças
eram encaminhadas para patronatos e escolas, onde não havia
separação entre normais e anormais (ROXO, 1939, p. 1).
Para Roxo (1939), as crianças anormais poderiam ser
divididas em dois grandes grupos: aquelas que tiveram uma
lesão grave no encéfalo e se tornaram idiotas, paralíticas, etc.,
e aquelas que, tendo tido uma lesão mais leve, apresentavam-
se desequilibradas, fronteiriças, excitáveis, etc. Roxo acreditava
que, em relação ao primeiro grupo, nada se poderia fazer,
“caberia ao Estado amparar os pais infortunados”. Por sua vez,
o segundo grupo poderia se beneficiar de uma intervenção
162
A EDUCAÇÃO ESCOLAR DO DEFICIENTE MENTAL

médica. Roxo requisitava do Estado a tomada de providências


quanto à ampliação e desenvolvimento de serviços de assistência
às crianças anormais reconhecidamente pobres. Para ele,
orientada a criança num ofício compatível com a sua capacidade
mental, ela poderia trabalhar em oficinas, nas quais haveria
certa compensação aos dispêndios que com ela o Estado fizesse.
(ROXO, 1939, p. 2).
Para Cavalcante (1943, p. 17), os “retardados” poderiam ser
divididos em três grandes classes: “os educáveis, os difíceis e os
irremediavelmente ineducáveis”.
No grupo dos educáveis enquadravam-se os retardados
pedagógicos ou falsos deficientes, ou seja,

crianças deficientes por frequência irregular à escola, por


distúrbios endócrinos, por “vegetações adenoides”, por
vícios de educação no lar ou erros de técnica educacional na
própria escola, assim como os subnutridos, os “sifiloclásicos”,
os intoxicados pela tuberculose, os portadores de gânglios
hipertrofiados, enfim, as crianças vítimas das várias moléstias
comuns na infância que poderiam deixar sequelas no sistema
nervoso central (CAVALCANTE, 1943, p. 17).

Ao grupo “dos difíceis e refratários aos estudos” pertenciam


os retardados intelectuais “com ou sem debilidade mental, os
atrasados intelectuais por instabilidade, os atrasados intelectuais
por perturbações do caráter e os atrasados perversos”. Aí
estavam “os débeis mentais, os esquizoides, os ciclotímicos, os
‘mitomaníacos’, os ‘gliscroides’, os paranoicos, os hiperemotivos
e os psicastênicos”. É neste grupo que se encontram os deficientes
verdadeiros, “os atrasados intelectuais, os instáveis, os pervertidos,
os amorais, os desamorosos, os sem afeto, os caracteres duros,
amorfos, indisciplinados e mentirosos”. Para Cavalcante
163
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

(1943, p. 17), estas crianças traziam o “selo incontestável de


uma causa congênita ou hereditário-constitucional”. O grupo
dos irremediavelmente ineducáveis era formado pelos idiotas
e os imbecis, ambos com graves lacunas psíquicas, isto é, os
verdadeiros oligofrênicos, raramente encontrados no meio
escolar, dada a gravidade das lacunas mentais (CAVALCANTE,
1943, p. 17).
Cavalcante (1943) ressaltava a necessidade imediata da
criação de classes especiais nas escolas e da realização de
pesquisas sistemáticas sobre os deficientes mentais, bem como
da organização de institutos de reeducação. Para esse autor,
os exames periódicos de saúde facilitariam, até certo ponto, a
pesquisa sistemática dos retardados mentais e, por conseguinte,
um tratamento médico e pedagógico de resultados mais
compensadores. Ele acreditava que o deficiente intelectual
poderia e deveria, em épocas diversas do seu estudo escolar, ser
colocado nas classes das crianças normais, como estímulo à sua
reeducação.
A ‘Sociedade Pestalozzi do Brasil’, instituição “destinada a
proteger a infância anormal e preservar a sociedade e a raça das
influências nocivas da anormalidade mental”, concebia que a
educação da criança anormal deveria fornecer-lhe meios para
melhoramento de seu estado mental, moral e social, de sorte
que, na idade adulta, ela “pesasse o menos possível à sociedade”
(FATOS E COMENTÁRIOS, 1933b, p. 329 e 330). Esta
instituição considerava como anormal

[...] todo ser que, por sua condição hereditária, ou acidentes


mórbidos ocorridos na infância, não pôde, por falta de
inteligência, ou distúrbios de caráter, adaptar-se à vida social

164
A EDUCAÇÃO ESCOLAR DO DEFICIENTE MENTAL

com os recursos comuns ministrados só pela família, ou pela


escola pública primária, suficientes para a maioria das crianças
da mesma idade (FATOS E COMENTÁRIOS, 1933b, p. 329
e 330).

Para Antipoff (1945-1946, p. 65), não havia necessidade


de segregar o deficiente mental em asilos especiais e retirá-
lo do convívio com crianças ou adolescentes normais. Ela
acreditava que os imbecis, e mesmo certos idiotas, poderiam
ser “membros úteis da coletividade”, desde que lhes fossem
dados o tratamento mais humano possível, muito respeito à sua
dignidade de homem, muita atenção às peculiaridades de sua
estrutura biossocial e de seu caráter.

As clínicas de orientação infantil

Os Archivos Brasileiros de Hygiene Mental registram, também,


a criação de serviços de higiene mental, clínicas de orientação
infantil e institutos de psicologia, que, dentre outras funções,
atuaram na avaliação, diagnóstico e encaminhamentos
médico-pedagógicos dos deficientes mentais. Destacamos o
‘Serviço Médico-Escolar de São Paulo’, que desde 1917, sob
a direção do doutor B. Vieira de Mello, entre suas inúmeras
atribuições, realizava a seleção dos anormais, com especificação
das deficiências observadas e do regime especial de que
necessitavam, a criação de classes e escolas para eles e orientação
técnica aos profissionais nelas atuantes. O critério utilizado
para avaliar a anormalidade seria o grau de inteligência em
relação aos alunos da mesma idade, bem como a observação
165
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

da atenção e da memória. Não se explicitava claramente o que


seria inteligência, principal parâmetro para a classificação das
crianças em supranormal ou precoce, subnormal ou tardio e
normal.
Assim, dentro da classificação dos subnormais estariam os
astênicos, os indiferentes, os apáticos, os instáveis, os irrequietos,
os impulsivos, os ciclotímicos e alunos pertencentes a outras
categorias. Seriam, pois, sempre alunos ‘portadores de defeitos
pedagógicos’. Os ‘anormais pedagógicos’ seriam os dotados
de inteligência e instrução em grau inferior à sua idade, por
descuido ou ‘defeito pedagógico’.
Em 1925 foi criado em Pernambuco o ‘Instituto de
Psicologia’, ligado ao Departamento de Saúde e Assistência e
posteriormente transferido para o Departamento de Educação
com a denominação de ‘Instituto de Seleção e Orientação
Profissional’, cujos objetivos eram orientar e selecionar
professores para escolas primárias, secundárias e profissionais,
aplicar testes pedagógicos e físico-psicológicos, efetuar
diagnósticos em crianças excepcionais e realizar estudos de
psicologia patológica (PERNAMBUCANO, 1930). Neste ano,
o Governo do Estado conseguiu autorização para a criação da
primeira escola para excepcionais do País, a qual funcionou,
durante alguns anos, mais como uma classe especial do Curso
de Aplicação anexo à Escola Normal do que como uma escola
propriamente dita.
Segundo Barreto (1933), o Instituto de Psicologia de
Pernambuco atuou no diagnóstico das várias formas de
‘parada’ do desenvolvimento intelectual: debilidade mental,
imbecilidade e idiotia, mediante a determinação da idade
166
A EDUCAÇÃO ESCOLAR DO DEFICIENTE MENTAL

mental (I.M.) e do quociente intelectual (Q.I.) desses doentes.


Esta instituição, dentre tantas tarefas, por meio de testes
psicométricos, realizava ‘a descoberta das crianças anormais’
no meio escolar. O valor do Q.I. encontrado permitia uma
classificação em grupos de fracos, médios e fortes. Entre os
fracos eram encontrados os ligeiramente deficientes e os
anormais. Eles deveriam ser posteriormente avaliados pelo
Serviço de Higiene Mental de forma a descobrir os falsos
anormais, ou seja, aqueles que, livres de causas acidentais,
poderiam se transformar em indivíduos normais (BARRETO,
1933). As pesquisas realizadas por este serviço ofereciam duas
vantagens: a) afastariam as observações involuntariamente
subjetivas dos professores, motivadas pelo elemento afetivo;
e b) permitiriam resolver ou encaminhar para sua solução o
problema das classes homogêneas.
Na cidade de São Paulo, atendendo aos ideais de educação
higiênica previstos para a escola, conforme o art.7° do Decreto
n° 9.872 de 28 de dezembro de 1938, foi criada, no ‘Serviço
de Saúde Escolar, a Seção de Higiene Mental Escolar’, com as
seguintes atribuições:

a) prevenir, nos indivíduos predispostos, as futuras psicopatias,


pela correção oportuna dos vícios de temperamento e dos
distúrbios nervosos da criança escolar;
b) organizar assistência médico-pedagógica aos deficientes
mentais, de modo a assegurar-lhes uma aprendizagem proveitosa
e consequente elevação de seu rendimento social;
c) orientar as autoridades e técnicos do ensino, médicos e
demais pessoas interessadas, quanto às necessidades que possam
contribuir para a saúde mental presente e futura do escolar;
d) realizar pesquisas sobre os fatores psicopatogênicos que atuam
no período infantil do desenvolvimento individual e sobre os
meios mais adequados de combatê-los;

167
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

e) proporcionar ensino teórico e prático da higiene mental


da criança, para habilitação e aperfeiçoamento de técnicos
especializados (LIMA, 1985, p. 143).

Durval Marcondes, chefe deste serviço, orientava e


coordenava equipes multidisciplinares - formadas por médicos,
psiquiatras, educadores, neurologistas e especialistas em
psicologia - as quais, conforme modelo das clínicas norte-
americanas, ocupavam-se do atendimento dos casos-problema
encaminhados pelas escolas públicas. Este atendimento, baseado
no modelo médico inspirado no Movimento de Higiene Mental,
além do tratamento dos escolares, previa também orientação à
família e à escola, porém tinha como foco o aprendiz.
Segundo Marcondes (1941), quando a professora observava
que determinado aluno não se aplicava convenientemente aos
estudos por motivos que fugiam à simples alçada da pedagogia,
deveria imediatamente comunicar o fato ao referido serviço, que
desde então o tomaria aos seus cuidados, verificando se se tratava
de debilidade mental. Por meio de um corpo de visitadoras
sociais eram verificadas as condições de meio familiar em que
vivia o escolar, seus hábitos, seus antecedentes. Todos os exames
clínicos e de laboratório eram feitos desde logo, procurando-se
corrigir ao mesmo tempo qualquer anomalia de ordem física ou
orgânica.
Para Marcondes (1941), quase dois terços dos que eram
reprovados nas escolas o eram por motivo de deficiência mental.
Com o estabelecimento de classes especiais para débeis mentais
nas escolas públicas, duas das quais foram inauguradas durante
o I Congresso Nacional de Saúde Escolar, o autor acreditava
que este índice deveria baixar.
168
A EDUCAÇÃO ESCOLAR DO DEFICIENTE MENTAL

Nesta perspectiva citamos ainda os trabalhos desenvolvidos


pela ‘Seção de Ortofrenia e Higiene Mental no Instituto
de Pesquisas Educacionais’, instalado no Rio de Janeiro em
1934 e dirigido por Arthur Ramos. Segundo Ramos (1939),
o programa de ação deste serviço incluía a higiene mental
preventiva dos pré-escolares, a educação de pais, professores e
visitadores, clínicas de hábitos e de direção da infância, exame
médico-psicológico do escolar, orientação dos psiquicamente
sãos, reajustamento dos mal-ajustados, formação mental do
educador, formação do educador especializado, educação
do público por meio de conferências, divulgação pelo rádio,
cinema, boletins, publicações, trabalhos de experimentação,
originais e contraprova de experiências estrangeiras, entre
outros trabalhos.
A questão das classes homogêneas foi debatida por vários
higienistas como possibilidade de promover educação a todas as
crianças, levando em consideração a etapa de desenvolvimento
intelectual e psíquico em que se encontravam. Aliada a essa ideia
tinha-se também a formação de classes especiais, cuja premissa
básica era a expansão de oportunidade educacional para aqueles
que não conseguiam seguir com regularidade os processos de
ensino.
Observamos que os higienistas propunham a criação de
formas diferenciadas de atendimento em clínicas, institutos
psicopedagógicos e centros de reabilitação, conforme o grau
de comprometimento intelectual, admitindo inclusive que
os deficientes mentais atendidos em classes especiais anexas
às escolas pudessem posteriormente ser incluídos em classes
regulares, o que não acontecia de fato.
169
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

Quando existiam turmas anexas às escolas primárias,


o propósito não era combater a segregação. Citando Vial,
Jannuzzi (1992, p. 29) reitera: “Essas classes passam a funcionar
nas mesmas escolas que as crianças normais, mas têm a entrada
e o recreio separados: é a turma dos loucos e a turma dos
normais”.
De uma forma geral, o ensino voltado para o deficiente
mental se restringia à aquisição de hábitos higiênicos e
alimentares e de algumas regras sociais. Conforme o grau de
comprometimento intelectual, o deficiente mental deveria ser
preparado para executar atividades laborais simples.
A análise do atendimento escolar oferecido ao deficiente
mental nas primeiras décadas do século XX, segundo o ideário
higienista, revela-nos que a defesa da educação dos indivíduos
com deficiência mental era feita em nome da ‘ordem e
do progresso’, pois evitaria a proliferação de criminosos e
desajustados de toda espécie, ao mesmo tempo em que implicaria
a economia dos recursos públicos e dos bolsos de particulares,
diminuindo gastos com a manutenção de manicômios, asilos e
penitenciárias.
A educação do deficiente mental também foi realizada
em função do aluno normal. De acordo com Jannuzzi (1992),
as escolas só deveriam aceitar matrículas de alunos que não
prejudicassem o bom andamento dos alunos normais, tornando
assim mais produtivo o ensino nas classes comuns, destinadas
aos mais favorecidos. A partir das experiências levadas a efeito
com crianças ‘anormais’, também seria possível generalizar
procedimentos pedagógicos para o conjunto do sistema
escolar.
170
A EDUCAÇÃO ESCOLAR DO DEFICIENTE MENTAL

Algumas considerações à guisa de conclusão

A recuperação destes antecedentes históricos do movimento


social representado pela Liga Brasileira de Hygiene Mental
nos permite entender por que as classes e escolas especiais
surgiram como forma de educação para as crianças que não
acompanhavam as outras, as ‘normais’. O tempo transcorrido
permite-nos constatar que a segregação social não trouxe o
‘saneamento’ pretendido, ou seja, a regeneração do indivíduo
considerado anormal, como afirmava a educadora Helena
Antipoff (1945-1946). Hoje fazemos o discurso contrário: o
discurso da inclusão.
Desde as últimas décadas do século XX e no curso do século
XXI observamos que há uma intensificação de movimentos
sociais, discursos e legislações orientados para a integração/
inclusão do indivíduo com deficiência (mental, física ou
sensorial) em diversos setores da vida social. No âmbito
educacional, a proposta inclusiva requisita, entre outras coisas,
que as escolas comuns se preparem para receber ‘esses indivíduos
diferenciados’, prevendo a gradativa desativação de um sistema
especial e paralelo de ensino.
A partir de 1990, dois movimentos mundialmente
significativos e influentes foram propostos no sentido de discutir
a inclusão dos deficientes no contexto escolar: a Conferência de
Jontien, ocorrida na Tailândia, em 1990, denominada Educação
para Todos, e a Conferência Mundial sobre Educação de
Alunos com Necessidades Especiais, realizada em Salamanca, na
Espanha, em 1994. A Conferência de Jontien chama a atenção
para a necessidade de tomar medidas que garantam a igualdade
de acesso à educação aos portadores de todo e qualquer tipo
171
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

de deficiência, como parte integrante do sistema educativo. A


Conferência de Salamanca convoca as escolas regulares (com
orientação inclusiva) a assumirem a educação dos alunos
deficientes.
No Brasil, em 2003, o Ministério da Educação, por meio da
Secretaria de Educação Especial – SEESP, lançou o ‘Programa
Educação Inclusiva: Direito à Diversidade’, assumindo o
compromisso de disseminar a política de construção de
sistemas educacionais inclusivos, dando apoio ao processo de
implementação nos municípios brasileiros e firmando parcerias
e convênios para garantir o atendimento das necessidades
educacionais especiais dos alunos.
Conforme a SEESP (2003), este programa “é parte de um
movimento que compreende a educação como direito humano
fundamental, base para uma sociedade justa, com ações voltadas
para o acesso e permanência de todas as crianças na escola”.
Tem como objetivo mobilizar esforços para habilitar todas as
escolas para o atendimento dos alunos na sua comunidade,
especialmente aqueles que têm sido mais excluídos das
oportunidades educacionais.
Cabe saber se a nova sociedade inclusiva pode ser realizada
dentro dos moldes de uma ‘sociedade do conhecimento’, que
prima pela capacidade de adaptação do indivíduo às constantes
mudanças ocorridas no mundo do trabalho, em que prevalece a
heterogeneidade, a desigualdade social que a cada dia exacerba
a concentração de riqueza e a produção da miséria.
Vivemos numa sociedade em que os avanços tecnológicos
possibilitam ao homem as mais diversas comodidades e
possibilidades. Muitas tecnologias concedem autonomia
172
A EDUCAÇÃO ESCOLAR DO DEFICIENTE MENTAL

às pessoas com deficiência, no trabalho, no lazer, na vida


familiar ou na vida social. Por exemplo, recursos como os
leitores de tela diminuem as limitações e facilitam o acesso ao
computador a quem apresenta algum tipo de deficiência visual;
a bengala eletrônica indica obstáculos durante a locomoção;
o conhecimento da Língua Brasileira de Sinais facilita a
comunicação do surdo com o surdo e o não surdo; elétrodos
captam estímulos enviados pelo cérebro e provocam movimentos
satisfatórios em mãos e pernas artificiais; pesquisas estão sendo
realizadas com um sensor cerebral que, implantado no córtex
motor, detectaria atividade celular cerebral e possibilitaria a
execução de movimentos voluntários em membros artificiais;
veículos adaptados permitem a locomoção de deficientes físicos,
etc. (ACESSIBILIDADE..., 2006).
Não obstante, são poucos os indivíduos que têm acesso a
essas tecnologias. Para a maioria dos deficientes o convívio na
sociedade é restrito, o que infringe a Declaração Universal dos
Direitos Humanos, que, em seu artigo 11 o, diz: “[...] todos os
seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”
(ORGANIZAÇÃO..., 1948). Seguindo este mesmo referencial,
a Declaração dos Direitos do Deficiente Mental, no artigo
primeiro afirma que “o deficiente mental deve gozar, na medida
do possível, dos mesmos direitos que todos os outros seres
humanos. (ORGANIZAÇÃO..., 1971).
A história da deficiência mental, a despeito das inúmeras
transformações e das conquistas acerca dos direitos das
pessoas com deficiência, é marcada por desigualdades e pela
marginalização das pessoas que, por não se adequarem a um
determinado modelo, são tomadas como potencialmente
173
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

capazes de corromper a ordem e colocar em risco a ‘suposta e


esperada’ harmonia.
Resguardadas as devidas transformações no decorrer da
história, a análise do atendimento educacional oferecido ao
deficiente mental nas primeiras décadas do século XX, segundo
a LBHM, e a existência de discursos atuais que visam ‘incluir’
o deficiente mental no sistema regular de ensino, indicam, em
nosso entender, contradições da sociedade burguesa, expressas
na incongruência entre avanço científico e tecnológico e o
restrito acesso a esse desenvolvimento por parte da grande
maioria da população.

174
A pedagogia médico-higiênica de
Manoel Bomfim: um olhar sobre a
criança nas primeiras décadas
do século XX
Roselania Francisconi Borges

E é disto – do trabalho inteligente, da perfeição dos processos


– que depende a riqueza; só há um caminho para chegar lá, a
cultura da inteligência, a difusão da instrução, a propagação da
ciência (BOMFIM, 1905, p. 116).

O Brasil tem potencial para ser uma grande usina de empregos


em setores como turismo, educação e saúde [...] é preciso formar
pessoas que tenham, acima de tudo, um bom capital social, ou
seja, disciplinadas, comprometidas e zelosas com o trabalho
(PASTORE, 2008).

O tempo transcorrido entre as falas destacadas pode nos


indicar a exata compreensão de que um século muitas vezes
não é suficiente para modificar determinadas ideias e práticas,
pelo menos na área educacional, no Brasil. Imbuídos dessa
perspectiva, tomamos como ponto de partida o início do século
XX para analisar alguns aspectos das práticas educacionais
promovidas nas primeiras décadas daquele século. É nosso
objetivo estabelecer algumas correlações dessas práticas com as
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

atuais, com vista a oferecer uma contribuição ao debate sobre as


práticas educacionais da atualidade.
Retomando a história do pensamento educacional brasileiro,
percebemos que desde a virada do século XIX para o século XX
já se colocava como proposta, entre alguns setores da sociedade,
a ideia de que a educação seria o caminho para levar o país à
condição de uma grande nação; porém no cenário sociopolítico
e econômico brasileiro havia muitos impasses a esse projeto
de educação, como o acesso do imigrante à escolarização ou
a vinculação ou não da alfabetização com o direito de ser
eleitor, embora a Constituição de 1891 fosse clara quanto ao
impedimento do analfabeto de votar.
Em meio a estas e a outras questões amplamente debatidas
pelos setores médios da sociedade (em sua maioria constituídos
de intelectuais, políticos e profissionais liberais), surgia o que
Nagle (1976, p. 239) denominou de “preparação para o terreno”
para a difusão do ideário da Escola Nova no Brasil, pois nesse
período passou a ocorrer, de um lado, uma “modesta infiltração
destes ou daqueles procedimentos, ideias ou práticas”, e de
outro, algumas “condições facilitadoras para a mais sistemática
e ampla difusão posterior do ideário”. A criação de laboratórios
de psicologia e pedagogia, entre eles o Pedagogium, em 1903, é
citada como uma dessas condições facilitadoras. Outras delas
são a Reforma Leôncio de Carvalho (1879), o Parecer de
Rui Barbosa sobre o Ensino Primário (1882) e a I Exposição
Pedagógica (1883).
É oportuno demarcar que o apogeu do movimento da Escola
Nova ocorreu no Brasil após 1932, e que seu marco teórico se deu
com o lançamento do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova.
176
A PEDAGOGIA MÉDICO-HIGIÊNICA DE MANOEL BOMFIM

Anteriormente, a preocupação se dava em relação à formação


‘cívica e moral’, tendo como meta a nacionalidade. Neste
sentido, os discursos em defesa da escolarização se avolumavam,
seja para ampliar o direito ao voto, seja para preparar mão-
de-obra para a indústria crescente, seja ainda para unificar os
chamados ‘valores nacionais’.
Também adepto do ideal de ‘unificação moral’, José
Veríssimo (1857-1916), já no ano de 1906, em A educação
nacional, referindo-se a seu próprio discurso publicado no Jornal
do Brasil no ano de 1892, tecia comentários sobre a Reforma
Benjamim Constant, acentuando que ela traria essa unificação
mediante a implantação da instrução primária nacional.
Aproximamo-nos desta realidade tendo como proposta
discutir alguns pressupostos educacionais construídos nas
primeiras décadas do século XX que, em nosso entender,
mantêm-se arraigados na sociedade atual. Para tanto, adotamos
como objeto de análise alguns aspectos da proposta educacional
elaborada por Manoel Bomfim (1868-1932), médico e educador,
apresentada em sua obra Lições de pedagogia, escrita em 1915 e
reeditada em 1917 e 1926. Tal escolha se deve ao fato de ele
ter sido um dos precursores da pedagogia médico-higiênica
implantada no sistema educacional brasileiro ao longo do
século XX. Seu pensamento revela algumas concepções acerca
da educação criadas no início daquele século e expressa as ideias
vigentes na época. Sendo assim, suas produções contribuíram
para legitimar o pensamento higienista no Brasil.
Em Lições de pedagogia, Manoel Bomfim também defende
a educação escolar primária, conferindo-lhe importante papel
na vida do indivíduo, como o de “ensinar a todos, tudo aquilo que
177
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

todo indivíduo precisa saber para viver como ser humano social,
qualquer que seja a sua situação pessoal e o seu destino possível
[...]”. Atribuía a ela uma dupla função: “ensinar umas tantas
cousas, e educar convenientemente a mentalidade da criança”
(1926, p. 99, grifo do autor).
Ante a alegação de alguns parlamentares de que era direito
dos pais não obrigarem seus filhos a frequentar a escola primária,
Manoel Bomfim recorre ao Estado como lei maior na tarefa
de debelar o analfabetismo e enfatiza que “seria monstruoso
que o Estado, defensor efectivo dos fracos, além de admitir o
não cumprimento de um dever moral, reconhecesse nos pais o
direito de condenar as crianças, pessoalmente indefesas e fracas,
ao grande mal do analfabetismo e da ignorância” (BOMFIM,
1926, p. 101).
Na mesma perspectiva de análise, Leão (1917, p. 83) clama ao
poder público em prol da educação popular. Inflamado, assim
se expressa: “Organizemos a educação nacional, eduquemos o
nosso povo, ensinando-lhe cousas práticas e úteis, fazendo-o
trabalhar, individualizar-se e viver”.
Seus anseios, tal como os de Manoel Bomfim, pautavam-
se em ideais por ele vislumbrados de conquistas educacionais
obtidas por países que ele admirava, às quais ele atribuía o
desenvolvimento econômico por eles alcançado. Nessa linha
de raciocínio Carneiro Leão ainda acentuava: “Unamo-nos,
solidários e resolutos, para esta campanha de alevantamento
cívico, de educação do nosso povo, de salvação da pátria”
(LEÃO, 1917, p. 153).
Enquanto grande parte dos setores médios discutia se
era ou não necessário ofertar e tornar obrigatória a educação
178
A PEDAGOGIA MÉDICO-HIGIÊNICA DE MANOEL BOMFIM

escolar primária à população infantil, para o segmento médico


integrante do movimento higienista já havia a constatação de
que “A mentalidade desenvolvida corretamente, e atuando por
meio de reações convenientes, traduz-se no comportamento mais
adequado ao ajustamento do individuo ao meio físico e social,
exibindo o que se pode chamar a saúde mental”; e para que isso
ocorresse, verdadeiramente seria preciso empreender “esforços
e organizações, para insistir, um pouco menos sumariamente,
sobre o lado construtivo do problema, que encontra na educação
a forma útil de realizar-se” (FONTENELLE, 1925, p. 2-3, grifo
do autor).

Algumas premissas educacionais da virada do


século

O médico Manoel Bomfim foi um dos integrantes da


‘Liga Brasileira de Hygiene Mental’ (LBHM), que congregava
profissionais, em sua maioria, com formação médica, os quais
pautavam sua atuação em preceitos de higiene e cuja preocupação
maior era com uma medicina do social (GONDRA, 2000).
Bomfim era reconhecido por seus pares como um importante
colaborador na defesa da causa do higienismo. Esse termo foi
atribuído “aos profissionais da medicina que funcionaram como
teóricos ou executores da política de higienização das cidades,
da população e da família” (COSTA, 2004, p. 36).
Bastante atuante e influente em sua época, contribuiu com
diversas obras para o delineamento do pensamento educacional
no Brasil, marcando sua atuação, principalmente, na elaboração
179
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

de currículos e materiais didáticos utilizados nos cursos de


formação de educadores. Como pensador de seu tempo, Manoel
Bomfim deixou algumas formulações defendidas por alguns
segmentos das elites intelectuais da época.
Descrito por Leite (1976) como nacionalista num período
em que havia ainda um pessimismo em relação à possibilidade
de formação de uma nacionalidade, Manoel Bomfim se
contrapunha aos intelectuais que descreviam o povo brasileiro
como inferior e atrasado e se destacava ao enfatizar a necessidade
de valorizar o povo e de investir nos ideais cívicos da pátria.
Esse ideal de nacionalismo, segundo Aguiar (2000, p. 184),
tinha um duplo significado, pois de um lado

[...] tratava-se de um processo de afirmação diante do parasitismo,


ou seja, diante do colonialismo e do imperialismo; de outro,
era também uma reação ao racismo científico, que dividia a
sociedade entre indivíduos capazes e incapazes, superiores e
inferiores, úteis e inúteis, com vistas à dominação dos últimos.

Em O Brasil na América: caracterização da formação brasileira,


uma de suas últimas obras, escrita em 1929, Bomfim (1997,
p. 91-93) ainda defendia o nacionalismo como condição
para a existência do Brasil enquanto nação verdadeiramente
independente de seus colonizadores e constituinte de suas
próprias tradições.
Como exemplos de autores adeptos dos ideais nacionalistas
naquele período Leite (1976) indica Alberto Torres (1865-1917) e
Olavo Bilac (1865-1918), que, assim como Bomfim, acentuavam
os valores nacionalistas e defendiam as riquezas nacionais.
Entre as frentes de discordância da possibilidade de construção
180
A PEDAGOGIA MÉDICO-HIGIÊNICA DE MANOEL BOMFIM

de uma nacionalidade a partir do investimento educacional


nas diversas etnias que compunham o Brasil Império (negros,
indígenas e mestiços) estão autores como Raimundo Nina
Rodrigues (1862-1906) e Sílvio Romero (1851-1914), adeptos
das ideias evolucionistas formuladas por Charles Darwin
(1809-1882). Pautado nas premissas de Darwin, Sílvio Romero
apregoava que a formação do povo brasileiro provinha “de uma
sub-raça mestiça e crioula, distinta da europeia”. Dessa forma,
defendia a necessidade de um branqueamento progressivo da
população, que poderia ser alcançado somente por meio da
imigração (ROMERO apud LEITE, 1976, p. 187).
Defendida pelos setores médios e apoiada pela medicina, a
educação escolar passou, paulatinamente, a ser considerada um
remédio para amainar os males identificados como entraves à
superação das condições de atraso do país naquele período.
Neste sentido, o pensamento educacional de Manoel
Bomfim expresso em sua obra Lições de pedagogia pode ser
analisado pelo fato de esta representar a sua mais importante
produção no campo da educação, sendo vasta em concepções e
ideias que refletem seu pensamento e sua proposta educacional.
Tomando Manoel Bomfim como um dos representantes de
um pensamento construído por um segmento da sociedade,
buscamos perceber as concepções educacionais presentes
naquele momento histórico, tendo como pressuposto que estas
concepções são fruto de uma prática social que passou a embasar
os encaminhamentos teóricos e as práticas educacionais ao
longo do século XX.
Interessa-nos nesta análise perceber em que medida as
ideias produzidas por Manoel Bomfim são fruto de concepções
181
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

mais amplas, da sociedade como um todo, em função dos


condicionantes históricos inerentes ao contexto em que foram
produzidas.

Educação como adaptação ao meio

Pautado em uma visão de progresso a ser alcançado via


educação, Manoel Bomfim produziu seu pensamento voltado
ao ideal de educação como adaptação e busca de perfeição
moral. Em Lições de pedagogia ele expressa esta concepção
afirmando:

Desde que procuramos caracterizar a ação educativa,


reconhecemos que ela consiste principalmente em modificações,
corretivas e apuradoras. Objetivamente, essas modificações se
fazem no sentido de adaptar ao meio; mas, subjetivamente,
elas se apresentam e são consideradas como um trabalho de
aperfeiçoamento. Então, com toda razão, diz a moral: o fim
geral da educação é levar o indivíduo ao máximo de perfeição possível
(1926, p. 25-26, grifo do autor).

Neste sentido, o papel da escola e, por conseguinte, do


educador, para Manoel Bomfim, é a busca do ideal de evolução
moral, tendo-se em mente que esse ideal seria

[...] a própria indicação do que deve ser o viver de amanhã, -


qual deve ser essa fórmula de vida, mais perfeita e mais apurada,
para onde se encaminha a espécie humana. Por outras palavras:
o educador deve ter uma concepção bem nítida das virtudes
morais para reforçá-las na consciência das novas gerações, a
fim de levá-las a essa forma de vida superior, e que é a própria
realização do progresso (1926, p. 30-31).

182
A PEDAGOGIA MÉDICO-HIGIÊNICA DE MANOEL BOMFIM

Nesse aspecto seu pensamento seria também veiculado


por outros higienistas em décadas posteriores. Por exemplo,
o médico Waclaw Radecki (1925, p. 20-21, grifo do autor)
advoga que “o educador deve ter consciência, tanto da função
em que pretende influir, como da direção em que o vai fazer,
como finalmente dos meios da influência mesma”. Para
Radecki, o objetivo do educador deveria ser o de “fornecer à
criança educada a possibilidade de se desenvolver de modo
a atingir o máximo da durável felicidade pessoal e utilidade
social”. Para alcançar tais ideais propunha a higiene mental
como “uma ação que forma as condições da vida capazes de
assegurar o desenvolvimento normal em todos os domínios
da vida psíquica da criança”.
Adepto desse pensamento, Manoel Bomfim também
propõe a higiene mental tendo em vista “o apuro do caráter
e a organização do proceder”. Esta teria como objetivo “opor
tendências, ou instintos, uns aos outros, desenvolver e reforçar
os bons pelo exercício; deixar atrofiar os maus, evitando as
tentações, organizar os hábitos, de sorte que sobre eles tenha
sempre a vontade um poder eficaz” (1926, p. 387).
Tais concepções de educação como ‘busca de perfeição moral’
suscitam alguns questionamentos sobre seus posicionamentos
e suas contraposições em relação a alguns ideais presentes na
época. Por exemplo, o termo adaptação pressupõe ajustamento
e aceitação das condições existentes, sem questionamentos ou
posicionamentos divergentes ou reivindicações a fazer. Ora, se
para ele a adaptação ao meio deveria ser a condição básica da
educação, esta seria a aceitação do que estava sendo posto no
meio, sendo isto favorável ou desfavorável ao indivíduo.
183
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

Neste sentido, Manoel Bomfim - tal como aqueles a quem


se opunha teoricamente - parece conceber o meio social como
um espaço idealizado composto por entes que estariam sempre
a serviço dos novos seres. Desse modo, nega as contradições
sociais e os diferentes posicionamentos entre as classes sociais,
além do anseio de dominação de uma sobre outra, tratando a
educação como fenômeno isolado das questões sociais.
Insere-se também no âmago desta questão sua concepção
de moralidade ou de ‘perfeição moral’. Ele ressalta a formação
de virtudes morais como condição para o alcance do progresso;
porém não se questiona: progresso de quem? Ou de qual classe
social? Talvez em seus questionamentos com seus interlocutores
ele não trabalhe com conceito de classe, e sim, com o conceito
de raça, pois, em seu entender, o que impediria a realização do
Brasil como nação seria a divisão entre as raças responsáveis
pela formação do povo brasileiro, e não a divisão entre as classes
sociais. Neste sentido defendia, sem o saber, a hegemonia
das classes dominantes sobre as dominadas, pois negava as
desigualdades sociais, concebendo o indivíduo como ente
descolado do contexto social concreto e a sociedade como a
somatória de indivíduos unidos pelo mesmo ideal, sujeitos a
determinadas leis biológicas, tendo em comum o objetivo de
progresso nacional para todos.
Para ele, pela hereditariedade os indivíduos passam às
gerações futuras algumas capacidades adaptativas, enquanto
outras são desenvolvidas ou modificadas pela educação. A
ênfase de sua proposta recai, dessa forma, sobre o papel e a
importância da educação como forma de “correção e apuro”
(BOMFIM, 1926, p. 35).
184
A PEDAGOGIA MÉDICO-HIGIÊNICA DE MANOEL BOMFIM

Nesse aspecto podemos perceber que tanto as suas


concepções de criança (como ser idealizado) e de família (como
protetora natural da criança) são concepções a-históricas, ou
seja, pautadas e uma visão naturalizada, haja vista que nem uma
nem outra possuem uma conformação natural e permanente, e
se modificam à medida que se modificam os contextos sociais
nos quais estão inseridas.
Destarte, como objeto de intervenção direta dos higienistas,
a criança passa a ser percebida pelas correntes pedagógicas
modernas como ente em formação, tornando-se um dos
principais alvos das ações médico-higiênicas inseridas nessas
propostas pedagógicas nesse período de transição do século XIX
para o século XX.

A pedagogia médico-higiênica no espaço escolar

Na introdução da obra Arte de formar homens de bem,


escrita em 1880 pelo médico Domingos Jaguaribe, o também
médico Antônio Corrêa Souza Costa, professor da Academia
de Medicina da Corte, fazendo alusão ao conteúdo da referida
obra, comenta:

No vosso excelente trabalho fazeis estudo sobre a criança,


encarando-a especialmente sob o ponto de vista higiênico e
traçais as regras e preceitos, que devem ser observados pelas
mães de família para conseguirem a saúde e vigor dos seus filhos,
preservando-os de uma infinidade de moléstias, que atacam de
preferência as crianças débeis e caquéticas (SOUZA COSTA
apud JAGUARIBE, 1880, p. 7).

185
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

Reforçando o discurso da nova premissa educacional


e trazendo-o para o contexto da educação escolar, Manoel
Bomfim recomenda ao professor o conhecimento das reações
imperfeitas de seus alunos, ou seja, propõe o conhecimento do
‘caráter da criança’.
Tanto a fala de Domingos Jaguaribe quanto a de
Manoel Bomfim podem ser tomadas como exemplos de
manifestações em torno do papel conferido à família ao longo
das transformações sociais, passando esta a ser legitimada
como a principal provedora de proteção e cuidados às
novas gerações. Costa (2004) demonstra essa mudança pela
análise de estudos médicos, cujo conteúdo revela que as
preocupações colocadas como necessidade aos profissionais
da área médica nesse período de transição Império-República
se referiam basicamente à higienização dos ambientes, dos
hábitos e costumes das famílias oitocentistas. Tais conteúdos
estão expressos nas teses defendidas por eles, as quais sugerem
que a medicina, como saber científico historicamente
construído, refletiu em seu bojo as mudanças em curso na
configuração familiar, e assim contribuiu significativamente
para reorganizar os novos papéis e as novas funções dos
membros da família moderna.
Por volta da década de 20, esse ideal buscado já demandava
saberes e ações instituídos e amplamente divulgados pela
medicina e pela pedagogia moderna. No III Congresso Brasileiro
de Higiene, realizado em 1926, a família era colocada pelo médico
Ulysses Pernambuco (1926, p. 889) como a primeira encarregada
de formar hábitos higiênicos na criança. Havia situações em
que, segundo ele, o meio familiar falhava em seu papel de
formar bons hábitos e, ao contrário, colocava-se como “o grande
186
A PEDAGOGIA MÉDICO-HIGIÊNICA DE MANOEL BOMFIM

gerador de maus hábitos, de práticas condenadas pela higiene”;


e acrescentava: “a escola tem de ser a grande modificadora da
atividade automática da criança, e nisto ela não se afasta da sua
finalidade educativa”.
Outro importante evento, o I Congresso Nacional de Educação,
realizado em 1927, em seus Anais ilustra a consolidação dos
princípios educacionais da época e demonstra, ‘grosso modo’,
a repercussão e o alcance da pedagogia médico-higiênica como
difusora dos princípios higienistas no âmbito da educação
escolar da Escola Nova.
Tais teses confirmam que o ideal educacional divulgado
deveria ser o de impor a educação higiênica com o auxílio da
escola, visando ao bem-estar coletivo e ao desenvolvimento moral
como meios de se alcançar a produção de riquezas e desenvolver
uma consciência nacional. Para Penna (1997, p. 33), o Brasil
estava repleto “de depositários e propagadores de doenças e
de taras patológicas e de contínua e progressiva degeneração
da raça e da espécie”. Sendo assim, dessa condição resultaria
“o trabalho escravizado e improdutivo, a miséria econômica, a
falência financeira, a do caráter das elites e uma mentalidade
coletiva caótica, inconsciente, passiva, sem aspirações, sem rumo
e sem aptidão para criar a consciência nacional”.
Nessa tarefa o papel do professor e a função da escola são
ressaltados por Cunha Freire (1927, p. 415, grifo nosso):

A obrigação do pedagogo deve repousar sobre um conhecimento


aprofundado da natureza humana – única base científica para a
educação moral. [...] Corrigindo, na medida do possível, as falhas
vindas da natureza ou de certos ambientes domésticos, ela não
deve esquecer que ‘o mestre que só transmite conhecimentos
não passa de um simples operário; aquele, porém, que modela o

187
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

caráter é um artista’, e isto na mais verdadeira extensão da palavra


[...]

Dessa forma, esse trabalho de ‘artista’ teria a finalidade


última de modelar o caráter da criança visando à higiene mental
entendida como adaptação ao meio.
Tal processo de formação do caráter também foi amplamente
defendido por Manoel Bomfim. Sobre esse aspecto ele se
expressa argumentando: “Um dos objetivos formais na educação
humana é desenvolver no indivíduo a força do caráter. Graças a
isto, poderá ele resistir às solicitações inferiores, e manter o seu
proceder na linha de dignidade e de honestidade que a moral
exige” (BOMFIM, 1926, p. 27, grifo do autor).
Como consequência desta suposta elevação moral –
conquistada pela formação e aperfeiçoamento do caráter -
haveria o progresso social e econômico da Nação. Na mesma
perspectiva, segundo Dechandt (1927, p. 428), “é no caráter
do povo que está a grandeza da Nação; cumpre aperfeiçoar,
aprimorar e enriquecer de virtudes os filhos desse povo [pois] a
criança cujo caráter for bem formado será um bom elemento na
classe e na sociedade”.
Nesse contexto, a educação escolar, juntamente com a
medicina social, passou a ocupar, paulatinamente, um lugar
de destaque nesse novo projeto higiênico de sociedade, para
atender ao princípio, naquele momento já construído, de
que se a criança fosse adequadamente cuidada sob os ditames
da higiene, consequentemente se tornaria um adulto física e
moralmente saudável.
188
A PEDAGOGIA MÉDICO-HIGIÊNICA DE MANOEL BOMFIM

Higiene como necessidade histórica

É importante frisar que a preocupação com a higiene


enquanto meio empregado para evitar grande parte das moléstias,
naquele período histórico era uma necessidade imperiosa, até
como uma possível condição de vida ou de morte; porém quando
tal discurso passa para o plano da educação moral, ou seja, da
higienização dos costumes, assume um caráter ideológico, por
trabalhar com a possibilidade de existência de um modelo ideal
de ser humano a ser desenvolvido inicialmente pelo esforço
da família, tendo a colaboração posterior da escola por meio
da modelagem do caráter, visando a complementar o trabalho
iniciado na família ou até mesmo corrigir os defeitos ou vícios
não sanados ou transmitidos por ela.
Quanto à formação de hábitos higiênicos, em nosso
entender, esses ensinamentos se justificam plenamente, haja
vista que algumas questões da época ‘exigiam’ tais preocupações.
Como expressão de tal necessidade Costa (1985, p. 70-71)
relata a adoção de campanhas sanitárias incluídas na legislação
sanitária da cidade do Rio de Janeiro em 1914. Com isso
o Estado buscava “evitar a manifestação ou propagação de
moléstias infecciosas, prevenir e corrigir os vícios das habitações
particulares e coletivas”, sendo estas as “avenidas, estalagens,
cortiços, albergues, hospedarias, casas de cômodos, pensão de
hotéis”. Eram averiguados também “as instalações sanitárias,
banheiros, tanques, lagos, esgotos, bueiros, etc.”
Escreve o autor que tais medidas visavam a combater a
proliferação de doenças que passavam a ser de notificação
obrigatória, entre elas “febre amarela, peste, cólera, varíola,
impaludismo, lepra, tifo e tuberculose”, as quais, pela sua
189
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

virulência, ofereciam riscos iminentes à população, haja vista que


eram contagiosas e, naquela época, de difícil restabelecimento
(COSTA, 1985, p. 72).
Retratando a realidade social da época, Aluísio de Azevedo
(1857-1913), na obra O cortiço, ilustra a aglomeração urbana e
algumas consequências deste panorama:

Noventa e cinco casinhas comportou a imensa estalagem. [...]


onde se dependurou uma lanterna amarela, em que se lia o
seguinte, escrito a tinta encarnada e sem ortografia: ‘Estalagem
de São Romão. Alugam-se casinhas e tinas para lavadeiras’. As
casinhas eram alugadas por mês e as tinas por dia; tudo pago
adiantado. O preço de cada tina, tendo a água, quinhentos réis;
sabão à parte. As moradoras do cortiço tinham preferência e
não pagavam nada para lavar. [...] E naquela terra encharcada
e fumegante, naquela umidade quente e lodosa, começou a
minhocar, a esfervilhar, a crescer, um mundo, uma coisa viva,
que parecia brotar espontânea, ali mesmo, daquele lameiro,
e multiplicar-se como larvas no esterco (AZEVEDO, 1988, p.
13).

Reiteramos que a preocupação com a higiene se fazia


bastante pertinente e que quase não havia o que questionar
sobre a necessidade de prevenção às doenças contagiosas;
porém atentamos para o fato que esse ensino dogmático
apregoado por Manoel Bomfim ia muito além dos hábitos
de higiene física.
Parece evidente que a solução estaria em sanear, ou seja,
eliminar as causas do males que assolavam a população,
promovendo a melhoria das condições de vida das camadas
sociais mais desassistidas economicamente. Porém as medidas
adotadas não priorizavam os fatores intrínsecos ao surgimento
das doenças, como as péssimas condições de moradia, a falta
190
A PEDAGOGIA MÉDICO-HIGIÊNICA DE MANOEL BOMFIM

de alimentação adequada, a extensa jornada de trabalho sob


condições insalubres e a exploração pelo trabalho, inclusive
pelo trabalho das mulheres e dos menores de idade.
Versando sobre a adoção de práticas de higiene como
recurso para o combate às doenças desenvolvidas com
o surgimento da microbiologia, Boarini (2003, p. 33,
grifo nosso) delineia que a falta de acesso à higiene – tão
necessária à vida – tornou-se um álibi para justificar as
péssimas condições de saúde da população trabalhadora.
Assim “a combinação doença-pobreza vai se constituindo em
terreno fértil para o surgimento do mito: a pobreza e a falta
de higiene daí decorrente passa a ser a causa da doença”. E, com
esta explicação, foi surgindo a ‘educação higiênica’ como
pretensa solução para tais impasses. Diante disso passam
a ser constituídas “as grandes cruzadas em prol da higiene:
higiene escolar, higiene social, puericultura, higiene mental,
educação física, educação sanitária etc.” (BOARINI, 2003,
p. 35-36).
Neste sentido, higienizar tornou-se sinônimo de resolver as
questões sociais, que, ideologicamente, passaram a ser atribuídas
à ausência de higiene. Assim, a falta de acesso aos bens produzidos
socialmente (saneamento básico, alimentação adequada,
condições de trabalho dignas, etc.), que levava a imensa maioria
da população a adoecer, passou a ser justificada pela falta de
higiene por opção, como causa de muitas moléstias.
Nesse contexto, a educação escolar foi se constituindo como
um dos importantes caminhos trilhados pelos higienistas para
sanear o corpo e também os comportamentos considerados
socialmente inadequados.
191
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

A infância não considerada

Voltando àquele período histórico percebemos que,


enquanto Manoel Bomfim advogava preceitos educacionais
para a infância pautados e um modelo médico-pedagógico,
com o intuito de preparar as novas gerações para alcançar o
progresso da nação, nesse mesmo contexto histórico e no mesmo
cenário social algumas condições adversas denunciavam que a
criança à qual ele se reportava não era a mesma que trabalhava
precocemente nas fábricas durante horas sucessivas para
garantir a sobrevivência diária, alheia aos preceitos higiênicos
e pedagógicos por ele recomendados. Em estudo anterior
discutimos algumas ‘rupturas’ presentes nesse conceito de criança
– enquanto categoria histórica – vigente nas relações sociais;
rupturas estas que denotam “cortes” na ideia de especificidade
configurada para a infância (BORGES, 1996).
Como exemplo de tal ruptura, recorremos ao Relatório do
Departamento Estadual do Trabalho do Estado de São Paulo,
publicado em 1912, o qual descreve as condições do trabalho na
indústria têxtil naquele estado. Sobre o trabalho de menores,
no Relatório está escrito: ‘Felizmente, na maior parte das fábricas,
o trabalho destinado aos menores [...] não é exaustivo nem traz
deformidades’ (apud MOURA, 1982, p. 73, grifo nosso). Em
outro trecho o mesmo Relatório traz dados referentes aos motivos
pelos quais esses menores deveriam trabalhar precocemente:

Esses menores [...] são aceitos em algumas fábricas, por empenho


de seus pais, que desejam dessa maneira evitar que fiquem em
abandono pelas ruas e sujeitos aos perigos da vagabundagem
[...] o aproveitamento de crianças à conta de 5 anos no trabalho
industrial: ocupados em serviços fabris [...] não aumenta a

192
A PEDAGOGIA MÉDICO-HIGIÊNICA DE MANOEL BOMFIM

falange dos menores vagabundos que infestam esta cidade (apud


MOURA, 1982, p. 90).

A justificativa contida no Relatório referido acima, além


de localizar nos pais a motivação para a aceitação de crianças
na produção fabril, ainda coloca que havia uma ‘boa ação’ em
aceitá-las como trabalhadores, para que não ficassem ociosas
pelas ruas, já que seus pais não poderiam dispensar-lhes os
cuidados necessários ao seu bem-estar, incluindo-se aqueles
apontados por Manoel Bomfim. Dessa forma, é fácil perceber
que, se a criança precisava trabalhar supostamente para se
ocupar, é porque a situação dela e de sua família não era a mesma
apontada e defendida por Manoel Bomfim para a infância. Essa
criança, além de não ter as mesmas oportunidades educacionais,
era explorada economicamente como mão-de-obra barata nas
linhas de produção.
Destarte, não se dando conta destas questões, tampouco
do caráter histórico da conformação familiar como condição
criada pela organização do trabalho, Manoel Bomfim concebe
a formação familiar como condição natural e permanente
para todos os grupos familiares desde os primórdios da
humanidade. Ele aponta o meio familiar como possível núcleo
degradante ou desmoralizador, e não o percebe como parte de
um contexto histórico dotado de condições que pudessem trazer
prejuízos aos indivíduos, como o trabalho infantil, o trabalho
insalubre e exaustivo a que os operários eram submetidos nas
linhas de produção e as péssimas condições de vida da imensa
maioria de trabalhadores, já bastante denunciadas na época.
Demonstrando mais uma vez essa visão naturalizada de
educação, ele a concebe como infalível, porquanto por meio
193
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

dela poder-se-ia alcançar progresso para todos, pois, segundo


ele, a correlação educação/progresso era incontestável. Em suas
palavras:

[...] a educação se torna o mais poderoso fator de progresso geral.


As individualidades se afirmam, desenvolvendo o máximo de
ação útil; multiplicam-se as iniciativas; sugerem-se as reformas, e
o progresso se realiza à medida que os caracteres se fortalecem e
se definem (BOMFIM, 1926, p. 29).

Essa afirmação expressa um dos pressupostos teóricos do


escolanovismo, que identifica no indivíduo as possíveis fontes
para seu desenvolvimento – como características biológicas e
naturais - e também as explicações de seus possíveis fracassos.
Tal visão expressa a dinâmica das relações sociais da sociedade
capitalista, pautada no princípio básico das liberdades individuais
e nos ideais de desenvolvimento pessoal e, consequentemente,
de alcance de progresso social, desde que o indivíduo se empenhe
e mobilize seus recursos biopsíquicos naturais para desenvolver-
se, sem considerar as questões do meio como fator facilitador
ou entrave a esse desenvolvimento. Nesta perspectiva, deixa-se
o terreno do acesso às oportunidades para buscar as explicações
pela ótica dos talentos individuais e, nesse caso, pela pretendida
força de caráter.
Assim, algumas das premissas teóricas - tanto do higienismo
quanto do escolanovismo - introduziram paulatinamente a ideia
ingênua de que as soluções para os problemas de escolarização,
identificados e analisados pela elite pensante, seriam autônomas
em relação ao contexto histórico-social. Esse pensamento
ofereceu sustentação política às ações médico-pedagógicas
implantadas nas primeiras décadas do século XX.
194
A PEDAGOGIA MÉDICO-HIGIÊNICA DE MANOEL BOMFIM

A história nos mostra que essas premissas obtiveram


tal sustentação, pelo menos no que tange à atuação do
movimento higienista, por um considerável período de tempo,
com desdobramentos em épocas posteriores. Assim como os
primeiros teóricos da educação do século XX buscavam implantar
os princípios do escolanovismo com a proposta de educação
para todos e preparação para o trabalho, como decorrência do
processo de industrialização, também os médicos higienistas
ampliavam suas ações estendendo cada vez mais ao espaço
escolar os ideais de higienização da população brasileira. Nesta
perspectiva, parece claro que esses discursos se interpenetravam,
na medida em que, pautados em premissas teóricas similares,
fundadas em concepções advindas das ciências naturais, para
as quais o mundo objetivo tem existência própria e é regulado
por leis próprias, ambos – escolanovismo e higienismo -foram
sendo implantados e amplamente aceitos ao longo das décadas
posteriores.
Nesta perspectiva, os ideais do escolanovismo e dos
integrantes do movimento higienista podem ser considerados
como duas faces da mesma questão, na medida em que ambos
surgem como necessidade criada em um mesmo contexto
histórico - a sociedade capitalista - e apontam soluções
historicamente construídas para os impasses político-econômicos
e socioeducacionais do Brasil, sem considerar as contradições
surgidas pela organização social do trabalho. Desse modo, ao
proporem encaminhamentos fundados em preceitos das ciências
naturais para explicar os relacionamentos humanos, naturalizam
as relações sociais, retirando delas seu caráter histórico e, por
conseguinte, seu caráter social.
195
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

Pensamento análogo expressa Almeida Júnior sobre o ensino


de hábitos, estabelecendo estreitas correlações entre higiene e
moral:

[...] a educação higiênica se aproxima da educação moral: tem


de iniciar-se dogmática. O aluno se fiará na ciência do mestre.
Explique a este só o que puder ser compreendido. Mas não adie
os hábitos e conselhos cujos fundamentos estejam acima da
inteligência infantil. Quando for possível, virá a razão de ser. E
se não vier, ficarão, em todo o caso, os hábitos. E os hábitos são
quase tudo (ALMEIDA FILHO, 1922 apud ROCHA, 2003, p.
45, grifo nosso).

Tal afirmação nos remete à reflexão sobre os riscos de se


promover a aproximação da educação para a aprendizagem de
hábitos de higiene à educação para a moralidade, haja vista que,
no contexto onde tal aproximação se instalava, a premissa teórica
era a concepção de indivíduo como ser biológico a ser modelado
segundo um repertório de hábitos a serem administrados via
educação escolar, sendo esta plena de posições dogmáticas em
relação ao ensino.
Esse ensino dogmático pautado na moralidade como regra
também é defendido por Manoel Bomfim nos casos em que
a mentalidade da criança ainda não tivesse alcançado o nível
de maturidade suficiente para compreender e aceitar tais
ensinamentos. Nesse ponto parece pressupor que a criança só
teria duas alternativas: aceitar as imposições dogmaticamente,
por não estar preparada mentalmente, ou aceitá-las passivamente,
por estar preparada para compreender racionalmente os preceitos
científicos. Assim, Manoel Bomfim nega qualquer possibilidade
de contestação ou questionamento, por parte da criança, dos
preceitos ou ideias postos como prontos e acabados.
196
A PEDAGOGIA MÉDICO-HIGIÊNICA DE MANOEL BOMFIM

Educação e higiene moral

Consideramos, até o momento, que Manoel Bomfim


produziu ideias e concepções amparadas pelo saber das ciências
da natureza que, por sua vez, embasaram os ideais da Escola Nova,
os quais também foram referência para suas produções, antes
mesmo de serem consolidados como movimento de renovação
educacional no Brasil. Consideramos também que tais ideias
(do higienismo e do escolanovismo) foram configurando-se
como recursos adotados ante o acirramento das contradições
sociais existentes na sociedade no início do século XX.
Desse modo, amparando-se em princípios de atenção à
higiene física como inspiração teórica, como regra prática Manoel
Bomfim visava criar as condições favoráveis à implantação do
que valorizava como ideal educacional que, em sua essência,
faziam parte do pensamento dominante na época. Assim, além
de considerar o ensino da higiene como solução para os males
sociais, Bomfim defendeu sistematicamente a necessidade de
propiciar à criança a educação moral como meio de se alcançar
o progresso moral da Nação. Para ele, como condição básica
do viver humano, a educação moral devia ser objeto de estudo
no espaço escolar, pois “a moralidade é a consciência que o
indivíduo tem da existência da espécie” (BOMFIM, 1926, p.
330).
No final do século XIX e ao longo das duas primeiras décadas
do século XX foi se tornando cada vez mais frequente o debate
educacional em torno da necessidade de se promover o acesso
à escolarização básica. Nesse contexto, Manoel Bomfim desde
muito chamava a atenção para a necessidade de investimento na
instrução pública e popular como condição de desenvolvimento
197
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

social e progresso moral. Em um discurso dirigido às formandas


da Escola Normal em 1904, Bomfim cobra delas a busca de
um ideal de progresso que as levaria a trabalhar em prol do
desenvolvimento social da Nação, por ele considerada inferior
e atrasada pela falta de investimento na educação. Em suas
palavras:

De nós depende, principalmente o dar à instrução a


proeminência que lhe cabe entre as funções sociais, acentuando
a sua importância, conquistando, pela nossa tenacidade, as
atenções e a cooperação das outras frações do Estado, provando,
pelos resultados obtidos, a eficácia e influência do grande
processo civilizador. [...] Ide, serenas, mas entusiásticas, com os
olhos nos vossos ideais, alimentando-o no sentimento benfazejo
de ver um povo redimido por si mesmo, crescendo-o no desejo e
na esperança de ver a nossa pátria em ascensão indefinida para a
justiça, para a beleza e para a harmonia, cooperando ativamente
para a definitiva emancipação humana, na liberdade, na luz e
na fraternidade (BOMFIM, 1904 apud AGUIAR, 2000, p. 276-
277).

Esta forma de pensar demonstra ainda a inabalável crença


de que é por meio das ideias que ocorrem as transformações
sociais, e assim acredita que estas antecedem os fatos, sendo,
inclusive, as produtoras destes.
Tal pensamento se faz na contramão de uma análise
pautada na perspectiva da história, pela qual a essência
humana é o resultado de relações sociais desencadeadas em
função de relações de produção da vida material. Outrossim,
expressa um pensamento segundo o qual os fatos históricos são
interpretados como leis da natureza e tais leis governam as ações
dos homens.
198
A PEDAGOGIA MÉDICO-HIGIÊNICA DE MANOEL BOMFIM

Sendo assim, também em Lições de pedagogia Manoel Bomfim


parece desconsiderar o saber humano como produto histórico
ou como produto da atividade humana, pois denota uma visão
a-histórica, refletindo um pensamento pautado em uma ideia de
linearidade dos fatos segundo a qual estes já existem previamente
e as novas gerações são inseridas na dinâmica social por meio
da educação para absorverem o conhecimento já produzido
pelas gerações anteriores e reproduzirem-no ordenadamente,
sem questionamentos de preceitos ou a introdução de novas
contribuições.
Percebemos que essa visão naturalizada de mundo e o papel
por ele atribuído à educação perpassam todos os capítulos de
sua obra; mas quando trata da educação moral, ficam mais
evidentes ainda sua concepção a-histórica e a crença na educação
moral como condição para o desenvolvimento pessoal e social
dos seres humanos.
A preocupação com a questão da adaptação da criança
ao meio também é bastante presente em sua obra. Em suas
produções ele trata por inúmeras vezes dessa questão, colocando-a
como condição sine qua nom para a saúde mental da criança e do
futuro adulto.
Com o intuito de nos aproximarmos do que vinha
ocorrendo na sociedade brasileira no período em que Manoel
Bomfim escreveu suas Lições, fazemos novamente referência ao
Relatório de inspeção de fábrica divulgado em 1912, do qual
alguns trechos refletem a situação do trabalho infantil naquele
período, qualificando de “desagradável a impressão que causa ao
visitante o excessivo número de menores no trabalho” e a descrição
destes como “esqueléticos, raquíticos”, além da denúncia de
199
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

“emprego de menores, alguns de menos de doze anos, em serviços


que considera notadamente prejudiciais” (MOURA, 1982, p. 73,
grifo nosso).
Assim, se na mesma época em que Bomfim produzia suas
ideias educacionais havia no Brasil a necessidade de implantação
de legislação para proteger as crianças da exploração pelo trabalho,
a causa disso é que, certamente, grande parte destas crianças
ainda estava submetida a situações de exploração e desprovida
dos direitos divulgados pelos pensadores da educação, entre
eles, Manoel Bomfim.
Destarte, a criança referida por Manoel Bomfim certamente
não é a criança trabalhadora pertencente às classes populares.
Para esta, a falta de oportunidades de acesso à escolarização era
uma realidade vivenciada no cotidiano das linhas de produção
das fábricas nas primeiras décadas do século XX.
Discutindo na mesma perspectiva didático-pedagógica de
Manoel Bomfim, ou seja, a perspectiva da formação moral
por meio do adestramento e da inculcação das regras, Costa
(2004, p. 198) denomina essa forma de educação como “moral
higiênica”. Segundo ele, esta tem como método educativo não
mais os castigos físicos, frequentes em épocas anteriores, pois
os novos princípios se pautam na premissa de que “a punição
degradava as crianças sem obter nenhum resultado positivo.
O medo aos castigos físicos tornava-as mentirosas, hipócritas,
pusilânimes e temerosas”.
É o que Costa (2004, p. 98-200) explica ao comentar que “o
esteio da nova moral recusava este tipo de repressão. Seu método
era outro. Suas técnicas eram uma variante da criação do hábito.
Como o corpo, o espírito das crianças deveria, progressivamente,
200
A PEDAGOGIA MÉDICO-HIGIÊNICA DE MANOEL BOMFIM

regular-se autônoma e automaticamente”. Para ele, essa “nova


moral” atendeu aos interesses de enquadramento das crianças
na nova ordem social, pois elas, como seres em formação,
passaram a ser consideradas “os germes da moralidade do
indivíduo urbano integrado à ordem política característica do
capitalismo industrial”.
Esse pensamento não fazia parte da perspectiva de análise
de Manoel Bomfim, pois, mesmo sendo considerado crítico
às correntes deterministas e descrito como adiantado em seu
tempo, por exemplo, por Leite (1976) e Souto Maior (1993),
ele não consegue transpor sua visão naturalizada de homem e
de infância, considerando o ser humano como um organismo
basicamente biológico no espaço social, o qual deveria fazer a
sua parte em prol do progresso de todos.
Os aspectos do pensamento de Manoel Bomfim até o
momento elencados, assim como as proposições de alguns
outros higienistas de sua época, demonstram a importância
atribuída ao higienismo, particularmente à higiene mental,
como proposta de regeneração moral, nas primeiras décadas do
século XX.
Cumpre observar que esse discurso tornou-se mais conciso
e aceito como referência para as ações médicas e educacionais
após a criação da Liga Brasileira de Hygiene Mental (LBHM), em
1923. Nascida do seio da ciência psiquiátrica, a LBHM tinha
suas ações inicialmente voltadas aos cuidados psiquiátricos e
congregava entre seus principais membros alguns dos médicos
ligados à ‘elite psiquiátrica do Rio, talvez do Brasil’. Após 1926,
passaram a ser inseridas algumas concepções de prevenção
dirigidas ao público em geral e “daquele momento em diante,
201
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

o alvo de cuidados dos psiquiatras [higienistas] passou a ser o


indivíduo normal e não o doente. O que interessava era a prevenção
e não a cura” (COSTA, 1989, p. 78-79, grifo nosso).
Pela vertente tomada em relação aos objetivos iniciais
propostos na criação da Liga, consideramos interessante
ressaltar que nessa nova orientação a prevenção e a educação
já se aproximavam do mesmo contexto, sendo que a última
se constituiria, cada vez mais, como o recurso criado para a
veiculação dos ideais de prevenção a serem alcançados por meio
da higiene mental/moral.
Gondra (2000, p. 524-525), tematizando algumas relações
entre “medicina, educação e sociedade”, acentua que a
constituição da “ordem médica no Brasil” tomou um percurso
que partiu de uma perspectiva de cura para um projeto de
prevenção. Tal projeto “implicaria tanto a existência de um
saber médico sobre a cidade e sua população, quanto a presença
do médico como uma autoridade que intervém na vida social,
decidindo, planejando e executando medidas ao mesmo tempo
médicas e políticas”. Para tanto, a medicina deveria deslocar sua
ênfase da doença para a saúde e da clínica para a intervenção no
social. Nesse contexto, “a escola não é esquecida nem a educação
de um modo mais geral, pois, para formar as novas gerações
seria necessária uma intervenção não apenas no espaço público
da escola, mas, também, no espaço privado da casa”.
Nesta perspectiva, como educadores do social, com o aval
da sociedade os integrantes da ordem médica promoveriam
“a produção de um futuro ordeiro, homogêneo e civilizado”
(GONDRA, 2000, p. 526).
202
A PEDAGOGIA MÉDICO-HIGIÊNICA DE MANOEL BOMFIM

Assim, esse ideal de moralidade era buscado pelos


integrantes da ‘Liga’, entre eles Manoel Bomfim, como atributo
de saúde mental/moral, e esta era entendida como um bem a ser
alcançado em prol do progresso coletivo e da harmonia social.
Nessa empreitada a educação passou a ser a forma ideal para se
alcançar o desenvolvimento moral que, na visão dos higienistas,
daria os meios para o desenvolvimento social.

A educação como resposta aos males sociais

Essa convergência de ideias em torno da crença no papel


da educação como proposta de desenvolvimento social e da
expectativa de corrigir os defeitos e/ou promover o ajustamento
dos desadaptados como forma de alcançar o progresso almejado
para a Nação passou, pouco a pouco - no Brasil República - a estar
entre as bandeiras de reivindicações expressadas no conteúdo das
ideias veiculadas tanto no meio político, quanto nas produções
literárias e didáticas e demais produções culturais.
Ainda no início do século, discursos como o de José Veríssimo
em A educação nacional, datada de 1906 (citada anteriormente),
já demonstram a preocupação com a suposta degradação moral
e ilustram algumas das convicções até então formuladas acerca
das características morais do povo brasileiro.
Por seu lado, Almeida Júnior (1922 apud ROCHA, 2003,
p. 41) argumenta que as “condutas desregradas da população”
deveriam ser estancadas por meio do ‘disciplinamento’ a ser
auferido pelos médicos higienistas pelo uso combinado entre os
preceitos higiênicos e os preceitos morais, haja vista que
203
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

O homem alheio à higiene é o maior viveiro de germens


patogênicos, e o mais ativo popularizador de moléstias. Só ele
mesmo, pela sua própria vontade, aquiescida pela educação
moral e orientada pela instrução higiênica, poderá estancar a
fonte morbígena.

Dessa forma, os anseios de regeneração moral foram


amplamente veiculados por diversos pensadores da época, seja
por Manoel Bomfim, que dava peso maior à educação escolar,
seja por aqueles que defendiam o disciplinamento moral como
função fundamental da família. Os discursos, via de regra,
apregoavam que a formação moral deveria permear a educação
da criança o mais cedo possível. É o que ressalta Barbosa (1882
apud COSTA, 2004, p. 174, grifo do autor) ao referir-se à
formação de hábitos na criança: “aproveitar as primeiras épocas
da vida, em que é mais fácil amoldar essa cera mole, como já o
disse alguém, aos atos, é um grande passo para o fim a que se
propõe a educação”.
Defendendo a ideia de que o indivíduo “realiza a existência
como a Natureza realiza a árvore”, Bomfim propõe que não há
“receita prática de felicidade” sem a educação moral, pois “é
dominando a si próprio, que o individuo domina o destino”
(1926, p. 426). Assim, denotando sua crença incondicional
no desenvolvimento moral como possibilidade de alcance de
felicidade pessoal e de progresso geral, adverte que a criança
necessita ser conduzida, desde cedo, a sentir-se ‘satisfeita e feliz’.
Tais fatores, por si sós, teriam a capacidade de proporcionar ao
indivíduo “os limites de felicidade possível” e a condição de
“partilhar de um viver feliz [...] gozar a justa ventura de quem
deseja sem invejar e sem exasperar-se [...]” (BOMFIM, 1926, p.
427).
204
A PEDAGOGIA MÉDICO-HIGIÊNICA DE MANOEL BOMFIM

Refletindo sobre seus posicionamentos, percebemos em


Bomfim a premissa teórica de idealização do ser humano
que o identifica , em seu início como dotado de um
emaranhado de tendências (inferiores e superiores) sobre as
quais a educação atuaria, esquadrinhando-o e localizando
tais tendências para reformulá-las em sua estrutura mental/
moral. Ele parte do princípio que a criança é moldável,
como ‘cera mole’, e que a educação irá torná-la humanizada
ou moralmente saudável.
Pelo visto, Manoel Bomfim parece não considerar o
contexto histórico em que vivia a criança, que é seu objeto
de intervenção. Parece negar as desigualdades sociais e
desconsiderar a existência de interesses diversos e divergentes
entre as classes sociais, por acreditar na harmonia entre
todos em prol do desenvolvimento da Nação. Nesse sentido,
em nosso entender, Manoel Bomfim pode ser considerado
um legítimo representante da ética social burguesa, pois seu
pensamento foi sendo construído como fruto de uma visão
ideologizada, não pautada na criticidade e na historicidade
dos fatos. A ideia de progresso moral a ser alcançado por meio
da educação, tendo esta como formadora de mentalidades
capazes de promover o bem-estar social, parece ter sido a
grande crença de Manoel Bomfim; crença que o levou, em
sua trajetória como higienista e educador, a acreditar em um
ideal de homem e de mundo descolado das relações concretas
de vida e de sobrevivência.
Passados mais de cem anos de história desde que os
ideais educacionais de Manoel Bomfim e de seus pares
foram construídos, veiculados e implantados no Brasil,
podemos afirmar, com a facilidade que o tempo transcorrido
205
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

pode nos oferecer, que muitas das questões por eles postas
como ideais de desenvolvimento social e progresso para
todos, via educação, não foram viabilizadas ao longo desses
cem anos. Podemos perceber ainda que, mesmo o tempo
tendo demonstrado o equívoco de ser atribuir à educação o
desenvolvimento de um país, tais concepções ainda continuam
presentes nos discursos da contemporaneidade. Não é nosso
intuito avançar para o terreno da crítica e discussões sobre
educação na atualidade, porém, a título de ilustração de
nossas proposições iniciais, destacamos algumas falas que
ilustram tal constatação. Durante o 1º Congresso Nacional
de Combate ao Insucesso Escolar de Resende, em Minas
Gerais, ocorrido no ano de 2006 no discurso de abertura a
fala do presidente do Congresso, é de que:

Há ainda um longo caminho a percorrer. Mas é importante


que todos possamos dar o nosso contributo para consolidar
a promoção da educação, o combate à exclusão social, a
luta incessante pelas desigualdades geográficas e um País
mais justo e solidário para com as suas crianças e jovens.
Senhores Congressistas, a educação deve ser a pedra basilar
da sociedade.

A fala do vice-presidente, no encerramento do Congresso,


também reforça o peso atribuído à educação:

O desenvolvimento do país, como todos nós sabemos, é um


conceito indissociável do desenvolvimento dos nossos jovens,
da existência de um bom sistema de Ensino, de uma sociedade
com valores exemplares e que se preocupa com os seus jovens.
Portanto, o desenvolvimento do país é indissociável de uma
cidadania ativa e responsável no combate aos problemas do
presente, para que eles não existam no futuro.

206
A PEDAGOGIA MÉDICO-HIGIÊNICA DE MANOEL BOMFIM

Lamentando os resultados divulgados pela Unesco em


20071, o professor Gilberto Teixeira, da FEA/USP, explica

Levará tempo para o Brasil despontar nos primeiros lugares


dos rankings internacionais de educação e desenvolvimento
humano. A situação em que nos achamos é fruto de sua história
de colônia (sem um plano de crescimento como nação) e de
práticas governamentais equivocadas durante o último século,
quando a população, ao invés de ser preparada para impulsionar
o desenvolvimento econômico, foi deixada à parte do processo,
o que deu origem às desigualdades sociais (RELATÓRIO...,
2008).

Tomando como base as explicações sobre o atraso do país


nos discursos atuais destacados, bem como alguns dos ideais
educacionais veiculados no início do século XX anteriormente
apresentados, aproximamo-nos da constatação de que as mesmas
explicações e os mesmos anseios indefinidamente se repetem,
há mais de um século. Tais explicações têm sempre como foco
o indivíduo como possível autogerenciador nesse processo e a
educação como forma de redenção para todos os males. Isso
concorre para que se continue atribuindo a ela uma função para
a qual não foi destinada. Em nosso entender, tais explicações
contribuem, cotidianamente, para escamotear as verdadeiras
causas dos antagonismos sociais.

1 No Relatório mundial de monitoramento sobre educação para todos divulgado pela Unesco em
2007 o Brasil aparece em 72º lugar, entre 125 países (RELATÓRIO..., 2008).

207
A participação da família na escola
higienizada
Maria Silvinha Carraro Martins

A higiene, como todas as grandes manifestações da atividade


humana, será neste ou naquele meio tanto maior quanto for,
para difundi-la e praticá-la, a ação combinada do cidadão, da
família e do Estado (FERREIRA, 1929, p. 837, grifo nosso).

A epígrafe acima possibilita ao leitor ter ideia das ações e


propostas apresentadas, pelos higienistas, que privilegiavam a
família como coadjuvante na educação dos filhos. A assistência
social que nas primeiras décadas do século XX a escola
desenvolveu em relação a família tinha como uma das finalidades
amenizar os problemas sociais que esta enfrentava, problemas
que os higienistas acreditavam refletir-se diretamente no
trabalho escolar. Entre os problemas escolares apontados pelos
educadores nas primeiras décadas do século XX destacavam-se
o fenômeno da repetência e a desistência dos alunos, além da
falta de frequência escolar (BOISSON, 1942). O problema da
repetência e desistência do aluno nos meios escolares exigia a
busca de soluções, considerando-se como parte de suas causas, do
ponto de vista pedagógico, a falta de professores especializados
para a alfabetização e a heterogeneidade de maturação dos
alunos.
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

Essa questão preocupava tanto educadores quanto outros


intelectuais que pensavam a sociedade brasileira. Este assunto
foi largamente debatido no Primeiro Congresso Nacional de
Saúde Escolar, realizado na cidade de São Paulo em 1941,
o qual contou com a participação de professores, delegados
de ensino e representantes da Liga Brasileira de Hygiene
Mental.
Ora, se a família não conseguia educar pela falta de
conhecimento científico, caberia à instituição escolar trazer os
pais para junto da escola, para participarem como coadjuvantes
na educação dos filhos. O professor Magalhães (1932, p. 86)
declarava esta capacidade educativa da escola na seguinte forma
“A escola é outro lugar onde se pode rastrear grande número de
anomalias mentais incipientes”.
Neste contexto de transformações do ponto de vista médico-
social, a interação proposta apontava para o assistencialismo às
famílias, as quais a escola deveria atrair para melhor compreendê-
las e ajudá-las.
A escola, diante dos problemas pedagógicos mais graves,
como a reprovação, a falta de frequência e a evasão do aluno,
constituía-se como um espaço ideal para a aplicação de medidas
de caráter higienista. Entre essas medidas, que tinham por
finalidade intervir na sociedade visando a melhorias nos seus
procedimentos higiênicos, foram encaminhadas propostas de
atuação não somente com o aluno, no âmbito escolar, mas
também junto à família.
Desta forma, os professores, as educadoras sanitárias, os
médicos e os dentistas estariam atuando junto aos pais. Aos
professores, segundo Azevedo (1942), caberia a realização da
210
A PA RT I C I PA Ç Ã O DA FA M Í L I A N A E S C O L A H I G I E N I Z A DA

educação higiênica em geral e da higiene alimentar, através


de aulas, utilizando-se de recursos como cartazes, cardápios
diários, pesquisas e questionários, e se houvesse a necessidade
de um trabalho mais intenso, o professor receberia auxílio da
educadora sanitária. O professor deveria observar também os
problemas dentários e de acuidade visual e auditiva dos alunos,
os quais se acreditava serem os causadores das dificuldades na
aprendizagem, bem como da não frequência e até mesmo da
evasão dos alunos.
É interessante observar a questão de aceitação da condução
higienista pela escola e, principalmente, pela família. A escola
e a família ficariam subordinadas aos encaminhamentos dos
higienistas. A isso responde o professor Porto-Carrero (1932. p.
93): “A clínica da Liga dará conselhos aos pais: e por muito que
o pátrio poder, no seu orgulho egoístico, se ache no direito de
perverter a prole, a semente ficará e germinará”.
A condução das ações higiênicas se firmava na defesa de
uma pátria sadia, constituindo-se como um ato de patriotismo e
de favorecimento à família e à escola, tanto que Azevedo (1942,
p. 560) sugeria “Atrair os pais ou responsáveis à escola para
solução de todos os problemas que dizem respeito ao educando:
frequência, saúde, alimentação, vestuário e higiene em geral e
maneira de educar os filhos”.
A escola renovada, em seu discurso educacional firmada
nas ciências, fundamentados no ideário higienista, procurava
minimizar a ocorrência dos problemas que nela se evidenciavam.
Os higienistas acreditavam que, para que esta educação sanitária
se efetivasse, além da formação de hábitos sadios nos alunos das
escolas primárias, deveriam ser prescritas orientações sanitárias
211
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

para a família e para o meio em que a criança estivesse inserida.


Oliveira (1929) comenta o problema de se trabalhar com as
crianças sem se fazer também um trabalho com as respectivas
famílias, afirmando que isso dificultaria o alcance dos objetivos
propostos, pois a família era o lugar onde a criança convivia
a maior parte do tempo. Questiona como se poderiam forma
hábitos sadios em criança cuja família tinha alguns membros
sifilíticos ou tuberculosos, sem assistência sanitária alguma.
Se a escola se aliasse à família, este processo seria acelerado,
alcançando mais prontamente seus objetivos, pois a educação
sanitária, uma vez vinda da família, precederia a educação
escolar.
É neste contexto que a educação, pautando-se, em linhas
gerais, pela defesa da escola pública obrigatória, laica e gratuita,
e também pelos princípios pedagógicos renovados, abre espaço
para as ações de articulação entre família e escola. Destarte,
é importante observar as propostas higienistas lançadas no
primeiro quadrante do século XX, e como estas se relacionavam
com a educação escolar e com as famílias, nos aspectos da
higiene corporal e mental.

A higiene mental na escola


Em escolas convenientemente instaladas, com programa
razoável, bons professores, alunos normais e frequentes, a
porcentagem de promoção se avizinha de 100%. Nas condições
da escola pública, porém nem todos os alunos são de inteligência
normal, nem a frequência é de 100% (ALMEIDA JÚNIOR
apud ANDRADE, 1942, p. 563-564).

212
A PA RT I C I PA Ç Ã O DA FA M Í L I A N A E S C O L A H I G I E N I Z A DA

Com a participação das crianças das classes populares na


escola pública, os problemas próprios da desestrutura social
surgiam de forma mais contundente no âmbito escolar, e para os
higienistas estes problemas poderiam ser resolvidos por meio do
trabalho higiênico de normatização do indivíduo. Essa forma de
pensar fica clara quando os higienistas propunham a instrução
sanitária para a família, justificando-a pela heterogeneidade
da população brasileira, que naquele momento recebia um
grande contingente de imigrantes. Segundo os higienistas,
estes imigrantes vinham carregados de todos os tipos de males,
“analfabetos incultos, com hábitos viciosos, tarados, pervertores
da ordem e da sociedade” (OLIVEIRA, 1929, p. 802).
Caberia, portanto, a educação sanitária e a saúde pública
a formação dos hábitos sadios de higiene na população. A
família era, consequentemente, encarregada das primeiras e
principais orientações; entretanto, sabemos que não basta
somente conhecer os preceitos higiênicos, é preciso ter as
condições para praticá-los, como boas condições de moradia,
infraestrutura sanitária apropriada, alimentação adequada
e boa situação de trabalho. E neste sentido as dificuldades
sociais, como pobreza, desemprego, falta de moradia digna
e condições de trabalho, afligia a maioria das famílias dos
alunos não eram comumente analisadas ou levadas em
consideração. Quando se falava das situações sociais que
produziam dificuldades no aluno para um bom desempenho
na escola, as questões eram remetidas a fatos individuais
das famílias, como o uso de língua estrangeira nas famílias
dos imigrantes. Isto pode ser observado quando Andrade
(1942, p. 566) analisa os fatores sociais que influenciavam
a reprovação dos alunos nas escolas primárias da seguinte
213
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

forma, “O uso de língua estrangeira no lar aparece na escola


como elemento, além de desnacionalizador, fortemente
negativo para o aprendizado da linguagem, o que origina
consequentes reprovações”. Ou então a questão era
atribuída ao campo da cognição ou à vontade particular do
indivíduo.

Se mais de 90% dos brasileiros não sabem ou não têm


suficientemente educadas a inteligência e a vontade para
defender e melhorar incessantemente a própria vida é
evidente que não contribuem para a defesa e melhoramento
da vida da família, da sociedade e da espécie (PENNA, 1997,
p. 30).

Assim o trabalho do educador, de acordo com os


higienistas, deveria chegar à raiz do problema, que, no
entender destes intelectuais, seria a educação das crianças,
que as prepararia para se tornarem adultos sadios A educação
entendida desta forma revela uma concepção de ordenação
para o progresso, que busca formar o cidadão político que
viverá para uma unidade coletiva (escola, família, Nação
ou Pátria). Tal forma de entendimento desconsidera as
desigualdades sociais geradas no bojo do sistema de produção
capitalista. Historicamente, esta forma de compreender a
educação como redentora das mazelas sociais é apresentada
por Tocqueville (1805-1859), que em uma leitura política
defendia a questão de que a educação uniria a sociedade,
pautada no amor, na ordem e no progresso; portanto a
educação somente poderia ser efetivada por meio da moral,
em que a ordem e o progresso seriam princípios da ordenação
social e econômica.
214
A PA RT I C I PA Ç Ã O DA FA M Í L I A N A E S C O L A H I G I E N I Z A DA

Na cidade ou no campo a necessidade de


higienizar...

Os problemas não se acumulavam somente nos centros


urbanos, mas também os havia na zona rural. Lembramos que a
situação de pobreza deixava o homem interiorano em condições
de abandono, longe das informações que direcionavam o
controle das endemias rurais, como o caso da malária, da doença
de Chagas, entre outras. Esta situação do trabalhador rural é
apresentada em uma das obras literárias de Monteiro Lobato,
que, após ter contato com os médicos sanitaristas Arthur Neiva,
Belisário Penna, Renato Kehl entre outros, apresenta uma
caricatura do caipira brasileiro, o Jeca Tatu. Este, ao ter contato
com a ciência médica, era curado das moléstias que o abatiam.
Assim o caipira se tornava ativo e forte, o que, segundo o autor,
era de sua natureza. Monteiro Lobato relaciona esta trajetória
do caipira à ação das políticas públicas de saúde e educação que
favoreciam o desenvolvimento econômico e social do país. Em
relação à zona rural também havia dificuldades no que tange à
educação. De acordo com Aragão (1997, p. 452), na zona rural
as crianças tinham dificuldades em serem alfabetizadas

[...] o problema educativo e de alfabetizar torna difícil e


defeituoso, sobretudo nas zonas rurais, falhas de escolas e
onde os processos modernos de educação não chegam senão
tardiamente, crivados de erros e defeitos, em virtude sua
propagação lenta e vagarosa.

Em contrapartida, as crianças da zona rural usufruíam


condições climáticas muito favoráveis. O problema se agravava
nas zonas urbanas, pois as crianças das cidades viviam em áreas
215
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

poluídas pelas indústrias que contaminavam o ar, e ainda


residiam em locais sem infraestrutura, onde as pessoas se
aglomeravam, vivendo em ambientes sem ventilação, luz, higiene
e conforto adequados, conforme relata Aragão (1997). As mães
das crianças que viviam na cidade eram obrigadas a trabalhar na
indústria, não tendo tempo nem condições de tomar conta dos
filhos, confiando-os a terceiros, que, muitas vezes, encarregavam-
se de inúmeras crianças e, não conseguindo dispensar cuidados
a todas, deixavam-nas em ambientes insalubres, favorecendo,
assim, a propagação de doenças nas populações infantis.
Aluísio de Azevedo, no romance intitulado O cortiço, narra,
em linguagem vigorosa, a vida miserável dos moradores das
habitações coletivas do Rio de Janeiro, as quais eram próprias
da situação urbana do final do século XIX, mas se arrastavam
nas primeiras décadas do século XX. Em um de seus relatos o
autor assim descreve a ausência de hábitos higiênicos:

As portas das latrinas não descansavam, era um abrir e fechar


de cada instante, um entrar e sair sem tréguas. Não demoravam
lá dentro e vinham ainda amarrando as calças ou as saias; as
crianças não se davam ao trabalho de lá ir, despachavam-se ali
mesmo, no capinzal dos fundos, por detrás da estalagem ou no
recanto das hortas (AZEVEDO, 1984, p. 28-29).

As denúncias das péssimas condições de vida da população


pobre da cidade do Rio de Janeiro também podem ser
observadas nos jornais paulistas daquela época, que se referiam
a “constantes queixas contra trocas de tiros, obscenidades,
algazarras, que acontecem nos cortiços” (FAUSTO, 1998, p.
22). Assim podemos entender os esforços empreendidos pelos
higienistas e sanitaristas, que programavam ações para todas essas
216
A PA RT I C I PA Ç Ã O DA FA M Í L I A N A E S C O L A H I G I E N I Z A DA

urgências sociais, buscando amenizar as questões que afligiam a


sociedade, principalmente a classe trabalhadora. Entendiam que
se a família, envolta nestas condições de penúria, não possuía
condições e conhecimentos para realizar um trabalho higiênico,
este deveria ser realizado pela escola, que teria ainda a atribuição
de buscar a parceria da família para esta participar do processo.
Em assim sendo, o trabalho educativo da instituição
escolar se estendeu à família, com o propósito de criar bons
hábitos mentais, buscando regrar e normatizar os indivíduos
e desenvolvendo personalidades confiantes, com capacidades
para um convívio social harmonioso. Através da educação
psicológica, os higienistas objetivavam o homem comedido,
sendo urgente desenvolver ações voltadas ao desenvolvimento
desses homens, que deveriam ser potencializados para a ordem
do corpo e para a moral. Desta forma, os professores teriam que
ser preparados para atender a este intento e a família deveria ser
convidada a participar.

Entraves para o desenvolvimento das práticas


higienistas

Com a finalidade de favorecer as práticas da educação


higiênica, eram realizadas nas escolas paulistas ações para criar
hábitos nos alunos e relatadas, no III Congresso Brasileiro de
Higiene, por Almeida Júnior (1929). De acordo com este autor,
nas escolas paulistas eram desenvolvidas as revisões diárias de
verificação dos asseios dos alunos em 32 grupos escolares, sendo
217
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

que nos demais estas revistas não tinham dias determinados,


porém seriam realizadas duas vezes por semana.
A proposta da pesagem periódica dos alunos, com a finalidade
de estimular a higiene alimentar, recomendava que a pesagem
fosse efetivada a cada bimestre; mas também neste aspecto a
falta de condições na escola se constituía em impedimento para
levar avante esta idéia. A maioria das escolas, segundo Almeida
Júnior (1929), não realizava a pesagem por falta de balanças.
Também a prática de lavar as mãos antes das refeições e após o
uso do banheiro era exigida em apenas duas escolas paulistas. Os
esforços feitos pela escola, conforme demonstra Almeida Júnior,
não eram suficientes, necessitava-se de infraestrutura adequada;
“Em algumas escolas realizam o banho semanalmente, mesmo
estas apresentando deficiência nas instalações” (ALMEIDA
JÚNIOR, 1929, p. 823).
Ao denunciarem a falta de condições para o desenvolvimento
do trabalho de caráter higienista e também ao participarem de
congressos científicos para discutir a questão da reprovação e não
participação do aluno na escola, os professores e os higienistas
estavam denunciando questões que necessitavam de outros
encaminhamentos além do escolar, pois os próprios médicos
higienistas sentiam as dificuldades para pôr em prática seus
projetos: “faltava horário para a realização de higiene, faltava
material didático” (ALMEIDA JÚNIOR, 1929, p. 825). Não
bastava a divulgação das novas descobertas científicas no campo
da saúde. Não bastava um plano fundamentado num saber
científico para deter as doenças que se propagavam na época,
interferindo negativamente na consolidação da industrialização,
no Brasil. Era necessário que as condições sociais fossem favoráveis
para colocá-las em prática. Ao denunciar as precárias condições
218
A PA RT I C I PA Ç Ã O DA FA M Í L I A N A E S C O L A H I G I E N I Z A DA

da escola e do escolar, os higienistas deixavam entrever que não


se tratava da crise de uma escola em particular, mas de uma crise
social mais abrangente, que não era de responsabilidade de um
indivíduo ou de uma família em particular, nem decorrente de
uma predisposição biológica para o fracasso, com a consequente
individualização do problema. No geral, a escola buscou atender
ao modelo de educação sanitária elaborado pelos médicos
higienistas, que pretendiam eliminar os vícios e desenvolver
hábitos sadios nas crianças, desde o pré-escolar. Almeida Júnior
(1929, p. 821-822), referindo-se à importância da escola primária
como elemento desse processo, afirma que:

Esta é o verdadeiro instrumento de difusão da educação


higiênica. Pouco adianta formarmos legiões de ensinantes, se
não lhes dermos oportunidades para porem em prática a sua
competência. Por outro lado, imagine-se o esplêndido resultado
quando as 400 mil crianças de nossas escolas estiverem sob o
influxo demorado da higiene: serão outros tantos propagandistas
das normas sanitárias e, sem dúvida, indivíduos sadios que,
de futuro, pouca despesa darão ao Estado, para curá-los do
amarelão, da maleita, da sifilis, ou livrá-los da tuberculose e da
lepra.

Esse sistema de hábitos higiênicos não deveria se restringir


a um ou outro hábito isolado, mas construir hábitos de higiene
na criança. Ao estimular hábitos higiênicos, a escola atendia a
uma necessidade de saúde, para a sobrevivência dos indivíduos,
sem dúvida; porém era necessário não perder de vista que a
questão social da falta de infraestrutura para o desenvolvimento
urbano produzia problemas sociais importantes. Essas questões
atingiam a saúde do indivíduo, que, sem condições mínimas
de alimentação e de moradia, ficava vulnerável às doenças da
época. Desta forma, na função de educar, instruir e socializar, a
219
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

escola iria ordenar os alunos nos moldes dos projetos científicos,


com práticas higiênicas não condizentes com a realidade do
entorno social da criança, pois a escola pública atendia os filhos
dos trabalhadores, e estes viviam, em sua grande maioria, em
condições de pobreza, sobrevivendo em moradias inadequadas,
com alimentação insuficiente, sem assistência médica, carentes
de toda a estrutura que requer a prática da higiene.
Outra forma de intervenção da escola na família era realizada
por meio do assistencialismo às famílias pobres, conforme
relata Almeida Júnior, (1929). A assistência mantida pela ‘caixa
escolar’ formada por pais de alunos, professores e particulares,
assim como a “assistência dentária escolar”, contribuía para a
realização de iniciativas higiênicas, conduzidas pela escola, que
também englobavam outras ações, como distribuição de roupas,
calçados, alimentos e medicamentos a alunos pobres, cortes de
cabelo, e ainda o tratamento de moléstias parasitárias.
Sabemos que, mesmo tendo seu valor reconhecido, a educação
higiênica não tinha uma única diretriz para seu desenvolvimento
na escola, ficando a cargo de cada instituição escolar traçar os
caminhos para desenvolver as próprias diretrizes. Observamos
essa carência no relato de Almeida Júnior (1929, p. 824) ao
afirmar que “não há compêndios, dizem ainda os interessados,
em que possamos facilmente encontrar a discriminação de nossa
tarefa; não recebemos instruções especiais a respeito”. Assim, os
cuidados higiênicos deveriam ser mais práticos do que teóricos.
Se o aluno não trouxesse a prática higiênica desenvolvida da
família, a escola teria que trabalhar esses hábitos no período em
que ele permanecesse na escola.
220
A PA RT I C I PA Ç Ã O DA FA M Í L I A N A E S C O L A H I G I E N I Z A DA

Poucos materiais eram produzidos, como cartazes ilustrados,


os quais eram distribuídos pelo Estado às classes de alfabetização.
Esses materiais auxiliavam os professores e introduziam nos
lares a prática da higiene por meio das gravuras, dos métodos e
dos processos de educação higiênica apresentados nas cartilhas
de higiene. Os professores reclamavam da falta de materiais e
de uma literatura didática, no aspecto da educação sanitária.
A este respeito, Braga (1930, p. 274) afirma que um problema
era a escola “ter pouco material na educação sanitária em geral
e no que diz respeito ao antialcoolismo, sendo que os poucos
materiais existentes abordavam somente as questões patológicas”.
Destarte, a reclamação era que na prática o trabalho da escola
ficava comprometido, no entanto, em busca de soluções para se
efetivá-lo, a escola precisava se aliar à família.

Século XX - O estreitamento na relação família


escola

Nesta discussão, um outro aspecto deve ser considerado, ou


seja, em uma sociedade em ritmo de industrialização a solicitação
de um trabalho de estimulo a higiene não se restringia a higiene
física, mas também mental, pois a tensão provocada pela rapidez
das máquinas exigia outro ritmo de vida dos trabalhadores. Neste
processo de aceleração do ritmo de trabalho, apresentavam-se
mudanças que provocavam frequentes acidentes de trabalho,
como o caso de mutilações ocasionadas pelas máquinas que os
trabalhadores operavam. Assim, vemos que o homem moderno
exigido por esta fase industrial se diferenciava do homem
221
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

que viveu na época da Primeira Guerra Mundial. Conforme


Braga (1930, p. 274), o herói moderno seria “conduzido por
uma inteligência clara, de músculos firmes e retesos, olhar
percuciente, coração rítmico, nervos sadios, vontade segura”.
A promoção desse bem-estar e da saúde do povo estava aliada
à intensificação da educação higiênica, pois, com a exigência
desse novo homem, a escola também iria modificar seus
objetivos. Saber viver deveria ser uma das condições essenciais
desenvolvidas pela escola, que, naquele momento, encampava
ações em favor do desenvolvimento da higiene.
Um aspecto geral, observado pelos palestrantes do III
Congresso Brasileiro de Higiene realizado em 1929, foi que tanto
a Federação Brasileira como os estados e municípios tinham
programas higienistas nas esferas rural e urbana e mostravam
esforços para o desenvolvimento da higiene. O problema era
que essas instâncias não se coordenavam em uma ação única de
integração em favor da higiene, visto que cada qual seguia uma
orientação própria, podendo muitas vezes, em seus esforços,
mutuamente se anular. Para Ferreira (1929, p. 837, grifo nosso),
era necessária uma combinação de ações nas diversas esferas
públicas, bem como entre as instâncias da sociedade, pois “A
higiene, como todas as grandes manifestações da atividade
humana, será neste ou naquele meio tanto maior quanto for,
para difundi-la e praticá-la, a ação combinada do cidadão, da
família e do Estado”.
A aproximação entre a família e a escola, nesse momento,
iria ser realizada, entre outras formas, pela educação sanitária e
pelo assistencialismo desenvolvidos nas escolas, que buscavam
um estreitamento nas relações família-escola, pondo em relevo
222
A PA RT I C I PA Ç Ã O DA FA M Í L I A N A E S C O L A H I G I E N I Z A DA

a função social da escola e buscando formar um indivíduo capaz


de viver e servir ao Estado. A escola iria formar o homem por
meio do desenvolvimento de habilidades para integrá-lo no
campo do trabalho para a produção (BRAGA, 1930). Neste
aspecto, a escola era a grande articuladora da promoção do
homem cidadão, seguidor das normas e regras, anunciado por
Tocqueville (1805 - 1859), que, em seu tempo, entendia que a
família não conseguia formar o homem público, portanto esta
tarefa caberia à educação escolarizada, a qual desenvolveria o
sentimento de cidadão político que viveria para uma unidade
coletiva, que era a escola, a família a Nação ou a Pátria.
O convite à família para cooperar com a escola por meio
dos círculos de mães era considerado um grande avanço para
os objetivos da educação higiênica, unindo as duas instâncias
encarregadas de conduzir a criança, como relata Aragão (1997, p.
451), “A cooperação da família na obra da escola é indispensável.
Em cada escola deve existir um Círculo de Mães que as prepare
convenientemente”. Desta forma, as famílias eram convidadas
a frequentar a escola para serem educadas nas concepções de
higiene e educação familiar e economia doméstica, pois assim a
escola estaria trabalhando em favor da comunidade.
Percebemos, destarte, que a escola, com a função que tinha
de ocupar-se da educação infantil, buscava parceria na família,
procurando prepará-la para o exercício da função educativa,
sendo frequentes as ações de visitar as casas dos alunos. Assim,
a escola tentava, por meio dessas ações, direcionar os hábitos e
costumes higiênicos da família. Segundo Pernambuco (1929, p.
891, grifo nosso), deveriam ser realizadas intervenções como:
223
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

Visitar os alunos que faltarem mais de três dias à escola,


verificando a causa das faltas comunicando imediatamente à
diretoria ou ao médico-escolar; visitar a família dos alunos que se
monstrarem desleixados no traje ou nos costumes, procurando
melhorar o meio familiar.

Neste sentido, Ferreira (1929, p. 837) afirma que era


necessária a interação entre as ações do cidadão, da família e
do Estado, pois, segundo ele “sem a ação combinada desses três
fatores, só lenta e não aceleradamente irão predominando os
bons hábitos sobre os maus”. Assim a escola, autorizada por seu
conhecimento científico, iria interferir diretamente no âmbito
familiar.

A escola normatiza a família

A higiene mental pensada nos meios médicos alienistas e


psiquiátricos buscava também resolver as questões de sanidade
psíquica. Como se acreditava que essa higiene era realizada no
decorrer da formação da personalidade, a escola passou a ser um
local privilegiado para o desenvolvimento de ações voltadas ao
cultivo da boa higiene mental. Para os higienistas, era consensual
a relevância da atuação da escola no que se refere à higiene
mental, cabendo à pedagogia o importante papel de desenvolver
hábitos de higiene mental, conforme afirmou Olinto (1942,
p. 635): “Atualmente, porém todas as celebridades médicas
conhecem nela [higiene mental] as mais estreitas ligações com
a educação e ninguém mais põe em dúvida que o maior campo
de ação é nas escolas e não nos hospitais”.
224
A PA RT I C I PA Ç Ã O DA FA M Í L I A N A E S C O L A H I G I E N I Z A DA

Assim, era a educação escolar que, de acordo com os


higienistas, dirigindo-se à família, iria levar as normas de saúde
física e psíquica do indivíduo à população e a todas as esferas
sociais. A educação escolar era posta como o lugar da verdadeira
profilaxia da doença mental, pois as difíceis situações de
perversão moral do ambiente em que a criança vivia, a situação
de miséria, abandono, maus exemplos e companhias, podem
trazer consequências como, por exemplo, a delinquência infantil.
Na concepção de que o meio físico e social é determinante na
construção mental da criança, levá-la para a escola seria o melhor
recurso para normatizá-la conforme os preceitos tidos como
dignos pela sociedade. Assim, “é preciso criar nos escolares o
sentimento de solidariedade, que tem suas raízes no instinto
gregário. O combate ao crime é, pois, do domínio da Higiene
mental” (OLINTO, 1942, p. 637).
Além de colaborar para a prevenção de doenças físicas e
mentais, os professores tinham a incumbência de participar
ativamente na boa formação do caráter e dos valores morais das
crianças, conforme enfatiza Castro (1929, p. 141):

Por isso vossa tarefa é, assim, nobilitante. A de colocar toda


uma sociedade em guarda contra um dos perigos que mais a
ameaçam e mais conspiram contra a sua estabilidade [...] A de
vos empenhardes na educação do caráter e dos valores morais
das crianças, orientando-a para as finalidades superiores da vida,
unindo-a em solidário esforço na luta pelo bem e pela virtude,
criando-lhe, na mente, o amor ao trabalho.

A escola teria por finalidade o bem-estar social do aluno,


buscando espaços para a participação ativa deste aluno na
sociedade, como cidadão capaz de empreender seus deveres para
com a Pátria e a humanidade. A escola, na visão dos higienistas,
225
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

era a guardiã da ordem e do progresso desta sociedade, onde a


higiene era a condição primeira.
Assim o professor, sob orientação médica, passava a ser o
mediador entre a família e as ações médico-higienistas tarefa
que não era fácil para a escola, pois esta família já se apresentava
comprometida com o trabalho extrafamiliar. Não podemos
esquecer que havia um processo de intensificação do trabalho
operário, em que toda a família estava envolvida no trabalho de
produção. De forma geral, todos os membros da família eram
mal remunerados, tendo que comprometer seu tempo com o
trabalho.
A situação econômica e social das famílias da classe
trabalhadora dificultava a ação dos higienistas em prol da
saúde e bem-estar dos indivíduos, visto que este trabalho
necessitava de contatos com a família e da disponibilidade desta
para atender ao chamado da escola. Esta família também não
conseguia atender às necessidades de seus membros. Podemos
observar a afirmação de Oliveira (1929) como exemplo dessas
necessidades quando ele destaca o papel da mulher na formação
dos filhos, bem como a necessidade da presença, principalmente
da mãe, nos projetos de vida de sua prole. De acordo com o
pensamento higienista, a mãe exercia influência significativa na
vida da criança, não somente pelo fato de realizar atividades de
grande importância para esta, como é o caso do aleitamento e
da assistência abnegada aos filhos, mas também pela tendência
que apresentava em perceber e prover às necessidades dos seus
filhos e guiá-los, facilitando-lhes o desenvolvimento.
A mulher pobre, a viúva, a abandonada, iam para as fábricas
trabalhar por longas jornadas, e esta alternativa de trabalho
226
A PA RT I C I PA Ç Ã O DA FA M Í L I A N A E S C O L A H I G I E N I Z A DA

não lhes permitia cuidar ou acompanhar a vida escolar dos


seus filhos, considerando-se ainda que esta mulher tinha a
incumbência dos afazeres domésticos. Esta situação impedia que
a mãe pertencente à classe trabalhadora adquirisse as noções
sobre o desenvolvimento psicológico da criança e observasse os
princípios de higiene preconizados pelos higienistas.
A posição dos higienistas em destacar o aspecto biológico
dos problemas que afligiam a sociedade, não dando relevância
às condições sociais que geram esses problemas, era própria
do biologismo, cujo entendimento era que, se o indivíduo
nascesse com características biológicas predeterminadas, seriam
as regras e normas que poderiam encaminhá-lo para uma vida
regrada e saudável. Desta forma, eles garantiam a importância
da influência da mãe sobre os filhos, consequentemente, havia
a necessidade de essa mãe ser orientada pela escola, pois cabia a
ela aconselhar e dirigir as ações dos filhos segundo os preceitos
higiênicos. Como afirma Oliveira (1929, p. 851), “É da mãe
que depende essencialmente a orientação boa ou má e todas
as consequências benéficas ou desastrosas do aprendizado da
criança. Tal mãe, tal filho”.
Desta forma, para se realizar o trabalho de higiene mental
dirigido aos alunos, a escola precisava da contribuição dos
pais. Conforme relata Alberto (1997), existia a participação da
família, como nos casos dos Círculos de Mães, que desenvolviam
programas voltados à higiene, à educação familiar e à economia
doméstica.
Neste relacionamento, às vezes os pais também precisavam
de correção sobre a forma mais conveniente de tratar os filhos,
conforme explica Marcondes (1942, p. 585) “Excessos de castigos
227
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

físicos – situação condicionada à falta de cultura dos pais, ilustra


a necessidade da extensão da atividade educativa da escola
ao ambiente familiar”. Esta interferência da escola na família
gerava um desequilíbrio no relacionamento entre estas duas
instâncias, por isso muitas vezes a família negava-se a se envolver
com a escola. Se as questões exigissem alguma participação mais
intensa da família na escola, estas famílias chegavam a mudar
seus filhos de escola, para não serem incomodadas. Por esta
razão Bittencourt (1942, p. 632) se lamentava:

O recurso dos círculos dos pais e mestres para ajustar aqueles


á escola, se revela geralmente inoperante, entre nós, como a
experiência tem demonstrado. Os pais de alunos resistem até
quando são chamados para tratar, a sós com os diretores do
estabelecimento, sobre o caso particular de seu filho.

A família formava, na visão dos higienistas, uma comunidade


que deveria ser atingida pelas propagandas higiênicas
encaminhadas pela escola, visto que, entre os fatores tidos como
desencadeadores da “má” escolaridade, segundo os higienistas,
estava a negligência dos pais no acompanhamento da frequência
dos filhos à escola. Quando Azevedo (1942) aborda os problemas
dos repetentes na escola, ele aponta, entre as medidas tendentes
a solucioná-los, a participação dos pais na escola, afirmando
que é necessário atrair os pais ou responsáveis à escola para a
solução de todos os problemas que dizem respeito ao educando:
frequência, saúde, alimentação, vestuário e higiene em geral e
maneira de educar os filhos.
228
A PA RT I C I PA Ç Ã O DA FA M Í L I A N A E S C O L A H I G I E N I Z A DA

O assistencialismo da escola para a família...


Há crianças que vivem e crescem nas ruas, nas casas dos vizinhos,
em verdadeiro abandono e são mandadas à escola para o sossego
dos pais que, ignorantes em grande parte ou ocupadíssimos com
a luta de todos os dias, não podem controlar a vida escolar de
seus filhos, pouco importando se o mesmo ‘passe de ano’. O
que unicamente lhe importa é que o filho permaneça na escola
o maior espaço de tempo possível, até que atinja a idade de
trabalhar (CAMARGO, 1942, p. 571).

Para o desenvolvimento do projeto higienista, do início do


século XX, higienizar para a saúde requeria condições sociais
que os higienistas não encontravam nessa sociedade; assim, o
assistencialismo se fazia um meio aceitável de ser realizado pela
escola neste momento. Coube à escola promover a saúde por
meio do conhecimento de hábitos higiênicos, na intenção de
desenvolver uma educação útil para a vida. As ações realizadas
no interior da escola com os alunos deveriam se prolongar,
atingindo também as famílias destes e encaminhando a ordem
da sociedade, com vista ao o progresso social.
Com a intenção de educar para a higiene, as ações práticas
passaram a ser mais significativas que a instrução. Assim,
o professor e a família, enquanto modelos, eram fatores
determinantes para sua efetivação.
Observamos que os trabalhos higiênicos propostos para as
escolas desenvolverem com os pais e alunos seriam cobrados
dos professores. Os médicos realizavam observações das turmas
a fim de julgarem as condições higiênicas por elas apresentadas.
Assim os professores que atingissem os objetivos de desenvolver
hábitos higiênicos em seus alunos receberiam uma promoção,
229
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

como uma forma de estímulo. Este fato é firmado no Decreto


n.º 2008, de 14 de agosto de 1924:

Examinados obrigatoriamente pelo médico ao entrar em classe


todos os alunos são forçados, desde logo, a hábitos de asseio
e de higiene. É até elemento considerado para determinar o
merecimento de um professor a ser promovido, cujo julgamento
é privativo do médico escolar, o cuidado com a saúde da criança,
com a educação física e com a higiene da classe (LEÃO, 1929,
p. 872).

Para desenvolver esse trabalho higiênico a escola teria


que organizar o seu espaço físico com as disposições espaciais
dos lavatórios e banheiros, sendo recomendado o uso de
copos descartáveis ou individuais, bem como a organização
de fichas e entrega de produtos de higiene pessoal, como
sabonete, toalha de rosto, copo, balde, escova de dente,
escova de unhas, creme dental, pente, e avental. Esse fato
demonstra que o aluno não dispunha dos instrumentos
básicos necessários para a higiene pessoal, cabendo à escola
a tarefa de propiciar os hábitos de higiene que os alunos não
recebiam na família (LEÃO, 1929).
Esses trabalhos, segundo os propósitos higienistas,
resultariam mais tarde em uma ‘consciência sanitária’, meio
fundamental para a defesa da saúde pública. Oliveira (1929, p.
807) demonstra como acontece a evolução sanitária racional:

E a evolução é tanto mais necessária para as meninas. Cria-


lhes hábitos sadios. [...] hábitos sadios, que vão contribuir
para o benefício da futura mãe – anjo tutelar das crianças que
perpetuarão e regenerarão a espécie, tornando-a mais capaz e
mais bela.

230
A PA RT I C I PA Ç Ã O DA FA M Í L I A N A E S C O L A H I G I E N I Z A DA

Muitas dificuldades também eram enfrentadas pela escola


ao desenvolver este projeto higiênico. Encontramos relatos
de professores que reclamavam das dificuldades em infundir
os hábitos de higiene, em vista da situação de pobreza em
que os alunos se encontravam, não possuindo condições
financeiras para manter a alimentação necessária para se
ter saúde. Assim, mesmo a escola desenvolvendo um bom
trabalho de higienização do aluno, ele continuava magro e
sem saúde. Leão (1929, p. 876) relata a pesquisa realizada
em 1929 no Rio de Janeiro por seus professores, fazendo o
seguinte questionamento:

Como aumentar de peso o aluno, por mais cumpridor que seja


de seus deveres assinalados na ficha do Pelotão de Saúde, se nem
ao menos satisfaz a sua fome, se além da água de café com uma
triste fatia de pão pela manhã, somente à noite, à chegada do
pai, vai comer alguma coisa de sólido?

Segundo esse autor, para atender aos casos de subnutrição


dos alunos, a diretoria da escola e os professores arrecadavam
auxílio de particulares. Desta forma surgiram instituições
como a do copo de leite, da sopa escolar e da merenda com
frutas. “Hoje há escolas que distribuem diariamente 15, 20
até 30 litros de leite, havendo algumas dando ainda o pão
como a Escola Padre Manoel da Nóbrega que, além dos 25
litros, fornece dez mil réis de pão por dia” (LEÃO, 1929, p.
877).
A família do aluno estava envolta em uma situação de
pobreza em que a assistência realizada pela escola era uma
importante ajuda, e desta forma era bem-vinda. Os higienistas
231
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

reclamavam da imobilidade dos pais, que não correspondiam


aos direcionamentos higiênicos encaminhados pela escola.
Neste entrave, tanto a escola como a família ficavam postas
sob uma pretensa crise, que acreditaram os higienistas ser possível
resolver mediante a aproximação dessas duas instâncias.

Considerações finais

Pelas propostas higienistas para aproximar a família da


escola, registradas nos documentos da Liga Brasileira de Hygiene
Mental, no período de 1920 a 1940, podemos observar as formas
de pensar as relações entre a escola e a família empregadas
naquele momento.
Verificamos que os encaminhamentos higienistas propostos
para a escola e a família possuíam uma gama de preocupações
com os problemas e questões sociais próprios daquela época. O
Brasil passava por um processo de industrialização e urbanização
e apresentava problemas de diferentes naturezas. Entre esses
fatores estavam o desemprego, a situação de extrema pobreza da
classe operária e a falta de infraestrutura sanitária urbana. Estes
fatores ocasionavam a proliferação de doenças e de moléstias,
atingindo pessoas de todas as classes sociais; desta forma, todas
estavam expostas às doenças, que se alastravam. O Brasil dessa
época foi descrito, tanto pelos higienistas como em parte pela
arte literária, como um país de pessoas enfraquecidas por causa
dos germes e das moléstias. Para adaptar a família aos moldes
das normas de saúde física, mental e moral, dentre os caminhos
utilizados pelos higienistas a escola foi o meio mais utilizado.
232
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A família, principalmente a da classe operária, que, segundo


os higienistas, estava incapacitada de educar seus filhos dentro
dos padrões higiênicos, deveria receber o trabalho da escola
para desenvolver uma ação consciente. Como já afirmamos
anteriormente os higienistas entendiam que os problemas
sociais eram de natureza individual, assim cada família poderia
conduzir seus filhos desenvolvendo as normas de higiene e bons
costumes, e com isso a escola também resolveria suas questões,
como a reprovação, a evasão e as faltas escolares.
São inegáveis os méritos do projeto higienista no esforço por
desenvolver uma consciência profilática nos indivíduos, no que
se refere a doença; porém, ao desconsiderar o contexto histórico
dos modos de produção e as desigualdades sociais da época,
posicionando-se somente na orientação das ciências biológicas,
ele nega as condições sócio-historicas da época.

233
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SOUTO MAIOR, L. Introdução ao pensamento de Manoel Bomfim: o discurso


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Alves de Estudos Políticos, 1993.

SOUZA, R. F. O Direito a educação: lutas populares pela escola em


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TOLEDO, E. A. Entre o “psicotira” e o “policiólogo”: onde se encontra o


psicólogo militar? 2006. 201 f. Dissertação (Mestrado)-Programa de Pós-
Graduação em Saúde Coletiva, Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro, 2006.

248
REFERÊNCIAS

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XAVIER, M. E. S. P. A educação na sociedade brasileira: um exame das
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ZAMECNÍK, S. C’Était ça, Dachau (1933-1945). Paris: Le Cherche Midi,
Fondation Internationale de Dachau, 2003.

249
Sobre os autores

MARIA LUCIA BOARINI. Psicóloga. Mestre em Psicologia Social (PUC/


SP), doutora em Psicologia Escolar e Desenvolvimento Humano (USP).
Docente Associada da graduação e pós-graduação do Departamento de
Psicologia da Universidade Estadual de Maringá. Criou o periódico cientifico
Psicologia em Estudo sendo sua editora no período de 1996-2005. Coordena
o GEPHE - Grupo de pesquisa e estudo sobre os movimentos em prol da
higiene mental e da eugenia. Seus estudos convergem, principalmente, para
o campo que faz interface entre as áreas de Educação e Saude Mental na
Saúde Pública.

DURVAL WANDERBROOCK JUNIOR. Licenciado em Psicologia.


Mestre em Fundamentos da Educação (UEM). Formador do ILAESE –
Instituto Latino-Americano de Estudos Sócio-Econômicos. Autor do livro
intitulado A Educação sob medida: os testes psicológicos e o higienismo no Brasil
(1914-1945), publicado pela EDUEM.

MARCOS ALEXANDRE GOMES NALLI. Filósofo. Mestre em


Fundamentos da Educação (UEM) e Doutor em Filosofia (UNICAMP), com
Pós-Doutorado na área de Epistemologia no Centre de Recherche Historique
École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris, França. Docente da
graduação e pós-graduação do departamento de Filosofia da Universidade
Estadual de Londrina. Autor do livro intitulado Foucault e a Fenomenologia.
São Paulo: Loyola, 2006, além de vários capítulos de livros e artigos em
periódicos especializados, principalmente sobre o filósofo Michel Foucault.
Tem profundo interesse, além de História da Filosofia Contemporânea, em
Filosofia da Ciência e da Técnica, sobre temas como Eugenia, Nanotecnologia,
Biotecnologia. Desenvolve atualmente projeto de pesquisa sobre Filosofia da
Medicina à luz do pensamento de Michel Foucault.
RAÇA , HIGIENE SOCIAL E NAÇÃO FORTE

MARCOS MAESTRI. Pedagogo, Mestre em Fundamentos da Educação


(UEM). Psicólogo. Doutor em Psicologia (PUC-Campinas). Docente dos
cursos de Psicologia na Universidade Estadual de Maringá – UEM e da
Faculdade Ingá – UNINGÁ.

MARIA SILVINHA CARRARO MARTINS. Pedagoga. Mestre em


Fundamentos da Educação (UEM). Professora da Rede Estadual de Educação
do Paraná. Autora de varias artigos publicados em periódicos científicos.

MILENA LUCKESI DE SOUZA. Psicóloga. Mestre em Fundamentos da


Educação (UEM). Especialista em Educação Especial (UEM). Atua como
psicóloga no Centro de Testagem e Aconselhamento em DST/HIV/AIDS
no município de Jundiaí/SP.

RENATA HELLER DE MOURA. Psicóloga. Mestre em Psicologia (UEM).


Doutoranda em Subjetividade e Saúde Coletiva (UNESP/Assis-SP). Docente
do Departamento de Psicologia da Universidade Estadual de Maringá-PR.
Tem experiência na área de Saúde Mental na Saúde Pública, com ênfase
nas práticas desenvolvidas no nível de Atenção Primária/Atenção Básica e
Programa Saúde da Família, tendo atuado na Rede Municipal de Saúde de
Campo Mourão - PR no período de 2005 a 2010.

ROSELANIA FRANCISCONI BORGES. Psicóloga. Especialista em Saúde


Coletiva (UEM). Mestre em Fundamentos da Educação (UEM). Doutoranda
em Subjetividade e Saúde Coletiva (UNESP-Assis). Docente do curso de
Psicologia da Universidade Estadual de Maringá – PR e técnica da rede
pública de saúde do município de Itambé - PR.

SAULO LUDERS FERNANDES. Psicólogo. Mestre em Psicologia (UEM).


Docente do curso de Psicologia da Universidade Federal de Alagoas, campus
Arapiraca. Realiza pesquisas e projetos de extensão na área de psicologia
social com enfase em comunidades tradicionais da região.

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