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Sofia Miguens

Filosofia da Linguagem – uma introdução

Inglaterra’ denota um homem determinado, (3) Uma expressão pode denotar


ambiguamente, por exemplo ‘um homem’ denota não muitos homens mas um
homem ambíguo. A interpretação de tais expressões é uma questão de
considerável dificuldade; na verdade é muito difícil formular qualquer teoria que
não seja susceptível de refutação formal. Mas todas as dificuldades que
conheço são superadas, tanto quanto consigo ver, pela teoria que estou
prestes a explicar [Russell refere-se à Teoria das Descrições Definidas]. O
assunto da denotação é um assunto de grande importância, não apenas na
lógica e na matemática mas também na teoria do conhecimento. Por exemplo,
nós sabemos que o centro de massa do sistema solar num instante definido é
algum ponto definido, e podemos afirmar um certo número de proposições
sobre ele; mas não temos nenhum conhecimento por contacto (knowledge by
acquaintance) deste ponto, que conhecemos apenas por descrição. A distinção
entre contacto e conhecimento sobre é a distinção entre as coisas das quais
temos apresentações e as coisas que apenas alcançamos por expressões
denotativas.»
Muito irá sair desta distinção russelliana, como veremos. Desde já deve ficar
claro que a divergência entre Frege e Russell quanto ao que se deve entender
como nome próprio passa por (i) a distinção russelliana entre ‘denotar’ e
‘referir’, e (ii) os conceitos russellianos de knowledge by acquaintance e
knowledge by description. Assim, embora sejam ambas usualmente
classificadas como ‘teorias descritivistas da referência’, as propostas de Frege
e Russell representam diferentes modos de encarar o sentido e a referência.
Mas voltemos a Über Sinn und Bedeutung. No início encontramos o problema
da identidade: será esta uma relação? Se é uma relação, será uma relação
entre signos ou nomes de objectos, ou uma relação entre os próprios objectos?
A questão pode ser tratada em torno do Puzzle de Frege (que é, assim, um
problema em torno do que se entende por ‘identidade’): como é possível que o
valor cognitivo de ‘A estrela da manhã é a estrela da tarde’ seja diferente do
valor cognitivo de ‘A estrela da manhã é a estrela da manhã’, se as expressões
‘a estrela da manhã’ e a ‘a estrela da tarde’ designam a mesma coisa (o
planeta Vénus)? Como é possível que o mesmo aconteça com ‘Fernando
Pessoa é Fernando Pessoa’ e ‘Fernando Pessoa é Ricardo Reis’? É motivado
pela necessidade de tratar este problema que Frege vai propor a sua doutrina
do sentido (como ‘modo de apresentação’) e da referência.

LIÇÃO 9

Sugere-se que Über Sinn und Bedeutung seja lido na íntegra e analisado de
acordo com o esquema que se segue.
ESQUEMA Nº10

Frege 1892, Über Sinn und Bedeutung (USB)

• Qual é o tema de USB?


• Qual é o problema-foco do artigo?
• O que é o Puzzle de Frege?

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• Parte I: sentido e referência de nomes próprios (Quais são as teses defendidas?)


• Parte II: sentido e referência de frases assertivas completas (Quais são as teses defendidas?)
• Parte III: sentido e referência de frases compostas (frases inseridas em frases) (Quais são as teses
defendidas?)

(Tarefa adicional: Procurar identificar e analisar os exemplos-chave de cada uma das partes)

A primeira parte de Über Sinn und Bedeutung é acerca do sentido e da


referência de nomes próprios (fregeanos). Compreenderemos melhor as
propostas de Frege se olharmos com especial atenção para os exemplos que
ele utiliza:

(1) o exemplo do triângulo: relativamente a um triângulo detertminado fala-se


de ‘o ponto de intersecção de a e b’, ‘o ponto de intersecção de b e c’ (a, b e c
são as linhas que ligam cada vértice de um triângulo com o ponto médio do
lado oposto); ‘o ponto de intersecção de a e b’ e ‘o ponto de intersecção de b e
c’ nomeiam o mesmo ponto, designam o mesmo objecto, têm a mesma
referência;

(2) o exemplo da lua: consideremos uma pessoa que observa a lua através de
um telescópio. Temos aí três coisas diferentes a considerar. A lua é o objecto
observado ele próprio. Frege chama em seguida a atenção para a diferença
que existe entre a imagem formada na lente do telescópio (é uma perspectiva,
mas uma perspectiva ‘objectiva’, que pode ser usada por diversos
observadores) e a imagem retiniana, que é variável de indivíduo para indivíduo.

Estas são formas intuitivas de abordar, respectivamente, (1) a noção de ‘modo


de apresentação’ (para Frege o sentido é um modo de apresentação da
referência), e (2) a diferença entre sentido (Sinn) e representação (Vorstellung).
As teses de Frege acerca de sentido e referência, formuladas para o caso dos
nomes próprios, são as seguintes: i) a referência de um nome próprio é o
próprio objecto que por seu intermédio designamos; ii) nada impede que vários
indivíduos ‘capturem’ o mesmo sentido (Sinn), mesmo se eles não podem ter a
mesma representação subjectiva, iii) o sentido é um ‘modo de apresentação’
(partilhável por vários indivíduos).
Quer o sentido quer a referência devem assim ser distinguidos das diferentes
representações por diferentes indivíduos. Como se verá, as teses relativas a
frases serão uma extensão deste primeiro núcleo de teses acerca de nomes.
Prosseguindo com a interpretação de Über Sinn und Bedeutung, recapitulemos
claramente as ideias acerca de sentido e referência obtidas no caso dos nomes
próprios: 1. sentido e referência são dois ingredientes distintos da significação
de um nome próprio, 2. o nome próprio exprime um sentido e designa uma
referência, 3. é o sentido do nome próprio que determina a sua referência e
não o contrário, 4. é por ser o sentido a determinar a referência e não o
contrário que é possível que um mesmo objecto seja identificado por mais do
que um nome próprio, 5. o sentido é um critério de identificação da referência e
não algo como uma imagem privada. São essas ideias que permitem a Frege
explicar o que se passa com nomes próprios co-referenciais (tais como ‘a

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estrela da manhã’ e a ‘a estrela da tarde’) e com nomes próprios vazios (tais


como ‘Pai Natal’ ou ‘Pégaso’): no primeiro caso o mesmo objecto é identificado
por mais do que um nome próprio, no segundo caso temos um sentido, um
critério de identificação, que não chega a identificar algo no mundo.
Na segunda parte de Über Sinn und Bedeutung Frege apresenta as suas teses
quanto a sentido e referência de frases. Defenderá que o pensamento
(Gedanke) é o sentido de frases e o valor de verdade (V, F) a sua referência.
Uma alternativa considerada e afastada é a seguinte: a relação do pensamento
com o Verdadeiro seria não uma relação do sentido com a referência, mas uma
relação entre sujeito e predicado. No entanto Frege considera que sujeito e
predicado – apesar do que possa ser dito delas noutros contextos, em que
procura substitui-las pelas noções de função e argumento – são noções que
respeitam a constituintes do pensamento, sendo do mesmo nível e não sendo
explicativas do que há aqui a explicar. Aquilo a que Frege chama o juízo
aparece como a trajectória de um pensamento para um valor de verdade (V, F).
A concepção fregeana de ‘pensamento’ é muito discutida; não é no entanto
demasiado polémico sugerir que Frege chama ‘pensamento’ não a algo de
psicológico mas ao que muitos chamam ‘proposição’ ou ‘conteúdo expresso
por um enunciado’. Um ponto muito discutido desta doutrina é obviamente a
conclusão de acordo com a qual ‘o Verdadeiro é a referência de todas as
frases verdadeiras, o Falso a referência de todas as frases falsas’.
Exactamente o que significa tão curiosa tese?
Em Über Sinn und Bedeutung Frege considera ainda o princípio da
substituibilidade salva veritate e os contextos indirectos. Se a referência de
uma frase é o valor de verdade desta, este valor de verdade deve manter-se
inalterado se uma parte da frase for substituída por outra com a mesma
referência. E é esse o caso. Leibniz oferece o princípio, por considerar que ele
exprime a essência da relação de identidade, Frege cita-o em Über Sinn und
Bedeutung: Eadem sunt, quae sibi mutuo substitui possunt, salva veritate (são
idênticos aqueles que se podem substituir mutuamente, preservada a verdade).
Frege proporá de forma a poder manter este princípio face a contra exemplos,
que em contextos indirectos a referência de uma expressão é o seu sentido.
Na terceira parte de Über Sinn und Bedeutung Frege considera o sentido e
referência em contextos indirectos especificos, em que ‘frases que são parte de
outras frases’. Frege estende às frases compostas a ideia básica sobre
discurso indirecto: nele as palavras não têm as suas referências habituais. Esta
ideia tinha sido introduzida para elementos mais simples de frases.
Esta questão é importante para temas muito importantes na filosofia da
linguagem hoje, tais como a forma de tratar a citação e os contextos
intencionais e modais55. De resto, Frege propõe uma primeira teoria da citação,
tema que será retomado de então para cá pelos filósofos da linguagem (Quine,
Tarski e Davidson são alguns exemplos). Para Frege as palavras seriam
triplamente ambíguas «’Cícero’, por exemplo, não apenas pode servir para
mencionar o senador romano (em contextos comuns) e para mencionar-se a si
mesma, quando aparece entre aspas, como também pode servir para designar
uma entidade a que se convencionou chamar ‘modo de apresentação’ ou
‘sentido’ e que segundo ele toda a teoria da linguagem deve contemplar»56.

55
Cf. exemplos de Perez-Otero & Garcia-Carpintero 2000, 2. Frege, sentido e referência.
56
Garcia-Carpintero 1996:37.

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Para Frege, expressões de atitudes proposicionais (‘Alice acredita que…’) são


precisamente contextos em que as expressões significam os modos de
apresentação e não aqueles objectos que usualmente referem.

LIÇÃO 10

No último parágrafo de Über Sinn und Bedeutung Frege retoma a questão com
que iniciara o artigo, a questão da identidade (a pergunta era, recorde-se,
‘como é que possível que ‘a=a’ e ‘a=b’ tenham valores cognitivos diferentes
quando os nomes ‘a’ e ‘b’ designam a mesma coisa).
Uma vez tendo na mão a distinção entre sentido e referência, Frege defende
que para o propósito de adquirir conhecimento, o sentido de uma frase (o
pensamento) não é menos relevante do que o seu valor de verdade, e neste
caso o sentido de ‘a’ difere do sentido de ‘b’, logo o sentido de ‘a=a’ difere do
sentido de ‘a=b’. As duas frases não têm por isso o mesmo valor cognitivo, é
possível aprender algo mais com ‘a=b’57. É agora clara a forma como a
distinção entre sentido (Sinn) e referência (Bedeutung) permite responder à
questão inicial de Über Sinn und Bedeutung.
São muitos os problemas deixados em aberto pela teoria fregeana do
pensamento e da linguagem, e precisamente por isso o seu estudo continua a
ser tão rico para a filosofia contemporânea. As análises que M. Dummett e T.
Burge fazem da obra de Frege (cf. referências bibliográficas em Bibliografia
Geral) podem aqui servir de guia. Na sequência das posições específicas
apresentadas, menciono em seguida apenas algumas das questões que a obra
de Frege deixa em aberto e nos faz ainda discutir: (i) o que são ‘sentidos’ e
‘Bedeutung’ (i) em que consiste o ‘grasping’ (capturar) dos sentidos (onde ficam
as mentes em Frege? Aparentemente em lado nenhum…), (ii) será que a teoria
fregeana não nos obriga a postular a existência de sucessivos modos de
apresentação encaixados ad infinitum? (iii) será que Frege sustentou de facto
até ao fim o seu Princípio do Contexto? (Será que há apenas um princípio do
contexto? De acordo com T. Burge, seis formulações devem ser
consideradas58), (iv) que forma tem afinal a ontologia fregeana? (v) será que o
‘platonismo pragmatista’ de Frege (a expressão é de Tyler Burge) é de facto
capaz de salvar o racionalismo? Será que o torna de facto uma opção
pertinente em teoria do pensamento e do conhecimento ao deixar de lado
qualquer apelo a uma suposta intuição intelectual? (vi) qual é exactamente a
concepção fregeana da lógica?
Estas são questões filosóficas gerais que podem hoje ser tratadas a partir da
obra de Frege, e portanto da história da filosofia. De qualquer modo, as teorias
da linguagem e do pensamento e da forma como estes se relacionam com a
realidade que Frege erige diferem em muito, como se verá em seguida e de
uma forma que torna o contraste produtivo, das propostas de alguém que
tratou temas semelhantes, quase simultaneamente, e que é outro dos grandes
nomes iniciais da filosofia da linguagem: o filósofo inglês Bertrand Russell.

57
Frege termina dizendo que se entendemos por ‘juízo’ o avançar do pensamento para o valor de verdade
deste, podemos dizer que os juízos são também diferentes.
58
BURGE 2005: 15. O Princípio do Contexto aplica-se ao significado ou conteúdo, e o significado ou
conteúdo vem a ser tratado por Frege em termos de Sinn E Bedeutung. De acordo com Burge, cada um
dos três Princípios do Contexto (formulado em (i) termos metodológicos, (ii) em termos de condições
necessárias e (iii) em termos de condições suficientes) ramifica-se assim em dois.

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