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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS


DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA FÍSICA

O ESTRANGEIRO NO MUNDO DA GEOGRAFIA

Ângela Massumi Katuta

São Paulo
2004
O Estrangeiro no mundo da Geografia
Ângela Massumi Katuta
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA FÍSICA

O ESTRANGEIRO NO MUNDO DA GEOGRAFIA

Ângela Massumi Katuta

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação


em Geografia Física, do Departamento de
Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de São Paulo,
para obtenção do título de Doutora em Geografia.

Orientadora: Profa. Dra. Maria Elena Ramos Simielli

São Paulo
2004
Ângela Massumi Katuta

O ESTRANGEIRO NO MUNDO DA GEOGRAFIA

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Geografia Física, do Departamento de


Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo,
para obtenção do título de Doutora em Geografia.

___________________________________________
Orientadora: Profa. Dra. Maria Elena Ramos Simielli
Universidade de São Paulo

Membros da Banca:

2º Examinador: ______________________________________________________________

3º Examinador: ______________________________________________________________

4º Examinador: ______________________________________________________________

5º Examinador: ______________________________________________________________

São Paulo, ________, de ________________________________ de 2005.


Dedicatória

Aos meus PAIS

Aos meus irmãos

A Os Nossos Antepassados:

• Medardo di Terralba, Visconde Partido ao Meio, “[...] a aspiração a uma


completude para além das mutilações impostas pela sociedade [...]”.
• Cosme de Rondó, O Barão nas Árvores, “[...] um caminho para uma
completude não individualista a ser alcançada por meio da fidelidade a uma
autodeterminação individual [...]”.
• Agilulfo Emo Bertrandino dos Guildiverni e dos Altri de Corbentraz e Sura,
O Cavaleiro Inexistente, “[...] a conquista do ser [...]”.

“[...] três níveis de aproximação da liberdade.”

In: CALVINO (1997, p. 19-20). Os Nossos Antepassados 1 : “[...] árvore


genealógica dos antepassados do homem contemporâneo, em que cada rosto oculta
algum traço das pessoas que estão a nossa volta, de vocês, de mim mesmo.”

1
Título da brilhante trilogia escrita por Ítalo Calvino (1997).
Agradecimentos
O presente trabalho expressa uma pequena parte de um conjunto de reflexões

que venho realizando há algum tempo, com muitas pessoas e nos mais variados fóruns,

desde as mesas dos botecos, conversas e encontros com amigos, passando por debates

em salas de aula, congressos e atividades acadêmico-científicas. Foram muitos os

sujeitos, vivos, mortos, (mais vivos que mortos e, também, mais mortos que vivos), que

em diferentes momentos e das mais diversas maneiras, na presença, na ausência, na

ausência-presença e na presença-ausência, participaram da tecedura e urdidura da

trama de idéias que ora apresento para apreciação e debate. Daí a impossibilidade da

realização de agradecimentos pontuais a cada uma das pessoas, pois, por mais que me

esforce, sempre alguém ficará fora da lista. Por isso, agradeço a todas as pessoas com

as quais tive o prazer da convivência: alunos, colegas de trabalho, amigos, familiares,

instituições e colegas próximos e distantes.

Contudo, algumas pessoas foram de fundamental importância para a finalização

do trabalho, a estas, o agradecimento nominal se faz mais do que necessário.

À orientadora Profa. Dra. Maria Elena Ramos Simieli, pela orientação, liberdade,

respeito e apoio nesse breve-longo processo que é o doutoramento.

Ao Douglas Santos grande mestre-amigo que, como talvez diria sua finada mãe,

realizou seu papel de interlocutor “bem bonitinho e direitinho”, “bonitinho porque

direitinho”; puxando a orelha quando necessário, calando em muitos momentos

(in)certos, instigando e provocando quando havia algo a ser pensado-dito.

Ao Ruy Moreira pelo auxílio providencial de um olhar distanciado para o

presente trabalho, necessário mas muitas vezes desconfortável, dado que é

exatamente esse movimento do conhecimento que nos faz enxergar nossas limitações-

desafios e promessas não cumpridas.

Aos meus pais, Katsuta-sam e Dona Catarina por todos os sacrifícios, bons e

maus momentos que a paternidade e a maternidade impõem por parte daqueles que as

assumem corajosamente ou mesmo pela força das circunstâncias. Pela estima e amor
expressos nas “caretices”, manias e exageros próprios de um PAI e uma MÃE para

uma filha, talvez difícil na maior parte das vezes...

Aos meus finados avós – Fussae Katsuta, Tami Hidaka e Teizuke Hidaka – pela

convivência, carinho, pelas doces e saudosas memórias de um passado que permanece

no presente: as vozes, as histórias, as lendas, os doces, as comidas, as flores, os

cheiros, as imagens de uma época de outrora... tão próximas, ao alcance de minhas

mãos e de meus sonhos que apenas uma concepção linear de história e euclidiana de

espaço pode concebê-las como distante.

Aos meus irmãos Regina (Nê), Paulo (Sukata) e Heltton (KBção) pelo sentido

concreto e afetivo da irmandade. Para Hiroshi, sobrinho e querido-furacão que me faz

pensar o quão inteligente são as crianças e que, na escola, deveríamos tentar

preservar sua costumeira vivacidade.

À Simone C. P. Déak pela força, pelo ouvido que, ao ser um sem número de vezes

alugado, transformou-se em um “orelhão” amigo e pelos momentos memoráveis de

nossas vidas: bons e ruins, mas todos eles dignos de muitos brindes, você “natureba”,

com suco, eu, com cerveja.

À Maria Antônia de Souza, cuja tenacidade sempre admirei, pelas discussões,

opiniões, broncas e os desafios colocados desde a graduação até hoje.

Ao Renatinho pela amizade livre, leve e solta... como todas devem ser.

Ao Cláudio Benito Oliveira Ferraz, vulgo Claudião, que, como diria um certo

filósofo, um geógrafo humano..., demasiadamente humano... Pelas conversas,

empréstimo e doação de materiais. Também agradeço a sua pequena-grande

companheira Flaviana, que sempre esteve junto nos muitos momentos de celebração da

vida nos botequins da vida.

Ao Benedito pela dedicação no tratamento das imagens, e Eleonora pela revisão

cuidadosa do trabalho.

Aos companheiros de trabalho: Edna, Eliane, Edílson, pelo prazer da amizade.


Aos meus alunos por retificarem, a cada ano, o quão foi acertada uma opção

feita nos idos de 1987, início de minha graduação. Hoje, acho que entendo o que o

sábio pedagogo queria dizer com a expressão “pedagogia da esperança”, outrora por

mim “entendida” como indicadora de um sentimentalismo exagerado.

À Universidade Estadual de Londrina-PR e, especificamente, ao Departamento

de Geociências, pela oportunidade única de afastamento das atividades docentes, em

um contexto de encurtamento dos direitos trabalhistas. À CAPES pela bolsa do

programa PICDT concedida no período.

Sem esses apoios materiais o presente estudo não se viabilizaria.

A todos os seres humanos com os quais vivi e convivi, aqueles que vi, li, ouvi e

aprendi algo, para o bem ou para o mal. Assim, os meus sentimentos mais profundos

são expressos por meio do eu-lírico do poeta:


Desejos

Disto eu gostaria:
ver a queda frutífera dos pinhões sobre o gramado
e não a queda do operário dos andaimes
e o sobe-e-desce de ditadores nos palácios.
Disto eu gostaria:
ouvir minha mulher contar:
- Vi naquela árvore um pica-pau em plena ação.
e não: - Os preços do mercado estão um horror!
Disto eu gostaria:
que a filha me narrasse:
- As formigas neste inverno estão dando tempo às flores,
e não: -Me assaltaram outra vez no ônibus do colégio.
Disto eu gostaria:
que os jornais trouxessem notícias das migrações dos pássaros
que me falassem da constelação de Andrômeda
e da muralha de galáxias que, ansiosas, viajam
a 300 km por segundo ao nosso encontro
Disto eu gostaria:
saber a floração de cada planta,
as mais silvestres sobretudo,
e não a cotação das bolsas
nem as glórias literárias.
Disto eu gostaria:
ser aquele pequeno inseto de olhos luminosos
que a mulher descobriu à noite no gramado
para quem o escuro é o melhor dos mundos

(Affonso Romano de Sant’Anna)

Disto eu gostaria:
ver que os mapas estão a fazer
uma outra cartografia
para ouvir dizer que há alma na geografia!
(Ângela Massumi Katuta, plagiadora por uma boa causa)
Dias de Luta

Só depois de muito tempo fui entender aquele homem


Eu queria ouvir muito mas ele me disse pouco
Quando se sabe ouvir
Não precisam muitas palavras
Muito tempo eu levei pra entender que nada sei
Que nada sei
Só depois de muito tempo comecei a entender
Como será meu futuro
Como será o seu
Se meu filho nem nasceu, eu ainda sou o filho
Se hoje canto essa canção
O que cantarei depois?
Se sou eu ainda jovem passando por cima de tudo
Se hoje canto essa canção
O que cantarei depois?
Só depois de muito tempo comecei a refletir
Nos meus dias de paz, nos meus dias de luta
Se sou eu ainda jovem passando por cima de tudo
Se hoje canto essa canção
O que cantarei depois?
O quê?

(Ira!)
Resumo

A presente tese aborda o ensino da geografia nas escolas básicas e tem como fundamento o
entendimento de que uma parte considerável dos “problemas” relacionados à aprendizagem, na
referida disciplina, se origina da assunção, pelos sujeitos sociais que atuam na escola, das
ontologias e epistemologias hegemônicas. Tendo como referência esta orientação, abordo, no
primeiro capítulo, o processo ao qual denominei de “estrangeirização” e alienação discente,
apontando para a relevância da linguagem na realização desse processo. Na seqüência, fiz um
mapeamento dos principais debates já realizados pela civilização ocidental acerca da linguagem,
mostrando a necessidade de seu entendimento no contexto das relações sociais, que são espaço-
temporalmente engendradas. É a partir dessa compreensão que demonstro as relações entre modo de
produção, concepções de espaço, linguagens – tomando como exemplo a cartográfica – e geografias
hegemonicamente produzidas e, portanto, ensinadas. Em seguida, saliento a necessidade de uma
abordagem materialista dialética dos atos de conhecimento nos processos educativos, indicando que
a possibilidade de superação do processo de “estrangeirização” e alienação discente somente pode
ser pensada, se o conhecimento escolar estiver colocado a favor de um projeto societário fundado
no entendimento da ordenação dos espaços pelos seres humanos. Concluo a reflexão indicando que
uma das vias possíveis para o retorno d’O Estrangeiro ao mundo da geografia reside na assunção de
ontologias e epistemologias fundadas na tensão e contradição, o que impõe a necessidade de
agregar outras linguagens àquelas comumente utilizadas na geografia desde a época de sua
institucionalização.

Palavras-chave: ensino de geografia, alienação, linguagens, pensamento, epistemologia.


Abstract
The present thesis analyzes geography teaching in basic schools grounded on the understanding that
a considerable part of the “problems” related to learning of the mentioned subject derives from the
fact that many social actors in school assume hegemonic ontologies and epistemologies. Thereupon,
in the first Chapter, I deal with the process I have called “estrangeirização” (to become a stranger in
one’s own environment) and alienation, pointing at the relevance of language in the realization of
this process. Next, I map the main debates about language realized in western civilization up to
now, showing the necessity of understanding it in the context of social relations, which are spatial-
temporally engendered. From this comprehension on, I show the relations among production mode,
space conceptions, languages – taking cartography for instance – and predominantly produced,
hence taught, geographies. I then emphasize the necessity of a materialist dialectic approach to
knowledge acts in educative processes, indicating that a possibility to overcome the processes of
“estrangeirização” and alienation can only be conceived if school knowledge be offered in favor of
a social project founded on the understanding espatial ordering by human beings. I conclude my
reflexion indicating that one of the possible ways for the return of The stranger to the world of
geography resides in the assumption of ontologies and epistemologies founded on tension and
contradiction, which imposed the necessity to add other languages to those commonly used in
geography since its institution.

Key words: geography teaching, alienation, languages, thought, epistemology.


Lista de Figuras

Figura 1 − Mapa cosmológico...................................................... 171


Figura 2 − Mapa pictórico............................................................ 172
Figura 3 − Paisagem em jarro....................................................... 172
Figura 4 − Mapa pictórico de antiga vila pré-histórica................ 172
Figura 5 − Mapa topográfico (Mapa de Bedolina)....................... 173
Figura 6 − Mapa múndi TO.......................................................... 177
Figura 7 − Mapa múndi de Ambrósio Macróbio.......................... 182
Figura 8 − Mapa moderno produzido por John Tallis & Co........ 183
Figura 9 − Ceci n’est pas le monde (Isto não é o mundo)............ 246

Lista de Tabelas e Quadros

Tabela 1 − Programa da Escola elementar em Berlim................. 74


Quadro 1 − Os debates sobre linguagem (correntes, pensadores,
procedência e períodos)................................................................ 101
Sumário

14
Apresentação.............................................................................

Capítulo 1 O aluno, o mapa e os discursos geográficos: O Estrangeiro no


“mundo” da geografia.................................................................... 26
1.1. As leituras metafísicas da escola e dos processos educativos......................... 37
1.2. Sobre a institucionalização da escola moderna e suas relações com o
processo produtivo: a aprendizagem da repetição por repetição..................... 45
1.3. A “estrangeirização” discente no ensino da geografia sob a égide do modo
de produção capitalista: a realidade invertida Através do Espelho................. 71
1.4. A geografia hegemônica, o permanente e o “embaciamento” da visão: a
“dobra” entre a geografia real e da escola....................................................... 79

Capítulo 2 Concepções de espaço, linguagens e geografias................................. 91


2.1. Os debates sobre a linguagem: notas introdutórias......................................... 98
2.2.1. As linguagens enquanto instrumentos de conhecimento................................. 140
2.2.2. As linguagens como meio de comunicação..................................................... 145
2.2.3. As linguagens como instrumentos de dominação............................................ 156
2.3. As concepções de espaço, as geografias produzidas e as linguagens
enquanto saberes estruturados, estruturantes e instrumentos de dominação... 163
2.3.1. A relevância das noções de espaço no processo de humanização do ser
humano............................................................................................................ 166
2.3.2. As simbologias toponímicas, as racionalidades humanas e o modo de
produção.......................................................................................................... 176
2.3.3. A (re)produção do espaço do e para o capital, a assunção de espacialidades
e o processo de estrangeirização discente........................................................ 186

Capítulo 3. O retorno d’O Estrangeiro....................................................................... 199


3.1. Por uma abordagem materialista dialética dos atos de conhecimento nos
processos educativos........................................................................................ 202
3.2. O olhar de Jano Através do Espelho de Alice.................................................. 217
3.3. O retorno d’O Estrangeiro: a grade dos lugares e a grade da linguagem....... 233

Considerações sobre o ensino da Geografia, suas ontologias e


epistemologias................................................................................ 244

Referências.................................................................................................. 251
Apresentação 14
Ângela Massumi Katuta

Apresentação
“Caindo, caindo, caindo. A queda não terminaria nunca? ‘Quantos quilômetros será que já caí até
agora?.’ Disse em voz alta. ‘Devo estar chegando perto do centro da Terra. Deixe-me ver: isso
seria uns seis mil e quinhentos quilômetros de profundidade, acho...’ (pois, como se vê Alice
aprendera várias coisas desse tipo na escola e, embora não fosse uma oportunidade muito boa de
exibir seu conhecimento, já que não havia ninguém para escutá-la, era sempre bom repassar) ‘...
sim, a distância certa é mais ou menos essa... mas, além disso, para que Latitude ou Longitude,
será que estou indo?’ (Alice não tinha a menor idéia do que fosse Latitude, nem do que fosse
Longitude, mas lhe pareciam palavras imponentes a dizer).
Logo recomeçou. ‘Gostaria de saber se vou cair direto através da Terra! Como vai ser engraçado
sair no meio daquela gente que anda de cabeça para baixo! Os antipatias, eu acho...’ (desta vez
estava muito satisfeita por não haver ninguém escutando, pois aquela não parecia ser a palavra
certa) ...’mas vou ter que perguntar a eles o nome do país. Por favor senhora, aqui é a Nova
Zelândia? Ou a Austrália?’ (e tentou fazer uma mesura enquanto falava... imagine fazer mesura
quando se está despencando no ar! Você acha que conseguiria?) ‘E que menininha ignorante ela vai
achar que sou! Não, não convém perguntar nada: talvez eu veja o nome escrito em algum lugar.´”
(CARROLL, 2002, p. 13).

“Latitude está acima do nível do mar e longitude abaixo.


Latitude é entre um ponto e outro e longitude mede a distância de um local e outro.
Latitude é perto do mar e longitude é lonjura.
Latitude é quando fica perto e longitude é quando fica longe.” (Alunos de uma escola pública.
In: KATUTA, 1997, p. 329).

Os excertos que abrem a presente apresentação remetem a conhecimentos geográficos


freqüentemente abordados no ensino básico. O primeiro, escrito em meados da segunda
metade do século XIX, pelo reverendo inglês Charles Lutwidge Dodgson, popularmente
conhecido como Lewis Carroll (1832-1898). No segundo excerto, constam os saberes sobre
latitude e longitude de alunos de uma escola pública brasileira que entrevistei, quando da
realização de minha dissertação de mestrado em meados de 1997.
Apesar das distâncias temporais e situacionais – os alunos entrevistados de fato
existem; Alice é uma criação literária – que separam os sujeitos mencionados, ao verificarmos
seus saberes sobre latitude e longitude, as distâncias entre os mesmos parecem se estilhaçar.
Suas falas denotam, à primeira vista, a explicitação de um não saber sobre os conteúdos já
citados, tradicionalmente reconhecidos no ensino básico como geográficos.
Carrol, em sua sagaz observação sobre a escola, parece deixar entrever nas poucas
linhas que escreve uma crítica contundente ao papel exercido pela referida instituição.
Podemos verificar, no trecho transcrito, a ênfase escolar na memorização descontextualizada
de dados – como o diâmetro da Terra – 12 756 km –, cuja “aprendizagem” 2 justificar-se-ia

2
O processo de memorização descontextualizada de conteúdos escolares não é tão inútil quanto parece. Em todo
processo educativo − formal ou não formal − aprendemos algo, mesmo que seja o menosprezo pela liberdade de
indagar e aprender por meio da atividade, como ocorria na educação medieval hegemônica. Atualmente, ao
Apresentação 15
Ângela Massumi Katuta

apenas mediante a valorização institucional e, portanto, social, do processo de exibição ou


certificação da capacidade mnemônica do estudante para ele mesmo ou para outrem.
Por outro lado..., talvez os dados pudessem ser úteis em uma situação de queda livre
em direção ao centro da Terra, como parece ser o caso da notável personagem de Carroll. A
essa altura podemos nos questionar em quais outras situações, atualmente, tais
“conhecimentos” 3 , trabalhados de forma descontextualizada, seriam importantes
particularmente para uma criança em processo de escolarização 4 .
A única resposta a que chegamos é que estes, da forma como via de regra são
“ensinados” na escola, na perspectiva da compreensão da realidade, não têm a mínima
relevância. Não estou querendo dizer que tais “conhecimentos” não sejam importantes, mas
em si, de forma descontextualizada, o acesso aos mesmos se justifica apenas se o objetivo
pedagógico fundamental for o de reprodução de determinados estado de coisas ou o de
inviabilizar o desenvolvimento da capacidade de pensamento e, conseqüentemente, de
entendimento do mundo pelo aluno.
A pergunta que Alice se faz “[...] para que Latitude ou 5 Longitude será que estou indo?”,
presente na epígrafe desta Apresentação e as respostas dos alunos que transcrevi
subseqüentemente revelam-nos a construção do que irei denominar de agora em diante de não
saberes. Esses se caracterizam pela mera memorização de uma palavra ou signo em si, vazios
de sentido ou com significados incoerentes e, por isso mesmo, descontextualizados. A mera
recordação e uso dos mesmos, de maneira descontextualizada, em determinadas situações, são
reveladores de não aprendizagem.

enfatizarmos a memorização em si e per si, enquanto habilidade central a ser desenvolvida na escola, ensinamos
a nossos alunos que essa instituição pouco ou nada tem a auxiliar no entendimento da realidade por eles
vivenciada. Por isso, mesmo do ponto de vista da memorização escolar descontextualizada, faz sentido falarmos
em aprendizagem. É preciso enxergar o que se aprende explicita e implicitamente. Entendo que a memorização
no sentido de lembrança, reminiscência, recordação é um processo mental inerente ao ato de conhecer humano.
Em outras palavras, a vida humana e, conseqüentemente, o conhecimento não pode realizar-se sem o ato de
memorizar, no sentido colocado. Na escola aprendemos muito mais que os conteúdos por ela trabalhados, nos
ensinam como entender, viver e agir no mundo. Daí a importância social dessa instituição.
3
Atualmente, parece existir uma tendência em nossa sociedade em não diferenciar os termos: informações ou
dados de conhecimento. Há de se elaborar distinções entre essas palavras porque, apesar de sua
interdependência, existe uma diferença qualitativa entre elas. O acesso a dados ou informações pode realizar-se
de forma pontual e descontextualizada e pode ocorrer pelos mais variados meios. No entanto, apenas isso não
garante a construção de conhecimentos, aqui entendida como capacidade de entender e agir no mundo.
4
A escolarização é um processo que, apesar de parecer restrito apenas à aprendizagem de conteúdos escolares,
sempre envolve a construção de entendimentos sobre o mundo e sobre como nele agir. A escola, desde as suas
origens mais remotas até tomar a forma hodierna, fato esse ocorrido no século XVIII, caracteriza-se por ter o
papel hegemônico de reprodução social. Daí a importância de atentarmos não apenas para os conteúdos nela
trabalhados, mas também para todo o conjunto de saberes, atividades e atitudes cuja aprendizagem, ao não ser
explicitada, seja talvez até mais eficiente. Trata-se, de forma geral, da aprendizagem de modos de vida, de ser e
de agir – construção de habitus –, que caracterizam o ser da escola hegemônica enquanto instituição. Sobre esse
assunto ver Bourdieu (2000a, 2000b); Bourdieu e Passeron (1975).
5
Grifo da autora.
Apresentação 16
Ângela Massumi Katuta

O “erro” 6 pode ser lido e compreendido na perspectiva de uma certa imposição


vocabular e, portanto, cognitiva que têm assento freqüente na escola e realiza-se por meio da
prática pedagógica docente e dos rituais de certificação escolar pelos quais passaram os
escolarizados e aqueles em vias de escolarização. Apesar de muitos não saberem o significado
de determinados termos ou palavras, essas são ditas por uma série de motivos, principalmente
por parecerem imponentes, como foi o caso de nossa heroína. Subjacente a essa ação está o
entendimento e a prática de uma das lições escolares que têm se realizado, historicamente, de
maneira muito eficiente: o uso de palavras ou expressões consideradas diferenciadas ou
cultas, entenda-se não-populares 7 , para classificar ou hierarquizar as pessoas, naturalizando e
mesmo ocultando diferenças social e espaço-temporalmente engendradas.
Ainda há de se atentar para o fato de que a construção de não saberes é reveladora de
objetivos escolares não explicitados, ou seja, remete à face oculta da escola ou do sistema
escolar como um todo, explicitada nos estudos de Bourdieu e Passeron (1975) e de muitos
outros autores 8 .
Para Bourdieu e Passeron (1975, p. 64), o sistema de ensino possui a função de
reprodução e inculcação de um arbitrário cultural não produzido pelo aluno ou pelas classes
sociais às quais pertence. A realização deste papel contribui para a reprodução das relações
desiguais entre os grupos e classes que compõem a sociedade: “Os fundadores da Escola
republicana fixavam explicitamente como objetivo inculcar, entre outros meios, através da
imposição da língua ‘nacional’, o sistema comum de categorias de percepção e de apreciação
capaz de fundar uma visão unitária do mundo social.” (BOURDIEU, 1998, p. 111).
Apesar de parecer radical, o entendimento do autor citado explicita a constituição
histórica, a manutenção e o funcionamento das instituições escolares no contexto dos Estados

6
Muitos psicopedagogos estão refletindo sobre a importância de o professor considerar o erro de forma
construtiva no processo de ensino e aprendizagem. Teixeira (1997), em artigo intitulado A análise de erros: uma
perspectiva cognitiva para compreender o processo de aprendizagem de conteúdos matemáticos, sintetiza a
origem do erro segundo diferentes concepções: behaviorista, piagetiana, brousseauniana. Reflexões sobre a
função pedagógica dos erros são relevantes, pois apontam que todos eles possuem uma lógica subjacente,
portanto, cabe ao professor saber lê-los ou interpretá-los no processo de ensino e aprendizagem. Propostas que
apontam para a inerência do erro no processo de ensino e aprendizagem resgatam o seu lugar na educação formal
e indicam, implicitamente, que o mesmo compõe o processo de ensino, além de expressar também a qualidade
da realização da aprendizagem.
7
É importante salientar que as distinções e oposições realizadas freqüentemente em nossa sociedade, por
exemplo, entre cultura de massas, popular e erudita, costumam ser utilizadas como divisores de águas entre o
que se reconhece como conhecimento legitimo e ilegítimo, bom gosto ou mau gosto, e servem de substrato para
a realização de processos de hierarquização social, legitimação cultural e universalização de apenas uma forma, a
imposta como legítima ou hegemônica, de entender e viver no mundo. Tais posturas legitimam a realização do
autoritarismo, seja ele de direita ou de esquerda.
8
Entre eles ver Fernández Enguita (1989, 1993); Manacorda (1991, 2002).
Apresentação 17
Ângela Massumi Katuta

nacionais 9 e chama a atenção para a necessária consideração das relações e interdependências


cada vez mais estreitas entre Estado, educação, ciência, tecnologia e capital.
Os escritos bourdieusianos sobre educação desvendam, em detalhes, a face
conservadora da instituição escolar, bem como seus mecanismos. Por isso, podem nos auxiliar
nos enfrentamentos e nas reflexões e proposições de um sistema de ensino menos autoritário.
O próprio autor defende a possível realização da democratização escolar por meio do
enfrentamento político dos sujeitos sociais. Esses, ao terem conhecimento do mundo em que
vivem e por meio dele agirem, agem sobre:
[...] as representações (mentais, verbais, gráficas ou teatrais) do mundo social
capazes de agir sobre esse mundo, agindo sobre as representações dos agentes a seu
respeito. Ou melhor, tal ação visa fazer ou desfazer grupos – e ao mesmo tempo, as
ações coletivas que esses grupos podem encetar para transformar o mundo social
conforme seus interesses – produzindo, reproduzindo ou destruindo as
representações que tornam visíveis esses grupos perante eles mesmos e perante os
demais. (BOURDIEU, 1998, p. 117).
A escola é identificada, na perspectiva esboçada, como um território de lutas e tensões
entre diferentes sujeitos e suas representações sociais, algumas tendendo a se impor como
legítimas. As demais, por serem engendradas por classes sociais não hegemônicas, via de
regra, são marginalizadas. Ao tornar universalmente válidas as representações sociais de
grupos hegemônicos, ocorre o processo denominado de violência simbólica, que se realiza
quando uma classe social impõe determinadas significações e dissimula as relações de força e
poder que estão e são a base de sua hegemonia, acrescentando sua força simbólica a essas
relações 10 .
Por ora, retornemos às idéias de nossa heroína. As dúvidas de Alice em relação à
trajetória de sua queda, ao local e nome do país em que irá cair indicam os saberes
identificados na época como geográficos. Atualmente, ao que parece, pouca coisa mudou. Na
tentativa de dirimir dúvidas, leiamos o trecho de Através do Espelho, também de Carrol,
escrito posteriormente a Aventuras de Alice no país das maravilhas:
Evidentemente a primeira coisa a fazer era um levantamento completo da região que
iria atravessar. ‘É muito parecido com estudar geografia’, pensou Alice, erguendo-se
nas pontas dos pés na esperança de conseguir ver um pouco mais longe. ‘Rios
principais... não há nenhum. Montanhas principais... estou em cima da única, mas
não me parece que tenha nome. Cidades principais... (CARROL, 2002, p. 161).
O trecho transcrito expressa uma idéia que muitos têm ainda hoje da Geografia
escolar: uma disciplina por meio da qual se “aprendem” 11 nomes de rios, montanhas, cidades,

9
Sobre esse assunto ver Fernández Enguita (1989), Frigotto (1993, 1996), Gentili (1998).
10
Mais adiante abordarei tais questões.
11
Aprender e memorizar para muitos alunos são sinônimos, foi o que constatei em minha dissertação de
mestrado, o que indica a realização de uma prática pedagógica que também não distingue tais ações.
Apresentação 18
Ângela Massumi Katuta

ou seja, topônimos. No entanto, a despeito das diferentes concepções e escolas de Geografia


existentes, verifica-se que:
Desde os tempos mais remotos textos identificados com a consigna de ‘geografia’ –
vale realçar, principalmente Heródoto, Estrabão -, o que se tem é uma preocupação
topológica normativa, ou, em outras palavras, a ordenação territorial dos fenômenos.
Onde? Eis a pergunta central do discurso geográfico que o responder trará, sem
dúvida, as marcas da maneira pela qual a sociedade organiza-se e entende-se
enquanto tal e, portanto, cujos desdobramentos dependerão tanto daquele que
responde enquanto ‘persona’, quanto da dimensão cosmológica em que se insere a
própria construção do questionamento. (SANTOS D., 1997, p. 31).
No presente estudo, me preocupei em entender os problemas advindos das diferentes
respostas à pergunta “Onde?” no contexto do ensino básico da geografia. Em outras palavras,
procurei refletir por que os alunos do referido nível de ensino, regra geral, não conseguem
reconhecer a si mesmos e os espaços em que vivem nos discursos geográficos escolares. Tal
questão tornou-se minha companheira inseparável desde que iniciei a docência no ensino
básico.
Ao me transferir para o ensino superior para trabalhar especificamente com a
formação de geógrafos e professores de geografia, acreditei que o questionamento
apresentado, no referido nível de ensino, deixava de ter sentido. Ledo engano... Mesmo uma
parte significativa dos graduandos e graduados parecem lidar com os saberes geográficos
como se fossem elementos distintos: os científicos pouca ou nenhuma relação possuem com
os cotidianos – separação entre a geografia teórica ou a da leitura e a real, indicada por
Moreira (2004). Poucos são aqueles que conseguem responder à questão: como a temática que
você está estudando se expressa do ponto de vista geográfico no local onde vive? ou que
implicações geográficas teria o fenômeno a ou b?
Entre os graduandos e graduados em geografia, a elaboração de respostas possíveis à
questão colocada se torna mais complexa ainda. Isso porque, na perspectiva dos mesmos,
pressupõe: ter clareza do que é geografia – para muitos, algo extremamente complicado,
depois de tantos debates sobre esta ciência, suas transformações e crises –, para daí
depreender o significado da expressão “ponto de vista geográfico”, para então... conseguir
pensar nas relações e estabelecê-las!
No ensino superior, principalmente na formação docente, os problemas advindos da
referida ruptura ou dobra 12 , juntam-se a outros e acabam transtornando uma boa parte dos
formandos, que se incomodam com as expressões escolares desse processo no ensino básico,
locus de atuação: desinteresse, apatia e indisciplina para o trabalho escolar ou negação da

12
Termo usado por Moreira (2004).
Apresentação 19
Ângela Massumi Katuta

possibilidade de realização do processo de ensino e aprendizagem de conhecimentos


geográficos.
No presente trabalho procurei compreender o processo de estranhamento entre os
alunos e os discursos geográficos, muitas vezes tomando como exemplo uma modalidade bem
antiga dos mesmos, anterior inclusive à escrita, ou seja, os discursos cartográficos.
Apesar de todas as dificuldades relacionadas ao estudo científico da cartografia, no
período que se convencionou denominar de pré-histórico e considerando-se apenas as regiões
da Europa Sul-ocidental, Centro-setentrional, Oriental e a Bacia do Mediterrâneo, existem
evidências de que figurações espaciais as quais atualmente denominamos de mapas – segundo
Harley e Woodward (1987, p. XVI), representações gráficas que facilitam entendimentos
espaciais de coisas, conceitos, condições, processos ou eventos no mundo humano –
remontam ao Paleolítico superior, ou seja, foram elaboradas durante um longo período situado
entre 40 e 12 mil anos atrás13 .
O ato de cartografar imagens do espaço, associadas ao pensamento e imaginação
espaciais, parece remontar ao surgimento do Homo Sapiens sapiens, que são os seres
humanos anatomicamente modernos. Autores como Szamosi (1988) afirmam que os
neandertalenses – Homo Sapiens ou pré-sapiens – já elaboravam imagens de espaço,
possuindo pensamento e imaginação espaciais em função da presença de rudimentos de arte e
vestígios de crença em uma vida póstuma. Tais elementos evidenciam a construção da idéia
da existência de um outro local ou mundo. Contudo, até o momento, não há indícios de que a
atitude de cartografar era um habitus 14 dos neandertalenses, ao contrário dos primeiros seres
humanos anatomicamente modernos do Paleolítico superior, cujas expressões artísticas –
gráficas, plásticas, cartográficas e outras – apresentavam a visão que esses últimos tinham da
realidade do seu ambiente, suas espacialidades, geografias e sua consciência do mundo 15 .
Pode-se afirmar que as primeiras figurações espaciais de que se tem registro remontam
aos seres humanos anatomicamente modernos ou à espécie Homo Sapiens sapiens. Ao
produzir e, dessa maneira, ordenar suas imagens de espaço, suas figurações espaciais, seus
mapas, suas geografias ou outros produtos simbólicos, os seres humanos ordenavam e, ainda
hoje, ordenam a si mesmos e aos lugares. Tentam compreender a si e ao Outro, entendido aqui

13
Sobre esse assunto ver: Smith (1987, p. 92).
14
Termo usado por Bourdieu (1997, p. 42). Para esse autor “Os ‘sujeitos’ são, de fato, agentes que atuam e que
sabem, dotados de um senso prático [...], de um sistema adquirido de preferências, de princípios de visão e
divisão (o que comumente chamamos de gosto), de estruturas cognitivas duradouras (que são essencialmente
produto da incorporação de estruturas objetivas) e de esquemas de ação que orientam a percepção da situação e a
resposta adequada. O habitus é uma espécie de senso prático do que se deve fazer em dada situação.”
15
Ver também Marconi e Presotto (1986, p. 209 et seq).
Apresentação 20
Ângela Massumi Katuta

como todo e qualquer conjunto de alteridade, buscando, dessa maneira, dar um sentido à sua
vida e, portanto, ao mundo 16 . O mapa, assim como qualquer outra produção cultural,
apresenta a percepção que os diferentes grupos humanos possuem de si, dos outros, dos
lugares, bem como da sua cosmologia 17 e de sua geografia.
Um outro motivo que me levou a optar pela cartografia para discutir a questão do
estranhamento discente ao qual me referi anteriormente foi que parti do pressuposto de que
“[...] só podemos pensar e imaginar mediante imagens de espaço.” (OSTROWER, 2002, p.
173). Em outras palavras, as imagens de espaço são uma das condições para a realização do
pensamento e da imaginação humanos, são o seu meio e o modo de compreensão. Além disso,
como tais processos não ocorrem separados da percepção, interpretação, compreensão,
criação e outros, podemos afirmar que as imagens de espaço são essenciais para a realização
do humano no ser humano.
A mesma autora afirma que as primeiras experiências espaciais do ser humano não
podem ser abreviadas, nem substituídas, pois irão compor o que se denomina de espaços
vividos. Em um primeiro estágio de conscientização, as referências básicas e a “língua” ou
metalinguagem são as mesmas para todos: “[...] as formas de espaço constituem tanto meio
como modo de nossa compreensão. Fornecendo imagens para nossa imaginação, o espaço
torna-se mediador entre experiência e expressão.” (OSTROWER, 2002, p. 173) 18 .
Para a autora citada, o espaço será o referencial anterior a todas as linguagens. Por
isso, muitas são compostas por termos espaciais, podendo ser destacadas a cartografia e a

16
Estou remetendo a uma concepção mais ampla do vocábulo: mundo. Esse deve ser aqui entendido não apenas
em uma perspectiva fisicalista. Mais adiante retomarei a discussão sobre tais oposições, expressões da cisão
cartesiana ainda presente na concepção ocidental de mundo.
17
Para Harley e Woodward (1987, p. 3) “[...] maps constitute a composite of graphics elements that reveals the
cultural context of the map’s origin.” “[...] mapas constituem um conjunto de elementos gráficos que revelam o
contexto cultural de suas origens.” (Tradução da autora).
18
Sobre este assunto ver também Castoriadis (2000), principalmente o Capítulo VI de sua obra A instituição
imaginária da sociedade, intitulado A instituição social-histórica: o indivíduo e a coisa. Nele, o autor defende a
idéia de que o indivíduo se torna social ou rompe com a mônada psíquica mediante a separação do mundo
privado do público. O “tudo = eu”, estado de indistinção, separa-se, engendrando o interior e o exterior. Nesta
perspectiva, a instituição do social para o indivíduo se constitui na cumplicidade com as noções de espaço. O
“tudo = eu” deve romper-se, gerando o “eu = interior” e o “Outro (alteridade) = exterior”, relações espaciais
fundamentais para que ocorra a ruptura com a mônada psíquica, situação na qual o recém-nascido pode morrer
se não romper com o autismo indiviso, característico dessa fase. A falta, o desejo, a ausência, o desprazer e a
necessidade contribuem para o dilaceramento do mundo autístico. “[...] A ausência do seio é desprazer enquanto
dilaceramento do mundo autístico. Porque o esquema primário permanece como condição de presentificação de
toda significação, porque tudo é sempre vivido pela psique em função da indistinção eu-mundo-sentido-prazer, é
que a ausência do seio pode tornar-se figura, mais exatamente: componente constitutivo do ‘objeto’, em sua
alternância com a ‘presença’ deste. Uma margem de não-ser virtual começa a delinear-se na fronteira da
representação; a polaridade do sim/não, da realidade e da negação, do possível e do efetivo encontram aqui seus
primeiros germes subjetivos, e o esquema figura-fundo começa a ser estabelecido como articulação geral de uma
‘consciência’ e de uma ‘percepção’ embrionárias.” (CASTORIADIS, 2000, p. 346). Eis a origem da consciência,
percepção, representação e do próprio conhecimento, na perspectiva do autor.
Apresentação 21
Ângela Massumi Katuta

pintura, figurações espaciais humanas que, em uma época bastante remota e ainda hoje, não
são tão distintas quanto parecem 19 . Hoje, estas duas linguagens expressam, em diferentes
lugares, concepções de espaço engendradas em um longo período de tempo 20 .
Não obstante terem ocorrido abalos e transformações na concepção cartesiana-
newtoniana-kantiana de espaço na física e na pintura que originaram outros olhares sobre as
coisas do e no mundo, isso não se verifica nos discursos escrito, falado e cartografado da
geografia escolar. Tentar compreender tal fato, apostando na inserção de outras linguagens no
ensino da geografia, para que esta amplie a possibilidade de entendimento de outras
espacialidades, foi meu segundo e derradeiro objetivo.
A presente reflexão está orientada pela seguinte tese: Uma parte significativa dos
denominados “problemas” no processo de ensino e aprendizagem de conteúdos geográficos
possui ancoragem ontológica e epistemológica. Em outras palavras, as rupturas – entre alunos,
os discursos geográficos e os cartográficos – expressam o quão pouco se avançou no ensino
da geografia em relação ao dualismo cartesiano, presente no discurso geográfico hegemônico,
fundado na assunção da concepção cartesiana-newtoniana-kantiana de espaço.
No contexto da oposição epistemológica que se operou entre o gênero humano e a
natureza 21 , entre a res cogitans – domínio dos pensamentos, sentimentos e experiência
espirituais –, e a res extensa – domínio fisicamente extenso de matéria e movimento –,
aproximadamente do século XV 22 em diante, temos a expulsão dos seres humanos do “mundo
da natureza”. Essa oposição epistemológicatem por fundamento a ontologia baseada na
concepção cartesiana-newtoniana-kantiana de espaço.
A racionalidade científica e o ideal de cientificidade modernos foram tecidos a partir
da referida oposição, e, quando da institucionalização das primeiras escolas de massas no
Oitocentos e Novecentos sob a égide do Estado nacional, irão se impor como a visão
verdadeira do mundo, portanto, real e científica. Todo o conjunto de saberes cuja elaboração

19
A distinção entre pintura e cartografia e, conseqüentemente, entre arte e ciência, ainda hoje é questionada por
um conjunto considerável de profissionais; sobre esse assunto ver Alpers (1999), Harley e Woodward (1987,
1994), Woodward (1987). O mapa é um material extremamente profícuo para se pensar sobre as distinções entre
cartografia e pintura, ciência e arte, razão e sensibilidade, reflexão esta elaborada pelos autores citados. O livro
organizado por Woodward (1987) intitulado Art and Cartography, em linhas gerais, aborda as seguintes
temáticas: a arte em mapas, a arte como mapa, mapas nas artes, mapas como arte. Retomarei este assunto mais
adiante, por ora basta informar que existem reflexões de estudiosos questionando a moderna distinção entre
pintura e cartografia.
20
Sobre esse assunto ver a tese de SANTOS D. (1997).
21
Galileu, em sua doutrina sobre as qualidades primárias e secundárias, expressa o habitus de pensamento que se
tornou hegemônico, principalmente, a partir do século XVII.
22
Com Copérnico, passando por Kepler, Galileu, Descartes e Newton, apenas para citar os principais
sistematizadores de uma visão quantitativa de mundo que vinha sendo lentamente tecida desde o século XIII, que
culminou com a substituição da visão qualitativa, principalmente a partir do final da Idade Média e ao longo de
todo período conhecido como Renascimento.
Apresentação 22
Ângela Massumi Katuta

não era parametrizada por essa concepção de cientificidade foi exorcizado. Ocorre, dessa
forma, uma ruptura entre os saberes humanos e, no limite, a própria fragmentação do “ser
humano”, cuja humanidade a partir desse momento irá se caracterizar pelo estilhaçamento.
Uma parte dos saberes discentes no contexto do dualismo cartesiano será então tomada
como senso comum, portanto, não passível ou digna de ser abordada na escola. Essa
instituição, por sua vez, trabalhará com discursos socialmente considerados como científicos.
No caso do ensino da geografia, a escola irá reproduzir aqueles que pouco ou de uma forma
bastante generalizada abordam a ordenação dos lugares vivenciados pelos alunos que, em
tese, deveria auxiliá-los no entendimento das diferentes territorialidades, objetivo pedagógico
central para uma geografia escolar que aponte para a autonomia intelectual.
O discurso ainda hoje adotado em muitos livros didáticos de geografia é o da descrição
descontextualizada dos elementos que compõem a paisagem, concebida como mera soma das
partes de um fenômeno exterior ao ser humano. Dessa maneira, como afirma Moreira (1994),
ocorre o escamoteamento do mutável, das relações que são, para o autor citado, os
fundamentos paradigmáticos que referenciam a construção geográfica das sociedades. O
tratamento escolar hegemônico dos saberes – distinção rígida entre senso comum e
conhecimento científico – fraturou a tal ponto a concepção de mundo, a leitura que os seres
humanos modernos fazem de si e do Outro, que esses se transformaram em verdadeiros
viscondes “Medardo di Terralba”, personagem central do primeiro volume da brilhante
trilogia de Ítalo Calvino (1997) que em uma guerra entre cristãos e turcos é atingido por uma
bala de canhão, dividindo-se em duas metades que miraculosamente sobrevivem. As duas
partes representam, simbolicamente, as dicotomias presentes na concepção cartesiana de
mundo que ainda hoje é o substrato da cosmologia ocidental hegemônica. Bondade e
maldade, verdade e falsidade, real e imaginário, sujeito e objeto, tempo e espaço passam a
coexistir separadamente e de forma maniqueísta em constantes batalhas que ainda são as
nossas atualmente.
No contexto escolar, o conhecimento de senso comum e outros saberes que não podem
ser apropriados por uma concepção cartesiana-newtoniana-kantiana de espaço são entendidos,
na maior parte das vezes, como elementos a serem banidos, desconsiderados no processo de
ensino e aprendizagem, esvaziando assim, o aluno de si, de seus sentimentos e experiências.
Sai o ser humano de cena e fica o invólucro, ao qual denominamos, na relação pedagógica, de
aluno: O Estrangeiro no mundo da geografia. Este sujeito, na perspectiva da instituição
escolar e, portanto, também de seus docentes, deve aprender a verdade das coisas do mundo
Apresentação 23
Ângela Massumi Katuta

por meio do discurso científico moderno hegemônico, expresso em diferentes disciplinas,


sendo a geografia uma entre muitas outras.
Poder-se-ia pensar, sob uma certa perspectiva pedagógica, que, se o problema do
processo de ensino e aprendizagem é a ruptura entre o senso comum e o conhecimento
científico, a junção de ambos seria a solução para tal problema. Solução óbvia, mas que tem,
efetivamente, custado muito aos docentes do ensino básico no Brasil. Tal crença alimenta hoje
uma parcela do mercado editorial, que tem lucrado com receitas pedagógicas, metodologias
de ensino e outros congêneres, como se esses pudessem solucionar os “males” da educação
brasileira ou da formação pedagógica docente.
No presente trabalho defendo que uma boa parte dos “problemas” relacionados ao
processo de ensino e aprendizagem, na sala de aula, advém do fato de que poucos alunos se
reconhecem no discurso escolar. E, em se tratando especificamente do geográfico, um grande
fosso separa os saberes discentes daqueles trabalhados na sala de aula. Esse fosso segue
aumentando, em função da elaboração dos discursos geográficos hegemônicos, ancorados em
uma concepção moderna de ciência. Segundo Moreira (1994, p. 3):
Também os geógrafos durante anos a fio registraram e fixaram em memoráveis
afrescos esta relação das paisagens com seus fundamentos técnicos, captando-lhes a
emergência e sucessão, o movimento e o ritmo de suas pulsações. Nesse longo
decurso de tempo, e de construção da memória da história humana, criaram e
aperfeiçoaram suas técnicas de registro. Todavia, postos diante do permanente e do
mutável, retiveram-se no permanente e obnubilaram o mutável. E sem disso se
darem conta, originaram duas geografias, a real e a da leitura, uma dobra que lhes
tem embaciado a visão.
A opção da Geografia em sua face hegemônica, assim como de outras ciências, pelo
permanente à maneira de Parmênides de Eléia, resultou, segundo o mesmo autor (1994,
p.230), no ocultamento dos fundamentos paradigmáticos que referenciam a construção
geográfica das sociedades em cada tempo: o trabalho e a política. O primeiro, na perspectiva
da economia política, significando, na sociedade capitalista, controle, regulamentação, gestão,
hegemonia de classe. A política, também sob a égide do mesmo modo de produção, associada
ao trabalho, é entendida como estrutura de construção de controles. Eis a opção do autor pelo
“[...] movimento (da técnica, da seletividade, da fluidificação, da densificação social, das
metamorfoses, da unicidade humana do espaço).” (MOREIRA, 1994, p. 230), materializada
na própria escrituração de sua tese. Será esta, a geografia do movimento, das relações, que
nossos alunos estão a demandar? Poderá ela auxiliar na superação do fosso entre os saberes
dos alunos e os trabalhados na escola? Necessitará essa geografia de figurações espaciais ou
de outras linguagens para serem apreendidas e compreedidas?
Apresentação 24
Ângela Massumi Katuta

Ao compreender o trabalho em um sentido estritamente econômico – transformação


das matérias-primas em produtos, circulação que organiza a realização do seu consumo – e a
política dissociada do trabalho, transformada assim, em ato de ordenação, ocorre a
subalternização do movimento, em proveito das formas cristalizadas, do permanente. Eis a res
extensa da geografia. “O espaço do trabalho e da política têm sido entendido assim como
pontualidade localizada dos estabelecimentos com seus fluxos de intercambiação, e não como
estrutura de construção de controles.” (MOREIRA, 1994, p. 230), proporcionando assim a
possibilidade de elaboração de discursos que descrevem, de maneira descontextualizada, tais
pontualidades e fluxos, sem o desvelamento da estrutura de construção de controles que, para
ser compreendida, necessita de um outro ângulo de visada que valorize o movimento. Não
será a geografia hegemônica, da descrição 23 descontextualizada, que a escola deveria abortar?
Foram respostas às questões colocadas que procurei elaborar no presente trabalho e que
nortearam a sistematização do mesmo.
No Capítulo 1, intitulado O aluno, o mapa e os discursos geográficos: O Estrangeiro
no “mundo” da geografia, abordo as leituras metafísicas que se têm feito da escola,
apontando para a necessária ruptura com entendimentos decorrentes das mesmas, pelo fato de
essas, via de regra, desconsiderarem os contextos sociais, históricos e espaciais de
institucionalização da escola moderna. Tentei mostrar que ao apreenderem os processos
educativos de maneira descontextualizada e, dessa maneira, conceberem os conteúdos e
processos de aprendizagem na escola de maneira restritiva e neutra, tais abordagens reduzem
o processo de ensino e aprendizagem a questões ligadas às metodologias de ensino. As
reflexões e debates sobre como se processa o conhecimento e sobre como ele é trabalhado na
escola são inviabilizados, o que cria, no caso da geografia hegemônica ensinada, uma
separação entre aquela vivenciada e a disseminada pela escola. Eis o fundamento da alienação
promovida pela escola, resultando no processo, que denomino de estrangeirização e alienação
discente, que conduz à subjetivação capitalística.
No Capítulo 2, intitulado Concepções de espaço, linguagens e geografias, demonstro
que existem relações entre o modo de produção e as concepções de espaço, as geografias e
linguagens produzidas pelas sociedades, também explicitadas em suas cartografias. O ensino
da geografia, ao abordar as espacialidades em uma perspectiva generalista, abstrata e
descontextualizada, viabiliza a subjetivação capitalista, tornando a concepção de espaço

23
Esclareço que o problema não é a descrição entendida enquanto um dos momentos do conhecimento, mas a
descrição realizada em si e per si, descontextualizada do contexto social e espaço-temporal em que as paisagens
foram engendradas.
Apresentação 25
Ângela Massumi Katuta

engendrada no e pelo capital, bem como as linguagens dela decorrentes as únicas possíveis e,
portanto, verdadeiras. Ocorre, dessa maneira, o processo ao qual denominei de estancamento
do conhecimento, que conduz à deslegitimação de outras concepções de espaço. Daí a
importância de se entenderem as concepções de espaço, as geografias produzidas e as
linguagens enquanto saberes estruturados, estruturantes e instrumentos de dominação. Esse
entendimento pode auxiliar na ruptura com o processo de alienação e subjetivação
capitalística. No contexto do ensino da geografia, supõe a reflexão das relações entre as
concepções de espaço, as geografias e linguagens produzidas no contexto de um determinado
processo civilizador.
No terceiro e último capítulo, intitulado O retorno d’O Estrangeiro, indico a
necessidade de uma abordagem materialista dialética dos atos de conhecimento nos processos
educativos, refletindo sobre nossa dualidade enquanto seres humanos, dado que resultamos de
processos evolutivos e de desenvolvimento que se realizam por meio do trabalho. Estas
características humanas são desconsideradas pelas abordagens metafísicas em educação e
devem ser resgatadas na medida em que podem auxiliar no retorno d’O Estrangeiro, o que
aponta para um processo de ensino que ultrapasse o discurso da generalidade e, em uma
relação dialética, que aponte para a necessária retomada do movimento do conhecimento, o
que supõe o estabelecimento de uma relação dialética entre os seus vários momentos que vai
da generalidade, passa pela particularidade e chega à singularidade, para daí (re)fazer o
movimento do conhecimento. Para tanto, a apropriação de outras linguagens são necessárias,
ainda que a cartográfica deva ter centralidade.
Concluo a reflexão indicando a necessidade da assunção de ontologias e
epistemologias fundadas na tensão, no movimento e na contradição, o que remete à relevância
da apropriação pelo ensino da geografia de outras linguagens e concepções de espaço, o que
não significa abandonar a linguagem cartográfica; pelo contrário, trata-se de utilizá-la em um
contexto ampliado de coordenadas semióticas.
Capítulo 1 26
Ângela Massumi Katuta

Capítulo 1 – O aluno, o mapa e os discursos geográficos: O


Estrangeiro no “mundo” da geografia
“[...] O nosso mais verdadeiro e claro mapa das ruas existe apenas na memória e na imaginação.
[...] Ainda que desanimadora às vezes, sempre foi esta a intenção, apagar a linha que separa o
incontrovertível do inventado. A História, revisada e reinterpretada de modo incessante, é vista
diante deste tipo de exame simplesmente como um outro tipo de ficção. Torna-se perigosa se for
vista como possuidora de qualquer outra verdade além desta. Mas é uma ficção que devemos
habitar. Não existindo nenhum território que não seja subjetivo, podemos viver apenas sobre o
mapa. A única questão que permanece é: qual mapa escolhemos, se vivemos nos teimosos textos do
mundo ou os substituímos por uma nossa linguagem mais forte.” (MOORE, 2002, p. 309, 321).

No presente capítulo, faço referência ao romance de estréia do escritor, dramaturgo e


filósofo Albert Camus (1997), escrito em 1957 e intitulado O Estrangeiro. Nele, o autor narra
o cotidiano de um homem comum do século XX, ao qual denomina Mersault. A vida do
personagem criado por Camus situa-se pendularmente entre o absurdo de alguns aspectos das
relações sociais historicamente engendradas que atenta contra as liberdades não colocadas nos
moldes ou padrões da sociedade em que vive e a relativa liberdade individual de ação. O
protagonista durante seu julgamento realizado em função de um assassinato que cometeu,
acaba por avaliar como irrelevantes algumas normas sociais de seu cotidiano, optando,
deliberadamente, pela pena capital.
Mersault vive em um mundo comum, com pessoas comuns que acabam julgando-o
como culpado por um crime que cometeu em uma situação banal 24 . Boa parte do romance tem
como foco de debate o comportamento do protagonista, entendido como anormal ou não
padronizado pelas testemunhas do processo. Tal fato lembra os processos da Santa Inquisição
estudados por Carlo Ginzburg ao longo de sua vida acadêmica 25 e entendidos por esse como
atos de eliminação de formas de vida e entendimentos de mundo e, portanto, de
espacialidades, contrárias àquelas disseminadas pelos setores hegemônicos da sociedade.
O coletivo acaba se contrapondo à opção de Mersault pela subjetividade-liberdade que
torna seu viver e ser diferenciados e, por meio de situações de estranhamento, Camus
evidencia a negação do outro ou das diferenças freqüentemente tornadas inconciliáveis entre
os seres humanos sob a égide do modo de produção capitalista, cuja realização supõe
processos de homogeneização, repetição e padronização, portanto, ocultamento e eliminação
da diferença e dos diferentes.

24
É importante salientar que Camus, a meu ver, teceu a cena do assassinato com a intenção de explicitar o
contexto banal ou comum no qual o mesmo ocorreu. Assim procedendo, nos transmite subliminarmente a idéia
de que, no contexto apresentado, qualquer ser humano poderia ter cometido o crime. Dessa forma, o autor
captura o leitor, que, ao longo do restante do livro, acaba se identificando com Mersault.
25
Ver em Ginzburg (1988, 1991a, 1991b, 1996).
Capítulo 1 27
Ângela Massumi Katuta

O autor, neste livro, denuncia a homogeneização dos habitus – “[...] sistema dos
esquemas interiorizados que permitem engendrar todos os pensamentos, percepções e as
ações característicos de uma cultura e somente esses.” (BOURDIEU, 1992, p. 347) −, e o
próprio processo civilizador característico do Ocidente moderno que, sob a superfície de um
discurso pretensamente democrático 26 , oculta o autoritarismo e o desrespeito pela diferença e,
conseqüentemente, pelo Outro e suas espacialidades, como foi o que ocorreu com inúmeros
povos dizimados no processo de colonização. É importante salientar que o habitus, enquanto
conjunto de práticas humanas, também se refere à organização do território; portanto, se
insere no rol do que diz respeito às espacialidades engendradas pelos seres humanos.
Santos B. (2000a, p. 137) nos auxilia a entender a problemática colocada por Camus
(1997), ao abordar o problema da descontextualização espaço-temporal da identidade na
modernidade, tornada hegemônica, inicialmente na Europa, espraiando-se posteriormente para
o restante do mundo, com graves conseqüências, dentre as quais cabe ressaltar o genocídio e o
etnocídio enquanto materialização da negação do Outro e afirmação da metafísica 27 inerente a
toda sociedade absolutista e dominadora.
Ao polarizar e disseminar a idéia de indivíduo-Estado como a única legítima e
verdadeira, o processo civilizador encetado acabou por eliminar, inviabilizar ou tornou
inexeqüível a construção de outras identidades, entendimentos de mundo e espacialidades:
“[...] Na tensão entre subjectividade individual e subjectividade coletiva, a prioridade é dada à
subjectividade individual; na tensão entre subjectividade contextual e subjectividade
abstracta, a prioridade é dada à subjectividade abstracta. [...]”. (SANTOS B., 2000a, p. 137)

26
Para aqueles que assumem as regras, as normas sociais e comportamentais que apontam para uma
territorialidade que viabilize os setores hegemônicos da sociedade.
27
Esta palavra teve inúmeros significados depois de sua criação por Andronico de Rodes (50 a.C.) que, ao
organizar um conjunto de textos aristotélicos que sucediam ao tratado da física, o traduziu como “após a física”,
dessa maneira, passou a usar o termo para algo que está além da física, que a transcende. Segundo Japiassú e
Marcondes (1996, p. 180), tanto a tradição clássica quanto a escolástica fizeram usos específicos deste termo;
contudo, não os explicitarei pois não é no contexto de tais filosofias que o estou utilizando. Para saber a distinção
do significado da palavra metafísica na tradição clássica e, na escolástica, sugiro uma consulta à obra dos autores
citados. Assumirei aqui o conceito de ‘metafísica’ usado por Lefebvre (1991) entendido por ele como aquele
pensamento que separa o que é ligado, fundamento de sua crítica à metafísica kantiana: “[...] A separação
metafísica entre sujeito e objeto − que, ao mesmo tempo, coloca o problema e o torna insolúvel − reproduz e
agrava, nas condições da consciência moderna, a separação imaginária, o desdobramento fictício entre a parte
lúcida de nosso ser (a alma, o espírito) e a parte ‘natural’ (o corpo, o mundo).” (LEFEBVRE, 1991, p. 53-56).
Dessa maneira, afirma o autor: “[...] designaremos como ‘metafísicas’ as doutrinas que isolam e separam o que é
dado efetivamente como ligado.” (LEFEBVRE, 1991, p. 50). A separação arbitrária do sujeito e do objeto do
conhecimento deriva do posicionamento metafísico. Nesse contexto, este último termo se torna um problema,
pois elementos ontologicamente ligados são separados, o que leva muitos metafísicos a raciocinarem do seguinte
modo: “[...] ‘O sujeito do conhecimento, o ser humano, é um indivíduo consciente, um eu; que é um eu? É um
ser consciente de si e, portanto, fechado em si mesmo. Nele, não pode haver senão estados subjetivos, estados de
consciência. Como poderia sair de si mesmo, transportar-se para fora de si a fim de conhecer uma coisa diversa
de si? O objeto, caso exista, está fora do seu alcance. O pretenso conhecimento dos objetos, a própria existência
destes, não são mais que uma ilusão [...]’.” (LEFEBVRE, 1991, p. 51).
Capítulo 1 28
Ângela Massumi Katuta

Essa tensão, encarnada por Mersault e a sociedade em que vive, foi o foco ou a matéria-prima
do romance de Camus (1997) por meio do qual acabou por denunciar as opções societárias
das classes hegemônicas do Ocidente em sua face dominadora. São destinados à prisão ou
morte aqueles que não se prenderam ao projeto societário estabelecido, estão livres os sujeitos
encarcerados ao projeto societário hegemônico 28 .
Camus (1997), n’O Estrangeiro, expõe com sensibilidade e dramaticidade o cerne das
desilusões, desentendimentos e desatinos do coletivo no qual se insere Mersault: a construção,
assunção, reprodução e disseminação de subjetividades individualistas e abstraídas de suas
espaço-temporalidades que não se enxergam no Outro, por não terem aprendido a olhar-se,
não-saber este produzido por sociedades absolutistas e autoritárias como é a erigida sob o
modo capitalista de produção.
Para Lévi-Strauss (apud Bauman, 2001, p. 118), duas são as estratégias básicas usadas
pelos ocidentais no momento em que se vêem na obrigatoriedade de enfrentar a alteridade e,
portanto, o Outro:
– a primeira delas é a antropoêmica, que consiste em “[...] ‘vomitar’, cuspir os
outros vistos como incuravelmente estranhos e alheios: impedir o contato físico, o
diálogo, a interação social e todas as variedades de commercium, comensalidade e
connubium.” (BAUMAN, 2001, p. 118). Esta estratégia está voltada para a total
negação do Outro, seu exílio ou aniquilamento, e as ações derivadas desta
estratégia vão desde o encarceramento, deportação e assassinato até formas mais
“leves” de negações, igualmente violentas, como a defesa da legitimidade do
direito ao acesso diferenciado aos espaços sociais.
– a segunda estratégia usada no enfrentamento da alteridade é denominada de
antropofágica e visa ao total aniquilamento da alteridade do Outro por meio da
assimilação forçada – cruzadas culturais, guerras declaradas contra costumes
locais, calendários, cultos, dialetos e o estabelecimento e disseminação de
preconceitos e superstições.
A estratégia antropoêmica foi a usada pelo coletivo em relação à alteridade de
Mersault. Aniquilar o Outro por meio da pena de morte seguiu-se à conscientização da
diferença. A metáfora do espelhamento de Lewis Carrol (2002), presente em Através do
Espelho, pode então ser evocada para colocarmos o problema do olhar invertido da sociedade

28
Sobre as mudanças na vida social e política no contexto da modernidade, ver a obra de Bauman (2001)
intitulada Modernidade líquida, na qual o autor faz uma análise perturbadora das alterações sofridas pela vida
humana ao analisar da transformação do significado de léxicos como emancipação, individualidade,
tempo/espaço, trabalho e comunidade.
Capítulo 1 29
Ângela Massumi Katuta

na qual vive o protagonista de Camus (1997). Nas situações de espelhamento, ao longo do


romance, o eu visto no Outro, acaba por causar repugnância, desalento e uma série de
sensações a serem extirpadas por meio da extinção ou assassinato do outro e, portanto, da
“alteridade”.
Mersault, o homem comum, ao revelar e assumir seus pensamentos e sentimentos e,
portanto, negar-se à dissimulação e assim à homogeneização, torna-se O Estrangeiro em sua
própria terra e junto ao seu próprio povo. É condenado à pena de morte por um conjunto de
pessoas cujo mundo não é o dos sentimentos e gestos autônomos − alienação da subjetividade
coletiva contextual −, mas aqueles pertencentes ao rol dos habitus 29 previamente
estabelecidos pelo, para e no contexto social do Estado Nação. Conceito este inventado,
segundo Santos B. (2000a, p. 142), tanto para legitimar a dominação de uma etnia sobre as
demais quanto para criar um denominador sócio-cultural comum com mínima diversidade e
máxima homogeneidade, funcionando assim como base social adequada à obrigação política
geral e universal exigida pelo Estado, inicialmente na Europa, espraiando-se posteriormente
para outros territórios juntamente com o modo capitalista de produção.
Os que vivem no mundo tentando desempenhar os papéis que a sociedade hegemônica
a eles imputou, também vigiam e condenam pessoas que rompem com as regras estabelecidas,
como foi o caso de Mersault, que encontra a paz quando aprende ou descobre que, nas
palavras de Arthur Dapieve, comentarista do livro, Absurdo e Liberdade são faces da mesma
moeda. Ao desejar e optar por essa última, o protagonista acaba por negar muitos aspectos
absurdos da sociedade em que vive, aceitando assim, a pena capital.
A alusão centrada no livro de Camus (1997) O Estrangeiro foi realizada pelo fato de
que este me pareceu útil para expressar o que ocorre, em geral, com o aluno nas aulas de
geografia no ensino básico como também no superior. Via de regra, o discente se vê obrigado
a reproduzir os hábitos discursivos, comportamentais, de pensamento e conhecimento
considerados apropriados aos discentes da referida disciplina. Nela, não raro, as
espacialidades são abordadas por meio da abstração, de maneira a não explicitar o sujeito
enquanto seu produtor, as quais, desde o surgimento dos primeiros hominídeos, se realizam
coletivamente. Ao não reconhecer, saber, compreender que a produção das espacialidades e
dos próprios seres humanos se realiza coletivamente, as identidades constituídas sob a égide
do modo de produção capitalista acabam por ser produzidas em uma perspectiva
individualista e abstrata e, portanto, alienada.

29
Em um sentido eliasiano ou bourdieusiano.
Capítulo 1 30
Ângela Massumi Katuta

Uma das expressões da problemática discutida é o processo que estou a denominar de


estrangeirização discente, que pode ser observado no âmbito da escola formal quando ocorre
o estranhamento do aluno em relação às espacialidades trabalhadas em sala de aula. Estas, em
grande parte, são abordadas como se fossem constituídas por individualidades abstraídas das
relações cotidianas, ou seja, por seres abstratos 30 e atópicos 31 .
O aluno, posto diante de materiais que apresentam territorialidades, como os mapas
nas aulas de geografia, via de regra, demonstra que não se reconhece como um de seus
produtores, tornando-se, dessa maneira, O Estrangeiro em sua própria terra. A incompreensão
das espacialidades vivenciadas e produzidas pelos sujeitos sociais implica a impossibilidade
da constituição de laços de identificação coletivos e contextualizados, constituindo assim as
identidades individuais e abstratas dos sujeitos 32 , expressão e, ao mesmo tempo, meio de
realização dos processos alienadores atuantes nas sociedades capitalistas.
Descrever e desenhar ”o mundo da geografia escolar”, menos instigante que o “mundo
das maravilhas” de Alice, personagem de Carrol (2002), constituem-se nas principais
atividades cognitivas que os docentes demandam dos alunos 33 na referida disciplina. A
efetivação dessas, via de regra, realiza o assassinato da possibilidade ou a impossibilidade da
construção da capacidade de apreensão, compreensão e entendimento da ordenação territorial
dos fenômenos pelos alunos e, assim, do mundo em que vivem, do outro e de si mesmos. Por
isso, identifiquei metaforicamente esses últimos com Mersault, o protagonista do romance de
Camus, cuja morte implicou individualmente sua redenção, apesar da prevalência da
alienação e violência junto ao coletivo.
Por meio da referida disciplina, cria-se um mundo próprio no interior da escola, o
“Mundo da Geografia”, como se a existência e cientificidade da geografia ensinada se
justificassem naquilo que ela aparentemente tem de mais real, sob a ótica da tradição

30
Problemática esta discutida por Moreira (1987) em seu livro O discurso do avesso.
31
Estou usando esta expressão para distinguir o atópico do utópico; o primeiro termo revela o que não tem lugar
e jamais o terá, qual Deus e a razão moderna, onipotentes e oniscientes em suas descontextualizações espaço-
temporais e o segundo, o que pode ter lugar mas que ainda não foi realizado. A desconsideração das espaço-
temporalidades é um dos fundamentos do pensamento metafísico, daí a possibilidade lógica da eliminação da
diferença, que se torna visível se as referidas relações forem consideradas.
32
Abordarei a questão com maior detalhe mais adiante.
33
Essa constatação tem demonstrado ser denominador comum nas pesquisas, debates e reflexões sobre o ensino
da geografia, entre estes ver: Carlos (1999), Castrogiovanni et al (1998), Cavalcanti (1998), Ferraz (1994, 2001,
2003), Gebran (1994), Kaercher (1997), Katuta (1997), Lacoste (1989), Moreira (1987, 1988, 1992, 1993, 1999),
Oliveira (1989), Pereira D. (1999, 2003), Pereira, Santos e Carvalho (1991), Pereira R. (1993), Resende (1989),
Schäffer e outros (1998), Souza e Katuta (2001), Vesentini (1989, 1992), Vlach (1990, 1991) entre outros. Ver
também os números especiais de alguns periódicos como Boletim Gaúcho de Geografia (1999), Caderno CEDES
n. 39 (1996), Caderno Prudentino de Geografia n. 17 (1995) e Terra Brasilis n. 1 (2000).
Capítulo 1 31
Ângela Massumi Katuta

empirista, no contexto do pensamento científico hegemônico: a descrição descontextualizada,


cindida e genérica dos objetos no espaço.
A tradição científica moderna tem como fundamento a concepção de cientificidade
elaborada no contexto da física newtoniana. A partir da mesma se pensa a natureza como:
[...] uma máquina matemática enorme e autocontida, consistente de movimentos de
matéria no espaço e no tempo, e o homem, com seus propósitos, sentimentos e
qualidades secundárias, foi varrido dele como um espectador sem importância e
como um efeito semi-real do grande drama matemático exterior. (BURTT, 1991,
p. 82).
Na perspectiva da concepção científica moderna, a realização de descrições
descontextualizadas, cindidas e genéricas faz parte do habitus científico. Na geografia
hegemônica ensinada, este habitus se expressa por meio de discursos sobre o relevo, clima,
vegetação, embasamento rochoso, sem que se considere o ser humano, o trabalho por ele
realizado, suas relações com os outros elementos da natureza e as diversas espacialidades.
O ser humano é reduzido a mero espectador 34 do espetáculo geográfico e, quando
lançado como objeto de estudo na trama discursiva e cartográfica da geografia hegemônica,
transmuta-se em população, força-de-trabalho ou algum fenômeno passível de codificação
matemática. Por meio deste procedimento metafísico, a referida geografia 35 cria um mundo
“estranho”, diferente daquele em que o aluno vive, processo ao qual denominei de
estrangeirização, e que acaba por gerar um forte sentimento de estranhamento do ponto de
vista do sujeito cognitivo: o aluno torna-se O Estrangeiro em seu próprio mundo. Contudo,
diferentemente de Mersault, não é assassinado; o sistema de ensino realiza seu ritual
antropofágico por meio da assimilação forçada, auxiliando a aniquilar a possibilidade de
constituição de subjetividades coletivas e contextualizadas.
Em se considerando as respostas ou reações dos alunos nas aulas − apatia,
desinteresse, indisciplina para o trabalho a ser realizado em sala de aula −, e porque também
não dizer de uma parte significativa de professores, todos esses “estrangeiros no “mundo” da
geografia”, a tendência de ampliação do debate em torno e a favor do desaparecimento da
disciplina é grande 36 .

34
Atentar para o lugar em que o sujeito é colocado para observar o planisfério: sua visão é a de quem está fora
de um mundo composto por objetos mensuráveis, pairando no ar, assistindo ao que nele está ocorrendo, fato esse
que indica que na linguagem cartográfica a prioridade é a da res extensa, domínio dos objetos mensuráveis.
35
Esta geografia vem sendo criticada por muitos autores, dentre eles Lacoste (1989) e Moreira (1987) em suas
obras intituladas, respectivamente: A geografia – isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra e O discurso
do avesso – para a crítica da geografia que se ensina.
36
No final da década de 1990, no Brasil, muitos segmentos da área da educação vêm propondo a junção de
várias disciplinas das ciências humanas em um único bloco denominado de humanidades. Esta proposta, em
geral, tem como fundamento a tese de que, ao se realizar a interdisciplinaridade, o conhecimento do objeto seria
resgatado em sua totalidade, como se esta fosse a mera soma das partes. Os disseminadores dessa tese se
esquecem de que o próprio ato de conhecer implica, necessariamente, a realização de recortes; não é possível a
Capítulo 1 32
Ângela Massumi Katuta

As espacialidades que deveriam ser o foco central dos estudos geográficos se


constituem em sistemas complexos, pois o todo não se constitui na mera soma das partes. O
que dá identidade ao conjunto dos espaços geográficos não são os elementos que os
constituem em si e per si, mas a relação que os seres humanos estabelecem entre si e com os
outros elementos da natureza, a fim de prover as suas condições materiais 37 de existência.
Branco (1989, p. 212), em seu estudo sobre a dialética da natureza, afirma que:
[...] Em qualquer sistema complexo o todo não coincide com a soma das partes. A
importância das relações de interacção entre as partes do todo sobrepõe-se à
consideração quantitativa dos elementos constitutivos. As propriedades do sistema
não são predizíveis a partir do conhecimento das propriedades dos elementos que o
constituem nem das leis que regem as suas interacções [...].
Por isso, a descrição e mesmo a apresentação cartográfica de cada um dos elementos
da natureza – relevo, clima, vegetação, hidrografia, recursos naturais, população entre outros
–, não equivale ao conhecimento ou entendimento das espacialidades produzidas pelos seres

tudo conhecer e nem a tudo ver. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) 9.394/96 pode ser
tomada como expressão do processo de desvalorização social da disciplina de geografia. No Capítulo II que
dispõe sobre a Educação básica – educação infantil, ensino fundamental e médio –, no artigo 26 que reza sobre o
currículo do ensino fundamental e médio, a Lei faz menção direta a uma série de disciplinas como língua
portuguesa, matemática, arte, educação física, história e língua estrangeira moderna. Os saberes tradicionalmente
ensinados pela geografia são citados sem nenhuma referência à disciplina, fato este que passa a ser entendido por
muitos educadores enquanto possibilidade de inserção de outros profissionais das ciências humanas, como se
pode verificar no trecho que segue: “Os currículos a que se refere o caput devem abranger, obrigatoriamente, o
estudo da língua portuguesa e da matemática, o conhecimento do mundo físico e natural e da realidade social e
política, especialmente do Brasil.” (BRASIL, 1997, p. 15). Na seção IV, no artigo 36, que trata do currículo do
Ensino Médio, verifica-se a indicativa das seguintes diretrizes nos itens I e III, respectivamente: “I - destacará a
educação tecnológica básica, a compreensão do significado da ciência, das letras e das artes; o processo histórico
de transformação da sociedade e da cultura; a língua portuguesa como instrumento de comunicação; acesso ao
conhecimento e exercício da cidadania [...] III – domínio dos conhecimentos da Filosofia e Sociologia
necessários ao exercício da cidadania.” (BRASIL, 1997, p. 19-20). Nos níveis mais avançados do ensino básico,
como é o de nível médio, os saberes geográficos sequer são citados, o que permite antecipar um possível
desaparecimento ou maior desvalorização da disciplina e dos saberes geográficos no Brasil. Os saberes aos quais
não se teve acesso não são valorizados.
37
Entenda-se também simbólica dado que inexiste separação entre produção material e simbólica, como
adequadamente nos lembra Marx (1993, p. 163-164): “O homem é um ser genérico, não só no sentido de que faz
objecto seu, prática e teoricamente, a espécie (tanto a sua própria como a das outras coisas), mas também − e
agora trata-se apenas de outra expressão para a mesma coisa − no sentido de que ele se comporta perante si
próprio como a espécie presente, viva, como um ser universal, e portanto livre. A vida genérica, tanto para o
homem como para o animal, possui sua base física no facto de que o homem (como o animal) vive da natureza
inorgânica, e uma vez que o homem é mais universal do que o animal, também mais universal é a esfera da
natureza inorgânica de que ele vive. Assim como as plantas, os animais, os minerais, o ar, a luz, etc, constituem,
do ponto de vista teórico, uma parte da consciência humana, enquanto objectos da ciência natural e da arte − são
a natureza inorgânica espiritual do homem, seus meios de vida intelectuais, que ele deve primeiro preparar para a
fruição e perpetuação − assim também, do ponto de vista prático, formam uma parte da vida e da actividade
humanas. No plano físico, o homem vive apenas dos produtos naturais, na forma de alimento, calor, vestuário ou
habitação, etc. A universalidade do homem aparece praticamente na universalidade que faz de toda a natureza o
seu corpo inorgânico: 1) como imediato meio de vida; e igualmente 2) como objecto material e instrumento da
sua actividade vital. A natureza é o corpo inorgânico do homem, isto é, a natureza na medida em que não é o
próprio corpo humano. O homem vive da natureza, quer dizer: a natureza é o seu corpo, com o qual tem de
manter-se em permanente intercâmbio para não morrer. Afirmar que a vida física e espiritual do homem e a
natureza são interdependentes significa apenas que a natureza se interrelaciona consigo mesma, já que o homem
é uma parte da natureza.”
Capítulo 1 33
Ângela Massumi Katuta

humanos e, muito menos, implica a possibilidade de predição e elaboração de leis gerais e


absolutas que as regem 38 .
Os conhecimentos desenvolvidos pelas ciências não-clássicas, como a termodinâmica
e a teoria da evolução biológica, refutam a idéia de estabilidade associada à crença em um
universo acabado e imóvel. Essas teorias confirmam que esta é a imagem do inexistente.
Também os estudos sobre as concepções de espaço, e suas transformações ao longo de
diferentes modos de produção, apontam para a impossibilidade histórica de absolutização dos
saberes humanos 39 , a despeito da tentativa dos grupos hegemônicos de legitimação e
perpetuação das suas cosmologias. As verdades e os saberes possuem existência espaço-
temporal; tentar aprisioná-los a partir da crença em estabilidades a-históricas absolutizantes é
furtá-los do contexto de sua realização, significa negar o seu fundamento social ou sua
essência.
É importante deixar claro que não se trata de fazer a defesa corporativa de uma
disciplina que agrada a poucos. Antes, trata-se de chamar a atenção para a necessária
manutenção da mesma, em função da importância da sistematização de saberes, na escola,
acerca das espacialidades produzidas pelos seres humanos, enquanto elemento fundamental
para a construção de entendimentos, identidades e ações no mundo. Recordemos as palavras
de Lefebvre (1991, p. 34), que nos advertem sobre o fundamento tópico de nossa vida e
identidade desde os primórdios: Onde?, é uma questão ligada à sobrevivência da espécie
realizada filogenética e ontogeneticamente, pelos seres do gênero Homo e, conseqüentemente,
por nós, seres humanos anatomicamente modernos.
Somadas às reações dos discentes em relação ao ensino da geografia, existem ainda
aquelas de outros grupos sociais que, sob as mais diferentes formas 40 , reforçam o

38
Sobre esse assunto ver a obra de Branco (1989) Dialética, Ciência e Natureza, principalmente o Capítulo VI
intitulado Sintomas da dialética da natureza (p. 205-249).
39
Sobre esse assunto ver Santos D. (1997).
40
A disciplina de geografia, em geral, é trabalhada de maneira descontextualizada do viver cotidiano das pessoas
e, por isso, não raro está associada apenas a atividades alienantes por se realizarem apenas em si e per si, como o
trabalho alienado sob a égide do modo de produção capitalista. Atividades como o decalque e pintura de mapas,
memorização de informações topológicas ou de respostas descritivas são facilmente identificadas pelos mais
diferentes atores sociais como sendo próprias da disciplina de geografia. Junto a muitos estudiosos das ciências
humanas também existem aqueles que, por meio de uma noção de espaço e tempo métricos, cujos fundamentos
residem na física clássica, ao considerarem o tão propalado fenômeno da compressão espaço-temporal,
característico da modernidade ou pós-modernidade, estão a decretar o fim da geografia, à maneira de Francis
Fukuyama, o apologeta do fim da história. Richard O’Brien e Paul Virílio estão entre os fiéis disseminadores da
disparatada idéia do fim da geografia. O que há de interessante nas teses do fim da história e da geografia está no
fato de que as mesmas podem ser tomadas como sintomas de que as noções de espaço-temporalidade estão a
sofrer transformações. A crítica, negação da relevância e o incentivo ao abandono de uma concepção de espaço
são ações que apontam na direção de sua transformação.
Capítulo 1 34
Ângela Massumi Katuta

questionamento sobre a necessidade do ensino e aprendizagem dos saberes geográficos 41 .


Estas atitudes, pontas de um iceberg, devem ser tomadas como manifestações sociais
engendradas na sociedade ocidental, no contexto de um longo processo de obscurecimento da
relevância cognitiva da compreensão das espaço-temporalidades em favor do pensamento
metafísico, próprio de tradições alinhadas aos setores hegemônicos. Há de se entender,
portanto, o processo de “estrangeirização” ou alienação, por meio do qual o ensino da
geografia, via de regra, torna os saberes sobre o espaço irrelevantes aos olhos de uma grande
parte da sociedade.
Iniciei o presente capítulo com um trecho do romance de estréia do grande mestre dos
quadrinhos ou graphic novel, Alan Moore (2002), pois, no excerto selecionado, o autor faz
referência aos mapas, figurações espaciais identificadas com a disciplina da geografia por
uma parcela razoável da sociedade ocidental. Muitas pessoas escolarizadas podem não se
lembrar do discurso geográfico docente ou das lições do livro didático, mas, certamente,
recordam-se das aulas de geografia por meio das quais entravam em contato com os mais
variados tipos de mapas.
O referido autor, na epígrafe transcrita, indica que, para além das espacialidades
apresentadas nos mapas social e historicamente engendrados e disseminados em todo o
Ocidente, sempre existirão aquelas provenientes de nossa memória e imaginação, fontes de
mapas “mais verdadeiros e mais claros”, porque constituídos a partir de “uma nossa
linguagem mais forte”. Tais espacialidades, marginalizadas historicamente por uma geografia
hegemônica 42 , também devem ser abordadas pela geografia que se ensina, dado que se

41
Este questionamento e embate não são novos pois, segundo Escolar (1996, p. 70), já na primeira década do
século XX, a Geografia − ciência e disciplina − é criticada pelas outras ciências humanas, dentre elas a história,
sociologia e economia política. Segundo Escolar (1996, p. 69), do ponto de vista interno às ciências humanas, a
rápida aparição da sociologia somada ao distanciamento da geografia em relação à filosofia, são argumentos
utilizados pela economia política e história na tecedura dos seus questionamentos endereçados à ciência
geográfica.
42
Esta geografia foi denominada por Lacoste (1989, p. 31) como “geografia dos professores” e caracterizada
como aquela que, apesar de ter aparecido há menos de um século sob a égide do Estado nação, “[...] se tornou
um discurso ideológico no contexto do qual uma das funções inconscientes é a de mascarar a importância
estratégica dos raciocínios centrados no espaço.”, pois é, aparentemente, extirpada de práticas políticas, militares
e decisões econômicas, ou seja, da práxis humana realizada no contexto do atual modo de produção,
dissimulando, dessa maneira, a eficácia e relevância das análises espaciais enquanto instrumentos de ação dos
espaços. De minha parte, acrescentaria às observações do autor que essa geografia nega, sobretudo, as
espacialidades não hegemônicas ao não estabelecer racionalidades acerca das mesmas e, assim, acaba por
marginalizar seus portadores, atuando como elemento altamente alienador, processo este que ocorre também
com o trabalho alienado no modo de produção capitalista. O que se verifica no referido modo de produção é a
realização da alienação do trabalhador por meio do trabalho, concebido aqui de maneira ampla, enquanto
atividade humana no contexto das relações sociais. Marx (1993, p. 162-163) descreve o processo de alienação do
trabalhador: “[...] o trabalho é exterior ao trabalhador, quer dizer, não pertence à sua natureza; portanto, ele não
se afirma no trabalho, mas nega-se a si mesmo, não se sente bem, mas infeliz, não desenvolve livremente as
energias físicas e mentais, mas esgota-se fisicamente e arruína o espírito. Por conseguinte, o trabalhador só se
Capítulo 1 35
Ângela Massumi Katuta

constituem fundamento para a criação do que Marx (1993) denomina de homem genérico e de
sua universalidade, podendo, dessa maneira, auxiliar no processo de ruptura com o que, na
presente reflexão, estou a denominar como processo de ”estrangeirização” ou alienação
discente.
O fundamento do presente capítulo é a idéia de que questões referentes às disciplinas
escolares, ou aos conhecimentos, somente podem ser analisadas em se considerando o
contexto social e espaço-temporal em que ocorrem tais processos. As idéias e instituições
hegemônicas de uma época são produzidas nos modos de produção da existência humana, em
diferentes momentos históricos e lugares, em um movimento de tensão entre os sujeitos
sociais. Esta é a materialidade dos processos, historicamente negada pelas mais diversas
tradições filosóficas atreladas ao idealismo e ao positivismo e suas variantes produzidas nas
ciências humanas, que deve ser resgatada a fim de que se tenha uma compreensão mais
congruente com a realidade.
Desta maneira, como se trata de demonstrar como ocorre o processo de
“estrangeirização” ou alienação discente, por meio da aprendizagem de saberes geográficos
escolares, o presente capítulo foi estruturado em duas partes.
Em um primeiro momento, abordei as tensões dialéticas entre processo produtivo e
institucionalização da escola moderna. O primeiro e o segundo processo mantêm entre si
relações diretas, o que não significa dizer que as mesmas tenham se realizado espaço-
temporalmente de maneira linear. A análise de tais relações, ao longo da referida espaço-
temporalidade, nos revela que as mesmas são eivadas de tensões e contradições, por serem
expressões das relações sociais contraditórias que se travam no modo de produção capitalista.
Em cada Estado nação, em função de suas especificidades históricas e geográficas, houve
particularidades no que se refere ao modo como o processo se desenrolou, o que não significa
que não se possa estabelecer linhas gerais de desenvolvimento, a fim de compreender o tipo
de sociedade que a escola moderna auxiliou a construir.
Aqui assumo que, no que se refere aos processos relativos ao ser humano e,
especificamente, às questões abordadas no presente Capítulo, a perspectiva materialista

sente em si fora do trabalho, enquanto no trabalho se sente fora de si. Assim, o seu trabalho não é voluntário,
mas imposto, é trabalho forçado. Não constitui a satisfação de uma necessidade, mas apenas um meio de
satisfazer outras necessidades. [...] O trabalho externo, o trabalho em que o homem se aliena, é um trabalho de
sacrifício de si mesmo, de mortificação. [...] Chega-se à conclusão que o homem (o trabalhador) só se sente
livremente activo nas suas funções animais − comer, beber e procriar, quando muito, na habitação, no adorno,
etc. − enquanto nas funções humanas se vê reduzido a animal. O elemento animal torna-se humano e o humano,
animal. Comer, beber e procriar, etc., são também certamente genuínas funções humanas. Mas abstractamente
consideradas, o que as separa da restante esfera da actividade humana e as transforma em finalidades últimas e
exclusivas é o elemento animal.”
Capítulo 1 36
Ângela Massumi Katuta

dialética coloca-se como o horizonte de entendimento mais adequado, na medida em que


possibilita a realização de análises que não sejam deterministas, idealistas, mecanicistas e até
mesmo ingênuas 43 , muito comuns nos debates das práticas educativas que ocorrem em uma
sociedade de classes, cuja característica primordial é a tensão e luta existentes entre as
mesmas. A referida matriz de pensamento permite apreender os processos educativos e os
elementos a eles inerentes em uma tensão dialética, própria do campo da educação moderna
no contexto do modo de produção capitalista.
É importante esclarecer que, apesar de a presente reflexão estar ancorada no ensino da
geografia que se realiza na escola formal, entendo por educação qualquer ação humana que
concorra para a humanização do ser humano – sua diferenciação dos outros animais por meio
do trabalho, atividade esta eminentemente humana. Nesta perspectiva, a educação é entendida
como prática social “[...] uma atividade humana e histórica que se define no conjunto das
relações sociais, no embate dos grupos ou classes sociais, sendo ela mesma forma específica
de relação social.” (FRIGOTTO, 1996, p. 31). Não se pode desconsiderar o contexto histórico
e espacial no qual se institucionalizou a escola moderna, sob a pena de entendê-la
equivocadamente, ou seja, liberta de suas determinações e, portanto, das relações sociais que a
engendraram, como o fazem as análises ancoradas na tradição do pensamento metafísico.
Posteriormente, abordo a constituição do ensino da geografia no contexto da escola
moderna, sob a égide do modo de produção capitalista, tendo na Europa central e meridional
suas primeiras espacializações. O fundamento desta parte da reflexão é a afirmação de que o
ensino e a aprendizagem de um saber e uma concepção sobre e do espaço, considerados como
os únicos legítimos no plano das relações sociais engendradas, têm implicado na
inviabilização de outros saberes e espacialidades e, portanto, na alienação dos sujeitos e na
sua formação unilateral.

43
Atualmente ainda é muito comum nos depararmos com análises, principalmente as estruturalistas, que
correlacionam mecanicamente a escola e todas as ações nela realizadas com as estruturas hegemônicas de poder
e que, dessa maneira, acabam por imputar a essa instituição um papel meramente reprodutor. Existem ainda
outras análises, em geral idealistas, que, ao abordarem o espaço escolar de maneira descontextualizada,
ingenuamente o entendem enquanto instância facilitadora da ascensão social, econômica e cultural, dos
indivíduos, tomados indistintamente. Ambas as perspectivas negam tanto o caráter histórico, geográfico, social e
contraditório dos processos educativos, quanto os locais onde os mesmos se realizam e suas instituições. Tais
análises acabam por se caracterizar pela sua unilateralidade, ao que desconsiderarem o movimento de tensão
dialético existente entre as classes sociais formadas no contexto do modo de produção capitalista.
Capítulo 1 37
Ângela Massumi Katuta

1.1. As leituras metafísicas da escola e dos processos educativos


“Dirijamo-nos diretamente para o mundo, para as coisas – para o conteúdo. Libertemo-nos de
todos os traços de formalismo; de todas as obscuras sutilezas da metafísica reconvertida – como
na Idade Média – em escolástica abstrata; de todos os seus ‘problemas’ insolúveis. Sejamos
resolutamente modernos. Se o real está em movimento, então que nosso pensamento também se
ponha em movimento e seja pensamento deste movimento. Se o real é contraditório, então que o
pensamento seja pensamento consciente da contradição.” (LEFEBVRE, 1991, p. 174).

A institucionalização da escola moderna ou de massas, via de regra, é abordada por


certas tradições de pensamento como sendo um conjunto de processos que possui um
funcionamento próprio ou que tem uma existência sem lastreamento nas condições materiais
de existência e produção das sociedades. Dentre as tradições, destaca-se a metafísica e os
pensamentos dela derivados, que têm sido o fundamento do pensamento ocidental
hegemônico e que têm dominado, quase que de maneira absoluta, o campo das análises e as
próprias atividades ligadas aos processos educativos.
Fernández Enguita (1993, p. 19) afirma que o fato descrito explica-se pela própria
constituição histórica da sociedade ocidental, fundada na separação metafísica entre
pensamento e ação, trabalho intelectual e manual. Em sua obra intitulada A face oculta da
escola, o autor desvela as relações que fundamentam essa ancoragem:
O pensamento educacional esteve quase sempre pautado principalmente pela marca
do idealismo. Embora em sua história figurem nomes vinculados ao sensualismo ou
a um certo materialismo como os de Locke ou Helvetius, o que domina é uma longa
lista de filósofos-pedagogos de tendência idealista: Sócrates, Santo Agostinho, São
Tomás de Aquino, Kant, Herbart, etc., para citar apenas alguns. Isto é natural se se
tem em conta que o veículo aparente por excelência da educação é a palavra, e que
esta parece ser o único suporte das idéias que expressa e transmite.
(FERNÁNDEZ ENGUITA, 1989, p. 134-135).
O pensamento, no Ocidente, por ter se desenvolvido em sua face hegemônica como
atividade social realizada e monopolizada por poucos, foi tradicionalmente compreendido
como ação mais nobre que o trabalho alienado, que, por sua vez, nesta mesma linha de
compreensão − idealista e metafísica −, ficou reduzido à sua face alienante. Trabalho e escola
têm sido equivocadamente abordados pelas referidas tradições enquanto atividades distintas
que, inclusive, se realizam em territórios distintos.
Os desdobramentos de tais concepções são inúmeros, mas talvez o de maior
profundidade, alcance e envergadura, exatamente por não ser considerado enquanto tal, seja o
desenvolvimento da crença de que as ações educativas na e da escola têm como foco central
apenas o intercâmbio, principalmente entre professores e alunos, de informações e idéias
científicas concebidas como neutras, sendo a palavra, a linguagem, seu veículo ou suporte por
excelência. Oculta-se, a partir deste entendimento, todo o conjunto de relações sociais que
Capítulo 1 38
Ângela Massumi Katuta

engendram e que são inerentes aos processos educativos e que, neste contexto, são reduzidos
a meros processos comunicativos que se realizam no território restrito da sala de aula.
Infelizmente, este é o fundamento de muitas teses ancoradas na metafísica, que
defendem que os “problemas de aprendizagem” dos alunos se devem a uma incorreta
utilização de metodologias de ensino por parte do professor. É neste horizonte restrito em que
está confinada uma parte significativa de reflexões e trabalhos realizados sobre os processos
educativos, principalmente aqueles circunscritos à educação formal. E é deste equívoco que se
alimentam as práticas educativas alienadas e alienadoras que têm se realizado no espaço
escolar como um todo.
[...] os que fazem da educação um problema, os que pensam e escrevem sobre ela e,
por conseguinte, os que elaboram a idéia de educação que ainda domina nossa
civilização, são as classes sociais distanciadas do trabalho ou, com maior freqüência,
aquelas pessoas que se ocupam da educação dessas classes ociosas. [...] Para aqueles
que não estão condenados a dedicar sua vida ao trabalho, sob condições que lhes são
impostas, para eles, em troca, a educação, ou seja, os objetivos da formação do
homem e os métodos para alcançá-los são, por natureza, um problema.
(FERNÁNDEZ ENGUITA, 1993, p. 23).
É preciso salientar que, como adequadamente nos lembra Manacorda (2002), a
propalada problemática dos métodos de ensino ou da didática aparece somente em sociedades
absolutistas e dominadoras, junto a algumas classes sociais e sob condições específicas:
quando se usa de um dado saber para o domínio e miséria do outro ou, em outras palavras,
quando se trata de usar os processos educativos a serviço da alienação.
Não por foi acaso que, de acordo com Capponi (apud MANACORDA, 2002, p. 279),
o entendimento da educação como arte que existe per si, que precisa de métodos para
sustentar-se foi idéia dos jesuítas. Em outras palavras, processos educativos alijados das
condições materiais de produção, das relações humanas e suas espaço-temporalidades foram
pensados por sujeitos sociais que estavam a serviço da dominação e subjugação do outro.
Afinal, a alienação, a aculturação 44 e a dominação de populações autóctones necessitavam de
um método de ensino eficaz que, não raro, fazia uso da violência física e, invariavelmente, da
psicológica, isso porque a cultura ocidental foi imposta a vários povos por ser considerada a
única legítima. Sobre o século XVIII nos informa Manacorda (2002, p. 280):
O problema do método ou da didática é o fastidioso problema pedagógico deste
século e suas soluções não são isentas de pedanteria, também nos maiores autores:
mas como não ver que este é o problema real, decorrência inevitável da evolução
histórica? Desde o momento que a instrução tende, embora lentamente, a
universalizar-se e a laicizar-se, mudando destinatários, especialistas, conteúdos,
objetivos, o ‘como ensinar’ (até as coisas mais tradicionais, como a preparação
‘instrumental’, ou ‘formal’ do ler, escrever e fazer contas) assume proporções
gigantescas e formas novas; tanto mais se o problema do método se entrelaça com o

44
É importante lembrar que toda aculturação envolve culturação, ou seja, tais processos se realizam de maneira
imbricada.
Capítulo 1 39
Ângela Massumi Katuta

problema dos novos conteúdos da instrução ‘concreta’, que surgem com o próprio
progresso das ciências e com sua relativa aplicação prática.
Ao se universalizar um tipo de educação laica, cujos valores, visões de mundo e
fundamentos estavam umbilical e visceralmente ligados à educação que se realizava no seio
das famílias aristocráticas e burguesas, os “problemas” do ensino vão, pari passu, se
avolumando com a disseminação da escola por todo o mundo. Não por acaso, atualmente os
mesmos estão majoritariamente presentes em escolas que atendem à classe trabalhadora, pois
é exatamente esta que tem dificuldade em aceitar como universal – resistência? –, habitus
engendrados pelas e para as classes sociais hegemônicas.
Weber (apud BOURDIEU, 2000b, p. 93) em sua obra O judaísmo antigo
acertadamente afirma: “O camponês só se torna ‘burro’ ali onde ele é pego pela engrenagem
de um grande império, cujo mecanismo burocrático ou litúrgico lhe continua sendo estranho.”
Ao resgatar a afirmação weberiana, Bourdieu (2000b) nos lembra que, existem mecanismos
de conversão coletiva da visão de mundo que passam a operar de maneira acelerada, quando
da institucionalização e disseminação do sistema de ensino, junto às classes sociais menos
favorecidas.
A disseminação da visão de mundo burguesa por meio da escola cria muitos
“problemas” de ensino que se constituem, em grande medida, em função do descompasso
entre a visão de mundo considerada como a única legítima, passível de ser racionalizada e
universalizada por meio do ensino, e as representações de mundo e das coisas nele existentes
das classes sociais não hegemônicas que, via de regra, não têm adentrado a escola.
Contudo, ideologicamente, os “problemas do ensino” são interpretados como
carências, ora dos professores, ora dos alunos ou da sociedade em geral. O que os idealistas
ou metafísicos não quiseram enxergar − a educação enquanto conjunto de relações sociais que
expressa as contradições fundamentais da sociedade que a configura −, constitui-se, ainda
hoje, em um campo a ser necessariamente explorado, dada a força e legitimidade que
possuem as pesquisas e trabalhos alinhados às referidas formas de pensamento 45 .

45
Para Fernández Enguita (1993, p. 17 et seq.), um elemento revelador da força do idealismo e da metafísica na
abordagem dos processos formativos reside no fato de que a educação e a pedagogia constituem-se em uma das
poucas áreas das denominadas ciências humanas ainda hoje impermeáveis ao marxismo ou às abordagens da
Teoria Crítica. No caso do Brasil, o materialismo histórico tem sido o método assumido e defendido por
educadores que se recusam a reduzir a educação ao mero plano das idéias. Contudo, desde a década de 1980 até
o final da década de 1990, parece ter caído em desuso, principalmente por aqueles educadores afeiçoados em
novidades ou modismos pedagógicos. Atualmente, urge, na perspectiva destes últimos, descobrir o pedagogo
conselheiro que tenha uma fórmula mágica, verborrágica, para as mazelas da educação. O fosso entre o fazer e o
pensar, na educação formal, tem constantemente aumentado. A partir da tese de muitos assessores e conselheiros
do Ministério da Educação de que os professores do ensino básico não possuem competência para pensar o
processo de ensino e aprendizagem no qual atuam, o Ministério da Educação e Cultura (MEC) tem auxiliado a
aumentar ainda mais o referido fosso. Hoje, certamente mais do que antes, a perspectiva idealista em educação
Capítulo 1 40
Ângela Massumi Katuta

O materialismo histórico impõe-se por uma necessidade de avanço, no sentido da


elaboração de perspectivas sobre os processos educativos mais congruentes com a realidade.
A eliminação do movimento, da diferença e das contradições nas análises educacionais, a
negação da necessidade de contextualizações espaço-temporais para o entendimento do
fenomênico, a negação do trabalho enquanto ação constitutiva do ser humano e do educativo
inerente a toda e qualquer relação humana têm resultado na ideologização, reificação e
fetichização 46 dos processos educativos, bem como de seus entendimentos. A conversão da
percepção-compreensão do mundo e dos processos educativos de uma maneira menos
alienada se faz necessária.
Segundo Fernández Enguita (1993), as pesquisas e reflexões que começam a
desmistificar a educação formal, ou revelar sua face oculta, datam, principalmente, do final de
1960; ou seja, foram realizadas quase uma década depois da efetiva universalização
quantitativa da escola moderna pela maior parte do planeta. Afirma o autor que, anteriormente
ao referido período, a educação que ocorria nas escolas era apreendida apenas em sua
positividade, ou seja, era entendida como instrumento do desenvolvimento econômico de um
país, de ascensão sócio-cultural e econômica dos sujeitos sociais, entre outros.
Apesar de a afirmação do autor estar correta no que se refere ao grosso das pesquisas,
não se pode esquecer da relevância das reflexões de Antônio Gramsci sobre a formação dos
intelectuais, a organização da escola e da cultura e sobre os princípios educativos que devem
nortear a escola unitária 47 defendida por ele em sua obra intitulada Os intelectuais e a

tem auxiliado na inviabilização de projetos democráticos na área, vide o exemplo do substitutivo para a Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB) da sociedade brasileira, sistematizado por Florestan Fernandez,
que foi solapado por Darcy Ribeiro e as elites deste país. O que se quer aqui dizer é que não podemos cometer o
equívoco de analisar a Educação de maneira descontextualizada do mundo e das relações produtivas que se
realizam espaço-temporalmente. Vivemos em uma sociedade em que o modo de produção capitalista; daí a
necessidade de matrizes teórico-metodológicas que nos auxiliem a entender a instituição escolar em suas
contradições e tensões dialéticas, no contexto desse modo de produção. Muito mais do que opção política, a
análise materialista dialética constitui-se em uma necessidade em direção a análises acerca da educação mais
congruentes com a realidade ora configurada.
46
Processos inerentes à alienação que ocorre no modo de produção capitalista, no qual a propriedade privada, a
divisão entre o trabalho intelectual e manual produz uma forma unilateral e hegemônica de entender a educação,
bem como os processos educativos. Ao tomá-los como coisas que possuem existência autônoma ou independente
das relações sociais de produção – reificação –, ocorre a ideologização ou inversão do sentido dos mesmos e sua
conseqüente fetichização ou adoração, por se tratarem, nesta concepção, de atividades enriquecedoras do espírito
humano, capaz de retirar os sujeitos de sua ignorância, colocando-os no caminho da verdade e do conhecimento.
Nesta perspectiva, oculta-se a base material, as relações sociais e de produção, nas quais as idéias se originam, o
que permite o estabelecimento da crença na neutralidade do conhecimento e dos sujeitos que as elaboram.
47
O autor elaborou a idéia de escola única ou unitária em contraposição às contradições existentes entre escola
clássica – destinada às elites e aos intelectuais –, e a profissional – destinada às classes instrumentais, cujo
destino é por ela predeterminado. A escola única ou unitária significa para Gramsci (1978, p. 118, 121, 125, 136)
o início de novas relações entre trabalho intelectual e trabalho industrial na vida social, seu objetivo pedagógico
deve visar à condução do jovem “[...] até os umbrais da escolha profissional, formando-o entrementes como
pessoa capaz de pensar, de estudar, de dirigir ou de controlar quem dirige.” (GRAMSCI, 1978, p. 136). Verifica-
Capítulo 1 41
Ângela Massumi Katuta

organização da cultura, que, somados aos Cadernos do Cárcere, constitui-se, ainda hoje, em
uma fonte relevante para a compreensão da educação formal, da escola e dos processos
educativos que nela se realizam.
Os estudos que tentam desmistificar a escola, ou mostrar sua outra face, chamam a
atenção para o papel da instituição na integração dos indivíduos nas relações sociais de
produção. As abordagens historiográficas de Foucault, dos historiadores revisionistas norte-
americanos, o estrutural-funcionalismo parsoniano, o estruturalismo althusseriano, com sua
teoria da ideologia e dos aparelhos ideológicos do Estado, e a análise do princípio de
correspondência presidida pela escola de Samuel Bowles e Herbert Gintis são abordagens
relevantes que fizeram os primeiros esforços na direção da ruptura com as tradicionais
abordagens da escola nas pesquisas em educação 48 . Data também do final da década de 1960,
coincidindo, não por acaso, com as manifestações mundiais dos movimentos estudantis, o
aumento dos debates sobre as possíveis contribuições do materialismo dialético na análise dos
processos educativos.
Apesar disso, como adequadamente afirmou Fernández Enguita (1993, p. 18), a
educação ainda hoje se constitui em uma área de pensamento refratária ao materialismo
dialético, isso porque na mesma ainda predominam temas, motivos e constantes que “[...]
perduram desde a maiêutica até a educação natural, desde o ‘mestre interior’ agostiniano até a
‘intuição’ de Pestalozzi, desde a ‘purgação’ de Sócrates até a educação negativa-
rousseauniana.” Segundo o referido autor, existem muitas idéias que aparecem reiteradamente
em educação e que, a meu ver, têm se constituído ainda hoje em obstáculos epistemológicos
que dificultam o pensar dos processos educativos mais congruentes com a realidade. São eles:
- O idealismo e a metafísica que, quase que de maneira absoluta, têm dominado as
análises e práticas educativas. O fundamento de tal habitus é a dissociação histórica que se
constituiu no Ocidente entre trabalho manual e intelectual no contexto da qual se originou a
escola, locus onde se vivencia e reproduz histórica, cotidiana e constantemente a cisão entre o
fazer e o pensar.
- A identificação restritiva entre educação e escola ou a redução dos processos
educativos e de aprendizagem à escola formal fomenta o sentimento de exclusivismo

se que o autor propõe uma educação para a vida democrática, que consiste em que “[...] cada ‘cidadão’ possa se
tornar ‘governante’ e que a sociedade o coloque, ainda que ‘abstratamente’, nas condições gerais de poder fazê-
lo: a democracia política tende a fazer coincidir governantes e governados (no sentido de governo com o
consentimento dos governados), assegurando a cada governado a aprendizagem gratuita das capacidades e da
preparação técnica geral necessárias ao fim de governar.”
48
Para um maior detalhamento sobre o posicionamento dos pesquisadores, suas escolas e teses centrais, sugiro a
leitura do livro de Fernández Enguita (1993) intitulado: Trabalho, Escola e Ideologia: Marx e a crítica da
educação, principalmente os Capítulos I, II, V e VII.
Capítulo 1 42
Ângela Massumi Katuta

meritocrático e a exclusão e desvalorização social dos que a ela não têm acesso, expressão de
uma concepção elitista e, por isso, altamente marginalizadora dos sujeitos. Este entendimento
tem assento freqüente na educação formal de sociedades divididas em classes. Ao negar o
caráter amplo da educação como processo inerente à formação humana ou que abrange a vida
do ser humano, abarcando todas as suas atividades, a identificação citada desvaloriza tanto
uma vasta gama de processos constitutivos dos seres humanos quanto os sujeitos sociais que
não atuam como profissionais da educação. Oculta-se dessa maneira, a dimensão educativa de
toda e qualquer relação humana.
- O pensamento pedagógico tende a ser a-histórico, posicionamento que alimenta a
crença na educação como um fenômeno natural, descontextualizado espaço-temporalmente.
Daí a defesa, em vários momentos históricos, de uma educação ajustada à “verdadeira
natureza humana” 49 , proclamando:
[...] como exigências naturais, humanas ou de toda vida em sociedades, as
exigências de uma sociedade particular, em um tempo concreto. Não em vão,
outorga-se reiteradamente a primazia, explícita ou implicitamente, à formação dos
costumes não à instrução propriamente dita. (FERNÁNDEZ ENGUITA,
1993, p. 29).
A primazia e o foco na formação dos costumes revelam a face oculta da escola,
enquanto instituição que auxilia na constituição-consolidação de habitus voltados à
(re)produção do status quo ou do modo capitalista de produção.
- O imanentismo, reverso da educação natural, constitui-se em outra constante no
pensamento pedagógico. O caráter de inculcação, imposição e socialização da educação
escolar se oculta por detrás da crença de que o que os alunos se tornam é o que já existe
dentro deles. O trabalho do professor consistiria, na perspectiva desta crença, em permitir que
as potencialidades discentes se desenvolvam livremente. Naturalizam-se, dessa maneira, os
fracassos e sucessos dos processos educativos, atribuindo-se o mérito dos mesmos ao
indivíduo e suas qualidades individuais. Escamoteia-se assim, todo um conjunto de condições
materiais, disputas ideológicas e simbólicas que influenciam na educação.

49
Concebida equivocadamente como universal e homogênea, portadora de determinadas características a priori.
Esta concepção está relacionada ao que Moreira (1993, p. 127) denomina de cultura da repetição que o
capitalismo “[...] herdou de toda uma evolução histórica que vem desde o escravismo antigo. A cultura da
repetição faz parte da velha tradição cultural da metafísica, segundo a qual há algo no mundo que é sempre
universal, sempre constante, na composição da ossatura do mundo. Algo que está onipresente em cada detalhe do
diverso, agindo para padronizá-la sob um arcabouço eterno, a exemplo da relação do uno e do múltiplo dos
criadores da filosofia. Este é o fundamento de muitas teorias pedagógicas que imputam aos seres humanos uma
série de características universais e que, ao assim agirem, apontam para a crença na eterna repetição dos
processos de aquisição do conhecimento e para a possibilidade do estabelecimento de leis ou regras gerais de
ensino que conduzirão a um correto processo de ensino e aprendizagem.”
Capítulo 1 43
Ângela Massumi Katuta

- Ocorre reiteradamente na educação formal um discurso classista disfarçado de


universalista. Existem, segundo Fernández Enguita (1993, p. 37), duas formas básicas de
classismo: a exclusão literal das classes populares da escola 50 e a diferenciação do aparelho
escolar. “[...] em geral, todo acesso de novas camadas sociais à escola ou à educação se viu
acompanhado mais ou menos automaticamente pela diferenciação desta.” Poucos ou nenhum
discurso universalista remete às condições materiais necessárias para sua realização; via de
regra, neles impera o laisser faire: “[...] as pessoas têm o direito de buscar as coisas por sua
conta, se é que podem.”, dizia Herbert Spencer, justificando a privação da educação da massa
da população a partir do pressuposto de sua própria incompetência natural.
- Em inúmeros discursos 51 sobre a educação, existe a defesa de que a mesma é um
instrumento de poder político da minoria sobre a maioria. Nesta perspectiva, é legitimado o
acesso a um saber diferenciado, de melhor qualidade, apenas a algumas classes sociais,
relegando-se a um segundo plano a educação das massas. Essa ação se constitui em uma das
formas de barrar o acesso das classes dominadas aos conhecimentos socialmente produzidos.
- A exclusão ou postergação a que a mulher se viu submetida é uma outra constante
em educação. “[...] Esse não é um traço distintivo da história da educação ou do pensamento
educacional, mas de toda a história e do pensamento de todos os tempos e em todas as áreas.”
(FERNÁNDEZ ENGUITA, 1993, p. 41). Segundo o mesmo autor, poder-se-ia dizer que,
quando se atribuiu à mulher um status educacional, este era superior ao seu status social. A
postergação ou exclusão feminina expressa o quanto ainda hoje, em muitos países, a educação
é vista muito mais como instrumento de realização de poder do que de estabelecimento de
relações humanas mais igualitárias.
As constantes arroladas têm se realizado ainda hoje; se constituem de fato em idéias
resgatadas, reiteradas e reproduzidas hegemonicamente ao longo de formações sócio-
históricas, ancoradas em profundas desigualdades sociais que apontam para projetos
societários não democráticos. Obviamente que, no contexto do modo de produção capitalista,
essas constantes têm nuances próprias e as mais diversas em função das características
específicas que acabam se delineando entre o sistema produtivo e os processos educativos.
Esta é a diferença fundamental entre a educação moderna de massas que auxilia, juntamente

50
Que ocorria antes da Revolução Industrial que auxiliou na consolidação da educação das massas do século
XVIII em diante.
51
Desde os gregos, existem registros de que muitos pensadores defendiam uma educação para as elites e outra
para os dominados. No contexto da educação moderna ou das idéias que a influenciaram podem ser citados:
Montaigne, Locke, Lutero, Voltaire, Rousseau, Kant, Herbert Spencer entre outros.
Capítulo 1 44
Ângela Massumi Katuta

com outras instituições 52 , a produzir o trabalhador coletivo e a que se realizava anteriormente,


voltada apenas para a formação das elites.

52
A escola tem existência histórica anterior ao modo de produção capitalista e, no contexto de tecedura das
relações capitalistas, foi pelo mesmo apropriada, juntamente com outras instituições que sobreviveram às
profundas transformações sociais. Contudo, não é a única instituição a auxiliar na produção do trabalhador
coletivo; outras também o fazem. Atualmente, com o desenvolvimento acelerado dos meios de comunicação de
massas e das redes virtuais, está ocorrendo uma substituição parcial das funções anteriormente exercidas pela
escola, enquanto principal fornecedora de informações à população em fase de escolarização. No entanto, a
instituição escolar exerce uma função outra, muitas vezes não completamente reconhecida, que é a de ser uma
das únicas instituições socializadoras em que os escolares passam uma quantidade razoável de horas por dia. O
impacto dessa socialização tem sido significativo na vida das pessoas. Esta é a outra face da escola que deve ser
desvelada.
Capítulo 1 45
Ângela Massumi Katuta

1.2. Sobre a institucionalização da escola moderna e suas relações


com o processo produtivo: a aprendizagem da repetição por repetição
“A escola também cumpre uma função mediadora no processo de acumulação capitalista, mediante
sua ineficiência, sua desqualificação. Ou seja, sua improdutividade, dentro das relações
capitalistas de produção, torna-se produtiva. Na medida em que a escola é desqualificada para a
classe dominada, para os filhos dos trabalhadores, ela cumpre, ao mesmo tempo, uma dupla função
na reprodução das relações capitalistas de produção: justifica a situação de explorados e, ao
impedir o acesso ao saber elaborado, limita a classe trabalhadora na sua luta contra o capital. A
escola serve ao capital tanto por negar o acesso ao saber elaborado e historicamente acumulado,
quanto por negar o saber social produzido coletivamente pela classe trabalhadora no trabalho e
na vida.” (FRIGOTTO, 1993, p. 224).

Para evidenciar as relações da escola moderna com o processo produtivo, realcei três
aspectos interdeterminantes:
- O processo histórico da reinvenção da escola, a partir de formas históricas anteriores
que serviam às classes sociais hegemônicas;
- Os objetivos, conteúdos pedagógicos e metodologias de ensino, assumidos por
algumas instituições escolares cujos currículos, em consonância com o projeto
societário das classes hegemônicas, estavam explicitamente voltados à disseminação
do habitus burguês, cuja ênfase do processo cognitivo residia na aprendizagem da
repetição;
- A lenta transformação da territorialidade da escola, diretamente ligada ao processo
produtivo.
É por meio da apreensão destes elementos que se pode verificar que a escola foi
institucionalizada por ser um dos instrumentos de viabilização do projeto societário das
classes hegemônicas imposto aos dominados em função de suas relações de interdependência
com o processo produtivo. A escola moderna passa à existência a partir da reinvenção de
modelos vigentes; contudo, sua configuração em cada local terá especificidades, dependendo
das tensões sociais existentes em cada sociedade onde foi institucionalizada pelo Estado-
nação, como demonstrarei nas linhas que seguem.
Iniciemos pelo primeiro aspecto relativo ao processo histórico, no qual observaremos a
relação entre a decadência do feudalismo e o engendramento do capitalismo na sua face
mercantil, vista a partir dos processos que fizeram com que a escola moderna passasse à
existência.
Capítulo 1 46
Ângela Massumi Katuta

A institucionalização da escola nas sociedades ocidentais é muito anterior ao modo de


produção capitalista, remontando ao período da Antigüidade 53 . Esta escola, constituída em
épocas de extrema hierarquização em que quase inexistiam processos de mobilidade social,
estava voltada para a formação das elites e tinha como função precípua a reprodução do status
quo, haja vista que apenas os grupos hegemônicos a ela tinha acesso. Contudo, é na baixa
Idade Média européia que as condições materiais de produção e existência humanas
lentamente se modificam e, paralelamente ao surgimento e incremento da economia mercantil
nas cidades européias − inicialmente as do centro e do norte, respectivamente as áreas que
correspondem atualmente a Itália, Países Baixos e Alemanha, onde o comércio nunca deixou
de existir −, e sua organização em comunas, verifica-se o aparecimento dos primeiros mestres
livres, possivelmente um dos organizadores das primeiras universidades 54 . É neste momento
em que ocorrerá a mudança da espacialidade da educação formal, pois, anteriormente restrita
aos territórios eclesiásticos, lentamente transbordará para fora deles, assim como o poder
político, e atingirá uma parcela maior da população. Manacorda (2002, p. 145) descreve os
mestres livres da seguinte forma:
[...] sendo clérigos ou leigos, ensinam também aos leigos. Munidos da licentia
docendo concedida pelo magischola 55 , ensinando fora das escolas episcopais e
freqüentemente, para evitar concorrência, fora dos muros da cidade 56 (extra muros
civitatis), eles satisfazem as exigências culturais das novas classes sociais. [...] Estes
mestres livres ensinavam especialmente as artes liberais do trívio 57 e quadrívio 58 ;
mas aqui e ali aparecem escolas livres de outras disciplinas [...].
Verifica-se por meio da afirmação do autor que na baixa Idade Média se encontram as
primeiras instituições assemelhadas à escola moderna e a seus mestres que, de acordo com
Luzuriaga (1984, p. 87), surgem com a nova classe social burguesa ou cidadã, assim
denominada por ser formada pelos habitantes dos burgos, ou cidades. Essa educação,

53
Apesar de existirem escolas em diversos momentos históricos, é importante salientar que entre as instituições
que atualmente conhecemos e aquelas do medievo e da Antigüidade existem muito mais diferenças do que
pontos comuns. Considerando uma tal diversidade, faz-se necessário desconfiar de abordagens lineares com
tendência à homogeneização como, via de regra, se encontra nas diferentes histórias da educação ocidental.
54
Sobre esse assunto ver Luzuriaga (1984), Manacorda (2002) e outros autores que tratam da história da
Educação, da Escola e das Universidades no medievo que, com freqüência, fazem referência ao surgimento dos
primeiros mestres livres, processo este relacionado a uma crescente demanda burguesa por escolas, cuja ênfase
na profissionalização e domínio de artes não verbalistas lentamente as tornou laicas.
55
Scholasticus ou magischola foi um cargo cuja autoridade cresceu com o passar do tempo. Na Igreja assumiu
posições mais elevadas, transmitindo a função de ensinar a um seu substituto, o proscholus. O magischola
vendia a autorização necessária para o exercício do ensinar, denominada licentia docendi, daí a cobrança pelo
ensino por parte de quem a comprava. Sobre esse assunto ver Manacorda (2002).
56
Porque no intra-muros predominava a educação organizada pela Igreja.
57
Trívio ou Trivium compõe as três artes liberais elementares nas Universidades Medievais: gramática, retórica e
lógica. As artes liberais no medievo referiam-se ao conjunto das “artes” que compunham o curso completo dos
estudos nas universidades: trivium e quadrivium.
58
Quadrívio ou Quadrivium refere-se aos quatro estudos liberais − por ordem: aritmética, música, geometria e
astronomia − que se seguiam ao trivium.
Capítulo 1 47
Ângela Massumi Katuta

conhecida inicialmente como gremial59 , posteriormente, com o maior desenvolvimento das


cidades e da hegemonia burguesa, passou a ser denominada municipal. Suas escolas “[...]
Tinham caráter essencialmente prático, mas algumas ensinaram também matérias de caráter
humanístico, como literatura, geografia e história. 60 ” (LUZURIAGA, 1984, p. 88).
Com o desenvolvimento da economia e sociedade mercantis, foram se formando as
escolas municipais, principalmente no centro e norte da Europa, que, aos poucos, e
inicialmente sob os protestos da Igreja católica, se tornaram independentes das escolas
eclesiásticas 61 . A educação gremial e municipal, precursoras da educação pública, tinha um
caráter profissional, embora abarcasse estudos gerais de leitura, escrita, cálculo e doutrina
cristã. Verifica-se que a instituição escolar, no contexto das cidades e sociedades de economia

59
Assim denominada por ser formada a partir das corporações de ofício ou grêmios.
60
Neste ponto faz-se necessário um adendo à idéia do autor na medida em que também os discursos literários,
geográficos e históricos que passaram à versão hegemônica da história têm seu caráter prático ou razões práticas,
na medida em que auxiliaram na constituição do habitus burguês. A contraposição entre disciplinas de caráter
prático e humanístico insere uma falsa oposição no currículo escolar na medida em que todas elas estavam
fundadas em um mesmo projeto societário voltado à legitimação e perpetuação das hegemonias.
61
As escolas eclesiásticas se desenvolveram sobretudo a partir do século XI e formavam clérigos. Seu ensino se
compunha do trivium, do quadrivium e dos Evangelhos ou teologia. Segundo Eby (1976, p. 17-20), pouco antes
da Reforma no século XVI, havia predominantemente, nas escolas européias, três graus escolares: as escolas
vernáculas elementares, escolas de gramática latina e as universidades. Contudo, havia muitas espécies de
escolas diferentes voltadas para a educação masculina. Tais instituições eram extremamente elitizadas; isso
porque “[...] Exatamente que escola um menino iria freqüentar, se é que viesse a fazê-lo, dependeria das
circunstâncias de nascimento, parentesco, classe social, inteligência, país natal, e de sua aspiração na vida.”
(EBY, 1976, p. 17). Para exemplificar a variedade de escolas que marcam esse período, podem ser citadas
especificamente aquelas existentes no norte da Europa: escolas monásticas ou claustrais, encontradas em todo o
mundo cristão; responsáveis pela formação de monges, essas instituições eram as mais ricas e proporcionavam
“[...] a seus internos um modo de vida mais calmo e seguro que o encontrado em qualquer carreira secular.”
(EBY, 1976, p. 17); escolas catedralícias: localizadas em centros populosos, originalmente formavam sacerdotes,
mas passaram a preparar pessoas para ocupar posições elevadas na Igreja, no Estado ou nas atividades
comerciais; escolas colegiadas da Igreja: escola não catedralícia que funcionava em uma Igreja da paróquia,
ganhou existência com o crescimento e surgimento das cidades, sua forma de instrução e organização era a
mesma das escolas catedralícias; escolas das capelas: sua organização e instrução eram semelhantes às escolas
catedralícias e colegiadas, seus mestres eram os padres, cujo sustento era provido por doações usadas para a
celebração das missas pelas almas dos doadores e para a instrução dos meninos pobres; escolas de canto: criadas
depois do século VI quando Gregório, o Grande, introduziu o canto gregoriano. Essas escolas foram fundadas
para atender os serviços da Igreja que necessitavam de um coro, composto de homens e meninos. Nelas se
ensinavam música e latim e, às vezes, elementos de gramática. Escolas burguesas: escolas de gramática latina
dos burgos e escolas vernáculas sob a direção das cidades. Segundo Eby (1976, p. 18) as instituições
educacionais mais importantes dos séculos XV e XVI foram aquelas mantidas no noroeste da Europa pelas
cidades hanseáticas. Essas escolas foram fundadas sob o veemente protesto da Igreja, e sob os auspícios da
municipalidade burguesa. Nos Países Baixos houve pouca oposição ao estabelecimento dessas escolas, pelo fato
de que neles a Igreja exercia menor poder e a nobreza era a elas favorável, especialmente quando as mesmas
auxiliavam nas atividades comerciais. Daí seu caráter predominantemente prático, em oposição às escolas latinas
predominantemente “culturais”. Existiam ainda as escolas de hospitais, de caridade e de doação e aquelas que
funcionavam em orfanatos, sustentadas com fundos doados pelos ricos a fim de alcançarem a salvação da alma.
Nas instituições citadas a educação era destinada à instrução de crianças pobres. As Universidades eram as mais
importantes instituições, representantes dos interesses intelectuais e do poder da cultura da época: “[...] a seus
graduados era conferido o poder de praticar a arte de instrução por toda a cristandade.” Eby (1976, p. 19). Com
base no exposto, pode-se afirmar que o período que antecede às Revoluções Burguesas, do ponto de vista da
educação formal, é caracterizado pela diversidade. Com as referidas Revoluções, a constituição do Estado
Moderno e a regulação da escola por esse último, ocorrerá um movimento que tendeu a homogeneizar essas
instituições.
Capítulo 1 48
Ângela Massumi Katuta

mercantilista, foi modificada ou reinventada em seus objetivos pedagógicos, em seus


conteúdos e em sua espacialidade. O aparecimento das escolas extra muros civitatis expressa
o transbordamento, espraiamento e reinvenção de uma instituição-chave para as classes em
processo de hegemonização; daí o lento processo de laicização pelo qual passou uma parcela
significativa desta instituição.
A transformação dos discursos ou da ênfase nos processos educativos, a mudança
territorial foi um elemento essencial, o que não significa dizer que se rompeu com a
metafísica das sociedades absolutistas; ao contrário, esta é reinventada no contexto da
transformação do modo de produção em curso. Pode-se afirmar que a mudança da
territorialidade das escolas materializa a lenta ruptura entre o pensamento eclesiástico e o
laico, constituído e disseminado pela burguesia em processo de hegemonização. Muda a
territorialidade da instituição escolar porque o modo de produção se transforma, requerendo
outras racionalidades hegemônicas, cuja reprodução necessariamente deve ocorrer em escala
ampliada. A escola transforma-se territorialmente, quantitativa e qualitativamente. A
racionalidade que propõe já não é mais aquela voltada para a cidade de Deus, mas para a dos
homens, especificamente a de uma classe social, qual seja, a burguesia.
Um movimento quase paralelo ao mercantilismo, intimamente a ele ligado e
importante na disseminação das escolas em boa parte do território europeu, foi a Reforma
Protestante. Muitos autores, dentre eles mais enfaticamente Eby (1976), salientam o impacto
da Reforma no aumento quantitativo de escolas, principalmente no norte da Europa. O foco
central de tais escolas, como nas católicas, estava ligado à religiosidade. Contudo, o referido
autor defende a tese de que as instituições protestantes eram mais democráticas que suas
correlatas católicas, principalmente antes da reforma católica, pois além de terem maior peso
quantitativo, muitas permitiram o acesso da maior parte da população, inclusive das mulheres,
historicamente excluídas dos processos educativos formais. Nas escolas protestantes a ênfase
na aprendizagem das letras aos poucos passou do latim para o vernáculo, expressão da lenta
laicização e reivenção da instituição escolar, embora muitas delas, principalmente as escolas
clássicas, em estudos posteriores, não abrissem mão do latim, grego e muitas vezes do
hebraico.
Do ponto de vista da disseminação quantitativa das escolas e de sua secularização, o
mercantilismo e a Reforma Protestante foram dois movimentos importantes. A partir dos
mesmos se tem o espraiamento da territorialidade da escola moderna, denominada à época
escola comum, em contraposição com as clássicas ou humanistas, destinadas às elites, visando
à formação do gentil-homem por meio do resgate da tradição clássica, principalmente das
Capítulo 1 49
Ângela Massumi Katuta

idéias de Sócrates, Platão e Aristóteles. Na última formação citada, a distinção social era um
objetivo pedagógico explicitamente assumido e estava fundado na defesa da crença da
legitimidade e necessidade da hierarquização social para o adequado funcionamento do
“organismo social”.
Pode-se afirmar de uma maneira geral que, do ponto de vista territorial, mercantilismo
e escola laica ou laicização da escola e de seu discurso constituem-se em formações inerentes
a um novo conjunto de relações sociais engendrado pela burguesia européia em processo de
ascensão social, econômica, política e cultural. Os objetivos e conteúdos pedagógicos das
escolas modificam-se lentamente; aos poucos desaparecem aqueles ligados à educação
medieval na qual a religiosidade e o dogmatismo tinham centralidade 62 , ganhando espaço os
ligados ao desenvolvimento e disseminação do habitus burguês 63 .
Para Manacorda (2002, p. 169), “Os mestres livres são protagonistas da nova escola do
terceiro Estado: com eles tanto o conteúdo do ensino como o que podemos chamar de sua
situação jurídica e social vão mudando.” De minha parte acrescentaria que tais sujeitos
passaram a ter existência social na medida em que suas formas de ensino e atividades
atendiam às demandas tanto da classe burguesa, em processo de hegemonização, quanto da
aristocracia que estava a constituir o humanismo. Acrescentem-se ainda as transformações na
situação jurídica e social da escola, a alteração de sua territorialidade.
Por atenderem às demandas das classes sociais hegemônicas e, dessa maneira,
lentamente conquistarem relevância social, os mestres livres são considerados por muitos
historiadores da educação como os protagonistas das transformações dos objetivos e
conteúdos de ensino e um dos grupos sociais responsáveis pela criação da escola laica.
Contudo, não podemos nos esquecer da centralidade das demandas colocadas historicamente
por classes sociais que, em seu processo de hegemonização, fazem vingar, recriam ou
constroem a legitimidade de determinadas atividades e suas formas de realização. Os sujeitos
somente ganham relevância e sobrevivem em uma formação social, à medida que suas

62
Em decorrência da valorização da religiosidade e do dogmatismo, segundo Luzuriaga (1984, p. 78-79), havia
um conseqüente desprezo da educação para a vida terrena, com predomínio do ensino de matérias abstratas e
literárias, descuidando-se daquelas à época consideradas realistas e científicas; acentuava-se assim o ascetismo
por meio dos métodos de ensino verbalistas e mnemônicos que desvalorizavam a atividade, a liberdade de
indagar e ensinar. O fundamento de tais práticas educativas residia na crença de que o conhecimento era
revelado por Deus; daí a importância da linguagem e a preocupação com uma correta interpretação da palavra
divina, revelada nos textos sagrados por meio da exegese.
63
Para mais detalhes sobre a constituição da educação moderna, principalmente em seu período inicial, ver o
livro de Eby (1976), que o aborda com maior detalhe. O que se verifica na obra do autor é que não há ruptura dos
sujeitos sociais com a religiosidade; o que ocorre, de fato, é uma modificação no foco central da educação
formal, que abandona a religiosidade e o dogmatismo em favor da aprendizagem de saberes necessários à
burguesia em ascensão, ou seja, aqueles mais ligados à prática do comércio, à constituição de habitus burgueses
e à diferenciação social.
Capítulo 1 50
Ângela Massumi Katuta

atividades revelam-se importantes a um dado modo hegemônico de produção, por isso,


desaparecem inúmeras atividades e surgem ou reinventam-se outras necessárias a um
determinado processo civilizador.
É no Renascimento, aproximadamente no século XV, que, efetivamente, se pode falar
em educação e escolas modernas, expressões da hegemonia da aristocracia e da burguesia no
contexto do processo civilizador 64 . Já neste período, pode-se verificar a constituição de
diferentes escolas destinadas a atenderem demandas sociais as mais diversas, o que não
significa que se possa falar de uma efetiva democratização dessas instituições, pois, em sua
grande maioria, estavam voltadas à (re)produção das relações sociais sob a égide do modo de
produção capitalista. De acordo com Manacorda (2002, p. 182), ao lado das escolas dos
profissionais adultos, que organizavam o treinamento em geral de adolescentes em sua
profissão, temos a constituição de uma escola aristocrática, humanista e desinteressada, do
“homem nascido nobre e livre” e, ao lado destas ou a meio caminho entre uma e outra, temos
uma escola que combinava formação profissional e cultura desinteressada, voltada à formação
da elite emergente.
A título de ilustração da mudança radical no que se refere aos objetivos e conteúdos
pedagógicos da(s) nova(s) escola(s) em relação àquelas do medievo, as últimas
comparativamente mais homogêneas porque assim o era a sociedade, vale a pena resgatar
Pacioli (apud CROSBY, 1999, p. 206-207) que afirma que, por volta de 1300 a 1600:
[...] os estudantes italianos burgueses, que freqüentavam não as escolas ou
universidades das catedrais, mas as escolas do abacco (poderíamos chamá-las de
escolas de comércio para mercadores e seus ajudantes) afiavam suas habilidades
matemáticas em problemas 65 [...].
Entre o final do medievo e início da renascença na Europa, principalmente em sua área
central e setentrional, apesar da coexistência das escolas eclesiásticas e laicas, o que vemos
em um momento posterior no contexto da intensificação dos processos de urbanização
inicialmente fundados no comércio que expressa a hegemonia burguesa, é uma rápida
mudança nos papéis a serem exercidos pela escola e, obviamente, dos conhecimentos nela
trabalhados. Veja a seguir o relato de Manacorda (2002, p. 170-171) que nos permite
vislumbrar tal fato, com um certo grau de detalhamento:

64
Sobre as relações entre a aristocracia e burguesia no contexto da formação dos Estados aristocráticos e
nacionais na França e Alemanha, ver a obra em dois volumes intitulada O processo civilizador de Norbert Elias
(1993, 1994a).
65
No livro de Crosby (1999, p. 207), em parágrafos subseqüentes ao transcrito, verifica-se que já entre 1300 e
1600 a educação dos mercadores era feita a partir de estratégias de resolução de problemas, metodologia esta
atualmente disseminada como inovação pedagógica em propostas veiculadas por pedagogos europeus que sequer
remetem à historicidade da referida prática, expressão do idealismo inerente a uma boa parte da produção
pedagógica da atualidade.
Capítulo 1 51
Ângela Massumi Katuta

Aqui também a preparação escolástica é feita em vista da profissão: a gramática ou


as letras de que se fala não são mais aquelas da Ars dictandi (‘os mercadores não
procuram o verborum ornatum − dizia Boncompagno de Signa, mestre de Ars
dictandi − porque quase todos se correspondem em vulgar’), e sim a
correspondência comercial; como também o ábaco ou rationes, isto é, os cálculos,
não têm nada a ver com o computus de Alexandre de Villadei e Bene de Signa, que
serviam para calcular o calendário litúrgico, nem com a aritmética, a primeira arte
do quadrívio, mas estes cálculos são exatamente a aritmética comercial, a
contabilidade. Era recente a introdução da numeração arábica e, precisamente na
Itália, Leonardo Fibonacci de Pisa dera origem à nova matemática através do seu
Líber Abaci (1202) e a sua Prática geométrica (1220).
Durante o Duzentos e o Quatrocentos pode-se afirmar que houve um deslocamento
dos interesses em relação ao saber sistematizado, da gramática e da teologia para o ábaco e a
“física natural”, conhecimentos esses que, ao longo do processo histórico nos diferentes
lugares constituir-se-ão como necessários, sendo a condição para a reprodução e domínio das
novas classes produtoras que, aos poucos, se uniram em corporações de artes e ofícios,
fundando e legitimando suas próprias instituições e territorialidades, dominando as cidades e
tornando-as livres do domínio da aristocracia e do clero.
As relações entre processo produtivo, estrutura econômico-social e processos
educativos tornam-se muito mais complexas à medida que o modo capitalista de produção se
desenvolve; assim, acabam por se estender, obviamente que de maneira diferenciada, não
apenas às elites como outrora, mas também à grande massa da população, condição para a
reprodução do capital.
Como o modo de produção capitalista não surge nem se apodera da sociedade da
noite para o dia, mas por meio de uma evolução lenta, progressiva e desigual, a
história da formação da força de trabalho como mercadoria é, em grande parte, a
história da adaptação ao capitalismo de múltiplas instituições herdadas de fases
anteriores da sociedade, dominadas por outras formas de produção.
(FERNÁNDEZ ENGUITA, 1993, p. 260).
O que se verifica, portanto, é uma lenta modificação ou reivenção das instituições
escolares existentes que, inicialmente, atendiam a fins políticos (formação de elites e da
burocracia), religiosos (formação de servos de Deus mais devotos e colaboradores) e militares
(formação de guerreiros habilidosos voltados à defesa da sociedade de corte), expressando,
dessa maneira, uma relação diferente com a economia: a de reprodução quer pela sua ausência
junto à massa da população, quer pela presença, junto às classes hegemônicas. Pode-se
afirmar que esta instituição estava predominantemente voltada às elites aristocráticas e
Capítulo 1 52
Ângela Massumi Katuta

burguesas, estas últimas em vias de perceberem a importância da escolarização 66 para o


processo de doutrinamento e disciplinarização das hordas expulsas dos campos 67 .
A título de exemplo de como as mudanças nas estruturas econômicas e políticas da
sociedade européia influenciaram na educação, e na arquitetura de pensamento ou na
racionalidade dos sujeitos sociais, vale a pena comentar as características da educação
cavalheiresca.
Durante o século XVI foram fundadas na França, Itália, Inglaterra e Alemanha
academias cavalheirescas responsáveis pela educação da aristocracia que, anteriormente ao
processo de intensificação da urbanização – desterritorialização-reterritorialização dos
camponeses –, era realizada no ambiente doméstico por tutores particulares. Estas instituições
foram organizadas tendo como fundamento a tese de que os príncipes e a nobreza
necessitavam de educação a fim de se tornarem governantes eficientes. Observe que neste
período já havia uma preocupação com a competência no exercício de funções e, sobretudo, o
entendimento de que a mesma poderia ser construída mediante processos educativos, o que
aponta para a incorporação, junto às elites aristocráticas, de um dos muitos valores e
compreensões engendrados pela burguesia em ascensão.
É importante salientar que a própria fundação das Academias cavaleirescas é
reveladora de que a lenta mudança que vinha ocorrendo na vida do cavaleiro desde o início da
Idade Média, já havia se processado. As forças que levaram à monopolização pelos reis do
poder de tributar, baixar leis e formar exércitos e que culminaram na constituição de
monarquias absolutas, às quais se refere Norbert Elias (1994a), já estavam em ação.
A fundação e, portanto, territorialização das Academias cavalheirescas expressou a
consolidação do poder da aristocracia de corte, pois tais instituições funcionaram como um
dos instrumentos de sustentação dos Estados absolutistas. Aos poucos, segundo o mesmo
autor, o monopólio privado dos reis transforma-se em um monopólio público onde força
militar e tributação 68 se tornam interdependentes. A educação das elites deixa de estar

66
Entenda-se esse termo como um processo mais amplo do que a mera aprendizagem de conteúdos escolares e
que envolve, sobretudo, a constituição, reprodução e disseminação territorial de habitus voltados a um processo
civilizador.
67
Sobre o processo de doutrinamento, enquadramento ou aprendizagem das relações de produção capitalistas,
ver Fernández Enguita (1993, p. 210), principalmente o capítulo VII, no qual o autor discorre sobre os múltiplos
processos de violência a que foram submetidas “[...] enormes massas de camponeses, antigos serventes, diaristas
e pequenos meeiros [...]”, homens, mulheres e crianças expulsos de suas terras sem outro pertence que sua
capacidade nua de trabalho. Ao contrário do que muitos pensam, a submissão das pessoas ao capital, ou seja, sua
disciplinarização às relações capitalistas de produção foi realizada com extrema violência.
68
Para Elias (1994a, p. 98) apenas quando surge este monopólio permanente da autoridade central e o aparelho
especializado em sua administração, é que esses domínios assumem o caráter de Estados. O autor descreve da
seguinte maneira o mecanismo de formação de monopólios: “[...] se numa grande unidade social − [...] − um
Capítulo 1 53
Ângela Massumi Katuta

territorializada no ambiente doméstico, rural por excelência, e passa a ser realizada em um


local público, nas cidades em processo de (re)urbanização. Muda a territorialidade da
educação formal das elites porque também se transforma a sociedade. A aristocracia
cavalheirosa, como a denomina Elias (1994a), está sendo substituída ou transmutada
lentamente pela aristocracia de corte.
Mudam as formas de vida, os modos de produção e de trabalho e, juntamente com
eles, os comportamentos, os olhares, as emoções, a estrutura de anseios e impulsos dos seres
humanos e, portanto, suas instituições e eles próprios. Afinal, indivíduo e sociedade, qual
Jano, não se constituem em realidades disjuntas: trata-se de uma unidade em permanente
tensão dialética. Em uma época em que, ao contrário da leitura, a escrita 69 não era valorizada,
as gravuras e desenhos eram profusamente elaborados, − dado que preenchiam fins
institucionais precisos porque sustentavam as atividades espirituais e intelectuais 70 −, e
constituíam-se em registros de memórias auxiliares no entendimento de uma época, exercício

grande número de unidades sociais menores que, através de sua interdependência, constituem a maior, são de
poder social aproximadamente igual e, portanto, capazes de competir livremente − não estando prejudicadas por
monopólios preexistentes − pelos meios do poder social, isto é, principalmente pelos meios de subsistência e
produção, é alta a probabilidade de que algumas sejam vitoriosas e outras derrotadas e de que, gradualmente,
como resultado, um número sempre menor de indivíduos controle um número sempre maior de oportunidades, e
unidades em número cada vez maior sejam eliminadas da competição, tornando-se, direta ou indiretamente,
dependentes de um número cada vez menor. A configuração humana capturada nesse movimento, por
conseguinte, aproximar-se-á, a menos que medidas compensatórias sejam tomadas, de um Estado em que todas
as oportunidades são controladas por uma única autoridade: um sistema de oportunidades abertas transforma-se
num de oportunidades fechadas.” (ELIAS, 1994a, p. 99).
69
Segundo Eby (1976, p. 207), até o final do medievo a leitura e a escrita, por mais estranho que hoje possa
parecer, eram artes consideradas separadas, tanto que eram ensinadas por diferentes mestres, em escolas
distintas, inclusive em sua territorialidade. As escolas de escrever (Schriftschulen) eram regidas pelos
professores particulares. A escrita ganha relevância durante o fim da Idade Média quando se tornou essencial à
orientação de negócios e comércio. Quando do surgimento da imprensa no século XV, expressão de uma
demanda colocada pelo modo de produção em curso, a escrita passa a ser vista com outros olhos. “[...] A
unificação do ensino da escrita com o ensino da leitura ocorreu muito mais tarde.”
70
Sobre esse assunto ver o livro de Michael Baxandall (1991, p. 49) intitulado O olhar renascente: pintura e
experiência social na Itália da Renascença, no qual o autor resgata um resumo, do fim do século XIII, elaborado
por Giovanni de Gênova, presente no Catholicon, um dicionário ainda em uso no Quattrocento que remete à
função das pinturas produzidas no século XV: “Sabeis que três razões têm presidido a instituição de imagens nas
igrejas. Em primeiro lugar, para a instrução das pessoas simples, pois são instruídas por elas como pelos livros.
Em segundo lugar, para que o mistério da encarnação e os exemplos dos santos pudessem melhor agir em nossa
memória, estando expostos diariamente aos nossos olhos. Em terceiro lugar, para suscitar sentimentos de
devoção, que são mais eficazmente despertados por meio de coisas vistas que de coisas ouvidas.” Nestas breves
linhas, observa-se a valorização do sentido do olhar e das imagens por este captada, própria da Renascença e
uma arguta compreensão da pintura como recurso instrutivo e de memória capaz de suscitar devoção de maneira
extremamente eficaz, em função da materialidade da imagem e a relação realista nutrida com a mesma,
obviamente que em um sentido renascente. Ao discutir as diferenças entre palavras e imagens Ginzburg (2001, p.
138) capta a especificidade desta última no mesmo sentido como o fez Giovanni de Gênova: “Uma palavra como
‘bodecervo’ pode receber predicado de não-existência; a imagem correspondente não. As imagens, quer
representem objetos existentes, inexistentes ou objeto nenhum, são sempre afirmativas. Para dizer Ceci n’est pas
une pipe [Isto não é um cachimbo], necessitamos de palavras [...]. As imagens são o que são.” Observa-se dessa
maneira, a positividade das imagens, em comparação com as palavras. Eis sua especificidade, mostrada por meio
do exemplo usado pelo historiador. Para negar uma imagem ou compreendê-la, para assim fazer avançar o
conhecimento, as palavras são necessárias.
Capítulo 1 54
Ângela Massumi Katuta

este habilmente realizado por Norbert Elias, ao longo de uma parte considerável de suas obras
que afirma:
[...] Além de uns poucos escritos da época, são as obras de escultores e pintores do
período que transmitem o que melhor distingue sua atmosfera ou, como poderíamos
dizer, seu caráter emocional, a maneira como difere do nosso, ainda que apenas
alguns desses trabalhos reflitam a vida do cavaleiro medieval em seu contexto real.
(ELIAS, 1994a, p. 203).
Ao interpretar algumas gravuras produzidas entre 1475 e 1480, reunidas em uma obra
intitulada Livro de imagens da Idade Média (Mittelalterliches Hausbuch), Elias (1994a, p.
203-204) descreve as relações existentes entre as transformações das formas de vida do
cavaleiro no período e os olhares, anseios, impulsos e sentimentos dos mesmos em relação à
sua espacialidade, recém transformada e expressa nas gravuras:
E o que é que vemos? Quase sempre um campo aberto, dificilmente algo que lembre
a cidade. Pequenas aldeias, campos plantados, árvores, prados, colinas, pequenos
trechos de rio e, com freqüência, o castelo. Mas nada há no desenho do estado de
espírito nostálgico, da atitude ‘sentimental’ em relação à ‘natureza’, que lentamente
se tornam perceptíveis não muito depois, à medida que os principais nobres têm que
abandonar, com freqüência sempre maior, a vida relativamente descontraída de suas
propriedades ancestrais e ficam cada vez mais presos à corte semi-urbana e na
dependência de reis ou príncipes. Esta é uma das mais importantes diferenças, no
tom emocional, transmitidas pelos desenhos. [...] A ‘natureza’, o campo aberto,
mostrada em primeiro lugar e acima de tudo apenas como fundo para as figuras
humanas, adquire um brilho nostálgico, à medida que aumenta o confinamento da
classe superior nas cidades e cortes e se torna mais perceptível a cisão entre vida
urbana e rural. Ou a natureza assume, tal como as figuras humanas que envolve nos
desenhos, um caráter sublime, representativo. De qualquer modo, há mudança na
seleção pelo sentimento, no que atrai o sentimento na representação da natureza e no
que é julgado desagradável ou penoso. E o mesmo se aplica às pessoas
representadas. Para o público da corte absoluta, grande parte do que realmente existe
no campo, na ‘natureza’, não mais se retrata. A colina é mostrada, mas não a forca
nela plantada, nem o cadáver pendurado. O campo é mostrado, mas não mais o
camponês esfarrapado tocando penosamente seus cavalos. Tudo o que é ‘comum’ e
‘vulgar’, da mesma forma que desaparece da linguagem de corte, desaparece
também dos quadros e desenhos destinados à aristocracia de corte.
Em outras palavras, verifica-se que o que realmente existe em termos de materialidade
não tem relevância quando se trata da produção estética e cultural desta época. Os pintores,
em sua maior parte sustentados pela sociedade de corte71 , passam a suprimir, em suas
pinturas, todos os objetos e imagens vulgares que causassem o sentimento de repugnância à
aristocracia da corte. Observa-se o recurso e valorização da abstração na pintura e a negação
dos dados sensíveis e sua materialidade em nome de uma realidade idealizada pela
aristocracia de corte, expediente este muito usado para ocultar e desconsiderar as contradições
em muitos momentos históricos 72 e, também, usado nas escolas dessas mesmas classes

71
O fenômeno do mecenato, relevante no que se refere à produção artística como um todo, foi abordado por
Baxandall (1991), Bourdieu (1996) e Elias (1993, 1994a).
72
Ginzburg (2001, p. 102) interpreta a proclamação do dogma da transubstanciação pela Igreja católica em 1215
– presença real, concreta, corpórea de Cristo na hóstia, superpresença –, como uma vitória extraordinária da
abstração, vejam a metafísica em ação no contexto do Medievo. Em outras palavras, pode-se afirmar que ocorreu
Capítulo 1 55
Ângela Massumi Katuta

sociais. O que se ensinava e o que se via em termos de produção estética, cultural e escolar,
como em qualquer momento histórico, passa pelo crivo das classes hegemônicas. As
territorialidades registradas nos desenhos passam a ser as idealizadas pela aristocracia.
Voltados para atender às demandas de seus financiadores, verificamos nos desenhos o uso do
recurso da abstração que se tornará muito comum e será aplicado em todas as produções
culturais, quando a burguesia se torna classe hegemônica.
Como mostra Elias (1994a), os desenhos vão perdendo a força vital do vivido 73 , na
perspectiva do cavaleiro medieval, o sentimentalismo inerente aos mesmos vai
desaparecendo, e mostrando ou apresentando, portanto, maior contenção e domínio das
emoções em relação às espacialidades, valores característicos das sociedades de corte a serem
apreendidos em suas escolas e por meio das imagens. A arte da classe alta passa a “[...]
expressar cada vez mais exclusivamente suas fantasias desiderativas e a levou a suprimir tudo
o que conflitasse com o padrão de uma crescente repugnância.” (ELIAS, 1994a, p. 208).
Observem a demanda por imagens idealistas feitas pelas classes hegemônicas, expressão do
desejo, da necessidade e vontade de submissão de tudo e de todos às suas vontades. Os
objetivos educacionais das escolas destas classes também expressam tais desejos e vontades; é
o que se verifica quando Eby (1976, p. 150) elenca os saberes ensinados nas academias
calhaveirescas:
[...] 1) treinar a etiqueta da Corte; 2) preparar para o serviço militar; 3) preparar para
o trabalho político administrativo. Em acréscimo à etiqueta da Corte, era ensinado
francês, poesia, dança, desenho, pintura e música. Como uma preparação para o
serviço militar, equitação, esgrima, jogo de bola, caça, atividades militares e cultura
física eram praticados. Era dada atenção, também, a muitos estudos realistas:
geografia, história, tecnologia (especialmente em relação a fortificações e guerra),
genealogia e heráldica. Grego e hebraico foram abandonados, e a quantidade de
latim foi diminuída. Após o desenvolvimento dos ginásios modernos, estas
academias deixaram de existir. No entanto, elas serviram aos objetivos do momento,
e auxiliaram na transição dos velhos ginásios clássicos para o tipo mais realista.

no período em questão a negação dos “[...] dados sensíveis em nome de uma realidade profunda e invisível.”
Não por acaso, até porque os processos civilizadores tanto do Medievo quanto do Renascimento apontavam para
o mesmo padrão de projeto societário – dominação de muitos por poucos –, fato semelhante pode ser verificado
no século XV em relação à pintura patrocinada pela aristocracia de corte. Por meio dessa figuração espacial,
ocultava-se a existência de determinados fenômenos e salientavam-se aspectos esteticamente valorizados pela
aristocracia. Na ciência moderna, também se verifica a abstração de muitos elementos: quando da proclamação
do dogma da matematização, assim, nesta mesma linha de raciocínio, desenvolve-se a crença de que o
verdadeiro conhecimento da natureza advém da abstração matemática, todo fenômeno que não puder ser
traduzido em números será irrelevante, portanto, não racionalizável. Este também será o terreno no qual a
cartografia e geografias hegemônicas irão florescer.
73
Indicador da disseminação e legitimação de uma única noção de espacialidade fundada na matemática, em
detrimento de outras que apontavam para noções de espaço e sentimentos sobre o mesmo próprios das classes
sociais hegemônicas.
Capítulo 1 56
Ângela Massumi Katuta

Os estudos denominados realistas, dentre eles os de geografia, muitas vezes eram


complementados por viagens 74 . Conhecer diferentes territórios in loco constituía-se em
elemento relevante ao futuro governante ou a seus subordinados. Verifica-se na formação
cavalheiresca brevemente esboçada a demanda por saberes mais realistas em detrimento do
verbalismo característico da formação clássica humanista e mesmo da eclesiástica.
Poder-se-ia afirmar, portanto, que, à medida que os territórios foram se unificando,
inicialmente sob a égide da aristocracia, saberes realistas sobre os territórios que auxiliavam
na (re)produção de determinadas espacialidades se faziam cada vez mais necessários. O
objetivo era conhecê-los, dominá-los e garantir, dessa maneira, a possibilidade de reprodução
e manutenção do poder. Eis a importância dos saberes geográficos enquanto instrumento ou
condição para a pilhagem e para o comércio. Pode-se afirmar também que é no contexto da
aristocracia e da burguesia em ascensão que a tecedura da educação realista se estabelece,
inicialmente, restrita às elites porque voltada a um outro processo civilizador, fundado no
modo de produção capitalista em sua face mercantil. Posteriormente, essa educação,
ligeiramente modificada visando atender à demanda por formação de mão-de-obra, se
legitima no currículo da escola moderna de massas. Ocorre neste processo, a recriação ou
reinvenção da escola a partir de formas anteriores; do nada, nada advém.
O que também se verifica quando da constituição das escolas cavalheirescas é uma
tendência de maior alienação ou distanciamento 75 , uma mudança de habitus sociais e,
portanto, de percepção e conhecimento à medida que se avança no sentido da constituição de
“[...] uma imagem mais realista e menos autocentrada 76 do universo físico, mas também pelo
avanço de um movimento antecedente na forma de pintar (freqüentemente caracterizado como
uma conversão para o modo perspectivo de pintar).“ (ELIAS, 1998a, p. 61). A concepção
moderna de natureza, enquanto um tipo de ordem matemática, caracterizada por leis
específicas, independentes e autônomas dos seres humanos, e as idéias de leis da natureza já

74
Os relatos de Eby (1976) sobre a educação no princípio da era moderna indicam que a realização de viagens
era uma atividade altamente apreciada pelos educadores da época. Ao escrever sobre o que Comenius pensava
acerca da mesma, creio que o autor sintetiza o entendimento comum aos educadores e educandos da época em
relação à realização de viagens: “[...] Comenius acreditava nas vantagens das viagens para fornecer informação
direta a respeito da natureza humana e instituições. Sentia que esta experiência deveria suceder a carreira
universitária, depois que os hábitos morais estivessem plenamente formados.” (EBY, 1976, p. 163). É importante
salientar que uma tal “atividade pedagógica”, somente fazia sentido em uma sociedade cuja produção da riqueza
dependia em grande parte da pilhagem, dos negócios e do comércio a serem estabelecidos entre os pontos mais
longínquos do mundo à época conhecido. Além disso, indicam que já à época de Comenius (1613 a
aproximadamente 1671), a educação escolar estava a privilegiar cada vez mais o conhecimento do real em uma
perspectiva laica.
75
Em um sentido eliasiano. Sobre esse assunto ver a obra do autor intitulada Envolvimento e Alienação (1998a).
76
Como era o universo do europeu medieval. Grifo da autora.
Capítulo 1 57
Ângela Massumi Katuta

se fazem presentes, ainda que embrionariamente, neste universo e no currículo das escolas
cavalheirescas.
Quando da constituição dos Estados nacionais modernos e instauração da Reforma
Protestante, no decorrer dos séculos XV e XVI, houve a disseminação de escolas pelo
território europeu e conseqüentemente a sua diferenciação mais contundente: escolas clássicas
ou de formação humanística para ricos e aristocratas, e de doutrinamento religioso e
disciplinar para os pobres. Independentemente dos grupos sociais ao qual atendia, as escolas
dessa época, ainda que em menor grau se comparadas ao medievo, enfatizavam a formação
religiosa, embora inserissem conhecimentos realísticos em seu currículo.
A título de exemplo de uma escola que reunia as características esboçadas, é
interessante citar o caso das escolas francesas de Port Royal, fundadas no século XVII, que
tiveram uma duração de apenas 20 anos e procuravam “[...] formar líderes cristãos sólidos que
deveriam ser capazes de empregar, na salvação das almas, todos os recursos da literatura,
ciência e eloqüência. O bem-estar moral e espiritual dos alunos era o objetivo supremo.”
(EBY, 1976, p. 190). Segundo o mesmo autor, a importância de Port Royal reside na melhoria
que efetuou no ensino das Línguas e da Lógica.
Fizeram do francês o meio de instrução nas escolas elementares e secundárias e
aplicaram os princípios cartesianos de pensamento na organização do currículo e nos
métodos. Menos de meio século após o fechamento das Pequenas Escolas, estas
reformas estavam amplamente corporificadas na prática educacional francesa.
(EBY, 1976, p. 190).
Era muito comum na época, principalmente junto aos pedagogos seguidores de
Descartes, a defesa de que as ciências deviam ser empregadas somente como um instrumento
para aperfeiçoar a razão. Desejavam desenvolver homens justos e sensatos, daí a busca da
clareza por meio da introdução de métodos inovadores mais adequados às características das
crianças. As metodologias cartesianas tinham como pressuposto o entendimento de que a
inteligência dependia dos sentidos, por isso, toda instrução apelava para os olhos, assim como
para os ouvidos. Daí o uso de gravuras no ensino, tal como faziam Ratichius 77 e Comenius 78 :

77
Segundo Eby (1976, p. 141 et seq.) Wolfgang Ratke (1571-1635), conhecido também como Ratichius, foi um
dos primeiros e mais influentes dos reformadores didáticos de sua época e exerceu grande influência sobre as
idéias de Comenius. Seus princípios de ensino foram colocados em prática nos sistemas escolares reformados do
Principado de Gotha, criticado posteriormente por Karl Marx em um escrito de 1875, intitulado Notas à Margem
ao Programa do Partido Operário Alemão, mais conhecido como Crítica ao Programa de Gotha. Os princípios
de Ratichius procuravam respeitar a “ordem natural” pela qual a mente da criança aprende; assim, reorganizou os
métodos e os currículos escolares de acordo com os seguintes princípios: 1) Tudo está em sua ordem; ou o curso
da natureza; 2) Somente uma coisa de cada vez; 3) Cada coisa deve ser freqüentemente repetida; 4) Tudo
primeiro na língua materna; 5) Tudo sem violência; 6) Nada deve ser aprendido de cor; 7) Mútua conformidade
de todas as coisas; 8) Primeiro a própria coisa, e depois a explicação da coisa; 9) Tudo por experiência e
investigação de partes ou Tudo através de indução e experimentação. Para um maior detalhamento consultar a
obra de Eby (1976). Observa-se o quanto as idéias pedagógicas de Ratke expressam a forma moderna de pensar
até hoje presente com muito vigor nas escolas. Não por acaso, pela sua eficácia na época − aprendizagem mais
Capítulo 1 58
Ângela Massumi Katuta

“Na Geografia eram usados mapas e gravuras das maiores cidades. Nicole recomendava o uso
de gravuras que representassem armas, vestimentas e máquinas dos antigos e os retratos de
reis e pessoas ilustres.“ (EBY, 1976, p. 192). Ainda hoje, no plano pedagógico, a relação que
se mantém com as imagens é a mesma que a propalada por Descartes, fato este que indica a
permanência, na escola, de uma relação realista com as mesmas.
Verifica-se, em uma mesma concepção pedagógica, o realismo renascentista e a razão
cartesiana, presentes tanto na concepção dos materiais quanto nas formas de uso dos desenhos
e mapas empregados no ensino básico. Opera-se com a imagem por substituição ao real, sem
nem ao menos ponderar que toda imagem do fenomênico implica opções, tanto no que se
refere à eleição de determinadas características como sendo as mais relevantes a serem
apresentadas, quanto no que diz respeito às formas e técnicas de apresentação da figuração do
objeto. As formas que tomaram as figurações espaciais por nós hoje conhecidas como mapas
e gravuras e o tipo de uso que delas se fazia indicam que as capacidades e hábitos visuais e
intelectuais renascentes estavam largamente disseminados à época, isso a tal ponto que, em
Port Royal, a concepção renascente de realidade 79 passa a ser o fundamento de uma parte
significativa das “disciplinas realistas”.

rápida e eficiente, principalmente das línguas −, o sistema de ensino prussiano que adotou as idéias de Ratke
serviu de modelo a outros países, obviamente que com modificações de acordo com as próprias características e
necessidades.
78
Komensky (1592-1670), como o nome era originalmente pronunciado ou, John Amos Comenius, foi um dos
grandes sistematizadores da educação moderna alinhada mais a um pensamento político igualitário. Tendo como
fundamento o cristianismo primitivo, sistematizou suas idéias pedagógicas em pleno absolutismo; por isso,
apenas a sua parte metodológica foi aproveitada pelos sistemas escolares aristocráticos. Seus livros texto, nos
quais estavam sistematizados seus princípios de método, atingiram extrema popularidade, suas recomendações
curriculares foram amplamente disseminadas para a educação das elites, contudo, o fundamento de seu método
pedagógico foi relegado ao esquecimento, como o foram todas e quaisquer idéias e projetos voltados para uma
educação voltada à eliminação da distinção entre classes. Seus princípios e métodos de instrução tinham como
fundamento uma teoria da vida mental e do desenvolvimento das crianças, eis alguns: o conhecimento se dá por
meio dos sentidos; a imaginação evolui da sensibilidade e é indispensável para o desenvolvimento posterior do
conhecimento e do ser espiritual da criança; nada deve ser memorizado sem ter sido antes completamente
discutido e claramente compreendido; escrita, figuras e repetição fixam impressões mais permanentemente na
memória e devem ser empregadas constantemente, assim, deve-se fazer uso de quadros-negros, diagramas e
meios similares; a razão, compreensão ou faculdade de julgamento emerge durante a adolescência, quando a
reflexão e o raciocínio são os desenvolvimentos nascentes; a vontade de aprender está diretamente ligada com as
emoções da criança, assim, bons métodos de instrução são os únicos meios necessários para incitar o desejo de
aprender; os desejos ou afeições influenciam a vontade e determinam o caráter; as crianças não são iguais, por
isso se faz necessária a adaptação dos métodos pedagógicos às diferenças individuais, deve-se adaptar a
instrução à compreensão da criança, deve-se aprender fazendo. Para um maior detalhamento das idéias de
Comenius ver Eby (1976). Note-se a atualidade destes preceitos pedagógicos produzidos entre os séculos XVI e
XVII, o que demonstra que, ainda hoje, os processos educativos são mais orientados pelo bom senso do que
pelos conhecimentos cientificamente produzidos, fato este que coloca em xeque a concepção tecnicista de
educação e a formação docente fundada nessa concepção.
79
Mais adiante abordarei com maior detalhe este assunto; contudo, não poderia deixar de fazer referência ao
mesmo em tão oportuna situação.
Capítulo 1 59
Ângela Massumi Katuta

A partir dos exemplos relatados, pode-se afirmar que tanto as Academias


cavalheirescas quanto Port Royal já expressam um certo movimento de laicização da escola,
processo este que ocorreu muito lentamente. Razão e religião não eram excludentes, pelo
contrário, eram co-responsáveis para o que se considerava à época como uma formação
humana sólida, fundada na metafísica.
É importante esclarecer que quando me refiro ao termo realismo renascentista, deve-se
ter em mente que o conceito renascente de realidade não é o mesmo que usamos em relação a
essa mesma palavra atualmente. Dessa forma, esclarece Norbert Elias:
Talvez seja característico do conceito renascentista de realidade, junto com o de
natureza, que ela fosse particularmente realçada, de preferência como a forma
idealizada de realidade que eles registravam em suas pinturas. O caminho do
desenvolvimento científico mostra seqüência similar. O realismo da descoberta
científica, na esfera da arte reduzido à busca de equilíbrio e harmonia, foi fortalecido
na ciência pela ênfase dada às inerentes regularidades e ordenação da natureza. A
mistura de realismo e idealismo de Galileu tem sido atribuída, algumas vezes, à
influência de Platão. Mas a idéia particular que culmina na teoria de Newton, de que
a natureza, como boa cidadã de um estado, obedece a leis, aponta para a mesma
tendência. [...] Assim, olhar a natureza primeiramente distanciando-se de seus
objetos, a fim de observá-los para seus próprios fins, ou, em outras palavras, adotar a
estratégia da alienação, de ‘reculer pour mieux sauter’ 80 , foi condição para seu
trabalho inovador tanto quanto o foi para os pioneiros da ciência. (ELIAS, 1998a,
p. 67).
É esta noção de realismo fundado nas noções de equilíbrio, harmonia, regularidade e
ordenação que vemos permear todas as produções da época, desde as científicas, passando
pelas políticas, artísticas e pedagógicas. As instituições também passam a assumir o realismo
renascente fundado na abstração. É o que se verifica quando do exame dos currículos das
escolas da época, que pode ser tomado como expressão da consolidação da lenta mudança da
cosmologia no período, imposta pela burguesia que, já no século XVII, inicia suas
insurreições contra a aristocracia.
É interessante notar que, enquanto expressão do desejo pela racionalidade, a noção de
realismo tende a se transformar espaço-temporalmente de acordo com a concepção de
representação objetiva do mundo, vigente em uma sociedade. Assim aconteceu com a pintura
renascentista, com a fotografia, com a literatura e os mapas:
[...] Uma obra aparece como ‘semelhante’ ou ‘realista’ quando as regras que regem
sua produção coincidem com a definição vigente da representação objetiva do
mundo, ou melhor, com o sistema de normas sociais de percepção insensivelmente
inculcadas através do convívio prolongado com representações produzidas segundo
as mesmas normas. (BOURDIEU, 1992, p. 292).
Uma obra considerada ou tomada como realista, em determinada época, não
necessariamente o seria em outra contextura espaço-temporal. A simples comparação de um

80
Distanciar ou recuar para melhor dominar ou tomar de assalto. Tradução da autora.
Capítulo 1 60
Ângela Massumi Katuta

mapa TO 81 , produzido no medievo, com um mapa digital confeccionado de acordo com as


atuais normas do que se entende como representação objetiva já é suficiente para podermos
compreender a transformação da noção de realismo em diferentes sociedades e momentos
históricos. A noção do que é real varia de acordo com o conjunto do sistema de normas
sociais de percepção construídas, produzidas e disseminadas espaço-temporalmente pelos
sujeitos sociais, por meio do convívio prolongado com obras produzidas de acordo com as
mesmas normas ou fundamentos.
Um exemplo didático, que demonstra claramente o lento movimento de
hegemonização da noção burguesa de realismo e, portanto, da cosmologia burguesa, no
contexto da escola, é o currículo do Oratório, composto por escolas francesas do século XVII,
instituídas inicialmente para melhorar a disciplina e instrução do clero e, posteriormente,
encarregada da formação de nobres e burgueses franceses. Verifica-se em seu currículo que o
encorajamento da curiosidade científica e da abstração por meio do estabelecimento de
estudos da Física, Química e Anatomia, em laboratórios, já está presente. O objetivo do
mesmo era “[...] integrar idéias liberais, refinamento, progresso científico e humanismo, com
a estrutura da religião.” (EBY, 1976, p.188). Nesta escola aprendia-se francês, usado desde os
primeiros quatro anos até o fim do curso nas aulas de história, considerada “[...] inovação na
educação francesa; a Geografia acompanhou a História e era ensinada pelo emprego de
mapas.” (EBY, 1976, p.187). Latim, italiano e espanhol eram ensinados para alguns;
gramática e retórica eram ensinadas com métodos realísticos e com o auxílio do vernáculo;
enfatizava-se a expressão oral em detrimento da escrita.
É importante observar, neste ponto, a significativa mudança curricular operada nas
escolas existentes já no século XVII, que apontava para um currículo diverso daquele que se
realizava nas escolas típicas da Idade Média. A disseminação do habitus inerente ao
pensamento moderno passa a conquistar cada vez mais centralidade na formação escolar; as
razões práticas subjacentes a esta transformação estão diretamente ligadas à mudança no
modo de produção e na política. Verifica-se a constituição de um orquestramento diferente
entre as instituições escolares, a política e o modo de produção capitalista. Por isso concordo
com Dobb (1977, p. 35-36), que afirma que o:
[...] Capitalismo é uma poderosa influência coordenadora. [...] Onde uma classe
nova, ligada a um nôvo modo de produção, se torna a dominante e expulsa os
representantes da antiga ordem econômica e social antes dominantes, a influência
dessa revolução política terá forçosamente de sentir-se em toda a área daquela
unidade política dentro da qual o poder foi transferido, e as conseqüências imediatas
devem neste caso ser aproximadamente simultâneas por tôda essa área. É essa

81
Ver a Figura 6, no Capítulo 2, item 2.3.
Capítulo 1 61
Ângela Massumi Katuta

mudança de política, e daí da direção em que sua influência se exerce, em nível


nacional, o que dá a momentos tais como a revolução inglesa do século XVII, ou
1789 na França, ou 1917 na Rússia, seu significado especial.
Quando da lenta tomada do poder econômico e político 82 pela burguesia desde o seu
surgimento no século X até o XVII na Europa, verifica-se em cada unidade política ou Estado
nacional transformações quase que simultâneas em sua área de abrangência, conforme as
revoluções burguesas se sucediam. É a partir do século XVII, no contexto das revoluções
científica, tecnológica 83 e burguesa, e principalmente no século XVIII, com a instituição da
manufatura, que os currículos escolares tendem a apontar, predominantemente, para uma
mesma direção:
- Auxiliar na reprodução do modo de produção capitalista mediante o cultivo de um
ensino dual que, dependendo das classes sociais às quais atende, ora auxilia na

82
Entenda-se também simbólico porque toda mudança no campo econômico e político implica, necessariamente
transformações simbólicas. Como escreveram Marx e Engels n’A Ideologia Alemã: as idéias da classe dominante
“[...] são as idéias dominantes de cada época; ou, dito de outra forma, a classe que exerce o poder material
dominante na sociedade é, ao mesmo tempo, seu poder espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição
os meios para a produção material dispõe com isso, ao mesmo tempo, dos meios para a produção espiritual, o
que faz com que se submetam a ela as idéias dos que carecem dos meios necessários para produzir
espiritualmente. As idéias dominantes não são outra coisa que a expressão ideal das relações materiais
dominantes, as mesmas relações materiais dominantes concebidas como idéias; portanto, as relações que fazem
de uma determinada classe a classe dominante são também as que conferem o papel dominante às suas idéias.”
(MARX e ENGELS, apud FERNÁNDEZ ENGUITA, 1993, p. 162).
83
Somente para citar algumas inovações científicas e tecnológicas: a publicação dos Principia − Os princípios
matemáticos de Filosofia natural −, por Newton em 1687, uso, pelo mesmo, do prisma a fim de decompor a luz,
demonstrando que a branca não era pura como acreditavam os escolásticos; demonstração das experiências com
os gases realizadas por Boyle em 1662 e por Amonstons em 1699; estabelecimento de relações entre as forças
aplicadas a um fluido e a pressão resultante por Pascal em 1648, que tornou possível a criação de bombas
hidráulicas; descoberta por Kepler em 1609 de que as órbitas dos planetas se realizavam sob a forma de elipse;
descoberta dos anéis de Júpiter por Galileu em 1610; publicação por Napier em 1614 da tábua de logaritmos, que
facilitou os cálculos aritméticos; criação por Oughtred em 1622, a partir da tábua de logaritmos, da tábua de
calcular, que facilitou as contas feitas por engenheiros e cientistas, substituída apenas no século XX quando da
criação das calculadoras científicas; criação da geometria analítica e dos gráficos cartesianos por Descartes em
1637, e a conseqüente demonstração de que qualquer figura geométrica poderia ser descrita por uma equação
algébrica e vice-versa; estabelecimento das bases do cálculo de probabilidades pelos matemáticos Fermat e
Pascal em 1654; criação por Wallis da idéia de números complexos, úteis aos cálculos da física e engenharia;
invenção de forma independente do cálculo diferencial e integral por volta de 1669 por Newton e Leibniz;
descoberta das células por Hooke em 1665, que usou o microscópio criado por volta de 1590; demonstração do
funcionamento da circulação sangüínea por Harvey em 1628; descoberta dos glóbulos vermelhos em 1658 por
Swammerdam; proposição de que a química se constituísse como ciência experimental por Boyle em 1661;
constituição da idéia de substância simples e abandono da antiga teoria aristotélica dos quatro elementos (água,
fogo, ar e terra) que defendia que tudo seria formado pela mistura dos mesmos; invenção do relógio de pêndulo
(maior precisão) por Huygens em 1656; criação da máquina de calcular a partir das idéias de Pascal, − que, em
1642, criou um engenho capaz de somar e subtrair −, e de Leibniz, que em 1693 criou um aparelho que
multiplicava e dividia. Verifica-se a partir desta breve lista que a racionalidade matemática e a tentativa de
domínio da natureza não humana compunham a tecedura do pensamento hegemônico do século XVII. Este é o
substrato que vai servir como fundamento para a elaboração dos saberes geográficos sistematizados também
presentes nos mapas.
Capítulo 1 62
Ângela Massumi Katuta

instrumentalização para o trabalho alienado 84 , ora na formação de elites políticas, econômicas


e culturais.
- Enfatizar e legitimar determinadas formas de percepção e de entendimento de mundo
e construir-reforçar alguns habitus fundamentais ao modo capitalista de produção,
principalmente a abstração fundada na metafísica.
Obviamente que, assim como o modo de produção capitalista 85 , cada rede de ensino
nos Estados nacionais vai ter características e especificidades próprias, de acordo também
com as tensões dialéticas que se estabelecem entre as diferentes classes sociais; contudo,
tendem a apontar basicamente para a direção ou processo civilizador descrito.
Foi no contexto da formação dos Estados nacionais modernos entre os séculos XV e
XVI, − formações políticas e territoriais reveladas imprescindíveis ao acúmulo e reprodução
de riquezas tanto no contexto do Feudalismo quanto no do Capitalismo −, que coube à escola
o papel de construir a idéia de nação, inicialmente junto às elites e, posteriormente, junto às
massas, pari passu, até chegar aos séculos XVIII e XIX, quando da organização dos grandes
sistemas nacionais de educação básica. Fernández Enguita (1989, p. 130) expressa da seguinte
maneira as novas demandas sociais voltadas à escola:
[...] os novos estados nacionais reuniram dentro de algumas fronteiras únicas, sob
um poder e algumas leis comuns e através de uma só língua, povos que pouco antes
não cessavam de guerrear entre si, com costumes, leis e línguas diferentes e bastante
alheios à idéia de unificação nacional. A tarefa era ideal para a escola e a ela foi
atribuída em primeiro lugar. (FERNÁNDEZ ENGUITA, 1989, p. 130).
A construção da idéia de nação e das nacionalidades, por meio da escolarização, teve e
ainda têm desdobramentos muito mais profundos do que a mera identificação de um conjunto
de sujeitos sociais com um território, a língua nele falada e a “sua” história e geografia,

84
Marx (1993, p. 164) afirma que “[...] o trabalho alienado 1) aliena a natureza do homem, 2) aliena o homem de
si mesmo, a sua função activa, a sua actividade vital, aliena igualmente o homem a respeito da espécie;
transforma a vida genérica em meio da vida individual. Em primeiro lugar aliena a vida genérica e a vida
individual; em seguida, muda esta última na sua abstracção em objectivo da primeira, portanto, na sua forma
abstracta e alienada.” O objetivo da vida individual passa a ser a manutenção da existência física, ou seja, a
primeira fica subsumida à realização da alienação; é nesta perspectiva que o elemento humano é reduzido a
animal. A vida genérica para Marx ou a capacidade de realização da atividade vital consciente é o que distingue
os seres humanos dos outros animais. O animal, diz o autor (MARX, 1993, p. 164), identifica-se imediatamente
com sua atividade vital, dela não se distingue, sendo a sua própria atividade. Em outros termos, é a própria
atividade vital do animal, determinada geneticamente, que o distingue dos outros animais. Os seres humanos
fazem da atividade vital o objeto de sua vontade e consciência, possuindo dessa maneira uma atividade vital
consciente; assim, ela não é como nos outros animais uma determinação biológica, com a qual eles
imediatamente coincidem. Por isso eles são seres genéricos, se realizam por meio de processos mediatizados. O
ser humano “[...] só é um ser consciente, quer dizer, a sua vida constitui para ele um objecto, porque é um ser
genérico. Unicamente por isso é que sua actividade surge como actividade livre.” (MARX, 1993, p. 164-165).
85
Tese defendida por Dobb (1977, p. 34-35) ao estudar o capitalismo: “[...] a história do Capitalismo e as etapas
de seu desenvolvimento não apresentam forçosamente as mesmas datas quanto às diferentes partes do país ou
indústrias diversas e, em certo sentido, estaríamos certos ao falar não de uma única história do Capitalismo, e da
forma geral apresentada por ela, mas de uma coleção de histórias do Capitalismo, tôdas com uma semelhança
geral de forma, mas cada qual separadamente datada no que diz respeito a suas etapas principais.”
Capítulo 1 63
Ângela Massumi Katuta

sobretudo quando este processo passa a ser realizado pela instituição escolar, em uma escala
ampla e diferenciada qualitativa e quantitativamente 86 , principalmente a partir do século
XVIII. A realização da escolarização das massas passou a implicar e ainda implica, na maior
parte das vezes, a assunção acrítica de uma dada forma de olhar, pensar e agir no mundo, ou
seja, a incorporação e disseminação do habitus das classes sociais hegemônicas, o que aponta
para o caráter de reprodução social que domina a escola e para o qual atentaram uma série de
estudiosos 87 .
É no final do século XVIII na Europa que ocorre um movimento geral de transição do
controle da educação da Igreja para o Estado, fato este que sinaliza a centralidade da educação
formal para a classe hegemônica burguesa. Manacorda (2002, p. 269) sintetiza em poucas
palavras as conquistas educacionais da burguesia, à época classe revolucionária: “[...]
universalidade, gratuidade, estatalidade, laicidade, e, finalmente, revolução cultural e primeira
assunção do tema trabalho.” Este último, não por acaso, obviamente que em sua face alienada,
passa a ser assumido pela escola moderna em função das profundas mudanças ocorridas no
modo de produção e, portanto, nas relações sociais de produção e na política.
Ora, se anteriormente prevalecia a produção artesanal individual, realizada em oficinas
associadas às corporações de ofício, na qual a instrução ocorria juntamente com o trabalho, o
que se vê daí em diante é a intensificação do processo de expropriação dos trabalhadores, de
seus saberes, de suas capacidades e portanto de si mesmos. Essa forma de produção foi
substituída subseqüentemente pela subsunção formal do trabalho ao capital 88 (cooperação
simples). Neste processo, os saberes da arte ou do ofício ainda estão em posse do trabalhador,
a completa alienação ainda não se realizou. É no contexto da subsunção real do trabalho ao
capital ou da divisão manufatureira 89 do trabalho que este se torna mais degradante, porque

86
A escolarização dos sujeitos realiza-se quantitativa e qualitativamente de maneira diferenciada dependendo
das classes sociais às quais os mesmos estão vinculados.
87
Sobre os mesmos ver o Capítulo VII do livro de Fernández Enguita (1993) intitulado A aprendizagem das
relações sociais de produção, no qual o autor faz um minucioso levantamento das teses que referendam a idéia
de que, para além dos conteúdos, a escola se constituiu predominantemente, sob a égide do capitalismo, em um
locus formador do habitus voltado à reprodução do referido modo de produção: esta é a face oculta da escola. É
por isso que ocorre a disseminação diferenciada dessa instituição junto às classes sociais, e se defende que seu
desaparecimento será improvável, apesar do desenvolvimento tecnológico dos meios de comunicação que têm
promovido uma difusão mais eficiente de certas informações.
88
Também denominada forma simples da exploração capitalista do trabalho, corresponde à extração da mais-
valia absoluta. Ocorre quando o trabalhador, destituído dos meios de produção, ainda tem o controle do processo
de trabalho; seu ritmo e intensidade, no entanto, encontra-se em posição de alienação em relação ao produto e
aos meios de produção, que pertencem a outra pessoa, e em relação a seus meios de vida, que não são obtidos
como resultado direto de seu trabalho ou em troca do produto dele mesmo, mas em troca de sua força de
trabalho. (MARX, 1977, apud FERNÁNDEZ ENGUITA, 1989, p. 15).
89
Ocorre quando o capitalista reorganiza o próprio processo da produção: “[...] A mais-valia absoluta cede então
caminho à mais-valia relativa, e a divisão de trabalho tradicional, herdada dos ofícios, à decomposição do
processo de produção da mercadoria em tarefas parcelares. O trabalhador, que já havia perdido a capacidade de
Capítulo 1 64
Ângela Massumi Katuta

fica reduzido a simples movimento mecânico, no qual a parte mais importante é feita pelas
propriedades materiais dos objetos, confiando-se cada vez mais ao indivíduo um número
menor de operações. Foi a partir da divisão manufatureira do trabalho que o trabalhador se
submeteu completamente à maquinaria. (MARX, 1993, p. 227).
Os modos de produção transformam as condições e as exigências da formação
humana, é por isso que mudam os processos educativos formais e não-formais. No contexto
do capitalismo, os trabalhadores perdem, não sem lutas e enfrentamentos, sua anterior forma
de instrução, que ocorria junto às corporações de artes e ofícios. Com a substituição dos
instrumentos e processos produtivos, promovidos tanto pela ciência moderna quanto pelo
desenvolvimento tecnológico, ocorre a alienação total do trabalho e do trabalhador,
convertido agora no moderno operário, submisso às máquinas.
A mudança das territorialidades − deslocamento das massas das oficinas artesanais
para as fábricas, dos campos para as cidades − expressa a ruptura com o modo de produção
Feudal e, portanto, com os habitus anteriores. Doravante capitalistas e operários se encontram
livres das amarras do modo de produção anterior: os primeiros tornam-se libertos para
explorar e alienar cada vez mais o trabalho e o trabalhador, auto-alienando-se. Por sua vez, os
trabalhadores tornam-se cada vez mais “livres” ou submissos, o que dá no mesmo, para o
trabalho alienado. No processo de realização da produção por meio do trabalho alienado,
produz-se apenas alienação, tanto dos capitalistas quanto dos trabalhadores90 . Manacorda
(2002, p. 271) descreve o processo na perspectiva do trabalhador da seguinte maneira:
[...] Ao entrar na fábrica e ao deixar sua oficina, o ex-artesão está formalmente livre,
como o capitalista, também dos velhos laços corporativos; mas, simultaneamente,
foi libertado de toda a sua propriedade e transformado em um moderno proletário.
Não possui nada: nem o lugar de trabalho, nem a matéria-prima, nem os
instrumentos de produção, nem a capacidade de desenvolver sozinho o processo
produtivo integral, nem o produto do seu trabalho, nem a possibilidade de vendê-lo
ao mercado. Ao entrar na fábrica, que tem na ciência moderna sua maior força
produtiva, ele foi expropriado também da sua pequena ciência, inerente ao seu
trabalho; esta pertence a outros e não lhe serve para mais nada e com ela perdeu,
apesar de tê-lo defendido até o fim, aquele treinamento teórico-prático que,
anteriormente, o levava ao domínio de todas as suas capacidades produtivas: o
aprendizado.
É na Modernidade que ocorre a perda do controle da escola e dos processos de
aprendizagem organizados por diferentes grupos sociais; esta instituição passa à tutela
hegemônica do Estado, ocorrendo, neste processo, um orquestramento, relativa
homogeneização e concentração ou centralização da formação educativa em suas mãos.

determinar o produto, perde agora o controle do seu processo de trabalho, entra em uma relação alienada com
seu próprio trabalho como atividade.” (MARX, 1977, apud FERNÁNDEZ ENGUITA, 1989, p. 15).
90
Neste sentido, Marx (1993, p. 174) afirma que a produção capitalista produz o homem sob a forma de
mercadoria, um ser espiritual e fisicamente desumanizado pela divisão do trabalho que se expressa sob a forma
de alienação, tanto dos trabalhadores quanto dos capitalistas; tem-se assim, o homem unilateral.
Capítulo 1 65
Ângela Massumi Katuta

Apesar de as escolas antecederem ao capitalismo e à indústria, no século XVIII continuam se


desenvolvendo com eles pelo simples fato de que “[...] as necessidades deste [capitalismo] em
termos de mão de obra foram o fator mais poderoso a influir nas mudanças ocorridas no
sistema escolar em seu conjunto e entre as quatro paredes da escola.” (FERNÁNDEZ
ENGUITA, 1989, p. 130). Doravante, processo produtivo, estrutura econômico-social e
processos educativos escolares vão nutrir entre si íntimas relações.
É no século XVIII que a classe trabalhadora ganha e/ou conquista os assentos
escolares, tanto sob a forma de reivindicações dos diferentes movimentos sociais quanto por
convencimento da burguesia da importância da escolarização das massas. A escola que
anteriormente atendia hegemonicamente às elites 91 , por força da necessidade da divisão do
trabalho manufatureiro, passa a abrigar também no seu interior a classe trabalhadora,
tornando-se uma instituição muito mais complexa e disputada, abrigando dentro de si as
tensões dialéticas inerentes às sociedades de classes. Contudo e apesar disso, existe aquilo a
que denominei sentido geral tomado pelas instituições escolares, imersas no projeto societário
de seu tempo, que é o de fazerem parte do processo de produção da força de trabalho e da
formação do seu valor. Por isso, Fernández Enguita (1989, p. 185-190) afirma que:
No ensino, igualmente, há aspectos que são direcionados exatamente para a
formação da força de trabalho, para aumentar a sua produtividade (em termos de
valor) e outros que, simplesmente, satisfazem uma demanda social de acesso à
cultura, no sentido cotidiano que damos a este termo. [...] O fato de que a mesma
atividade possa servir e sirva simultaneamente a outros fins não altera em nada a
validade do que foi dito. [...] O fato de que uma sociedade determinada possa
alimentar qualquer tipo de idéias mais ou menos sensatas e descabidas sobre a
escola, tampouco modifica em nada o desempenho da função citada. [...] Assim, as
mesmas coisas podem aparecer indistintamente como parte do empreendimento de
qualificar a força de trabalho com fins eminentemente práticos ou como parte da
satisfação de um indiscutível direito de todos os homens e mulheres a terem acesso
em algum grau à cultura.
Em função de comportar diferentes classes sociais, as dualidades passam a caracterizar
a escola moderna: um conteúdo ou a aprendizagem de determinados habitus tanto podem
servir à manutenção como à democratização desta instituição, dependendo do contexto no
qual as práxis humanas estão inseridas. Esta dualidade perpassa inclusive as análises
científicas desta instituição que, via de regra, tendem ao maniqueísmo porque ou assinalam
apenas o seu papel reprodutor ou meramente o seu papel democratizador. A apreensão do
movimento dialético, da tensão que passa a ser característica desta instituição é por poucos
compreendida.
91
Neste sentido, funcionava em grande parte como instituição promovedora de distinções sociais entre os que a
ela tinham acesso e aqueles a quem o mesmo era vetado. Sobre esse assunto ver a coletânea de textos de Pierre
Bourdieu, organizada por Nogueira e Catani (1998) intitulada Escritos de Educação. Neste conjunto de textos, o
autor disseca a lógica da produção do mundo cultural e escolar, mostrando suas relações com o sistema
produtivo.
Capítulo 1 66
Ângela Massumi Katuta

Desde a época em que os trabalhadores tiveram acesso inicial à escola moderna até os
dias de hoje, verifica-se que ocorre a defesa de um discurso classista disfarçado de
universalista. Segundo as forças bem-pensantes devia-se, à época do que se costuma
denominar de democratização quantitativa da escola “[...] educá-los, mas não
demasiadamente.” (FERNÁNDEZ ENGUITA, 1989, p. 112). Tal afirmação e mesmo os
atuais dados sobre escolaridade e qualidade do ensino no Brasil, mensurados por meio do
conjunto de conteúdos e habilidades construídos pelos alunos, confirmam a realização ainda
hoje da diferenciação do aparelho escolar.
Bourdieu (1992, p. 220), ao resgatar as idéias de Philippe Áries, sistematizadas na
obra intitulada A criança e a vida familiar sob o antigo regime, explicita que “‘[...] desde o
século XVIII, a escola única 92 foi substituída por um sistema de ensino duplo onde cada área
corresponde a uma condição social e não a uma faixa etária: o liceu ou o colégio para os
burgueses (o secundário) e a escola para o povo (o primário).’” Verifica-se ainda hoje no
Brasil a prevalência desta dualidade rígida nas formações escolares, como mostram os dados
de órgãos responsáveis por informações relativas à escolaridade e nível sócio-econômico 93 .
Também as paisagens das cidades brasileiras nos revelam esta dualidade: vemos, em
diferentes lugares, escolas públicas, via de regra precarizadas e escolas particulares que, de
uma maneira geral, tendem a disseminar um ensino de melhor qualidade.
Temos no Brasil basicamente dois tipos de escola: uma voltada à formação das elites e
outra, adequadamente descrita por Frigotto (1993, p. 224) na epígrafe do presente item e
denominada pelo autor de escola improdutiva, que, no contexto da reprodução das relações
capitalistas de produção, torna-se produtiva para as classes hegemônicas. Isso porque essa
instituição justifica ou naturaliza a exploração da classe trabalhadora 94 , fazendo crer, por
exemplo, que o sucesso nos estudos resulta das habilidades das pessoas tomadas
individualmente −, ao impedir o seu acesso ao saber historicamente elaborado 95 e ao negar a

92
Voltada apenas para a formação das elites. Grifo da autora.
93
Ver dados do censo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) e do próprio INEP (Instituto
Nacional de Pesquisas Educacionais).
94
Por meio de vários mecanismos que resultam na oferta de uma educação precária.
95
Nas escolas desqualificadas, voltadas às classes sociais menos privilegiadas, ocorre uma ruptura
epistemológica entre os saberes dos alunos e os escolares. Esses últimos são assumidos muito mais como
obstáculos à escolarização do que como instrumentos que auxiliam no entendimento do mundo. A geografia
ensinada coleciona um acervo significativo de exemplos que demonstram a legitimação da espacialidade
burguesa, em detrimento daquelas produzidas por outros grupos sociais. A apresentação do mundo ao aluno,
como ocorre na maioria das vezes, de maneira descontextualizada, generalizada e cindida, aponta para um
projeto de ensino alienador. Ao negar ou não abordar as particularidades e singularidades nas quais são
engendrados os saberes coletivos dos trabalhadores, na vida e na produção de riquezas materiais, a geografia
ensinada aponta para uma aprendizagem voltada à reprodução social. Eis a ruptura epistemológica entre o aluno
Capítulo 1 67
Ângela Massumi Katuta

relevância do saber coletivamente produzido pelos trabalhadores no trabalho, na vida e na


produção de riquezas materiais.
Pode-se afirmar que a escola moderna, e mesmo a que temos hoje, tem servido
majoritariamente para a produção da mercadoria força de trabalho, apesar da ascensão sócio-
cultural e econômica de uns poucos trabalhadores por meio do acesso ao ensino em seus
vários níveis. Fernández Enguita (1993, p. 191) esboça de maneira adequada a relação entre
modo de produção e escola:
Nenhuma forma de trabalho anterior ao trabalho manufatureiro e fabril colocou as
mesmas exigências de cotidianidade, regularidade, intensidade, repetitividade,
coordenação, atenção, etc., a não ser que consideremos as galeras e outras pequenas
esferas excepcionais. Sem dúvida, os primeiros operários manufatureiros tiveram
que se adaptar diretamente às condições impostas pelo novo modo de produção e
terminaram por fazê-lo, mas isso não aconteceu sem atritos: abandonos, opção pela
vagabundagem, revoltas contra a introdução da maquinária, etc. Nem a
idiossincrasia acumulada durante séculos de economia agrícola nem as condições de
desenvolvimento da infância no meio familiar eram precisamente as mais adequadas
para preparar os futuros trabalhadores para sua incorporação ao rigoroso mecanismo
produtivo da manufatura ou da indústria.
A escola, cujos métodos de funcionamento e formas de organização interna
mudaram radicalmente ao longo dos séculos XVII e XIX, vai ser quem fornecerá o
espaço e o limite adequado para essa aprendizagem que a indústria exige.
Como prova do que foi afirmado, o mesmo autor (FERNÁNDEZ ENGUITA, 1993, p.
191) cita o caso de Jules Simon, ministro da III República, que publicou uma obra em 1867
intitulada O Operário de Oito Anos, em que propunha “[...] a forma para que a escola
contribuísse para pôr de pé ‘o glorioso e poderoso exército do trabalho’.” Para Simon, a
escola e o serviço militar eram eficazes “[...] ‘máquinas de urbanização e de formação para o
trabalho assalariado, doméstico, através da inculcação de hábitos de vida coletiva, de
movimentos em conjunto, e sobretudo de obediência que inoculam nos corpos de cada um.”
As análises elaboradas sobre a escola moderna por Fernández Enguita (1989, 1993)
salientam o papel de socialização realizado pela referida instituição: “Substituir condutas, as
atitudes e os valores adequados para a sociedade agrária por outros adequados para a
sociedade industrial foi precisamente, [...] o objetivo principal da escola.” (FERNÁNDEZ
ENGUITA, 1989, p. 221). Contudo, apesar desta afirmação revelar a outra face da escola −
que tem operado, hegemonicamente, como instituição de socialização do ser humano para a
reprodução do modo capitalista de produção −, o autor não se preocupou em explicitar as
relações entre o conteúdo e as formas de pensamento, que também se constroem na escola e
suas relações com o mundo do trabalho alienado no modo capitalista de produção.

e os saberes escolares no âmbito da educação formal, equivocadamente denominado e entendido como


“problema de aprendizagem”.
Capítulo 1 68
Ângela Massumi Katuta

Considerando o exposto, é importante ter em conta que a apreensão de Fernández


Enguita e de um conjunto de sociólogos da educação, alinhados ao materialismo dialético,
constitui-se em um avanço notável em se considerando o conjunto das análises das práticas
educativas modernas. Assim como as análises elaboradas por muitos psicólogos da educação,
especificamente aqueles alinhados a uma tradição vygotskiana, têm contribuído de maneira
inestimável para o entendimento dos processos de aprendizagem e construção dos
conhecimentos.
Contudo, o que se pode verificar nos estudos da sociologia e psicologia da educação é,
mais uma vez, o emprego de uma concepção inadequada de ser humano, visto ou como social
ou apenas enquanto ser individual, problema este apontado por Norbert Elias (1994b) em sua
obra intitulada Teoria Simbólica. Essas concepções do ser humano tendem a ocultar a
necessidade efetiva da realização de análises que apreendam-compreendam as tensões
dialéticas entre o que atualmente consideramos individual e social. Daí a necessidade de
atentarmos para a observação do referido autor:
Mais cedo ou mais tarde, será necessário examinar criticamente a actual divisão do
trabalho dominante nas ciências humanas. A velha divisão corpo-alma funcionou
como uma madrinha da divisão entre fisiologia e a psicologia. [...] Tal como as
coisas se apresentam, parece-se admitir que a estrutura interna das ciências humanas,
como a psicologia, a sociologia, a economia e a história, pode mudar, enquanto a
divisão das ciências de acordo com as instituições actuais é tacitamente aceite como
imutável. Porém, subjacente ao esquema atual das ciências sociais, existe um
conceito dos seres humanos que, geralmente, não é questionado mas que, quando é
examinado, se revela muito inadequado ou mesmo completamente errado. (ELIAS,
1994b, p. 7).
Com base no exposto, pode-se afirmar que todo processo educativo implica uma
tensão dialética entre o indivíduo e a sociedade. O processo de escolarização é
concomitantemente um ato social e individual – individual porque social, no qual o conjunto
de códigos e comportamentos exigidos, portanto (re)produzidos e disseminados na e pela
escola, está diretamente ligado à constituição de habitus diferenciados, dado que os mesmos
são engendrados na diferencialidade dos processos educativos que ocorrem junto às classes
sociais.
[...] a escola tende a assumir uma função de integração lógica de modo cada vez
mais completo e exclusivo à medida que seus conhecimentos progridem. Na
verdade, os indivíduos ‘programados’, quer dizer, dotados de um programa
homogêneo de percepção, de pensamento e de ação, constituem o produto mais
específico de um sistema de ensino. Os homens formados em uma dada disciplina
ou em uma determinada escola, partilham um certo ‘espírito’, literário ou científico
[...] tendo sido moldados segundo o mesmo ‘modelo’ (pattern), os espíritos assim
modelados (patterned) encontram-se predispostos a manter com seus pares uma
relação de cumplicidade e comunicação imediatas. (BOURDIEU, 1992, p.
206).
Capítulo 1 69
Ângela Massumi Katuta

Pode-se afirmar que a escola ainda hoje atua enquanto locus de socialização
predominantemente voltado à (re)produção do modo de produção capitalista. Trata-se,
atualmente, da principal instituição criadora e socializadora do habitus 96 voltado à reprodução
do atual estado de coisas. Daí sua disseminação junto à classe trabalhadora, o que determinou
uma transformação radical da territorialidade escolar, na medida em que essa instituição
passou a acompanhar, de maneira relativa, as diferentes demandas das classes sociais por
educação, a partir principalmente do século XVIII.
Apesar do papel de reprodução exercido de maneira preponderante pela escola,
existem ambigüidades em seus interstícios, pelo fato de que a mesma é freqüentada por um
conjunto de sujeitos de diferentes classes sociais, que possuem atuações políticas as mais
diversas. Por isso, Fernández Enguita (1989, p. 228) afirma adequadamente que, apesar da
escola conservar essencialmente
[...] as características que lhe foram atribuídas para fazer dela um celeiro de
assalariados domesticados, atomizados e reconciliados com sua sorte, o tempo não
passou diretamente em vão. A gestão dos centros escolares conheceu uma certa
democratização que atingiu os alunos; os direitos destes em seu interior se
multiplicaram e se tornaram mais efetivos; a pedagogia evoluiu no sentido de uma
aproximação de conteúdos e métodos aos interesses e processos dos alunos; e, em
último lugar, mas não por sua importância, o discurso escolar viu-se inundado por
termos chaves tais como ‘atividade’, ‘criatividade’, ‘centros de interesse’,
‘liberdade’, ‘desenvolvimento pessoal’, etc.
As relações entre educação formal e trabalho são dialéticas, dado que são compostas a
partir da tensão entre duas dinâmicas: as demandas do modo de produção capitalista e da
democracia em todas as suas formas 97 . A escola é essencial tanto para a reprodução dos
habitus do modo de produção capitalista, quanto para auxiliar na produção de um outro
conjunto de habitus que concorram para a formação do que Marx denominava de homem
onilateral. Contudo, para a realização deste último tipo de ação, a atuação política consciente
por uma educação voltada para a autonomia se faz necessária 98 .
Manacorda (1991, p. 81), a partir da exegese feita das obras de Marx que propiciam
pensar a educação moderna, define onilateralidade como:
[...] a chegada histórica dos seres humanos a uma totalidade de capacidades
produtivas e, ao mesmo tempo, a uma totalidade de capacidades de consumos e
prazeres, em que se deve considerar sobretudo o gozo daqueles bens espirituais,
além dos materiais, e dos quais o trabalhador tem estado excluído em conseqüência
da divisão do trabalho.

96
Trata-se de um conjunto de disposições que faz o indivíduo participar da “[...] coletividade, de sua época e,
sem que este tenha consciência, orienta e dirige seus atos de criação aparentemente singulares.” Bourdieu (1992,
p. 342).
97
Para um maior detalhamento desta questão, ver Carnoy e Levin, apud Fernández Enguita (1998, p. 229 et
seq.).
98
Sobre esse assunto, ver o livro de Paulo Freire (2004) intitulado Pedagogia da Autonomia.
Capítulo 1 70
Ângela Massumi Katuta

À idéia de onilateralidade contrapõe-se a de unilateralidade 99 , engendrada sob o modo


de produção capitalista, no contexto da divisão entre trabalho manual e mental e da distinção
entre escolas para o povo e para as elites. A escola moderna constitui-se em um campo de
disputas políticas: pode auxiliar a constituir a unilateralidade, como tem acontecido
hegemonicamente, ou pode auxiliar na constituição da onilateralidade, dependendo das práxis
realizadas no contexto da sociedade em que está ancorada.
É precisamente este movimento que deve ser apreendido quando da realização de
análises sobre os processos educativos escolares. Verificar quais habitus − de pensamento e
comportamento − são construídos e reforçados na escola constitui-se em exercício relevante
na medida em que permite distinguir, discernir e perceber o projeto societário subjacente às
práticas educativas escolares. Contudo, estas últimas somente se realizam na particularidade
de cada uma das disciplinas, daí a necessidade do exame do ensino de geografia, foco do
presente trabalho. É o que farei no item que segue.

99
Pensamento metafísico.
Capítulo 1 71
Ângela Massumi Katuta

1.3. A “estrangeirização” discente no ensino da geografia sob a égide


do modo de produção capitalista: a realidade invertida Através do
Espelho
“A hegemonia técnica realizada pela instituição disciplinar do trabalho cronometrado deve
entretanto se enfeixar num quadro de maior profundidade subjetiva (Gramsci, 1968). Precisa-se
do domínio cultural dos sujeitos, para que então o domínio econômico possa se efetivar. O
sincronismo espacial do trabalhador coletivo já subjetivado na temporalidade abstrata, inorgânica
e universal do relógio e por isto encarnado como potencialidade autônoma do capital deve se
confundir a um plano que abarque a própria corporeidade humana.” (MOREIRA, 1994, p. 221).

A idéia a ser desenvolvida ao longo do presente item é a de que a “estrangeirização”


discente no ensino da geografia resulta da consolidação da divisão manufatureira do trabalho
que culmina com a fábrica; isso, porque a escola passa a manter com o processo produtivo
uma relação de interdependência e sobredeterminação. O que não significa que a instituição
escolar, bem como os processos educativos que nela ocorrem se relacionem com as relações
sociais de produção de maneira imediata e direta. Defender esta determinação dessa maneira
simplista implica relegar à escola o simples papel de reprodutora das referidas relações,
entendimento este que desconsidera o significado das lutas populares por acesso e melhoria da
qualidade da educação. Esses enfrentamentos sociais indicam que a escola moderna tem sido
território-alvo de disputas, por tratar-se de instrumento político que confere poder a quem a
controla.
Assumir a leitura do vínculo direto e imediato da escola com o processo de produção
supõe a negação da especificidade histórica desta instituição, cuja existência é anterior ao
modo capitalista de produção. Além disso, produz uma falsa amarra que oculta a relativa
autonomia dos processos educativos em face dos processos produtivos, implicando o
estabelecimento de um olhar empobrecido e mecanicista sobre a relação contraditória e tensa
entre ambos.
A escola moderna não é capitalista, mas, por estar imersa neste modo de produção,
tende a mediar os interesses do capital; contudo, a referida mediação também pode atender
aos interesses de outras classes sociais 100 , desde que se articulem politicamente na luta pelo

100
Dois exemplos recentes na história da educação brasileira devem ser resgatados, a fim de confirmar a
capacidade de articulação dos interesses da sociedade civil organizada em torno de um projeto político
pedagógico de uma escola democrática: as elaborações do Projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional da Câmara Federal, derrotado e substituído pela Lei de Diretrizes e Bases (LDB) 9394/96 e do Plano
Nacional da Educação: proposta da sociedade brasileira. Esses documentos são expressões dos esforços
encetados pela sociedade brasileira, por meio de suas entidades representativas, que lutam cotidianamente pela
democratização da educação.
Capítulo 1 72
Ângela Massumi Katuta

controle da escola, campo aberto de disputas e tensões sociais em torno do acesso ao saber
elaborado, cuja apropriação ocorre, predominantemente, no interior do espaço escolar.
As escolas de massas fundadas no século XVIII e principalmente no XIX na Europa
passam a ter existência, em grande parte 101 , pelo fato de que a sobrevivência da classe que
alça ao poder político, econômico e simbólico, no contexto inicial da manufatura e depois da
indústria, estava diretamente ligada à produção da mercadoria força de trabalho.
A constituição de um determinado habitus é a condição para a realização do domínio
econômico em qualquer sociedade. Na produção manufatureira e industrial os domínios
cultural e econômico mantiveram entre si relações peculiares, em função de a própria
sobrevivência do capital impor a necessidade de disseminação do habitus capitalista a um
conjunto cada vez maior de pessoas, culminando com sua mundialização.
Uma parte dos habitus inerentes ao modo de produção capitalista passou a ser
disseminado pelas escolas já existentes, que, ao se revelarem eficientes na realização de mais
este papel – subjetivar e, portanto, corporificar nos sujeitos o que Gramsci (apud MOREIRA,
1994, p. 221) denomina de instituição disciplinar do trabalho cronometrado –, tenderam a se
espraiar acompanhando a territorialidade da manufatura, da indústria e portanto do capital.
Por isso, o foco central da aprendizagem escolar tornou-se a da repetição por repetição,
processo este proposto-imposto para as massas na escola moderna. O sincronismo atrelado à
maquinaria, enfim, a construção do habitus voltado à viabilização da referida forma de
produção, encontrou na escola um forte aliado, assim como ocorreu em outras instâncias
produtoras e disseminadoras da cultura hegemônica.
A proliferação da indústria demandou por um tipo de trabalhador que aceitasse ou se
submetesse a trabalhar para os proprietários dos meios de produção nas condições por eles
impostas. Os adultos, inicialmente, foram “convencidos” a executarem os papéis a eles
imputados por meio da expropriação, miséria, fome, internamento em hospícios, prisões e
mortes infligidas, violências extremamente eficientes no processo de submissão do ser

101
Havia também as reivindicações populares que lutavam pelo direito à escola; contudo, o registro dos
primeiros movimentos é precário ou inexiste, pois a memória das classes sociais desfavorecidas está fadada ao
esquecimento nos registros da história oficial. Por conta disso, e pelo fato deste tema, infelizmente, não ser
central em minhas reflexões, fica aqui registrado a indicação da relevância social do mesmo, em função da
tensão e transformações que os movimentos sociais acabarão produzindo no interior da escola. Em função disso,
os mesmos devem ser encarados como elementos relevantes para a democratização quantitativa e qualitativa da
escola. Sobre esse assunto ver o livro de Marília Pontes Sposito (1993) intitulado A ilusão fecunda: a luta por
educação nos movimentos populares, no qual a autora defende que a necessidade de saber e de apropriação do
conhecimento sistematizado estimula o cotidiano dos sonhos e das ilusões fecundas daqueles que, por serem
excluídos do acesso aos bens culturais, estariam destinados ao conformismo e à apatia, não fosse sua
participação nos movimentos sociais organizados que comprovam a luta destes sujeitos sociais contra os
processos de alienação e miserabilidade a que, historicamente, têm sido submetidos.
Capítulo 1 73
Ângela Massumi Katuta

humano ao capital. Já a infância foi rapidamente submetida ao processo de escolarização, cuja


centralidade desloca-se da formação religiosa para as disciplinas mental e corporal,
necessárias à produção manufatureira e industrial.
A experiência escolar ou o processo de escolarização torna-se útil por gerar nos jovens
provenientes das classes destituídas dos meios de produção hábitos, formas de
comportamento e pensamento, disposições e traços de caráter adequados para servirem à
indústria 102 e ao capital. É importante salientar que isto ocorre não pela natureza própria da
escola, mas pelo fato de esta estar sob o comando da ordem hegemônica, o que significa que
esta instituição na modernidade caracteriza-se sobretudo por ser território de disputas, dentro
do qual está em jogo o direito e o poder de disseminação-subjetivação dos habitus dos grupos
sociais que a ocupam 103 .
A relevância das disciplinas escolares nas escolas de massas do século XVIII reside
exatamente no fato de que elas contribuem em larga medida para a criação-subjetivação do
habitus – força estruturadora e estruturante do conjunto de disposições voltadas à reprodução
–, necessário ao modo de produção capitalista. É por meio de uma forma característica de
assunção, legitimação e disseminação das linguagens 104 , processos comunicativos e de
pensamento que tanto a geografia quanto qualquer outra disciplina da escola básica auxiliarão
na dominação cultural dos sujeitos. Condição sine qua non para a completa subordinação
econômica do trabalhador, pois é por meio dos processos de aprendizagem que se constrói
uma arquitetura de pensamento voltada à viabilização do modo de produção capitalista.
O habitus das classes hegemônicas se subjetiva por meio das relações sociais, fazendo
com que o trabalhador encarne a potencialidade autônoma do capital, a ele se submetendo,
como afirma Moreira (1994, p. 221) na epígrafe do presente item. O que deve ser enfatizado
aqui é o fato de toda e qualquer relação social ser educativa; contudo, como as mesmas se
102
Quanto ao despreparo para outras atividades que não as ligadas às habilidades necessárias à indústria, ver a
reflexão de Fernández Enguita (1993), que aponta esta característica como uma das expressões da unilateralidade
da formação escolar.
103
Sobre a necessidade de ocupação das escolas no contexto do neoliberalismo ver o livro de Gentili (1998)
intitulado A falsificação do consenso: simulacro e imposição na reforma educacional do neoliberalismo,
principalmente o capítulo 5, intitulado Ocupar a terra, ocupar as escolas: dez questões e uma história sobre a
educação e os movimentos sociais na virada do século.
104
Sevcenko (1999, p. 19) em seu livro Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira
República, fundado em uma observação de Adam Schaff, refere-se de maneira esclarecedora sobre este
fenômeno: “[...] Sabe-se hoje que, sendo ela produzida pelo complexo jogo de relações que os homens
estabelecem entre si e com a realidade, ela passou também a ser, a partir do próprio momento da sua
constituição, um elemento modelador desse mesmo conjunto de relações. A linguagem se torna, dessa forma,
como que um elemento praticamente invisível de sobredeterminação da experiência humana, muito embora ela
tenha uma existência concreta e onímoda.” Eis uma captação extremamente perspicaz da linguagem, fenômeno
cambiante e ambíguo, que não passou desapercebido por Nietzsche e Lefebvre (1983, p. 47), pois o último, em
suas reflexões sobre as palavras, defende que elas resultam de um processo duplo de substituição e
representação. No próximo capítulo me deterei neste assunto.
Capítulo 1 74
Ângela Massumi Katuta

estabelecem em diferentes níveis, locais e sujeitos, existem especificidades inerentes à


realização do processo educativo em cada uma delas. Dessa maneira, a escola, enquanto
instituição mediadora e um tipo específico de relação social, tem auxiliado no processo de
subjetivação e corporificação da temporalidade e espacialidades inerentes ao modo de
produção capitalista 105 e o tem feito com uma eficiência tal que sua organização geral foi
muito pouco modificada desde a época de sua institucionalização pelo Estado nação, que
tomou para si a tarefa de sua disseminação junto às massas.
A tabela a seguir apresenta o Programa da Escola Elementar de Berlim, que serviu de
modelo para uma parcela considerável das escolas de massas fundadas nos séculos XVIII e
XIX:
Disciplinas Inferior Médio Superior
Religião 3 106 3 3 4 4 4 4 4
Alemão 8 7 7 6 6 6 6 6
Lições de 2 2 2 − − − − −
Coisas
História − − − 2 2 2 2 3 [2] 107
Aritmética 4 4 4 4 4 4 4 [2] 4 [2]
Geometria − − − − − 3 3 [2] 3 [2]
elementar
Ciências − − − 2 2 4 4 [3] 3
Naturais
Geografia − − − 2 2 2 2 2
Desenho − 1 2 [1] 2 2 2 2 2
Escrita − 2 2 2 2 1 1 1
Canto 1 1 2 2 2 2 2 2
Ginástica 2 2 2 [1] 2 2 2 2 2
Trabalhos − − − [2] −[2] − [2] − [3] − [4] − [4]
de Agulha
Total 20 22 24 [24] 28 [30] 28 [30] 32 [35] 32 [32] 32 [32]
Tabela 1 − Programa da Escola Elementar em Berlim
Fonte: Eby (1976, p. 464).
Um rápido olhar pela tabela permite verificar a ênfase na formação vernacular, seguida
pela aritmética e religião. Com uma carga horária ligeiramente menor, estão as aulas de
ginástica, ciências naturais, canto e desenho. História, escrita e geografia possuíam carga
horária quase equivalente, mas a primeira e a última não comparecem na formação
denominada inferior. Verifica-se também que a formação feminina apontava para uma
valorização ligeiramente inferior dos estudos científicos em proveito dos trabalhos manuais.

105
Lefebvre (1970, apud MOREIRA, 1999, p. 51) credita a sobrevida do capitalismo à apropriação, em
específico, do espaço urbano. Dessa maneira, os autores entendem que o lugar da re-produção das relações de
produção situa-se no âmbito de toda a sociedade e alertam, dessa maneira, para a organização dos espaços
promovida pela fábrica e as instituições que com ela se disseminaram, como a escola de massas.
106
Horas semanais.
107
Número de horas semanais exigidas para a educação feminina.
Capítulo 1 75
Ângela Massumi Katuta

Falar o vernáculo, ou seja, dominar a norma culta da língua – significações e


representações – tornada oficial, contar e rezar eram as habilidades a serem primordialmente
desenvolvidas na escola elementar de massas, modelo este que se espalhou pelo mundo em
função de sua eficácia na formação da força de trabalho. Por meio da carga horária das
disciplinas instrumentais – vernáculo, escrita, geometria e aritmética –, verifica-se a ênfase da
escola moderna na instrumentalização do trabalhador. Outros saberes necessários para a
realização do pensamento fundado na materialidade do real, como são os conhecimentos
históricos e geográficos, eram, como hoje, relegados a um segundo plano, tanto do ponto de
vista quantitativo, em se considerando sua carga horária, quanto do qualitativo, tendo em vista
as abordagens do real pela história e geografia 108 hegemônicas ensinadas.
Pela própria organização da grade curricular apresentada é possível afirmar que a
escola moderna voltada para as massas tem realizado, predominantemente, o papel de
formadora da mercadoria força de trabalho. Isso porque no interior dos sistemas de ensino de
uma parte considerável de países existem escolas diferenciadas voltadas à formação das elites,
como ocorria na Alemanha à época da constituição do modelo apresentado.
Ao separar duas categorias essenciais à realização do pensamento humano − tempo e
espaço –, como ainda hoje é freqüente no ensino elementar e superior brasileiro, e
proporcionar, no conjunto da formação, uma carga horária significativamente menor às
disciplinas de história e geografia, trabalhadas em separado, cada uma delas com abordagens
alienadoras, como veremos mais adiante, torna-se explícito o papel ideológico realizado pelos
grandes sistemas nacionais de aprendizagem dedicados a disciplinar-educar-alienar a massa
da população.
O pensamento metafísico e unilateral está subjacente a este currículo fragmentado, que
dissemina as dicotomias inerentes à cosmologia hegemônica moderna: sujeito-objeto,
linguagem-pensamento, espaço-tempo, indivíduo-sociedade, homem-natureza, mente-corpo
entre outras. Dessa maneira, os processos de alienação, reificação e fetichização passam a
compor o que muitos educadores denominam de currículo oculto das escolas modernas,
voltadas àqueles que não têm meios para produzir produtos culturais.
É a metaficização do pensamento a atividade mais eficientemente realizada pela
instituição escolar moderna, pois se opera com as linguagens, imagens, com a palavra e com o
conhecimento apenas do ponto de vista da concatenação dos signos e suas significações em si
e per si, ambos alienados das relações de produção material de vida dos seres humanos.

108
Lacoste (1989) e Moreira (1987, 1988, 1993) fizeram uma crítica vigorosa ao ensino da geografia.
Capítulo 1 76
Ângela Massumi Katuta

É por meio dos processos de ideologização, reificação e fetichização que ocorre uma
apreensão-compreensão invertida – metafísica – da realidade, ou seja, a alienação, processo
este ao qual remeti, fazendo referência no título do presente item à obra de Lewis Carrol
(2002) Através do Espelho. O tema da inversão especular, foco desta outra aventura de Alice,
se ampliado, admite a inclusão de qualquer relação assimétrica, temática essa habilmente
manipulada pelo autor ao longo de todo o romance 109 .
A geografia hegemônica ensinada, ao inverter – ação similar ao espelho de Alice – ou
colocar a realidade em suspensão por encetar uma apreensão alienada ou unilateral do
fenomênico, a partir do uso do esquema conceitual desvelado por Moreira (1993) N-H-E
(Natureza-Homem-Economia), acaba por transformar-se em instrumento de alienação. O
“mundo da geografia” fica assim reduzido a um mínimo múltiplo comum, podendo ser
expresso na seguinte fórmula: “[...] primeiro descrevemos a natureza, depois a população e
por fim a economia. Às vezes alteramos a ordem seqüencial.” (MOREIRA, 1993, p. i).
Ao tomar cada um dos elementos do espaço como independentes das relações sociais
de produção, ou seja, ao reificar o fenomênico por meio da moldura “N-H-E”, ocorre a
alienação do aluno e, portanto, sua “estrangeirização”, sendo a ideologização do entendimento
acerca dos espaços a resultante de todo este processo. É dessa maneira que passam à
existência os fenômenos no “mundo da geografia”, cuja base de ordenação discursiva está
ancorada na razão moderna fragmentária; daí serem a linguagem matemática e estatística, e
suas derivadas, os instrumentos hegemonicamente usados no estabelecimento de correlação
entre os fenômenos.
Subjacente à moldura conceitual da geografia hegemônica ensinada reside um projeto
societário excludente: aprende-se com ela a olhar o mundo e a construir territorialidades por
meio das relações que as classes sociais hegemônicas com ele mantêm. Negam-se as
espacialidades, os saberes geográficos d’O Estrangeiro, elimina-se a alteridade e sua
possibilidade. O Outro – o aluno com suas representações –, sob os auspícios da geografia
hegemônica, qual Mersault, é assassinado no território da sala de aula por meio de estratégias
antropoêmicas e antropofágicas, às quais fiz referência no início do presente capítulo.
A trama que se interpõe entre o aluno e a geografia ensinada origina o drama discente.
Dizer como é o mundo olhado pela moldura “N-H-E”; trata-se de uma aprendizagem: aquela

109
Sobre a problemática do significado da inversão especular em Através do Espelho e mesmo em Aventuras de
Alice no País das Maravilhas, ver as notas de rodapé 4 a 6 do Capítulo 1 da primeira obra citada, presente em
Alice: edição comentada, editada pela Jorge Zahar em 2002. Trata-se de uma possibilidade literária criada pelo
autor de explorar o nonsense, a contradição lógica: “[...] O mundo usual é virado de cabeça para baixo e de trás
para a frente; torna-se um mundo em que as coisas tomam todos os rumos menos os esperados.” (CARROL,
2002, p.138).
Capítulo 1 77
Ângela Massumi Katuta

da repetição por repetição. Os propagadores de receituários pedagógicos encontrarão uma


seara profícua no contexto dessa opção metodológico-societária, tendo como fiéis escudeiros
os docentes “estrangeiros no mundo da geografia”.
Se, como aponta Moreira (1994, p. 210) a
[...] noção de mundo como espaço métrico onde os objetos se movem vencendo
distâncias a uma determinada velocidade de tempo à semelhança dos ponteiros do
relógio (‘o relógio ajuda a criar a crença num mundo independente e de seqüências
matematicamente mensuráveis’, diz Mumford), chega ao mundo do trabalho através
da manufatura.
Esta mesma noção de mundo é subjetivada e “encarnada na própria corporeidade
humana”, principalmente por meio dos processos educativos que ocorrem na escola, onde a
geografia ensinada teve e ainda tem papel relevante.
Antônio Gramsci (1978, p. 12) tinha razão ao afirmar que a formação em massa
estandartizou os indivíduos na qualificação intelectual e na psicologia, determinando os
mesmos fenômenos que ocorrem nas massas padronizadas − concorrência, desemprego,
superprodução escolar, emigração etc −, processo este já denunciado por Marx e Engels
quando os mesmos tratam em suas obras da formação unilateral dos seres humanos, sob a
égide do modo de produção capitalista. Os espaços, assim como os seres humanos, foram
estandartizados tanto pela formação quanto pela produção em massa: “[...] A burguesia, a
classe média ou o proletariado moderno se identificam e são identificados somente quando
visualizadas dentro desta regulação espacial taylorista que é o urbanismo moderno.”
(MOREIRA, 1994, p. 213).
A título de esclarecimento sobre por que a geografia escolar tem como foco
predominante a espacialidade dos grupos hegemônicos, cabe resgatar um trecho d’A ideologia
alemã de Marx e Engels, que por meio desta obra esclarecem que as idéias da classe
dominante:
[...] são as idéias dominantes de cada época; ou, dito de outra forma, a classe que
exerce o poder material dominante na sociedade é, ao mesmo tempo, seu poder
espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição os meios para a produção
material dispõe com isso, ao mesmo tempo, dos meios para a produção espiritual, o
que faz com que se submetam a ela as idéias dos que carecem dos meios necessários
para produzir espiritualmente. As idéias dominantes não são outra coisa que a
expressão ideal das relações materiais dominantes, as mesmas relações materiais
dominantes concebidas como idéias; portanto, as relações que fazem de uma
determinada classe a classe dominante são também as que conferem o papel
dominante a suas idéias. (MARX e ENGELS, apud FERNÁNDEZ
ENGUITA, 1993, p. 162).
A geografia ensinada nas escolas modernas tem se constituído em instrumento de
subjetivação da espaço-temporalidade dos grupos hegemônicos, pois, como atesta Moreira
(1994, p. 230-231), a construção geográfica do mundo, desde o Renascimento e o Iluminismo,
Capítulo 1 78
Ângela Massumi Katuta

tem sido o movimento histórico da consolidação da hegemonia e espacialidade do capital, por


meio do controle do trabalho.
No caso específico da geografia, é sabido que, desde a sua institucionalização nas
escolas elementares e mesmo em sua versão acadêmica, houve a assunção de uma de suas
antigas formas em detrimento de outra que apontava para o entendimento do movimento e
para a transformação. Moreira (1994, p. 3), em sua tese de doutoramento, confirma que os
geógrafos “[...] postos diante do permanente e do mutável, retiveram-se no permanente e
obnubilaram o mutável. E sem disso se darem conta, originaram duas geografias, a real e a da
leitura, uma dobra que lhes tem embaciado a visão.”
É importante salientar que a opção pelo permanente não pode ser tomada como
resultante de uma escolha deliberada; antes, se pode dizer que não apenas os geógrafos mas
todo o conjunto de uma sociedade foi impelido, não sem resistências é claro, para a direção de
um mesmo habitus. É neste sentido que se pode enxergar a presença do processo civilizador:
não se trata de escolhas realizadas racional e deliberadamente por vontade própria dos
indivíduos tomados individualmente; antes, se trata de uma direção geral tomada pela
sociedade e imposta aos sujeitos sociais que pouco podem contra a mesma em função do
violento processo de alienação ou unilateralização e metafisicização ao qual são submetidos
ao longo de suas vidas. Os que tendem a se debelar contra este processo pagam caro, são
vítimas de processos antropoêmicos e antropofágicos − o canibalismo na sociedade moderna
adquire muitas faces. A geografia que tem se realizado nos bancos escolares teve um razoável
papel neste processo, o que demonstrarei a seguir.
Capítulo 1 79
Ângela Massumi Katuta

1.4. A geografia hegemônica, o permanente e o “embaciamento” da


visão: a “dobra” entre a geografia real e da escola
“O ‘mapa’ é uma malha política abstrata, uma proibição gigantesca imposta pela cenoura/cacetete
condicionante do Estado ‘especializado’, até que para a maioria de nós o mapa se torne o
território – não mais a ‘Ilha da Tartaruga’ 110 , mas os ‘Estados Unidos’. E ainda assim o mapa
continua sendo uma abstração, porque não pode cobrir a Terra com a precisão 1:1. Dentro das
complexidades fractais da geografia atual, o mapa pode detectar apenas malhas dimensionais.
Imensidões embutidas e escondidas escapam da fita métrica. O mapa não é exato, o mapa não
pode ser exato.” (BEY, 2001, p. 22).

No presente item desenvolverei a seguinte idéia: a geografia ensinada nas escolas,


desde a época de sua institucionalização no século XIX, tem sido aquela hegemônica que, ao
estancar diante do permanente, passa a servir ao processo de “estrangeirização” discente e de
alienação. A valoração de aspectos do real voltados à apreensão e compreensão da
permanência e à cessação do movimento do pensamento e do conhecimento 111 , característica
não apenas do saber geográfico escolar, mas de todo o conjunto de disciplinas que compõe o
currículo da escola básica, atende ao projeto societário das classes hegemônicas 112 , porque,
segundo expressão usada por Moreira (1994, p. 3-4), cria uma “dobra” que sobrepõe à
geografia real a da leitura ou da escola, processo este que provoca o embaciamento da visão.
Fonte eficaz de disseminação de um conjunto de ideologias estreitamente vinculadas à
construção do habitus para a reprodução do capital, a geografia da leitura, fundada na
metafísica como todo saber que se pretende hegemônico, tem sido historicamente denunciada
e atacada por negar o real e os movimentos do pensamento e, portanto, o ato de
conhecimento.
Os conhecimentos que passaram à história e, portanto, à memória social e que desde
os gregos até os dias de hoje têm sido identificados como geográficos – relatos ou descrições
de lugares, populações e mapas –, compõem as práticas educativas formais hegemônicas antes
mesmo de sua disseminação em larga escala nas escolas de massas dos séculos XVIII e XIX.
Na educação cavalheiresca que ocorreu por volta do século XVI na Europa central e
setentrional e na escolarização das elites do referido período em diante, os conhecimentos
identificados como geográficos figuravam como estratégicos para a acumulação de riquezas e

110
“Turtle Island”, antigo nome do continente americano, de acordo com a tradição de povos indígenas dos
Estados Unidos de hoje (N.T.).
111
“Todo pensamento é movimento. O pensamento que estanca deixa produtos: obras, textos, resultados
ideológicos, verdades. Cessou de pensar. Veremos mais longe, e cada vez melhor, que não apenas todo
pensamento verdadeiro é pensamento (conhecimento) de um movimento, de um devir.” (LEFEBVRE, 1991, p.
90).
112
Santos B. (2000b) considera a ciência moderna como o horizonte cognitivo da burguesia ascendente que o
considerava estágio final de evolução da humanidade.
Capítulo 1 80
Ângela Massumi Katuta

eram ensinados à aristocracia e às outras classes hegemônicas. Elaborar relatos e


mapeamentos dos lugares 113 era saber relevante para a reprodução social das elites na medida
em que no contexto do capitalismo mercantil, juntamente com outros recursos – armas de
fogo, instrumentos de navegação, meio de transporte etc –, auxiliava no domínio dos
territórios, dos outros elementos da natureza, no conhecimento, dominação e eliminação da
alteridade, suas instituições, sociedades e espacialidades.
Os saberes considerados como geográficos, bem como as espacialidades construídas
pelas classes hegemônicas disseminadas junto à população como um todo nas escolas de
massas dos séculos XVIII e XIX, foram impostos no jogo das tensões sociais por meio de
arbitrariedades, porque necessários à (re)produção do capital 114 . Em outros termos, esses
saberes alcançaram um grau de relevância social relativamente alto na escola formal, pelo fato
de que se constituíam em meios de orientação fundamentais para ações voltadas,
centralmente, ao aumento da riqueza material de poucos, inicialmente por meio da pilhagem,
negócios e comércio e, posteriormente, por meio da manufatura, indústria e do mercado
financeiro.
Subjetivar as relações sociais para a (re)produção ampliada do capital tem sido o
principal papel realizado pela geografia ensinada às massas; daí seu alinhamento com o
projeto societário dos grupos hegemônicos. É por meio do estancamento diante do
permanente, característico da razão fragmentária moderna que nega o movimento e as
contradições, que ocorre o embaciamento da visão e se processa a produção de ideologia.
Inviabiliza-se a possibilidade do avanço dos conhecimentos sobre as espacialidades
historicamente produzidas pelos seres humanos, pois, como afirma Moreira (1993), a
geografia hegemônica, em sua face moderna, reduz sua leitura do aparente a um único
esquema conceitual: N-H-E (natureza, homem, economia), não necessariamente nesta mesma
ordem.
Independentemente da existência de outras espaço-temporalidades, de concepções de
espaço e tempo das diferentes culturas e das espacialidades por elas construídas, a apreensão e

113
Não podemos nos esquecer de que independentemente da lógica inerente aos relatos, descrições e
mapeamentos, o fato de estes se realizarem no contexto de determinadas práticas sociais, espaço-temporalidades
e possuírem objeto e conteúdo retira qualquer possibilidade destas produções serem neutras. Lembremo-nos das
palavras de Lefebvre (1991, p. 30): “A lógica serve a todas as classes (assim como o faz a língua). Todavia, ela
só é ‘neutra’ enquanto é vazia; e na medida em que, implicando a possibilidade de pensar, não seja um
pensamento. Nenhum pensamento, nenhuma idéia, nenhuma ‘reflexão’ que tenham objeto e conteúdo podem ser
completamente neutros. Nem mesmo as matemáticas!”
114
A (re)invenção da instituição escolar pelo capital se dá na medida em que a reprodução deste, a partir da
difusão da fábrica, supõe a apropriação e (re)produção do espaço urbano pelo capital a fim de viabilizar as
relações de produção. Sobre este assunto ver Moreira (1999).
Capítulo 1 81
Ângela Massumi Katuta

o entendimento das mesmas são reduzidos pela geografia hegemônica à moldura “N-H-E”. É
por meio deste posicionamento epistemológico que ocorre o estancamento do pensamento na
geografia, o embaciamento da visão, a formação unilateral. É importante salientar que este
processo ocorre também nas outras disciplinas escolares que, igualmente fundadas na tradição
metafísica, expressão do processo civilizador característico do Ocidente, legitimam e
disseminam formas de pensamento voltadas à dominação cultural, condição para a dominação
econômica e (re)produção do espaço do e para o capital.
Lefebvre (1991), com toda propriedade, explica que a unilateralidade dos sujeitos,
produzida sob a égide do modo de produção capitalista, é conseqüência da disseminação da
metafísica pelas classes sociais economicamente hegemônicas. O que significa dizer que, ao
negar o movimento do processo de conhecimento, e dessa maneira, restringir o ato de
conhecer apenas ao entendimento 115 , a metafísica acaba por “Propor um saber absoluto, ou
uma substância inicial (do sujeito ou objeto erigidos em verdades metafísicas), é o que define
uma ideologia [...]”. (LEFEBVRE, 1991, p. 28).
Ao citar os efeitos da unilateralidade, o caráter de classe do entendimento metafísico
do mundo fica mais evidente: “[...] Ela nega o resto do mundo, esquece-o ou finge esquecê-lo.
Fixando-se no pouco que atinge, o pensamento nega o movimento e nega seu próprio
movimento. Assim, elimina (aparentemente) a contradição dialética.” (LEFEBVRE, 1991, p.
266).
Baudrillard (1996, p. 67), em seu livro intitulado A troca simbólica e a morte,
denunciou por meio de uma metáfora o esquema social e cognitivo engendrado pela
burguesia. Nela, faz referência direta ao processo de metaficização do fenomênico encetado
por esta classe, que lhe permitiu controlar o mundo de maneira hegemônica, tendo como
fundamento a racionalidade produtivista do capital:
Vivia outrora nas Ardenas um velho cozinheiro a quem a edificação de pratos
esculturais e a ciência da plástica pasteleira levaram à presunção de retomar o
mundo onde Deus o havia deixado... em seu estado natural – para nele eliminar a
espontaneidade orgânica, substituindo-a por uma matéria única e polimorfa, a
argamassa: móveis de argamassa, cadeiras, gavetas, máquina de costura de
argamassa e fora, no pátio, uma orquestra inteira, violinos incluídos, de argamassa,
árvores de argamassa ponteadas de folhas verdadeiras, um javali de argamassa
armada mas com um crânio verdadeiro de javali no interior, carneiros de argamassa
cobertos de lã verdadeira. Enfim, Camille Renault reencontrara a substância original,
a massa de cujos diversos frutos só se distinguiam por nuanças “realistas”: o crânio
do javali, as folhas das árvores – mas isso não passava, sem dúvida, de uma
concessão do demiurgo aos visitantes... porque é com um sorriso adorável que esse
bom deus de 80 anos levava as pessoas a visitar sua criação. Ele não queria rivalizar

115
Movimento do pensamento que separa os “[...] objetos uns dos outros e do conjunto em questão, isola,
‘fragmenta’ [...]; por conseguinte, o entendimento analisa, disseca e destrói [...] função do objeto e do instante
isolado, do detalhe tomado fora do conjunto.” (LEFEBVRE, 1991, p. 103).
Capítulo 1 82
Ângela Massumi Katuta

com a criação divina, ele a refizera simplesmente para torná-la inteligível. Nada de
uma revolta luciferina, de uma vontade paródica, nem da perspectiva retrô de uma
arte “naïf”. O cozinheiro das Ardenas reinava simplesmente sobre uma substância
mental unificada (porque a argamassa é uma substância mental, ela permite, como o
conceito, ordenar os fenômenos e nela recortá-los à vontade). Seu projeto não estava
longe do dos construtores de estuque da arte barroca, nem era muito diferente da
projeção do terreno de uma comunidade urbana nos grandes aglomerados atuais.
(BAUDRILLARD, 1996, p. 67).
É no sentido do estabelecimento de uma substância mental unificada que atua a
metafísica; no caso da geografia hegemônica moderna a argamassa tem sido, desde a sua
institucionalização, o esquema conceitual “N-H-E”. A inteligibilidade subjacente ao processo
de (re)criação ou (re)invenção do mundo, a partir da citada moldura conceitual fundada em
uma concepção cartesiana-newtoniana de espaço, aponta para um projeto societário e para
espacialidades que convêm única e exclusivamente à burguesia. Trata-se, portanto, de uma
racionalização voltada para a reprodução das relações capitalistas de produção.
A unilateralidade e a alienação dos sujeitos constituem-se em resultantes concretas
deste processo de abstração. A dobra criada pela metafísica entre a geografia real e a da escola
produz efeitos muito mais deletérios do que imaginamos. É por meio da construção
epistemológica de seres atópicos em nossas escolas que se oculta “[...] o fundamento
paradigmático alicerçado no trabalho e na política que referencia a construção geográfica das
sociedades em cada tempo.” (MOREIRA, 1994, p. 4). É dessa maneira que a geografia
hegemônica auxilia na produção da alienação; contudo, como a escola é um território de lutas
e tensões sociais, as contradições inerentes à complexidade do mundo, vivenciadas e sentidas
na pele pelos alunos, acabam por mostrar os limites do olhar geográfico hegemônico.
Não se trata de discutir aqui a verdade ou falsidade da metafísica. Trata-se de mostrar
que esta perspectiva, ao estancar nos primeiros movimentos – isolamento, fragmentação,
análise, dissecação –, do processo infinito que é o conhecimento, por ter em seu horizonte
cognitivo a crença na permanência, na verdade absoluta e eterna, portanto, definitiva, acaba
constituindo uma visão fragmentada e redutora do fenomênico e do mundo. É exatamente este
processo que ocorre com a geografia hegemônica que impõe a grade conceitual “N-H-E” para
o entendimento de toda e qualquer espacialidade, neste caso, abstraída também do contexto
espaço-temporal e social de engendramento. É Lefebvre (1991, p. 105) que, de maneira
perspicaz, aponta como a metafísica se esquiva com destreza das exigências da razão viva ou
da dialética:
Mantém-se presa às operações do entendimento, que ela confunde com a razão. Separa,

isola (por exemplo, o sujeito e o objeto), mas não o faz com o objetivo de reuni-los mais
Capítulo 1 83
Ângela Massumi Katuta

intensa e mais lucidamente. Ela os conserva separados. [...] Em particular, o entendimento

metafísico dissocia as oposições e contradições, deixando de ver a ligação, a própria

contradição.

Eis o ardil da metafísica dissecada por Lefebvre (1991) em sua obra Lógica Formal
Lógica Dialética. No contexto da geografia hegemônica, a metafísica produz a falsa
impressão a quem entra em contato com este discurso fragmentado e fragmentador que se está
a conhecer o mundo. Contudo, pelo fato de que entendimento e razão 116 , dois movimentos do
pensamento dialeticamente opostos, não são reunidos na metafísica, por esta reduzir o
conhecimento ao entendimento, o movimento dialético do pensamento que vai do
desconhecido para o conhecido para, em espiral, ao desconhecido retornar e assim
infinitamente, não é completado. Daí afirmarmos que a metafísica estanca nos primeiros
movimentos inerentes ao conhecimento. O problema, contudo, não se reduz a uma questão de
verdade ou falsidade em termos absolutos, trata-se de não prosseguimento dos múltiplos
movimentos do pensamento 117 .
Por meio do discurso metafísico da geografia entra-se Através do Espelho de Alice,
acessa-se ao “mundo da geografia”, estacionário e estancado nos primeiros movimentos do
conhecimento, rompe-se com o que Lefebvre (1991, p. 116) denomina de ritmo do
conhecimento:
O ritmo do conhecimento, portanto, é o seguinte: parte do concreto, global e
confusamente apreendido na percepção sensível, e que se apresenta, portanto, sob
esse aspecto, como primeiro grau de abstração; caminha através da análise, da
separação dos aspectos e dos elementos reais do conjunto, através, portanto, do
entendimento, de seus objetos distintos e de seus pontos de vista abstratos,
unilaterais; e, mediante o aprofundamento do conteúdo e da pesquisa racional,
dirige-se no sentido da compreensão do conjunto e da apreensão do individual na
totalidade: no sentido da verdade concreta e universal. [...] O concreto não se
mantém à margem do conhecimento. Ao contrário, afirma-se como o próprio
objetivo do conhecimento: como o verdadeiro. (LEFEBVRE, 1991, p. 116).
A geografia ensinada realiza os movimentos do conhecimento apenas parcialmente.
Inicia pelo primeiro grau de abstração, destacando do plano da generalidade o objeto a ser
estudado, como a morfologia do terreno, o clima, a vegetação, hidrografia, a urbanização, a
industrialização etc., e, por meio do processo de análise, separa os objetos do seu conjunto e
de seu contexto social e espaço-temporal de realização, construindo pontos de vista unilaterais
ou do fenomênico em si; estancando no ato de entendimento, resulta deste processo o
116
“A razão, por sua vez, constata que o elemento não pode viver fora do conjunto, nem o órgão fora do todo
vivo. Por conseguinte, a razão restabelece, ou busca restabelecer, o todo; é função da vida, do conjunto do
movimento total. [...] A razão é função da unidade.” (LEFEBVRE, 1991, p. 104).
117
Sobre este assunto ver Lefebvre (1991), especificamente o Capítulo II intitulado Os movimentos do
pensamento.
Capítulo 1 84
Ângela Massumi Katuta

tratamento superficial dado aos conteúdos trabalhados em sala de aula. Ao negar o processo
de aprofundamento do conteúdo que realizaria a compreensão do conjunto e do individual na
totalidade, ou seja, a compreensão inerente às espacialidades, a geografia destrói ou assassina
a possibilidade de realização do conhecimento, transformando o aluno em um estrangeiro no
mundo em que vive.
O objetivo do conhecimento, diz Lefebvre (1991, p. 113), é o conhecimento do real,
do concreto; contudo, este não nos é dado de imediato. A abstração se impõe como condição
para o avanço e a própria realização do conhecimento, dado que o ato de pensamento
necessita destacar, da totalidade do real, o que comumente chamamos de objeto de
pensamento. Portanto, o próprio avanço do conhecimento impõe a necessidade de uma
ruptura momentânea no que Lefebvre (1991, p. 114) irá denominar de “[...] mundo dos
objetos práticos, dos instrumentos, da linguagem, da experiência familiar, da percepção e da
ação cotidiana [...]” que se constituem em um grau do conhecimento. Neste sentido, alerta o
autor:
[...] aquele que deseja captar imediatamente – olhando em torno de si o mundo
físico, ou a vida social e econômica, sem ter passado pela abstração, condena-se a
nada captar de essencial e de verdadeiramente concreto, a se manter no aparente, no
superficial, no contingente. Para atingir o verdadeiro, é preciso penetrar além do
imediato. [...] Elevar-se acima do prática e socialmente existente, dominá-lo, é
ademais pô-lo em causa e negá-lo [...]. É, por conseguinte, preparar-se para
transformá-lo, já que não poderia se tratar, para a razão, de abandoná-lo à sua
própria sorte, nem tampouco à passividade do ‘senso comum’ e à tolice dos
‘realistas’ que vêem apenas o imediato e a prática banal. (LEFEBVRE, 1991, p.
113-114-115).
Apesar de ser um momento necessário do movimento do conhecimento, não se pode
manter a separação provocada pela abstração, fazê-lo seria estancar-estagnar na metafísica:
“O entendimento abstrativo cai em erro (relativo) ao manter a separação. A razão restabelece
as relações, a unidade, isto é, o concreto.” (LEFEBVRE, 1991, p. 114).
Este fenômeno foi perspicazmente apreendido pelo genial reverendo Charles Lutwidge
Dodgson ou, como queiram alguns, Lewis Carrol (2002, p. 161), ao descrever as indagações
de Alice que antecedem seu movimento no tabuleiro de xadrez:
Evidentemente a primeira coisa a fazer era um levantamento completo da região que
iria atravessar. ‘É muito parecido com estudar geografia’, pensou Alice, erguendo-se
nas pontas dos pés na esperança de conseguir ver um pouco mais longe. ‘Rios
principais... não há nenhum. Montanhas principais... estou em cima da única, mas
não me pareça que tenha nome. Cidades principais...
Capítulo 1 85
Ângela Massumi Katuta

O ensino da geografia hegemônica, por meio de um uso das linguagens118 fundado na


abstração vazia – porque estanca no conceitual, restringindo-se ao formalismo que deixa de
ter função no movimento do conhecimento 119 , como bem demonstra Carrol (2002) –, fixa-se
na unilateralidade, proporcionando aos que com ele entram em contato a falsa impressão de se
racionalizar sobre as espacialidades produzidas historicamente, fato este que se revela
enganador, a julgar pela quantidade de críticas endereçadas ao papel educativo desta
disciplina por um número expressivo de pesquisadores, pensadores e escritores de romances,
como é o caso de Carrol.
O resgate do entendimento lefebvriano sobre o conhecido e desconhecido e o ato de
conhecimento deve trespassar o ensino da geografia, caso se queira avançar rumo ao
conhecimento:
[...] não há heterogeneidade substancial (metafísica) entre o desconhecido e o
conhecido, mas sim uma passagem normal e incessante de um para o outro: o
desconhecido torna-se conhecido; e, vice-versa, é o conhecido que indica e chama o
desconhecido, ainda inexplorado. O ‘conhecido’ não é a ‘coisa’ que se torna
‘pensamento’ mediante uma transfusão misteriosa. [...] É assim que avança o
conhecimento, que não é uma revelação num dado instante, nem mesmo uma
marcha linear e simples da ignorância ao conhecimento, mas uma estrada cheia de
complicados meandros, que acompanha os acidentes do terreno sobre o qual ela
passa e que, por vezes, deve voltar atrás. É apenas uma estrada, um caminho que
passa através da natureza; mas como diz Hegel numa fórmula singular e profunda, é
um caminho que se faz a si mesmo. (LEFEBVRE, 1991, p. 102-103).
Apesar de ser a forma hegemônica de entendimento das espacialidades, paralelamente
à “geografia da leitura” ou da escola, sempre existiu uma geografia historicamente
marginalizada. Moreira (1988, p. 15 et seq.) afirma que não foi por acaso que a geografia,
enquanto saber sistematizado e estratégico sobre o espaço, surge na Grécia – das lutas
democráticas e do comércio –, juntamente com a filosofia, a história e o teatro. Somente em
uma sociedade onde historicamente se desenrolaram lutas democráticas entre os diferentes
sujeitos sociais, cujos fundamentos residiam no questionamento dos direitos políticos e sua
relação com a riqueza e a propriedade privada da terra, e onde houve a imposição de uma
talassocracia por parte dos setores hegemônicos desta sociedade, é que os saberes geográficos
terão relevância social a ponto de passarem por um certo processo de sistematização.
Obviamente que as práticas decorrentes das lutas democráticas e da imposição e
consolidação das hegemonias entre os gregos, enquanto potência marítima, apontavam para
projetos societários diametralmente opostos. Conseqüentemente, pode-se afirmar que as

118
Essa questão será trabalhada no próximo item; contudo, adianto-me em esclarecer que estou me remetendo ao
uso que torna o conceito estacionário, estanca-se nele, que “[...] se coagula ao nível do entendimento analítico,
subjetivamente, arrancando da interação universal o fenômeno do ser em questão.” (LEFEBVRE, 1991, p. 273).
119
Problemática esta abordada por Ferraz (2001).
Capítulo 1 86
Ângela Massumi Katuta

concepções de espaço e de geografia decorrentes de tais práticas eram diferenciadas porque


fundamentadas por práxis sociais distintas.
O desenvolvimento histórico dos saberes geográficos desde os primórdios do que hoje
se denomina civilização ocidental se realizou basicamente a partir de duas vertentes voltadas a
práxis diferenciadas: uma atrelada às lutas democráticas e à transformação social e a outra,
sob a forma de relato sobre povos, terras e mapas, atrelada às classes hegemônicas que
viabilizou o escravismo, comércio e o Estado, voltada portanto, à reprodução e alienação 120 .
(MOREIRA, 1988, p. 16).
É esta última geografia que se torna hegemônica na sociedade ocidental, denominada
por muitos de oficial, e passa à história sobretudo pelo recurso à violência de fato ou
simbólica. Enquanto registro legítimo 121 , a geografia hegemônica inicialmente é reproduzida
e retroalimentada pela e na prática e memória social das elites. Posteriormente, quando da
difusão da fábrica, passa a ser disseminada junto às massas, sendo este discurso doravante
identificado até hoje como geografia. “A geografia concebida como práxis democrática e
transformadora ficará sufocada nos interstícios da forma oficializada [...]”. (MOREIRA, 1988,
p. 17).
Com grande propriedade, Moreira (1988, p. 17) chama a atenção em seu livro para o
fato de que a segunda vertente da geografia “[...] refluirá toda vez que a democracia e o
socialismo estiverem postos.” Vários pensadores e obras são por ele reconhecidos como
fazendo parte desta outra vertente, mas, afirma o autor, seus discursos não são identificados
correntemente com a Geografia que se faz, dado que esta se legitimou em sua forma
hegemônica como um discurso sobre o permanente, engessado na moldura conceitual
“Natureza-Homem-Economia”.
Ao questionarem os fundamentos das desigualdades sociais, os sectários da segunda
geografia, segundo o mesmo autor, acabaram por colocar em xeque as espacialidades
hegemônicas produzidas e as relações com os outros seres humanos delas derivadas,
propondo uma geografia e espacialidades fundadas em uma práxis democrática e
transformadora, são eles: Thomas Morus (A Utopia), Tommaso Campanella (A cidade do

120
Segundo Lefebvre (1991, p. 110), o fundamento da dicotomia que caracteriza o pensamento grego, do qual
somos herdeiros diretos, reside na forma de realização do trabalho, tendo, portanto, fundamento social. Pelo fato
de todo trabalho prático e produtivo ser relegado aos escravos, engendrou-se no bojo desta sociedade dicotomias
nefastas ao pensamento humano, como a separação entre: concreto e abstrato, contemplação e ação, teoria e
prática. “[...] o pensamento metafísico dos gregos foi uma ocupação aristocrática, um prazer luxuoso reservado
aos homens livres.”
121
Porque legitimado no jogo das tensões sociais a favor dos setores hegemônicos e em detrimento da antiga
constituição gentílica e dos expropriados dos meios de produção. Lembremos das palavras de Marx já
anteriormente comentadas: as idéias das classes dominantes são as idéias dominantes de um período.
Capítulo 1 87
Ângela Massumi Katuta

Sol), Rousseau (Discurso sobre a Desigualdade), Morelly (Os Códigos da Natureza), Fourier
(Novo Mundo Industrial), Louis Blanc (Organização do trabalho), Cabet (Viagem a Icária),
Engels (A situação das classes trabalhadoras na Inglaterra) e Marx (Manuscritos de Paris, A
ideologia Alemã, Grundisse).
Sob a égide do modo de produção capitalista, principalmente a partir do século XIX
com as revoluções burguesas, as representações, as linguagens e os saberes impostos como
legítimos e que conquistaram o patamar de objetividade e verdade no contexto da metafísica
foram aqueles produzidos e assumidos por esta classe. A revolução burguesa expressa, além
do domínio político e econômico burguês, sua hegemonia simbólica, campo este em que se
destacam as ciências e as artes acadêmicas enquanto produções que tiveram e ainda têm
grande influência na cosmologia e, portanto, na vida da sociedade ocidental e dos povos por
ela colonizados, principalmente no que se refere à construção de sua concepção metafísica de
conhecimento.
Expressão da hegemonia burguesa sobre o mundo o realismo renascente, subjacente às
pinturas e outras produções da época como as disciplinas escolares e os próprios saberes
científicos, expressava a assunção social em torno do que o pensamento hegemônico
considerava como uma representação objetiva do mundo. Ao contrário do que muitos pensam,
inexiste uma representação objetiva do mundo per si e em si; ela é objetivada e legitimada no
contexto ou tensão das relações humanas, dos modos de produção e portanto depende da
forma como o trabalho se realiza em cada sociedade, sendo também dele expressão.
Quando se constituem os grandes sistemas educacionais nacionais públicos europeus,
por volta do século XVIII e principalmente a partir da segunda metade do XIX, voltados à
formação de trabalhadores unilaterais e alienados para a indústria e, portanto, para a
(re)produção de espaços que a viabilizassem, pode-se afirmar que a geografia ensinada nas
escolas, voltada à hegemonia de poucos sobre muitos, já tinha sua identidade esboçada desde
a tradição clássica: “Dos romanos à ‘idade da ciência’ (séculos XVIII-XIX) a geografia terá
sua imagem cunhada como um inventário sistemático de terras e povos. Um tratado descritivo
e cartográfico com caráter ‘auxiliar da administração de Estado’ e pedagógico.” (MOREIRA,
1988, p. 19). Eis a forma de realização de todo resgate ou (re)invenção das tradições
hegemônicas inerentes a uma outra espaço-temporalidade: o olhar para trás enxerga como
legítimo e se (re)apropria ou se aproveita apenas dos saberes, atividades produtivas e relações
espaciais que se revelam fundamentais ao novo modo de produção.
Considerando-se a face socializadora da instituição escolar, abordada no item anterior,
e o tipo de geografia que se realiza ainda atualmente nas escolas, pode-se afirmar que os
Capítulo 1 88
Ângela Massumi Katuta

saberes geográficos escolares têm auxiliado, na maior parte das vezes, no estabelecimento do
habitus 122 voltado para a reprodução das classes hegemônicas. Este sistema de percepção e
ação do e sobre o mundo é inculcado nos alunos por meio da convivência prolongada com a
metafísica inerente às produções hegemônicas que, no jogo das tensões sociais, são colocadas
como as únicas legítimas e verdadeiras.
A geografia que passa à história, ao se consolidar na instituição escolar de massas do
século XVIII em diante, se mostrará útil na medida em que auxiliará na formação dos seres
unilaterais 123 e alienados em relação ao conhecimento das espacialidades produzidas. Essa
educação tem como fundamento uma prática social que orbita sub-repticiamente ao redor de
tratados descritivos e de materiais cartográficos, cuja elaboração e uso, fundados na
metafísica, se mostrarão úteis ao processo de estancamento do conhecimento e, portanto, de
alienação.
Na escola ensina-se a pensar metafisicamente e, portanto, a (re)produzir espacialidades
voltadas à (re)produção do capital. Essa educação ocorre tanto por meio do posicionamento
epistemológico dos agentes educadores, quanto pelo uso que se faz dos instrumentos criados
pela humanidade, voltados a um determinado entendimento da realidade. No caso da
geografia, como já afirmei anteriormente, tais processos ocorrem pelo estancamento na
abstração do objeto de pensamento; por isso, esse saber remete a todas as montanhas do
mundo mas a nenhuma em particular, a todos os padrões de mobilidade populacional mas ao
mesmo tempo a nenhum em particular. Do ponto de vista das linguagens que tradicionalmente
têm instrumentalizado as análises geográficas, o processo é também o mesmo.
Quando surgem as primeiras escolas do Estado, voltadas à grande massa da população,
a compreensão mecanicista e metafísica do mundo, sua conversão e divisão em res extensa –
domínio fisicamente extenso de matéria e movimento –, e res cogitans – domínio dos
pensamentos, sentimentos e experiências espirituais –, a separação sujeito-objeto, expressão
da razão fragmentária, já havia se processado e se tornado habitus hegemônico. Nos termos
lefebvrianos (1991), o mediato já se tornara imediato.
O ensino e a aprendizagem de um dado saber e concepção sobre e do espaço,
considerados como os únicos legítimos no plano das relações sociais engendradas no contexto
de uma concepção metafísica de conhecimento têm implicado a viabilização de saberes e
espacialidades voltados à reprodução das atuais condições de produção; portanto, na alienação

122
Sistema de normas sociais de percepção, entendimento e ação no mundo.
123
A metáfora de Ítalo Calvino (1997) apresentada em sua trilogia intitulada Os nossos antepassados, constitui-
se em uma belíssima abordagem da problemática da unilateralidade do ser humano sob a égide de regimes
totalitários, nele incluindo-se o modo capitalista de produção dissecado por Karl Marx.
Capítulo 1 89
Ângela Massumi Katuta

dos sujeitos e inviabilização de territorialidades menos excludentes. Os discursos geográficos


se realizam por meio da linguagem e, dentre elas, a cartográfica tem sido tradicionalmente
utilizada pela geografia ensinada. Mais adiante tais discursos serão examinados a fim de
demonstrar que a disseminação dos mesmos da maneira como, via de regra, várias pesquisas
têm descrito indicam a assunção de um projeto societário voltado para a alienação.
Trata-se de mostrar que a geografia e mesmo a cartografia enquanto práxis humanas
não podem ser compreendidas de maneira simplista, ora como instrumentos de alienação ou
de emancipação, como se as mesmas existissem em si e per si. Parafraseando Marx 124 (1968,
p. 37, apud ENGUITA, 1993, p. 269-270): a geografia e a cartografia ensinadas são a
geografia e a cartografia ensinadas; somente em determinadas condições e relações sociais
elas se convertem em instrumentos de alienação. Os mapas são os mapas; somente em
determinados contextos podem, assim como qualquer outra figuração espacial, ser usados
para alienação. Não se podem demonizar os objetos, os instrumentos criados pelos seres
humanos, como ainda o fazem algumas sociedades tidas como primitivas por uma parte
considerável dos ocidentais, e mesmo como o fizeram alguns representantes do movimento de
renovação da geografia brasileira conhecido como Geografia crítica 125 . Estes últimos, à
maneira dos primeiros, fundados em uma concepção metafísica de mundo, até hoje gastam
horas a fio tentando chegar a um denominador comum se este ou aquele objeto é pernicioso
ou não às pessoas. Adianto-me aqui que não se trata dos objetos em si, mas das relações
sociais encetadas pelos diferentes sujeitos sociais por meio deles.
Enquanto expressões das práxis humanas em uma sociedade estruturada em classes
sociais, onde na própria instituição escolar se vivencia a cisão-oposição entre trabalho e
escola que legitima a antiga ruptura entre trabalho manual e intelectual, a geografia e a
cartografia ensinadas, como todos os outros saberes escolares, por não terem vida própria e,
assim, não poderem ser reificadas e fetichizadas, devem ser compreendidas no contexto das
relações sociais que ocorrem sob a égide do modo de produção capitalista. É somente neste
contexto civilizador que a alienação ou o processo de estrangeirização ao qual fiz referência
pode fazer sentido.

124
O trecho parafraseado corresponde a um excerto da obra de Marx intitulada Trabalho assalariado e capital:
“Um negro é um negro. Só em determinadas condições se converte em escravo. Uma máquina de fiar algodão é
uma máquina de fiar algodão. Só em determinadas condições se converte em capital. Tiradas destas condições,
não tem nada de capital, da mesma forma que o outro não é em si mesmo dinheiro, nem açúcar o preço do
açúcar.“
125
Sobre este assunto ver minha dissertação de mestrado (KATUTA, 1997) e o livro que publiquei em co-autoria
(SOUZA; KATUTA, 2001).
Capítulo 1 90
Ângela Massumi Katuta

Os discursos geográficos e a linguagem cartográfica, essa última tradicionalmente


utilizada pela geografia ensinada, serão examinados a seguir a fim de demonstrar que a
disseminação dos mesmos da maneira como, via de regra, várias pesquisas têm descrito
indicam a assunção de um projeto societário voltado para a alienação.
Capítulo 2 91
Ângela Massumi Katuta

Capítulo 2: Concepções de espaço, linguagens e geografias


“Sem aprender uma língua, isto é, sem aprender a comunicar com outros seres humanos através
de símbolos sonoros, uma pessoa não poderia realizar o tipo de pensamento que permite aos seres
humanos fazerem face ao tipo de problemas que derivam da co-existência de qualquer indivíduo
com outros indivíduos, humanos ou não humanos.” (ELIAS, 1994b, p. 79).

Tendo como horizonte os processos de estrangeirização e alienação do aluno, que


ocorrem também por meio do ensino da geografia, faz-se necessário compreender como eles
se processam no caso da disciplina em questão. A idéia norteadora do presente capítulo é a de
que as transformações no modo de produção modificam as relações dos seres humanos entre
si e suas concepções de espaço 126 , bem como suas geografias, sistematizadas e expressas por
meio de diferentes linguagens. O uso disseminado e quase que exclusivo de figurações
espaciais hegemônicas como o mapa em sua versão moderna junto à geografia escolar no
século XIX, em detrimento de outras linguagens e das maneiras as mais diversas de sua
apropriação e uso, expressou a assunção, pela escola, de um projeto societário cuja
centralidade esteve voltada para a alienação, viabilizando, dessa maneira, a reprodução do
espaço para o capital.
Considerando-se que toda aprendizagem, seja ela escolar ou não, se realiza por meio
da linguagem, iniciei o presente capítulo com uma reflexão introdutória, tentando mapear os
debates realizados historicamente em torno do fenômeno em questão. O intuito desse
mapeamento foi o de explicitar o fato de que inexiste uma separação rígida entre os debates
sobre linguagem, conhecimento e a idéia da verdade, por se tratarem de fenômenos
correlacionados.
Esta reflexão é necessária, principalmente em uma área de estudos como a geografia
que, desde a época de sua institucionalização, tem se alinhado a uma tradição iconoclasta,
cujo fundamento reside na crença de uma relação direta entre linguagem e verdade. Advém
daí a sua opção, desde o processo de sua institucionalização, pelas linguagens escrita, oral e
cartográfica. Entender a linguagem como um fenômeno em si e per si constitui-se em
equívoco grave que tem ocultado inúmeras relações inerentes a esta produção humana que
tem na dualidade 127 sua característica primordial.
Em seguida, indico que as linguagens devem ser entendidas, concomitantemente, no
contexto da educação formal, âmbito no qual se circunscreve a presente reflexão, enquanto

126
Toda modificação no modo de produção implica transformações nas relações dos seres humanos entre si e
destes, com os outros elementos da natureza e de suas espaço-temporalidades.
127
Resulta de dois processos que se realizam concomitantemente: desenvolvimento e aprendizagem. Sobre esse
assunto ver Elias (1994b).
Capítulo 2 92
Ângela Massumi Katuta

instrumentos de conhecimento (estruturas estruturantes), meios de comunicação (estruturas


estruturadas) e instrumentos de dominação. Isso pelo fato de a linguagem ser aqui considerada
como relação social e, por isso, expressar as práticas humanas realizadas por meio dela e
auxiliar no engendramento destas.
Finalizo o Capítulo 2 tratando das concepções de espaço inerentes às geografias
produzidas, abordando, como não poderia deixar de fazê-lo, a linguagem cartográfica,
tradicionalmente utilizada por essa disciplina. Por meio desta reflexão, mostro a assunção,
pela geografia ensinada ou da leitura, de um projeto societário voltado à alienação, que se
desdobrou na ruptura com a geografia real e o conseqüente processo de estrangeirização
discente.
As reflexões sobre a linguagem no contexto do que hoje denominamos de
conhecimento filosófico e científico envolvem um conjunto amplo de períodos, pensadores,
momentos históricos e sociedades, ângulos de visada, referenciais teórico-metodológicos e
abordagens que tornam impossível uma exposição esclarecedora dos elementos citados, a não
ser em uma obra especificamente dedicada a esta ambiciosa empreitada. Este não foi o caso
da presente tese, focada no ensino da geografia nas escolas básicas. Por isso, faz-se necessário
o estabelecimento de recortes para o estudo e abordagem da linguagem, entendida no presente
trabalho enquanto processo 128 que, juntamente com a percepção, o pensamento e a memória, é
estruturador e estruturante do conhecimento humano 129 , desempenhando também o papel de
instrumento de realização do poder em determinado contexto social e espaço-temporal.
Apesar de o presente trabalho referir-se ao ensino da Geografia nas escolas básicas,
entendo que os debates sobre as linguagens humanas 130 são importantes pelo fato de essas

128
Wittgenstein (1995) em sua obra Investigações Filosóficas elaborou um conjunto significativo de reflexões
sobre a necessidade da ampliação dos entendimentos que possuímos da linguagem, compreendida pelo autor
como práxis (p. 187), instrumento que possui as mais variadas funções (p. 180), daí o mesmo entender que não
se pode definir o sentido da palavra de forma descontextualizada, pois ela se realiza num dado contexto: “[...] o
sentido de uma palavra é o seu uso na linguagem.” (p. 207). “[...] Era isto também o que Frege queria dizer
quando disse que uma palavra só tem sentido no contexto de uma proposição.” (p. 214). “[...] a palavra é
indefinível.” (p. 306). “[...] uma pessoa só se orienta por um sinal na medida em que existir um uso contínuo, um
costume de se orientar por ele. [...] Seguir uma regra, fazer uma comunicação, dar uma ordem, jogar uma partida
de xadrez, são costumes (usos, instituições). Compreender uma proposição significa compreender uma
linguagem. Compreender uma linguagem significa dominar uma técnica.” (p. 320).
129
Mais adiante explicito melhor essa afirmação; no entanto, é preciso salientar que nenhuma linguagem e
conhecimento são neutros, isso porque subjacente ao uso e apropriação dos mesmos existe um conjunto de
elementos que auxiliam na realização de um determinado poder.
130
Pode parecer redundante, mas utilizei a expressão “linguagens humanas” pelo fato de entender que hoje não
se pode negar o conjunto de estudos sobre as linguagens dos animais. Contudo, há que ressaltar as
especificidades desse processo nos seres humanos, caso contrário, poderemos cair em armadilhas aprioristas.
Alexandr Romanovich Luria, colaborador de Lev Semenovich Vygotsky, em seu livro Pensamento e linguagem
(1986, p. 11 et seq.), ao discutir sobre a existência da linguagem nos animais − que remete à polêmica do
inatismo, e conseqüentemente, ao apriorismo kantiano e neo-kantiano −, entende que o importante é destacar a
diferença entre a linguagem dos seres humanos e dos animais que, na sua opinião, possuem uma “quase
Capítulo 2 93
Ângela Massumi Katuta

serem um dos elementos fundamentais para a realização dos processos de comunicação,


ensino e aprendizagem, sejam eles formais ou não formais. Portanto, é por meio dela e dos
processos inerentes à mesma que um dos aspectos do humano no ser humano se realiza.
A sistematização de reflexões sobre pensamento, linguagem, memória, percepção e
construção de conhecimentos permite entender os processos de ensino e aprendizagem
escolares, em uma perspectiva menos cindida. A referida cisão é característica de uma parte
significativa dos estudos elaborados no contexto da atual divisão intelectual do trabalho
científico − ciências humanas, exatas e biológicas −, expressão do pensamento moderno
hegemônico, ao qual subjaz um processo civilizador e modo produção. Daí minha opção pela
Teoria simbólica de Norbert Elias (1994b) e o resgate de algumas categorias de pensamento
materialistas dialéticas, extremamente úteis ao proporcionar contexturas conceituais,
históricas e espaciais no desenvolvimento de análises relativas aos processos humanos.
Um dos debates centrais e recorrentes em sociedades cuja tradição de pensamento tem
ancoragem nas culturas gregas, judaicas e cristãs está ligado à utopia da língua perfeita 131 . Os
povos citados têm como característica primordial o estabelecimento de relações de dominação
com outros povos. Por isso suas produções culturais hegemônicas e suas concepções acerca
da linguagem e do conhecimento 132 tenderem a justificar e reforçar os processos de
dominação do mundo pelos justos, porque tementes a Deus e seguidores de sua verdade.
Outras formações sociais foram e ainda são vistas, sob essa perspectiva, como ilegítimas,
justificando-se sua necessária civilização pelos portadores da verdade. Um dos muitos
desdobramentos desta concepção de linguagem e conhecimento hegemônicos que negava ao
outro e seus saberes, suas espaço-temporalidades e formações sociais foi o transbordamento
do que atualmente conhecemos como civilização ocidental, cujo processo civilizador133
apontou para o extermínio do Outro, portanto das alteridades.

linguagem”. Por linguagem humana: “[...] entendemos um complexo sistema de códigos que designam objetos,
características, ações ou relações; códigos que possuem a função de codificar e transmitir a informação,
introduzí-la em determinados sistemas [...] Na realidade, todas estas características são próprias apenas da
linguagem no homem. [...] a linguagem desenvolvida do homem é um sistema de códigos suficientes para
transmitir qualquer informação, inclusive fora do contexto de uma ação prática. [...] No homem a linguagem
designa coisas ou ações, propriedades, relações, etc., e desta forma transmite uma informação objetiva,
elaborando-a; já a ‘linguagem’ natural dos animais não designa uma coisa permanente, uma característica, uma
propriedade, uma relação, expressa apenas um estado ou uma vivência do animal. É por isso que esta linguagem
animal não dá uma informação objetiva, mas simplesmente contagia os estados em que se encontra o animal que
emite o som [...] Portanto, o sinal nos animais é uma expressão de seu estado afetivo e a transmissão do sinal é a
transmissão deste estado, a inclusão nele dos outros animais e mais nada.” (LURIA, 1986, p. 25).
131
Na perspectiva dos referidos povos, aquela cujo poder auxiliará os seres humanos a encontrar o caminho para
o conhecimento da verdade das coisas.
132
O fundamento da crença na língua perfeita invariavelmente está ancorada na crença do conhecimento
verdadeiro, perfeito porque imutável, portanto, absoluto.
133
Elias (1993, 1994a).
Capítulo 2 94
Ângela Massumi Katuta

Borst (apud ECO, 2001, p. 17-18) defende que as discussões sobre a língua perfeita
constituem-se em obsessões que perpassam a história de todas as culturas. Entendo que essa
afirmação não pode ser generalizada, à maneira como os autores fazem, pois a centralidade do
referido debate em cada sociedade depende de sua cosmologia, do processo civilizador
inerente a cada grupo humano 134 . Antes, é preciso que se questione: O que se oculta por meio
de uma tal afirmação?
O debate sobre a perfeição da linguagem, da existência de linguagens perfeitas em
detrimento de outras, somente adquire centralidade ou relevância no contexto de um processo
civilizador ancorado na idéia da verdade. A linguagem perfeita, nesta perspectiva, se torna a
chave para um entendimento do real – externo aos seres humanos –, mais verdadeiro ou
legítimo em relação aos saberes produzidos por outras sociedades. Essa crença − na
linguagem perfeita, na verdade absoluta e imutável 135 −, aliada a outros elementos
característicos de determinadas formações sociais, auxiliou e ainda auxilia no processo de
subjugação de muitas sociedades e na conseqüente eliminação de suas espacialidades.
A crença na utopia da língua perfeita revela o habitus homogeneizador e
simplificador, típico da sociedade ocidental pós-feudal. A permanência e persistência desse
debate devem ser compreendidas no contexto da constituição do que hoje conhecemos como
civilização ocidental e do conjunto de entendimentos decorrentes deste processo. Em relação
à Lógica Ocidental Tung-Sun (2000, p. 180) afirma que:
[...] A idéia de substância é, na verdade, o fundamento ou fonte de todos os outros
desenvolvimentos filosóficos. Havendo uma descrição qualquer ela passa a ser
atributo. Um atributo deve ser atribuído a uma substância, de modo que a idéia de
substância é absolutamente indispensável ao pensamento, assim como o sujeito é
absolutamente indispensável à linguagem. Por isso, na história da Filosofia
ocidental, por mais diferentes que possam ser os argumentos, favoráveis ou
contrários à idéia de substância, o que constitui o problema central é essa mesma
idéia de substância.
A centralidade da linguagem, enquanto elemento que constitui ou compõe a identidade
ontológica das coisas na cosmologia ocidental, reside na idéia de substância. É no contexto
desta relação que se engendra a possibilidade da construção da crença na existência de uma
língua perfeita, expressão última da verdade ou reveladora da verdadeira substância dos
objetos. O mesmo autor afirma ainda que o fundamento da noção de substância, na referida
134
Elias, em seu célebre estudo intitulado O Processo civilizador (1994a, v. 1, p. 14-15), afirma que mudanças
do comportamento humano seguem determinados padrões e indicam uma direção específica. Por meio de uma
análise das atividades humanas, aparentemente triviais e insignificantes (por exemplo: do comportamento à
mesa, do hábito de assoar-se, escarrar, das atitudes em relação a funções corporais, do comportamento no quarto,
nas relações entre os sexos, entre outras), podemos verificar a lenta modificação na maneira como o indivíduo se
comporta e sente. Para o mesmo autor, essas mudanças, no caso da sociedade ocidental, ocorreram rumo a uma
“civilização” gradual que alterara, por exemplo, os sentimentos de vergonha e delicadeza. Os padrões do que a
sociedade exige e proíbe modifica-se geográfica e historicamente.
135
Que são as das classes hegemônicas.
Capítulo 2 95
Ângela Massumi Katuta

cosmologia, liga-se também ao desenvolvimento da crença na existência de um ser supremo


que a tudo criou − objetos e seus nomes ou pelos menos seu nomeador 136 .
Pelo fato de, para os ocidentais, a idéia de substância estar estreitamente ligada à
noção de identidade, constitui-se a crença de que a linguagem, por identificar o objeto, tem o
poder de desvelar a substância ou verdade das coisas (TUNG-SUN, 2000, p. 188-189).
Verifica-se que não por acaso na geografia escolar o hábito de enumerar objetos e suas
características ainda hoje é muito arraigado; ao fazê-lo, acredita-se estar desvelando a
verdadeira natureza das coisas. Nega-se assim o fato de que a identidade das coisas e mesmo
dos objetos se constituem no conjunto das relações sociais, engendradas sob um determinado
modo de produção. As coisas e objetos não são em si e per si, mas se realizam de maneira
diferenciada em diferentes contextos sociais e espaço-temporais. Não tive a pretensão de
esgotar, ou sequer mapear os debates sobre a questão da língua perfeita 137 ; contudo, cabe
registrar aqui que esta crença está presente na cosmologia ocidental desde os seus primórdios
e teve desdobramentos profundos em sua ontologia e epistemologia, dentre os quais o mais
relevante refere-se à cisão absoluta entre o sujeito e o objeto do conhecimento, expressão de
uma concepção substancialista de mundo.
Ao se abordar a construção de conhecimentos escolares, contexto da presente tese,
questões relacionadas à linguagem devem ter centralidade. Isso porque o ser humano somente
pode se realizar a partir de processos educativos ou de aprendizagem, sejam eles formais ou
não-formais, que o auxiliam a construir seus entendimentos sobre o mundo e nele agir. Tudo
isso supõe a efetivação de processos comunicativos inter pessoais, como adequadamente
afirma Elias (1994b, p. 79) na epígrafe do presente capítulo.
A aprendizagem somente pode se realizar por meio da linguagem que, a exemplo da
religião e da arte, compõe o que denominamos sistemas simbólicos humanos e que, segundo
Bourdieu (2000a, p. 7 et seq.), constitui-se em estrutura estruturada e estruturante dos

136
Adão na cosmologia cristã.
137
Eco (2001) em seu livro Em busca da língua perfeita na cultura européia fez um mapeamento extremamente
competente do assunto, de seus principais sistematizadores e debatedores no contexto da cultura greco-judaico-
cristã, da qual descendemos diretamente. A grande contribuição da obra em questão é a explicitação e análise de
algumas idéias contidas em alfarrábios, pertencentes à coleção de Eco, não disponíveis a qualquer leitor. Ainda
que refletindo em torno da idéia da possibilidade da existência de uma língua perfeita, questão essa cuja própria
elaboração explicita a atual hegemonia da cosmologia ocidental, o referido livro constitui-se em um marco dos
estudos sobre linguagem na medida em que resgata o debate desde os gregos, passando pelos judeus
(pansemiótica cabalística), romanos, pelos projetos de línguas universais que proliferaram no XVIII – o século
da linguagem - (línguas filosóficas do Iluminismo, linguagens científicas, espaciais, LIA – Língua Internacional
Auxiliar). A obra de Frédéric Nef (1995) A linguagem: uma abordagem filosófica mapeia temas e autores que
contribuíram com a filosofia da linguagem, desde os pré-socráticos, passando pela Idade Média, Iluminismo até
chegar a Wittgenstein. Em função da amplitude temporal e da diversidade de autores referenciados, utilizei a
última obra citada na tecedura da presente reflexão.
Capítulo 2 96
Ângela Massumi Katuta

pensamentos humanos. Trata-se de uma estrutura estruturada pelo fato de a linguagem ser
social e espaço-temporalmente construída; por isso se constitui enquanto meio de
comunicação apenas se há dois ou mais falantes ou detentores do mesmo código. A
linguagem é também estrutura estruturante por ser uma das condições necessárias para a
realização das capacidades cognoscitivas nos seres humanos, ou seja, sem ela jamais
conseguiríamos estruturar pensamentos e produzir coisas, como adequadamente afirmou
Wittgenstein (1995, p. 431). Somado a tais fatos, herdamos, por meio da linguagem, todo o
conjunto de representações sociais, espaciais e temporais inerentes ao meio social e
lingüístico em que nascemos e vivemos. Por isso, a linguagem também é relação social e, por
isso, é portadora das tensões inerentes a cada sociedade, sendo um dos instrumentos que
viabiliza o processo de violência simbólica, estudado por Bourdieu (2000a).
Os ‘sistemas simbólicos’, como instrumentos de conhecimento e de comunicação, só
podem exercer um poder estruturante porque são estruturados. O poder simbólico é
um poder de construção da realidade que tende a estabelecer uma ordem
gnoseológica: o sentido imediato do mundo (e, em particular, do mundo social)
supõe aquilo a que Durkheim chama o conformismo lógico, quer dizer, ‘uma
concepção homogénea do tempo, do espaço, do número, da causa, que torna
possível a concordância entre as inteligências’. (BOURDIEU, 2000a, p. 9).
Pode-se afirmar que o humano no ser humano somente pôde se realizar por meio de
processos intrinsecamente imbricados, amalgamados como são o trabalho, o pensamento, a
linguagem, a memória, a percepção e a construção de conhecimentos, tomados por Elias
(1994b, p. 12-13) como diferentes funções de um mesmo processo de conhecimento
substancialmente idêntico.
Em outras palavras, a própria sobrevivência dos seres humanos anatomicamente
modernos enquanto espécie supôs a lenta construção por meio do trabalho 138 , de instrumentos

138
Categoria essencial para o entendimento das produções humanas e, portanto, dos processos educativos.
Segundo Engels (1976, p. 215) “O trabalho é a fonte de tôda riqueza, afirmam os economistas. E o é, de fato, ao
lado da Natureza, que lhe fornece a matéria por ele transformada em riqueza. Mas é infinitamente mais do que
isso. É a condição fundamental de toda a vida humana; e o é num grau tão elevado que, num certo sentido, pode-
se dizer: o trabalho, por si mesmo, criou o homem.” (Grifo da autora). Também Vygotsky (1991b, p. 131)
comunga do mesmo entendimento quando afirma que “[...] No princípio era a Ação. A palavra não foi o
princípio − a ação já existia antes dela; a palavra é o final do desenvolvimento, o coroamento da ação.” Vera
John-Steiner e Ellen Souberman em posfácio ao livro de Vygotsky (1991a, p. 149-150) intitulado A formação
social da mente afirmam que “Os estudos de Vygotsky foram profundamente influenciados por Friedrich Engels,
que enfatizou o papel crítico do trabalho e dos instrumentos na transformação da relação entre os seres humanos
e o ambiente. [...] No livro Dialética da Natureza, Engels apresentou alguns conceitos básicos que foram
desenvolvidos por Vygotsky. Ambos criticaram os psicólogos e filósofos que sustentavam ‘que apenas a
natureza afeta o homem e apenas as condições naturais determinam o desenvolvimento histórico do homem’,
enfatizando que ao longo da história o homem também ‘afeta a natureza, transformando-a, criando para si novas
condições naturais de existência’. Além disso, Vygotsky argumentou que o efeito do uso de instrumentos sobre
os homens é fundamental não apenas porque os ajuda a se relacionarem mais eficazmente com seu ambiente,
como também devido aos importantes efeitos que o uso de instrumentos tem sobre as relações internas e
funcionais no interior do cérebro humano.” A concepção vygotskyana acerca do que vem a ser o ser humano,
segundo as mesmas autoras (VYGOTSKY, 1991a, p. 150), foi confirmada por arqueólogos e antropólogos
contemporâneos como “[...] os Leakeys e Sherwood Washburn.”
Capítulo 2 97
Ângela Massumi Katuta

necessários à realização dos conhecimentos – meio de orientação das ações humanas, segundo
Elias (1998a, 1998b) –, o que implicou o desenvolvimento de percepções, aprendizagens,
memórias, pensamentos, criação e usos das linguagens. Daí a impossibilidade lógica de
refletir sobre cada um dos processos em si e per si. As abordagens de cada um destes
elementos, de maneira cindida e descontextualizada das relações sociais e dos contextos
espaço-temporais em que os mesmos ocorrem, tendem a resultar em atitudes dogmáticas em
relação aos processos de conhecimento e seus elementos. Foi o que tentei evitar no caso da
reflexão que segue sobre a linguagem, um dos elementos centrais na constituição dos saberes
humanos e, portanto, geográficos.
Capítulo 2 98
Ângela Massumi Katuta

2.1. Os debates sobre a linguagem: notas introdutórias


“Não: «Sem a linguagem não poderíamos comunicar uns com os outros» - mas antes: sem a
linguagem não podemos influenciar as outras pessoas desta e daquela maneiras; não podemos
construir estradas e máquinas, etc. E também: sem o uso da fala e da escrita, as pessoas não
poderiam se comunicar.” (WITTGENSTEIN, 1995, p. 431).

Pierre Bourdieu (2000a), em sua obra O Poder simbólico 139 , entende a arte, religião,
língua, mito e ciência como sistemas simbólicos. Por meio da mesma, procurou chamar a
atenção para as dimensões simbólicas das produções humanas. Defendia a idéia de que todas
elas devem ser encaradas como um conjunto de sistemas simbólicos – que são
concomitantemente instrumentos de conhecimento, comunicação e dominação 140 –, utilizados
para, pelo e no exercício do poder.
Para o autor, o desvendamento das relações de poder subjacente aos sistemas
simbólicos se faz necessário na medida em que “[...] o poder simbólico é com efeito, esse
poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem
saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem.” (BOURDIEU, 2000a, p. 7-8). Nos
estudos bourdieusianos, verifica-se a possibilidade e necessidade do entendimento das
relações de poder subjacentes aos diferentes sistemas simbólicos, um dos caminhos para o
desvelamento das ideologias subjacentes aos mesmos e um dos papéis de uma escola que se
queira transformadora.
Depreende-se do ponto de vista bourdieusiano que relações de poder e controle
também se expressam e se realizam nos e por meio dos sistemas simbólicos, na medida em
que os sujeitos sociais ignoram
[...] o trabalho de dissimulação, transfiguração (numa palavra, de eufemização) que
garante uma verdadeira transubstanciação das relações de força fazendo ignorar-
reconhecer a violência que elas encerram objectivamente e transformando-as assim
em poder simbólico, capaz de produzir efeitos reais sem dispêndio aparente de
energia. (BOURDIEU, 2000a, p. 15).

139
Para Bourdieu (2000a, p. 14) o poder simbólico deve ser compreendido “[...] como poder de constituir o dado
pela enunciação, de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão de mundo e, deste modo, a
acção sobre o mundo, portanto o mundo; poder quase mágico que permite obter o equivalente daquilo que é
obtido pela força (física ou económica), graças ao efeito específico de mobilização, só se exerce se for
reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário.”
140
Norbert Elias (1998b, p. 20) afirma que a linguagem humana é tanto meio de comunicação quanto de
orientação ou de conhecimento: “[...] os símbolos lingüísticos que se desenvolvem através do uso que um grupo
humano faz deles não se reduzem a sua função de meios de comunicação. Eu gostaria apenas de lembrar aqui
que, no meio humano, os símbolos especificamente sociais adquiriram uma função de meios de orientação e,
portanto, de conhecimento. [...] O fato de os homens deverem e poderem se orientar em seu mundo adquirindo
um saber, e de, com isso, sua vida individual e coletiva depender totalmente da aprendizagem de símbolos
sociais, é uma das particularidades que diferenciam o ser humano de todos os outros seres vivos.” As noções de
tempo e espaço que os seres humanos construíram, fazem parte dos símbolos que os mesmos são capazes de
aprender, com os quais devem se familiarizar como meios de orientação.
Capítulo 2 99
Ângela Massumi Katuta

Por isso, é preciso desvendar as relações de força inerentes aos produtos simbólicos,
visando ao entendimento de sua lógica e aos projetos societários a eles subjacentes 141 ,
inviabilizando assim a realização de determinado poder simbólico que tenha como
fundamento a reprodução das desigualdades sociais 142 . Essa atitude, ao defender a
necessidade de desvendamento das relações de poder que subjazem aos sistemas simbólicos,
aponta para a possibilidade da construção de projetos societários mais igualitários, o que não
significa que se possa estar livre das relações de poder e dominação; essas podem se realizar
de maneira diferente, visando a outros fins. A perspectiva bourdieusiana no que se refere aos
sistemas simbólicos pode conduzir para a emergência do que Santos B. (2000a, p. 74)
denomina de
[...] paradigma de um conhecimento prudente para uma vida decente. [...] Sendo
uma revolução científica que ocorre numa sociedade ela própria revolucionada pela
ciência, o paradigma a emergir dela não pode ser apenas um paradigma científico (o
paradigma de um conhecimento prudente), tem de ser também um paradigma social
(o paradigma de uma vida decente).
Considerando o exposto, no caso da presente reflexão, reafirma-se a necessidade do
desvelamento das relações intrínsecas entre linguagem, pensamento e poder, retirando a
primeira e, conseqüentemente, todos os outros elementos do conhecimento – pensamento,
linguagem, memória e percepção –, do campo da neutralidade em que o discurso científico
moderno hegemônico os colocou e que, até o momento, constitui-se em um dos obstáculos
epistemológicos 143 a serem superados em um âmbito científico e escolar. (Bachelard, 1996).
As pesquisas, estudos e debates realizados espaço-temporalmente sobre as linguagens
podem ser ordenados em torno de três eixos principais, já anteriormente citados na
perspectiva de Bourdieu (2000a): como estruturas estruturantes ou instrumentos de

141
É importante resgatar neste momento as idéias de Elias (1993, v. 2, p. 270) sobre o controle social e sua
relação com o exercício de poder. Para o autor “Nenhuma sociedade pode sobreviver sem canalizar as pulsões e
emoções do indivíduo, sem um controle muito específico do seu comportamento. [...] Não devemos nos enganar:
as constantes produção e reprodução de medos pela pessoa são inevitáveis e indispensáveis onde quer que seres
humanos vivam em sociedade, em todos os casos em que os desejos e atos de certo número de indivíduos se
influenciem mutuamente, seja no trabalho, no ócio ou mesmo no ato do amor. Mas não devemos acreditar nem
tentar convencer-nos de que os comandos e medos que hoje imprimem sua marca na conduta humana tenham
como ‘objetivo’ simples, e fundamental, essas necessidades básicas de coexistência humana, e que estejam
limitados em nosso mundo às restrições e medos necessários a um equilíbrio estável entre os desejos de muitos e
à manutenção da cooperação social. Nossos códigos de conduta estão tão cheios de contradições e de
desproporções como as formas de vida social, como, aliás, também a estrutura de nossa sociedade. As restrições
às quais o indivíduo está submetido hoje, e os medos correspondentes a elas, são em seu caráter, força e estrutura
decisivamente determinados pelas forças específicas geradas pela estrutura de nossa sociedade, que acabamos de
discutir: pelo seu poder e outros diferenciais, e as imensas tensões que criam.”
142
Não podemos ser ingênuos e acreditar que o desvendamento do poder simbólico significa a eliminação do
poder. O que se extingue não é o poder em si, mas seus fundamentos e formas de realização.
143
Obstáculo epistemológico em uma concepção bachelardiana (1996, p. 17 et seq.) refere-se a todas as causas
de inércia no processo de conhecimento – opinião e instinto conservativo são os mais destacados pelo autor –,
responsáveis pelo seu estancamento. Neste sentido, conhecer implica um movimento constante de reorganização
total do sistema de saber.
Capítulo 2 100
Ângela Massumi Katuta

conhecimento, como estruturas estruturadas ou meios de comunicação e como instrumentos


de dominação. Cada uma dessas abordagens é realizada, via de regra, no contexto
hegemônico da ciência moderna por áreas específicas. Isso demonstra uma certa tendência à
construção de debates especializados e de especialistas em torno da questão que, em geral,
pouco dialogam entre si, sendo expressão do esfacelamento do objeto, da razão e do próprio
sujeito cognoscente, característicos dos saberes produzidos hegemonicamente sob a égide do
conhecimento científico moderno 144 .
Quando do processo de realização de leituras e reflexões acerca dos debates sobre a
linguagem em diferentes espaço-temporalidades, verifiquei que, como não poderia deixar de
ocorrer, os mesmos eram trespassados pelas racionalidades hegemônicas de cada período 145 ,
expressão de projetos societários e processos civilizadores que ocorreram em diferentes
espaço-temporalidades. Veja no Quadro 1 146 , a seguir, os períodos, pensadores e principais
debates realizados.

144
Sobre esse assunto ver o volume um da instigante obra de Boaventura de Souza Santos (2000b), A crítica da
Razão indolente: contra o desperdício da experiência, principalmente o Capítulo 1 – Da ciência moderna ao novo
senso comum.
145
Quando a pesquisa remete a épocas anteriores, dependendo assim de consulta a documentos recentes ou
antigos, há que se ter clareza de que muitos dos que existem ou sobreviveram e que, portanto, puderam ser
consultados foram aqueles de que as sociedades cuidaram para que existissem e sobrevivessem aos processos de
seleção social e degradação inerentes a toda produção material. A título de exemplo podem ser citadas as idéias
dos sofistas que somente chegaram até nós, tal como as conhecemos, por terem sido comentadas muitas vezes
por seus adversários como Sócrates, Platão e Aristóteles. O triunfo da metafísica na tradição filosófica resultou
na eliminação e, muitas vezes, na construção de uma imagem negativa de outras escolas filosóficas. Deve-se
depreender por meio dessa ação que existe um conjunto de valores e habitus que favorecem a conservação de
determinados registros e a eliminação de outros, considerados de menor ou nenhuma importância, no contexto de
um projeto societário. Devemos ter clareza de que muitos documentos com os quais lidamos, apesar de se
referirem a um dado período, não devem ser usados como ponto de partida que, em geral, valida a constituição
de um olhar homogeneizador para um determinado momento histórico. Devemos estar atentos aos conselhos de
Ginzburg (1988, p. 16): “[...] Insistindo nos elementos comuns, homogêneos, da mentalidade de um certo
período, somos inevitavelmente induzidos a negligenciar as divergências e os contrastes entre as mentalidades de
várias classes, dos vários grupos sociais, mergulhando tudo numa ‘mentalidade coletiva’ indiferenciada e
interclassista. Desse modo, a homogeneidade − de resto sempre parcial − da cultura de uma determinada
sociedade é vista como ponto de partida e não como ponto de chegada de um processo intimamente coercitivo e,
enquanto tal, violento [...].” Nos registros cultos, tradicionais, ou tradicionalmente utilizados enquanto tal,
verifica-se, em larga medida, o modus vivendi, habitus, opus operatum e modus operandi dos setores
hegemônicos de uma sociedade. Resultando daí, a dificuldade da realização de estudos sobre a cultura popular,
enfrentamento realizado com grande competência por Carlo Ginzburg, ainda que seus estudos sofram algumas
críticas.
146
Para a elaboração do Quadro 1, usei como base de informações Heinemann (1993), Nef (1995), Mora (2000),
o Dicionário Básico de Filosofia de Japiassú e Marcondes (1996) e o Dicionário Oxford de Filosofia de Simon
Blackburn (1997). Um levantamento mais específico em outras obras demandaria aprofundamentos da temática
em questão, o que não se constituiu em objetivo central de minha tese.
Capítulo 2 101
Ângela Massumi Katuta

Quadro 1 − Os debates sobre linguagem (correntes, pensadores, procedência e períodos 147 )


Antigüidade − Civilização greco-romana até Século V
Principais debates: Relação entre linguagem e realidade − capacidade da linguagem ou do discurso de dizer o ser a partir do texto de Górgias.
Debate entre naturalismo − significação na linguagem é natural, e convencionalismo − significação na linguagem é convencional.
SOFISTAS (450 a.C.): Protágoras de Abdera (aprox. 483-410 a.C.); Górgias de Leontinos (aprox. 483-375 a.C.); Pródico de Ceos (Século V a.C.);
Hípias de Élis (fins do séc. V a.C.); Trasímaco da Calcedônia, Bitínia (fins do século V a.C.); Sócrates de Atenas (470-399 a.C.).
ATOMISTAS: Leucipo de Abdera? Mileto? Eléia? (aprox. 450 a.C.); Demócrito de Abdera 148 (aprox. 460 Trácia -370 a.C.).
ESCOLA MEGÁRICA: Euclides de Megara (aprox. 450-380 a.C.); Platão de Atenas (428-347 a.C.).
ACADEMIA: Eudóxio de Cnido, Ásia Menor (aprox. 408-355 a.C.); Euspeusipo de Atenas (chefe da escola) (348-339 a.C.); Xenócrates da
Calcedônia (chefe da escola) (339 Atenas-315 a.C.); Arcesilau de Atenas (chefe da escola) (aprox. 315/314 Pitam, Eólia -241 a.C.); Carnéades de
Cirene, África do Norte (aprox. 214-129 a.C.); Cícero (M. Tullius Cícero) (106 Arpino -43 a.C.); Plutarco de Queronéia (aprox. 45-125 d.C.);
Aristóteles de Estagira, Macedônia (384/383-322 a.C.).
ESTÓICOS (300 a.C.): Zenão de Citio,Chipre (aprox. 336-264 a.C.); Cleantes ou Cleanto de Asso, Troade (aprox. 331/330-233/232 ou 232/231
a.C.); Crisipo de Sôli, Cilicia, Chipre (cerca de 281-208 a.C.); Panécio de Rodes (185-111/109 a.C.); Posidónio de Apameia, Síria (cerca de 135-
51 a.C.); Sêneca de Córdoba, Espanha (Lucius Annaeus Seneca) (aprox. 4-65 d.C.); Epicteto de Hierápolis, Frígia (cerca de 50-138 d.C.); Marco
Aurélio de Roma (Marco Aurélio Antonino) (121-180 Vindo, Bonna-viena d.C.).
EPICURISTAS: Epicuro de Samos (aprox. 314-270 a.C.); Lucrécio (Titus Lucretius Carus) (96 Roma -55 a.C.).
NEOPLATÔNICOS: Amónio Sacas de Alexandria (cerca de 175-242 d.C.); Plotino de Licópolis, Egito (aprox. 204-270 d.C.); Porfírio de Tiro
(aprox. 232/233-304 d.C.).
Antigüidade Tardia (Século IV − IX)
Principais debates: restritos às grandes linhas cristãs de apreensão da linguagem − Teologia por meio da exegese: interpretação minuciosa das
escrituras, textos bíblicos referentes à linguagem, elaboração de um conjunto de regras que guiavam a interpretação dos textos sacros;
sistematização de uma teologia simbólica que pensa concomitantemente signos, palavras e sacramentos, sendo o grande código que estruturou as
mensagens intelectuais até o Renascimento. A crença na revelação divina reservava lugar importante à linguagem. São temas específicos da
abordagem judaico-cristã da linguagem: criação, historicidade da linguagem e do nome divino, retidão dos nomes − resultado da relação pessoal
com Deus.
ESCOLA DE PÉRGAMO: Libânio de Antioquia (314-393 d.C.); Juliano o Apóstata de Constantinopla (332-363 d.C.); Boécio de Roma (Ancius
Manlius Torquatus Severinus Boetius) (aprox. 480-524/525 d.C.)
PATRÍSTICOS: Santo Agostinho (354 Tagaste, província romana da Numídia, África - 430 em Hipona, África)
Medievo − Século V a XV
Principais debates: o arbitrário do signo, a expressão lingüística dos pensamentos, a definição da verdade. Afirmação forte da universalidade da
gramática, fundada na isomorfia entre linguagem e realidade (ontológica), e linguagem e espírito (psicológica). A Gramática especulativa é uma
gramática formal e centrada em três tipos de considerações: uma trata da base categorial e das partes do discurso, a outra diz respeito à forma
geral das regras sintáticas, e a última se liga mais propriamente à semântica − reflexão que trata das relações entre linguagem, realidade e
intelecção. A gramática se enraíza na isomorfia que encobre a oposição entre nominalismo e realismo.
ESCOLÁSTICOS: Anselmo de Canterbury ou Cantuária (Santo Anselmo) (1035 Aosta -1109 Canterbury d.C.); Pedro Abelardo (Pierre Abailard)
(1079 Le Pallet, condado de Nantes -1142); Guilherme de Occam ou Ockham (aprox. 1298 Ockham, condado de Surrey-1349 Munique).
Renascimento ao Iluminismo − Século XV a XIX
Principais debates: Aquisição e caráter inato do conhecimento − revelam a importância epistemológica do cartesianismo, projeto de língua
universal para perfeita comunicação entre os eruditos, origem da linguagem (que remonta aos epicuristas), descrição da gênese das idéias e a
origem dos conhecimentos. Acontecimentos: descrição lingüística das línguas vulgares, reabilitação da língua vernácula. A lógica, anteriormente
considerada como arte de inventar e julgar, passa a ser considerada apenas como instrumento de verificação dos julgamentos de verdades já
inventadas: arruínam-se todas as tentativas de se analisarem as línguas vernáculas com a ajuda dos instrumentos de análise lógica. Emergência do
conceito de signo que invade a filosofia da linguagem no Classicismo e Iluminismo.
FILOSOFIA MODERNA (de Nicolau de Cusa a Nietzsche)
EMPIRISTAS: Francis Bacon (1561 Londres, Inglaterra -1626); Thomas Hobbes (1588 Westport, próx. Malmesbury, condado de Wiltshire,
Inglaterra -1679); John Locke (1632 Wrington, perto de Bristol, Inglaterra -1704); Ètienne Bonnot de Condillac (1714 Grenoble, França -1780
Flux)
IDEALISTA: Berkeley (1685 Kilkenny, Irlanda do Sul-1753 Oxford)
METAFÍSICOS, MECANICISMO CARTESIANO: Renée Descartes (Renatus Cartesius) (1596 La Haye, Touraine, França -1650 Estocolmo,
Suécia); Gottfried Wilhelm Leibniz (1646 Leipzig -1716 Hanover)
Pierre-Louis Moreau de Maupertuis (1698 Saint-Malo, Depto de Ille-et-Vilaine, Bretanha-1759); Johann Heinrich Lambert (1728 Mühlhausen,
Alsácia-1777)
ROMÂNTICOS: Jean-Jacques Rousseau (1712, Genebra-1778 Ermenonville); Giambattista Vico (1668 Nápoles -1744); Johann Georg Hamann
(1730 Königsberg-1788); Johann Gottfried von Herder (1744 Mohrungen, Prússia Ocidental- 1803); Wilhelm von Humboldt (Karl Wilhem von
Humboldt) (1767 Potsdam-1835);
Realista: Bernhard Bolzano (1781 Praga-1848)
Fenomenólogos: Franz Brentano (1838 Merienberg, região do Reno –1917); Edmund Husserl (1859 Prossnitz, Moravia -1938).
Século XX
Principais debates: linguagem enquanto expressão do pensamento − orientação conhecida como corrente lingüística.
SÉCULO XX:
Filósofos analíticos: Gottlob Frege (1848 Wismar-1925); Ludwig Joseph Johann Wittgenstein (1889 Viena-1951); Donald Davidson (1917
Springfield, Massachusetts- ); John Langshaw Austin (1912 Lancaster, Grã-Bretanha-1960)
Positivisma lógico: Rudolf Carnap (1891 Rundsdorf, perto de Barmen, hoje Wuppertal, Westfalia -1970); Bertrand Russel (1872 Rovenscreft,
Monmouthpiece -1970)
Empirista: Willard van Orman Quine (1908 Akron, Ohio, EUA- )

147
Elaborado principalmente com base no livro de Nef (1995) que o escreveu com a preocupação de demonstrar
a especificidade dos debates acerca da linguagem em diferentes momentos históricos.
148
Os sujeitos cujos nomes estão sublinhados tiveram suas reflexões sobre linguagem comentadas por Nef
(1995). Aqueles cujos nomes não estão em destaque, são os pensadores mais conhecidos das escolas citadas pelo
mesmo autor e foram inseridos com o objetivo de melhor elucidar a reflexão.
Capítulo 2 102
Ângela Massumi Katuta

Verifica-se por meio do Quadro 1 que os debates sobre a linguagem remontam à


Antigüidade, passando pelo Medievo, Renascimento, Idade Moderna e Contemporânea. Pode-
se contar pelo menos 2500 anos de discussões acumuladas sobre a referida questão, se
considerarmos as sociedades gregas, romanas e, atualmente, as de cultura ocidental.
Trata-se de um debate cujo foco primordial, ao longo de diferentes espaço-
temporalidades, possui relações intrínsecas com outras questões igualmente importantes para
a referida tradição de pensamento, muitas delas ainda não resolvidas, se é que algum dia o
serão: a possibilidade da realização do conhecimento, a questão da verdade, a relação entre
linguagem, realidade e intelecção, a significação na e da linguagem, as relações entre
pensamento, linguagem, percepção, memória, conhecimento, entre outras.
Considerando os sábios conselhos de Ginzburg (1988, p. 16), é preciso salientar que as
idéias apresentadas no referido Quadro nos deixam entrever, de forma bastante superficial,
apenas algumas reflexões e alguns pensadores hegemônicos em cada período e, portanto,
diferentes níveis de sistematizações em relação à questão da linguagem atingidos em cada
processo civilizador nas diversas sociedades. Um exemplo didático dessa afirmação é o caso
dos sofistas. Esses, atualmente estão sendo retomados pelo seu relativismo como também
pelas suas contribuições para os estudos de gramática, retórica e oratória para o conhecimento
da língua grega e para o desenvolvimento de teorias do discurso.
Japiassú e Marcondes (1996, p. 252) afirmam em relação aos sofistas que
[...] Contemporâneos de Sócrates, Platão e Aristóteles, foram combatidos por esses
filósofos, que condenavam o relativismo dos sofistas e sua defesa da idéia de que a
verdade é o resultado da persuasão e do consenso entre os homens. A metafísica se
constituiu assim em oposição à sofística. Devido a isso e ao triunfo da metafísica na
tradição filosófica, ficou-nos uma imagem negativa dos sofistas como ‘produtores
do falso’ (segundo Platão em O sofista), manipuladores de opiniões, criadores de
ilusões [...].
Verifica-se que, ao longo de diferentes processos civilizadores, algumas idéias são
retomadas, elaboradas e reforçadas, ao passo que outras vão sendo combatidas, caindo dessa
forma no esquecimento, chegando até mesmo a serem eliminadas até o momento em que uma
outra tradição as resgate em um outro contexto espaço-temporal, desde que se façam
necessárias na tecedura de suas racionalidades.
O que é importante notar é que a metafísica, na tradição clássica e escolástica,
enquanto filosofia primeira e, portanto, como ponto de partida do sistema filosófico
hegemônico, ao tratar dos pressupostos de outras partes do sistema, examina os princípios e as
causas primeiras, pretendendo se constituir em uma doutrina do ser em geral e não de suas
determinações particulares. Dessa maneira, aponta positivamente para a possibilidade da
existência de verdades gerais, universais e absolutas que tendem para a generalização e
Capítulo 2 103
Ângela Massumi Katuta

monossemização dos diferentes aspectos da realidade, atitudes presentes, não por acaso, em
sociedades dominadoras e autoritárias, cujo processo de conhecimento tende a estancar, como
vimos no capítulo anterior.
Evidenciei, no Quadro 1, os organizadores ou pensadores, bem como os períodos e
locais nos quais viveram, pelo fato de estes servirem de meio de orientação para a realização
de análises um pouco mais contextualizadas. Dessa forma, tentei, na medida do possível,
romper com análises fundadas em tradições positivistas que permanecem filiadas “[...] à
ideologia romântica do gênio criador como individualidade única e insubstituível.”
(BOURDIEU, 1992, p. 183). Opor individualidade e coletividade
[...] para resguardar os direitos da individualidade criadora e os mistérios da criação
singular, é privar-se de descobrir a coletividade no âmago da individualidade sob a
forma da cultura, [...] do habitus que faz o criador participar de sua coletividade, de
sua época e, sem que este tenha consciência, orienta e dirige seus atos de criação
aparentemente mais singulares. (BOURDIEU, 1992, p. 342).
Tais abordagens obscurecem as condições materiais e simbólicas necessárias −
produção de excedentes, divisão social do trabalho, características geográficas de
determinados locais, processos históricos, estratificação social, cultura, habitus, entre outras
−, ao engendramento das mais variadas produções culturais, favorecendo dessa maneira a
constituição de abordagens ausentes de contextualizações sociais, espaciais e temporais,
necessárias ao entendimento de qualquer produto humano. Os autores arrolados no Quadro 1
foram os sistematizadores das idéias acerca da linguagem à época em que viveram; dessa
forma, expressaram o mais alto nível de sistematização possível em cada período, localidade,
processo civilizador e escola de pensamento em relação ao assunto citado.
É importante salientar que os registros dos debates acerca da linguagem datam de
aproximadamente um século depois do surgimento das primeiras discussões filosóficas de
Tales de Mileto (século VI a.C.), considerado por muitos como o fundador da filosofia e da
ciência. A filosofia constituiu-se no final do Período Arcaico (VIII − VI a.C.) 149 , que foi
marcado por profundas mudanças sociais, econômicas e territoriais, principalmente em
Atenas e Esparta, ao passo que as discussões sobre a linguagem datam do Período Clássico
(VI − IV a.C.), marcado por disputas pela hegemonia política e econômica entre as polis
Atenas, Esparta e Tebas, no contexto da supremacia grega.
Russel (2001, p. 15) em sua História do Pensamento Ocidental, obra que lhe valeu o
Prêmio Nobel de Literatura em 1950, ao descrever a Grécia, resumidamente explicita a lógica
do processo civilizador encetado pelos povos que compunham o Estado grego:

149
A história da Grécia é dividida em quatro períodos: 1) Pré-Homérico − Século XX a XII a.C.; 2) Homérico −
Século XII a VIII a.C.; Arcaico − Século VIII a VI a.C. e Clássico − Século VI a IV a.C.
Capítulo 2 104
Ângela Massumi Katuta

A Grécia propriamente dita é rude, tanto de aspecto como de clima. O país é


dividido por áridas cadeias de montanhas. É difícil passar por terra, de um vale para
outro. Nas planícies férteis cresceram comunidades isoladas e quando a terra não
podia mais sustentá-las devido ao aumento da população, algumas cruzaram o mar
para fundar colônias. A partir da metade do século VIII até meados do século VI
a.C., os litorais da Sicília, do sul da Itália e do mar Negro ficaram pontilhados de
cidades gregas. Com o nascimento das colônias, o comércio se desenvolveu e os
gregos renovaram o contato com o Oriente.
Verifica-se no trecho transcrito uma clara alusão do autor às políticas expansionistas
gregas que caracterizam o Período Arcaico (séculos VIII a VI a.C.) e o sentido tomado pelas
mesmas. Inicialmente, a expansão se realiza em direção às penínsulas e ilhas próximas ao
continente, chegando posteriormente às costas do Mar Negro, ao norte da África, à parte
meridional da Itália (Magna Grécia) e da França até a longínqua península Ibérica. Por meio
da afirmação também se depreende que, em se considerando as características geográficas da
região e as condições materiais em que viviam os gregos, havia a necessidade da constituição
de saberes que os auxiliassem e orientassem em sua sobrevivência. Portanto, o domínio da
situação, das pessoas e dos territórios, naquele momento histórico, era a condição da
reprodução e manutenção de sua formação social. Não foi por acaso que tanto a geografia
quanto os debates sobre linguagem e a possibilidade do conhecimento e da verdade, enquanto
saberes sistematizados, foram tecidos no território grego. Conhecimento, sobrevivência e
poder nutrem entre si íntimas relações 150 .
Podemos observar por meio do Quadro 1 que a Antigüidade e o Renascimento são
dois períodos que se destacam em relação ao debate sobre a linguagem, em termos da
quantidade de escolas e pensadores que se dedicaram à temática, se os compararmos com as
demais épocas. Na Antigüidade tardia e medievo se verifica uma diminuição tanto de escolas
como de pensadores, o que indica uma certa homogeneidade no debate em questão; isso
porque este ficou restrito aos padres da Igreja católica, possuidores e elaboradores exclusivos
da racionalidade hegemônica da época.
Em relação às territorialidades, pode-se afirmar que o debate sobre a linguagem, o
conhecimento e seus elementos pode ser tomado como expressão da riqueza material e
simbólica das sociedades. O fato de a referida questão ter sido amplamente debatida por
determinadas sociedades, e não por outras, indica a importância e lugar social da
racionalidade filosófica e científica no contexto de diferentes culturas. A produção de

150
Sobre esse assunto ver os livros de Olson S. (2003); Cavalli-Sforza (2003); Mithen (2002) que tratam das
relações entre desenvolvimento cognitivo e evolução dos seres humanos anatomicamente modernos e suas
relações com a linguagem, conhecimento em suas mais variadas formas – arte, religião e ciência, que confirmam
a tese de Elias presente em suas obras sobre a questão da linguagem e conhecimento, concebidos pelo autor
como instrumentos de orientação para as ações humanas, fruto de dois processos que não podem ser tomados
individualmente: evolução e desenvolvimento.
Capítulo 2 105
Ângela Massumi Katuta

excedentes, a divisão social do trabalho, o processo de urbanização, a constituição de um


Estado e, portanto, o estabelecimento de relações políticas e a realização de processos
expansionistas, são elementos que devem ser considerados quando da análise de toda e
qualquer produção humana em uma sociedade.
O conjunto de conhecimentos sistematizados constitui-se em instrumento de
sobrevivência e, portanto, trata-se de meio de orientação dos seres humanos e, como se pode
observar desde os gregos até hoje, os de cunho filosófico e científico tenderam cada vez mais
a se tornarem ferramentas voltadas à reprodução dos setores hegemônicos de cada sociedade.
O debate sobre a linguagem e a construção daquilo que hoje denominamos conhecimento
científico hegemônico acompanharam a territorialidade das riquezas e o exercício do poder de
determinadas sociedades sobre outras. É por isso que os mesmos foram realizados na
Antigüidade pela Grécia e Roma antigas e, especificamente, em áreas onde o comércio era
relativamente desenvolvido. Na alta Antigüidade, Medievo e Renascimento o debate ocorre
primordialmente nos territórios que, posteriormente, com a formação e emergência dos
Estados aristocráticos seguidos pelos modernos, vieram a ser conhecidos como Inglaterra,
França, Alemanha, Suécia, Irlanda, Itália, entre outros. Do século XX em diante, os Estados
Unidos da América surgem no cenário do referido debate, expressão de que os conhecimentos
hegemônicos passam a ser produzidos no referido país.
A partir do Quadro 1 é possível afirmar também que a linguagem não era discutida per
si; em outras palavras, o conjunto de debates e pesquisas realizados em diferentes locais e
momentos históricos, em relação à temática em pauta, estava e ainda está voltado para
questões epistemológicas e ontológicas que fazem parte dos próprios fundamentos das
sociedades gregas, romanas, judaicas e cristãs. Apesar de os debates sobre a linguagem se
centralizarem na problematização e resolução de determinadas questões em cada período,
pode-se afirmar que seu fio condutor centra-se na questão do conhecimento, instrumento de
orientação, sobrevivência e dominação dos seres humanos.
Retomemos algumas características do período Arcaico e Clássico na Grécia Antiga
para melhor entender a constituição tanto da filosofia quanto da diversidade dos debates sobre
a linguagem, especificamente neste território.
No final do Período Homérico (século VIII a.C.) o genos 151 , antiga unidade
econômica, social, política e religiosa, célula inicial a partir da qual foi gerada a cidade-

151
Grupo consangüíneo, organizado em estamentos, descendente de um ancestral comum que, inicialmente,
possuía algumas centenas de pessoas, prevalecendo então a solidariedade entre os seus membros. Com o
crescimento populacional da referida unidade, e a característica escassez de terras férteis na região, uma parte da
Capítulo 2 106
Ângela Massumi Katuta

Estado (polis), se desintegra, subdividindo-se, iniciando-se “[...] neste período a constituição


de classes, a formação da aristocracia grega 152 , da propriedade privada, das desigualdades
sociais, do Estado e do modo de produção escravista.” (KATUTA, 2003, p. 4). Engels (1984,
p. 119) descreve da seguinte forma esse processo:
[...] o direito paterno, com herança dos haveres pelos filhos, facilitando a
acumulação das riquezas na família e tornando esta um poder contrário às gens; a
diferenciação de riquezas, repercutindo sobre a constituição social pela formação
dos primeiros rudimentos de uma nobreza hereditária e de uma monarquia; a
escravidão, a princípio restrita aos prisioneiros de guerra, desenvolvendo-se depois
no sentido da escravização de membros da própria tribo e até da própria gens; a
degeneração da velha guerra entre as tribos na busca sistemática, por terra e por mar,
de gado, escravos e bens que podiam ser capturados, captura que chegou a ser uma
fonte regular de enriquecimento. Resumindo: a riqueza passa a ser valorizada e
respeitada como bem supremo e as antigas instituições da gens são pervertidas para
justificar-se a aquisição de riquezas pelo roubo e pela violência [...].
Dessa forma, ocorre a desagregação de uma formação sócio-territorial, no cerne da
qual se constituem os pequenos Estados gregos que, apesar de manterem alguns vínculos
comuns entre si, eram independentes. Com a desagregação do genos, cada polis terá divisões
e subdivisões sociais, econômicas e políticas diferenciadas, inclusive com denominações
diferentes.
Em Esparta, por exemplo, os membros da aristocracia eram denominados espartanos
ou espartíatas, os trabalhadores livres eram denominados de periecos, e os hilotas eram os
escravos ou servos. Em Atenas, os aristocratas eram conhecidos como eupátridas − bem
nascidos, os agricultores eram denominados gheorgoi, e os marginais eram os thetas 153 .
A força coletiva do genos foi substituída pelas frátrias (irmandades) em função da
necessidade de auto-proteção do grupo contra invasões e saques. Formaram-se tribos, cuja
reunião originou os pequenos Estados locais ou as polis − cidades-Estado −, organizações
territoriais independentes econômica, política, religiosa, militar 154 e culturalmente. Essa

população ficou ociosa. Com o aumento do poder político do pater (patriarca), uma nova colonização grega se
inicia com a anuência deste, principalmente no Mediterrâneo Ocidental, atual região da Itália e Sicília, período
conhecido como segunda diáspora, caracterizado por guerras expansionistas, fundação de colônias e aumento da
população escrava. Essas condições materiais auxiliam a conter temporariamente o problema da escassez de
terras férteis.
152
Cada polis terá subdivisões e denominações diferentes, expressão da independência dos pequenos Estados
gregos. De acordo com o Atlas histórico (1988, p. 16) “[...] Não existiu uma Grécia unida, porém dezenas de
pequenos Estados independentes que desenvolveram vida própria, embora unidos por vários vínculos comuns,
como a religião, a língua, os jogos olímpicos e as anfictionias.“ Essas últimas eram reuniões voltadas à
deliberação de decisões sobre negócios de interesses gerais, seus participantes eram denominados anfictíones,
membros do conselho de representantes dos antigos Estados gregos.
153
Alguns deles passaram a se dedicar ao comércio e artesanato, desenvolvendo um poderoso comércio marítimo
a partir do porto de Pireu, formando a classe dos demiurgos que, em geral, eram ricos.
154
As naucrárias eram pequenas circunscrições territoriais cuja função era prover, armar e tripular barcos de
guerra e dispor de cavaleiros. Instância necessária para a sobrevivência − constituição e defesa − das unidades
territoriais da área, expressão do estreito vínculo entre os Estados gregos, a riqueza e os territórios necessários
para a sua (re)produção, neste contexto, considerados enquanto bem supremo.
Capítulo 2 107
Ângela Massumi Katuta

independência se expressou nos âmbitos econômico, político, religioso e cultural. Por isso,
não seria exagero afirmar que, entre os séculos VI a IV, no final do Período Arcaico e ao
longo do Clássico, a divisão social, política e territorial da Grécia expressou-se também no
pensamento filosófico e, conseqüentemente, nos debates sobre a linguagem e o conhecimento.
De igual maneira não seria exagero afirmar que a polis foi o contexto sócio-espacial
que propiciou o surgimento da filosofia e da diversidade dos debates sobre a linguagem e o
conhecimento. Para Gomes (1997, p. 45), “Nada mais significativo do que o fato de ser polis,
o nome desta estrutura espacial, ‘a cidade’ e ser também simultaneamente um feixe de
relações sociais formais que originou a palavra ‘política’.” Considerando o exposto, pode-se
afirmar que a múltipla divisão da sociedade grega se expressou em suas produções filosóficas,
como não poderia deixar de ocorrer.
Em Atenas, durante todo o Período Arcaico − séculos VIII a VI a.C. −, com a
amenização das instabilidades políticas e a constituição de sua hegemonia naval − elemento
essencial em se considerando que o sentido do processo de colonização que estabelecia era do
continente ou das penínsulas para as ilhas −, houve uma grande prosperidade econômica,
política e cultural. Sua economia era sustentada por relações comerciais realizadas na região
do Egeu, Mar Negro e com as colônias jônicas, localizadas na Ásia Menor. A exploração de
minas também auxiliou na dinamização do porto Pireu, que se tornou um dos entrepostos
mais importantes da Antigüidade.
A despeito de todo o Período Clássico grego − séculos VI e IV a.C. − ter sido marcado
internamente por guerras expansionistas entre as cidades-Estado, principalmente entre Atenas
− mais dinâmica e democrática − e Esparta − militar e conservadora −, foi também esse o
período de maior efervescência cultural:
A primeira escola de filósofos científicos surgiu em Mileto. Esta cidade no litoral
Jônico era uma ativa encruzilhada de negócios e comércio. A sudeste ficavam
Chipre, Fenícia e Egito; ao norte, os mares Egeu e Negro; a oeste, através do Egeu, a
Grécia continental e a ilha de Creta. A leste, Mileto mantinha estreito contato com a
Lídia e, através desta, com os impérios da Mesopotâmia. Com os lídios, os milésios
aprenderam a prática de cunhar moedas de ouro para servir de dinheiro. O porto de
Mileto vivia apinhado de veleiros de muitas nações e os seus armazéns estocavam
mercadorias do mundo inteiro. Como conheciam o dinheiro como meio universal de
armazenar valor e trocar mercadorias, não admira que os filósofos milésios se
indagassem de que são feitas as coisas. (RUSSEL, 2001, p. 20).
Verifica-se por meio do excerto transcrito, que o pensar filosófico científico e outras
produções humanas não surgem do nada 155 , sempre existe todo um conjunto de condições
materiais que devem ser resgatadas, pois estas nos auxiliam a entender as questões políticas
subjacentes às obras ou trabalhos humanos. Daí a importância de se considerar o contexto

155
Nihilo nihil fit. Do nada nada advém.
Capítulo 2 108
Ângela Massumi Katuta

social, espacial e temporal no qual as mesmas foram engendradas, bem como o processo
civilizador e projeto societário a elas inerentes. Cada processo civilizador, em épocas e
lugares diferentes, aponta e constrói demandas diferenciadas em relação aos conhecimentos
humanos, produzindo portanto saberes e fazeres específicos.
[...] basta observar que cada uma das quaestiones, ou melhor, cada uma das formas
sucessivas que ela assumiu no curso de sua história [...], só pôde ter existido como
tal para espíritos armados de uma certa problemática, ou seja, de uma certa maneira
habitual de interrogar a realidade; além disso, cada uma das soluções sucessivas que
levaram à solução final, pode ser entendida por referência ao esquema de
pensamento fundamental que fazia surgir a questão e, ao mesmo tempo, orientava a
procura de uma solução irredutível ao esquema e, por conseguinte, imprevisível [...]
entende-se então, que o modus operandi 156 possa revelar-se no opus operatum 157 e
somente nele. (BOURDIEU, 1992, 355).
A contextura histórica e espacial de uma formação social é a condição para o
entendimento da existência da diversidade de escolas e filósofos gregos, presentes no Quadro
1, que são, por sua vez, os fundamentos das discussões sobre a linguagem que a sociedade
ocidental realiza hodiernamente.
Como afirmei anteriormente, pelo fato de a metafísica ter se tornado, na tradição
clássica e escolástica, a filosofia primeira, com a pretensão de constituir uma doutrina do ser
em geral, principalmente na Antigüidade, a semântica − estudo do significado das palavras e
outros signos − estava condicionada à epistemologia e, assim, ao debate da relação entre
linguagem e realidade. Nesta discussão está subjacente a idéia aristotélica do ser que, para
existir, deve ainda hoje, no contexto da lógica ocidental hegemônica, necessariamente possuir
identidade; por isso, segundo Tung-Sun (2000, p. 179), a mesma “[...] pode ser qualificada de
‘lógica da identidade’.”
Para o mesmo autor (p. 179 et seq.), a lei da identidade, além de controlar as operações
lógicas como deduções e inferências, influencia nos conceitos do pensamento, tornando-se a
matriz de outros desenvolvimentos filosóficos. Resulta daí a centralidade do debate na
Antigüidade em torno da capacidade da linguagem dizer o ser com atributos − substância,
essência que, neste contexto, é separado ou descontextualizado da existência −, idéia esta
combatida também por Wittgenstein (1995) em sua obra Investigações Filosóficas. Dessa
forma, afirma Tung-Sun (2000, p. 180):
[...] Havendo uma descrição qualquer, ela passa a ser atributo. Um atributo deve ser
atribuído a uma substância, de modo que a idéia de substância é absolutamente
indispensável ao pensamento, assim como o sujeito é absolutamente indispensável à
linguagem. Por isso, na história da Filosofia ocidental, por mais diferentes que
possam ser os argumentos favoráveis ou contrários à idéia de substância, o que
constitui o problema central é essa mesma idéia de substância. [...] Uma vez definido
esse quê, desenvolvem-se o sujeito e o predicado ou, em outras palavras, a

156
Modo ou maneira de produzir, realizar ou agir.
157
Obra produzida ou realizada.
Capítulo 2 109
Ângela Massumi Katuta

substância fica caracterizada pelos seus atributos e os atributos são atribuídos à


substância. Dessa maneira, a separação entre a existência e o ‘quê’ foi a condição
fundamental que presidiu ao surgimento do conceito de substância. E tal condição só
se expressa na estrutura da linguagem ocidental.
No contexto da cosmologia ocidental esboçado, debates sobre a significação da
linguagem − naturalismo e convencionalismo expressam a problemática epistemológica ou as
questões centrais daquele momento histórico: comunicabilidade ou incomunicabilidade do
ser, cognoscibilidade ou incognoscibilidade da realidade, possibilidade ou impossibilidade da
verdade.
A tese mestra de Platão é da comunicabilidade dos gêneros, fundamento da crença na
comunicabilidade do ser e, portanto, na possibilidade de conhecimento da realidade. Daí a
defesa, em sua obra Crátilo, de que a significação da linguagem é natural. Verifica-se já, na
tese platônica, a crença na correspondência biunívoca entre coisas e nomes. Pitágoras e
Epicuro compartilham a tese de Crátilo ao defenderem que “[...] os nomes existem por
natureza, porque, segundo ele, é a alma, derivando do Intelecto, que impõe nome às diversas
realidades. A alma daria os nomes segundo as representações que ela tem das coisas.” (NEF,
1995, p. 13). Verifica-se, na perspectiva dos sujeitos citados, uma concepção de representação
ancorada na correspondência biunívoca, cuja tendência é a monossemização discursiva e
cognitiva.
Demócrito, como os sofistas, defendia a tese convencionalista. Seu argumento era o de
que a variedade das relações semânticas não permite que se pense a linguagem como um
duplo do real. Chegou a esta conclusão a partir do discernimento que elaborou de várias
relações e fenômenos semânticos 158 , que o auxiliou a colocar em xeque a crença na
correspondência biunívoca entre coisas e nomes. É interessante notar que o exercício do
trabalho como professores itinerantes permitiu aos sofistas o contato com outras nações e
representações sociais, fato este que teve grande influência na construção de seus pontos de
vista relativistas.
Apesar do debate, na Antigüidade, entre os atores sociais que constam no Quadro 1 −
sofistas, atomistas, estóicos e epicuristas −, os pensamentos de Platão e Aristóteles tornaram-
se hegemônicos. Como acertadamente atesta Bertrand Russel (2001, p. 72) “[...] Sempre que
floresceu no Ocidente o raciocínio especulativo, as sombras de Platão e Aristóteles pairaram
ao fundo da cena [...]”. Isso porque, segundo o mesmo autor, eles foram os “[...] herdeiros e
sistematizadores das escolas pré-socráticas, desenvolvendo o que lhes fora legado e
158
Homonímia − propriedade do que é homônimo, palavra que ou se pronuncia da mesma forma que outra, cujo
sentido e escrita são diferentes, ou que se pronuncia e escreve do mesmo modo, cujo significado é diverso.
Polinímia − propriedade de um objeto que pode ter vários nomes ou que pode ser nomeado de várias maneiras.
Metonímia − uso da palavra com sentido figurado. Anonímia − falta de nomes ou derivados.
Capítulo 2 110
Ângela Massumi Katuta

explicitando grande parte do que não fora totalmente esclarecido pelos pensadores
anteriores.” (RUSSEL, 2001, p. 72).
Nef (1995, p. 11) afirma que, do ponto de vista dos debates sobre a linguagem, a
Antigüidade e o Medievo formam um período relativamente homogêneo. Foram comentados
os mesmos textos de Aristóteles e as disciplinas dialética, retórica e lógica formavam, em
ambos os períodos, o alicerce da vida intelectual. Santo Agostinho e Boécio, principais
referências no debate sobre a linguagem, pertencem tanto à Antigüidade quanto ao Medievo.
A única diferença entre os períodos citados é que, na Idade Média, o fundamento do
pensamento ou da racionalidade esteve centrado no dogma da revelação cristã. É, em grande
parte, por meio deste que podemos entender tanto o que se resgata da tradição clássica quanto
a criatividade das soluções engendradas para os problemas que os tradutores medievais
encontraram, quando da tradução das obras clássicas.
Para Nef (1995, p. 11), em Santo Agostinho e Boécio, como em outros pensadores da
mesma época que, não por acaso, faziam parte hegemonicamente do clero, verifica-se o
esforço de preservação da essência do equipamento intelectual da herança antiga e a
constituição de estruturas de recepção dessa mesma herança no contexto da teologia cristã
que, nesse período, tem suas primeiras formulações elaboradas pelos padres da Igreja 159 .
Nesse período, a Igreja católica se constitui na portadora do poder teológico, político e
simbólico, sendo, portanto, a instituição responsável pela produção do saber hegemônico. O
fato de ser intérprete única da Bíblia e a filtradora dos textos produzidos por gregos e romanos
expressa seu poder simbólico e, de certa forma, explica a relativa homogeneidade intelectual
do período. A territorialidade do debate acerca da linguagem estava, portanto, centralizada na
Igreja católica.
O poder – político, teológico e simbólico – da Igreja católica explica-se, em parte, pelo
fato de esta instituição ter construído uma capacidade de aglutinação política e religiosa sem
precedentes; sua coesão e poder se expressaram, por exemplo, em suas produções culturais.
Seu discurso genérico de redenção, salvação e glorificação, que remetia a um mundo
metafísico − Cité de Dieu, cidade de Deus −, cujas representações estavam voltadas

159
Japiassú e Marcondes (1996, p. 104) afirmam que “[...] O período medieval foi marcado pelas sucessivas
tentativas de conciliação entre razão e fé, entre a filosofia e os dogmas da religião revelada, passando a filosofia
a ser considerada ancilla theologiae, a serva da teologia, na medida em que fornecia as bases racionais e
argumentativas para a construção de um sistema teológico, sem, contudo, poder questionar a própria fé [...]”.
Verifica-se neste período que não ocorreu a mera preservação e reprodução da tradição antiga, pois nem tudo o
que foi produzido foi resgatado. Em lugar disso, podemos observar uma apropriação e tradução criativa apenas
do que interessava ou chamava a atenção para e no contexto da cosmologia cristã, que tinha e tem até hoje a
metafísica enquanto um dos seus fundamentos básicos. Tais ações, obviamente, influenciaram na direção do
projeto societário em curso e seus desdobramentos em épocas posteriores.
Capítulo 2 111
Ângela Massumi Katuta

primordialmente aos expropriados dos meios de produção, fez dela a grande alentadora das
massas exploradas e, conseqüentemente, a grande produtora e representante ideológica da
nobreza e realeza.
A capacidade da Igreja católica em cercear e conduzir a vida da massa expropriada e
sua posição privilegiada em relação à nobreza e realeza estavam ancoradas na
descentralização territorial e política ocorrida em boa parte da Europa a partir do processo de
ruralização, aliado às invasões bárbaras.
Poder-se-ia afirmar que na Idade Média, em um primeiro momento, houve “[...] uma
tentativa de salvar o máximo possível de um corpo que estava minguando [...]”, e,
posteriormente se tentou “[...] dar sentido a um corpo crescente de conhecimentos [...]”
(CROSBY, 1999, p. 68). Pertencem ao primeiro momento − Antigüidade Tardia ou Baixa
Idade Média − Santo Agostinho e Boécio, os precursores da escolástica 160 .
As preocupações de Santo Agostinho, como todo filósofo patrístico 161 , foram sempre
teológicas; por isso, buscou conciliar fé e razão “[...] Mesmo quando se ocupa de questões
filosóficas, o seu objetivo é, em primeiro lugar, reconciliar o ensinamento da Bíblia com a
herança filosófica da escola platônica.” (RUSSEL, 2001, p. 183). Creditam-se a Boécio as
mais antigas traduções latinas dos escritos lógicos de Aristóteles; apesar disso, de acordo com
Russel (2001, p. 185), este sofreu mais influência da filosofia de Platão do que das
especulações teológicas dos Padres.
No final da Antigüidade e início da Idade Média verifica-se que os pensadores
tenderam a alinhar-se ao platonismo, principalmente ao neoplatonismo 162 , em detrimento das

160
Filosofia ensinada nas escolas, universidades e nos locais de instrução teológica da Igreja Católica no período
medieval, aproximadamente do século XI ao XVI. “[...] Combinava doutrina religiosa, estudo dos Padres da
Igreja e uma investigação filosófica e lógica baseada sobretudo em Aristóteles e, até certo ponto, em temas de
Platão [...]” (BLACKBURN, 1997, p. 122). Ver Japiassú e Marcondes (1996, p. 193-194), Blackburn (1997, p.
121-122).
161
A Patrística foi a filosofia dos padres da Igreja Católica que viveram entre o século I e IX. Trata-se da síntese
da filosofia grega clássica com a religião cristã, tendo seu início com a escola de Alexandria. A escolástica
derivou da patrística. Ver Japiassú e Marcondes (1996, p. 208-209), Blackburn (1997, p. 291).
162
Fusão da filosofia de Platão com doutrinas clássicas religiosas, pitagóricas e outras. Corrente filosófica do
século III, fundada por Amônio Sacas, divulgada por Plotino e seus seguidores Porfírio, Iâmblico e Proclo
(século V). Caracteriza-se por uma interpretação espiritualista e mística das doutrinas de Platão, com influência
do estoicismo e do pitagorismo. Na escola de Atenas, o neoplatonismo desenvolveu-se em uma direção
teológica, porém anticristã. Em Alexandria, surgiu uma mistura de elementos neoplatônicos e cristãos, cuja
forma mais desenvolvida se encontra em Boécio. Apesar de influenciar profundamente a filosofia medieval e
renascentista, ”[...] o Deus dos neoplatônicos acaba por ser excessivamente distante em relação ao mundo para
poder servir de forma satisfatória como Deus do judaísmo, do cristianismo e do islamismo. O Deus platônico é
como um lago que, sendo a fonte de um rio, está no entanto separado dele pelas quedas d’água intermediárias;
não é acessível pela oração, não se interessa nem remotamente pelo que se passa abaixo dele, e sequer toma
conhecimento disso.“ (BLACKBURN, 1997, p. 264-265). Depreende-se daí que a idéia de Deus que o
platonismo permitia não era das mais adequadas à cosmologia cristã; daí o resgate das idéias aristotélicas pelos
escolásticos, especificamente aquelas sobre o motor imóvel, por meio das quais buscaram uma definição de Deus
Capítulo 2 112
Ângela Massumi Katuta

idéias aristotélicas. À medida que ocorre o “esforço de reconciliação” 163 entre os saberes das
doutrinas filosóficas clássicas, os dogmas da fé cristã e as verdades reveladas pelas Sagradas
Escrituras − portanto, no momento em que a cosmologia cristã torna-se hegemônica,
principalmente do século XI em diante −, o pensamento filosófico remete,
predominantemente, às tradições aristotélicas. Para Russel (2001, p. 236-237)
[...] É fácil perceber por que Aristóteles é mais adaptável à teologia cristã do que
Platão. Utilizando uma linguagem escolástica, podemos dizer que uma teoria realista
não deixa muito espaço a um poder divino com uma função vital no comando das
coisas. O nominalismo 164 propicia uma abrangência muito maior nesse aspecto.
Naturalmente, ainda que o Deus dos judeus e dos cristãos seja algo muito diferente
da divindade aristotélica, é verdade também que o aristotelismo se enquadra melhor
no esquema cristão do que o platonismo. A teoria platônica pretende a inspirar
doutrinas panteístas 165 como, por exemplo, no caso de Spinoza, ainda que o seu
ramo do panteísmo seja puramente lógico [...].
Ao discorrer sobre a filosofia medieval, Burtt (1991, p. 41 et seq.) nos apresenta um
quadro extremamente interessante da influência de Platão e Aristóteles no período. O que se
verifica é que foram resgatadas, traduzidas, discutidas e valorizadas obras de ambos os
pensadores que permitissem a construção dos fundamentos patrísticos e escolásticos no
contexto da racionalidade cristã. Por isso o autor afirma que:
[...] o único trabalho original nas mãos dos filósofos era o Timeu, no qual Platão é
apresentado, mais que em qualquer outro diálogo, à luz do pitagorismo [...] Platão
parecia ser o filósofo da natureza; Aristóteles, que era conhecido apenas por sua
lógica, parecia um dialético árido. [...] Quando Aristóteles capturou o pensamento
medieval 166 , no século XIII, o neoplatonismo não estava, de modo algum, vencido,
mas permanecia como uma corrente metafísica algo reprimida mas ainda
amplamente influente, à qual os que dissentiam do peripateticismo ortodoxo
costumavam recorrer [...]. (BURTT, 1991, p. 41-42).
Se retomarmos os principais debates sobre linguagem que ocorreram no contexto da
Antigüidade tardia, listados no Quadro 1, pode-se verificar que os elementos norteadores dos
mesmos são a cosmologia e racionalidade cristã. A problemática da interpretação das

que, apesar de ser completamente auto-suficiente, não fosse de todo absorto em si mesmo. Sobre esse assunto
ver Japiassú e Marcondes (1996, p. 193-194), Blackburn, (1997, p. 264-265).
163
Processo esse nem sempre pacífico, como afirmam Crosby (1999) e mais especificamente Russel (2001).
164
Corrente filosófica originada na filosofia medieval cuja tese é a de que as coisas denominadas pelo mesmo
termo nada têm em comum exceto isso, defende ainda que as idéias gerais ou universais não têm existência real
nem na mente humana nem enquanto formas substanciais; são apenas signos lingüísticos, palavras ou nomes.
Grifo da autora.
165
O Panteísmo defende a concepção de que tudo deve sua existência a Deus e que com ele se identifica. Deus e
o universo são um, pois é um ser imanente à natureza, e não um ser exterior e transcendente. Os estóicos
defendiam a idéia de que Deus se confundia com a Alma do Mundo. Espinoza é o principal representante dessa
concepção, afirmando que “[...] Deus é a única substância infinita e eterna, da qual todas as coisas existentes são
apenas modos.” (JAPIASSÚ; MARCONDES, 1996, p. 206). Ver também em Blackburn, (1997, p. 279).
166
Entendo que, neste trecho, o autor faz uma inversão equivocada, foram os medievais − patrísticos e
principalmente escolásticos − que capturaram Aristóteles, pelo fato de que as idéias do filósofo se constituíam
em um porto mais seguro e tranqüilo para a ancoragem da racionalidade cristã do que a filosofia platônica. Uma
prova disso é que essa última predomina em dois momentos: quando do resgate da tradição clássica pelos
patrísticos e no período que marca o fim da hegemonia da Igreja Católica enquanto produtora da racionalidade
hegemônica.
Capítulo 2 113
Ângela Massumi Katuta

escrituras e a crença na possibilidade da revelação da verdade por meio da palavra divina


demandaram a discussão e elaboração de um conjunto de regras e códigos estruturadores da
racionalidade cristã até o Renascimento. O objetivo destes últimos era guiar o entendimento
dos textos sacros, diminuindo a tendência polissêmica quando do ato de interpretação. Daí a
importância e centralidade da semântica enquanto área do saber à época. Verifica-se também
nessas ações o habitus da homogeneização do entendimento do mundo.
É importante salientar que, neste contexto, apesar de a semântica estar voltada para a
epistemologia, como na Antigüidade, a revelação também se constituía em um dos elementos
que auxiliavam no debate do “verdadeiro significado” das escrituras. Realizava-se assim, uma
teologia simbólica por meio da exegese, ou seja, uma minuciosa interpretação rigidamente
parametrizada dos referidos materiais. Os signos, as palavras e os sacramentos eram
apreendidos e compreendidos na circunscrição da cosmologia cristã; a razão enfim ancora-se
na fé.
Na Antigüidade tardia e Idade Média, a linguagem tinha lugar especial na cosmologia
cristã pelo fato de ser o fundamento da crença na revelação divina realizada por meio da
palavra. Além disso, na referida cosmologia, o mundo e todas as outras coisas nele existentes
surgiram por um ato de palavra de seu criador, como bem elucida Eco (2001, p. 25) em seu
livro A busca da língua perfeita:
A nossa história, em comparação com numerosíssimas outras histórias, tem a
vantagem de poder começar desde o Início.
Antes de mais nada, quem fala é Deus, que, ao criar o céu e a terra, diz: ‘Faça-se a
luz’. E logo a seguir desta palavra divina, ‘Fez-se a luz’ (Gênesis 1, 3-4). A criação
aconteceu por um ato de palavra, e somente nomeando as coisas que via, cria Deus
sucessivamente, conferindo-lhes um estatuto ontológico: ‘E Deus chamou a luz ‘dia’
e as trevas ‘noite’ [...] [e] declarou o firmamento ‘céu’.
Na Antigüidade tardia, segundo Nef (1995, p. 44), muitos textos bíblicos referentes à
linguagem subsidiavam e inspiravam os debates ligados a essa temática. São eles:
- Nomeação por Adão das coisas criadas e suas conversações com Deus, Gênesis II,
19-20: “E o nome que Adão dava a cada um dos animais era o seu verdadeiro nome.”
- O mito da torre de Babel, Gênesis XII, 1-8.
- A revelação do nome de Deus por ele próprio (“Eu sou aquele que é”), Êxodo 3, 14.
- O logos criador no prólogo do Evangelho de João, João, I, 1-s.
- A idéia de um nome secreto para cada criatura que só Deus conhece, Apocalipse.
Foi principalmente por meio dos textos elencados que o debate acerca da linguagem se
realizou ao longo da Antigüidade tardia e do Medievo. A tradição clássica foi resgatada e
lembrada apenas enquanto elemento que auxiliasse ou que servisse de fundamento para o
“verdadeiro” ou exato entendimento das escrituras. Verifica-se, nesta atitude de busca pela
Capítulo 2 114
Ângela Massumi Katuta

verdadeira ou mais exata interpretação do verbo divino, o entendimento de que a


racionalidade era inerente ao objeto, como se esse fosse o portador da revelação. Esta postura
epistemológica foi um habitus característico de toda a Idade Média, principalmente dos
escolásticos.
O longo período que compreende a Idade Média (século V-XV) não pode ser
entendido de forma monolítica. Para Nef (1995, p. 51), as características que lhe são
usualmente atribuídas devem ser consideradas com cuidado, pelo fato de o mesmo ser muito
extenso e ter características bastante diferenciadas. Decadência, barbárie, tradição, unidade
entre a fé cristã e a razão, embora pareçam ser elementos excludentes, são próprios do período
compreendido pela Antigüidade tardia e Medievo.
Um dos elementos que indicam uma certa continuidade do referido período com a
tradição clássica foi a manutenção da divisão ciceroniana das sete artes liberais167 e a ênfase
no trivium − gramática, lógica, retórica − enquanto eixos organizadores e articuladores do
ensino universitário e da organização do saber produzido entre os séculos II ao XVII. Uma
parte das idéias medievais sobre a linguagem encontra-se no trivium.
Os comentários do Organon 168 no Medievo também indicam uma certa continuidade
entre o referido período e a tradição clássica. Questões sobre o arbitrário do signo, a expressão
lingüística dos pensamentos e a definição da verdade também foram debatidas desde os
comentaristas alexandrinos 169 até o final da Idade Média. Fato esse que confirma o valor ou a
centralidade da palavra tanto na cosmologia da tradição greco-romana quanto na judaica e
cristã. A gramática medieval foi herdeira da gramática clássica, fato esse que constitui outro
elemento indicativo de uma certa continuidade entre os referidos períodos. (NEF, 1995, p. 51
et seq.).
A partir da segunda metade do século XII, com o resgate das idéias aristotélicas pelos
escolásticos, há uma tendência de substituição da orientação em geral descritiva e normativa
dos gramáticos latinos por outra, considerada à época estritamente científica no sentido

167
“[...] conjunto das ‘artes’ que, na Idade Média, compunham o curso completo dos estudos nas universidades,
conduzindo ao domínio das artes e compreendendo o trivium (gramática, retórica, dialética ou lógica) e o
quadrivium (aritmética, música, geometria e astronomia).” (JAPIASSÚ; MARCONDES, 1996, p. 18).
168
Segundo Japiassú e Marcondes (1996, p. 202), este termo é aplicado ao conjunto das obras lógicas de
Aristóteles, reunidas no século I a.C. por Andronico de Rodes. O Organon contém a teoria aristotélica do
método, ou seja, a estrutura do raciocínio e argumentação válidos que encontramos aplicados em toda ciência.
Nas obras que o compõe existe: a) uma teoria do termo, da predicação, das categorias mais gerais de substância,
relação, tempo etc (Categorias); b) uma teoria da proposição, pois esta é composta de termos e da afirmação e
negação (Da Interpretação); c) uma teoria do silogismo, que é constituído de proposições e da dedução válida
(Primeiros analíticos); d) uma teoria do silogismo demonstrativo que constitui o discurso científico (Segundos
Analíticos); e) uma teoria dos argumentos dialéticos (Tópicos); f) uma exposição das falácias e sofismas
(Refutações sofísticas).
169
Pertencentes à Escola de Alexandria, corrente filosófica neoplatônica
Capítulo 2 115
Ângela Massumi Katuta

aristotélico dos Segundos Analíticos − dedutiva e universal. Essa outra gramática,


denominada também de especulativa, era formal na medida em que valorizava uma
compreensão sistemática das formas do discurso: suas partes, base categorial e a forma geral
das regras sintáticas.
Observa-se no período o esforço de racionalização da palavra divina, a necessidade do
reforço da crença na revelação que resultou na sistematização de um conjunto de habitus e
saberes extremamente importantes para o período seguinte. Por isso, não se pode de maneira
nenhuma afirmar que a Idade Média foi uma época de trevas ou de simples reprodução dos
saberes da tradição clássica, entendo-a como um período de estabelecimento da urdidura e
tecedura das condições materiais da cosmologia, do projeto societário moderno, ainda hoje
hegemônico.
O princípio de isomorfia, segundo o qual duas entidades que possuem a mesma forma
ou estrutura são biunivocamente correspondentes ou têm as mesmas propriedades, é um dos
fundamentos da gramática, de muitos dogmas como o da transubstanciação, da pintura
renascentista, da cartografia tal qual é usada hoje e de muitos outros conhecimentos
científicos. Ao afirmar a relação biunívoca entre linguagem, realidade e intelecção, as
doutrinas hoje consideradas como clássicas ou hegemônicas justificam a possibilidade do
conhecimento como representação correta e verdadeira do real, colocando em xeque o
nominalismo 170 em proveito do realismo 171 .
Segundo Eco (2001, p. 45 et seq.), na Idade Média floresce em plena Europa uma
corrente do misticismo judaico que teve grande influência nas pesquisas sobre a temática da
língua perfeita, problemática esta que, em períodos posteriores, vai ser retomada
freqüentemente em uma perspectiva científica, principalmente pelos lingüistas e matemáticos.
O fundamento da referida corrente está baseado na crença da criação do mundo como
fenômeno lingüístico. Por meio da Cabala − técnica de leitura e interpretação do texto
sagrado, que é a Torá ou os livros do Pentateuco −, tenta-se descobrir de novo, sob a leitura
da Torá escrita, a Torá eterna, preexistente à criação e confiada por Deus aos anjos.
O texto da Torá, pois, é abordado pelo cabalista como um aparato simbólico que
(por baixo da letra e dos eventos que narra ou dos preceitos que impõe) fala destas
realidades místicas e metafísicas; por conseguinte deve ser lido visando a descobrir
nele quatro sentidos (literal, alegórico-filosófico, hermenêutico e místico). (ECO,
2001, p. 47).

170
Defende que as características comuns das coisas são criações cujas fontes são as idéias e reações humanas.
171
Em linhas gerais, trata-se de uma postura segundo a qual “[...] existe uma realidade exterior, determinada,
autônoma, independente do conhecimento que se pode ter sobre ela. O conhecimento verdadeiro, na perspectiva
realista, seria então a correspondência entre nossos juízos e essa realidade.“ (JAPIASSÚ; MARCONDES, 1996,
p. 231). Muitos autores afirmam que o uso irrestrito da lei da bivalência é sua principal característica.
Capítulo 2 116
Ângela Massumi Katuta

Diferentemente da exegese cristã − cujo trabalho de interpretação não supõe a


alteração da expressão ou da disposição material do texto, ao contrário, implica todo um
esforço no restabelecimento de uma leitura confiável do material, tendendo assim para uma
maior monossemia −, algumas correntes cabalísticas necessitam anatomizar a leitura, ou seja,
reordenam a disposição material do texto por meio de três técnicas fundamentais, cujos
fundamentos envolvem raciocínios matemáticos: o notariqon 172 , a gematrya 173 e a
temurah 174 .
Estas técnicas, apesar de permitirem uma maior polissemia ou flexibilidade do
entendimento do discurso se comparada à exegese cristã, também se constituem em tentativas
de racionalização da palavra divina. Além disso, verifica-se que a exatidão, no caso dos
cabalistas, está inequivocadamente fundada no raciocínio ou racionalidade matemática
enquanto saber exato, por meio do qual Deus pode conduzir os seres humanos à verdade ou à
Torá eterna.
Não por acaso, é nesta perspectiva de entendimento de mundo que se elaborarão tanto
os projetos de línguas universais racionais quanto a racionalidade moderna ocidental, sendo
essa última fundada na matematização dos diferentes aspectos da realidade. Estes
entendimentos acabaram contribuindo para o recrudescimento do raciocínio biunívoco e
realista, característico da metafísica moderna.
Nos principais debates acerca da linguagem que ocorreram na Idade Média, elencados
no Quadro 1, pode-se verificar que o desejo da crença na exatidão, na verdade sobre as coisas,
já estava colocado. A absolutização de um determinado olhar voltado à realidade também já
se tornara um habitus ou uma tendência do pensamento hegemônico do período. Isso se
explica em parte pelo fato de o mundo medieval ser fechado e voltado para si mesmo. Nele, as
possibilidades do estabelecimento de trocas econômicas e materiais eram escassas ou até
mesmo ausentes. Esse mundo, no qual a mobilidade social e territorial praticamente inexistia,
construiu um olhar hegemônico com tendências absolutizantes, voltado para a
homogeneidade, a simplicidade e a imobilidade, valorizando-as em detrimento da

172
Técnica do acróstico por meio da qual se codifica ou decodifica um texto, tomando-se as iniciais de uma série
de palavras para a formação de outras.
173
Técnica passível de ser usada para codificar ou decodificar mensagens porque, em hebraico, os números são
representados por letras do alfabeto. Neste contexto, cada palavra tem um valor numérico derivado da soma dos
números representados por cada letra.
174
Arte da permutação das letras ou dos anagramas; em línguas em que as vogais podem ser interpoladas, há
maiores possibilidades de permuta do que em outros idiomas. Esta, segundo Eco (2001, p. 50), para os judeus
não é apenas uma técnica de leitura, mas se trata do mesmo procedimento com que Deus criou o mundo.
Subjacente a este entendimento está a crença de que, por meio de recursos ou alfabeto finitos, se produz um
número vertiginoso de substâncias ou combinações, o que remete aos fundamentos do cálculo fatorial.
Capítulo 2 117
Ângela Massumi Katuta

heterogeneidade, da complexidade e do movimento: foi o que aconteceu não apenas neste


período, mas também e, com maior força, na fase posterior, obviamente que com
características específicas.
A idéia da universalidade da gramática, que transcende a diversidade dos usos
gramaticais, expressa uma forte tendência dominadora e absolutista; dela também resulta uma
pequena ou nenhuma curiosidade pela diversidade e especificidade dos idiomas humanos e,
conseqüentemente, pela alteridade, pelo outro, seu modo de vida, entendimento de mundo e
espacialidades. Eis os sentimentos e racionalidades inerentes ao processo civilizador encetado
pelos europeus, junto aos povos e terras a serem civilizados por meio do poder de
instrumentos como a cruz, a espada e, sobretudo, a palavra dos homens e do Deus cristão.
Os estudos de gramática, no período, centraram-se na língua latina e grega e, mais
raramente, no hebraico e árabe. Esta é a característica primordial da gramática medieval dos
escolásticos, herdeiros diretos da gramática clássica. A primeira tem como fundamento a
crença em duas correspondências, uma ontológica e biunívoca entre linguagem e realidade, ou
seja, a linguagem expressa o real. A outra correspondência é psicológica e, na referida
perspectiva, dar-se-ia entre linguagem e espírito; em outras palavras, é por meio da primeira
que podemos ter acesso ao pensamento humano.
A gramática medieval efetua a redução metodologicamente necessária ao
estabelecimento de seu fundamento. O que, até então, se hesitou em cumprir, − a revolução da
isomorfia das estruturas lingüísticas, cognitivas e ontológicas −, os gramáticos especulativos
ousam fazer, obviamente em nome da “vontade divina”.
Verifica-se já no Medievo os primórdios renascentistas da concepção realista de
conhecimento que se desenvolverá no período seguinte e se tornará o paradigma dominante
ou o modelo de racionalidade hegemônico da Ciência Moderna. Seu uso mais efetivo ocorrerá
a partir de meados do século XVI, influenciando ainda hoje uma parte significativa de
ciências e cientistas.
Uma grande parte dos debates hodiernos em torno da linguagem e dos sistemas
simbólicos constitui-se em desdobramento do processo ora descrito, principalmente aqueles
relativos à semiologia, lingüística e gramática. Em geral, essas especialidades da Ciência
tendem a estabelecer, por meio de regras, as possibilidades lógicas para a comprovação da
existência da isomorfia e correspondência biunívoca entre linguagem e realidade. O que, via
de regra, estes diferentes campos de estudo têm em comum é a reificação e fetichização da
linguagem. Assim, não a entendem enquanto práxis e relações humanas, consideram-na como
um elemento em si e per si, revelador da verdade e da substância das coisas.
Capítulo 2 118
Ângela Massumi Katuta

Segundo Nef (1995, p. 99 et seq.), no período compreendido entre o Renascimento e o


século XIX, com o abandono progressivo do método escolástico175 enquanto referencial único
de acesso à “verdade”, o questionamento e a ruptura da dependência da filosofia em relação à
teologia e o quase esquecimento da especulação lógica sobre a significação na linguagem 176 −
característicos dos habitus intelectuais dominantes no medievo −, os debates sobre essa última
passam a ser orientados mais para a teoria do conhecimento do que para a ontologia 177 ou
para a semântica 178 .
As mudanças rapidamente elencadas expressam as transformações nos habitus de
pensamento e modus vivendi dos europeus. Contudo, ao contrário do que muitos estudiosos da
ciência afirmam, não se pode dizer que houve uma ruptura radical e pontual entre fé e razão.
Compreensões que defendem a cisão entre as duas últimas tendem a obscurecer um conjunto
significativo de elementos dogmáticos, presentes na própria ciência moderna hegemônica, ou
em sua concepção de cientificidade. O dogma da neutralidade científica funda-se em um ideal
de objetividade, por meio do qual e em respeito ao qual os cientistas tendem a ocultar suas
preferências pessoais. Dessa maneira, lutam, em vão, a fim de não permitirem que
preconceitos filosóficos interfiram em suas pesquisas e também, em vão, tentam evitar que
um dado fato ou teoria seja privilegiado sem justificativa racional (THUILLIER, 1994, p. 12).
Entre o pensamento clássico e hegemônico da Antigüidade, do Medievo, passando
pelo renascente e moderno, não ocorreu uma ruptura entre crenças religiosas e razão; o que
mudou de fato foi o método de construção discursiva e, conseqüentemente, o modelo de

175
Método de ordenação discursiva e, portanto, de pensamento, característico do período Medieval −
aproximadamente século VIII ao XIV −, que visava à exposição de idéias por meio de uma sistemática
conhecida como disputa, na qual se apresentava uma tese que deveria ser refutada ou defendida a partir dos
fundamentos estabelecidos por uma autoridade sancionada pelo poder eclesiástico (Bíblia, Platão, Aristóteles ou
algum cânone da Igreja); daí a subordinação deste pensamento ao princípio maior da autoridade. Em outras
palavras, as idéias eram consideradas verdadeiras, se seus fundamentos lógicos estivessem baseados em alguma
autoridade reconhecida.
176
O debate sobre a significação na época medieval estava fundado na crença da correspondência biunívoca
entre linguagem, realidade e intelecção, ou seja, na gramática medieval que possuía caráter dedutivo e formal.
Daí as decisões científicas serem tomadas em função da significação, obtida por meio do estabelecimento de
regras formais. Nef (1995, p. 74) distingue três tipos de considerações dessa gramática: a primeira tratava da
base categorial, das partes do discurso – classificação das palavras; uma outra consideração dizia respeito à
forma geral das regras sintáticas – descrição das regras de concordância, análise de casos; a última tratava da
semântica – relação entre linguagem, realidade e intelecção. Esses são os fundamentos de grande parte das
teorias clássicas da lingüística e da semiótica.
177
“[...] Conhecimento dos princípios e fundamentos últimos de toda a realidade, de todos os seres.” (CHAUÍ,
1995, p. 54-55).
178
Estudo das mudanças ou translações sofridas, no tempo e no espaço, pela significação das palavras (fil.),
estudo da relação de significação dos signos e da representação do sentido dos enunciados. (semiót.). (Fonte:
Ferreira, 1988, p. 592).
Capítulo 2 119
Ângela Massumi Katuta

racionalidade 179 . Toda alteração de linguagem ou de construções discursivas expressa e é


expressão de mudanças de racionalidade, dos habitus sociais em um dado contexto espaço-
temporal.
No medievo, os fundamentos discursivos e de racionalidade foram erigidos com base
na autoridade eclesiástica, ou nos dogmas por ela engendrados. Posteriormente, verificar-se-á
a valorização da linguagem matemática enquanto instrumento privilegiado de análise em
função principalmente da sua capacidade de modelação isomórfica, que norteará toda a lógica
da investigação científica, inclusive a elaboração das representações da própria estrutura da
matéria e, assim, do mundo, como foi o caso da cartografia que conhecemos, que, no contexto
da geografia moderna, passa a ser a representação legítima de partes ou da totalidade de uma
superfície. Conhecer passa a ser sinônimo de quantificar, que se transmuta em expressão do
rigor científico.
Apesar de no Renascimento se verificar o abandono do método escolástico, fundado
na autoridade clerical, para o entendimento do real enquanto método de construção discursiva
e de racionalidade hegemônica, não é possível afirmarmos que a escolástica enquanto habitus
de pensamento, modus vivendi e operandi tenha sido de todo superada abruptamente. O
Scholastic view, expressão empregada por Austin e traduzida por Bourdieu (1997, p. 199 et
seq.) como ponto de vista escolástico, refere-se a uma forma específica de entender o mundo
engendrada no contexto do Medievo que, segundo o autor, ainda sobrevive em alguns nichos
até os dias atuais:
[...] Trata-se de um ponto de vista muito específico sobre o mundo social, sobre a
linguagem ou sobre qualquer objeto do pensamento, que se tornou possível graças à
situação de skholé, de lazer, da qual a escola − palavra também derivada de skholé −
é uma forma especial, como situação institucionalizada de lazer estudioso. [...] na
medida em que implica um modo e pensamento que supõe a suspensão da
necessidade prática e se utiliza de instrumentos de pensamento construídos contra a
lógica da prática, como a teoria dos jogos, a teoria das probabilidades etc., a visão
escolástica expõe-se pura e simplesmente a destruir seu objeto ou a engendrar
artefatos puros quando se aplica, sem reflexão crítica, a práticas que são o produto
de uma outra visão. (BOURDIEU, 1997, p. 200-203).
Pode-se afirmar que, do ponto de vista dos saberes científicos hegemônicos, a
escolástica enquanto postura epistêmica, e porque não dizer acadêmica, ainda se faz presente

179
Russel (2001, p. 237) defende que a união entre filosofia e teologia pôde perdurar enquanto se admitia que a
razão, até certo ponto, apoiava a fé, ponto nodal da cosmologia medieval. A negação da possibilidade de
conciliação entre fé e razão pelos franciscanos expressa a emergência de uma racionalidade diferente daquela
constituída no medievo. Não se trata de substituição da fé ou da religião pela razão, mas da construção de outra
racionalidade, expressão das classes cuja hegemonia estava em curso. Thuiller (1994, p. 22) afirma que existe
apenas uma diferença de grau entre os conhecimentos científicos e míticos, pois “[...] nos dois casos, o objetivo é
encontrar ‘uma unidade oculta sob uma complexidade aparente’, elaborar um discurso explicativo utilizando
analogias etc.” Ampliando esta afirmação, poder-se-ia dizer que a diferença entre os saberes religiosos, míticos,
de senso-comum e científicos é apenas de gradação. A importância de cada um dependerá do contexto espaço-
temporal de cada sociedade humana, ancorada em um determinado modo de produção.
Capítulo 2 120
Ângela Massumi Katuta

nas produções científicas relativas à linguagem. Retira-se o dogma da palavra divina


reveladora mas coloca-se em seu lugar um outro, fundado na matemática. Esta compreendida
enquanto linguagem única, a mais legitima e também reveladora, ou seja, a chave para o
“verdadeiro ou correto entendimento” do mundo, como se as verdades existissem em si e per
si, para além de qualquer existência humana e contextos espaciais e temporais.
Na referida perspectiva epistemológica, os seres humanos são retirados do mundo,
juntamente com suas ações nele, para poderem ser pensados na categoria de observadores
distantes. Dessa forma, realiza-se pelo distanciamento a neutralização e universalização do
saber científico hegemônico, negando suas relações com as condições materiais de vida e de
produção, engendradas espaço-temporalmente no contexto de uma cosmologia hegemônica.
Por meio do método científico, que era dedutivo e experimental, portanto fiel à
tradição metafísica, procurou-se desvelar o que na época se entendia por “verdadeira natureza
do conhecimento humano”, e também a linguagem, meio a partir do qual esse conhecimento
seria revelado. A crença ocidental na possibilidade da construção de conhecimentos
verdadeiros em termos absolutos, conseqüência de todo um “[...] movimento geral a que se
assistiu no domínio das atividades cognitivas [...]” (THUILLER, 1994, p. 25), conduziu a
discussões centradas em temas como a origem da linguagem 180 , a aquisição do conhecimento,
tendo como fundamento a crença no seu caráter inato, expressão da relevância, centralidade e
hegemonia epistemológica do cartesianismo.
A preocupação epistemológica dominante é descrever a gênese das idéias, a origem
dos conhecimentos. O projeto específico de todo esse período é duplo. Por um lado,
o de uma língua universal para a expressão correta das idéias e a comunicação
racional entre os eruditos; por outro, uma descrição lingüística das línguas vulgares
tão completa quanto possível. (NEF, 1995, p. 100).
Verifica-se a partir do exposto que subjacente a cada processo civilizador,
principalmente no que se refere à sociedade ocidental, existe um movimento de tensão geral
que, ditado pelas classes hegemônicas e seus representantes, coordena e orienta por meio da

180
Segundo Nef (1995, p. 100), o tema da origem da linguagem remonta aos epicuristas, ou seja, há
aproximadamente 300 a.C. O que temos, ainda hoje, em relação a esse debate é um conjunto de hipóteses não
comprovadas. Para Olson S. (2003, p. 163) essa é “[...] uma área da ciência na qual os fatos são extremamente
escassos, de modo que as hipóteses tendem a se multiplicar de forma descontrolada.” Elias (1998a, p. 271-272)
em seu livro Envolvimento e Alienação, chama a atenção para a forte tendência no pensamento científico de
elaboração de teses sobre as origens. Tomando como exemplo a hipótese do big bang ou sobre a origem do
universo, o autor afirma que essa é mais uma prova do “[...] quanto permanece forte o desejo humano de
segurança sobre a noção de começo absoluto e de quanto ainda é difícil para os indivíduos considerar processos
sem começo [...]. Dessa forma tem origem na física, progressivamente confirmado por cálculos e observações,
mas que brota, entretanto, como tantos outros mitos dos tempos primordiais, do mero desejo humano de
transferir a categoria ‘começo’ das partes, particularmente de si, para o todo, de modo a escapar da inquietante
concepção de uma infinitude sem princípio.” Por isso, em relação à linguagem e ao conhecimento, o mesmo
defende que “[...] primeiro, é preciso sacudir a força constrangedora do hábito. O costume habituou as pessoas,
que estão à espera deste tipo de explicação, a procurar uma resposta que tenha o caráter de um início. Tal
resposta não será encontrada.” (ELIAS, 1994b, p. 7-8).
Capítulo 2 121
Ângela Massumi Katuta

violência simbólica 181 as atividades cognitivas de toda uma sociedade, indicando a direção
tomada pelo seu processo civilizador e projeto societário.
Os conhecimentos, quaisquer que sejam eles, também devem ser considerados como
meios de orientação e, portanto, de sobrevivência dos seres humanos em um dado contexto
espaço-temporal 182 . Hodiernamente, para além de serem meios de orientação, os
conhecimentos também devem ser considerados instrumentos voltados à produção de
excedentes, cuja apropriação é realizada por uma pequena parcela da sociedade183 . Verifica-se
assim que, sob a aparente homogeneidade do saber socialmente institucionalizado no
Ocidente, subjazem tensões e conflitos entre os mais diferentes sujeitos sociais. Muitas lutas
pela legitimação de determinados produtos simbólicos são expressões das diferenças
simbólicas entre as classes. Não por acaso, a balança sempre tem sido favorável às classes
hegemônicas que detêm, em quase sua totalidade, o monopólio dos meios e instrumentos de
produção simbólica.
O movimento geral ao qual fiz referência anteriormente pode ser compreendido como
expressão do conjunto de transformações territoriais, sociais e históricas relativas a modos de
ocupar o espaço, produzir, viver, sentir e pensar hegemônicos, no contexto de uma dada
sociedade. Isso não significa que esses modos resultam de um projeto societário e de um
processo civilizador pensados a priori. Ao contrário, esses últimos são as resultantes do
conjunto de transformações territoriais, sociais e históricas engendradas a partir de razões
práticas, estejam elas direcionadas para atender apenas a subsistência dos grupos humanos ou
para a produção da riqueza de alguns a partir do empobrecimento e miséria de muitos.

181
Termo usado por Bourdieu (2000a, p. 11) e que se refere ao papel dos sistemas simbólicos enquanto
instrumentos políticos de imposição ou de legitimação da dominação que “[...] contribuem para assegurar a
dominação de uma classe sobre outra (violência simbólica) dando o reforço da sua própria força às relações de
força que as fundamentam e contribuindo assim, segundo a expressão de Weber, para a ‘domesticação dos
dominados’.”
182
Sobre esse assunto ver a instigante obra de ELIAS (1998b) intitulada Sobre o tempo. Por meio da mesma, o
autor discute a função do conhecimento, enquanto instrumento de orientação das ações humanas, em diferentes
momentos históricos e locais.
183
É preciso atentar para os indicadores de aumento das desigualdades sociais: 185 milhões de pessoas estão
desempregadas no planeta, o que equivale a 6,2% da força de trabalho; desde os anos 1990, as diferenças entre
países ricos e pobres têm aumentado, salvo exceções como a China; um grupo minoritário de nações,
correspondente a 14% da população mundial, domina metade do comércio mundial; no início dos anos 1960, a
renda per capita nas nações mais pobres era de US$ 212, enquanto nos países mais ricos era de US$ 11471,
passados 40 anos, ou seja, em 2002, as mesmas cifras passaram a US$ 267 (+26%) e US$ 32339 (+183%); o
produto interno bruto mundial (PIB), que era de 1,01 em 1990, caiu para 0,08 em 2003; entre 1985 e 2000, 16
países em desenvolvimento cresceram mais de 3% ao ano, 32 países em desenvolvimento cresceram menos de
2% e 23 países em desenvolvimento tiveram retração do PIB. Os dados evidenciam a face perversa do processo
civilizador encetado no Ocidente e do atual projeto societário, fundado no aumento das desigualdades sociais em
benefício de poucos. (FOLHA DE S. PAULO, 25 fev. 2004, Caderno B, p. 1).
Capítulo 2 122
Ângela Massumi Katuta

No final do Medievo, aproximadamente entre os séculos XII e XIII, verifica-se o


início do abandono da escolástica, enquanto método discursivo, e do paradigma divino,
enquanto fundamento da racionalidade dominante. Normas e hábitos característicos do
medievo são lenta e profundamente transformados, ainda que algumas instituições desse
período sobrevivam até os dias de hoje, como é o caso da Igreja católica.
Muitos autores como Russel tendem a creditar tais mudanças à laicização e
secularização da razão, obscurecendo o entendimento do processo de transformação da
mentalidade do período em função da inversão que promovem. Para confirmar a laicização da
razão, o autor afirma que surge em uma ala do próprio clero, especialmente entre os
franciscanos, idéias que afirmavam a incompatibilidade entre o discurso científico e o da fé,
no plano da razão científica. Esses religiosos, segundo o mesmo autor, assumiram que não
existia mais lugar para a filosofia no campo teológico: “[...] Ao liberar a fé de todos os
vínculos possíveis com a investigação racional, Ockham colocou a filosofia no caminho de
volta ao secularismo. Do século XVI em diante, a Igreja não mais domina esse campo.”
(RUSSEL, 2001, p. 237).
Considerando a afirmação de Russel, é importante destacar que, apesar de a Igreja a
partir do século XVI não mais dominar o campo da investigação racional científica, a ruptura
entre fé e razão não ocorre de um século para outro e muito menos de forma abrupta. Poder-
se-ia afirmar que a aludida cisão, quando ocorreu, realizou-se de maneira processual, de
forma mais lenta ou mais rápida dependendo dos pressupostos de cada escola de pensamento
que, pari passu, foi se constituindo.
Thuillier (1994, p. 74) confirma também a mudança de habitus no período, ao referir-
se à abertura dos franciscanos em relação ao estudo da natureza. Contudo, diferentemente de
Russel (2001), encara a transformação como tributária de uma outra mais geral. Entende o
elogio à medida feito pelo filósofo e teólogo Nicolau de Cusa em 1450, como testemunho da
“[...] importância alcançada por certas técnicas intelectuais em um mundo de empreiteiros,
artilheiro e banqueiros[...]”.
A secularização e laicização da razão não devem ser consideradas o motor das
transformações da mentalidade; são antes expressões de lentas e profundas mudanças que
vinham ocorrendo no modo de produção da sociedade européia desde os séculos X e XI como
descreve Thuillier (1994, p. 71-74):
[...] a partir dos séculos X e XI, o Ocidente conheceu uma expansão muito acentuada
das técnicas e um importante movimento de urbanização. Moinhos d’água, moinhos
de vento e máquinas diversas multiplicaram-se; um novo personagem, o engenheiro,
fez sua aparição e desempenhou um papel de crescente importância; a produção e o
comércio se tornaram mais eficientes; e logo os bancos concretizaram de modo
Capítulo 2 123
Ângela Massumi Katuta

dinâmico essa grande mutação que conduzia à época moderna [...] uma nova
mentalidade se instaurou, marcada por um ‘realismo’ e um ‘racionalismo’
totalmente favoráveis ao estudo sistemático da natureza. Para que esse novo ideal
fosse plenamente explicitado seria preciso esperar pelo século XVII (Descartes
tornar-se ‘como um mestre e senhor da natureza’).
Em função do exposto, verifica-se que a mudança de habitus no período e as grandes
sistematizações científicas possuem íntima relação entre si. Essas são obras que concretizaram
as transformações sociais e territoriais que vinham sendo lentamente empreendidas. É no fim
do medievo que as matemáticas têm seu status mudado. Anteriormente, a aritmética e a
geometria não eram ignoradas. Seu estudo era feito em um contexto teórico nas universidades
existentes, freqüentadas pelas classes sociais hegemônicas ou em vias de hegemonização,
como eram, respectivamente, a aristocracia e a burguesia. No entanto, tais matemáticas não
tinham a importância que passaram a ter poucos séculos depois, quando da ascensão
econômica da burguesia.
O crescente incremento do comércio e do processo de urbanização propiciado pela
gradativa mudança do modo de produção, principalmente na bacia do Mediterrâneo, levou ao
fortalecimento da burguesia e de sua espacialidade, de seu modus vivendi e operandi, fato este
que influenciou os habitus da sociedade como um todo. Neste processo, ocorreu a inegável
disseminação de uma forma burguesa de relação e entendimento do mundo, bem como de sua
espaço-temporalidade. As matemáticas passaram a ter usos e aplicações cotidianas. Houve o
desenvolvimento de um entusiasmo coletivo pela mensuração de diferentes aspectos do real,
como confirma Thuillier (1994, p. 76):
[...] Não há dúvida de que nos arsenais, nos ateliês de mecânica e entre os artilheiros
o emprego das medidas e o sentido de quantidade se desenvolveram sensivelmente.
[...] a análise das formas geométricas tornou-se uma preocupação comum aos
comerciantes, aos engenheiros e aos artistas [...] Esse desenvolvimento das
matemáticas práticas, na Itália dos séculos XIV e XV, ajuda a compreender por que
e como o ‘olhar’ dirigido às coisas se transformou, e de algum modo se
‘geometrizou’. Descobrir as proporções, identificar os triângulos, os cones ou os
cilindros passou então a ser uma espécie de ‘hábito cultural’ amplamente difundido.
Constrói-se assim, aos poucos, uma outra racionalidade hegemônica para o
entendimento do mundo centrada em um método conhecido como científico − dedutivo e
experimental −, cujo fundamento estava ancorado na mensuração de diferentes aspectos do
real. A hegemonia do referido método, enquanto forma única de acesso à verdade ou ao
conhecimento verdadeiro, a despeito da perspectiva de seus elaboradores ou detratores, é
reveladora do sentido dominador inerente à cosmologia ocidental hegemônica.
Segundo Nef (1995, p. 99), o período entre os séculos XV e XIX foi marcado “[...]
positivamente por uma orientação, um debate, um tema e um projeto [...]”. Com a
constituição de uma racionalidade hegemônica, fundada na razão metafísica e não mais no
Capítulo 2 124
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dogma da revelação divina, o desvelamento da “verdadeira natureza do conhecimento


humano” − descrição da gênese das idéias e debate sobre a origem dos conhecimentos −
tornou-se premente. Por isso, esse período se orienta para a teoria do conhecimento.
Dessa forma, o debate centraliza-se na questão da aquisição ou do caráter inato do
conhecimento, cujas relações com a linguagem são explicitadas na medida em que o principal
tema da semântica iluminista é a reflexão sobre a origem da linguagem que, nesse contexto, é
considerada a chave para o entendimento da racionalidade humana, concebida como
universal, assim como as leis da física.
À época, dois projetos complementares entre si ganham relevância, um deles referente
à língua universal, visando a uma correta expressão e comunicação das idéias entre os
eruditos e, porque não dizer, escolásticos ou acadêmicos. Verifica-se que subjacente a essas
idéias estava o entendimento de que a única racionalidade válida no Planeta Terra, na
perspectiva da ordem hegemônica, era a científica, que deveria ser expressa em uma outra
língua que não a comum. Na perspectiva da hegemonia do período, a linguagem comumente
usada pela sociedade era eivada de imperfeições e expressões equivocadas ou enganosas 184 .
A descrição lingüística minuciosa das línguas vulgares é o outro projeto que se realiza
no contexto da formação dos Estados nacionais, em função da necessidade colocada pelos
humanistas de reabilitação da língua vernácula 185 . Observa-se que não foi por mero acaso que
o XVIII, ainda hoje, é considerado como o século da linguagem. Este processo não se realizou
e nem se realiza sem que ocorra a violência simbólica, pois a língua pátria, vernácula ou
oficial
[...] está enredada com o Estado, tanto em sua gênese como em seus usos sociais. É
no processo de constituição do Estado que se criam as condições da constituição de
um mercado lingüístico unificado e dominado pela língua oficial: obrigatória em
ocasiões e espaços oficiais [...], esta língua de Estado torna-se a norma teórica pela
qual todas as práticas lingüísticas são objetivamente medidas. Ninguém pode ignorar
a lei lingüística que dispõe de seu corpo de juristas (os gramáticos) e de seus agentes
de imposição (os professores), investidos do poder de submeter universalmente ao
exame e à sanção jurídica do título escolar o desempenho lingüístico dos sujeitos
falantes. (BOURDIEU, 1998, p. 32).
Em função do exposto, pode-se afirmar que as descrições lingüísticas foram usadas a
fim de constituir um corpo de regras para o uso e funcionamento das linguagens vernáculas,
que culminou com a legitimação da norma culta. Esta nada mais é que o conjunto dos habitus

184
Verifica-se, nessa perspectiva epistemológica, a oposição entre linguagem científica e popular, expressão de
posições cientificistas, em geral fundadas na metafísica e no ponto de vista escolástico. Estas tendem a defender
o conhecimento científico hegemônico e suas linguagens enquanto única forma de saber legítimo.
185
Sobre esse assunto ver a excelente obra de Bourdieu (1997) intitulada A economia das trocas lingüísticas,
especificamente a Parte I. Nela, o autor discorre sobre os fundamentos da economia simbólica subjacente à
produção e disseminação dos produtos culturais, usando como mote, para a explicitação de suas teses, o caso da
produção e reprodução da língua legítima, também conhecida como vernácula ou nacional.
Capítulo 2 125
Ângela Massumi Katuta

lingüísticos dominantes, sistematizado por lingüistas e gramáticos. O aspecto comunicativo da


linguagem não tem centralidade neste processo. Não se quer apenas comunicar, subjacente ao
estabelecimento da norma culta; existe uma economia simbólica que, juntamente com outros
processos sociais, auxilia na reprodução social. Trata-se de formar ou re-formar estruturas
mentais e de fazer reconhecer um novo discurso de autoridade “[...] com seu novo vocabulário
político, termos de estilo e referência, metáforas, eufemismos e a representação do mundo
social por ele veiculada.” (BOURDIEU, 1998, p. 34).
Ao questionar e problematizar temas ligados à “verdadeira natureza” do conhecimento
humano, este período foi fértil na construção de respostas que se relacionavam diretamente às
teorias do conhecimento e nos debates sobre a linguagem que, segundo muitos autores, nunca
foram tão ricos. No entanto, como mostrei desde o início do presente item, tanto as questões
quanto as respostas hegemônicas elaboradas em cada época revelam as condições materiais e
tensões simbólicas no contexto das quais as mesmas foram e são engendradas.
No período em questão, o tom dominante na tecedura das perguntas e respostas
epistemológicas foi o do cartesianismo, doutrina hegemônica cujo substancialismo 186
fundamentou e, ainda hoje, fundamenta a separação entre mente e matéria, sujeito e objeto
entre outros; um problema filosófico, epistemológico e cognitivo com o qual nos deparamos
até hoje.
Wertheim (2001, p. 113), com muita propriedade, afirma que a partir do final do
século XVII a visão fisicalista do mundo 187 foi invocada como “[...] uma poderosa foice
epistemológica para extirpar tudo que não pudesse ser acomodado na concepção
materialista 188 da realidade. Ao longo dos três últimos séculos, a realidade passou a ser vista,
cada vez mais, como o mundo físico apenas [...]”. Sob a égide e por força da “foice
epistemológica”, operou-se a substancialização e a conseqüente divisão do indivisível, como
são os elementos que compõem um mesmo processo: o sujeito e o objeto, o pensamento, a
memória, a linguagem, a percepção e a construção do conhecimento.
Wertheim (2001, p. 113) afirma ainda que, ao contrário do que muitos defendem, é um
“[...] completo equívoco chamar a imagem científica moderna do mundo de dualista; ela é
monista, admitindo a realidade somente dos fenômenos físicos [...]”. A proposição da autora

186
“Doutrina que afirma a existência de uma substância ou realidade autônoma composta de substâncias,
independente de nossa percepção ou conhecimento. Oposto a fenomenismo [...].” (JAPIASSÚ; MARCONDES,
1996, p. 255).
187
Seus maiores sistematizadores foram Newton, com sua ciência matemática e Descartes, com sua metafísica
dualista.
188
Talvez o termo mais adequado para expressar a visão à qual Wertheim se referiu não seja materialista, mas
substancialista ou empirista.
Capítulo 2 126
Ângela Massumi Katuta

pode ser facilmente corroborada se considerarmos o patamar de cientificidade, tardiamente


conquistado, por algumas especialidades das ciências humanas no contexto da produção do
conhecimento científico moderno 189 .
O monismo ao qual se refere Wertheim (2001) orientou as pesquisas, debates e
reflexões da área das ciências humanas para uma direção. O resultado deste processo pode ser
verificado em muitos estudos que fazem uso desnecessário das formulações matemáticas, a
fim de apresentar as regularidades de um determinado, como se o emprego deste expediente
conferisse um patamar maior de cientificidade ao trabalho. Foi sob a égide da abstração
matemática que muitas especialidades das ciências humanas se erigiram, como é o caso das
correntes hegemônicas no interior da semiótica, lingüística, teorias da comunicação etc.
Para Elias (1993, p. 285), a sociedade ocidental e, especificamente, o conjunto de
pesquisadores, ainda hoje concede centralidade desmesurada às formulações matemáticas,
atitude esta que não possui relação com seu valor cognitivo. O respeito pelas mesmas, explica
o autor, tem origem na valorização do imutável, fundada “[...] não no trabalho cognitivo da
pesquisa em si, mas no anelo do pesquisador pela eternidade.” Subjacente à valorização do
imutável encontra-se a crença em uma verdade única, porque abstrata, atemporal e eterna,
fundamento da cosmologia ocidental hegemônica.
As regularidades gerais, os padrões de relações
[...] sejam eles matematicamente formulados ou não, não constituem o objetivo final
ou o ápice da pesquisa histórica e sociológica 190 . A compreensão dessas
regularidades é frutífera como meio para atingir uma meta diferente, um meio de
orientar o homem no tocante a si mesmo e ao seu mundo. Seu valor reside
exclusivamente em sua função de elucidar a mudança histórica e espacial. (ELIAS,
1993, p. 285).
A compreensão das regularidades possui relevância no contexto geral de elaboração
das pesquisas na área de ciências humanas, mas não se deve nela estancar. Auxiliar os seres
humanos a se conhecerem melhor, bem como ao seu mundo, servir como meio de orientação
das ações humanas ou de suas práxis, este é ou deveria ser o escopo fundamental dos estudos
e pesquisas das ciências humanas e da compreensão das regularidades.

189
Ainda hoje, em função da impossibilidade da transposição do mesmo tratamento e abordagem do real usados
nas ciências físicas, exatas e biológicas, muitas especialidades da área das ciências humanas continuam a ter sua
cientificidade questionada ou sequer reconhecida. Vários estudos dessa área são classificados como ideologia,
negando-se sua legitimidade enquanto estudo científico de determinado fenômeno. A “foice” do ideal de
cientificidade da ciência moderna operou e, ainda hoje, opera de maneira a desconsiderar uma parte considerável
dos estudos que a ela não se enquadram. Em função disso, ainda é comum que muitos pesquisadores da área das
ciências humanas se ocupem em estabelecer argumentos sobre a cientificidade dos estudos que realizam. Essa
atitude pode ser entendida como expressão de que a cientificidade das pesquisas realizadas, na referida área, não
é consensual na comunidade científica.
190
De minha parte insiro também a geográfica e todas as outras áreas. (Grifo da autora).
Capítulo 2 127
Ângela Massumi Katuta

Encontrar regularidades ou padrões gerais em si e per si, durante muito tempo e talvez,
até hoje, se constitui na única meta perseguida por muitos pesquisadores que estudam a
linguagem. Apresentar a realidade tal como a ela é tem sido o objetivo da razão hegemônica e
a função atribuída às linguagens no período; por isso, apenas algumas delas foram eleitas
como as mais adequadas a tal intento. Contudo, o que esta razão oculta é a íntima relação
entre os saberes produzidos, as linguagens e as práxis humanas.
Com a constituição e legitimação do ideal de cientificidade moderno ocorre, nas
ciências humanas, uma tendência geral de adequação de sua produção à hegemonia científica
colocada, monista e substancialista em seu fundamento. O desdobramento da sujeição ao
referido ideal, no que se refere à questão da linguagem, pode ser verificado na relativa
unidade com que se chega ao século XVIII: um debate, um tema e um projeto (NEF, 1995). A
necessidade da exatidão na realização dos processos comunicativos −, portanto, a eliminação
dos ruídos, a ênfase na retidão de conceitos universalizantes, a elaboração de leis universais e
descontextualizadas sobre os processos interpretativos, sua dissecação, substancialização e
compartimentação com a finalidade de elaborar regras voltadas a uma correta interpretação −,
é ação características do período e expressa a sujeição do debate sobre a linguagem ao ideal
de cientificidade hegemônico.
Para Wertheim (2001, p. 113), Descartes, em especial, fez a balança pesar fortemente
em favor do monismo, pois
[...] operou a divisão radical entre um domínio fisicamente extenso da matéria em
movimento (res extensa) e um domínio de pensamentos, sentimentos e experiência
espiritual (res cogitans) [...] Como a nova ciência iria descrever somente res
extensa, apenas esse domínio receberia a sanção da autoridade científica. À medida
que essa autoridade cresceu, tudo que estava fora do campo de ação da ciência
tornou-se cada vez mais objeto de ataque [...] Embora Descartes insistisse na
realidade da res cogitans, ao excluir radicalmente esse domínio imaterial dos
métodos e práticas da ciência, deixou-o extremamente exposto a ser visto como
‘irrealidade’. [...] Com o dualismo de Descartes, porém, não há mais vínculos entre o
domínio da matéria e o do espírito. Sem vínculos com o mundo concreto da ciência
física, a res cogitans cartesiana tornou-se rapidamente (como o Céu cristão) um
símbolo vazio.
Ao meu ver, não foi Descartes ou qualquer outro pensador que, individualmente, fez a
balança pesar a favor do monismo. Não podemos culpá-lo por sistematizar as idéias de sua
época. O habitus da sociedade em que o mesmo vivia, construído desde o século X, já estava
em processo de hegemonização. As idéias sistematizadas por Descartes expressam a
cosmologia das classes sociais hegemônicas, seus entendimentos sobre o real, a linguagem e a
espaço-temporalidade de uma época.
Uma atenta observação quanto aos métodos e práticas da ciência moderna hegemônica
revela a tecedura desta no contexto de uma civilização quantificadora, que transformou
Capítulo 2 128
Ângela Massumi Katuta

radicalmente sua práxis e assim sua racionalidade. A valorização do mensurável, do absoluto,


das regularidades, do movimento cíclico, das leis gerais e da abstração provocou o
estabelecimento do corte ou recorte entre o que, nesta cosmologia, poderia ser conhecido
cientificamente ou não. Os debates sobre a linguagem e a produção de conhecimentos
científicos, desta época, expressam a racionalidade hegemônica.
O divisor de águas entre a res extensa e a res cogitans já vinha sendo gestado
lentamente bem antes do nascimento de Descartes. Compreendo que sua grande contribuição
foi a sistematização das idéias de sua época, esforço que talvez o tenha auxiliado a entrever −
sob o espesso tecido da cortina de sua época, qual espectador curioso antes do início do
espetáculo − o esgarçamento de uma racionalidade substancialista recém tecida.
Para Descartes, em seu Princípios da Filosofia I, substância é aquilo que é em si
mesmo, é o suporte dos atributos, qualidades ou acidentes: “Porque dentre as coisas criadas
algumas são de tal natureza que não podem existir sem outras, nós as distinguimos daquelas
que só têm necessidade do concurso ordinário de Deus, denominando estas de substâncias e
aquelas de qualidades ou atributos dessas substâncias.” (DESCARTES, apud JAPIASSÚ;
MARCONDES, 1996, p. 255).
Pelo exposto, verifica-se que subjacente à idéia de substância cartesiana, não por
acaso, está a noção de identidade, de sujeito e predicado, que são as mesmas defendidas por
Aristóteles na Metafísica, Z, 1:
[...] É apenas a substância que é absolutamente primeira, tanto logicamente no plano
do conhecimento, quanto temporalmente. Com efeito, por um lado, nenhuma das
categorias existe separadamente, apenas a substância. Por outro lado, ela é também a
primeira logicamente, pois na definição de cada ser está necessariamente contida a
de substância. (ARISTÓTELES, apud JAPIASSÚ; MARCONDES,
1996, p. 255).
Pode-se afirmar então que no Renascimento, apesar do processual abandono do
método escolástico, o pensamento aristotélico sobre a identidade, a substância, ou seja, a
lógica aristotélica − habitus aristotélico de pensamento −, sobreviveu no cartesianismo,
principalmente no que se refere aos usos da linguagem. Uma das explicações apontadas por
Korzybski 191 (apud HAYAKAWA, 2000, p. 229) em relação a esta questão é a de que
existem relações entre pensamento, comportamento e estrutura da linguagem não evidentes

191
Sua obra de referência foi publicada em 1933 com o título Science and Sanity. Nela, o autor faz uma análise
exaustiva do comportamento de diferentes pessoas, relacionando-os com suas concomitantes reações semânticas.
Em linhas gerais conclui que suposições estruturais pré-científicas e a metafísica primitiva estão subjacentes ao
comportamento de pessoas que possuem hábitos aristotélicos de linguagem, porque seus pensamentos envolvem
postulados implícitos de identidade. Tais pessoas, segundo o autor, possuem padrões de reações
comprovadamente inadequados para a solução dos problemas contemporâneos. Por isso, tendem a estar mais
propensas ao desenvolvimento de neuroses e psicoses.
Capítulo 2 129
Ângela Massumi Katuta

em si, mas que devem ser explicitadas, a fim de que se rompa com o referido hábito de
pensamento ou obstáculo epistemológico, em uma perspectiva bachelardiana.
Relações entre pensamento, comportamento e estrutura da linguagem, às quais se
referem Korzybski (apud HAYAKAWA, 2000, p. 229), não são visíveis per si, mas elas
podem se tornar ou não visíveis, dependendo da forma como se realiza seu entendimento; daí
a necessidade de apreender a linguagem de maneira contextualizada, pois se trata de uma
relação social que se realiza espaço-temporalmente. É nesta perspectiva que se coloca a
importância da construção de outros olhares ou habitus de pensamento em relação à
linguagem.
A tentativa de substancialização da linguagem 192 e também de todos os processos
inerentes ao processo do conhecimento deve ser entendida no contexto da construção de um
entendimento substancialista e fisicalista de mundo. Esse entendimento é expressão de uma
mentalidade ou habitus burguês e caracteriza-se por ser eminentemente visual e quantitativo.
Os processos são percebidos, em cada um dos seus elementos constituintes, como entidades
ontológicas distintas entre si. O tempo, o espaço, os vários elementos da natureza, enfim,
todas as coisas existentes no mundo, inclusive a linguagem, foram racionalizados no contexto
da mentalidade hegemônica burguesa, lentamente construída a partir do século X.
No Renascimento e Iluminismo os debates sobre a gênese das idéias, a origem do
conhecimento e da linguagem foram amplamente realizados, tendo como pano de fundo o
questionamento sobre a possibilidade do conhecimento humano. Esses debates, ao serem
orientados pela racionalidade cartesiana, defendiam a possibilidade do conhecimento da
natureza, concebida enquanto domínio fisicamente extenso da matéria, cujos acontecimentos
se repetem de maneira infindável. No contexto da tradição cartesiana somada à kantiana é
possível pensar em universais lingüísticos e de conhecimento, em linguagem perfeita para a
correta expressão das idéias e em uma origem única dos conhecimentos, questões essas às
quais se dedicou uma parte significativa dos estudiosos da época.
A realização dos debates em torno das questões elencadas pode ser compreendida
enquanto expressão da importância epistemológica do cartesianismo, cujas teses sobre a
separação entre mente e matéria, as estruturas inatas de pensamento foram e muitas vezes
ainda são 193 o fundamento para a crença na existência de estruturas universais de pensamento

192
Ao meu ver, essa deve ser concebida como práxis, como adequadamente afirma Wittgenstein (1995, p. 187).
193
Vide as teorias lingüísticas de Noam Chomsky (1971, 1972) sobre a gramática gerativa-transformacional. Por
meio delas, o autor defende a existência de universais lingüísticos, princípios básicos comuns a todas as línguas,
prova da existência de universais inatos nos seres humanos.
Capítulo 2 130
Ângela Massumi Katuta

e linguagem 194 nos seres humanos. Tal crença foi reforçada pelo pensamento kantiano que,
com sua lógica transcendental, defendia a existência de princípios do conhecimento humano a
priori, que são as categorias do intelecto que:
[...] exaurem tudo o que o intelecto contém em si a priori, mas das quais ainda
podem ser deduzidos outros conceitos. Se decompuséssemos os conceitos
transcendentais dessa maneira, então teríamos uma gramática transcendental,
contendo o princípio da linguagem humana; por exemplo, como o presente, o
pretérito perfeito, o mais-que-perfeito se encontram em nosso intelecto, o que são os
advérbios etc. Se se refletisse sobre isto, ter-se-ia uma gramática transcendental. A
lógica conteria o uso formal do intelecto. (KANT, 2002, p. 86).
É interessante notar que as transformações do modo de produção em curso e o
conseqüente desenvolvimento tecnológico propiciaram o conhecimento de territórios até
então desconhecidos, fato esse que conduziu à verificação da existência de uma diversidade
ainda maior de línguas, habitus, espaço-temporalidades, enfim, de outras formas de vida e
entendimento do mundo, que se tornou ainda mais heterogêneo.
Contudo, à época da exploração e conquista de terras desconhecidas, a cosmologia
ocidental já havia passado por mudanças substanciais em função do desenvolvimento da
linguagem matemática 195 . Essa, durante longo tempo, esteve voltada ao entendimento e
domínio da natureza física. A referida linguagem permitiu a construção de conhecimentos
cuja ênfase residiu no estabelecimento de ações que auxiliassem a ter um maior domínio dos
outros elementos da natureza, a desenvolver tecnologias, conhecer e estabelecer domínios
sobre territórios e, assim, auferir mais lucros.
Na cosmologia ocidental hegemônica, a linguagem matemática torna-se a principal
ferramenta do período, no entendimento de um mundo concebido apenas como domínio
fisicamente extenso da matéria. O desejo por uma língua universal que expressasse
corretamente as idéias, destinada aos intercâmbios comerciais e científicos e às viagens e, no
caso específico de Leibniz, que propagasse o cristianismo universal e pacificasse a Europa 196 ,
torna-se um dos projetos centrais do período, expressão dos anseios dos setores hegemônicos
de uma sociedade.
No volume 2 do livro O processo civilizador, ao discorrer sobre o valor cognitivo da
formulação matemática, Elias (1993, p. 285) assim se expressa:
[...] Muitas pessoas consideram que o trabalho mais fundamental da pesquisa seria
explicar todas as mudanças através de algo imutável. E o respeito pela formulação
matemática tem origem, em grande parte, nessa valorização do imutável. Tal escala

194
Não por acaso as teses piagetianas também têm como fundamento a crença nas estruturas universais de
pensamento, fruto da adoção do inatismo cartesiano, base para a certeza da possibilidade de realização do
conhecimento, pois nesse contexto, tem caráter imediato e evidente.
195
Esse desenvolvimento foi lento e, segundo Crosby (1999), teve início no século XIII em função de
transformações intelectuais ocorridas na Europa Ocidental.
196
Sobre esse assunto ver Eco (2001, p. 328), em sua obra intitulada A busca da língua perfeita.
Capítulo 2 131
Ângela Massumi Katuta

de valores, porém, tem suas raízes não no trabalho cognitivo da pesquisa em si, mas
no anelo do pesquisador pela eternidade. [...] A compreensão dessas regularidades é
frutífera como meio para atingir uma meta diferente, um meio de orientar o homem
no tocante a si mesmo e ao seu mundo. Seu valor reside exclusivamente em sua
função de elucidar a mudança histórica.
A crença na idéia de gênese, origem e verdade absoluta, fundamentada pelo e no
contexto do método experimental, expressão da cosmologia ocidental renascentista
hegemônica, permeou todo o debate sobre a linguagem entre os séculos XV a XIX. O
movimento do mesmo direcionou-se, predominantemente, para o entendimento da alteridade
a partir do encaixe-redução da mesma no contexto da cosmologia européia, ou de
determinados grupos sociais hegemônicos.
É com esse olhar, engendrado no processo de construção da hegemonia de
determinados grupos sociais no contexto da formação dos diferentes Estados nacionais que se
analisou e descreveu as línguas vulgares, se reabilitou as línguas vernáculas e se criou e
legitimou hábitos, costumes e formas de pensar e viver adequadas ou voltadas à viabilização
do modo de produção em curso. O caso da Alemanha e sua intelligentsia constituem um
exemplo extremamente didático para entendermos a relação, ou a amálgama existente entre
habitus, grupos sociais, hegemonia política, econômica e simbólica 197 .
Entre os séculos XV e XIX ocorre uma mudança do uso e, portanto, do significado da
palavra lógica. Na Antigüidade e Medievo esse termo era concebido com um sentido
aristotélico e, assim, usado como sinônimo de ciência do real. Nesta perspectiva, as
categorias, como por exemplo, a de sujeito e predicado, e os princípios lógicos, como a lei da
identidade, refletem as categorias e princípios ontológicos, sendo assim, derivados da própria
natureza e estrutura do real. A isomorfia entre linguagem, realidade e pensamento estava
bastante presente nessa concepção.
Entre o Renascimento e Iluminismo, a lógica passa a ser concebida como ciência do
pensamento. As categorias e os princípios lógicos são, neste contexto, entendidos como
reflexos da estrutura e modo de operar do pensamento humano. O fundamento para essa tese é
a crença em estruturas universais de pensamento humano, inspiradas tanto no racionalismo
cartesiano como no transcendentalismo kantiano 198 , ao qual me referi anteriormente. Por isso,
a lógica, nesse contexto, teria o papel de explicitar e sistematizar as categorias e princípios do
pensamento humano. Um exemplo de pesquisa realizada a partir dessa perspectiva são os
trabalhos de Jean Piaget, cujas teorias estão ancoradas por essa concepção moderna de lógica.

197
Sobre esse assunto ver os excelentes trabalhos de Elias intitulados O processo civilizador (1994a),
principalmente o volume 1 e Os Alemães (1997).
198
Por meio dele Kant defendia que os seres humanos eram impelidos a adequar suas experiências a um padrão
predeterminado, ditado pela natureza humana. Assim, o raciocínio humano para Kant tinha limites definidos.
Capítulo 2 132
Ângela Massumi Katuta

O século XX, segundo NEF (1995, p. 135), marca um período de “[...] revolução, tão
importante quanto a do nominalismo no século XIV [...]”. Nele, há uma dupla tendência na
filosofia da linguagem: o reconhecimento da impossibilidade radical de apreender o
“pensamento nu”, sem roupagem lingüística, e a insistência no fato de que a atividade de
análise deve ser realizada por meio da e pela linguagem. Verifica-se que ambas as tendências
comungam da tese da impossibilidade de dissociação entre pensamento e linguagem.
Contudo, esses últimos são concebidos como entidades ônticas ou substâncias diferentes, mas
complementares entre si, como se entre ambos existisse uma espécie de isomorfismo.
Os entendimentos explicitados subsidiarão a criação da Filosofia analítica por Frege,
Russel e Carnap, cujo fundamento era o entendimento de que o processo de análise é
essencial para o método e progresso filosóficos. Daí a defesa da tese de que, subjacente à
forma de superfície de uma linguagem, se encontra uma estrutura lógica profunda, cuja
análise auxiliaria na resolução dos problemas filosóficos, entendimento este também
comungado por Noam Chomsky. Nesse contexto, os problemas apontados são entendidos
como resultantes das formas de superfície da linguagem comum, concebidas como
enganadoras. Verifica-se aqui o uso de uma pretensa cientificidade que aponta para a
homogeneização em detrimento da heterogeneidade da linguagem e, portanto, dos seres
humanos, expressão do processo civilizador sob a égide do capitalismo.
Deleuze e Guattari (2002, p. 41) criticam a tese da existência de constantes e
universais da língua que permitiria defini-la como um sistema homogêneo, essencial para o
estatuto acadêmico científico da lingüística em sua face hegemônica:
A lingüística em geral ainda não abandonou uma espécie de modo maior, um tipo de
escala diatônica, um estranho gosto pelas dominantes, constantes e universais.
Durante esse período, todas as línguas estão em variação contínua imanente: nem
sincronia, nem diacronia, mas assincronia, cromalismo como estado variável e
contínuo da língua [...].
Ao criticarem o excesso de valoração do homogêneo da língua maior ou padrão pela
lingüística, os autores fazem uma severa crítica ao atual modelo científico, também político,
ainda hoje hegemônico, por meio do qual a língua se torna objeto de estudo, sendo ”[...]
homogeneizada, centralizada e padronizada, língua de poder, maior ou dominante.”
(DELEUZE; GUATTARI, 2002, p. 45).
Neste sentido, os autores nos alertam sobre dois modos de tratamento possíveis de
uma mesma língua: “[...] Ora tratam-se as variáveis de maneira a extrair dela constantes e
relações constantes; ora, de maneira a colocá-las em estado de variação contínua.”
(DELEUZE; GUATTARI, 2002, p. 49). Os autores optam pelo segundo tratamento e acabam
instaurando o movimento em suas reflexões sobre a linguagem, militando “[...] Por uma
Capítulo 2 133
Ângela Massumi Katuta

lingüística cromática, que dê ao pragmatismo suas intensidades e valores.” (DELEUZE;


GUATTARI, 2002, p. 41).
O sentido político dessa forma de entender a linguagem aponta para uma subjetivação
progressiva, para um constante devir “[...] O devir minoritário como figura universal da
consciência é denominado autonomia [...]”. (DELEUZE; GUATTARI, 2002, p. 53). Dessa
maneira, territorializam a linguagem no local onde ela se realiza, nos atos de linguagem dos
sujeitos vivos:
[...] A linguagem é impelida por esse movimento que a faz se estender para além dos
seus próprios limites, ao mesmo tempo que os corpos são tomados no movimento de
metamorfose de seu conteúdo, ou na exaustão que os faz alcançar ou ultrapassar os
limites de suas figuras [...]. (DELEUZE; GUATTARI, 2002, p. 56).
Os posicionamentos dos autores em relação aos estudos lingüísticos demonstram
rupturas com um marcador de poder, ou marcador sintático das correntes lingüísticas
hegemônicas, que tendem a neutralizar a linguagem retirando-a do seu locus de realização,
desterritorializando-as.
Considerando o exposto, pode-se afirmar que a filosofia analítica reificou e fetichizou
a linguagem, como se esta existisse em si e per si, descontextualizando-a de seus usos, e
dotando-a de um poder sobrenatural. Na perspectiva desse entendimento, as análises
gramaticais, semiológicas e lingüísticas hegemônicas ganharam terreno. Verifica-se dessa
maneira uma tendência à monossemização, homogeneização e, portanto, simplificação dos
discursos, sob a égide do ideal de cientificidade engendrado aproximadamente no século
XVII.
Nesse período, há uma tendência em justificar a necessidade da procura por uma
língua formular que, tal como um aparelho − linguagem como máquina −, permitiria
ultrapassar as limitações da linguagem natural, possibilitando a formulação do pensamento
puro e correto. Aliás, na maioria dos debates realizados pelos filósofos, cuja orientação é
conhecida como corrente lingüística, podemos verificar a defesa da tese de que “[...] uma
análise filosófica da linguagem pode levar a uma análise filosófica do pensamento, e em
segundo lugar, a convicção de que esta é a única maneira de se chegar a uma explicação
global.” (NEF, 1995, p. 135). Por isso, os principais debates do século XX na filosofia da
linguagem focaram o fenômeno em questão enquanto expressão do pensamento.
Em se considerando a perspectiva da filosofia analítica, verifica-se uma tendência de
abordar o pensamento, a linguagem e o conhecimento em termos isomórficos. Por isso, a
análise, no contexto dessa concepção filosófica, era importante tanto para o método quanto
para o progresso filosófico. A tese comum de Gottlob Frege, Ludwig Joseph Johann
Capítulo 2 134
Ângela Massumi Katuta

Wittgenstein (1ª fase) 199 , Donald Davidson e de John Langshaw Austin era a de a filosofia
deveria analisar a lógica das sentenças, por meio da qual os problemas filosóficos seriam
resolvidos. Verifica-se nessa tese a crença de que os problemas filosóficos decorrem da
linguagem, das incertezas dela decorrente, e não dos usos que os seres humanos dela fazem.
Esse posicionamento é o que mais se aproxima daquele denominado por Bourdieu (1997) de
escolástico, e porque não dizer metafísico. Contudo, entre os estudiosos citados há profundas
divergências em relação ao tipo de análise a ser realizada.
É importante salientar que estudiosos de outras áreas também realizaram debates sobre
o pensamento e a linguagem nos séculos XX e XXI. Contudo, os mesmos não se encontram
elencados no Quadro 1, principalmente pelo fato de termos enfatizado as diferenças
filosóficas entre os debates sobre a linguagem, por entender que essas tendem a ser os grandes
divisores de águas que separam os atuais entendimentos que os profissionais de outras áreas
possuem sobre o tema.
O que se pode observar é que, por volta do século XVII em diante, o debate é feito por
especialistas das diferentes áreas do conhecimento científico, expressão da divisão intelectual
do trabalho no contexto da sociedade moderna 200 . Verifica-se também, nos estudos e debates
sobre a linguagem e o pensamento, o esfacelamento do objeto e da razão e, muitas vezes, a
impossibilidade da elaboração de determinadas questões e respostas em função da
manutenção de uma dada forma de especialização, processo esse característico do habitus

199
Os estudiosos das idéias wittgensteinianas tendem a dividir a obra desse pensador em duas fases. O primeiro
período culmina com o Tractatus Lógico-Philosophicus, única obra do autor publicada em vida, que se insere na
tradição da análise lógica da linguagem iniciada por Frege e Russel e desenvolvida pelo Círculo de Viena. A tese
subjacente à obra de Wittgenstein é a de que a linguagem possui uma estrutura lógica que reflete a estrutura
lógica do real. Nesta perspectiva, a linguagem tem com o mundo uma relação formal e estática. No segundo
período de seus estudos, o autor ou o “segundo Wittgenstein”, como é conhecido, enfatiza na obra intitulada
Investigações científicas, o uso da linguagem no contexto das mais diferentes atividades sociais e cotidianas,
elaborando o conceito de jogos de linguagem. É por meio desse conceito que as relações formais e estáticas da
linguagem com o mundo são interrompidas, cedendo lugar às ações humanas que dão significados múltiplos à
linguagem. Advém desse entendimento a crítica do autor ao processo de dicionarização da palavra que, segundo
ele, assassina a linguagem por enclausuramento.
200
Os estudos bourdieusianos sobre as trocas simbólicas e suas relações com o campo econômico elucidam de
forma extremamente competente o funcionamento daquilo que o próprio autor denomina de campos de produção
simbólica, dos quais fazem parte as produções científica e artística. Em função das especificidades, riqueza e
complexidade inerente às análises do autor, sugiro a leitura direta das seguintes obras do mesmo: A Economia
das Trocas Simbólicas (1992); As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário (1996); Razões Práticas:
Sobre a Teoria da Ação (1997); A economia das trocas lingüísticas: o que falar quer dizer (1998); O poder
simbólico ( 2000a); O campo econômico: a dimensão simbólica da dominação (2000b). É importante salientar
que o problema não reside na questão da especialização, pois hodiernamente ela se faz necessária não só, mas
também, em função da amplitude atingida pelo saber científico. Contudo, quando o campo de produção
científica passa a agir como se as especializações e a divisão social do trabalho fossem naturais e, portanto,
inquestionáveis, mesmo quando surgem evidências de que elas mais atrapalham que auxiliam nas investigações
científicas, nesse caso, entendo que é preciso rever o sentido tomado pelas especializações. Esse problema fica
evidente quando a investigação trata da linguagem, conhecimento e aprendizagem; mais adiante abordarei essa
questão.
Capítulo 2 135
Ângela Massumi Katuta

científico moderno. Não raro, tal habitus esses últimos influencia, em grande parte, na
urdidura e tecedura de determinadas questões e respostas às mesmas, inviabilizando outras.
Nas diversas áreas que se convencionou denominar de ciências humanas, os debates
sobre a linguagem, o pensamento e suas inter-relações tenderam a ser realizados por
diferentes ciências, profissionais e, portanto, por diversos olhares. Somado a isso ocorreu
também uma perspectiva de verticalização dos estudos com poucas áreas dialogando entre si.
A lingüística, semiologia, psicologia, sociologia e filosofia, bem como suas especialidades
internas, constituíram fóruns próprios para debater a questão, assim como algumas
especialidades das ciências biológicas que tratam da questão da linguagem e do pensamento
na perspectiva do processo de evolução.
O importante a ser salientado é que os modelos de ser humano por meio dos quais as
diversas áreas da ciência operam são muito diferentes entre si. No contexto da divisão entre
res extensa − domínio fisicamente extenso de matéria em movimento –, e res cogitans −
domínio de pensamentos, sentimentos e experiência espiritual, entre natureza e sociedade,
corpo e alma –, surgiram basicamente dois modelos de ser humano divergentes: um, das
ciências humanas e outro, das ciências naturais. Na perspectiva desses modelos, se “[...] algo
é geneticamente determinado, considera-se, normalmente, que pertence ao domínio da
biologia. Se algo é adquirido pela experiência, ou seja, pela aprendizagem, considera-se, em
geral, que não se trata de um problema biológico.” (ELIAS, 1994b, p. 26).
O que se tem verificado ultimamente é um movimento oposto ao anteriormente citado
em que muitas equipes interdisciplinares estão fazendo consideráveis esforços com o objetivo
de elaborarem questões e respostas cuja tecedura supõe um trabalho e esforço de diferentes
especialistas e especialidades da ciência. É o caso de alguns estudos que enfocam o
funcionamento da mente, as possibilidades de leitura da arte rupestre, principalmente a
parietal 201 , a história dos seres humanos, entre outros.
A título de exemplo pode-se citar o trabalho de Olson, S. (2003), por meio do qual o
mesmo procura fazer uma “nova síntese” entre arqueologia, lingüística e genética a fim de
refletir sobre a história da humanidade. A reflexão sobre a linguagem realizada por Elias 202
(1994b) em sua obra intitulada Teoria simbólica também se constitui em um bom exemplo de
tentativa de síntese que, a meu ver, tende a ser promissora no que se refere à elaboração de

201
Expressões figurativas gravadas nas paredes de cavernas elaboradas pelos seres humanos denominados pré-
históricos.
202
Esse autor, em uma outra obra intitulada Envolvimento e Alienação (1998a), fez uma interessante reflexão
relacionada à linguagem, ao pensamento e à construção de conhecimentos, especificamente na área das ciências
humanas.
Capítulo 2 136
Ângela Massumi Katuta

uma concepção menos maniqueísta de ser humano e da linguagem. São dignas de serem
citadas as obras de Vygotsky e seus colaboradores − principalmente Luria e Leontiev, pois as
dimensões biológica e social dos seres humanos são abordadas em suas relações dialéticas:
desenvolvimento e evolução são, nesta perspectiva, pares indissociáveis.
As reflexões de Gilles Deleuze e Félix Guattari também merecem destaque,
especialmente sua obra intitulada Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia, editada em 5
volumes pela editora 34 e, especificamente, o volume 2 (2002), no qual os autores elaboram
críticas aos postulados da lingüística e refletem sobre os regimes de signos, abordando a
linguagem em uma perspectiva de realização muito próxima às idéias wittgensteinianas, que
enfatizam o uso da linguagem e o contexto em que a mesma se realiza.
Atualmente existem três eixos básicos ou divisores de águas no que se refere às
abordagens acerca da linguagem, detectados por Bourdieu (2000a) e explicitados em sua obra
O poder simbólico: a linguagem como estrutura estruturante do pensamento e da ação, a
linguagem enquanto estrutura estruturada no contexto da qual “herdamos” ou nos é imputado
um conjunto de habitus, e a linguagem enquanto instrumento de dominação. A existência
desses eixos sinaliza uma forma de entender a linguagem no contexto da especialização,
retirando-a de seu contexto social e espaço-temporal de realização. É por meio e com esse
tipo de apreensão que ocorre a reificação e fetichização da linguagem, como se ela tivesse
poderes mágicos e sua existência se realizasse em si e per si, o que de fato não ocorre. Como
afirma Wittgenstein (1995) em sua obra Investigações Filosóficas: linguagem é práxis que se
realiza por meio dos diferentes jogos de linguagem. Daí não se poder capturá-la apenas em
uma perspectiva; há que entendê-la a partir dos usos, apropriações e práticas humanas que se
realizam em contextos sociais e espaço-temporais.
Nos itens que seguem, discutirei rápida e sucintamentemente cada uma das abordagens
pelo fato de entender que se trata de uma discussão relevante tanto para a presente tese,
quanto para os profissionais que se dedicam a trabalhar com os sistemas simbólicos, como é o
caso dos educadores. Contudo, adianto desde já que a linguagem, ao contrário do que fazem
inúmeros pesquisadores, deve ser compreendida no contexto social e espaço-temporal em que
se realiza; daí a impossibilidade da realização de abordagens unilaterais, como as que
comumente se faz, em respeito e sob a égide das diferentes especialidades do saber
denominado científico.
Entender a linguagem, fenômeno eminentemente humano, ora apenas como estrutura
estruturada, ora como estrutura estruturante ou como mero instrumento de exercício de poder
implica a elaboração de análises descontextualizadas que desconsideram os meios ou contexto
Capítulo 2 137
Ângela Massumi Katuta

no qual a mesma se realiza. Expressão, na concepção de Bourdieu (2000a, p. 13), da aceitação


da ilusão idealista que reduz brutalmente os produtos simbólicos aos interesses das classes a
que eles servem, na medida em que aborda as produções ideológicas como “[...] totalidades
auto-suficientes e autogeradas, passíveis de uma análise pura e puramente interna
(semiologia).”
O poder simbólico não reside nos sistemas simbólicos, nas linguagens, ou nas palavras
em si; ele é produto das relações sociais. Por isso, está sempre relacionado a outras formas de
poder. Portanto, são as relações engendradas entre os que exercem o poder e os que lhes estão
sujeitos que dão origem ao poder simbólico, cujos fundamentos primordiais situam-se na
crença da “[...] legitimidade das palavras e daquele que as pronuncia, crença cuja produção
não é da competência das palavras.” (BOURDIEU, 2000a, p. 15), mas das relações sociais
que se realizam em diferentes lugares e sociedades. Verifica-se, por meio do entendimento do
autor citado, a possibilidade de ruptura com posturas realistas que, conseqüentemente,
apontam para a crítica dos processos de fetichização e reificação dos produtos simbólicos.
Wittgenstein (1995, p. 413) em sua obra intitulada Investigações Filosóficas afirma
com propriedade que “Todo símbolo, isolado, parece morto. O que é que lhe dá vida? − Só o
uso lhe dá vida. Tem, então, em si o sopro da vida? Ou é o uso que é o sopro da vida?”. Essa
abordagem dos sistemas simbólicos rompe com o paradigma idealista, metafísico, e porque
não dizer escolástico, presente em uma parte considerável das reflexões sobre as linguagens,
que, via de regra, se constituem em fonte de uma série de equívocos e mal entendidos.
Nos itens que seguem, desenvolverei breves considerações sobre os três eixos já
citados do debate sobre a linguagem. Os mesmos expressam, em linhas gerais, como as
diferentes especialidades da ciência têm debatido tal questão. Contudo, adianto desde já que,
não acredito que seja profícuo escolher um dos eixos, a fim de tê-lo como norteador de nossas
questões e respostas à linguagem; fazê-lo seria reificá-la e fetichizá-la, desconsiderando-a,
antes de tudo, enquanto uma práxis social. Os seres humanos não aprendem as linguagens a
partir do estabelecimento de objetivos e finalidades distintas, como ocorre, freqüentemente,
nos meios acadêmicos ou da educação formal. As linguagens não são aprendidas para
servirem meramente de instrumentos de conhecimento, muito menos para apenas serem
usadas como meios de comunicação ou enquanto meros instrumentos de dominação.
Ao nos apropriarmos das diferentes linguagens, tanto o conhecimento, quanto a
comunicação e a dominação se realizam concomitantemente e, para além destes, muitos
outros processos, como adequadamente afirma Wittgenstein (1995, p. 189-190) em seu livro
Investigações filosóficas quando explica o que entende por jogos de linguagem:
Capítulo 2 138
Ângela Massumi Katuta

A expressão jogo de linguagem deve aqui realçar o facto de que falar uma língua é
uma parte de uma actividade ou de uma forma de vida. Imagina a multiplicidade dos
jogos de linguagem nestes exemplos e em outros:
Dar ordens e agir de acordo com elas −
Descrever um objecto a partir do seu aspecto ou das suas medidas −
Construir um objecto a partir de uma descrição (desenho) −
Relatar um acontecimento −
Fazer conjecturas sobre o acontecimento −
Formar e examinar uma hipótese −
Representação dos resultados de uma experiência através de tabelas e diagramas −
Inventar uma história; lê-la −
Representação teatral −
Cantar numa roda −
Resolver adivinhas −
Fazer uma piada; contá-la −
Resolver um problema de aritmética aplicada −
Traduzir de uma língua para outra −
Pedir, agradecer, praguejar, cumprimentar, rezar.
Acrescentaria ainda à lista do autor: dar aulas de geografia, fazer mapas, estabelecer
leituras de outras linguagens, como a pintura, obras literárias ou outras produções materiais,
cujas figurações espaciais nos permitam entender as diferentes espacialidades produzidas
pelos seres humanos.
Verifica-se pelo exposto que a abordagem da linguagem enquanto práxis humana pode
envolver um conjunto ilimitado de ações e também de linguagens. Advém daí a necessidade
da opção e reflexão por um conjunto específico de práticas, a fim de evitar a queda em um
turbilhão de indeterminações que não nos levará a lugar algum. Assim, optei por fazer as
reflexões tendo como foco as práticas educativas formais no ensino básico da geografia, eis a
práxis norteadora do debate.
Com isso, estou a indicar que o que deve ter centralidade na reflexão sobre a
linguagem, em estudos ligados aos processos educativos, é o contexto em ela se realiza. A
opção por um dado uso, − linguagem como instrumento do conhecimento, como meio de
comunicação ou de dominação −, disciplina o olhar e o fazer para um contexto artificioso e
abstrato que, na perspectiva dos processos educativos formais, não faz muito sentido, pois
inviabiliza, formaliza e idealiza o olhar, o entendimento e, conseqüentemente, impede o
engendramento de práticas educativas mais contextualizadas.
Penso que dessa forma tenha demonstrado, ainda que sucintamente, a necessidade da
realização de contextualizações históricas e espaciais para o entendimento de qualquer prática
ou realização humana, caminho este que pode nos auxiliar a elaborar reflexões menos
centradas nos indivíduos, enfatizando os contextos histórico-espaciais, os habitus 203 ,

203
Termo freqüentemente usado por Norbert Elias e Pierre Bourdieu.
Capítulo 2 139
Ângela Massumi Katuta

processos civilizadores e projetos societários inerentes às formações sócio-territoriais ou a


qualquer obra humana.
Contudo, a realização de uma espécie de mapeamento mínimo de outros pontos de
vista sobre a linguagem se faz necessária. Dessa forma, para operar a “[...] conversão radical
do olhar, é preciso ter um ponto de vista teórico sobre o ponto de vista teórico, e tirar todas as
conseqüências teóricas e metodológicas [...]”. (BOURDIEU, 1997, p. 204). Apesar de minhas
limitações e dos necessários recortes e reduções inerentes aos objetivos da presente reflexão,
segui e assumi, na medida do possível, os conselhos do autor citado, a fim de tentar entender e
demonstrar como as análises que abstraem os contextos sociais, históricos e espaciais afetam
o pensamento e o próprio conteúdo daquilo que pensamos. Essa foi a orientação da tentativa
de mapeamento dos estudos sobre a linguagem que segue.
Capítulo 2 140
Ângela Massumi Katuta

2.2.1. As linguagens enquanto instrumentos de conhecimento


“[...] Não são apenas os surdos que não conseguem se entender, mas quaisquer pessoas que
atribuem um significado diferente à mesma palavra, ou que sustentam pontos de vista
diferentes.” (VYGOSTSKY, 1991b, p. 122).

A epígrafe do presente sub-item remete diretamente à reflexão sobre linguagem e


conhecimento, evidenciando a ênfase e opção do autor − que realizou seus estudos entre 1924
e 1934 −, pela tese da existência de relações interfuncionais entre ambos os processos. Na
referida época, e mesmo atualmente, os estudos vygotskyanos se diferenciaram e diferenciam
daqueles elaborados por mecanicistas 204 ou naturalistas e idealistas 205 , em função tanto da
lógica quanto do referencial teórico-metodológico que os fundamentam, que são,
respectivamente, a lógica dialética e o materialismo histórico dialético.
Ao elaborar seus estudos sobre as relações entre pensamento e linguagem, Vygotsky
(1991b) criticou os métodos de análise atomísticos 206 e funcionalistas 207 por estudarem as
funções psíquicas de forma isolada. Estas concepções são expressões da aplicação do ideal de
racionalidade hegemônico engendrado no século XVII − caracterizado em grande parte por
seu substancialismo e mecanicismo −, às ciências humanas. Daí a tendência do atomismo e do
funcionalismo em dividir, classificar, determinar as relações sistemáticas entre o que foi
separado, buscar a regularidade e a simplicidade, que permitem a observação e mensuração

204
Posicionamento epistemológico da filosofia hegemônica que foi sistematizada no século XVII, cujo postulado
era o de que todos os fenômenos naturais devem ser explicáveis pelas leis do movimento. Galileu, Descartes e
Newton foram seus principais sistematizadores. A natureza passa a ser considerada como uma “máquina”,
possuindo mecanismos de funcionamento. A idéia de movimento, no mecanicismo, supunha a garantia de sua
duração e princípio. No contexto do mesmo, é possível a admissão da idéia de um início por um criador, que
garantiria, inclusive, a conservação do movimento. Verifica-se que o mecanicismo não se contrapunha à idéia de
um criador, que está subsumida nesse sistema. Esse fato corrobora as afirmações que fiz anteriormente ao
afirmar que, entre o medievo e o Renascimento, não ocorreu uma ruptura entre ciência e religião. O que houve
foi uma mudança no fundamento da racionalidade hegemônica, que passa da revelação divina à razão humana.
Contudo, essa última, na perspectiva do postulado mecanicista, não rompe com a idéia da existência de um
criador. Por isso, a teologia desdobra-se em teologia revelada − apoiada na palavra divina − e teologia natural ou
racional − baseada exclusivamente na razão humana que, por meio da metafísica, trata da existência divina e
seus atributos.
205
Apesar dos múltiplos significados que esse léxico acabou ganhando ao longo de vários momentos históricos
na perspectiva do conhecimento, o idealismo reduz o objeto do conhecimento ao sujeito cognoscente e do ponto
de vista ontológico; refere-se à redução da matéria ao pensamento ou ao espírito.
206
Doutrina filosófica elaborada por Leucipo e desenvolvida por Demócrito e Epicuro, desenvolvida
posteriormente por Lucrécio. Defende a idéia de que a matéria é composta por átomos − que são eternos e
possuem todos a mesma natureza, diferindo na forma −, partículas elementares indivisíveis e tão pequenas que
não podem ser percebidas a olho nu. Em psicologia, é uma doutrina que defende a idéia de que espírito e
pensamento são elementos psíquicos separados como os átomos e moléculas nos corpos materiais.
207
Suas idéias são oriundas do behaviorismo que se contrapunha ao dualismo cartesiano − mente e corpo são
duas substâncias separadas: o eu, apesar de estar ligado a um corpo, é auto-suficiente e capaz de ter existência
independente. O behaviorismo defendia que os estados mentais são construções lógicas derivadas de disposições
comportamentais; advém daí a defesa da medição científica do comportamento. O funcionalismo, por sua vez,
defende a tese de que os estados mentais devem ser estudados por meio de uma tríplice relação: as suas causas,
seus efeitos em outros estados mentais e no comportamento.
Capítulo 2 141
Ângela Massumi Katuta

rigorosa. Eliminam-se assim aqueles elementos não passíveis de serem tratados por meio
desses recursos intelectuais.
Ao examinar minuciosamente os resultados de investigações anteriores208 , Vygotsky
(1991b, p. 2) chegou à conclusão de que “[...] desde a Antigüidade até hoje, todas as teorias
oscilam entre a identificação, ou fusão, do pensamento e da fala, por um lado, e sua disjunção
e segregação igualmente absolutas, quase metafísicas, por outro.” Para o mesmo, esses
métodos de análise “[...] Quer se inclinem para o naturalismo puro ou para o idealismo
extremo, todas essas teorias têm uma característica em comum − sua tendência anti-histórica.
Elas estudam o pensamento e a fala sem qualquer referência à história do seu
desenvolvimento.” (VYGOTSKY, 1991b, p. 131). Percebe-se nas idéias vygotskianas uma
focalização nas abordagens da linguagem enquanto instrumento de conhecimento.
Verifica-se por meio das afirmações do autor que tanto as teses naturalistas quanto
idealistas compartilham de um fundo comum de conhecimentos: o pressuposto da natureza
idêntica de todas as conexões e o de que os significados da palavra não se alteram social e
espaço-temporalmente. Vislumbra-se, por meio dos pressupostos, a possibilidade do
estabelecimento de leis gerais e generalizações à luz das regularidades, cujos fundamentos
metateóricos são as idéias de ordem e estabilidade do mundo e a de que o passado se repete
no futuro, característico do pensamento científico moderno (SANTOS B., 2000b, p. 64).
As fases do desenvolvimento cognitivo, estabelecidas por Jean Piaget e colaboradores,
são expressões destes fundamentos. Muitos estudos de lingüística, semiótica, psicologia,
filosofia da linguagem entre outros, também assumem tais posicionamentos, ao limitarem
suas análises à lógica interna do funcionamento dos diferentes sistemas lingüísticos.
Inviabiliza-se dessa forma o entendimento do engendramento dos mesmos em um contexto
social e espaço-temporal, bem como a compreensão da apropriação e dos usos que os
diferentes agrupamentos humanos fazem dos sistemas lingüísticos.
Como afirmei anteriormente, os debates e as ciências que abordam as relações entre
pensamento e linguagem, principalmente na área das ciências humanas, foram e ainda são
expressões da hegemonização da racionalidade científica engendrada em meados do século
XVII. Daí as reflexões estarem voltadas para a ontogênese 209 e filogênese 210 da linguagem, do

208
Para melhor detalhamento de sua análise, sugiro a leitura de seu livro intitulado Pensamento e linguagem e
também do primeiro capítulo do livro de Luria (1986) Pensamento e linguagem: as últimas conferências de
Luria, intitulado O problema da linguagem e a consciência.
209
“Princípio formulado pelo médico inglês Harvey em 1628, dizendo respeito ao desenvolvimento do
organismo individual a partir do ovo até o estado adulto.” (JAPIASSÚ; MARCONDES, 1996, p. 200). Em
psicologia e outras áreas que tratam da cognição, esse termo refere-se ao desenvolvimento cognitivo do
organismo individual, desde o seu nascimento até a fase adulta.
Capítulo 2 142
Ângela Massumi Katuta

conhecimento, das relações entre a linguagem e conhecimento humano, cujo desvelamento,


na perspectiva de uma tradição metafísica de pensamento, seria fundamental para a
elaboração de uma “verdadeira” teoria universal do conhecimento humano. Verifica-se aqui a
presença do habitus ao qual se refere Elias (1994b, p. 7-8), fundado na tradição hegemônica
da racionalidade da sociedade ocidental, qual seja, o de procurar por explicações que tenham
um caráter de início.
Outros temas são ainda freqüentes nas abordagens sobre a linguagem enquanto
instrumento do conhecimento: as relações entre pensamento e linguagem, as representações
sociais freqüentemente ligadas ao uso de determinadas expressões ou formas de comunicação,
as diferentes linguagens enquanto elementos estruturadores de uma determinada forma de
entendimento de mundo, como representação ou apresentação do real, ou como fonte de
determinadas doenças mentais.
Para Bourdieu (1997), tais reflexões, em geral intelectualistas, são freqüentemente
elaboradas pela tradição kantiana e neo-kantiana, que, ao conceberem as estruturas cognitivas
como formas exclusivas de todos os seres humanos, originadas na consciência do indivíduo,
ocultam o papel determinante que o Estado 211 atualmente possui nas nossas sociedades, que é
o de produção e reprodução dos instrumentos de construção da realidade social 212 e dentre
estes, obviamente encontra-se a linguagem.
A construção do Estado é acompanhada pela construção de uma espécie de um
transcendental histórico comum, imanente a todos os seus ‘sujeitos’. Através do
enquadramento que impõe às práticas, o Estado instaura e inculca formas e
categorias de percepção e de pensamento comuns 213 , quadros sociais da percepção,
da compreensão ou da memória, estruturas mentais, formas estatais de classificação.

210
Diz respeito à evolução do phylun, ou espécie. Ernst Heinrich Haeckel (1834-1919) biólogo evolucionista
alemão, defendia a tese de que a ontogênese reproduz a filogênese, ou seja, um indivíduo ao longo de seu
desenvolvimento passa por diferentes estágios de evolução, que também são os de sua espécie. Piaget, ao se
propor a desvendar como os seres humanos constroem seus conhecimentos, tomou a teoria de Haeckel como
fundamento do seu trabalho, pois sua hipótese primordial era a de que: “[...] a evolução das diversas formas de
pensamento da criança é de natureza a nos informar sobre o mecanismo da inteligência e sobre a formação da
razão humana em geral [...]”. (PIAGET; INHELDER, 1993, p. 11). Esse pressuposto, inerente às teorias de
Piaget e seus colaboradores, generalizam, para a espécie humana, características e desenvolvimentos que não são
generalizáveis, tomando aquilo que é próprio do desenvolvimento humano, de sua aprendizagem e habitus
mentais como tendo o sentido de evolução. Dessa forma, via de regra, os estudos piagetianos concebem como
filogenéticas características resultantes de processos de aprendizagem.
211
Apesar de Bourdieu se referir apenas ao Estado, a produção e reprodução dos instrumentos de construção da
realidade ocorre em todas as formações sociais sob a égide dos mais diferentes modos de produção; é por isso
que se realizam de maneira diferenciada.
212
Sobre essa questão ver também os dois volumes do livro de Norbert Elias (1993, 1994a), intitulado O
processo civilizador, principalmente o volume 2, Parte I - Capítulo 2: Sobre a sociogênese do Estado e a Parte II
– Sinopse: Sugestões para uma Teoria de Processos Civilizadores. Nesses, o autor aborda os mecanismos de
competição e monopolização dos territórios, primeiro estágio da monarquia nascente, enfatizando a análise da
sociedade de corte para entender os processos sociais civilizadores inerentes a essa organização: controle social,
autocontrole, abrandamento das pulsões − psicologização e racionalização −, e engendramento dos sentimentos
de vergonha e repugnância.
213
Como as noções de espaço e tempo.
Capítulo 2 143
Ângela Massumi Katuta

E cria, assim, as condições de uma espécie de orquestração imediata de habitus 214


que é, ela própria, o fundamento de uma espécie de consenso sobre esse conjunto de
evidências compartilhadas, constitutivas do senso comum. (BOURDIEU, 1997,
p. 116-117).
De minha parte, acrescentaria às observações do autor que não é apenas o Estado o
responsável pela (re)produção dos instrumentos de construção da realidade social. Todas as
formações humanas constroem e reproduzem os referidos instrumentos, cada qual à sua
maneira, no contexto de realização de cada modo de produção. Resultam desse processo a
diversidade de linguagens, racionalidades e, portanto, espacialidades e temporalidades
existentes no planeta que não são naturais ou decorrentes apenas da maturação das estruturas
cognitivas de um único indivíduo tomado isoladamente, mas são construídas social e espaço-
temporalmente.
Muitas teorias que debatem questões sobre linguagem e pensamento não consideram a
imposição de arbitrários social e espaço-temporalmente construídos, seja no contexto
específico do Estado ou em outras formações sociais. Tendem, dessa forma, a encarar as
idéias dos sujeitos sociais sobre um dado fenômeno como formadas individualmente de
acordo com o seu estágio de desenvolvimento cognitivo, característica esta concebida como
específica da espécie humana como um todo. Subjacente a essa abordagem, verifica-se a
valorização dos processos de maturação ou evolução em detrimento da aprendizagem ou
desenvolvimento, que tem por corolário a velha divisão entre natureza e sociedade, formada
em um lento processo de construção do ideal moderno de cientificidade e de concepção da
verdade, cuja formatação, em um maior grau de sistematização, data do século XVII.
Em especialidades que abordam as relações entre linguagem e pensamento, em geral,
existe uma mesma concepção de indivíduo ou de ser humano, expressão da razão
cartesiana 215 . Como já afirmei anteriormente, o modelo de ser humano com o qual as ciências
humanas ou a própria ciência em geral operam é confuso, se revela inadequado, decorrendo

214
Noção usada por Pierre Bourdieu e Norbert Elias para dar conta da “[...] unidade de estilo que vincula práticas
e os bens de um agente singular ou uma classe de agentes [...], é esse princípio gerador e unificador que retraduz
as características intrínsecas e relacionais de uma posição em um estilo de vida unívoco, isto é, em um conjunto
unívoco de escolha de pessoas, de bens, de práticas. Assim como as posições das quais são produtos, os habitus
são diferenciados; mas são também diferenciadores. [...] são princípios geradores de práticas distintas e
distintivas” (BOURDIEU, 1997, p. 21-22).
215
Descartes, ao dividir radicalmente a realidade em domínio fisicamente extenso da matéria (res extensa) e
domínio de pensamentos, sentimentos e experiência espiritual (res cogitans), contribuiu, juntamente com a
ciência matemática de Newton, para o desenvolvimento de um materialismo monista desenfreado. Doravante, a
nova ciência somente descreveria a res extensa, que receberia a sanção da autoridade científica. “Embora
Descartes insistisse na realidade da res cogitans, ao excluir radicalmente esse domínio imaterial dos métodos e
práticas da ciência, deixou-o extremamente exposto a ser visto como ‘irrealidade’. Com o dualismo de
Descartes, porém, não há mais vínculos entre o domínio da matéria e o do espírito. Sem vínculos com o mundo
concreto da ciência física, a res cogitans cartesiana tornou-se rapidamente (como o Céu cristão) um símbolo
vazio. Como não é de surpreender, não demorou para que as pessoas estivessem lançando dúvidas sobre a sua
existência.” (WERTHEIM, 2001, p. 113).
Capítulo 2 144
Ângela Massumi Katuta

daí inúmeros problemas (ELIAS 1994a, p. 6-7). Tal modelo se baseia na crença arraigada da
distinção radical entre os seres humanos e a natureza. Resulta desse entendimento uma série
de bipolaridades − natureza e cultura, corpo e mente, sujeito e objeto −, por meio das quais se
criou uma série de obstáculos epistemológicos para o entendimento de inúmeros fenômenos,
entre eles, as relações entre linguagem, pensamento, memória e conhecimento.
Por ora é importante assinalar que reflexões sobre as linguagens, enquanto instrumento
do conhecimento, são importantes, mas não devem abstrair o contexto de sua realização e,
muito menos, os sujeitos sociais responsáveis por esse processo. Fazê-lo seria imobilizar tanto
a linguagem quanto o conhecimento em uma camisa de força, eliminando a possibilidade de
análise dos diferentes sistemas simbólicos no contexto de seus usos e, portanto, de sua
realização.
Capítulo 2 145
Ângela Massumi Katuta

2.2.2. As linguagens como meio de comunicação


“Os signos só podem aparecer em um terreno interindividual. Ainda assim, trata-se de um terreno
que não pode ser chamado de ‘natural’ no sentido usual da palavra: não basta colocar dois homo
sapiens quaisquer para que os signos se constituam. É fundamental que esses dois indivíduos
estejam socialmente organizados, que formem um grupo (uma unidade social): só assim um
sistema de signos pode constituir-se. A consciência individual não só nada pode explicar, mas, ao
contrário, deve ela própria ser explicada a partir do meio ideológico e social.” (BAKHTIN, 1997,
p. 35).

As linguagens como meio de comunicação, grosso modo, são discutidas como


estruturas estruturadas, principalmente pelas tradições kantianas e neokantianas em sua face
estruturalista. Cassirer, Sapir, Durkheim e Lévi-Strauss são as grandes referências destas
abordagens. Henri Lefebvre, Mikhail Bakhtin e Norbert Elias constituem-se em exceções às
referidas tradições, pois têm apontado para a possibilidade de análises menos unilaterais sobre
a linguagem.
As abordagens alinhadas à tradição kantiana são comuns nas áreas de semiótica 216 , da
teoria da comunicação e da informação, lingüística e filosofia da linguagem 217 . A ênfase de
uma grande parte dos debates realizados nas referidas áreas do saber centra-se, via de regra,
na análise da estrutura lógica da linguagem, de seus produtos e na questão da interpretação.
Estudos sobre os significados dos signos, sobre a lógica interna subjacente às diferentes
linguagens, sobre a existência de uma gramática universal e língua natural 218 e sobre uma
correta e verdadeira interpretação das linguagens são freqüentes nessas abordagens, cujas
matrizes foram as teorias lingüísticas anteriormente elaboradas no contexto da cosmologia
ocidental hegemônica.

216
No século XX, o termo semiologia − que se referia unicamente à teoria dos signos humanos, culturais e,
especialmente, textuais − ficou ligado à tradição semiótica fundada no quadro da lingüística de Ferdinand de
Saussure, que foi continuada por Louis Hjelmslev e Roland Barthes. Autores anglófonos e alemães usavam o
termo semiótica, que designava uma ciência mais geral dos signos, incluindo os signos animais e da natureza.
Em 1969, por iniciativa de Roman Jakobson, a Associação Internacional de Semiótica pôs fim à rivalidade
existente entre os dois termos, decidindo adotar “semiótica” como o termo que se refere às investigações nas
tradições da semiologia e da semiótica geral. (NÖTH, 1995, p. 23-24). O termo semiótica atualmente refere-se
ao estudo dos sistemas simbólicos.
217
Embora seja um equívoco tomá-las como monoblocos, poder-se-ia dizer com um enorme risco de
generalização que os estudos predominantes em cada uma destas áreas do saber enveredam na direção da matriz
positivista. Em se considerando o contexto societário e, conseqüentemente, científico no qual as referidas
especialidades foram constituídas, o estruturalismo demonstrou ser terreno fértil para a elaboração de muitas
teorias sobre a linguagem e sua interpretação, que almejavam conquistar o patamar de cientificidade hegemônico
da época.
218
Termo usado freqüentemente por semiólogos e lingüistas que se refere a qualquer linguagem falada por
oposição às linguagens artificiais, criadas, em geral, por cientistas, cuja sintaxe e regras são estabelecidas em
geral para fins teóricos. Sobre as linguagens artificiais ver o livro de Eco (2001) intitulado Em busca da língua
perfeita, especificamente os capítulos 15 e 16, cujos títulos são, respectivamente, As línguas filosóficas do
Iluminismo até hoje e As línguas internacionais auxiliares (LIA).
Capítulo 2 146
Ângela Massumi Katuta

Cabe enfatizar que o problema dessas abordagens, apontado por autores como
Lefebvre, Bakhtin e Elias, não reside na questão da análise da estrutura lógica da linguagem,
mas em seu estancamento neste nível de compreensão. Uma grande parte das temáticas
abordadas pelas análises kantianas estavam ancoradas em crenças sobre a possibilidade de
uma correta interpretação sígnica, reveladora da verdade dos fatos, e da descoberta de uma
gramática universal, que auxiliaria na correta tradução de textos em línguas e suportes
diferenciados. Este posicionamento está fundado na crença da verdade absoluta, na isomorfia
entre o objeto, a linguagem e a idéia, rigorosamente criticados pelos autores alinhados à teoria
crítica. A tendência à monossemização da linguagem era e ainda é comum nas abordagens
alinhadas à tradição kantiana, que primam, por meio da exaustiva análise da estrutura interna
da linguagem e da elaboração de regras sintáticas, pela correta enunciação e apreensão dos
signos e, conseqüentemente, pela emissão e interpretação eficientes que, no caso, implicaria a
realização de processos comunicativos com o mínimo possível de ruído 219 .
Coelho Neto (1999, p. 16-17) afirma que a lingüística, matriz da semiótica, passou por
vários momentos. Inicialmente, com os gregos, tomou a forma de gramática, cuja função era
auxiliar na elaboração de regras visando à distinção entre o certo e o errado, o verdadeiro e o
falso. Pode-se afirmar mediante a idéia do autor que as relações entre os aspectos formais da
linguagem e a epistemologia ocorrem desde longa data. Subjacente às reflexões lingüísticas
dos gregos verifica-se a crença de que a verdade, o conhecimento correto, as atitudes certas,
poderiam ser formulados a partir da aplicação de regras formais na elaboração das idéias e
frases.
Posteriormente à tradição grega, irão predominar ainda no campo lingüístico os
estudos de filologia que, por meio do comentário de textos e a comparação dos mesmos em
diferentes épocas, visavam a determinar a língua de cada autor, explicar inscrições em línguas
arcaicas ou procurar a origem das palavras. Lembremo-nos de que a alta Antiguidade e a
Idade Média foram épocas de (re)invenção da tradição anterior, portanto, a problemática
colocada para a época estava assentada muito mais na recuperação, tradução e interpretação
de textos escritos, resultando na preocupação com a origem das palavras, um dos instrumentos
auxiliares na realização das exegeses.
Como afirma Elias (1998a, p. 272), a procura pelas origens expressa o quanto ainda o
desejo humano de segurança está fundado na noção de um começo absoluto, expressão da

219
Segundo Simielli (1986, p. 31) “Ruído vem a ser qualquer interferência em um sistema de comunicação, que
possa atrapalhar ou acarretar perda de informação [...]”.
Capítulo 2 147
Ângela Massumi Katuta

dificuldade dos indivíduos em considerarem a existência de processos sem começo, fundado


na inquietante idéia de uma infinitude sem princípio, portanto, sem criador, sem Deus.
A centralidade dos referidos estudos, cuja referência era o mundo greco-latino, residia
na língua escrita em detrimento da língua falada cotidianamente. Verifica-se aqui um esforço
e também a crença, primordialmente entre patrísticos e escolásticos, em direção à
possibilidade da interpretação correta, principalmente porque esta ação estava ligada ao
entendimento de textos sacros que, em geral, eram escritos em línguas antigas. Além disso, já
nessa época, existia entre os mais cultos a valoração do escrito em detrimento do falado que
era, ao mesmo tempo, expressão das relações de poder e de distinção entre a massa da
população e a intelectualidade clerical e instrumento de reforço das diferenças simbólicas e
econômicas existentes.
Na Europa medieval, segundo Nöth (1995, p. 37), elaboraram-se modelos semióticos
para interpretação dos signos em geral, fossem eles humanos, animais ou do mundo natural. A
partir do exposto, pode-se afirmar que os medievais ocidentais, já naquela época, acenavam
positivamente para o histórico debate sobre a inteligibilidade do mundo, cuja chave era a
palavra ou os signos, instrumentos para se chegar ao conhecimento verdadeiro das coisas,
inexoravelmente revelado por Deus, por meio da linguagem.
Tal fato confirma também o que foi dito anteriormente, em relação à Idade Média, ou
seja, esta não foi uma época de trevas, ou de mero resgate ou conservação do que foi
produzido pela tradição clássica. Além da tradução, ação esta que denominei anteriormente de
(re)apropriação criativa, pode-se verificar a criação de metodologias de interpretação 220 , tanto
de textos sacros quanto do mundo de uma forma geral. Nesta cosmologia, Deus revelava por
meio de sinais a verdade sobre as coisas por ele criadas.
O trabalho de Pedro Abelardo intitulado Sic et non (Pró e contra) é, neste sentido, um
exemplo didático do que afirmei, pois seu autor nele reuniu um conjunto de contradições das
escrituras e dos escritos antigos, com o intuito de elaborar suas próprias regras para resolver
muitas controvérsias. Este método interpretativo foi uma das bases para o programa inicial do
método escolástico e demonstra o quanto os clérigos da Igreja estavam interessados no
conhecimento do mundo, obviamente que ao seu modo, ou no contexto daquele processo
civilizador.
Dentre os modelos semióticos mais valorizados para a interpretação do mundo, de
maneira ampla, encontram-se o dos quatro sentidos exegéticos e o da assinatura das coisas. O

220
Tais metodologias tendiam à monossemização, pois seu intuito primordial era o estabelecimento de regras e
leis que ditassem uma correta interpretação da palavra divina.
Capítulo 2 148
Ângela Massumi Katuta

primeiro era derivado de um modelo desenvolvido para a interpretação bíblica, pois “[...] A
hermenêutica cristã medieval postulava que a interpretação da Bíblia tinha que ser feita sobre
quatro níveis capazes de revelar quatro sentidos diferentes do mesmo texto.” (NÖTH, 1995, p.
37).
O primeiro nível buscava apreender o significado literal ou histórico, explicando o
sentido dos personagens, localidades e eventos tais como estes apareciam na superfície do
texto. O segundo nível de interpretação buscava o sentido metafórico ou moral. Por meio
desse, via de regra, realizava-se o sentido do texto bíblico para a vida individual de cada ser
humano. No terceiro nível interpretativo, buscava-se na Bíblia o sentido alegórico referente a
Cristo e à Igreja. O quarto sentido buscado era o místico ou anagógico e se referia aos
mistérios celestes que teriam lugar no futuro dos fiéis cristãos (NÖTH, 1995, p. 37).
É importante salientar que esses quatro sentidos exegéticos − literal, metafórico ou
moral, alegórico e místico − guardam muita similitude com o método de leitura da Torá pelos
cabalistas, já abordado na presente reflexão: literal, alegórico-filosófico, hermenêutico e
místico. Essas formas de leitura expressam a centralidade de uma racionalidade que tendia
para a monossemização do signo, tanto da parte dos judeus, quanto dos cristãos. Verifica-se
ainda que, subjacente aos métodos citados, reside a crença na possibilidade da realização do
conhecimento do mundo a partir do dogma da revelação, cuja chave de entendimento estava
contida nos livros sagrados. Por isso, era importante a elaboração de metodologias que
decodificassem corretamente a palavra do criador.
O segundo modelo semiótico, o da assinatura das coisas, foi criado no medievo cristão
e atingiu seu ápice na Renascença, quando o médico e sábio suíço Paracelsus (1493-1541) o
estudou detidamente 221 . Neste sistema, Deus é concebido como o autor das mensagens do
mundo, o grande codificador. Contudo, este é acompanhado de três outros emitentes
(assinantes) de signos naturais: o homem, o princípio interior do desenvolvimento chamado
archaeus e as estrelas ou planetas (astra) (NÖTH, 1995, p. 38-39). Acreditava-se que os
signos naturais eram passíveis de serem decodificados por meio de “ciências” antigas como a

221
Japiassú e Marcondes (1996, p. 170-171) afirmam que durante o medievo e a renascença, práticas mágicas,
sobretudo a alquimia e astrologia, possuíam papel importante por serem tentativas de conhecer e controlar pré-
cientificamente da natureza. Entendo que as práticas consideradas atualmente como mágicas não devem ser
desconsideradas quando se trata de discutir a história das racionalidades ou conhecimentos humanos a que hoje
denominamos científico, e mesmo os debates sobre a linguagem enquanto estrutura estruturada. Subjacente às
inúmeras mancias − “ciências decodificadoras” −, está também o aceno positivo em relação à possibilidade da
inteligibilidade do mundo. Naquele contexto, elas eram entendidas como capacidades de interpretação dos
códigos ou criptogramas compostos pelo criador do mundo. Tais “ciências” remontam aos povos da Antigüidade
como egípcios, sumérios, assírios, caldeus, babilônios, fenícios e hebreus. Para uma análise mais detida sobre
esta questão, sugiro a leitura do livro de Pierre Thuillier (1994) intitulado De Arquimedes a Einstein: a face
oculta da invenção científica.
Capítulo 2 149
Ângela Massumi Katuta

da fisiognomia − decodificação pela fisionomia, quiromancia − decodificação por meio de


linhas, geomancia − decodificação com o uso de terra, piromancia − decodificação por meio
do fogo, hidromancia − decodificação por meio da água, astrologia − decodificação do
destino humano por meio dos astros, entre outras mancias.
Atualmente, para a maioria dos pesquisadores, pode parecer estranho o uso dos
saberes sobre as mancias por pensadores do medievo e da Renascença. Contudo, o que
importa no momento, é entender que tais atitudes apontavam positivamente para a
possibilidade do conhecimento verdadeiro, concebido como algo externo ao ser humano, que
lhe seria revelado desde que este dominasse o código adequado à sua interpretação.
Thuiller (1994, p. 165), usando como exemplo o caso de Newton, afirma que mesmo
na época deste grande pensador (século XVII) o antigo e o novo pensamento se mesclavam.
Mas ainda que neste período a elite culta estivesse dando menos crédito aos saberes
atualmente por muitos de nós considerados como mágicos, é possível afirmar que “[...] a
infra-estrutura conceptual do pensamento mágico continuava presente e se manteve ainda por
um período bem longo.” O pensamento mágico e as mancias vão perdendo centralidade
enquanto instrumentos de inteligibilidade do mundo e, pouco a pouco, passam a ser
considerados como saberes próprios de pessoas ignaras, na medida em que o habitus burguês
voltado à mensuração vai se constituindo, se tornando o principal, o verdadeiro e portanto, o
único instrumento legítimo de desvelamento do mundo.
Faz-se necessário apontar que a mudança da racionalidade dessa época estava
ancorada, sobretudo, nas transformações em curso no modo de produção. Do ponto de vista
da linguagem, o que muda não é a sua importância no processo de entendimento do mundo,
idéia esta intocada entre os posicionamentos que acenam positivamente para a possibilidade
do conhecimento.
Trata-se antes da legitimação de um código, de uma linguagem em detrimento de
outras; não por acaso, a matemática torna-se a chave para o entendimento do mundo. Como
afirmei anteriormente, a linguagem tornar-se instrumento de poder na medida em que se trata
de estrutura estruturada e estruturante, elemento essencial na constituição da inteligibilidade e
ação do e no mundo. Linguagem fundamental para a realização das relações comerciais, a
matemática se torna o mais legítimo instrumento de desvelamento do mundo à medida que a
burguesia se torna a classe hegemônica.
A afirmação de Galileu elaborada no século XVII é um exemplo didático da
legitimidade alcançada pela linguagem matemática, por apontá-la como principal meio de
comunicação e entendimento do mundo:
Capítulo 2 150
Ângela Massumi Katuta

A filosofia está escrita nesse grande livro, o universo, que se abre permanentemente
diante de nossos olhos, mas o livro só pode ser compreendido se primeiro
aprendermos a compreender a linguagem e a ler as letras de que se compõe. Ele está
escrito na língua da matemática, e seus caracteres são triângulos, círculos e outras
figuras geométricas, sem os quais é humanamente impossível entender uma só de
suas palavras; sem eles, fica-se vagando por um labirinto tenebroso. (GALILEU,
apud CROSBY, 1999, p. 222).
Os estudos e debates hegemônicos sobre a linguagem, enquanto meio de comunicação,
estão ainda hoje firmemente ancorados na idéia de exatidão, mensuração e decodificação,
presentes nas idéias de Galileu, que podem ser tomadas como expressão do habitus burguês
que se espraiou pelo mundo.
Com base no exposto, pode-se afirmar que a idéia da ausência de uma racionalidade
na Idade Média não se sustenta. Pelo contrário, é no esteio do medievo que será tecida a
concepção hegemônica ou moderna de ciência. Mesmo os primórdios dos debates sobre a
linguagem enquanto estrutura estruturada se fazem presentes nessa época.
A partir das primeiras décadas do século XIX, principalmente em função do aumento
do comércio e intercâmbio no mundo, estudos de gramática e filologia comparadas tornam-se
centrais na lingüística; a idéia de exatidão, própria do habitus burguês, estava subjacente a tais
práticas. A descrição era a principal atividade realizada e visava, além de abordar as relações
estabelecidas pelos ocidentais entre as diferentes línguas, ao entendimento de uma língua por
meio de outra. Verifica-se aqui a crença no primado da possibilidade da tradução exata ou
correta dos significados de uma língua para outra, negando-se o fato de que toda tradução
possui limite: não sendo mero ato de transposição, implica criação, adequação; portanto, não é
neutra, pois os significados são expressões das relações sociais que se realizam espaço-
temporalmente.
A explicação dos significados lingüísticos a partir das relações sociais não tinha
centralidade nessas reflexões. É evidente a tentativa de enquadramento desses estudos ao ideal
de cientificidade moderno, em se considerando o rigor descritivo e formal que permeavam
tais trabalhos. Havia também o esforço de tornar cada vez mais objetivos os parâmetros de
comparação lingüísticos que, obviamente, estavam fundados e valorizavam pontos de vista
fundados na cosmologia ocidental hegemônica em detrimento de outras.
No último quarto do século XIX, destacam-se nos estudos lingüísticos aqueles
realizados principalmente pelo grupo alemão dos neogramáticos. Esses defendiam a
perspectiva histórica como sendo a única capaz de explicar a língua como produto coletivo
dos vários grupos falantes. Esse grupo combatia a idéia de que a língua é uma entidade
fechada, defendendo que ela somente ganha existência nos sujeitos falantes. Daí a
possibilidade de seu entendimento enquanto expressão das relações de poder entre os
Capítulo 2 151
Ângela Massumi Katuta

diferentes atores sociais e, inclusive, a sua utilização para a realização dessas relações no
contexto do Estado nacional. Esse foi um grande divisor de águas entre os estudos da
linguagem como meio de comunicação. Ao resgatar a importância da história nos estudos
lingüísticos, os neogramáticos apontam para possibilidades de análises mais amplas e
contextualizadas: para além das análises internas já realizadas pelos grupos hegemônicos
haveria de se abordar a linguagem do ponto de vista de seus falantes. Esses entendimentos se
aproximam das reflexões elaboradas por Ludwig Wittgenstein, Norbert Elias, Pierre
Bourdieu, Gilles Deleuze e Félix Guattari.
Apesar do grupo de neogramáticos alemães, nos estudos sobre linguagem como meio
de comunicação se verifica uma tendência hegemônica de monossemização dos sentidos e
significados, característicos de análises que privilegiam e acreditam em descrições isentas, na
verdade das palavras e no conhecimento verdadeiro tomado de forma absoluta. Tais
tendências indicam a direção do processo civilizador e o habitus do pensamento hegemônico,
tecidos ao longo de um período extenso, que remonta às civilizações antigas como as gregas,
judaicas e cristãs.
Em seu livro, Coelho Neto (1999, p. 81 et seq.), apesar de defender a possibilidade de
que a semiótica venha a romper o círculo dentro do qual se isola da vida social, − propõe o
que denomina de semiótica selvagem ou poética do signo 222 −, faz crítica à mesma pelo fato
de essa ser produtora de ideologia, principalmente por não assumir que a produz. A semiótica
circular, nas palavras do autor:
[...] se apresenta quase como verdadeira prática técnica, transformando matérias-
primas, ou matérias produzidas por uma técnica prévia, em produtos técnicos através
de instrumentos de produção determinados − produzindo igualmente, na esteira
dessa transformação, a ideologia correspondente a esses meios de produção e às
relações por eles estabelecidas. Essa prática semiótica não produz uma visão crítica
de si mesma e está assim condenada a ser engolida por essa entidade que desconhece
ou diz desconhecer. (COELHO NETO, 1999, p. 83).
Bourdieu (2000a, p. 13) critica a abordagem do que Coelho Neto (1999) denomina de
semiótica circular, pois suas análises tendem a “[...] cair na ilusão idealista a qual consiste em
tratar as produções ideológicas como totalidades auto-suficientes e autogeradas, passíveis de

222
A partir das idéias de pensadores como Buñuel, Lyotard, Peirce, Bachelard, Jorge Luis Borges, Lacan e
outros, o autor aponta para a necessidade de a semiótica abandonar a rigidez dos métodos formais por meio dos
quais se torna um mero discurso burocrático, em um sentido hegeliano − lugar da alienação, por escamotear em
sua fala a questão do poder. “[...] A ausência da questão do poder significa que se está deixando no vazio a
questão daquilo que instaura esse poder, a questão do sujeito. Como o poder, o discurso burocrático é anônimo,
sem rosto, sem marca.” (COELHO NETO, 1999, p. 99). O autor indica a necessidade da realização de reflexões
sobre a possibilidade da constituição de uma semiótica como instrumento de construção, multiplicação e fruição
dos signos. “[...] Abolindo-se a distinção entre criação e leitura, entre produção e crítica, restaria a festa dos
signos.” (COELHO NETO, 1999, p. 115). Para um esclarecimento mais detalhado das idéias do autor, sugiro a
leitura de sua obra que, ao que tudo indica, se aproxima das concepções de linguagem de Deleuze e Guattari
(2002), que propõem uma lingüística cromática, fundada na pragmática e portanto, nas relações sociais.
Capítulo 2 152
Ângela Massumi Katuta

uma análise pura e puramente interna (semiologia).” Na mesma página, em nota de rodapé,
ainda afirma que é preciso
[...] evitar também o etnologismo (visível em especial na análise do pensamento
arcaico) que consiste em tratar as ideologias como mitos, quer dizer, como produtos
indiferenciados de um trabalho colectivo, passando assim em silêncio tudo o que
elas devem às características do campo de produção. (BOURDIEU, 2000a, p.
13).
A perspectiva dos estudos semióticos hegemônicos, via de regra, centra-se na análise
dos sistemas lingüísticos ou produtos simbólicos em si, constituindo-se em estudos
minuciosos que visam dissecá-los internamente; por isso, em geral, desconsideram as relações
entre os sujeitos sociais que as produzem e consomem, bem como o lugar social desses no
contexto espaço-temporal da sociedade em que vivem.
Os limites dos estudos de semiótica, apontados por muitos autores alinhados à teoria
crítica, residem no fato de que eles restringem-se a análises puramente internas. Dessa
maneira, os sistemas simbólicos acabam adquirindo uma aura de neutralidade, como se
fossem produtos culturais de toda uma sociedade, que, nesta perspectiva, é concebida como
um monobloco. A tensão social presente nos atos de produção, reprodução e legitimação dos
produtos simbólicos, sua classificação no contexto social, ampla disseminação, consumo,
legitimação ou eliminação, em geral, não são considerados em muitos estudos que abordam a
linguagem em sua internalidade.
Subjacente a uma boa parte dos debates sobre as diferentes linguagens enquanto meio
de comunicação e informação, verifica-se uma certa tendência à realização de entendimentos
monossemizantes. Por isso, nessa perspectiva, a sintaxe tem importância enquanto
metodologia de construção e análise dos sistemas lingüísticos, assegurando-se dessa maneira
a possibilidade lógica da distinção entre significados corretos, incorretos, verdadeiros ou
falsos, alienados do jogo das relações sociais que se dão espaço-temporalmente. Em uma
grande parte dos estudos bourdieusianos sobre a produção de bens simbólicos, confirma-se o
fato de que a metafísica e a escolástica subjazem a uma parte considerável dos estudos sobre a
linguagem, principalmente os relativos à semiologia circular ou hegemônica.
Henri Lefebvre (1983, p. 231-232) em seu livro La presencia e la ausencia, defende a
idéia de que uma criação, obra ou linguagem, possui muitos momentos de realização 223 , entre

223
Ao criticar posicionamentos que se apropriam formalmente da obra de arte (p. 209-254) – monossemia
ancorada na iconoclastia – o autor afirma que as possibilidades de sua apreensão são infinitas, daí o mesmo usar
a expressão “momentos da obra”. A título de elucidação, alguns deles podem ser citados: imediação, memória,
trabalho, forma, presença e ausência, centralidade, cotidiano e não-cotidiano, entre outros. Verifica-se na postura
do autor uma concepção que prima pela fugacidade do significado, entendido aqui como realização, movimento,
ato, e não como produto acabado, cujo sentido pode e deve ser esgotado em sua totalidade. Rompe-se dessa
Capítulo 2 153
Ângela Massumi Katuta

eles o da mediação, o mais difícil de reconhecer, pois, por vocação, o contém e o supera, o
nega e o restabelece transformado ou transfigurado, desdobrando-se por sua vez em mediação
objetiva − a sensação e o sensorial −, a percepção sensível, e subjetiva − a vivência, o
espontâneo, as emoções. Assim, o movimento de mediação deve ser considerado quando da
análise das criações humanas, que, via de regra, são apreendidas e compreendidas de maneira
estática, substancialista, tendendo à isomorfia, em um sistema engendrado no contexto da
cosmologia hegemônica e da ciência moderna.
Verifica-se na abordagem lefebvriana que a realização de qualquer obra humana não
se esgota em si ou a partir do momento em que seu autor a considera finalizada, acabada. Em
seu entendimento, Lefebvre (1983) não encontra lugar para as relações mecanicistas que
muitas teorias da comunicação estabelecem entre emissor e receptor, no contexto das quais o
ruído é expressão de falha ou de erro no processo comunicativo.
Na tecedura lefebvriana, o Outro se faz necessário enquanto elemento inerente a
qualquer processo comunicativo, enquanto aquele que realiza os múltiplos significados
possíveis de qualquer obra humana. Aqui, erro, mentira, verdade, correção somente adquirem
sentido no contexto das relações sociais engendradas espaço-temporalmente.
Para Lefebvre (1983, p. 232), as obras diferem dos produtos porque esses se trocam,
circulam, remetem diretamente ao dinheiro para pagá-los. As primeiras, apesar de não se
separarem absolutamente do produto, do trabalho produtivo, das trocas, do mercado e do
dinheiro, superam a imediaticidade inicial, ao serem atravessadas-trespassadas por um
“trabalho” mais amplo ou por mediações: as representações, os encontros, as técnicas. Assim,
a obra se deixa ver, escutar, apropriar-se, não se contenta em comunicar e portar uma
informação, proporciona gozos.
Verifica-se no referido livro uma crítica aos teóricos que analisam a linguagem de
maneira puramente interna. São comparados a estudiosos que, ao enfatizarem a análise da
estrutura lógica da obra ou da linguagem, restringem suas abordagens às expressões e
significados das obras, elaborando assim, análises triviais, próximas da tautologia ou muitas
vezes obscuras, pois essas dependem do que se considera no processo analítico − o contexto,
as condições de produção, os meios: monossemia ancorada na iconoclastia.
Para o autor, os teóricos da linguagem flexibilizaram e amplificaram a abordagem ora
explicitada, outorgando maior importância ao significado que à expressão e, assim, à
imutabilidade, à estabilidade e, portanto, à morte do signo, em detrimento do movimento, da

maneira, com a lógica aristotélica da linguagem e com os raciocínios substancialistas, que tendem a enrijecer o
entendimento de processos como o de apropriação de uma obra, linguagem, entre outros produtos humanos.
Capítulo 2 154
Ângela Massumi Katuta

constituição dos significados, da vida humana tecida em suas múltiplas possibilidades de


leituras e realizações.
O fato de se colocar em relevância o significado e, portanto, a significação possibilita
a inclusão de múltiplos efeitos na análise da linguagem, inclusive o da verdade 224 , reduzida
aqui a um simples resultado de retórica. A partir dos significantes, o uso das significações, ou
seja, das conotações, se desdobra em codificação-decodificação cada vez mais sutil, em graus
cada vez mais sofisticados até tornar-se inacessível ao leitor ou apreciador.
La teoria lingüística de las significaciones, aplicada a las obras de arte, muestra sus
límites. Alcanza mal el sentido. [...] exagera lo que se refiere a la palabra y a las
significaciones asociadas com la palabra, o sea a las representaciones. Por lo tanto
reduce y soslaya el sentido que resulta de los conjuntos de palabras e incluso les
preexiste em calidad de representaciones más amplias que las que se relacionan com
las palabras tomadas separadamente. 225 (LEFEBVRE, 1983, p. 232-233).
Mais adiante retornarei a essa discussão, por ora basta reforçar o entendimento de que
a linguagem e, portanto, os produtos simbólicos não podem ser apreendidos apenas como
mero conjunto de significados estáticos, passíveis de serem dicionarizados, descritos,
comunicados e esgotados em sua totalidade. A dicionarização ou sistematização dos
significados dos símbolos não esgota suas potencialidades; antes, anuncia a morte do signo e
da linguagem enquanto instrumentos humanos de conhecimento, comunicação e fruição
sígnica, destituindo-os de sua condição de relação social.
Os processos comunicativos engendrados por meio das linguagens, quaisquer que
sejam elas, também não devem ser compreendidos em uma perspectiva que oculta as relações
sociais que são por elas engendradas e as engendram. Abordar as diferentes linguagens nesta
perspectiva significa retirá-las do contexto de sua realização, o que equivale a fetichizá-las e
reificá-las, expressão da alienação do sujeito nas relações sociais por ele vivenciadas.
Vale a pena fechar esta breve reflexão, retomando as idéias bakhtinianas 226 sobre os
signos:
Os signos só podem aparecer em um terreno interindividual. Ainda assim, trata-se de
um terreno que não pode ser chamado de ‘natural’ no sentido usual da palavra: não
basta colocar dois homo sapiens quaisquer para que os signos se constituam. É
fundamental que esses dois indivíduos estejam socialmente organizados, que
formem um grupo (uma unidade social): só assim um sistema de signos pode

224
Elias (1994b, p. 111 et seq.).
225
“A teoria lingüística das significações aplicada às obras de arte mostra seus limites. Alcança mal o sentido.
[...] Exagera no que se refere à palavra e às significações associadas com a palavra, ou seja, as representações.
Portanto, reduz e simplifica o sentido que resulta dos conjuntos de palavras e inclusive lhes preexiste em
qualidade de representações mais amplas que as que se relacionam com as palavras tomadas separadamente.”
(Tradução da autora).
226
Mikhail Bakhtin foi um dos estudiosos da linguagem mais profícuos; tentou desenvolver uma filosofia da
linguagem com fundamento marxista. Suas reflexões, embora pouco disseminadas no âmbito da educação
formal, constituem-se em uma contribuição digna de ser mais intensamente explorada no que se refere ao
entendimento dos processos comunicativos no contexto da sala de aula.
Capítulo 2 155
Ângela Massumi Katuta

constituir-se. A consciência individual não só nada pode explicar, mas, ao contrário,


deve ela própria ser explicada a partir do meio ideológico e social. (BAKHTIN,
1997, p. 35).
Verifica-se na afirmação do autor a defesa da origem social e, portanto, espaço-temporal

dos signos. Um sistema de signos somente pode constituir-se a partir de um coletivo que a

engendra, embora seja individualmente apropriado; em outras palavras: um sistema de

signos é gestado socialmente e apropriado individualmente. Aprisioná-lo enquanto sistema

que se realiza apenas interna e individualmente, independentemente das relações sociais,

significa colocar a análise a serviço da ideologia. Eis porque a linguagem, na perspectiva

bakhtiniana, não pode ser um processo restrito à dimensão individual; trata-se, segundo as

palavras do autor (Bakhtin, 1997, p. 35) de um fenômeno social; por conseguinte, a palavra

“[...] é o fenômeno ideológico por excelência. A realidade toda da palavra é absorvida por

sua função de signo. A palavra não comporta nada que não esteja ligado a essa função,

nada que não tenha sido gerado por ela. A palavra é o modo mais puro e sensível de

relação social.” (BAKHTIN, 1997, p. 36).

Verifica-se o quanto se avança a partir da perspectiva bakhtiniana na compreensão da


linguagem em suas múltiplas formas de realização, em seus mais variados movimentos. Nela,
não se nega a característica primordial dessa produção humana, que é a de ser relação social.
Entendo que, do ponto de vista dos processos comunicativos e de aprendizagem que ocorrem
no âmbito da educação formal, a perspectiva do referido autor é de extrema importância na
medida em que auxiliam no entendimento da natureza ideológica do signo lingüístico, da
fluidez característica do processo incessante de constituição de significações, da alteridade
enquanto elemento constituinte do processo comunicativo, do signo enquanto expressão das
tensões sociais. O encaminhamento analítico encetado por Bakhtin e por outros autores que
defendem que a linguagem é uma relação social permite romper com o formalismo das
análises hegemônicas da linguagem enquanto meio de comunicação.
Capítulo 2 156
Ângela Massumi Katuta

2.2.3. As linguagens como instrumentos de dominação


“[...] a língua é um modo de agir, é um modo de ação sobre o Outro. Cada língua é um instrumento
de ação social e, nesse sentido, ela ocupa um lugar especial no campo do poder. Uma opressão
lingüística, uma opressão por meio da língua é portanto possível. Essa opressão surge cada vez que
uma língua diferente da materna é imposta a um grupo. Nesse caso, pode-se pensar em dois
modelos de opressão: um ligado à interioridade de uma unidade nacional, e o outro à
exterioridade.” (RAFFESTIN, 1993, p. 107-108).

O estudo das linguagens como instrumentos de dominação é comumente realizado


pela tradição marxista e por teorias como as elaboradas por Pierre Bourdieu, Norbert Elias,
Ludwig Wittgenstein, Gilles Deleuze e Félix Guattari, entre outros que tendem a se contrapor
à abordagem idealista e às mais variadas expressões do positivismo. A tradição marxista
privilegia reflexões sobre as funções políticas dos sistemas simbólicos e, em geral, enfatiza
apenas sua face de instrumento que realiza os efeitos ideológicos pretendidos pela cultura
dominante, como é o caso da reflexão elaborada por Raffestin (1993), cujo excerto do texto
figura na epígrafe do presente item.
Há uma presença significativa de estudos sociológicos, filosóficos, históricos e
geográficos na perspectiva do mencionado referencial teórico-metodológico, que tendem a
realizar as abordagens dos sistemas simbólicos e da linguagem enfatizando suas relações com
as visões de mundo ou interesses específicos das classes sociais hegemônicas. A crítica aos
sistemas simbólicos instituídos, a realização e legitimação do poder, por meio dos mesmos,
são a tônica dominante desses estudos.
Bourdieu (2000a) critica essa abordagem pela sua tendência em reduzir brutalmente os
produtos ideológicos aos interesses das classes, no contexto das quais os mesmos foram
engendrados e às quais encontram-se atrelados. Afirma que é preciso ter presente que as
ideologias são duplamente determinadas, devendo
[...] suas características mais específicas não só aos interesses das classes ou das
fracções de classe que elas exprimem (função de sociodiceia), mas também aos
interesses específicos daqueles que as produzem e à lógica específica do campo da
produção (comumente transfigurado em ideologia da ‘criação’ e do ‘criador’).
(BOURDIEU, 2000a, p. 13) 227 .
Ao afirmar que a produção de produtos simbólicos e inclusive das linguagens depende
tanto dos interesses de classe ou de frações dela, quanto do desempenho específico dos
produtores de um determinado campo de produção simbólica e do funcionamento deste

227
O autor apresenta estudos subsidiados por essa idéia, trabalhando com as noções de habitus e com a teoria dos
campos, essenciais na tecedura de suas teses nas seguintes obras: A Economia das Trocas Simbólicas (1992); As
regras da arte: gênese e estrutura do campo literário (1996); Razões Práticas: Sobre a Teoria da Ação (1997);
A Economia das Trocas Lingüísticas: O que falar quer dizer (1998); O poder simbólico (2000a); O campo
econômico (2000b).
Capítulo 2 157
Ângela Massumi Katuta

último, o autor chama a atenção para a existência, dependendo das condições materiais de
produção, de uma autonomia relativa no referido processo que, via de regra, não é
considerado por algumas análises alinhadas à ortodoxia marxista.
Ao realizar suas reflexões a partir da perspectiva brevemente esboçada, o autor se
contrapõe tanto aos estudos que tendem a salientar as explicações meramente externas que
enfatizam a ação direta de grupos junto aos sistemas simbólicos, quanto às interpretações
internas cujas compreensões puramente a-históricas excluem qualquer referência a
determinações históricas ou a funções sociais 228 .
Bourdieu (1997, p. 60) considera esta oposição uma espécie de curto-circuito redutor.
Em oposição às análises por ele denominadas de reducionistas e simplistas, elaborou sua
Teoria dos Campos, por meio da qual procurou aplicar um modo de pensar relacional, visando
à superação e síntese das análises externas e internas 229 . A intenção primordial da referida
teoria é a de demonstrar a complexidade inerente aos processos de realização do poder
simbólico no modo de produção capitalista. Além disso, com a mesma, o autor demonstra
que, no contexto da divisão social do trabalho, a produção simbólica e seus produtores
compõem um campo de produção que possui autonomia relativa, fato esse negado por
análises reducionistas que ou não consideram esse aspecto em suas reflexões, ou tendem a
estabelecer uma relação simplista e direta entre modo de produção, divisão social do trabalho,
produção cultural e exercício de poder.
Dessa forma, pode-se afirmar que as análises bourdieusianas estão focadas, em sua
grande maioria, na tensão de ambos os aspectos da linguagem e dos produtos simbólicos:
enquanto estruturas estruturadas e como instrumentos de realização do poder. O aspecto da
linguagem como estrutura estruturante, apesar de ser muitas vezes citado pelo autor, não é

228
Essa oposição é muito freqüente nas pesquisas em geografia. Muitas tendem a compreender os sistemas
simbólicos enquanto expressão direta, conseqüência determinante ou final das classes sociais hegemônicas que
compõem uma sociedade. Esse entendimento restringe uma obra ao seu contexto. A redução do mapa, como
expressão direta do olhar de uma determinada classe social, ou seja, como pura ideologia, é um bom exemplo
desse tipo de abordagem. Outras pesquisas tendem a limitar-se a uma análise puramente interna e a-histórica dos
sistemas simbólicos, enfatizando a obra como texto. Nessa perspectiva, o mapa acaba reduzido a meio de
comunicação, ou ideologia pura. Essa abordagem taxa como redutoras ou grosseiras as análises pautadas em
contextos. Verifica-se assim, nas pesquisas em geografia, a existência de um divisor de águas, expressão da
dificuldade da efetivação de análises relacionais, que tem seu fundamento na forma de construção do objeto que,
segundo Bourdieu (2000a, p. 26 et seq.), não se realiza de forma automática, “de uma assentada”. Trata-se de
trabalho de grande fôlego, que se realiza aos poucos, por meio de retoques, emendas e correções sucessivas. “[...]
tomar para objecto o trabalho social de construção do objecto pré-construído: é aí que está o verdadeiro ponto de
ruptura.” (BOURDIEU, 2000a, p. 28). A (re)construção do objeto implica a conversão do olhar e, portanto, a
destruição-construção de entendimentos social e espaço-temporalmente construídos. Os fatos estudados podem
ser os mesmos, a diferença reside na forma da construção do objeto, ou seja, na relação cognitiva, no olhar, nas
intenções cognitivas e civilizadoras que lançamos aos fatos, expressão de uma construção social.
229
Essa abordagem se aproxima, de certa maneira, às propostas por Deleuze e Guatarri (2002) e Lefebvre
(1983).
Capítulo 2 158
Ângela Massumi Katuta

enfatizado, pelo fato de que ele parece comungar, em grande parte, com as análises
sociológicas e mesmo filosóficas, que tendem a reduzir ou transpor mecanicamente o
individual no social. Verifica-se assim que o modelo de ser humano com o qual opera não
apenas a teoria bourdieusiana, mas também aquelas que abstraem mecanicamente o individual
no social, ainda são insuficientes para abordar a linguagem e outros produtos simbólicos em
suas relações e tensões dialéticas como sendo concomitantemente e, de maneira inexorável,
estruturas estruturantes, estruturas estruturadas e instrumentos de poder.
Em Campo do Poder, Campo Intelectual e Habitus de classe (p. 182 et seq.), texto
publicado originalmente em 1971 que compõe uma coletânea publicada no Brasil sob o título
A economia das trocas simbólicas (1992), o autor nos permite compreender seu
posicionamento de redução do individual ao social. Essa opção foi orientada a fim de se
contrapor tanto à noção substancialista de indivíduo, um dos maiores obstáculos
epistemológicos com o qual se defrontaram as apreensões estruturais, quanto para romper
com o objeto pré-construído que vem a ser o artista individual, a obra singular, próprios da
tradição positivista que se filia ao ideal da ideologia romântica, do gênio criador, da
individualidade única e insubstituível:
[...] o indivíduo diretamente perceptível, ens realissimum pedindo insistentemente
para ser pensado em sua existência separada e exigindo por isso uma apreensão
substancialista, reveste-se aqui com a forma de uma individualidade ‘criadora’ cuja
originalidade deliberadamente cultivada parece propícia a suscitar o sentimento da
irredutibilidade e a reverência. (BOURDIEU, 1992, p. 182).
A opção bourdieusiana de enfatizar em suas análises a abordagem dos sistemas
simbólicos como estruturas estruturadas e instrumentos de realização do poder se constitui em
um avanço significativo em relação às análises reducionistas 230 , anteriormente apresentadas
no presente item. Contudo, os limites da mesma são estabelecidos na medida em que, apesar
de criticar as análises reducionistas, acaba reduzindo o individual ao social.
Ao mesmo tempo em que elimina um determinado obstáculo epistemológico criado
por tradições positivistas em sua face estruturalista, cria um outro, muito comum a análises
sociologizantes. A redução do individual ao social expressa as disputas internas entre os
diferentes campos de produção de saber, na área das ciências humanas, pela autoridade
discursiva e, portanto, simbólica em relação ao entendimento dos processos humanos.
A defesa da idéia de que as ideologias são sempre duplamente determinadas − pelas
classes hegemônicas e pelos que as produzem − foi, para o autor, um meio de evitar a redução
brutal do entendimento dos produtos ideológicos como meramente atrelados aos interesses
das classes a que eles servem, sem se deixar enredar pela ilusão idealista que aborda as
230
São igualmente dignas de menção as obras de Deleuze e Guattari (2002), Elias (1994b) e Lefebvre (1983).
Capítulo 2 159
Ângela Massumi Katuta

produções ideológicas como totalidades autogeradas, passíveis de uma análise restrita à sua
lógica interna.
[...] A noção de campo, é em certo sentido, uma estenografia conceptual de um
modo de construção do objecto que vai comandar – ou orientar – todas as opções
práticas da pesquisa. Ela funciona como um sinal que lembra o que há que fazer, a
saber, verificar que o objeto em questão não está isolado de um conjunto de relações
de que retira o essencial das suas propriedades. Por meio dela, torna-se presente o
primeiro preceito do método, que impõe que se lute por todos os meios contra a
inclinação primária para pensar o mundo social de maneira realista ou, para dizer
como Cassirer, substancialista: é preciso pensar relacionalmente. Com efeito, poder-
se-ia dizer, deformando a expressão de Hegel: o real é relacional. (BOURDIEU,
2000a, p. 27-28).
Apesar de defender uma abordagem relacional, como afirmei anteriormente, em
função da concepção de ser humano que possui e pelo fato de sobre-valorizar a dimensão das
relações sociais em detrimento da noção de indivíduo, por concebê-la somente em sua face
substancialista, a perspectiva bourdieusiana ficará restrita ao estudo das tensões existentes
entre os produtos simbólicos e grupos sociais. A relação entre o social e o psicológico não é
realizada pelo autor. Verifica-se também em seus trabalhos os limites da especialização do
olhar e, portanto, da construção do objeto, engendrados no contexto da instituição imaginária
de nossa sociedade, perspectiva à qual Castoriadis (1982) fará referência a fim de construir os
fundamentos de sua tese e, portanto, de seu objeto.
A especificidade do ser humano reside exatamente no fato de este ser ao mesmo tempo
e indissociavelmente biológico, social e individual. Daí a necessidade do estabelecimento de
análises relacionais, cuja tensão poderia nos auxiliar em uma compreensão mais complexa dos
processos de linguagem e, portanto, do pensamento, memória, percepção e construção de
conhecimentos. Contudo, essas análises, em função da necessidade de mobilização de um
fundo enorme de conhecimentos, informações e dados disponíveis, exigem o estabelecimento
de esforços conjuntos dos produtores das várias áreas do saber, para que os fenômenos
lingüísticos sejam efetivamente abordados em sua complexidade. Ainda que considerássemos
a inesgotabilidade das reflexões passíveis de serem realizadas no contexto ora esboçado, a
abordagem explicitada seria desejável, pois poderia auxiliar na construção de entendimentos
menos simplificadores e monolíticos do fenômeno em questão.
Apesar do exposto, a ênfase da análise bourdieusiana ao contexto das relações sociais
em que se realizam as produções simbólicas, tentando tornar relativas tanto as ações das
classes sociais hegemônicas quanto o papel dos produtores simbólicos, procurando relacionar
esses pontos de vista a fim de abordar as formas de constituição e legitimação do poder
simbólico, foram e são uma contribuição significativa às pesquisas sobre os produtos
Capítulo 2 160
Ângela Massumi Katuta

simbólicos, pois anteriormente eram desconsiderados por muitos enquanto objetos de estudos
passíveis de serem abordados pelas pesquisas em ciências humanas.
Para Bourdieu (1997, p. 61 et seq.) os antagonismos sociais e não os referenciais
teórico-metodológicos são os únicos obstáculos à superação e à síntese dos posicionamentos
decorrentes das análises dos sistemas simbólicos, a partir das perspectivas internalistas e
externalistas. “[...] Dado que cada campo se coloca ao se opor, ele não pode perceber os
limites que impõe a si mesmo no próprio ato de constituir-se.” (BOURDIEU, 1997, p. 62).
Verifica-se por meio desta afirmação que a possibilidade de superação e síntese das análises
internalistas e externalistas está presente no pensamento bourdieusiano, na medida em que
esse autor construiu o objeto, no caso, os sistemas simbólicos, em uma perspectiva
diferenciada:
As determinações externas invocadas pelos marxistas - por exemplo, o efeito das
crises econômicas, das transformações técnicas ou das revoluções políticas – só
podem exercer-se pela intermediação das transformações da estrutura do campo
resultantes delas. O campo exerce um efeito de refração (como um prisma):
portanto, apenas conhecendo as leis específicas de seu funcionamento (seu
‘coeficiente de refração’, isto é, seu grau de autonomia) é que se pode compreender
as mudanças nas relações entre escritores, entre defensores dos diferentes gêneros
(poesia, romance e teatro, por exemplo) ou entre diferentes concepções artísticas (a
arte pela arte e a arte social, por exemplo), que aparecem, por exemplo, por ocasião
de uma mudança de regime político ou de uma crise econômica. (BOURDIEU,
1997, p. 61).
Em uma perspectiva bourdieusiana, a noção de campo de produção simbólica, de
habitus e a teoria dos campos são extremamente importantes para o entendimento das idéias
do autor e auxiliam no entendimento da relevância destas no contexto do campo de produção
dos estudos sobre os produtos simbólicos.
Pelo exposto, verifica-se em Bourdieu e em outros autores que realizam estudos sobre
a linguagem enquanto instrumento de dominação 231 a possibilidade de entendimento dos
sistemas simbólicos em uma perspectiva menos reducionista e alienada. Contudo, é preciso
salientar que essa empreitada exige, em um primeiro momento, o estabelecimento do ponto de
ruptura: a construção do objeto pré-construído que implica, necessariamente, uma
(des)construção, pois a crença na neutralidade da linguagem, bem como dos processos a ela
inerentes constituem-se em obstáculos epistemológicos a serem necessariamente superados. É
o que constantemente as teorias críticas tentam fazer ao resgatar 232 ou (re)construir, um

231
Já citados no presente capítulo.
232
Uso o termo resgate, pois concordo com Freitas (2002, p. 154 et seq.) que as reflexões da área educacional,
principalmente as realizadas na década de 1990, abandonaram muitas categorias de pensamento necessárias ao
estabelecimento de entendimentos contextualizados e relacionais. Um dos exemplos é o da categoria trabalho,
em sua concepção materialista dialética. Atualmente, segundo a mesma autora, as políticas neoliberais colocadas
em prática por organismos internacionais e a política educacional brasileira reduzem a noção de trabalho à “[...]
Capítulo 2 161
Ângela Massumi Katuta

conjunto de categorias de pensamento que auxiliem nas sucessivas aproximações da


linguagem.
Por ora, basta lembrarmos que a realização de qualquer linguagem ou sistema de
significação no modo de produção capitalista implica o estabelecimento de tensões nas
relações de dominação. Isso acontece não porque a linguagem em si é instrumento de poder,
mas pelo fato de a mesma ser relação social e, portanto, estar intimamente ligada ou mesmo
ser uma das condições necessárias para a reprodução do referido modo de produção –
estrutura estruturada, estrutura estruturante e instrumento de dominação.
Vale a pena retomar aqui as idéias que Moreira (1994, p. 221) resgata em Gramsci, já
trabalhadas no capítulo anterior, sobre o domínio cultural dos sujeitos 233 , âmbito este
diretamente vinculado à linguagem e aos processos de significação:
A hegemonia técnica realizada pela instituição disciplinar do trabalho cronometrado
deve entretanto se enfeixar num quadro de maior profundidade subjetiva (Gramsci,
1968). Precisa-se do domínio cultural dos sujeitos, para que então o domínio
econômico possa se efetivar. O sincronismo espacial do trabalhador coletivo já
subjetivado na temporalidade abstrata, inorgânica e universal do relógio e por isto
encarnado como potencialidade autônoma do capital deve se confundir a um plano
que abarque a própria corporeidade humana. (MOREIRA, 1994, p. 221).
O domínio cultural dos sujeitos se realiza por meio dos jogos de linguagem, e dos
processos de significação a eles inerentes. Obviamente que, em uma sociedade voltada ao
domínio econômico dos sujeitos, as estruturas estruturadas e estruturantes, ou seja, os
sistemas simbólicos hegemônicos, incluam-se neles a linguagem, realizarão o processo de
violência simbólica em favor dos setores dominantes desta sociedade. O domínio econômico
supõe a alienação do sujeito, portanto, o estabelecimento de ideologias que somente se
realizam na e por meio das linguagens. Eis a importância dessa relação social no contexto dos
processos educativos; por isso, sua disseminação, legitimação e uso serão sempre atos
políticos. Não por acaso, o processo de hegemonização da ordem capitalista, implicou a

capacidade de empregabilidade ou laboralidade, uma ‘nova’ competência geral propugnada pelas diretrizes
oficiais a ser desenvolvida no ensino médio profissional [...]”. (FREITAS, 2002, p. 160). Em contraposição ao
entendimento da categoria trabalho como mercadoria − que referenda Projetos de Educação e Formação docente
que privilegiam o controle do desempenho, com vistas à competência e competitividade, ou seja, o atual projeto
societário −, deve-se resgatar seu sentido enquanto ação de e para a realização humana, que traz no seu âmago
um projeto societário mais justo, por defender uma outra concepção de Educação e formação docente com vistas
a uma “[...] formação humana omnilateral, a autonomia e o aprimoramento pessoal.” (FREITAS, 2002, p. 160).
233
Idéia esta presente também em Guattari; Rolnik (1999, p. 15): “O que caracteriza os modos de produção
capitalísticos é que eles não funcionam unicamente no registro dos valores de troca, valores que são da ordem do
capital, das semióticas monetárias ou dos modos de financiamento. Eles funcionam também através de um modo
de controle da subjetivação, que eu chamaria de ‘cultura de equivalência’ ou de ‘sistemas de equivalência na
esfera da cultura’. Desse ponto de vista o capital funciona de modo complementar à cultura enquanto conceito de
equivalência: o capital ocupa-se da sujeição econômica, e a cultura, da sujeição subjetiva. E quando falo em
sujeição subjetiva não me refiro apenas à publicidade para a produção e o consumo de bens. É a própria essência
do lucro capitalista que não se reduz ao campo da mais-valia econômica: ela está também na tomada de poder da
subjetividade.”
Capítulo 2 162
Ângela Massumi Katuta

disseminação de escolas voltadas para a grande massa da população. E, o que ela tem
predominantemente aprendido de importante que justifique a manutenção e disseminação de
instituições escolares até os dias de hoje em todo o planeta? Linguagens, relações sociais,
veículos disseminadores do habitus engendrado no e, portanto, para o modo capitalista de
produção. É o que demonstrarei nas páginas que seguem, focalizando o caso específico do
ensino da geografia.
Capítulo 2 163
Ângela Massumi Katuta

2.3. As concepções de espaço, as geografias produzidas e as


linguagens enquanto saberes estruturados, estruturantes e
instrumentos de dominação
“[...] é necessário tomar o espaço em si, como ocorrência material, como espaço absoluto, relativo
e relacional. [...] O ser é sujeito e objeto ao mesmo tempo. Por este caminho a Geografia deixa de
ser apenas uma ciência auxiliar e externa a outras ciências. [...] Daí que, o ‘homem não é nem
significante nem significado, mas ao mesmo tempo [...] significado-significante e significante-
significado’ [...] por isso, o movimento da estrutura se põe, ao mesmo tempo, como estrutura em
movimento. Isto quer dizer que o espaço é tempo do espaço e o tempo é espaço do tempo. Mas,
esse espaço-tempo é um espaço-tempo alheio – para si – ou um espaço - tempo exterior – para
outro. A ação consciente torna-se sobreconsciente e se põe como referência. O pensamento,
como movimento da estrutura, ou estrutura em movimento, ou ainda, como movimento-estrutura –
ganha concretude na materialidade da idéia. A idéia espacializa-se. Daí, que a idéia espacializada
passa a sobrepor-se à consciência para-si e para outro. Surge a possibilidade da teoria, na
ontologia do espaço.” (SILVA, 1986, p. 46-54-55).
“[...] o espaço é a relação entre a diferença da diversidade contra a identidade da unidade que
lhes é imposta.” (MOREIRA, 2004, p. 173).
“[...] espaço geográfico [...] não é exatamente o espaço físico, mas estabelece uma relação com o
mesmo, mas também não é um espaço meramente psicológico ou cultural, apesar desses elementos
permitirem a produção do espaço em sua interação com a dimensão física. Espaço geográfico
passa a ser entendido pela capacidade de produzirmos o sentido de humanização – com todas as
contradições inerentes – ao espaço físico, refere-se a nossa capacidade de habitar – não no
sentido de morar – mas de abrir um lugar, instaurar o sentido humano do ambiente produzido.”
(FERRAZ, 2001, p. 142-143).
“Como na maioria dos problemas filosóficos, o do espaço dá lugar a determinadas posições, que
podem ser divididas em dois grupos: a) Num deles, o problema do espaço é estudado em relação a
um sujeito ou a uma consciência; b) No outro, o espaço é considerado em si mesmo.”
(GALCERÁN, 1981, p. 50).

Como afirmei no item anterior, toda e qualquer linguagem, por tratar-se de relação
social, deve ser considerada ao mesmo tempo estrutura estruturada, estruturante e instrumento
de dominação. Obviamente que, dependendo do uso que dela se faz, ocorrerá o predomínio de
um ou outro papel. Assim ocorre com a linguagem falada, a escrita, a cartográfica e todas as
outras.

O domínio cultural dos sujeitos 234 , necessário para que a submissão econômica
capitalista se efetive, ocorre também por meio da linguagem e dos usos que dela se faz,
veículo e condição da realização das relações humanas e do próprio ser humano, resultado de

234
Guattari e Rolnik (1999, p. 27) afirmam que “Tudo é produzido pela subjetivação capitalística – tudo o que
nos chega pela linguagem, pela família e pelos equipamentos que nos rodeiam – não é apenas uma questão de
idéia, não é apenas uma transmissão de significações por meio de enunciados significantes. [...] Trata-se de
sistemas de conexão direta entre as grandes máquinas produtivas, as grandes máquinas de controle social e as
instâncias psíquicas que definem a maneira de perceber o mundo.”
Capítulo 2 164
Ângela Massumi Katuta

seu trabalho ou ação 235 . Insere-se, nesta perspectiva, a relevância de reflexões sobre este
sistema simbólico em estudos que procuram desvendar as relações inerentes à subjetivação
capitalística 236 , que se realizam por meio das linguagens tornadas hegemônicas, amplamente
utilizadas e disseminadas na escola básica.

Deleuze e Guattari (2002, p. 11-12), no volume 2 de sua obra intitulada Mil Platôs:
capitalismo e esquizofrenia, explicitam o uso que comumente a escola faz da linguagem, fato
esse que a identifica como uma agenciadora da palavra de ordem por predominar, em suas
ações, a imposição de coordenadas semióticas aos alunos, em função das linguagens
comumente empregadas e das maneiras como elas são utilizadas:

A professora não questiona quando interroga um aluno, assim como não se


questiona quando ensina uma regra de matemática ou de cálculo. Ela “ensina”, dá
ordens, comanda. Os mandamentos do professor não são exteriores nem se
acrescentam ao que ele nos ensina. Não provêm de significações primeiras, não são
a conseqüência de informações: a ordem se apóia sempre, e desde o início, em
ordens, por isso é redundância. A máquina do ensino obrigatório não comunica
informações, mas impõe à criança coordenadas semióticas com todas as bases duais
da gramática (masculino-feminino, singular-plural, substantivo-verbo, sujeito do
enunciado-sujeito de enunciação etc). A unidade elementar da linguagem – o
enunciado – é a palavra de ordem. [...] A linguagem não é mesmo feita para que se
acredite nela, mas para obedecer e fazer obedecer.
Subjacente à reflexão dos autores, verifica-se uma compreensão de que o uso que se
faz da linguagem é que irá conferir a ela sua identidade, que, conseqüentemente, será
cambiante; daí os mesmos apontarem para a necessidade de se considerar as práticas
lingüísticas em seu estado variado e contínuo. A imposição-aprendizagem de coordenadas
semióticas hegemônicas para a (re)produção das relações capitalísticas, tem se revelado como
o objetivo primordial da escola, que se realiza por meio do contato do aluno com as várias
áreas do saber ou disciplinas escolares. Eis o processo de estrangeirização que se pretende
evidenciar no presente item, remetendo, especificamente, às concepções de espaço e
linguagens hegemonicamente disseminadas pelo ensino da geografia. Quais coordenadas
semióticas a disciplina enfatiza? Que relação tem essa opção com o processo de
estrangeirização, foco da presente reflexão? Foram respostas a essas questões que elaborei nas
páginas que seguem.
No presente item, evidencio, em um primeiro momento, a relevância das noções de
espaço no processo de humanização dos seres humanos, mostrando que elas foram e ainda são
necessárias para a sobrevivência da espécie. Em seguida, abordo as relações entre a
simbologia toponímica, expressa por meio de linguagens ou figurações espaciais, enfatizando

235
Sobre este assunto ver os livros de Vygotsky (1991a, 1991b).
236
Termo usado por Guattari; Rolnik (1999).
Capítulo 2 165
Ângela Massumi Katuta

o caso da cartografia e sua relação com a racionalidade humana, especificamente, a européia.


Tento mostrar que, apesar das noções de espaço serem necessárias para a espécie, essas se
tecem e transformam historicamente em função dos modos de produção que evidenciam, entre
outros processos, a plasticidade dos saberes humanos construídos por meio das diferentes
linguagens historicamente criadas. Por isso, optei pela linguagem cartográfica que expressa,
de maneira didática, a lenta transformação das concepções de espaço que culmina com a
concepção newtoniana-kantiana, assumida pela escola de massas como a única correta,
verdadeira e, portanto, legítima, desde as suas origens aproximadamente no século XVIII até
os nossos dias, fato esse que também ocorreu com a geografia ensinada. Encerro o capítulo
mostrando as relações entre o modo de produção capitalista, os registros toponímicos,
especificamente aqueles expressos por meio da linguagem cartográfica, e o reforço de noções
espaciais que auxiliam na (re)produção do espaço para o capital, portanto, ao processo de
estrangeirização e alienação do aluno.
Capítulo 2 166
Ângela Massumi Katuta

2.3.1. A relevância das noções de espaço no processo de humanização


do ser humano
“Estudar o espaço vivido significa superar a dimensão do espaço-extensão, ou espaço-suporte das
atividades, para acolher a noção de representação do espaço, como espaço construído através do
olhar das pessoas que o vivem-habitam. Como espaço produzido pelos valores e pela ideologia.”
(BERTANINI, 1985, p. 118).

Com o intuito de indicar a relevância do debate sobre as concepções de espaço para a


geografia acadêmico-científica, abri o item 2.3. com uma série de epígrafes 237 que apresentam
várias concepções em torno do referido léxico. Esta relevância pode ser entendida como
expressão de que estamos a conviver, já há algum tempo, com movimentos de transformação
do debate em torno do próprio objeto da referida ciência, bem como das linguagens mais
comumente por ela utilizadas, suas noções de verdade, conhecimento e, conseqüentemente, de
suas concepções de espaço 238 .
Moreira (1992, p. 5) afirma que no Brasil, 1978 é o ano de referência das
transformações do debate sobre os conhecimentos geográficos produzidos até então. Contudo,
ao analisar a década que sucedeu ao famoso “Movimento de Renovação da Geografia”,
mostra uma certa preocupação com os rumos tomados pela ciência geográfica ao apontar que
os registros:
[...] indicam uma progressão do movimento de renovação desdobrada em dois
momentos distintos: num primeiro, aquele do impulso imediato do 3º ENG 239 ,
desenvolve-se um mergulho crítico às raízes do discurso geográfico que indaga
sobre seu sentido e significação (‘o que é, para que e a quem serve a Geografia’);
num segundo, que se pode situar pela segunda metade da década de 80, o
movimento de renovação perde o ímpeto e tende à atrofia. No primeiro, a geografia
tende a ‘redescobrir-se’; no segundo, a opacicificar-se. O primeiro, é um momento
combativo; o segundo, da tendência a tornar-se a nova oficialidade.
A preocupação explicitada pelo autor funda-se na verificação da ausência de leituras
recíprocas das produções, no silêncio e “cassação” bibliográfica no período que vai de 1978 a
1988, impeditivos dos esforços voltados a um permanente alargamento e sistematização
coletiva que todo movimento de avanço do conhecimento supõe. Esse foi o movimento geral
ou predominante. Contudo, em uma outra escala de análise, pode-se afirmar que mesmo nos
interstícios da nova oficialidade se produziram movimentos de trocas, leituras e (re)leituras; é
isto que os trabalhos de muitos geógrafos apontam, principalmente os que figuram na epígrafe
do presente item.

237
Excetuando-se a de Galcerán (1981), que atua na área de história da arte.
238
Sobre este assunto ver o texto de Moreira (1992), no qual há várias indicações bibliográficas de escritos de
geógrafos que abordaram a questão.
239
Encontro Nacional de Geógrafos, grifo da autora.
Capítulo 2 167
Ângela Massumi Katuta

Apesar de Galcerán (1981) sintetizar o teor do debate filosófico em torno do


significado do termo espaço, entendo que as perspectivas de Silva (1986), Moreira (2004) e
Ferraz (2001) explicitam a existência de uma terceira possibilidade-síntese voltada à negação
de concepções que cindem o espaço, ora por tomá-lo como existente em si, ora por entender
sua existência, a priori, em um sujeito.
Os autores apontam para a possibilidade de se conceber o espaço em uma tensão
dialética, vivida pelos sujeitos no processo de sua humanização. O fundamento de suas idéias
é a verdade axiomática engendrada quando do processo de renovação da geografia brasileira,
explicitada por Moreira (1992) em artigo no qual avalia os dez anos que sucederam ao
movimento de crítica à geografia que se fazia até então: “Nada pode existir senão
espacialmente. Não há matéria fora do espaço e espaço fora da matéria, seja a matéria
cósmica ou seja a matéria social da História. Por isto, não há sociedade sem espaço e espaço
sem sociedade [...]”. (MOREIRA, 1992, p. 29). Nesta perspectiva, espaço se constitui, como
defende Santos D. (1997, p. 27), em categoria e condição para a existência do ser humano e
seu pensamento:
A diferencialidade das necessidades confrontando-se com a diferencialidade das
condições de superação [...] implicou, no processo global de construção cultural, a
simbologia toponímica já que, só assim, seria possível socializar no interior dos
grupos humanos a localização das condições de sobrevivência. (SANTOS, D.,
1997, p. 36).
É exatamente a construção dessas simbologias que nos interessa no momento, pelo
fato destas se constituírem enquanto linguagem, expressão e condição de ordenação e
realização das ações humanas, suas espacialidades e geografias: “[...] O Topos era o Verbo; e
algo mais: a ação [...] E algo menos: o lugar, dito e marcado, fixado. Assim, o Verbo não se
fez carne, mas lugar e não-lugar.” (LEFEBVRE, 1991, p. 34).
Observa-se tanto em Lefebvre quanto em Santos D. (1997) a defesa do fundamento
tópico de nossa existência, as noções de espaço são imprescindíveis ao processo de
humanização do ser humano. Gisela Pankow (1988), em seu livro intitulado O homem e seu
espaço vivido: análises literárias, aponta, como os autores mencionados, para a relação
existente entre os seres humanos e seu espaço vivido, chegando a afirmar a partir dos estudos
do etnólogo Koch-Grünberg que “[...] a linguagem e o espaço têm a mesma importância para
a compreensão das relações humanas”. (PANKOW, 1988, p. 16). Isto porque essas últimas se
realizam por meio da linguagem e do espaço. Por isso, Lefebvre (1991, p. 34) afirma que o
verbo se fez lugar e não-lugar.
Ao defender que “O homem em harmonia com seu espaço tem necessidade de
referências simbolizantes.”, Pankow (1988, p. 17) acaba por indicar que a linguagem situa os
Capítulo 2 168
Ângela Massumi Katuta

seres humanos em suas relações com o Outro, atuando como instrumento de orientação de
suas ações – coordenadas semióticas –; não por acaso, uma parte considerável dos processos
terapêuticos se realiza por meio da linguagem.
Em relação ao significado do símbolo, a autora afirma que o mesmo somente adquire
sentido “[...] à medida em que concerne à história vivida do sujeito; somente então é que pode
adquirir sua significação.” É a partir da atribuição de significados ao mundo e aos objetos nele
existentes, do entendimento das territorialidades vivenciadas cotidianamente, que se pode
romper com o processo de alienação do sujeito; ou seja, ao elaborar múltiplos sentidos para os
objetos, as territorialidades vividas, os seres humanos lentamente passam de um grau maior de
alienação para um menor.
O que Pankow (1988) defende é que a linguagem somente adquire significações
quando se refere à dimensão vivida pelo sujeito, à sua territorialidade, tornando-se, neste caso,
instrumento de conhecimento do mundo e de si, pois, como já afirmara Wittgenstein (1995),
linguagem é práxis. Quando esta conexão não é estabelecida, a linguagem serve,
predominantemente, como instrumento de dominação e alienação, como adequadamente
apontaram Deleuze e Guattari (2002, p. 11) em trecho já transcrito no presente capítulo. O
que a linguagem nunca deixa de ser é estrutura estruturada e estruturante ou coordenada
semiótica, que permite aos seres humanos, em um contexto espaço-temporal, por meio de
uma determinada arquitetura de pensamento, se relacionarem com os outros e com o mundo.
Contudo, a mesma será ou não instrumento de dominação dependendo dos usos que os
sujeitos sociais dela farão.
A idéia de que a linguagem somente adquire significações quando se refere à
dimensão vivida pelo sujeito também está presente em Silva (1986, p. 37 et seq.), quando este
reflete sobre o espaço como ser. Ao referendar a tese lukácsiana de que a meta do pensamento
é a passagem do conhecimento que vai do universal, passando pelo particular até chegar ao
singular, para, em um outro movimento dialético, realizar infinitas vezes este movimento que
nunca ocorre de maneira igual, Silva (1986, p. 54) indica que “[...] o pensamento, como
movimento da estrutura, ou estrutura em movimento, ou, ainda, movimento-estrutura – ganha
concretude na materialidade da idéia. A idéia espacializa-se [...] a idéia espacializada passa a
sobrepor-se à consciência para-si e para-outro.” Espaço, linguagem, territorialidades e,
portanto, a geografia real 240 nutrem, dessa maneira, relações de sobredeterminação.

240
Termo usado por Moreira (2004).
Capítulo 2 169
Ângela Massumi Katuta

Quando ocorre o estancamento do movimento do conhecimento, ora na


universalidade, na particularidade e mesmo na singularidade, inviabiliza-se a construção das
significações da dimensão vivida pelo sujeito por meio das linguagens, realizando-se o
processo denominado por Deleuze e Guattari 241 (2002) de desterritorialização 242 . Eis o
processo que norteia toda estrangeirização: a idéia deixa de espacializar-se, não se sobrepõe à
consciência para-si e para-outro, campo profícuo para alienação do sujeito e (re)produção da
espacialidade do capital.
No que se refere às relações entre as noções de espaço, espacialidade e a dimensão
vivida, Bertanini (1985, p. 112) afirma que “O esquema corpóreo – ‘uma maneira de dizer
que meu corpo está no mundo – torna-se o requisito da espacialidade” Para o autor, a
dimensão espacial humana não se reduz ao espaço físico, métrico, suporte, esta é uma dentre
as várias outras concepções de espaço que ganhou legitimidade, tornando-se a concepção
oficial; daí sua ampla disseminação pelas instâncias responsáveis pelo processo de ensino e
aprendizagem de coordenadas semióticas como é a escola. Contudo, alerta-nos o autor:
Existe porém um espaço vivido, como existe um tempo vivido. O espaço não se
reduz para nós a relações geométricas, relações que estabelecemos como se nos
encontrássemos fora do espaço, reduzidos nós mesmos ao simples papel de
espectadores curiosos ou de cientistas. Nós vivemos e agimos no espaço. E é no
espaço que se desenvolvem tanto nossa vida pessoal como a vida coletiva da
humanidade. A vida estende-se no espaço, sem que para isso tenha extensão
geométrica propriamente dita.
Minkowski (apud BERTANINI, 1985, p. 115) afirma que o esquema corpóreo torna-
se o requisito da espacialidade, pois ”[...] transborda dos próprios confins anatômicos para
colocar-se em contínua relação com os corpos dos outros (transferindo sobre si mesmo os
modelos posturais desses últimos).” Verifica-se aqui a explicitação da exigência para a
realização do pensamento, do infindável movimento dialético entre o geral, particular e
singular mediado pelo esquema corpóreo que espacializa a idéia a fim de que, como afirma
Silva (1986, p. 54), ocorra o pensamento.
A conscientização de que o corpo está em algum lugar no mundo implica a construção
da espacialidade humana, inicialmente tecida nos confins anatômicos − tudo = eu, expressão
do mundo interior ou privado em que inicialmente vivemos, equação feita por Castoriadis
(2000), que consta na Apresentação da presente reflexão − para, posteriormente, transbordar
por meio das relações estabelecidas com os outros corpos, gerando o eu = interior e o Outro
(alteridade) = exterior, relações espaciais que estão e constituem a essência da ruptura com a

241
E também na obra de Guattari (1998) intitulada Caosmose: um novo paradigma estético, principalmente nos
Capítulos intitulados Espaço e Corporeidade e Restauração da Cidade Subjetiva.
242
Que obviamente implica a alienação, no caso de nossa sociedade, a territorialização para a (re)produção do
capital.
Capítulo 2 170
Ângela Massumi Katuta

mônada psíquica, condição para a sobrevivência de cada ser humano e fundamento para a
constituição das linguagens e conhecimentos 243 que derivam de nossas noções de
espacialidade e das imagens de espaço por nós construídas. Observa-se, dessa maneira, a
centralidade das noções de espaço, das imagens espaciais e de suas próprias figurações,
enquanto elementos inerentes ao estabelecimento das racionalidades humanas.
Ainda sobre a simbologia toponímica e os registros espaciais, Santos D. (1997, p. 36)
esclarece que a sobrevivência humana “[...] implicou, sempre, algum tipo de deslocamento. Ir
e vir é o ato primário da construção do registro toponímico e cartográfico e tais registros vão
expressar, a cada momento histórico, a forma mesma em que se realiza esse movimento.” 244
Mudam os registros, as linguagens, seus suportes, os olhares, porque se alteram as relações de
produção das sociedades humanas e, com elas, suas espaço-temporalidades, linguagens e suas
geografias.
Muitos estudiosos (Lewis, 1987; Ostrower, 2002; Santos, D., 1997; Szamosi, 1988,
entre outros) defendem a tese, com a qual concordo, sobre a impossibilidade de realização do
pensamento humano sem a categoria espaço. Lewis (1987, p. 50 et seq.) corrobora esta
perspectiva ao afirmar que, antes mesmo da emergência do Homo sapiens, as capacidades de
transmissão e recepção de informações sobre relações espaciais entre fenômenos e eventos já
eram bem desenvolvidas em muitos animais. Esses sistemas de mensagens ou formas de
mapeamento são geneticamente predeterminados, bem como suas “linguagens”, portanto,
resultam do processo de evolução dos seres vivos. Em outras palavras, em se considerando os
processos evolutivos, pode-se afirmar que as noções de espaço são imprescindíveis à
sobrevivência de muitos seres vivos, inclusive dos humanos.
Os seres humanos possuem como traço distintivo dos outros animais a capacidade de
realização do trabalho. Esta atividade é a responsável pela construção das simbologias

243
Sobre esse assunto ver Ostrower (2002, p. 173), cujo entendimento foi transcrito na Apresentação do presente
trabalho, que afirma que somente podemos imaginar e pensar mediante imagens de espaço, fundamento anterior
de todas as linguagens.
244
Castoriadis (2000) em seu livro intitulado A instituição imaginária da sociedade também compartilha deste
mesmo ponto de vista. Especificamente nos capítulos VI e VII da referida obra, o autor defende a existência de
um núcleo monádico ao nascermos, ou seja, não nos diferenciamos do outro, a noção de interno e o externo –
relações espaciais topológicas – ainda não se constituíram. A ruptura da mônada ou diferenciação entre o eu e o
inominável, entre a internalidade e externalidade, fundamento para a constituição da realidade, ocorre somente
mediante a necessidade, no caso do recém-nascido, a necessidade somática, antecede todas as outras. Os bebês
que não conseguem romper com o núcleo monádico morrem de anorexia, indicativo de não ruptura com a
onipotência efetiva da psique. A ausência do seio é ruptura do fechamento monádico, dilacera o mundo autístico
do bebê, é componente constitutivo do objeto, em sua presença-ausência, “[...] a polaridade do sim/não, da
realidade e da negação, do possível e do efetivo encontram aqui seus primeiros germes subjetivos, e o esquema
figura-fundo começa a ser estabelecido com articulação geral de uma ‘consciência’ e de uma ‘percepção’
embrionárias.” (CASTORIADIS, 2000, p. 346). Verifica-se também nesse autor a idéia de que a consciência e
percepção embrionárias derivam das primeiras noções de espaço do recém-nascido.
Capítulo 2 171
Ângela Massumi Katuta

toponímicas humanas, expressas nas diferentes linguagens engendradas espaço-


temporalmente, ao longo de diferentes formações sócio-econômicas, como testemunham as
múltiplas produções culturais, veiculadas na mídia em geral e aquelas catalogadas em museus
− mapas, pinturas, esculturas, filmes e outras figurações espaciais.
Não temos, enquanto gênero humano, uma única concepção de espaço e, muito menos,
uma única linguagem para expressar nossas espacialidades, como assim desejou e tentou
realizar por um longo tempo a racionalidade hegemônica do Ocidente, com sua concepção
métrica de espaço-extensão e espaço-suporte cuja menção foi feita no início do presente item.
A diversidade de nossos símbolos e registros toponímicos, expressos em nossas
linguagens e territórios e, portanto, nas figurações espaciais humanas é um de nossos traços
característicos. Os mapas 245 que os seres humanos produziram ao longo de sua existência são
testemunhos da diversidade das concepções de espaço, espacialidades, bem como de suas
geografias, produzidos sob um determinado modo de produção. É o que pode ser verificado
nas cinco figuras que seguem, produzidas por diferentes grupos humanos, em materiais,
locais, épocas e modos de produção os mais diversos.

Figura 1 − Mapa cosmológico produzido na Índia, aproximadamente entre 8 000-2 500 a.C.,
no Mesolítico (tamanho original: 44 X 75 cm).
Fonte: SMITH (1994, p. 14).

245
Os encaminhamentos que estou dando à reflexão demandam uma concepção de mapa diferente das que
comumente são utilizadas na ciência cartográfica e, muitas vezes, na cartografia geográfica. Entendo por mapas
as representações gráficas que facilitam entendimentos espaciais de coisas, conceitos, condições, processos ou
eventos no mundo humano (HARLEY; WOODWARD, 1987, p. XVI). A concepção explicitada permite
considerar uma grande variedade de figurações espaciais como mapas, inclusive aquelas classificadas como pré-
históricas, presentes em diferentes suportes como em paredes de cavernas, jarros e outros objetos de cerâmica.
No debate sobre as origens da arte, muitas peças consideradas como artísticas são também classificadas pelos
historiadores da cartografia como mapas. Foi somente na época moderna que os mapas passaram a ser definidos,
rigorosamente, do ponto de vista de sua equivalência ou isomorfia métrica com o real. A concepção de mapa que
adotei, é utilizada freqüentemente por pesquisadores da história da cartografia, educadores e outros profissionais
que possuem uma visão menos alinhada a uma concepção moderna de cartografia, essencialmente cartesiana-
newtoniana pelo fato de ter, na matematização e mecanização do espaço, seus principais fundamentos.
Capítulo 2 172
Ângela Massumi Katuta

Figura 2 − Mapa pictórico, pintura rupestre produzida em Çatal Hüyük, Turquia, em 6 000
a.C., no Neolítico (tamanho original: aproximadamente 3 metros).
Fonte: SMITH, (1987, p. 74).

Figura 3 − Paisagem em Jarro produzida em Tepe Gawra, Iraque, entre 4 000-3 000 a.C.
(diâmetro original: 70 cm)
Fonte: SMITH, (1987, p. 72).

Figura 4 − Mapa pictórico de antiga vila pré-histórica, produzido em Cangyuan, Província de


Yunnan, China, em 1 000 a.C. (tamanho original: 175 X 310 cm).
Fonte: SMITH (1994, p. 5).
Capítulo 2 173
Ângela Massumi Katuta

Figura 5 − Mapa topográfico (Mapa de Bedolina), compósito em pedra, produzido em


Bedolina, Valcamonica, em 1 000 a.C. (tamanho original: 2.30 X 4.16 m).
Fonte: SMITH, (1987, p. 79).

É importante salientar que as figuras apresentadas nos permitem inferir que antes
mesmo do aparecimento da escrita os seres humanos elaboravam figurações espaciais sob as
mais diferentes formas. Expressar espacialidades se colocava como necessidade aos grupos
humanos à época; contudo, dificilmente se pode discutir o uso ou significado atribuído às
figurações espaciais no contexto do momento histórico em que foram produzidas.
Estudos sobre o comportamento animal revelaram que cada uma das espécies possui
procedimentos de mapeamento característicos. Lewis (1987) cita um estudo de caso de lobos
do nordeste de Minnesota, cuja espacialidade recobre aproximadamente uma extensão de 100
a 300 quilômetros quadrados. A cada três semanas, em intervalos regulares, esses animais
deixam sinais olfativos ao longo de rotas estabelecidas na referida área. Notou-se também
uma concentração maior de sinais em entroncamentos e em locais próximos aos limites dos
seus territórios. Este fato evidencia a importância que a delimitação territorial e a noção de
espacialidade têm para a sobrevivência do animal em questão, revelando também a existência
de comportamentos espaciais, como a realização de “mapeamentos”, em outros seres que não
os humanos.
Géza Szamosi, em seu livro intitulado Tempo & Espaço: as dimensões gêmeas, faz
observações relevantes sobre as concepções de espaço e tempo, considerando-as como
padrões construídos pelos seres vivos ao longo de seus processos evolutivos. Ao referir-se, no
Capítulo 3 de seu livro, à cosmologia mamífera afirma que esta:
[...] atingiu um novo estágio com a evolução dos seres humanos. Pois os humanos
não apenas percebem objetos no espaço e no tempo, mas também criam símbolos
para ‘objetos’, para ‘espaço’ e para ‘tempo’. Com o uso dos símbolos humanos,
foram criadas as cosmologias de espaço e tempo simbólicos. (SZAMOSI, 1988, p.
47).
Capítulo 2 174
Ângela Massumi Katuta

Espaço e tempo simbólicos são um dos traços que caracterizam o humano no ser
humano e este somente se realiza, em qualquer sociedade, por meio da linguagem. É isto o
que as cosmologias humanas têm de comum, ou seja, a capacidade de criação simbólica,
característica esta que permite a tecedura das mais diversas concepções de espaço e tempo,
objeto, espaço-temporalidades e linguagens, responsáveis pela elaboração de referências
simbolizantes ou coordenadas semióticas, como as apresentadas nas Figuras 1 a 5. As
figurações espaciais antecedem a escrita, enquanto forma de registro humano, o que evidencia
a relevância dos saberes espaciais para os processos de sobrevivência e humanização da
espécie em questão.
Os pesquisadores citados por Lewis (1987) verificaram também que, a maioria das
mensagens espaciais dos animais é composta por pistas que demarcam o ambiente, e supõem
a presença do receptor na área. Para uma parte considerável dos seres vivos, as capacidades
relacionadas à transmissão e recepção de informações espaço-temporais foram e são,
elementos importantes à sobrevivência de sua espécie. Os primeiros hominídeos não fugiram
à regra, embora devessem ter um comportamento muito diferente dos outros animais e mesmo
dos insetos 246 , cuja determinação genética não lhes proporciona plasticidade ou variabilidade
em termos comportamentais.
Segundo Lewis (1987), nos seres humanos, a consciência espacial e a habilidade em
comunicá-la tomaram formas diferentes daquelas dos outros animais e mesmo dos
hominídeos que os precederam. Os estudos dos registros toponímicos, principalmente de
mapas pré-históricos 247 , indicam que a constituição da linguagem humana e o
desenvolvimento de sua consciência espaço-temporal estão rigorosamente relacionados.
Corroborando a afirmação do autor citado, Wertheim (2001, p. 169), ao estudar as
concepções de espaço desde a cosmologia medieval até os dias atuais, afirma que
psicanalistas lacanianos, no esteio de Freud, acreditam que a própria mente humana tem
estrutura espacial. Ostrower (2002), ao refletir sobre as imagens figurativas, afirma que a

246
Luria em seus estudos sobre a linguagem humana (1986, p. 23-26), ao fazer referência às “linguagens” de
animais e insetos, afirma que elas possuem características diferentes da humana, e utiliza como exemplo a
“dança” da abelha, por meio da qual essa comunica o seu estado de ânimo. Alguns autores como Deleuze e
Guattarri (2002, p. 13-14), apoiados pelas reflexões de Émile Benveniste, em sua obra Problémes de linguistique
génerale, não consideram essa forma de comunicação uma linguagem propriamente dita, pois argumentam que
esses insetos não são capazes de transmitir o que lhes foi comunicado.
247
A cartografia histórica tem feito interessantes reflexões sobre os mapas produzidos pelos antigos, e as
publicações dos professores de geografia John Brian Harley e David Woodward constituem-se um rico material;
destaco a coleção em dois volumes intitulada The History of Cartography. O volume 1 trata da cartografia pré-
histórica, antiga e medieval produzidas na Europa e na área do Mediterrâneo; o volume 2 trata da cartografia
produzida pelas sociedades do leste e sudeste asiáticos.
Capítulo 2 175
Ângela Massumi Katuta

linguagem das formas de espaço se constitui em metalinguagem, referência que antecede a


todos os modos de comunicação humana.
Considerando o exposto, se pode afirmar que existem fortes evidências que apontam
para a relação existente entre concepções de espaço, linguagens e as geografias humanas.
Talvez a mais efetiva seja o fato apontado por Santos D. (1997, p. 27) de que, por enquanto,
inexiste “[...] qualquer referência a sociedades que dispensem o uso da categoria ‘espaço’ ou
de referências derivadas de tal experiência.”
Nesse sentido, pode-se afirmar que as diferentes concepções de espaço engendradas
pelos seres humanos na luta pela sua sobrevivência se expressaram e ainda hoje se expressam
em suas linguagens, que podem ser consideradas como registros e sistematizações de suas
geografias. Dessa maneira, as linguagens devem ser entendidas em uma perspectiva dialógica,
são estruturas estruturadas, porque são constituídas social e espaço-temporalmente em um
modo de produção e somente podem ser utilizadas mediante o processo de aprendizagem
interindividual. São também, ao mesmo tempo, estruturas estruturantes e instrumentos de
dominação, por viabilizarem a constituição de comportamentos, representações, imagens,
figurações espaciais, entendimentos e ações no espaço, sendo expressas sob as mais variadas
formas e voltadas para a realização de inúmeras ações que apontam para projetos societários
os mais diversos, inclusive aquele que propõe a (re)produção do espaço para o capital.
Resultam, por conseguinte, tanto de processos evolutivos quanto do desenvolvimento
cognitivo. Eis a dualidade que caracteriza toda e qualquer produção humana. A linguagem
não foge a regra. É o que tentarei demonstrar no item que segue, abordando especificamente a
cartografia produzida entre o medievo e o Renascimento.
Capítulo 2 176
Ângela Massumi Katuta

2.3.2. As simbologias toponímicas, as racionalidades humanas e o


modo de produção
“Reconhecer a natureza contingente de nossas concepções de espaço não é desvalorizá-las − o
espaço relativístico não é menos útil ou belo porque compreendemos sua inserção cultural. Mas, ao
reconhecer isso, podemos nos tornar menos propensos a desvalorizar outras concepções de
espaço. O fato de vivermos agora com dois tipos muito diferentes de espaço − espaço físico e
ciberespaço − poderia também nos ajudar a ter uma atitude mais pluralista com relação ao espaço
em geral. Em particular, poderia estimular uma maior abertura em relação aos esquemas espaciais
de outras sociedades. [...] nossos esquemas espaciais são não apenas culturalmente contingentes,
como historicamente contingentes. Uma visão definitiva ou suprema de espaço é coisa que não
existe; há apenas um processo perene e aberto em que podemos descobrir constantemente novos
aspectos desse fenômeno interminavelmente fascinante.” (WERTHEIM, 2001, p. 224).

Ao longo da história da humanidade, os seres humanos, ao modificarem por meio do


trabalho as concepções que possuíam de si mesmos, do Outro e dos elementos da natureza,
transformaram as suas noções de espaço e tempo, portanto, suas representações espaciais,
seus mapas e sua própria geografia; aqui entendida como conhecimento ou conjunto de
saberes e ações sobre e nos lugares que garantiu, até o momento, a sobrevivência humana.
Wertheim (2001, p. 27) defende a tese de que:
[...] nossas concepções de espaço e as concepções que temos de nós mesmos estão
inextricavelmente entrelaçadas. Como nós, seres humanos, estamos
inextricavelmente incrustados no espaço, o que pensamos ser deve logicamente
refletir em nossas concepções do esquema espacial mais amplo. Nesse sentido uma
história do espaço torna-se também uma investigação de nossas concepções
cambiantes de humanidade.
A existência de uma sobredeterminação entre as concepções de espaço, espacialidades
e geografias tecidas pelos seres humanos e suas identidades, é lugar comum nos debates
científicos. Ao se transformarem as relações de produção, modificam-se as concepções de
espaço, as espacialidades vivenciadas, os registros toponímicos, suas territorialidades e os
próprios seres humanos, bem como as paisagens nas quais os mesmos vivem, eis a geografia
do real à qual Moreira (2004, p. 177) se refere. A seguir, apresento alguns mapas-múndi
criados em diferentes momentos históricos, que ilustram o que foi afirmado até agora.
Capítulo 2 177
Ângela Massumi Katuta

Figura 6 – Mapa-múndi TO (século XII)


Fonte: Dreyer-Eimbcke (1992, p. 48)
Os mapas TO ou mapas de roda foram produzidos na Idade Média. Os mais antigos
que ainda hoje existem datam do século VIII 248 . “A letra O representa simbolicamente um
anel ou um oval, no qual se acha normalmente inscrito um T que resulta da subdivisão
esquematizada em três continentes.” (DREYER-EIMBCKE, 1992, p. 47). Estão representadas
no mapa a Ásia – porção superior –, a África – porção inferior direita do observador – e por
fim, a Europa. Verifica-se que a Terra Santa, onde estão apresentados Adão, Eva e a serpente,
está situada na porção superior do mapa, orientado sempre para o Oriente, em função da
valorização da espacialidade fundada na cosmologia cristã.
[...] A haste do T é formada pelo mar Mediterrâneo entre a Europa e a África ou
‘Líbia’. O braço setentrional da trave é representado pelo rio Don, pelo mar de
Azov, pelo mar Negro e pela porção oriental do Mediterrâneo entre a Ásia e a

248
Segundo Ginzburg (2001, p. 100 et seq.), o medo e a desvalorização das imagens prevalecem em toda a Idade
Média européia, daí a pequena variedade de mapas e pinturas no período. A imago era entendida como ficção,
abstração, realidade pálida e empobrecida, por isso era desvalorizada. A presentia, palavra ligada há tempos às
relíquias dos santos foi cada vez mais associada à eucaristia. Dessa maneira, em 1215, com a proclamação do
dogma da transubstanciação, o medo das imagens lentamente começa a diminuir. “[...] Aprende-se a domesticar
as imagens, inclusive as da Antigüidade pagã. Um dos frutos dessa reviravolta foi o retorno à ilusão na escultura
e na pintura. Sem esse desencantamento do mundo das imagens, não teríamos nem Arnolfo di Cambio, nem
Nicola Pisano, nem Giotto. A ‘idéia da imagem como representação no sentido moderno do termo’, de que
Gombrich falou, nasce aqui.” (GINZBURG, 2001, p. 102). Mercantilismo, aristocracia e suas territorialidades,
espacialidades, concepções de espaço e imagens nutrem relações muito profundas entre si. Não por acaso, a
Itália e a Holanda se tornaram destacadas produtoras de imagens, seja sob a forma de pinturas ou mapas. Sobre
este assunto ver excelente livro de Svletana Alpers (1999) intitulado A arte de descrever.
Capítulo 2 178
Ângela Massumi Katuta

Europa. O braço meridional é constituído pelo rio Nilo, que separa a Ásia da ‘Líbia’.
(DREYER-EIMBCKE, 1992, p. 47).
A cartografia hegemônica do Ocidente latino no medievo, como todo e qualquer
conhecimento, era elaborada conforme os preceitos bíblicos, sendo as escolas monásticas ou,
de maneira geral, os clérigos seus principais produtores. O mapa de um mundo, criado pelo
Deus cristão, era elaborado a partir da palavra divina revelada por meio da Bíblia, por isso, a
cartografia da Idade Média caracteriza-se por evidenciar a espacialidade hegemônica cristã. A
palavra de Deus escrita na Bíblia, essencial para o entendimento do mundo à época, era
elemento fundamental para a construção de mapas TO. Conseqüentemente, para entendê-los,
se faz necessário um certo domínio da cosmologia cristã presente na Bíblia, especificamente
do livro do Gênesis no Velho Testamento.
Muitos autores tendem a afirmar que os mapas elaborados nesta época expressavam
uma visão subjetiva do mundo, em oposição às imagens consideradas objetivas presentes nos
atuais planisférios 249 . Contudo, gostaria de salientar que se trata de uma afirmação
questionável na medida em que uma tal oposição tem como fundamento uma concepção
absolutista da verdade e do significado do que seja ou não um conhecimento verdadeiro,
expressão da concepção do ideal científico moderno, fundado em uma visão fisicalista e
substancialista de mundo.
Lembremo-nos das sábias palavras de Elias (1998a), que entende que todo
conhecimento tem sido para os seres humanos um meio de orientação, essencial para a
sobrevivência dos grupos sociais. Ora, se a racionalidade cristã bem como seus mapas
perduraram por um longo tempo, foi exatamente porque tais conhecimentos eram
relativamente congruentes com a realidade da época. Atendiam à demanda realizada pela
sociedade naquele momento histórico, portanto, compunham o seu projeto societário. A
divisão entre conhecimento subjetivo e objetivo, nesta perspectiva, deixa de fazer sentido na
medida em que se entende que todo conhecimento é produzido social e espaço-
temporalmente. A idéia da existência de um indivíduo independentemente da dimensão social
é uma falácia. Sociedade e indivíduo nutrem entre si relações dialéticas, contudo, o segundo
somente pode se realizar por meio das determinações sociais.

249
Dentre eles Kimble (2000, p. 235 et seq.), cujo livro intitulado A geografia na Idade Média, faz referência à
cartografia da época, especificamente no Capítulo 8, intitulado Os Mapas na Idade Média. Para o autor: “[...] No
todo, provavelmente é correto dizer que a grande maioria destes mappaemundi são para serem considerados
como obras de arte e não de informação. Seus autores estavam criando algo muito diferente da malha
cartográfica moderna cujo mérito é ser documento essencialmente útil, e por uma construção científica.”
(KIMBLE, 2000, p. 236).
Capítulo 2 179
Ângela Massumi Katuta

Considerando o exposto, a afirmação de que os mapas TO apresentavam uma visão


subjetiva do mundo, pelo fato de não se constituírem em fontes de informações objetivas,
deve ser considerada, no mínimo, temerária. Expressa muito mais nossa incapacidade de
entender ou racionalizar sobre outras noções de espaço, espacialidades e mapas, como
acertadamente afirma Wertheim (2001, p. 53) na epígrafe que abre o presente item e no trecho
que segue: “[...] não somos capazes de conceber um lugar como ‘real’ a menos que tenha uma
localização matematicamente precisa do espaço físico.” Daí muitos autores contemporâneos
usarem os termos virtual, simbólico ou imaginativo para se referirem aos mapas da época,
querendo assim indicar que se tratavam de quase-mapas, pré-mapas ou algo próximo aos
mapas elaborados pelos ocidentais no contexto de sua concepção moderna de espaço que,
nesta perspectiva, é absolutizada ou considerada a única possível.
Bevan e Phillot (apud KIMBLE, 2000, p. 238) afirmam que “[...] um mappamundi
medieval, para ser devidamente apreciado, deveria, num grau considerável, ser visto como um
romance ilustrado.” A despeito das concepções reducionistas ou moderna de espaço,
espacialidade e de mapas utilizados pelos autores, é importante destacar que sua afirmação
indica o caráter ou fundamento narrativo 250 do mapa TO medieval, em oposição ao mapa
moderno, eminentemente descritivo. Evidencia também a oposição entre mapa moderno,
considerado científico em uma perspectiva científica moderna, e mapas que revelam outras
cosmologias, considerados como não objetivos, na visão hegemônica ocidental moderna.
A matéria da descrição é um objeto, ser, coisa, paisagem, sentimento. Supõe uma
representação mais congruente com uma realidade empiricamente existente, daí sua maior
tendência à monossemia. “Descrição miudamente fiel é, como certos quadros, uma espécie de
natureza morta.” (Garcia, 1995, p. 231).
Alpers (1999), ao estudar a arte de descrever por meio da pintura holandesa,
especificamente a partir das obras de Vermeer e Rembrandt, conclui que esta era
eminentemente descritiva, em comparação com a produção italiana, caracterizada pela autora
como sendo narrativa. Ao identificar a pintura holandesa como descritiva, afirma ter nela
existido um impulso cartográfico. Dessa maneira, traça um paralelo extremamente
interessante entre cartografia moderna e pintura; daí a mesma afirmar que, apesar de
atualmente os cartógrafos e historiadores de arte terem concordado em manter a separação

250
Garcia (1995, p. 239) afirma que a matéria da narração é o fato ou um episódio real ou fictício, entendido
como qualquer acontecimento de que o ser humano participe direta ou indiretamente. A narração supõe ação, um
enredo, tendendo, portanto, mais à polissemia do que a uma descrição. É importante salientar que entendo que
inexiste a monossemia e polissemia em si e per si, essas devem ser consideradas no contexto dos jogos de
linguagem socialmente realizados. Um objeto ou linguagem não são monossêmicos ou polissêmicos em si,
dependendo dos usos sociais que deles se fazem, acabam por apresentar maior ou menor grau de polissemia.
Capítulo 2 180
Ângela Massumi Katuta

entre cartografia e arte, essa é uma fronteira que teria “[...] intrigado os holandeses. Pois numa
época em que os mapas eram considerados um tipo de pintura, e em que as pinturas
desafiavam os textos como uma maneira fundamental de compreender o mundo, a distinção
não era nítida.” (ALPERS, 1999, p. 253).
É preciso salientar que, ao contrário do que muitos pensam, o divisor de águas entre as
pinturas e os mapas não é tão nítido quanto parece. Os exemplos mostrados por Alpers (1999)
e os mapas estudados pela equipe de Harley e Woodward (1987, 1994), alguns poucos
apresentados no item anterior do presente Capítulo, demonstram este fato de maneira
inquestionável. Em diferentes momentos históricos, cartografia e pintura se distanciam, se
aproximam, amalgamam, qual o movimento de ritornelo 251 em um grande concerto.
Não por acaso, as imagens, figurações espaciais ou mapas “pré-históricos” estudados
pelo grupo de pesquisadores ligados a Harley e Woodward (1987, 1994) foram, igualmente,
objetos de pesquisa dos historiadores de arte. Também Alpers (1999), como mostrei
anteriormente, tende a questionar em seu estudo uma nítida distinção entre mapas e pintura. É
que, se abordada em sua espaço-temporalidade, a cartografia produzida pelos seres humanos
nem sempre esteve fundada em uma concepção moderna de espaço. Subjacente a toda
cartografia existem diferentes concepções de espaço, que não são as mesmas porque o modo
de produção, bem como as relações sociais que os seres humanos estabelecem entre si e com
o meio que os circunda e suas territorialidades são diferentes. Conseqüentemente, seus mapas
e geografias serão diferentes.
Ao defendermos a existência de uma nítida separação entre mapas e pinturas estamos
descolando ambas as produções dos seus contextos espaço-temporais de realização, negamos
as linguagens como práxis, enquanto relações humanas que são e, portanto, os jogos de
linguagem nos quais elas se realizam. Este habitus é próprio da cosmologia ocidental
hegemônica que, ao enfatizar a identidade do objeto descolada das relações sociais na qual a
mesma é tecida, tende a estancar o movimento do conhecimento. Retiramos tais produções do
âmbito das práxis humanas e as diferenciamos somente a partir de sua forma, expressão de
uma concepção moderna e hegemônica de espaço.
Na perspectiva científica moderna de mapa, fundada na concepção de espaço
cartesiano-newtoniano-kantiano, são poucas as sociedades humanas que possuem mapas. Este
entendimento me parece insustentável, dado que a própria sobrevivência dos seres humanos

251
Em um concerto clássico, a volta de todos os instrumentos da orquestra após um solo instrumental.
Capítulo 2 181
Ângela Massumi Katuta

implicou, necessariamente, a constituição e tecedura de cartografias, mapas e geografias com


graus de congruência com o real, adequados a cada formação social e modo de produção.
É importante destacar que uma distinção rígida entre cartografia e pintura somente faz
sentido no contexto do habitus ocidental hegemônico que, ao cindir razão e sensibilidade,
valoriza a primeira, portanto o mapa cartesiano-newtoniano, bem como as noções de espaço
euclidianas e projetivas 252 e as figurações espaciais que as expressam, que permitirão, nesta
perspectiva hegemônica, o entendimento geográfico do mundo. Eis a opção por noções de
espaço e espacialidades realizada no contexto de um determinado modo de produção que, por
meio das relações sociais, definirá a identidade dos objetos e sua legitimidade.
Observa-se nos exemplos citados a oposição característica da cosmologia ocidental
hegemônica presente no raciocínio da identidade fundada na aparência, descolada do sujeito:
ou uma figuração espacial é objetiva ou não, é mapa ou não. Esta oposição é perniciosa na
medida em que nega o pensamento dialético ao aceitar a “dualidade destruidora 253 ”,
rompendo com a possibilidade de pensar o ser como sujeito e objeto ao mesmo tempo: “[...] a
separação tradicional entre sujeito e objeto transforma-se em uma modalidade específica de
autodeterminação consciente e não-consciente.” (SILVA, 1986, p. 53). Entendo que, talvez, o
raciocínio mais adequado a utilizar em relação aos mapas seja o de maior ou menor grau de
objetividade que, é bom lembrar, não existe per si; trata-se sempre de uma relação entre o
que, nas relações sociais, é considerado mais ou menos legítimo, mais ou menos verdadeiro e
mais ou menos objetivo.
Entendo que o mapa TO é uma figuração espacial que expressa a cosmologia
hegemônica do medievo, bem como sua espacialidade, portanto, sua concepção de espaço
fundada em elementos qualitativos e não quantitativos, a métrica do espaço não possuía tanta
centralidade naquele modo de produção.
Via de regra, os escritos modernos sobre a produção cartográfica do referido período
indicam a dificuldade dos pesquisadores em entenderem as noções de espaço, portanto, as
espacialidades do medievo. Esta dificuldade pode também ser entendida como um indicativo
da valorização de uma visão suprema e absolutista do espaço, que aponta para a negação dos
esquemas espaciais de outras sociedades, bem como de suas territorialidades e geografias.
Não por acaso, na geografia hegemonicamente ensinada pelas escolas de massas, se estuda e

252
De maneira bem simplória, são as noções de espaço que se referem, respectivamente, à métrica, às distâncias
e extensões e às projeções, perspectivas.
253
Termo usado por Pankow (1988, p. 185).
Capítulo 2 182
Ângela Massumi Katuta

dissemina a moderna noção de espaço, lentamente produzida para e pelo capital. Por isso,
afirma Wertheim (2001, p. 55):
Não há palavras capazes de explicar o ‘lugar’ que não está em parte alguma, o ‘ponto’ que está em toda
parte. Nenhuma metáfora pode descrever a fusão de corpo e alma na Unicidade que para os cristãos medievais
era a fonte de tudo. No instante dessa visão beatífica, a linguagem finalmente falha a um de seus maiores
expoentes. Espaço do corpo e espaço da alma amalgamaram-se num espaço único. O mistério está além da
intelecção.
A linguagem falha porque cada noção de espaço e, portanto, as espacialidades
engendram diferentes linguagens. “[...] Assim como o ciberespaço não pôde ganhar existência
até que novos tipos de linguagem para a comunicação eletrônica fossem desenvolvidos, assim
também qualquer novo tipo de espaço requer o desenvolvimento de uma nova linguagem.”
(WERTHEIM, 2001, p. 223). Em outras palavras, o desenvolvimento da linguagem –
estrutura estruturada, estruturante e instrumento de poder – é a condição para a realização da
espacialidade humana e, portanto, para a construção de sua noção de espaço, seus territórios e
suas geografias. Espacialidades diferentes, necessariamente, se expressam-realizam por meio
de linguagens igualmente diversas.
A seguir, está apresentado o mapa-múndi produzido por Macróbio em 1483 e,
subseqüentemente, um outro, datado de 1850/51 produzido por John Tallis & Co, que usa a
projeção de Mercator para apresentar a rota da viagem realizada pelo capitão Cook:

Figura 7 – Mapa-múndi de Ambrósio Macróbio (1483)


Fonte: Dreyer-Eimbcke (1992, p. 118).
Capítulo 2 183
Ângela Massumi Katuta

Figura 8 – Mapa moderno produzido por John Tallis & Co. (1850/51)
Fonte: Dreyer-Eimbcke (1992, p. 187).
Se compararmos as Figuras 6 e 7, pode-se verificar que subjacente às mesmas temos
concepções diferenciadas de espaço, portanto de espacialidades, cosmologias e geografias. No
mapa de Macróbio, pode-se verificar que há um aumento significativo das massas de água em
relação às terras emersas, ao contrário do mapa TO. Aparecem também outros continentes e
locais, ao mesmo tempo em que suas localizações começam a se tornar mais congruentes com
o real.
É no período situado entre o Medievo e o Renascimento que os mapas vão se tornando
mais descritivos que narrativos. Não por acaso, muitos deles, cada vez com maior freqüência,
passam a apresentar a palavra Descriptio. Segundo Alpers (1999, p. 247) “[...] Esse era um
dos termos que mais se usavam para designar o empreendimento cartográfico. Os autores ou
editores de mapas eram referidos como ‘descritores do mundo’, e seus mapas ou atlas como o
mundo descrito.” Observa-se que foi exatamente na passagem do modo de produção feudal
para o capitalista que ocorreu a constituição da crença ocidental no isomorfismo entre a
linguagem e o objeto que ela representa. O mapa passa a ser entendido como instrumento de
descrição do mundo tal qual ele é, ocultando-se as relações entre modo de produção e
produção cultural, entre mapas cartesianos-newtonianos, o habitus das classes sociais
hegemônicas e as espacialidades a elas inerentes.
Capítulo 2 184
Ângela Massumi Katuta

Apesar de inexistir uma exata separação entre narração e descrição, Alpers (1999) nos
chama a atenção para a necessidade da distinção entre as tendências narrativas e descritivas
em pinturas e mapas. Isso porque elas podem nos auxiliar no discernimento entre esses dois
modos de produzir figurações espaciais. “[...] Descritivo é, de fato, um modo de caracterizar
muitos dos trabalhos que estamos acostumados a qualificar de realistas.” (ALPERS, 1999, p.
30). Tais obras se caracterizam pela quietude ou imobilidade, sintoma da oposição existente
entre estas e os pressupostos da arte narrativa.
“Parece haver uma proporção inversa entre descrição atenta e ação: a atenção à
superfície do mundo descrito se faz em detrimento da representação da ação narrativa.”
(ALPERS, 1999, p. 30). Para a autora, “[...] as imagens descritivas, pelo menos no século
XVII, eram fundamentais para a compreensão ativa do mundo pela sociedade.” (ALPERS,
1999, p. 31). Eis o ponto de vista ou a crença moderna que a geografia da leitura ou escolar
irá também assumir no século XVIII e, com maior eficácia, no XIX, no processo de
disseminação da territorialidade das escolas voltadas para os trabalhadores.
Foi Panofsky que, ao comentar a obra descritiva do holandês Jan van Eyck, fez uma
brilhante caracterização da descrição:
[...] opera como um microscópio e como um telescópio ao mesmo tempo [...] o
observador é compelido a oscilar entre uma posição razoavelmente afastada da
pintura e várias posições muito perto dela [...] Nem um microscópio nem um
telescópio se prestam para observar a emoção humana. [...] A ênfase antes é na
quietude que na ação. [...] Medido pelos padrões ordinários, o mundo do Jan van
Eyck maduro é estático. (PANOFSKY, apud ALPERS, 1999, p. 30).
Dessa maneira, fica óbvia a diferença entre o mapa TO, narrativo, e os mapas de
Macróbio e de John Tallis & Co, nesta perspectiva, tendendo e apontando para a descrição.
Por meio da comparação das Figuras 6, 7 e 8, nota-se também que, com o passar dos anos,
cada vez mais o mapa ocidental hegemônico avança rumo à descrição.
É importante salientar que na pintura, principalmente a partir do século XIX, ocorre
um movimento diametralmente oposto ao da cartografia bem como da geografia
hegemônicas. Isso porque nesse campo artístico passa à existência um sentimento de
menosprezo às obras descritivas que, aparentemente, representavam tudo o que existia na
natureza “de maneira exata” e “não seletiva” 254 .
O referido sentimento se tornará cada vez mais fortalecido entre a aristocracia e as
elites urbanizadas e letradas da Europa, o que levou a uma certa desvalorização da arte
descritiva. Alpers (1999) entende esse processo como resultante do desprezo que os grupos

254
Eis um exemplo didático que mostra que a exatidão e a seleção são idéias social e espaço-temporalmente
construídas e legitimadas por grupos hegemônicos.
Capítulo 2 185
Ângela Massumi Katuta

hegemônicos europeus cultivavam em relação aos camponeses da Holanda setentrional: “[...]


único lugar na Europa da época onde mais de cinqüenta por cento da terra era propriedade de
camponeses. [onde] Diferentemente de outros países, o poder senhorial era fraco ou
inexistente.”(ALPERS, 1999, p. 286).
O fundamento do sentimento de desprezo das classes hegemônicas para com a arte
descritiva residia, segundo Alpers (1999, p. 31-32), no primado da mente sobre os sentidos, na
valorização da instrução sobre a ignorância. Afinal, para entender a arte narrativa fazia-se
necessário ter domínio sobre a história a qual ela se referia, disponibilizada ou por meio da
tradição oral ou, a partir do advento da imprensa ocidental 255 , por meio da linguagem escrita,
inicialmente acessível apenas às elites. A arte descritiva apenas deleitava aos olhos e, do
ponto de vista do seu consumo, como a concebemos hodiernamente, essa produção nasce com
os holandeses 256 . O desprezo pela arte descritiva revelava o temor da decadente aristocracia
européia pelos camponeses e os novos ricos que despontavam no horizonte social.
O mapa de Macróbio aponta para as radicais mudanças que as noções de espaço, as
espacialidades hegemônicas e as imagens do mundo irão sofrer junto aos ocidentais nos
séculos posteriores. A Terra se encontra dividida em zonas, já se vislumbra um exercício de
classificação – zona frígida, incógnita, antípoda –, as superfícies de água aumentam, o que
equivale dizer que este mapa, em comparação com o TO, primou ou valorizou uma maior
congruência com a realidade fundada na métrica, essencial ao desenvolvimento do capital.
Embora as lendas ainda nele estejam presentes, se compararmos os três mapas (Figura 6, 7 e
8), podemos afirmar que o de Macróbio sinaliza ou indica a mudança de ventos nos rumos da
cartografia e da própria geografia em direção à descrição, o que as levou a distanciarem-se da
narração 257 .

255
Os primeiros livros impressos foram feitos por chineses e japoneses no século VI. No século XV, o ourives
alemão Johannes Gutenberg criou a imprensa de tipo móvel, método de impressão que permitia imprimir
grandes quantidades de páginas a baixo custo, em um menor tempo. (BENDER, 1994, p. 26-27). Observa-se já
no período em questão, o emprego da lógica do capital: produzir mais, a custos cada vez mais baixos em menor
tempo.
256
Sobre esse assunto ver Alpers (1999).
257
Segundo Alpers (1999, p. 31) Leon Battista Alberti afirmará que a storia na pintura (narrativa) “[...]
comoverá a alma do observador quando cada homem aí pintado mostrar claramente o movimento de sua alma. A
história bíblica do massacre dos inocentes, com suas hordas de soldados enfurecidos, crianças moribundas e
mães aflitas, foi o epítome daquilo que, deste ponto de vista, a narração pictórica e portanto a pintura devem
ser.” É interessante destacar que a pintura narrativa tinha como foco os seres humanos e não a natureza,
concebida à época como imóvel e imutável.
Capítulo 2 186
Ângela Massumi Katuta

2.3.3. A (re)produção do espaço do e para o capital, a assunção de


espacialidades e o processo de estrangeirização discente
“O surgimento da burguesia, por sua vez, vai exigir uma nova leitura. As coisas deixam de ser
“coisas em si” para serem em potência, isto é, para serem entendidas como matérias-primas. [...]
Tais mudanças obrigam a um deslocamento do sujeito − ao se olhar o mundo em perspectiva é
possível a um mesmo sujeito estabelecer, muito além de uma hierarquia locacional, uma leitura
multidirecionada do fenômeno, isto é, vê-lo sob diversos ângulos sem estar, necessariamente,
presente em nenhum.” (SANTOS, D., 1997, p. 160).

O incremento do comércio, inicialmente na bacia mediterrânea, e seu posterior


espraiamento, a perda crescente do poder pela Igreja, o fortalecimento da aristocracia e
posteriormente, da burguesia, a constituição dos Estados aristocráticos e modernos, a
laicização do saber, portanto, das idéias e das linguagens, das crenças e das práticas,
expressões das lentas transformações no modo de produção, engendraram uma cartografia e
uma geografia voltadas para a prática do comércio e da navegação, fundamento do seu
desenvolvimento rumo à descrição. Daí a cartografia e geografia hegemônicas terem se
orientado para a descrição, para a quantificação e valorizarem as noções euclidianas e
projetivas de espaço em detrimento da qualidade e das noções de espaço topológicas.
O que se verifica nos mapas produzidos aproximadamente entre os séculos XV e XVI
é que, com as navegações e o mercantilismo, ocorre um esgarçamento do tecido da cartografia
e geografia cristã, suas urdiduras e teceduras já não mais auxiliam na racionalização
hegemônica do mundo. Uma outra malha de racionalidade é exigida: o cartesianismo emerge
como resposta às demandas da espacialidade burguesa que estava a se disseminar pelo
mundo. A exatidão da localização e descrição dos corpos, dos continentes, nas representações
cartográficas e geográficas passa a ser perseguida 258 com afinco, por ser a condição para o
domínio capitalista de outros territórios e de tudo o que neles existia.
Representar a esfera em um plano, que torna visível toda a superfície terrestre, a fim
de visualizá-la de maneira onisciente − expressão do desejo de dominação e onipotência dos
segmentos burgueses em processo de hegemonização −, e descrever as potencialidades
econômicas de seus recursos naturais expressam uma transformação cosmológica e, portanto,
do processo civilizador, do olhar, fundamental para a realização do modo de produção
capitalista, como indica Santos D. (1997, p. 160) na epígrafe do presente item.

258
Segundo Santos D. (1997, p. 258), à época de Luiz XIV foi fundada a Académie Royale (1635), que oferecia
altos salários a quem se dedicasse a pesquisas astronômicas e cartográficas. “A criação da Académie tinha por
objetivo construir mapas precisos, tanto de Paris quanto da França e do mundo todo. Na época já era claro que o
desenvolvimento de uma cartografia precisa resultaria, independentemente da escala, na possibilidade de um
melhor planejamento – tanto das viagens e, portanto, do comércio exterior e controle das colônias, quanto da
ação interna do poder do Estado.”
Capítulo 2 187
Ângela Massumi Katuta

Aos poucos, com as navegações e o capitalismo em sua face mercantil, a Terra vai
ganhando a conformação que atualmente conhecemos. Outras terras emersas passam a
compor o mundo conhecido. Em relação ao (re)aparecimento de uma porção maior de terras
austrais nos mapas europeus, como é o caso daquele elaborado por Macróbio presente na
Figura 7, Dreyer-Eimbcke (1992, p. 116) afirma que:
Sob a influência do cristianismo, foi caindo em esquecimento a ciência da
esfericidade da Terra. Durante quase mil e quinhentos anos, a Terra era considerada
um disco, e qualquer opinião contrária acabou considerada heresia. Assim, a idéia de
um continente austral sobreviveu apenas a uma tradição árabe, de onde retornou ao
Ocidente no decorrer das cruzadas, voltando então a se tornar patrimônio comum
dos estudiosos na época das grandes descobertas.
Verifica-se que o resgate da idéia da esfericidade da Terra é realizado em um contexto
de expansão comercial, período em que as noções métricas de espaço passam à hegemonia.
Para ilustrar o que foi afirmado, resgatemos novamente Wertheim (2001, p. 23), que afirma
que entre o Renascimento e a
[...] ‘revolução científica’ do século XVII – ocorreu uma profunda mudança, tendo a
atenção ocidental se desviado cada vez mais do conceito teológico de alma para a
concretude física do corpo. Desde o Iluminismo, no século XVIII, vivemos numa
cultura que tem sido esmagadoramente dominada por preocupações não espirituais,
mas materiais. Em suma, no Ocidente moderno vivemos numa era profundamente
materialista e fisicalista.
O que se verifica no processo de transição do Feudalismo para o Capitalismo, período
no qual foram produzidos os mapas apresentados nas Figuras 6, 7 e 8, é uma lenta mudança
na cosmologia ocidental hegemônica, portanto, em suas linguagens e racionalidades, em suas
espacialidades, concepções de espaço, figurações espaciais, territorialidades, geografias e
cartografias. Recorramos mais uma vez a Santos D. (1997, p. 43), que habilmente sintetiza os
movimentos responsáveis pela criação das novas noções de espaço, que rapidamente se
tornaram hegemônicas:
Da terra fixa à construção de uma concepção de planeta móvel, girando em torno de
si mesmo e do centro do Universo (o Sol), do mapa em TO ao mapa de Mercator, da
Europa como centro do Universo à Europa como continente hegemônico (na parte
de cima e ao centro dos mapas), da relação de suserania à propriedade privada da
terra agrícola, dos caminhos à construção de estradas, dos feudos à retomada das
cidades, o que se observa é uma transformação radical na concepção ocidental de
espaço e espacialidade fundada, inclusive, na apropriação e transformação
generalizada de novos (e, até então, desconhecidos) territórios. Se é possível afirmar
que a construção da sociedade burguesa pressupõe um redimensionamento da noção
de tempo, o que se quer é evidenciar a dimensão espacial dessa dinâmica e, portanto,
em que medida a construção de novas relações sociais reconstrói, de um lado, o
arranjo paisagístico tanto da Europa quanto das novas terras conquistadas e, de
outro, como e por que tais transformações expressam-se também, na constituição do
discurso científico.
O espaço métrico euclidiano e projetivo, como afirma Santos D. (11997, p. 264), se
coloca, no contexto do novo modo de produção, como categoria articuladora do pensamento
sobre o real, fundamental na (re)produção das novas relações sociais e paisagens. Afinal de
Capítulo 2 188
Ângela Massumi Katuta

contas, é preciso saber se deslocar no espaço em direção às áreas fornecedoras e


consumidoras de mercadorias, é preciso mapear a localização das matérias-primas, verificar
seu potencial de exploração. A linguagem a ser utilizada para o conhecimento-mapeamento
do mundo lentamente se transforma, porque assim também ocorre com as demandas sociais e
o modo de produção em curso.
Mudam as linguagens, as racionalidades, as concepções de espaço, as geografias,
porque mudam os modos hegemônicos de produção da existência humana. O mapa, bem
como a geografia que doravante serão ensinados-disseminados à população instrumentalizam
para um eficiente deslocamento e exploração da natureza, em uma superfície terrestre cuja
extensão passa a ser considerada como característica primordial ou essencial, expressão do
olhar burguês sobre o mundo e do processo de violência simbólica encetado por essa classe
social.
Dessa maneira, as relações espaciais euclidianas e projetivas foram valorizadas em
detrimento das topológicas, o que sinaliza a ocorrência de uma “[...] ‘abstraction
mathématique de l’espace’ 259 que quantifica a experiência total do homem − através da
geometria euclidiana e da criação, conseqüente, de um conceito cognitivo do espaço − e as
tramas emotivas, ‘existenciais’.” (BERTANINI, 1985, p. 119).
Ao enfatizar uma concepção geométrica uniforme e quantitativa de espaço, a
cartografia moderna distancia-se da narrativa, tornando-se expressão da res extensa
cartesiana. Eis, na perspectiva da transformação da linguagem cartográfica, e sua conseqüente
assunção pela escola, o processo de estrangeirização ou alienação do ser. A escola passa a
promover o estancamento do saber, por meio do ensino da geografia, ao enfatizar o espaço
geométrico em detrimento da concepção qualitativa ou topológica da qual se originam as
noções de espaço euclidianas e projetivas.
Segundo Bertanini (1985, p. 120), “A maior parte de nossas ações − como já vimos
pela análise de Piaget e Inhelder − é orientada segundo relações topológicas do tipo: dentro-
fora, longe-perto, separado-unido, contínuo-descontínuo, alto-baixo.” Cria-se no contexto de
assunção de uma espacialidade hegemônica − euclidiana e projetiva, a ruptura ou dobra entre
a geografia real e a da leitura ou da escola, a primeira fundada essencialmente em aspectos
qualitativos ou topológicos do espaço e a segunda, orientada pela uniformidade matemática de
um mundo quantificado, fundado na métrica euclidiana e na geometria projetiva.

259
Abstração matemática do espaço. Grifo da autora.
Capítulo 2 189
Ângela Massumi Katuta

Ao ponto de vista qualitativo sobre o mundo opõe-se outro essencialmente


quantitativo, negando-se assim a dialética e o movimento, necessários à realização do
conhecimento. Da ênfase às singularidades que desconsiderava particularidades e
generalidades, passa-se a focalizar as generalidades em detrimento das particularidades e
singularidades. É que tanto no Medievo quanto no Renascimento negou-se o movimento
dialético por meio do qual se realiza o conhecimento voltado à autonomia intelectual: a
passagem da singularidade para a particularidade e generalidade em seus infindáveis
movimentos e transformações. É por meio desse processo que ocorre a estrangeirização
discente no ensino da geografia hegemônica.
Com a ênfase escolar no mapa e na cartografia modernos, a noção quantitativa de
espaço − euclidiana e projetiva − passa à realidade, alcançando hegemonia. Mapa e
cartografia hegemônicos doravante serão concebidos apenas como instrumentos que
localizam áreas ou pontos na superfície terrestre com exatidão e que possibilitam a realização
de um deslocamento eficiente, em um espaço uniforme, expressão da espacialidade burguesa.
A assunção, a priori, da espacialidade moderna uniformiza o olhar e as práticas
espaciais, levando à negação de outras espacialidades em proveito daquela engendrada pela
burguesia. Ocorre com isso a ruptura cognitiva com as espacialidades construídas pelos
discentes. Rompe-se com a concepção topológica de espaço e, portanto, com a corporeidade
humana, requisito de toda espacialidade 260 . Ao negarem-se outras espacialidades, viabiliza-se
a (re)produção do espaço do e para o capital. Lembremo-nos novamente dos alertas feitos por
Gramsci (apud MOREIRA, 1994): a reprodução do modo de produção capitalista implica
também a submissão cultural. Assim, ao tornar sua espacialidade e concepção de espaço
universal e hegemônica por meio da escola, os segmentos dominantes da sociedade viabilizam
a (re)produção do espaço para o capital.
Considerando-se as idéias explicitadas, verifica-se a ruptura com uma concepção
qualitativa de espaço e a assunção daquela geométrica e, portanto, a desvalorização das
noções de espaço topológicas em favor das euclidianas e projetivas, lentamente valorizadas
pela burguesia então em vias de constituir sua hegemonia, desde o final do Medievo e início
do Renascimento.
O processo de hegemonia econômica da burguesia marca também a consolidação de
seu poder simbólico: o espaço geométrico, mensurável, alça o patamar de cientificidade,
doravante será real e verdadeiro o espaço físico engendrado no contexto da concepção

260
Sobre esse assunto ver Bertanini (1985).
Capítulo 2 190
Ângela Massumi Katuta

“científica” moderna. É essa concepção de espaço que se encontra na atual configuração do


mapa. A mensuração do mundo e sua representação cada vez mais exata passam a ser tão
importantes que a cartografia ganha foros de ciência, alçando independência em relação à
geografia, na mesma época em que a última se institucionaliza enquanto ciência.
Considerando-se o exposto, pode-se afirmar que o léxico “cartografia”, como o
concebemos atualmente em sua face quantitativa, é uma invenção humana recente, expressão
das demandas do capital. Segundo Oliveira (1993, p. 84), o mesmo foi criado pelo historiador
português Visconde de Santarém, em 8 de dezembro de 1839, em uma carta escrita em Paris
destinada ao historiador brasileiro Adolfo de Varnhagen. Antes de esse termo ser divulgado e
consagrado, fato que ocorreu na segunda metade do século XIX, o vocábulo tradicionalmente
usado para identificar esse tipo de atividade era cosmografia, termo também entendido como
descrição geral do Universo.
É no século XX que ocorrerá a normatização do que doravante se deverá entender por
cartografia, tendo a Associação Cartográfica Internacional (ACI) papel central nesse processo.
Foi ela quem acabou por definir essa atividade nos seguintes termos: “Conjunto de estudos e
operações científicas, artísticas e técnicas, baseado nos resultados de observações diretas ou
de análise de documentação, visando à elaboração e preparação de cartas, projetos e outras
formas de expressão, bem como a sua utilização.” (OLIVEIRA, 1993, p. 84).
A consagração e divulgação de um léxico em detrimento de outro, anteriormente
utilizado, devem ser entendidas como substituição aleatória ou esse fato pode ser tomado
como um indício de alguma mudança no olhar e nas idéias de determinados grupos sociais?
Segundo Bosi (2002, p. 78), “É no uso das palavras que os homens trançam os fios lógicos e
os fios expressivos do olhar.” Isso significa dizer que a elaboração, adoção, divulgação e
consagração de um léxico podem ser entendidas como expressões de modificações ocorridas
nos entendimentos do mundo dos grupos humanos.
A comparação do significado social atribuído à palavra cosmografia com a definição
da ACI para o vocábulo “cartografia” remete a um processo de transformação cosmológica
profunda, cuja formatação final ocorreu em meados do século XVII, período em que ocorreu
o processo atualmente conhecido como Revolução Científica Moderna.
A própria elaboração da definição do vocábulo “cartografia” por uma associação
profissional internacional expressa a mudança dos fios lógicos e expressivos na relação da
sociedade com o saber cartográfico por ela produzido. Doravante o cartografar científico deve
ser realizado por profissionais especialmente preparados para o ofício e os estudos que visam
Capítulo 2 191
Ângela Massumi Katuta

à elaboração de cartas científicas devem ser realizados a partir de observações diretas ou


indiretas por meio de consultas documentais.
A expressão “descrição geral do Universo” remete a uma concepção de conhecimento
ancorada na cosmologia medieval cristã, genuinamente dualista segundo Wertheim (2001, p.
24), pois consistia de duas ordens, uma metafísica e outra física. A cosmologia medieval era
fundamentalmente antropocêntrica; nela, o homem era considerado, em uma perspectiva
metafísica, o centro do universo que, por sua vez, era “[...] um lugar pequeno e finito e era o
lugar do homem. Ele ocupava o centro; seu bem era a finalidade da criação natural.”
(BURTT, 1991, p. 12). Verifica-se que a referida concepção de Universo, proporcionou a
tecedura dos fios lógicos para sustentação da crença de que era possível descrevê-lo,
possibilitando a realização de uma cosmografia.
Com a constituição e consolidação das idéias mecanicistas, as modificações na
cosmologia ocidental e a assunção pelos cientistas da idéia de um Universo sem forma e
infinito, permeado de um espaço ilimitado e vazio, sua descrição torna-se, sobretudo, uma
impossibilidade lógica. Daí o abandono de um vocábulo (cosmografia), elaboração e
consagração de outro (cartografia), que reconstituísse, também pelo poder das palavras, os
fios lógicos de sustentação de um fazer e de um olhar que, após o século XIX, se realiza a
partir de uma linguagem específica como a cartográfica que visa a atividades igualmente
específicas.
A criação, e conseqüente disseminação dos produtos cartográficos, não constitui
marco de início ou das origens das atividades cartográficas humanas. Acreditar nisso seria
desmerecer todos os estudos sobre história da cartografia que até hoje têm sido realizados, que
tentam desmistificar a idéia de que outros povos, principalmente aqueles denominados de
“primitivos”, não elaboravam seus próprios mapas. Possuir, ou não, noções vagas, palavras,
conceitos claros e definidores de um objeto ou ação, expressa diferentes níveis de síntese,
mais ou menos elevados 261 na perspectiva das diversas possibilidades de sistematização dos
saberes. O fato de uma população não possuir palavras para exprimir os atos e produtos do
ensejo de cartografar não significa que ela não realize sua própria cartografia.
O ato de cartografar, ou seja, elaborar representações gráficas que facilitam
entendimentos espaciais de coisas, conceitos, condições, processos ou eventos no mundo
humano – conceito de Harley e Woodward (1987) –, remonta aos primeiros seres humanos

261
Estou adotando a taxonomia de Elias (1998b). O autor define como nível de síntese elevado elaborações
intelectuais mais sistematizadas, as menos sistematizadas são classificadas por ele como possuindo um baixo
nível de síntese.
Capítulo 2 192
Ângela Massumi Katuta

modernos, como bem mostram as Figuras de 1 a 5, no presente Capítulo. Apesar disso, ao


longo da própria história da cartografia, se considerarmos da pré-história até os dias atuais,
podemos verificar a existência de mapas que exigiam diferentes níveis de síntese. A
cartografia e os mapas de uma época expressam as concepções de espaço e a geografia dos
grupos sociais hegemônicos. Construir simbologias toponímicas foi uma necessidade
colocada aos seres humanos desde os seus primórdios.
Se, por um lado, a linguagem cartográfica hegemônica se orientou rumo à exatidão
matemática, a possibilidade do entendimento, pelo ser humano, de seu espaço vivido no
capitalismo refluiu. Isso porque a espacialidade (re)produzida pela escola de massas foi a
colocada hegemonicamente pelo capital. Lembremo-nos mais uma vez das sábias palavras de
Pankow (1988, p. 17): “O homem em harmonia com seu espaço tem necessidade de
referências simbolizantes. Para que o corpo encontre um lugar reconhecido, a linguagem deve
situar o homem em suas relações com o outro.” Não por acaso é na Modernidade que surge
uma geração de artistas, principalmente pintores e escritores, conhecidos como malditos, que
eram pessoas que expressaram sua desarmonia com o espaço do e para o capital por meio de
seus quadros e obras literárias que se contrapunham à espaço-temporalidade do modo de
produção capitalista.
Fundados no paradigma da acumulação capitalista, que tem como valores
fundamentais a quantificação, mensuração, generalização, homogeneização por meio do
isomorfismo operado pela matematização do real, os símbolos toponímicos e seus respectivos
registros e linguagens, engendrados sob este modo de produção, expressam a hegemonização
de um conceito cartesiano-newtoniano-kantiano de espaço, descrito por Moreira (1999, p. 55)
como “[...] separado, externo, universal, dessensibilizado do homem, e, por isso, agregador a
partir do de fora [...]”. Eis a concepção de espaço com a qual a geografia hegemônica escolar
atualmente trabalha e que a cartografia registra com exatidão. Daí não ser de todo estranho
que nossos alunos não se reconheçam em seus discursos e linguagens. Tornar-se O
Estrangeiro neste mundo não constitui opção, é a condição para e da alienação e, portanto,
para a reprodução do espaço do e para o capital. Espaço, modo de produção, sujeito,
identidade, linguagem, subjetivação e racionalidade nutrem entre si relações dialéticas.
Ferraz (2001, p. 227) confirma, em sua tese de doutoramento, a opção da geografia
institucional pela concepção de espaço cartesiano-newtoniano-kantiano:
[...] a organização deste saber em bases científicas acadêmicas só veio ocorrer na
segunda metade do século XIX, justamente o século auge da pintura de paisagens262 ,

262
Pintura descritiva.
Capítulo 2 193
Ângela Massumi Katuta

mas o conhecimento geográfico institucional muito pouco dialogou com essas


expressões pictóricas, cedo preferiu a idéia de reprodução realista da fotografia,
casando essa reprodução não como diálogo com a imagem, mas como ilustração de
um discurso científico reduzido a conceitos e a idéia de verdade absoluta.
É por isso que, no discurso da geografia que se ensina, o mapa ilustra a descrição da
natureza. A repetição mecânica e a invenção técnica da natureza, estudada por Moreira (2004,
p. 148), estão presentes no discurso escolar, sendo a geografia que se ensina um exemplo
didático desta presença. A aprendizagem de seus conteúdos se dá pela repetição, maneira esta
de subjetivar a cultura da repetição que, segundo Moreira (2004, p. 150-151):
[...] faz parte da velha tradição cultural da metafísica, segundo a qual há algo no
mundo que é sempre universal, sempre constante, na composição da ossatura do
mundo. Algo que está onipresente em cada detalhe do diverso, agindo para
padronizá-la sob um arcabouço eterno [...] Mas na modernidade, expressando um
pacto estabelecido desde o Renascimento entre a ciência e a religião, sob o olhar
rigoroso da metafísica, foi ela inventada para os fins próprios de organizar o mundo
do capitalismo. Na sociedade moderna esse algo é a repetição matemático-mecânica
porque sua função é aqui a de assentar a base técnica da reprodução capitalista.
Assim, o capitalismo não inventou a repetição, a diversidade, e a contradição que há
entre elas; reinventou-as, para dar-lhes um novo molde, o molde capitalista, do
mesmo modo como fez com os seres humanos, reinventando-nos para dar-nos o
molde social que hoje concretamente somos.
Na perspectiva da linguagem cartográfica, poder-se-ia dizer que o desenho da rede dos
paralelos e meridianos, juntamente com as projeções, são exemplos da transformação do que
Moreira (2004) denominou de “ossatura do mundo”. Por meio delas moldou-se o mundo, o
discurso sobre ele e as pessoas que nele vivem, bem como seus entendimentos sobre o real.
Transforma-se o modo de produção e reinventa-se os seres humanos, seu mundo, suas
espacialidades.
Por mais estranho que pareça, as grades que permitirão uma rigorosa localização e
descrição do mundo podem ser tomadas como uma metáfora do aprisionamento do Planeta e
de tudo o que nele existe a um padrão de repetição matemático-mecânica que garantirá o
assentamento da base técnica para a reprodução capitalista. Doravante somente o mapa
moderno, cujo molde já há muito se conhece, será enquadrado enquanto representação
cartográfica. Os conceitos, qual as grades dos paralelos e meridianos, acabam por engessar,
enrijecer, aprisionar, padronizar, nosso entendimento do mundo. A cultura da repetição supõe
a identidade rígida, a separação sujeito-objeto, a eliminação da dialética, do Outro, da
diversidade das espacialidades e noções de espaço.
Não por acaso, Oliveira (1993, p. 322) define mapa em seu dicionário cartográfico
como:
Representação gráfica, geralmente numa superfície plana e em determinada
escala 263 , das características naturais e artificiais, terrestres ou subterrâneas, ou,
ainda, de outro planeta. Os acidentes são representados dentro da mais rigorosa

263
Grifo da autora.
Capítulo 2 194
Ângela Massumi Katuta

localização 264 possível, relacionados, em geral, a um sistema de referência de


coordenadas 265 . Igualmente, uma representação gráfica de uma parte ou total da
esfera celeste.
A definição de Oliveira (1993) nos permite entender por que os mapas dos povos
dominados, subjugados, ou até mesmo exterminados foram, durante longa data, considerados
inferiores aos produzidos sob a égide do rigor científico. É neste contexto que devemos
entender a expressão pré-mapas, usada para denominar produções que não possuem os
elementos cartográficos considerados básicos – tema, escala, orientação, legenda, entre outros
– em uma perspectiva cartográfica moderna. Trata-se, como é possível constatar, do olhar
técnico voltado a uma figuração espacial considerada, não raro, como primitiva, produzida em
época muito anterior ao que hoje se denomina Ciência Moderna, ou também sobre uma
produção que, muitas vezes, representa cartograficamente de outra maneira o espaço
geográfico, como os mapas infantis fundados em concepções topológicas do espaço.
É importante salientar que não se está negando a necessidade do rigor científico na
produção e leitura de mapas, esse instrumento cartográfico é importante e necessário,
inclusive no ensino da geografia. No entanto, deve-se ter em mente que a atitude que reduz o
mapa à concepção cartesiana-newtoniana de espaço acaba criando obstáculos para o processo
de apreensão, estudo, entendimento e reflexão sobre os espaços geográficos e espacialidades
produzidas pelos diferentes grupos humanos, que não podem ser reduzidas àquelas
engendradas pela e na cosmologia ocidental hegemônica. É por meio de uma concepção
reducionista de espaço, que o concebe apenas em sua versão moderna, que muitas análises de
mapas infantis e pré-históricos são realizadas. A denominação de pré-mapas para se referir a
essas representações espaciais indica um olhar redutor para os mapas produzidos por esses
grupos sociais.
A título de exemplo do que afirmei anteriormente, tomemos por base o estudo de
imagens pré-históricas feito por Lewis (1987, p. 53), que defende a idéia de que,
possivelmente, as informações topográficas poderiam não ter tanta importância prática para os
primeiros seres humanos. Afirma ainda que do Paleolítico superior em diante,
aproximadamente há 40 mil anos atrás, há evidências da preocupação dos seres humanos
(Homo Sapiens sapiens) com seu destino pós-morte. Neste contexto, segundo o autor, as
imagens ou mapas de lugares póstumos possivelmente reduziam o medo da morte. Além
disso, a representação de lugares pouco ou nada conhecidos, como uma extensão do território

264
Grifo da autora.
265
Grifo da autora.
Capítulo 2 195
Ângela Massumi Katuta

que lhes era familiar, deve ter auxiliado na redução do medo ou do pavor dos extensos
entornos desconhecidos.
A tese explicitada por Lewis apresenta um complicador, ou seja: subjacente ao
entendimento do autor é passível de ser verificada uma concepção moderna de espaço, a partir
da qual se entende o topos enquanto lugar fisicamente existente. Para Newton, citado por
Burtt (1991, p. 193): “O lugar é uma parte do espaço que um corpo toma [...]”. Trata-se do
topos moderno, que foi lentamente construído desde Copérnico, no século XV, passando por
Kepler, Galileu, Descartes até atingir sua formatação final com Newton, já no século XVII,
apenas para citar rapidamente os expoentes que sistematizaram uma nova cosmologia fundada
em uma concepção fisicalista de espaço. Essa, por sua vez, desconsidera a existência de locais
e espacialidades não suscetíveis de serem fisicizados por meio do uso do raciocínio
isomórfico, como são, por exemplo, os lugares da alma; daí o autor poder afirmar que as
informações topográficas pareciam não ter tanta importância prática para os primeiros seres
humanos.
De minha parte entendo que, em se tratando de concepções de espaço, não é possível
aceitar apenas aquela que foi, em grande parte, gerada no contexto do modo capitalista de
produção e da ciência moderna. Não será muito reducionismo pensar os lugares apenas como
parte do espaço que um corpo toma? E, neste contexto, entender os mapas como instrumentos
que representam extensões do espaço de acordo com a normatização elaborada a partir da
concepção moderna de espaço?
Para respondermos a estas questões consideremos nosso parente próximo, o Homo
Sapiens de Neandertal, cujos vestígios encontrados na África, Ásia e Europa datam do
Pleistoceno superior, no Paleolítico médio, por volta de 150 a 40 mil anos. Há evidências de
que sua subsistência dependia da caça e da coleta; verificou-se também o aperfeiçoamento das
técnicas de fabricação de instrumentos, por isso, esses Homo eram considerados sapiens.
Especificamente com os neardertalenses, instrumentos simples passaram a ser compósitos: às
ferramentas juntaram-se cabos. Há evidências de que esses tiveram apenas rudimentos de arte,
no entanto, deixaram vestígios de crença em uma vida espiritual. Segundo Szamosi (1988, p.
61) os neandertalenses colocavam comida e armas nas sepulturas de seus mortos, havendo
também indícios da realização de sacrifícios humanos há aproximadamente 70 mil anos.
Do exposto, concordo com muitos antropólogos ao afirmarem que as ações dos
neandertalenses foram deliberadas. Essas dificilmente seriam realizáveis sem um sistema de
crenças, cosmologia, espacialidades e linguagens que as justificassem. Em outras palavras,
contrariando as idéias de Lewis (1987), entendo que havia um senso prático, construído por
Capítulo 2 196
Ângela Massumi Katuta

esses hominídeos, que, de certa forma, os guiavam na realização de suas ações no espaço. No
caso dos neandertalenses, há fortes evidências demonstrando a existência de crenças em um
mundo-lugar dos mortos. E, como afirma Szamosi (1988, p. 62), se isto é verdade, então “[...]
a cosmologia simbólica precedeu a humanidade anatomicamente moderna, já que os
Neandertal eram anatomicamente diferentes do Homo Sapiens sapiens (seres humanos
contemporâneos)”. Tendo essa afirmação por base, é possível defender que as imagens de
espaço, pensamento, linguagem e imaginação precederam os Homo Sapiens sapiens.
Com o aparecimento dos primeiros seres humanos, as figurações espaciais do
Paleolítico superior, período situado entre 40 a 12 mil anos, passam por um grande
desenvolvimento cultural e tecnológico. Esse é um período caracterizado também pelo
surgimento de manifestações artísticas, como são consideradas pelos historiadores da arte as
representações paisagísticas com alguns aspectos planos, “mapas” primitivos, pintura,
gravura, escultura e modelagem.
Para Debray (1994, p. 20):
O nascimento da imagem está envolvido com a morte. Mas se a imagem arcaica
jorra dos túmulos é por recusar o nada e para prolongar a vida. As artes plásticas
representam um terror domesticado. Por conseguinte, quanto mais apagada da vida
social estiver a morte, menos viva será a imagem e menos vital nossa necessidade de
imagens.
Ao explicitar o entendimento de que a condição para a existência de imagens foi a
construção social da idéia de vida após a morte e, portanto, da tomada de consciência pelos
seres humanos da alteridade que os aterrorizava, Debray nos apresenta forte indicativo da
existência de um senso prático que parametrizava as ações dos primeiros seres humanos,
principalmente no que se refere à produção imagética.
Considerando o exposto, podemos afirmar que as imagens 266 , de uma forma geral,
foram e são elementos estruturadores e estruturantes do pensamento e imaginação humanos e
também foram e são usadas enquanto instrumentos de dominação. Expressam os habitus de
determinados segmentos sociais, principalmente daqueles hegemônicos e não podem ser
pensadas ou analisadas sem se considerar o senso prático e político a elas subjacentes no
contexto espaço-temporal de sua realização. Em outras palavras, toda ação humana é dotada
de razões práticas, o que significa dizer que a compreensão das imagens de espaço deve ser

266
Entendidas aqui na perspectiva colocada por Ferraz (2001, p. 113): “[...] a imagem pode ser figurativa, mas
também pode ser originária de outras fontes diferentes – assim como pode desembocar em uma diversidade de
formas de manifestações que não a figura em si –, podendo ter origem em textos escritos, imaginados, em
sentimentos profundos de prazer ou dor, para não falar no silêncio ou na própria música, de forma que expresse
uma dada impressão, ou permita formar uma idéia da mente humana, uma imagem fruto de experiências, de
outras imagens ou percepções diversas.”
Capítulo 2 197
Ângela Massumi Katuta

também elaborada nesta perspectiva, sob pena de as mesmas tornarem-se ininteligíveis no


contexto das relações sociais. Para Bourdieu (1997, p. 42):
Os ‘sujeitos’ são, de fato, agentes que atuam e que sabem, dotados de um senso
prático [...], de um sistema adquirido de preferências, de princípios de visão e
divisão (o que comumente chamamos de gosto), de estruturas cognitivas duradouras
(que são essencialmente produto da incorporação de estruturas objetivas) e de
esquemas de ação que orientam a percepção da situação e a resposta adequada. O
habitus é uma espécie de senso prático do que se deve fazer em dada situação.
A partir do exposto, verifica-se a importância dos conceitos de habitus e razões
práticas para o entendimento das imagens de espaço, pensamento, linguagem e imaginação
humanas, bem como de suas produções culturais.
A prática da cartografia, ou o ato de cartografar imagens de espaço, associado ao
pensamento e imaginação espaciais remonta ao surgimento dos primeiros Homo Sapiens
sapiens ou seres humanos anatomicamente modernos, cuja presença é comprovada desde o
Paleolítico superior – entre 40 a 12 mil anos. É importante salientar que há evidências de que
os neandertalenses (Homo Sapiens ou pré-sapiens) possuíam imagens de espaço, pensamento
e imaginação espaciais, em função da presença de rudimentos de arte e vestígios de crença em
uma vida póstuma. Tinham assim, a noção da existência de um outro lugar, mundo ou não-
lugar.
No entanto, até o momento, não existem vestígios de que a atitude de cartografar
constituía um habitus desta população, diferentemente dos primeiros seres humanos
anatomicamente modernos do Paleolítico superior, que ocuparam as regiões da Europa Sul-
ocidental, Centro-setentrional, Oriental e a Bacia do Mediterrâneo, cujas artes – gráficas,
plásticas e outras – exprimiam a visão que o homem pré-histórico tinha da realidade do seu
ambiente, sua concepção de espaço, sua geografia e sua consciência do mundo. (MARCONI;
PRESOTTO, 1986, p. 209 et seq.).
Ao ordenar ou produzir suas imagens de espaço, figurações espaciais, mapas,
geografias ou outros produtos simbólicos, os seres humanos ordenavam e ainda ordenam a si
mesmos. Tentam compreender a si e ao Outro, entendido como alteridade, buscando dar um
sentido à sua vida e, portanto, ao mundo no qual vivem.
A geografia escolar, ao negar o caráter social e histórico do espaço e das noções de
espacialidade, considerando o primeiro como um ente em si e não como expressão do
processo civilizador engendrado no modo de produção capitalista 267 , acaba por desconsiderar

267
Essa afirmação expressa um total acordo com a proposição elaborada por Santos D. (1997, p. 38) em sua tese
de doutoramento: “O fim da sociedade feudal e a hegemonia da sociedade burguesa (genericamente identificado
como o período que vai do Renascimento ao Iluminismo) é, entre outros, um processo de desenvolvimento e
hegemonização de um novo processo produtivo, cujo objetivo fundamental ultrapassa os limites da subsistência
e atinge o paradigma da acumulação. Pode-se dizer que, o que se observa, é uma transformação radical (objetiva
Capítulo 2 198
Ângela Massumi Katuta

uma multiplicidade considerável de registros toponímicos dos quais os alunos são portadores,
ato este que auxilia no processo ao qual denominei anteriormente de estrangeirização e
alienação discente.
Ao estancar o movimento inerente ao processo de conhecimento, pelo fato de, em
geral, discursar apenas no plano da generalidade e não partir da singularidade, passando para
a particularidade para então chegar à generalidade, a geografia ensinada transmuta-se em
ideologia, apontando para o processo de (re)produção das atuais espacialidades e, portanto,
para a manutenção do atual modo de produção, projeto societário e cosmologia.
Dessa maneira, a geografia escolar, por meio das linguagens e usos que
tradicionalmente delas se fazem, realiza a sujeição subjetiva, condição para a sujeição
econômica por meio das quais ocorre a apropriação e (re)produção do espaço do e para o
capital. Eis o papel que esta disciplina, como todas as outras, não sem conflitos, vem
predominantemente realizando, desde a disseminação das primeiras de escolas de massas.
Considerando o exposto, pode-se afirmar que a ruptura com o processo de
estrangeirização e alienação discente, especificamente no que se refere ao ensino da
geografia, dependerá em grande parte da (re)construção do olhar docente em relação aos
processos educativos que não devem estancar no plano da generalidade. Somado a isso, para o
retorno d’O Estrangeiro ao “mundo da geografia” faz-se necessário, além da assunção do
movimento inerente ao processo do conhecimento, o resgate da importância da dimensão
espacial na constituição das identidades e territorialidades. Esse é o foco central que deve
nortear os entendimentos da organização dos espaços pelos diferentes grupos humanos, o que
implica a apropriação e uso das mais variadas linguagens, principalmente aquelas que
apresentam diferentes figurações espaciais. Estas são as idéias presentes no Capítulo que
segue.

e subjetiva) do significado do viver, sendo, assim, a construção de uma nova cosmovisão e de seus modelos
(jogo simbólico) explicativos (cosmologia) [...].”
Capítulo 3 199
Ângela Massumi Katuta

Capítulo 3 – O retorno d’O Estrangeiro


“Tantos espaços, então, quantos forem os modos de semiotização e de subjetivação.”
(GUATTARI, 1998, p. 153).

VIVEM em nós inúmeros;


Se penso ou sinto, ignoro
Quem é que pensa ou sente.
Sou somente o lugar
Onde se sente ou pensa.

Tenho mais almas que uma.


Há mais eus do que eu mesmo.
Existo todavia
Indiferente a todos.
Faço-os calar: eu falo.

Os impulsos cruzados
Do que sinto ou não sinto
Disputam em quem sou.
Ignoro-os. Nada ditam
A quem me sei: eu ‘screvo.
(PESSOA, 1982, p. 151).

No Capítulo 1, abordei a problemática da aprendizagem da repetição por repetição no


contexto do ensino da geografia, indicando que esse processo conduz à “estrangeirização”,
alienação do aluno e à subjetivação capitalística, cujo reverso é a submissão econômica. No
Capítulo 2, demonstrei que a relação entre as concepções de espaço, as linguagens e as
geografias produzidas pelas sociedades, explicitadas em suas cartografias, são também
expressões do modo de produção, indicando os processos civilizadores e projetos societários
hegemônicos inerentes às formações sociais. Nele também aponto a opção da geografia
hegemonicamente ensinada pelas noções de espaço euclidianas e projetivas, em detrimento
das relações espaciais topológicas, expressas na cartografia utilizada, que auxiliam no
processo de (re)produção do espaço para o capital.
Tendo em vista a incursão rapidamente descrita, o (re)torno ao ponto de partida de
minha reflexão sobre O Estrangeiro no “mundo” da geografia acabou por se colocar como
uma exigência à reflexão ora proposta. Afinal de contas, o exercício de compreensão dos
processos educativos no ensino da geografia hegemônico, ao apontar para suas limitações,
pode, de uma certa maneira, indicar possibilidades a serem coletivamente construídas que
auxiliem no retorno d’O Estrangeiro. Como acertadamente afirma Lefebvre (1991, p. 240):
“No devir do pensamento e da sociedade, revela-se ainda mais visivelmente o movimento ‘em
Capítulo 3 200
Ângela Massumi Katuta

espiral’: o retorno acima do superado para dominá-lo, e aprofundá-lo, para elevá-lo de nível
libertando-o de seus limites (de sua unilateralidade).”
No presente capítulo intitulado “O retorno d’O Estrangeiro”, abordo, em um primeiro
momento, a necessidade de se pensar os atos de conhecimento de maneira menos cindida no
contexto dos processos educativos, indicando a necessidade da reflexão sobre nossa dualidade
enquanto seres humanos, pois somos síntese de processos evolutivos e de aprendizagem dos
saberes historicamente construídos; daí sermos, ao mesmo tempo, seres sociais e individuais.
É esta característica humana dual, geralmente desconsiderada nas abordagens hegemônicas
em educação, que deve ser focalizada pelos educadores.
Em função de compreender o ser humano de maneira unilateral ora como natureza ou
como espírito, essas abordagens tendem para entendimentos dos processos de ensino e
aprendizagem fundados na metafísica que, por separar o inseparável, aponta para a
(re)produção das atuais relações de produção, portanto, para a alienação e a unilateralidade
nos processos educativos.
Compreender a autonomia, bem como a interdeterminação dos atos e elementos do
conhecimento − trabalho, pensamento, linguagem, memória, percepção e construção de
conhecimentos −, nos processos educativos, reflexão também inserida no primeiro item do
presente capítulo, pode auxiliar na condução de uma aprendizagem escolar menos alienada e
menos pautada na repetição. A compreensão de que existe uma relação complexa entre esses
elementos implica a assunção de que conhecimento é movimento e, quando este estanca,
deixa de sê-lo, entendimento essencial para que ocorra o necessário esforço, no processo de
ensino e aprendizagem, do estabelecimento do jogo de compreensões entre a singularidade, a
particularidade e a generalidade ou, em termos eliasianos, para que ocorra o envolvimento e o
distanciamento, movimentos dialéticos inerentes ao conhecimento.
Considerando o exposto, pode-se afirmar que a ruptura com o processo de
estrangeirização e alienação discente dependerá da (re)construção do olhar docente em
relação aos processos educativos, que não devem estancar no plano da generalidade,
especialmente quando se trata do ensino da geografia. Daí a importância da assunção do
movimento inerente ao processo do conhecimento e de uma abordagem materialista dialética
dos atos-elementos que envolvem o conhecimento.
No caso específico da disciplina em questão, entendo que O retorno d’O Estrangeiro
ao “mundo da geografia” passa necessariamente pelo resgate da dimensão espacial na
construção das identidades, territorialidades e racionalidades humanas, em suas múltiplas
escalas e expressões. Esse é o foco central da segunda parte do presente capítulo intitulada: O
Capítulo 3 201
Ângela Massumi Katuta

olhar de Jano Através do Espelho de Alice. Nela, por meio da alusão ao fenômeno do
espelhamento, foco da obra de Carrol (2002) em Através do Espelho, procurei rapidamente
resgatar a importância das noções de espaço no processo de humanização do ser humano; daí
a opção de abordar espaço-temporalidades pretéritas a fim de mostrar que essas noções são
estruturas estruturadas e estruturantes que compõem o habitus das diferentes formações
sociais em diferentes momentos históricos.
Finalizo o capítulo apontando para a necessidade da ampliação do uso de diferentes
linguagens no ensino da geografia, isso, sem desmerecer a relevância da linguagem
cartográfica para esse saber. Entendo que o acesso e uso de diferentes linguagens auxiliam na
ampliação das coordenadas semióticas para que O Estrangeiro possa retornar ao “mundo” da
geografia. A eliminação da dobra entre a geografia real e a da leitura ou da escola, implica a
assunção das correspondências existentes entre “[...] a grade dos lugares (topias) e a grade da
linguagem, ambas postas sobre uma ‘realidade’ infinitamente complexa e caótica,
contraditória [...]”. (LEFEBVRE, 1991, p. 32-33). São as linguagens e os códigos lógicos
disseminados pela escola e pelas diferentes matérias de ensino, que nos parametrizam para o
estabelecimento de inter-relações entre as coisas, fundamento para a construção de
entendimentos menos caóticos e sincréticos sobre o real e para a ruptura com o processo de
estrangeirização e alienação aos quais somos cotidianamente expostos.
Capítulo 3 202
Ângela Massumi Katuta

3.1. Por uma abordagem materialista dialética dos atos de


conhecimento nos processos educativos 268
“Para explicar as formas mais complexas da vida consciente do homem é imprescindível sair dos
limites do organismo, buscar as origens desta vida consciente e do comportamento ‘categorial’,
não nas profundidades do cérebro ou da alma, mas sim das condições externas da vida e, em
primeiro lugar, da vida social, nas formas histórico-sociais da existência do homem.”
(VYGOSTSKY, apud LURIA, 1986, p. 20-21).

Os elementos que envolvem o conhecimento, como trabalho, pensamento, linguagem,


memória, percepção e até mesmo a própria construção de conhecimentos, quando examinados
em uma perspectiva acadêmico-científica fundada na metafísica, são abordados de maneira
extremamente fragmentada. Fato esse que colabora para o recrudescimento de abordagens
idealistas que enaltecem unilateralmente um ou outro aspecto do conhecimento, da prática
pedagógica, das metodologias de ensino e seus instrumentos, entre outros. Romper com o
habitus metafísico quando do entendimento dos processos educativos formais é um dos
desafios colocados aos educadores das instituições escolares.
Uma das problemáticas que se coloca no horizonte do referido desafio é a concepção
de ser humano com a qual operamos. Via de regra, desconsideram-se as condições externas da
vida social, as formas histórico-sociais de existência dos seres humanos na compreensão dos
processos educativos ou de aprendizagem. Os estudos de Vygotsky 269 se contrapõem a esse
entendimento. Suas idéias devem ser resgatadas na medida em que as mesmas nos
possibilitam a construção de uma visão mais abrangente dos processos educativos e de sua
relevância no processo de hominização do ser humano.
Além disso, entre as várias concepções existentes, em função do entendimento dual de
ser humano que postula, as teses vygotskianas são as que mais adequadamente explicitam a
relevância e especificidade do papel da escola e do professor no desenvolvimento cognitivo
do aluno, por enfatizar uma concepção de aprendizagem tipicamente escolar que rompe com
os processos de alienação presentes nas práticas escolares hegemônicas:
[...] A aprendizagem escolar dá algo de completamente novo ao curso do
desenvolvimento da criança. [...] A criança atrasada, abandonada a si mesma, não
pode atingir nenhuma forma evolucionada de pensamento abstrato e, precisamente
por isso, a tarefa concreta da escola consiste em fazer todos os esforços para
encaminhar a criança nessa direção, para desenvolver o que lhe falta. [...] o único

268
Estou usando de maneira ampla a expressão “processo educativo”, entendendo que a mesma supõe tanto o
ensino quanto a aprendizagem, formais ou não-formais, escolares e pré-escolares.
269
Pelo fato de ter falecido precocemente aos trinta e oito anos, suas teses e contribuições estão presentes em
várias obras publicadas postumamente. Sobre os fundamentos das teses vygotskianas ver principalmente o livro
escrito com um dos seus discípulos intitulado Estudos sobre a história do comportamento: o macaco, o primitivo
e criança (VYGOTSKY; LURIA, 1996).
Capítulo 3 203
Ângela Massumi Katuta

bom ensino é o que se adianta ao desenvolvimento 270 . A aprendizagem escolar


orienta e estimula processos internos de desenvolvimento. A tarefa do docente
consiste em desenvolver não uma única capacidade de pensar, mas muitas
capacidades particulares de pensar em campos diferentes; não em reforçar a nossa
capacidade geral de prestar atenção, mas em desenvolver diferentes faculdades de
271
concentrar a atenção sobre diferentes matérias. (VIGOTSKII , 1988, p. 108-
114).
Verifica-se na perspectiva do autor a existência de papéis que cabem hodiernamente
apenas à instituição escolar e, portanto, também ao professor enquanto disseminadores de
“[...] códigos verbais e lógicos que lhes permitem abstrair traços essenciais dos objetos e
subordiná-los às classes [...]”. (VIGOTSKII, 1988, p. 52). Fato esse que torna os alunos
capazes de executar pensamentos lógicos mais complexos e que marcam a transição da
consciência sensível para a racional, fenômeno social dos mais relevantes, considerado por
muitos estudiosos um marco na história da humanidade.
Uma parte considerável das reflexões oriundas de pesquisas sobre os processos
educativos formais e não-formais foi elaborada sob a égide da tradicional divisão entre as
várias áreas da Ciência − biológicas, exatas e humanas − e, em cada uma dessas, entre as
diferentes especialidades e também da especialidade oriunda de especialidades, expressão,
não somente mas também, de uma visão de mundo cindida, metafísica, cuja tecedura de seu
espesso tecido social 272 remonta ao final do Feudalismo e início do período que se
convencionou denominar Renascença.
Como já afirmei anteriormente, as concepções sobre os seres humanos, construídas no
contexto do conhecimento científico moderno, são expressões das várias ciências que
sistematizam e evidenciam entendimentos da realidade 273 , auxiliando no estabelecimento de
uma racionalidade hegemônica indicadora da direção tomada por um processo civilizador.

270
O autor está fazendo referência direta a um conceito que criou, denominado de zona de desenvolvimento
potencial ou proximal que é “[...] A diferença entre o nível das tarefas realizáveis com o auxílio dos adultos e o
nível das tarefas que podem desenvolver-se com uma atividade independente [...]”. (VIGOTSKII, 1988, p. 112).
Em outra obra, o mesmo autor define a zona de desenvolvimento proximal da seguinte maneira: “[...] é a
distância entre o nível de desenvolvimento real, que se costuma determinar através da solução independente de
problemas, e o nível de desenvolvimento potencial, determinado através da solução de problemas sob a
orientação de um adulto ou em colaboração com companheiros mais capazes.” (VYGOTSKY, 1991a, p. 97).
Para o autor, é papel da escola trabalhar no sentido de fazer avançar a zona de desenvolvimento proximal, daí a
ênfase nas interações sociais entre crianças e adultos e mesmo entre as primeiras e companheiros mais capazes.
271
A grafia do nome do autor foi alterada em função da tradução.
272
Elias (1993, p. 194) denomina tecido social o substrato básico em que “[...] planos e ações, impulsos
emocionais e racionais de pessoas isoladas constantemente se entrelaçam de modo amistoso ou hostil. Esse
tecido básico, resultante de muitos planos e ações isolados, pode dar origem a mudanças e modelos que
nenhuma pessoa isolada planejou ou criou. Dessa interdependência de pessoas surge uma ordem sui generis,
uma ordem mais irresistível e mais forte do que a vontade e a razão das pessoas isoladas que a compõem. É
essa ordem de impulsos e anelos humanos entrelaçados, essa ordem social, que determina o curso da mudança
histórica, e que subjaz ao processo civilizador.”
273
Essa é expressão de mudanças no processo civilizador que operam em diferentes períodos da história da
humanidade. Tomei de empréstimo a Teoria da civilização preconizada por Norbert Elias (1993, p. 17) que, a
Capítulo 3 204
Ângela Massumi Katuta

No contexto do conhecimento denominado científico, verifica-se que as concepções


biológicas hegemônicas de ser humano diferem daquelas construídas pelas ciências humanas
e, no interior dessas, as concepções psicológicas e sociológicas hegemônicas diferem entre si,
fato esse entendido por Elias (1994b, p. 6-7) como expressão de que a Ciência está a operar
com um modelo confuso e inadequado de ser humano. A esta observação, acrescentaria que
os entendimentos hegemônicos sistematizados pelos cientistas das várias especialidades
evidenciam sua ancoragem no habitus de pensamento metafísico.
Há que se considerar no contexto do que foi afirmado que as palavras, os conceitos e
os modelos são construções ou ações sociais, como qualquer produto material 274 produzido
pelas sociedades humanas. Fruto de “[...] todo um trabalho social de construção de um grupo
e de uma representação dos grupos, que se insinuou docemente no mundo social.”
(BOURDIEU, 2000a, p. 38).
É ao longo dos diferentes contextos espaço-temporais que as sociedades vão
criandotecendo, por meio do trabalho, a palavra e, conseqüentemente, a linguagem e os
entendimentos ou racionalidades sobre o real. Para Bourdieu (2000a, p. 39), a linguagem é um
enorme depósito de pré-construções naturalizadas; sendo assim, funciona como instrumento
inconsciente de construção para um conjunto significativo da sociedade, exatamente porque
essa função é, em geral, ignorada. Daí a relevância de se trabalhar com inúmeras linguagens
na escola, a fim de auxiliar na construção de coordenadas semióticas que auxiliem a tornar
relativamente consciente o que atualmente tem funcionado no plano do inconsciente. É o que
ocorre com as concepções de ser humano, no âmbito dos conhecimentos de senso comum e
também no dos científicos hegemônicos.
As diferentes concepções de ser humano das várias ciências, inclusive daquelas que
refletem sobre os processos educativos, evidenciam a fragmentação metafísica do objeto e da
razão, expressão da alienação do sujeito pelo trabalho alienado, característico do modo de
produção capitalista. Nele, a aprendizagem escolar hegemônica, como já afirmei

partir da mesma, destaca as “[...] ligações entre mudanças na estrutura da sociedade e mudanças na estrutura do
comportamento e da constituição psíquica.” Em outras palavras, transformações sociais, comportamentos e
constituição psíquica dos seres humanos não devem ser compreendidos em si e per si, como demanda a tradição
científica ancorada na metafísica. Tais elementos são expressões de um processo civilizador que não é racional e
nem irracional, embora tenha ordem e direção específicas. “A civilização não é ‘razoável’, nem ‘racional’, como
também não é ‘irracional’. É posta em movimento cegamente e mantida em movimento pela dinâmica autônoma
de uma rede de relacionamentos, por mudanças específicas da maneira como as pessoas se vêem obrigadas a
conviver. [...] É precisamente em combinação com o processo civilizador que a dinâmica cega dos homens,
entremisturando-se em seus atos e objetivos, gradualmente leva a um campo de ação mais vasto para a
intervenção planejada nas estruturas social e individual – intervenção esta baseada num conhecimento cada vez
maior da dinâmica não-planejada dessas estruturas.” (ELIAS, 1993, p. 195).
274
Entenda-se por material toda e qualquer produção humana, seja ela material ou simbólica.
Capítulo 3 205
Ângela Massumi Katuta

anteriormente, funda-se na repetição de conhecimentos abordados em sua generalidade. Isso


porque o sujeito, no contexto da metafísica, é concebido como separado do objeto, o que
possibilita a constituição da crença de que esse último é sempre o mesmo para todos os
sujeitos sociais. Daí serem desconsiderados os saberes construídos pelos alunos em sua fase
pré-escolar ou no âmbito extra-escolar. A particularidade e a singularidade, enquanto escalas
necessárias para a realização do movimento do conhecimento, são desconsideradas nos
processos de ensino e aprendizagem hegemônicos. O discurso escolar e os saberes cotidianos
acabam por não se amalgamar, convivem em mundos paralelos qual aquele de Alice em
Através do Espelho. Ocorre, dessa forma, o processo de violência simbólica, a alienação e o
processo de estrangeirização do aluno, que contribuem para a (re)produção do capital.
Considerando-se o exposto, faz-se necessário um breve esclarecimento sobre a
categoria trabalho em Marx, enquanto fundamento para a elaboração de reflexões sobre os
processos educativos que se realizam na escola, especificamente aqueles que ocorrem no
contexto do ensino da geografia. A assunção da referida categoria é essencial na tecedura de
uma abordagem materialista dialética dos atos do conhecimento 275 .
Para Marx (1993), o trabalho é entendido no contexto das relações sociais; por isso é
concebido como atividade especificamente humana conscientizadora ou alienadora,
dependendo das relações socioeconômicas estabelecidas em uma sociedade. No primeiro
caso, trata-se de ação sobre e, ao mesmo tempo, de construção da objetividade em um mundo
no qual os seres humanos se manifestam enquanto ser genérico que realiza atividades livres,
vitais e conscientes. É essa atividade que fez com que nos distinguíssemos dos outros animais.
(MARX, 1993, p. 165). Esses últimos produzem unicamente sob a dominação da necessidade
física imediata. Produzindo apenas a si mesmos, os seus produtos pertencem ao seu corpo
físico, suas construções seguem um padrão ditado geneticamente a partir da necessidade da
espécie a que pertencem.
Já os seres humanos produzem universalmente e somente o fazem, na perspectiva do
autor, quando libertos de suas necessidades físicas. Neste ponto, é preciso atentar que a
produção genuinamente humana somente se realiza por meio do trabalho não alienado:
É precisamente na acção sobre o mundo objectivo que o homem se manifesta como
verdadeiro ser genérico. Tal produção é a sua vida genérica activa. Através dela, a
natureza surge como a sua obra e a sua realidade. Por conseguinte, o objecto do
trabalho é a objectivação da vida genérica do homem: ao não reproduzir-se apenas
intelectualmente, como na consciência, mas activamente, ele duplica-se de modo

275
Um bom exemplo disso são as reflexões sobre educação elaboradas por Alexander Romanovich Luria, Alex
N. Leontiev, Antônio Gramsci, Gaudêncio Frigotto, Lev Semenovich Vygotsky, Mariano Fernandez-Enguita,
Mario Alighiero Manacorda, entre outros, cujas reflexões são tecidas a partir da referida categoria, elemento
essencial que nos distingue de outros animais.
Capítulo 3 206
Ângela Massumi Katuta

real e intui o seu próprio reflexo num mundo por ele criado. (MARX, 1993, p.
165).
Em Marx (1993), o trabalho tem um caráter dialético, podendo ser o fundamento da
alienação ou conscientização, da realização da humanização e da “desumanização” 276 .
Quando o trabalho, a atividade vital, a vida produtiva dos seres humanos se volta para a
satisfação de uma única necessidade − a de manter a existência física −, ou seja, quando se
torna simples meio de manutenção da vida biológica humana, ocorre a alienação do e pelo
trabalho; a condição para isso é a desterritorialização de determinados segmentos sociais,
fenômeno estudado por Deleuze e Guattari (2002) e por vários geógrafos. Marx (1993, p. 162)
descreve de maneira sucinta o processo de alienação ativa − alienação da atividade e atividade
da alienação −, ao responder a questão “Em que consiste a alienação do trabalho?”:
[...] o trabalho é exterior ao trabalhador, quer dizer, não pertence à sua natureza;
portanto, ele não se afirma no trabalho, mas nega-se a si mesmo, não se sente bem,
mas infeliz, não desenvolve livremente as energias físicas e mentais, mas esgota-se
fisicamente e arruína o espírito. Por conseguinte, o trabalhador só se sente em si fora
do trabalho, enquanto no trabalho se sente fora de si. Assim, o seu trabalho não é
voluntário, mas imposto, é trabalho forçado. Não constitui a satisfação de uma
necessidade, mas apenas um meio de satisfazer outras necessidades. O seu caráter
estranho ressalta claramente do facto de que ele não é o seu trabalho, mas o de outro,
no facto de que não lhe pertence, de que no trabalho ele não pertence a si mesmo,
mas a outro. [...] a atividade do trabalho não é a sua atividade espontânea. Pertence a
outro e é a perda de si mesmo. Chega-se à conclusão de que o homem (o
trabalhador) só se sente livremente activo nas suas funções animais − comer, beber e
procriar, quando muito na habitação, no adorno, etc. − enquanto nas funções
humanas se vê reduzido a animal. O elemento animal torna-se humano e o humano
animal. Comer, beber e procriar, etc., são também certamente genuínas funções
humanas. Mas, abstractamente consideradas, o que as separa da restante esfera da
actividade humana e as transforma em finalidades últimas e exclusivas é o elemento
animal.
Sob a égide da alienação pelo, no e do trabalho no modo de produção capitalista
ocorre a fragmentação do sujeito, de sua razão, de suas espacialidades, de seu mundo e,
portanto, de seu objeto. Verifica-se o papel da metafísica, enquanto arquitetura de pensamento

276
No meu entender, humanização pelo e para o capital, para o outro, portanto, alienação no sentido marxista. É
importante salientar que inexiste processo de desumanização, pois nenhum processo evolutivo retrocede.
“Também na biosfera a evolução é estatisticamente irreversível. Ao contrário da mutação pontual (reversível), a
evolução biológica, como exemplo a diferenciação das espécies, é fruto de múltiplas mutações independentes,
sendo por isso mesmo um processo irreversível. [...] Segundo a teoria da evolução biológica, a hipótese de um
grupo de organismos fazer marcha para trás numa determinada via evolutiva já encetada, e assim voltar a reviver
estados anteriores, é expressão de uma pura impossibilidade.” (BRANCO, 1989, p. 213). É importante esclarecer
que Marx (1993) usava o termo desumanização enquanto processo resultante da negatividade do trabalho
alienado. Como vimos, para Marx, o trabalho, enquanto ação, humaniza os seres humanos. Em contraposição, o
trabalho, em sua negatividade e enquanto atividade alienadora, “desumaniza” pelo fato de negar a possibilidade
de construção do humano no ser humano. A perspectiva marxista não defende a existência de processos de
retroação; o que se afirma é que a identidade do ser humano somente se realiza por meio do trabalho, processo
esse fundado na aprendizagem. Por isso, Marx (1993, p. 174) defende a tese de que “A produção não produz
unicamente o homem como uma mercadoria, a mercadoria humana, o homem sob a forma de mercadoria; de
acordo com tal situação, produ-lo ainda como um ser espiritual e fisicamente desumanizado... Imoralidade,
deformidade, hilotismo dos trabalhadores e capitalistas... O seu produto é a mercadoria autoconsciente e activa...
a mercadoria humana...”.
Capítulo 3 207
Ângela Massumi Katuta

fundante da cosmologia ocidental hegemônica, burguesa em suas bases e possibilidades de


realização. Por meio da metafísica, passamos para o outro lado do espelho de Alice 277 . É
importante salientar neste ponto que o ato de inversão ou espelhamento, no contexto ora
colocado, ou seja, na perspectiva do ensino da geografia, implica o esfacelamento do sujeito e
realiza-se por meio das práxis humanas hegemônicas.
Aprendemos ou construímos o habitus metafísico de pensamento desde o momento
em que nascemos, na mais tenra idade, em diferentes espaços educativos − no convívio
familiar, na escola, local de trabalho entre outros −. Este habitus hegemônico, engendrado no
contexto do processo civilizador ocidental, viabilizou e ainda viabiliza que o trabalho de
muitos esteja voltado para a realização de poucos; daí a redução do Planeta a um conjunto de
recursos disponíveis para a (re)produção do capital, daí a descrição desses elementos no
ensino da geografia, como se a espacialidade das coisas sob a égide do capital evidenciasse as
múltiplas geografias produzidas pelos seres humanos, que viveram e morreram nesse planeta
desde o início do processo de nossa hominização.
Ainda é Marx quem aponta o desdobramento do processo, afirmando que:
[..] Uma conseqüência imediata da alienação do homem a respeito do produto do seu
trabalho, da sua vida genérica, é a alienação do homem relativamente ao homem.
[...] Assim, na relação do trabalho alienado 278 , cada homem olha os outros homens
segundo o padrão e a relação em que ele próprio, enquanto trabalhador, se encontra.
[...] Toda a auto-alienação do homem, de si mesmo e da natureza, transparece na
relação que ele postula entre os homens, si mesmo e a natureza. (MARX, 1993,
p. 166-168).
A metafísica presente na cosmologia hegemônica é aqui entendida enquanto expressão
da alienação dos seres humanos quando da realização do trabalho alienado, processo esse que
cria a auto-alienação de si, da natureza, e se expressa nas relações entre os seres humanos e
destes com os outros elementos da natureza. É somente a partir desse quadro que podemos
entender que a cosmologia hegemônica ocidental tem como fundamento o habitus das classes
dominantes, bem como de suas espacialidades e territorialidades.
Tendo como base as idéias ora esboçadas, pode-se afirmar que as concepções
metafísicas hegemônicas de ser humano, sistematizadas pelas mais diversas ciências e suas
especialidades, criam obstáculos epistemológicos para o entendimento do humano no ser
humano. Pesquisas em diferentes áreas da ciência que abordam o funcionamento do cérebro
humano − neurociências, psicologia, ciências cognitivas, entre outras − têm confirmado a
impossibilidade de se abordar os elementos do conhecimento (trabalho, pensamento,

277
De Lewis Carrol (2002).
278
Necessariamente desterritorializado de acordo com Deleuze e Guattari (2002), o que implica sempre uma
territorialização alienada.
Capítulo 3 208
Ângela Massumi Katuta

linguagem, memória, percepção e construção de conhecimentos) como substâncias diferentes


que possuem existência autônoma à sociedade onde se realizam.
Esse fato pode ser tomado como elemento revelador dos limites e do esgarçamento do
atual padrão de racionalidade hegemônico que, fundado na metafísica, separa o inseparável. O
referido esgarçamento revela a tecedura e emergência de outras racionalidades, fundadas em
paradigmas que enfatizam as relações dialéticas entre os elementos do conhecimento. No que
se refere especificamente aos processos de aprendizagem e ao comportamento humano, a
abordagem vygotskiana é a que atualmente se apresenta como uma das mais profícuas por
compreender os processos inerentes ao conhecimento de maneira contextualizada.
Em função de adotar o método genético, Vygotsky e Luria (1996) identificam três
linhas principais que influenciam no desenvolvimento do comportamento humano: a
evolutiva, a histórica e a ontogenética. O que significa dizer que os autores entendem que o
comportamento humano é síntese dos processos evolutivos, da história sociocultural e
individual, âmbito esses que possuem princípios diferentes de desenvolvimento, embora
sejam interdeterminantes. Este ponto de vista torna impossível qualquer paralelismo direto
como aquele freqüentemente estabelecido pelos piagetianos entre a filogênese e ontogênese,
tese esta também aplicada às relações espaciais 279 .
Processos especificamente humanos como o trabalho, pensamento, linguagem,
memória, percepção e construção de conhecimentos são tradicionalmente abordados, no
contexto do pensamento científico hegemônico, por diferentes ciências-olhares, tais como
biologia, ciências cognitivas, filosofia, geografia, história, pedagogia, psicologia, sociologia,
entre outras. Torna-se paradoxal o fato de que as especialidades citadas construíram diferentes
concepções de ser humano, como se existisse um ser ou objeto para cada uma delas,
evidenciando, no habitus 280 de separar o sujeito − considerado como ser universal − do objeto

279
Para Piaget e Inhelder (1993, p. 470) a ordem de sucessão genética das noções de espaço é paralela à ordem
da construção axiomática da geometria, pois: “[...] as relações topológicas precedem nos dois casos as estruturas
projetivas e euclidianas e estas últimas encontram-se, nos dois casos; em situação de equivalência do ponto de
vista da complexidade de suas noções iniciais.”
280
É importante ressaltar aqui que entendo a metafísica como um habitus revelador do posicionamento do sujeito
em relação ao conhecimento e em relação às coisas do mundo. A postura metafísica frente ao conhecimento deve
ser entendida como uma prática em relação à vida entre as várias possíveis. É Lefebvre (1991, p. 52) quem
permite a elaboração dessa afirmação, ao caracterizar os metafísicos: “[...] Não é de excluir, ademais, que sua
atitude comporte certas conseqüências práticas em sua maneira de viver: por exemplo, uma certa distração, um
certo desprezo pela vida concreta, um desinteresse pelos problemas humanos, uma falta de capacidade para
imaginar os sofrimentos e aspirações dos demais seres. O fato é que sempre subsiste um hiato entre sua teoria e
sua prática. Sua teoria não pode passar à prática, ou só pode indiretamente, inconscientemente. A metafísica
consiste sempre de uma teoria desligada da prática, sem unidade com a prática, sem ligação direta e consciente
com a mesma. A metafísica encontra seu domínio favorito da vida real, nas nuvens, num além do mundo físico
(que é o sentido mesmo da palavra ‘metafísica’), num ‘aquém-mundo’ [...] que serve indubitavelmente para
depreciar o mundo real e seus problemas vivos.”
Capítulo 3 209
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− no caso das ciências humanas, os próprios seres humanos −, a ancoragem desse pensamento
à metafísica. Termo esse usado com diferentes acepções 281 , o que evidencia uma efetiva
preocupação com o mesmo por parte da civilização grega, judaica e cristã, da qual somos
herdeiros diretos.
É importante relembrar que o termo metafísica está sendo usado no sentido empregado
por Lefebvre (1991) em sua obra Lógica Formal/Lógica Dialética, como já esclarecido no
Capítulo 1. Isso pelo fato de o autor explicitar, objetivamente, o fundamento primordial −
cisão ou ruptura entre sujeito e objeto −, que auxilia a esclarecer os problemas relativos aos
processos de ensino e aprendizagem de saberes dos geográficos hegemônicos, ancorados no
habitus metafísico, por meio do qual tem atuado uma grande parcela da escola formal e dos
sujeitos que nela trabalham.
Pode-se afirmar que a existência de inúmeros modelos de ser humano, um para cada
ciência específica − um ser humano para cada especificidade, ou olhar, raciocínio biunívoco
por excelência −, acaba por revelar a ancoragem da mesma aos ideais metafísicos, habitus
este característico da cosmologia ocidental hegemônica, no qual foi tecida a concepção de
cientificidade predominante.
Com a cisão metafísica 282 entre os elementos que tornam possível o conhecimento − o
sujeito e o objeto −, cria-se, segundo Lefebvre (1991, p. 50), o problema do conhecimento,
pois o habitus metafísico de pensamento separa o ser − alma espírito, res cogitans −, da

281
Ver as várias acepções ou jogos de linguagem, nos quais esse termo é utilizado no Dicionário básico de
Filosofia de Japiassú e Marcondes (1996) e no Dicionário Oxford de filosofia de Simon Blackburn (1997), ou
em qualquer outro material. Todos eles demonstrarão a polêmica histórica existente em torno das idéias
metafísicas quando do uso desse termo e o seu progressivo abandono, principalmente de sua face idealista por
muitas teorias. Fato esse que evidencia o esgarçamento desse tecido de racionalidade e o necessário abandono do
mesmo, se o intuito for avançar no sentido da busca por um conhecimento mais congruente com a realidade.
282
A meu ver, expressão hodierna do que Bourdieu (1997, p. 200 et seq.) denomina de scholastic view, ponto de
vista escolástico. Construído no contexto específico de universos sociais, econômicos e espaço-temporais, como
é o campo da produção cultural (campo jurídico, científico, artístico, filosófico, entre outros), cujas origens
remontam ao Medievo, mas que possui existência até hoje. Neste campo estão engajados agentes que adquiriram
o privilégio de lutar pelo monopólio do universal, contribuindo para reproduzir verdades e valores tidos, em cada
momento, como universais e eternos. O referido autor define, da seguinte forma, o ponto de vista escolástico:
“[...] Trata-se de um ponto de vista muito específico sobre o mundo social, sobre a linguagem ou sobre qualquer
objeto do pensamento, que se tornou possível graças à situação de skholé, de lazer, da qual a escola − palavra
também derivada de skholé − é uma forma especial, como situação institucionalizada de lazer estudioso. A
adoção desse ponto de vista escolástico é o preço de entrada tacitamente exigido por todos os campos do saber:
a disposição ‘neutralizante’ (no sentido de Husserl), que implica suspender qualquer tese sobre a existência e
qualquer intenção prática, é a condição − pelo menos igual à posse de uma competência específica − de acesso
ao museu e à obra de arte. É também a condição do exercício escolar como jogo gratuito, experiência mental,
que é um fim em si mesmo” (BOURDIEU, 1997, p. 50). A sobrevivência deste habitus voltado à eternização e
universalização de determinados saberes, que é sempre erigido no contexto da diferencialidade das classes
sociais, é expressão da hegemonia de algumas delas nos campos de produção econômica e simbólica.
Capítulo 3 210
Ângela Massumi Katuta

natureza − corpo, mundo, physis 283 , res extensa. Assim procedendo, o conhecimento deixa de
ser um fato 284 , para se tornar um problema insolúvel. Como relacionar duas realidades
definidas ontologicamente como sendo uma exterior à outra e uma sem a outra? Como
entender os espaços definidos ontologicamente como sendo exteriores a quem os produz,
retirando os do contexto das relações sociais que os engendram?
[...] Muitos metafísicos raciocinam do seguinte modo: ‘O sujeito do conhecimento, o
ser humano, é um indivíduo consciente, um eu; que é um eu? É um ser consciente de
si e, portanto, fechado em si mesmo. Nele, não pode haver senão estados subjetivos,
estados de consciência. Como poderia sair de si mesmo, transportar-se para fora de
si a fim de conhecer uma coisa diversa de si? O objeto, caso exista, está fora do seu
alcance. O pretenso conhecimento dos objetos, a própria existência destes, não são
mais que ilusão...’. (LEFEBVRE, 1991, p. 50-51).
O impacto das concepções metafísicas nas práticas educativas e, especificamente, no
trabalho pedagógico docente e nos processos de ensino e aprendizagem, sejam eles formais ou
não-formais, tem sido significativo, pois a cisão sujeito-objeto passa a ser (re)produzida junto
aos sujeitos sociais envolvidos nos processos educativos, alienando-os. As práticas educativas
formais, ao contrário de serem pensadas e organizadas a partir de objetivos pedagógicos
fundados no movimento do conhecimento, se realizam em si e per si, estancam na
generalidade como se os universos de existência do sujeito e do objeto do conhecimento
fossem autônomos.
É importante esclarecer que o problema não é o processo de generalização e abstração
dos saberes, necessários ao estabelecimento de racionalidades, ponto de partida e de chegada
do infinito movimento próprio do conhecimento. O que se quer aqui evidenciar, como bem
nos alertou Lefebvre (1991), é que a generalização e a abstração se tornam um problema
apenas quando da separação entre o sujeito e o objeto do conhecimento. É neste contexto que

283
Em um sentido aristotélico: essência das coisas que possuem uma fonte de movimento própria, princípio de
crescimento e mudança, cujo funcionamento foi estabelecido por um criador. Esse ponto de vista alimenta a tese
do motor imóvel, fundamento da crença de que as coisas possuem um princípio que lhes é inerente, por meio do
qual são levadas a realizar suas potencialidades, transformando-se naquilo que faz parte de sua natureza, de sua
ontologia que, no contexto desse pensamento, possui existência a priori. (BLACKBURN, 1997, p. 150-151). O
mundo torna-se, nesta perspectiva, uma espécie de criptograma a ser decodificado e lido, por meio da linguagem
matemática, elemento-chave para a decifração do mundo. É importante atentar aqui para a ligação direta entre a
idéia de physis aristotélica, retomada, traduzida e, portanto, (re)criada pelos homens de ciência no Medievo e na
Renascença e a possibilidade de, por meio dessa produção simbólica, justificar a existência de Deus, bem como
de entender a mensagem deste para os homens, por meio da leitura da natureza. O parágrafo escrito por Galileu,
atesta essa relação: “A filosofia está escrita nesse grande livro, o universo, que se abre permanentemente diante
de nossos olhos, mas o livro só pode ser compreendido se primeiro aprendermos a compreender a linguagem e a
ler as letras de que se compõe. Ele está escrito na língua matemática, e seus caracteres são triângulos, círculos e
outras figuras geométricas, sem os quais é humanamente impossível entender uma só de suas palavras; sem eles,
fica-se vagando por um labirinto tenebroso.” (GALILEO, 1957, p. 237-238, apud CROSBY, 1999, p. 222).
284
Que nos diferencia de outros seres vivos (p. 20) e de essencial importância para todos os seres humanos,
afirmação essa facilmente verificável por meio da capacidade de sobrevivência que os mesmos têm apresentado,
pelo menos até os dias de hoje, em relação às outras espécies vivas (p. 29). (ELIAS, 1998b).
Capítulo 3 211
Ângela Massumi Katuta

esse último se torna um problema, principalmente para os sujeitos que atuam nas instituições
formais de ensino.
No contexto da metafísica instaurada entre o sujeito e o objeto, opera-se
pedagogicamente a partir do seguinte entendimento: o objeto, em sua generalidade e abstração
é exterior ou externo ao sujeito, daí ser o mesmo para todos os sujeitos sociais. Assim, nos
processos de ensino cabe ao professor descrever ou apresentar os conhecimentos abstraídos
aos alunos, que devem apreendê-los e retorná-los nos processos avaliativos, a fim de
comprovarem o “aprendizado”. É justamente nesse contexto epistemológico-pedagógico que
o conhecimento se torna um problema. A zona de desenvolvimento proximal estanca porque
estanque foi o processo de ensino, incapaz de fazer a ligação entre o desenvolvimento
cognitivo real e o potencial para um dado saber.
Da mesma maneira como ocorrem com os processos de ensino e aprendizagem, as
reflexões pedagógicas fundadas no habitus metafísico pouco ou em quase nada podem
auxiliar no repensar dos processos educativos, isso porque se constituem em abordagens que
promovem a cisão e o estancamento dos elementos do conhecimento, propondo saídas que
tendem para o tecnicismo em educação, dada a centralidade de sua abordagem em técnicas,
metodologias e instrumentos de ensino, expressões de um fazer docente descontextualizado
em relação às práticas humanas historicamente tecidas.
O que aqui se quer destacar não é a irrelevância dos aspectos que denomino de
instrumentais da prática docente, que possuem a sua devida importância nos processos
educativos. Contudo, há de se reconhecer que grande parte dos chamados “problemas” de
ensino e aprendizagem na escola formal é de ordem epistemológica, oriundos da cisão
metafísica entre sujeito e objeto.
No caso específico do ensino da geografia hegemônica, ao estancar na generalidade e,
portanto, enfatizar as relações espaciais euclidianas e projetivas, a referida disciplina acaba
por auxiliar na (re)produção do espaço para o capital, na medida em que auxilia no processo
de subjetivação capitalística, assumindo como espaço, espacialidades e territorialidades
passíveis de entendimento apenas aqueles tecidos sob a égide do capital. Não por acaso,
desconhecemos as geografias de outros povos, apesar de alguns antropólogos 285 , nos quais se
basearam Vygotsky e Luria (1996, p. 122), indicarem que a geografia dos grupos sociais
primitivos 286 é muito mais rica que a dos ocidentais 287 .

285
Entre os mais citados figura Lévy-Bruhl.
286
Vygotsky e Luria (1996, p. 96) utilizam esse termo em sentido relativo. Entendem que a primitividade “[...] é
o estágio mais baixo e o ponto mais baixo e o ponto de partida do desenvolvimento histórico do homem.”
Capítulo 3 212
Ângela Massumi Katuta

A fim de esclarecermos a afirmação anterior, retornemos ao instigante questionamento


de Lefebvre (1991, p. 50): Como relacionar duas realidades definidas ontologicamente como
sendo uma exterior à outra e uma sem a outra? No pensamento metafísico, a resposta a essa
questão no contexto dos processos educativos seria: descrevendo de maneira
descontextualizada, ignorando o sujeito do conhecimento e seus saberes sobre os diversos
aspectos do “real”, isso porque sujeito e objeto possuem, no pensamento metafísico,
existências distintas. Por meio da descrição 288 descontextualizada apresenta-se uma realidade
metafísica ao aluno, cuja apreensão e “compreensão” far-se-iam por meio da universalização,
homogeneização e suspensão do movimento inerente ao saber sobre o real e à realização do
conhecimento humano. Eis o problema epistemológico criado pelo habitus de pensamento
metafísico.
Os desdobramentos da cisão metafísica entre sujeito e objeto no contexto do universo
escolar são inúmeros. Alunos a expressarem insatisfações ou a reclamarem que os saberes
escolares não possuem relação com suas vidas 289 , tornando-se indisciplinados ao trabalho
escolar. Professores a queixarem-se do desinteresse que, de uma forma geral, parece ser
inerente aos alunos. Formadores desses trabalhadores a indicarem equivocadamente que a
resposta a tais problemas escolares reside na apreensão das mais variadas metodologias e
técnicas de ensino e aprendizagem 290 .
Os desdobramentos pedagógicos citados revelam a necessidade de se considerar, mais
atentamente, os fundamentos da atual realização do trabalho alienado, o que permitirá a
construção de olhares e fazeres que, no âmbito da educação formal, auxiliem a romper com o
processo de subjetivação capitalística, alienação e estrangeirização do aluno.

Somente neste sentido, segundo os mesmos autores, é que esse termo pode ser empregado, pois todos os grupos
humanos parecem possuir um grau maior ou menor de civilização.
287
Os autores elaboraram esta conclusão a partir de estudos sobre a linguagem nas sociedades primitivas. Essas
pesquisas demonstraram que nesses grupos sociais as palavras não se diferenciam dos objetos, continuando
intimamente ligadas às percepções sensoriais imediatas. “[...] No sul da Austrália, cada cadeia de montanhas
bem como cada montanha possui seu nome próprio. O nativo pode dizer precisamente o nome de cada uma das
distintas colinas, resultando assim que a geografia do homem primitivo é muito mais rica do que a nossa.”
(LÉVY-BRUHL, apud VYGOTSKY; LURIA, 1996, p. 122).
288
Com isso, não estou a defender que a descrição não seja relevante na construção dos saberes. Ela é um dos
momentos imprescindíveis ao conhecimento que, para se realizar, não deve nela estancar.
289
Obviamente que no contexto do habitus metafísico de pensamento nunca terão, isso porque o objeto é pré-
construído e não expressa as relações do sujeito no e com o mundo ou sua práxis.
290
Com essa afirmação não defendo que esses aspectos não sejam relevantes na prática docente. Estou querendo
chamar a atenção para o fato de que o processo de escolarização pouco tem auxiliado na construção dos saberes
geográficos discentes. Apesar de o conteúdo do saber ser social e espaço-temporalmente construído, esse
somente se realiza no contexto da individualidade dos sujeitos, daí a necessidade do estabelecimento de relações
pedagógicas menos alienadas. A construção de racionalidades sobre as espacialidades humanas faz-se necessária
enquanto movimento de ruptura com o habitus metafísico e pode auxiliar na construção da identidade e
racionalidade dos sujeitos.
Capítulo 3 213
Ângela Massumi Katuta

Segundo Santos, D. (1997, p. 21-22), a atitude epistemológica hegemônica construída


no Ocidente está fundada em dois cortes epistemológicos, o do objeto e da razão:
- O primeiro, no plano do objeto, funda-se na observação da diferencialidade dos
fenômenos e ocorre quando uma racionalidade recolhe “[...] fragmentos do interior da
totalidade, transforma-os em seres em si, sem se dar conta (como já insistia Hegel em sua
Fenomenologia) que a própria linguagem usada para identificar ‘um’ fenômeno já é
identidade evocativa de um jogo de semelhantes.” (SANTOS, D., 1997, p. 21).
- O segundo corte epistemológico − o da razão − está
[...] fundamentado na construção da própria linguagem científica e, portanto, no
conjunto de preocupações que leva o sujeito a se relacionar de forma sistemática
com o objeto [...] trata-se da busca de resposta(s) a uma (ou mais) pergunta(s)
dada(s), que tem proporcionado a possibilidade de criar-se um amplo conjunto de
‘estatutos’ científicos denominados como ciências particulares. É neste campo que
encontraremos a lista quase inesgotável de ciências, tais como a geografia, a física e
todos os demais discursos sistemáticos. (SANTOS, D., 1997, p. 22).
O corte da razão, ao qual se refere o autor, juntamente com o corte do objeto,
fundamentou e ainda é o fundamento da constituição das mais variadas áreas do saber e dos
mais diferentes discursos científicos e escolares sobre os fatos. Contudo, segundo SANTOS,
D. (1997, p. 22), “[...] O que cria o problema, no entanto, é que, normalmente, no ‘corte do
objeto’ busca-se justificar o ‘corte da razão’. [...] esconde-se a dúvida e evidencia-se o
fenômeno sem que, ao mesmo tempo, se evidencie o fato de que qualquer corte no real é, no
mínimo arbitrário.” Nesta perspectiva, o ser, o objeto, é algo dado, existe em si e per si, sendo
imutável em sua identidade, independentemente das diversas práticas humanas e, portanto, a
elas externas. Realiza-se dessa forma, no contexto da metafísica, uma inversão cognitiva
espetacular, dado que é o objeto que irá definir a razão. Daí um mesmo processo, como o do
conhecimento no contexto do conhecimento científico moderno, poder ser parcelado em
diferentes substâncias − linguagem, pensamento, memória, percepção −, a serem, via de regra,
estudadas por especialidades autônomas.
Sob a égide da metafísica, a dúvida e a elaboração de possíveis respostas a ela ficam
cerceadas pelo corte do objeto e da razão. O sujeito do conhecimento, na sua relação com o
objeto, neste contexto externo a ele, fica como que voltado para o espelho de Alice,
personagem criado por Lewis Carrol, em seu romance intitulado Através do Espelho.
Apesar de o sujeito ora em foco reconhecer alguns aspectos do que na metafísica é
denominado real, acaba por verificar que no mundo esquizofrênico do espelho, aqui entendido
como o da escola e da geografia hegemônicas, necessita de outras estruturas de pensamento, a
fim de nele sobreviver. Construir a consciência deste jogo perverso, bem como estratégias de
Capítulo 3 214
Ângela Massumi Katuta

sobrevivência, tem sido um dos aspectos mais eficientes da aprendizagem escolar. Será que a
lição não poderia ser outra?
Na razão hegemônica, prioriza-se o objeto em detrimento dos sujeitos, concebidos
como seres individuais a-históricos, separados do objeto. Dessa forma, sujeito e objeto
acabam ganhando existência em si e per si, funda-se a crença na independência de ambos,
como se os mesmos não fossem expressões do conjunto da sociedade e das mediações,
tensões, contradições e relações por ela e nela historicamente estabelecidas e vivenciadas.
A cisão metafísica entre o sujeito e o objeto é perniciosa, pois fica aberta a
possibilidade da crença na existência ontológica de uma realidade à parte do sujeito e na
existência de sujeito(s) independente(s) do(s) objeto(s). Conseqüentemente, no contexto dessa
relação cognitiva, ao sujeito individual está destinado o papel de ser o decifrador de uma
verdade ou realidade, aqui concebida como sendo externa a ele, cujas estruturas devem ser
decodificadas pela razão e pelas linguagens hegemônicas. Esse posicionamento frente ao
saber é expressão da crença judaico-cristã no dogma do conhecimento do mundo enquanto
revelação, que foi resgatada, transmutada e reforçada pela ordem burguesa, dado que a mesma
vinha ao encontro da necessidade de sua reprodução social.
A razão ocidental hegemônica reificou o objeto e a própria razão, concebendo essa
última como universal, resultante de um padrão predeterminado pela natureza humana,
entendimento este proveniente da transposição do habitus de cientificidade hegemônico,
construído a partir das formulações das ciências naturais e exatas. A crença na exatidão das
leis da natureza é expressão da direção tomada pelo processo civilizador, cujo tecido social foi
lentamente urdido durante séculos a fio, e no nosso caso, pelo menos desde a civilização
greco-romana.
Considerando o exposto, é possível afirmar que, ao longo da saga humana no planeta,
diferentes sociedades teceram as mais diversas formas de ordenação da experiência 291 e do
espaço. Os fundamentos lógicos dos meios de orientação ou dos conhecimentos, como
adequadamente afirmam Vygostsky e Luria 292 (VYGOTSKY, apud LURIA, 1986, p. 20-21)
na epígrafe do presente item, não devem ser procurados nas características “naturais” ou
inatas dos seres humanos, ou nas coisas em si, entendidas sob a égide da metafísica como
universais, mas nas razões práticas, nas condições externas engendradas para e por meio das

291
Elias (1998b) em sua obra intitulada Sobre o Tempo, realiza um exercício de análise extremamente profícuo
em direção à confirmação dessa idéia. Ao estudar as transformações históricas da ordenação das experiências
humanas no que se refere à noção de tempo, o autor põe em xeque muitas teses aprioristas que pregam a
universalidade de determinadas noções como a de tempo.
292
Bem como Pierre Bourdieu, Norbert Elias e Cornelius Castoriadis em várias de suas obras.
Capítulo 3 215
Ângela Massumi Katuta

relações sociais inseridas nos modos de produção que, dependendo do ângulo de visada da
análise, pode apontar ou delinear as tendências gerais tomadas pelo processo civilizador 293 .
Eis o divisor de águas entre o olhar metafísico que separa o sujeito do objeto e um outro que
tenta apreendê-los em suas relações, tensões, movimento e contradições a partir das práxis
humanas.
Considerando-se o exposto, pode-se afirmar que, para o retorno d’O Estrangeiro, faz-
se necessário romper com o habitus inerente ao pensamento metafísico, para se (re)construir
um olhar sobre o mundo menos substancialista e, conseqüentemente, metafísico em relação
aos processos de conhecimento, a fim de romper com a tendência hegemônica no ensino da
geografia, bem como com sua noção de ser humano e de mundo.
É importante esclarecer que a presente reflexão tem como fundamento e conseqüente
desdobramento a defesa da idéia de que trabalho, pensamento, linguagem, memória,
percepção e construção de conhecimentos são processos ontologicamente interdependentes 294
que compõem um mesmo processo de conhecimento especificamente humano, cuja função
primordial sempre foi a de servir de meio de orientação, que tem garantido a sobrevivência
dos seres humanos anatomicamente modernos pelo menos até os dias de hoje. Daí a
necessidade da constituição de abordagens menos fragmentadas dos atos de conhecimento nos
processos educativos.
A meu ver, a perspectiva vygotskiana possibilita a elaboração de respostas ao
problema colocado, por ter como fundamento uma concepção de ser humano triádica, ou seja,
assume como característica humana o fato de sermos, ao mesmo tempo, seres biológico,
social e individual. Essa característica é, via de regra, negada pela geografia ensinada e muitas
vezes pelas mais variadas disciplinas escolares e ciências que procuram entender os processos
educativos e de aprendizagem.
Em uma perspectiva vygotskiana, são as necessidades materiais que motivam o
desenvolvimento do pensamento e comportamentos humanos. Por isso, o autor defende que:

293
Um processo civilizador, para Elias (1994a, p. 246), é um processo de longo prazo, que envolve estruturas
sociais e de personalidade. Por meio desse conceito o autor atesta a existência de uma estrutura particular de
relações humanas, de uma estrutura social peculiar e de correspondentes formas de comportamento (p. 73).
Contudo, o mesmo nos alerta para o fato de um processo civilizador não seguir uma linha reta. Por meio de
estudos do mesmo, numa escala espaço-temporal mais ampla, pode-se verificar sua tendência geral; contudo, em
uma escala menor, pode-se observar que os mais diversos movimentos que se entrecuzam produzem mudanças
ou surtos numa ou noutra direção (p. 185). Por isso, é preciso que o pesquisador tenha clareza da escala de
análise espaço-temporal com a qual vai lidar, inclusive para que não tome as flutuações de uma breve escala por
tendência geral e vice-versa.
294
A fim de romper com os dualismos ontológicos − sujeito e objeto, causa e efeito −, próprios de determinadas
tradições metafísicas, Elias (1998a, p. 170) defende a idéia de que toda a existência dos seres humanos está
atrelada ao mundo; resulta desse entendimento a existência de uma interdependência básica entre ambos, ou seja,
ontológica e existencial.
Capítulo 3 216
Ângela Massumi Katuta

O comportamento do homem moderno, cultural, não só é produto da evolução


biológica, ou resultado do desenvolvimento infantil, mas também produto do
desenvolvimento histórico. No processo do desenvolvimento histórico da
humanidade, ocorreram mudança e desenvolvimento não só nas relações externas
entre as pessoas e no relacionamento do homem com a natureza; o próprio homem,
sua natureza mesma, mudou e desenvolveu-se. (VYGOTSKY; LURIA, 1996,
p. 95).
Às transformações descritas pelos autores devem ser somadas aquelas ligadas às
noções de espaço e espacialidades desenvolvidas ao longo do processo de hominização dos
seres humanos. Eis o foco central do item que segue.
Capítulo 3 217
Ângela Massumi Katuta

3.2. O olhar de Jano 295 Através do Espelho 296 de Alice


“O desenvolvimento começa com a mobilização das funções mais primitivas (inatas), com seu uso
natural. A seguir, passa por uma fase de treinamento, em que, sob a influência de condições
externas, muda sua estrutura e começa a converter-se de um processo natural em um “processo
cultural” complexo, quando se constitui uma nova forma de comportamento com a ajuda de uma
série de dispositivos externos. O desenvolvimento chega, afinal, a um estágio em que esses
dispositivos auxiliares externos são abandonados e tornados inúteis e o organismo sai desse
processo evolutivo transformado, possuidor de novas formas e técnicas de comportamento.”
(VYGOTSKY; LURIA, 1996, p. 215).

O processo de desenvolvimento descrito por Vygotsky e Luria (1996, p. 215) na


epígrafe do presente item abrange longos períodos históricos. Somente por meio de uma
panorâmica dos mesmos é que poderemos verificar que evolução e desenvolvimento são
processos imbricados e ao mesmo tempo independentes. A dualidade dos processos que
resultaram na hominização dos seres humanos é o foco do item que segue, centrado
principalmente na relevância das relações espaciais, elemento central na constituição das
identidades humanas.
Segundo Olson S. (2003, p. 15), nossa trajetória enquanto Homo Sapiens Sapiens se
iniciou há aproximadamente 100 mil anos 297 − no período Quaternário, na época do
Pleistoceno Superior 298 −, com a emergência dos seres humanos anatomicamente

295
Um dos mais antigos deuses de Roma, de origem indo-européia, possui dois rostos contrapostos, um no verso
do outro. Segundo Chevalier e Gheerbrant (1999, p. 512), é um deus das transições, das passagens, “[...]
marcando a evolução do passado e do futuro, de um estado a outro, de uma visão a outra, de um universo a
outro, deus das portas.” Preside aos começos e é também considerado o guardião das portas. Tomei emprestada
as metáforas construídas em torno de Jano, para chamar a atenção de que o entendimento do humano no ser
humano supõe a necessária construção de um olhar que avance para além de uma visão cindida − a do espelho,
da cientificidade do século XVII −, para outra mais congruente com o real. Assim, se faz necessária a revisão, a
releitura de eventos passados, a fim de construirmos um entendimento outro do presente. A mudança de visão se
faz necessária porque poderá nos possibilitar a construção de outros fundamentos para o trabalho na sala de aula.
296
Obra já citada de Lewis Carrol (2002).
297
É importante salientar que as periodizações são aproximadas, dado que a exatidão em relação a
acontecimentos tão pretéritos, pelo menos até o momento, é impossível de ser alcançada.
298
Engloba o Período entre 150 a 10 mil anos, que se estende desde o início da terceira glaciação (Riss/Würn) até
o final da glaciação de Würn. Caracterizado por ter “[...] um clima bastante instável, com fases úmidas, de
chuvas pesadas, e com períodos de glaciações intercalados de períodos de seca.” (MARCONI; PRESOTTO,
1986, p. 69). O avançar e recuar das geleiras marcaram mudanças climáticas significativas, afetando assim,
concomitantemente, a vida na Terra e as características ambientais dos lugares. Há indícios de que no
Pleistoceno Médio e Superior, existiram pelo menos oito ciclos de glaciação-interglaciação, com ocorrência de
inúmeras oscilações menores, “[...] com fases nítidas de frio durante os períodos interglaciais, chamados estádios
e fases de aquecimento durante os períodos glaciais chamados interestádios.” (MITHEN, 2002, p. 48). O que
significa dizer que as condições climáticas hodiernamente características do Pólo Norte se estenderam e
recuaram várias vezes para o interior da Europa, Ásia e América do Norte. Apesar de o gelo não ter atingido a
África, determinou em muitos locais desse continente fases muito úmidas de grande pluviosidade alternadas de
secas. Face a essas instabilidades climáticas, o processo de seleção natural atuou intensamente entre os seres
vivos que emigraram ou extinguiram-se, adaptaram-se, evoluíram ou desapareceram.
Capítulo 3 218
Ângela Massumi Katuta

modernos 299 , que habitaram inicialmente o leste africano 300 . Em algumas ocasiões,
sabidamente aquelas que reuniram piores condições materiais de sobrevivência para espécies
com determinadas características, os Homo Sapiens Sapiens chegaram próximos da extinção,
por se constituírem em uma espécie fisicamente mais frágil, se comparados aos outros
hominídeos, principalmente aos neandertalenses 301 . Apesar do risco de extinção, conseguimos
superar inúmeras adversidades, o que é facilmente comprovado pelo fato de ainda termos,
pelo menos até hoje, em números absolutos, uma taxa de crescimento mundial em contínua
elevação.
É sabido que outros hominídeos − Homo Sapiens de Neandertal −, cujos vestígios
datam de aproximadamente 150 a 30 mil anos atrás, viveram na mesma ocasião que nossos
ancestrais. Verificou-se que os seres humanos anatomicamente modernos habitaram
praticamente os mesmos locais onde viviam os neandertalenses: Europa, Oriente Médio, Ásia
e África. Apesar da coexistência espaço-temporal durante um tempo relativamente longo, até
hoje ainda não foram encontradas evidências da existência do estabelecimento de relações
sociais entre ambos e, especificamente, nem de miscigenação, muito menos de conflito.
Olson S. (2003, p. 15) descreve a distribuição territorial e os processos migratórios de
nossos ancestrais, os Homo Sapiens Sapiens, da seguinte forma:
[...] Há cerca de 100.000 anos, os humanos modernos tinham se espalhado para o
norte ao longo do vale do Nilo e atravessado a península do Sinai para chegar ao
Oriente Médio. Há mais de 60.000 anos, ocuparam o litoral da Índia e do sudeste
asiático e navegaram até a Austrália. Há 40.000 anos, os humanos modernos
chegaram à Europa e ao Extremo Oriente. Finalmente, há pouco mais de 10.000
anos, atravessaram uma planície que ligava a Sibéria ao Alasca e se espalharam pela
América do Norte e do Sul.
O fato de termos convivido durante um certo tempo com outros hominídeos cujos
ancestrais nos era comum, somado ao de que fomos os únicos do gênero Homo a ter

299
Aqueles que possuem características anatômicas semelhantes às nossas. Existe todo um conjunto de medidas
antropométricas que as especificam, elaboradas pela antropometria mas desnecessárias no contexto da presente
reflexão.
300
Estou adotando a hipótese atualmente a mais aceita conhecida como africana, que defende uma origem única
de todos os seres humanos anatomicamente modernos na África. O fundamento da mesma reside nos resultados
de testes realizados com o DNA presente nas mitocôndrias e com os cromossomos Y, que apontam para uma
única origem africana dos seres humanos anatomicamente modernos. Outra hipótese, atualmente menos aceita,
conhecida como multirregionalismo, defende que os humanos constituem uma única espécie desde o
aparecimento do gênero Homo, há quase dois milhões de anos. Os vários humanos que se espalharam pela Ásia e
Europa são considerados como subespécies ou raças, que cruzaram e evoluíram até se transformarem nos seres
humanos anatomicamente modernos. Assim, segundo essa teoria, “[...] os africanos descendem em parte do
Homo sapiens arcaico que viveu na África, os asiáticos descendem em parte do Homo erectus, que viveu na
Ásia, e os europeus descendem em parte do homem de Neandertal, que viveu na Europa.” (OLSON, S., 2003, p.
37).
301
Para Mithen (2002), suas características anatômicas são adaptações à vida em ambientes glaciais −
compleição robusta, corpulento e musculoso, com pernas curtas e peito bojudo. “[...] Ao que parece, os
neandertais teriam sofrido por consideráveis ferimentos e doenças degenerativas, que provavelmente refletem
um estilo de vida de grandes exigências físicas.” (MITHEN, 2002, p. 40).
Capítulo 3 219
Ângela Massumi Katuta

sobrevivido até os dias de hoje, nos remete diretamente à seguinte questão: que características
nos auxiliaram no processo de luta pela nossa sobrevivência enquanto espécie? Ou de outra
forma: Por que os outros hominídeos desapareceram e conseguimos sobreviver? É tentando
elaborar respostas a essas questões que poderemos vislumbrar o humano no ser humano e,
portanto, a sua especificidade em um dado contexto socioespacial, elemento diretamente
responsável, pelo menos até os dias de hoje, pela nossa sobrevivência.
É importante salientar que as características dos objetos e dos seres não devem ser
compreendidas de maneira absoluta, como se fossem universais e atemporais. A especificação
das mesmas dependerá das relações que os sujeitos sociais estabeleceram com o mundo. Daí
as características de um objeto necessariamente expressarem as relações dos seres humanos
com o mundo. A própria Ciência e o desenvolvimento de conhecimentos científicos no
Ocidente têm demonstrado que o conhecimento de um objeto não se realiza nos seres
humanos de maneira absoluta, depende em grande parte do processo civilizador inerente a um
modus vivendi. Além disso, verifica-se também que os paradigmas não são definitivos, estão
em estado contínuo de vir a ser.
Como é dito na Dialética da natureza, o mundo existe como progresso infinito [...]
de conversão contínua das formas de movimento, pelo que só podemos apreender
através do recurso a leis históricas não-definitivas. Conhecer a realidade objectiva da
natureza significa conhecer a natureza tal como ela é: como matéria em movimento.
Não se trata de conhecer algo que é, mas sim algo que está sendo; pressupõe-se uma
extensão contínua da apropriação humana das diferentes formas de movimento em
permanente conversão. (BRANCO, 1989, p. 108-109).
A reflexão sobre características especificamente humanas não deve ser aqui entendida
enquanto debate sobre o universal no ser humano ou sobre as características inerentes a todos
os seres humanos, mas como reflexão sobre um conjunto de diferencialidades que os têm
diferenciado dentre os outros elementos da natureza, auxiliares no seu processo de
sobrevivência desde o Paleolítico Superior, há muitos mil anos.
Lewis (1987, p. 50 et seq.) afirma que antes da emergência do Homo sapiens 302 , ou
seja, entre 500 e 150 mil anos atrás, as capacidades de transmissão e recepção de informações

302
O termo Homo Sapiens ou de Neandertal refere-se a um grupo de indivíduos assemelhados em relação ao
esqueleto cuja existência data da Glaciação de Würm, no Pleistoceno Superior, há 150 mil anos. Esses são o
resultado de uma lenta e crescente evolução física e cultural, iniciada com o Australopithecus ramidus e
anamensis − há quatro milhões de anos e meio. Os homo mais antigos − habilis, rudolfensis e ergaster − datam
de dois milhões de anos. Foram encontrados indícios da existência do Homo Sapiens nos locais atualmente
conhecidos com a seguinte denominação: Europa − Alemanha, França, Bélgica, Itália, Espanha, Iugoslávia e
Rússia; Ásia − Iraque, Israel, China e Java; África − Marrocos e Gâmbia. Esta territorialidade tem relação íntima
com as características climáticas, seus desdobramentos e movimentos no período, caracterizado por clima
instável − fases úmidas, com períodos de glaciações, intercalados de períodos secos. Os períodos interglaciares,
mais quentes, foram mais longos do que os glaciares. Nas fases interglaciais, a flora e a fauna sofreram
alterações, animais, fontes de proteína para alguns grupos de hominídeos, espalharam-se para longe das regiões
equatoriais, chegando ao norte da Europa. Nessa área, assim como no norte da América, com o progressivo
Capítulo 3 220
Ângela Massumi Katuta

relativas às relações espaciais entre fenômenos e eventos já eram bem desenvolvidas em


muitos animais 303 . Por isso, pode-se afirmar que tal característica, isoladamente, não
diferencia os humanos dos outros elementos da natureza, dado que outros seres vivos as
possuem.
Comparemos rapidamente os últimos hominídeos extintos, os neandertalenses, com os
seres humanos anatomicamente modernos no que se refere às formas de vida e produções
sociais 304 , a fim de evidenciar o fundamento do presente item de que a diferença entre tais
seres reside no conjunto das capacidades intelectivas dos Homo Sapiens Sapiens que, em suas
relações dialéticas com os lugares, tornaram-se diferenciadoras das formas de vida 305 . O
pressuposto é o de que a capacidade intelectual dos seres humanos anatomicamente modernos
resulta de um longo processo evolutivo, da relação espaço-temporal entre os seres dessa
espécie com os outros elementos da natureza.
Nessa perspectiva, nega-se que os seres humanos anatomicamente modernos resultem
de uma força ou vontade externa a eles mesmos. Somos natureza transformada pelo trabalho.
Foi a ação no e com o meio que nos tornou e nos torna humanos, daí a relevância do espaço
enquanto elemento constituinte de nossa identidade, como adequadamente explicam
Vygotsky e Luria (1996), ao apresentarem a chave para o quebra-cabeça da evolução da
psicologia animal ao ser humano, do homem primitivo ao cultural. Ainda que longa a citação,
avalio que a mesma deva ser transcrita na íntegra em função de sua relevância para a presente
reflexão:
Cremos que se deve procurar a resposta na evolução daquelas condições de
existência, em que todos vivemos, bem como na evolução das formas de
comportamento que são determinadas por essas condições exteriores. O homem
moderno não precisa adaptar-se ao ambiente exterior do modo como o fazem um
animal ou um homem primitivo. O homem moderno conquistou a natureza, e aquilo
que o homem primitivo fazia com as pernas ou as mãos, os olhos ou os ouvidos, o
homem moderno faz com seus instrumentos. [...] Contudo, isso não esgota as
diferenças entre os seres humanos culturais e primitivos. O ambiente industrial e

aquecimento, começaram a surgir florestas, indício de condições materiais de vida menos rigorosos. O avanço e
recuo das geleiras no interior da Europa, Ásia e América do Norte obviamente afetaram o clima, a distribuição
das águas superficiais, a vida animal e vegetal da Terra. Face às instabilidades do período, muitas formas
animais e vegetais extinguiram-se, migraram e se dispersaram, como foi o caso de muitos hominídeos, cuja
distribuição espacial foi explicitada. Para saber mais detalhes sobre o Período, ver Marconi e Presotto (1986) e
Mithen (2002).
303
Segundo Harry Jerrison, da Universidade da Califórnia, “[...] durante o último quarto de bilhão de anos, o
sistema nervoso dos mamíferos, ao se adaptar ao ambiente, evoluiu para analisar e organizar as informações
recebidas pelos sentidos de tal forma que o mundo conhecido se tornou um mundo de objetos distintos e
permanentes em um espaço e um tempo ampliados. Os mamíferos, e os humanos portanto, só vêem e podem ter
sentido do mundo segundo essa estrutura.” (SZAMOSI, 1988, p. 10).
304
Para um melhor detalhamento sugiro a leitura de Mithen (2002) e Olson S. (2003).
305
Segundo Vygotsky e Luria (1996, p. 164), ambientes distintos acarretam diferenças significativas na estrutura
da mente, tese elaborada a partir de inúmeros dados da psicologia de crianças e de adultos provenientes de
grupos sociais os mais variados estudados por Lévy-Bruhl.
Capítulo 3 221
Ângela Massumi Katuta

cultural os modifica gradativamente e o ser humano que conhecemos hoje é uma


pedra continuamente cortada e alterada sob a influência do ambiente industrial e
cultural. [...] No processo de evolução, o homem inventou ferramentas e criou um
ambiente industrial cultural, mas esse ambiente industrial alterou o próprio homem;
suscitou formas culturais complexas de comportamento, que tomaram o lugar das
formas primitivas. Gradativamente, o ser humano aprende a usar racionalmente as
capacidades naturais. A influência do ambiente 306 resulta no surgimento de novos
mecanismos sem precedentes no animal; por assim dizer, o ambiente torna-se
interiorizado [...]; o comportamento torna-se social e cultural não só em conteúdo,
mas também em seus mecanismos, em seus meios. Ao invés de memorizar
imediatamente algo de particular importância, o ser humano desenvolve um sistema
de memória associativa e estrutural; desenvolvem-se a linguagem e o pensamento,
surgem as idéias abstratas e criam-se inúmeras habilidades culturais e meios de
adaptação − em conseqüência do que o adulto cultural surge em lugar do adulto
primitivo. Muito embora as funções naturais, inatas, sejam semelhantes no homem
primitivo e no homem cultural ou, em alguns casos, possam até deteriorar-se no
correr da evolução, o homem cultural difere enormemente do homem primitivo pelo
fato de que um enorme repertório de mecanismos psicológicos − habilidades, formas
de comportamento, signos e dispositivos culturais − evoluíram no correr do processo
de desenvolvimento cultural, como também pelo fato de que toda a sua mente se
alterou sob a influência das condições complexas que os criaram. (VYGOTSKY;
LURIA, 1996, p. 178-179-180).
Os neandertalenses viviam em cavernas e abrigos rochosos. Há evidências de que
usavam o fogo, caçavam, coletavam e de que aperfeiçoaram as técnicas e instrumentos
existentes, pois, além da pedra lascada, faziam uso intensivo de ossos e madeira, utilizando
também conchas, dentes e chifres. Esses hominídeos possuíam instrumentos variados,
vestiam-se com peles, caçavam animais, alimentando-se desses e também de vegetais,
enterravam seus mortos, depositando junto aos mesmos suas armas e comidas, usavam colares
de dentes e realizavam práticas mágicas − culto ao urso. Além disso, parecem ter executado
rituais de sacrifícios humanos há 70 mil anos 307 .
O próprio ato de enterrar seus mortos e a forma como o faziam, somados às práticas
mágicas, uso de adornos, desenvolvimento e melhoria de tecnologias e instrumentos, e a
realização de rituais de sacrifício são elementos que confirmam que a função simbólica
precedeu a humanidade anatomicamente moderna. Por isso, essa característica também não é
uma especificidade dos seres humanos modernos 308 . Práticas mágicas e rituais somente são
passíveis de serem realizados mediante a existência da noção de um lugar dos mortos, ou não-

306
Grifo da autora.
307
Szamosi (1988, p. 61); Marconi; Presotto (1986, p. 79).
308
Segundo Cavalli-Sforza (2003, p. 87), “[...] chipanzés e gorilas conseguem aprender a usar apenas trezentas
ou quatrocentas palavras, e mesmo isso exige esforço especial e comunicação não oral, pois não são capazes de
articular a língua e a faringe para produzir sons comparáveis aos nossos. O vocabulário de um ser humano médio
é no mínimo dez ou vinte vezes maior, e pode chegar a 100 mil palavras ou mais.” Verifica-se pelo exposto que
possuir capacidade simbólica não se caracteriza enquanto capacidade humana, outros animais a possuem, o que
evidencia que, ao contrário do que muitos cientistas das ciências humanas afirmam, fazemos parte da natureza,
apesar de termos nossas especificidades, assim como qualquer outro elemento. Não somos seres especiais como
acreditam muitos, criados por uma entidade com um projeto subjacente à nossa existência; possuímos
características específicas, assim como qualquer outro objeto da natureza.
Capítulo 3 222
Ângela Massumi Katuta

lugar, de um alhures ou lugar póstumo. A presença desta noção implica a existência da


capacidade de simbolização por parte dos neandertalenses, portanto, essa não se constitui, em
si, em uma característica diferenciadora entre os seres do gênero Homo.
Muitos antropólogos afirmam que os seres humanos modernos possuíam tecnologia
material mais avançada se comparados aos neandertalenses. “Sua cultura está associada à
indústria da lasca (foliácea), das pedras pontiagudas, dos propulsores etc.” Posteriormente à
última glaciação, “[...] os seres humanos deixaram as grandes caçadas e tornaram-se coletores
e caçadores de pequenos animais; depois, passaram da coleta para a forragem intensiva.”
(MARCONI; PRESOTTO, 1986, p. 80). Considerando-se a expressão material e simbólica de
cada um dos grupos pertencentes ao gênero Homo, pode-se afirmar que a diferença qualitativa
e quantitativa entre os mesmos é evidente. Sabidamente, os Homo Sapiens Sapiens, mais
adaptáveis e com melhor tecnologia, lentamente substituíram o Homo Sapiens.
Sobre a produção material dos Homo Sapiens Sapiens é possível afirmar que:
A seqüência cronológica das primeiras produções duráveis (não há evidentemente
possibilidade de correlacionar as artes passageiras, como a da tatuagem e da
manufatura de cestos) é a seguinte: a princípio, armas de sílex grosseiramente
lascado, maças e instrumentos mal e mal modificados nas formas dadas pela própria
natureza, melhorando a técnica gradualmente através de longos períodos de
tempo 309 ; a seguir as rudes esculturas das ‘Vênus’ exageradamente obesas e, com
elas, ou talvez precedendo-as, desenhos riscados em chifres de renas e,
incidentalmente, desenhos dos próprios chifres; depois, as gravações nos muros; e
finalmente as pinturas. Todas essas artes se desenvolveram no período Paleolítico ou
na Idade da Pedra Lascada, a qual pode ter ocorrido há 50000, ou há 30000, ou
simplesmente há 15000 anos. (CHENEY, 1995, p. 29-30).
Verifica-se, pela seqüência da produção material dos seres humanos anatomicamente
modernos apresentada pelo autor, que as produções que tradicionalmente poderiam ser
denominadas de artísticas 310 , que nos diferenciam dos outros hominídeos, aparecem
posteriormente ao desenvolvimento e diversificação de artefatos − utensílios −, fato esse que

309
Atividades que outros hominídeos também realizavam.
310
Não adentrarei o complexo e infindável debate sobre o que deve ou não ser considerado como objeto artístico,
pois o mesmo supõe, na escala temporal que estou mobilizando na reflexão, a elaboração de levantamentos sobre
as transformações pelas quais passou tanto a noção de estética, quanto da própria arte, pelo fato de que as
mesmas são sempre expressões de uma sociedade. Verificou-se que em sociedades ágrafas ou naquelas onde a
especialização de funções não é tão diversificada, a maior parte das suas artes é representada sobretudo pelos
“[...] desenhos de sua cerâmica, ou entalhado de suas canoas, ou a pintura de seus escudos, e coisas análogas.”
(HERSKOVITS, 1973, p. 180). No que se refere à denominada arte pré-histórica, não podemos fazer distinção
entre um utensílio e um objeto artístico; isso somente faz sentido em sociedades como a nossa que produz
objetos especificamente artísticos. Por isso, utilizei como exemplo e referência de arte pré-histórica objetos
produzidos pelo Homo Sapiens Sapiens freqüentemente indicados como artísticos em livros de história da arte e
de antropologia cultural. Tal opção se justifica em função do foco de meu interesse, que é o de tomar os referidos
objetos como exemplos do especificamente humano nos Homo Sapiens Sapiens, em contraposição aos Homo
Sapiens ou neandertalenses que, segundo Varagnac (apud MARCONI; PRESOTTO, 1986, p. 94), “[...]
ignoraram a arte ou tiveram apenas rudimentos dela, mas deixaram vestígios de uma vida espiritual [...]”.
Capítulo 3 223
Ângela Massumi Katuta

também se constitui em um diferenciador da produção material característica dos Homo


Sapiens Sapiens.
Os utensílios dos seres humanos anatomicamente modernos, se comparados com a
produção material neandertalense, foram produzidos em maior número e complexidade a
partir da criação e uso de técnicas mais aprimoradas, − relação dialética entre quantidade e
qualidade −, ao longo de muitos mil anos. Evidências parecem indicar que a produção de
artefatos em maior número, diversidade e complexidade e a produção artística expressam uma
maior capacidade intelectiva que diferenciou e diferencia a cultura dos seres humanos
anatomicamente modernos daquela desenvolvida pelo Homo de Neandertal.
Contudo, a realização de tais produções seria impossível sem a existência da
linguagem, que, em si, não é uma característica especificamente humana, assim como
qualquer outra que listarmos. Muitos estudos nos levam a admitir que a diferencialidade do
humano no ser humano se refere à forma com que este realiza as ações, se o compararmos aos
outros elementos da natureza, o que nos permite confirmar o nosso lugar junto aos outros
animais, como defendia Darwin.
Obviamente, não existem evidências que fundamentem nossa crença de que somos os
eleitos pela natureza ou por qualquer outro ser. “A mente humana levou milhões de anos para
evoluir. É fruto de um processo longo e gradual, sem objetivo ou direção predeterminados.”
(MITHEN, 2002, p. 13). À observação do autor somente acrescentaria que não apenas a
mente, mas o ser humano como um todo levou milhões de anos para evoluir, sendo expressão
de um processo lento e gradual de evolução, sem objetivo ou direção predeterminados. Somos
fruto, portanto, de um processo cego que se realiza na natureza há milhões e milhões de anos.
Cavalli-Sforza (2003, p. 8) afirma que:
[...] a evolução genética humana foi bastante afetada por inovações tecnológicas e
mudanças culturais em geral. Cultura, no sentido de acúmulo de conhecimento ao
longo das gerações, é a principal diferença entre os seres humanos e os outros
animais (uma diferença de grau, certamente, visto que também os animais aprendem
ao longo da vida e transmitem conhecimento para gerações vindouras). A
transmissão cultural é, pois, importante objeto de estudo, que tem sido gravemente
negligenciado.
Como acertadamente afirma Vygotsky (1991b, p. 131), para quem a produção cultural
humana deveria ter centralidade no entendimento dos processos de desenvolvimento, “[...] No
princípio era a Ação. A palavra não foi o princípio − a ação já existia antes dela; a palavra é o
final do desenvolvimento o coroamento da ação.” Dito de outra forma, pode-se afirmar que a
diferencialidade entre as várias espécies de hominídeos ou seres vivos reside nas ações
encetadas pelos mesmos, que por sua vez são expressões das diferentes capacidades
neurológicas, no sentido de potencialidades de trabalho, conhecimento, pensamento,
Capítulo 3 224
Ângela Massumi Katuta

memória, linguagem, percepção e, conseqüentemente, de sobrevivência, em um dado contexto


espaço-temporal 311 .
Os vestígios da existência de uma cultura material mais complexa em termos de
quantidade e qualidade de materiais fabricados entre os Homo Sapiens Sapiens são
indicadores da realização de ações quantitativa e qualitativamente diferenciadoras e
diferenciantes, que possibilitaram que esses últimos sobrevivessem até os dias de hoje. Dessa
forma, não é possível pensar em existência sem ação e evolução, ou seja, o ato de viver e
existir é, em si, um processo ao mesmo tempo de ação e adaptação, ou de desenvolvimento e
evolução, o que não significa que necessariamente tais processos resultem em continuidade de
vida, como afirma Branco (1989, p. 225): “A especialização é sinónimo da senescência, mas
do mesmo passo o processo de desenvolvimento implica em especialização.”
É importante salientar que o processo de adaptação não deve ser entendido em um
sentido unidirecional, enquanto simples acomodação de um organismo a fatores ambientais
que selecionam os seres vivos per si. Para Branco (1989, p. 224-225), não são apenas os
fatores ambientais que selecionam os entes vivos, estes têm capacidade de agir no e sobre o
meio, transformando-o, destruindo-o, reconstruindo-o, deslocando-se no interior do seu
território.
Dessa maneira, também o organismo seleciona os fatores ambientais que o vão, por
sua vez, condicionar: “[...] o animal transforma-se no próprio acto de transformar seu
ecossistema (circunstância particularmente visível no caso do homem), e ao deslocar-se no
espaço ele desfruta do polimorfismo da própria natureza (o exemplo clássico da migração das
aves).” (BRANCO, 1989, p. 224-225).
Verifica-se, portanto, a tensão dialética existente entre os seres vivos em geral e,
especificamente, entre os do gênero Homo e o ambiente onde viveram e vivem. Lefebvre
(1991) indica, com muita propriedade, a necessidade de se considerar a tensão dialética entre
a ação e os lugares, quando se trata de pensar na constituição do ser humano e até mesmo da
própria linguagem. Por isso, afirma o autor:
No começo era o Topos. E o Topos indicava o mundo, pois era lugar; não estava em
Deus, não era Deus, pois Deus não tem lugar e jamais o teve. E o Topos era o
Logos, mas o Logos não era Deus, pois era o que tem lugar. O Topos, na verdade,
era poucas coisas: a marca, a re-marca. Para marcar, houve traços dos animais e de
seus percursos; depois sinais: um seixo, uma árvore, um galho quebrado, um
cairn 312 . As primeiras inscrições, os primeiros escritos. Por pouco que fosse, o
Topos já era o ‘homem’. Assim como o sílex seguro pela mão, como a vara erguida
com boa ou má intenção. Ou a primeira palavra: o Topos era o Verbo; e algo mais: a

311
Não devemos nos esquecer que quase desaparecemos em alguns períodos.
312
Amontoado de pedras na forma de cone, feito por diferentes grupos humanos para indicar lugares conhecidos,
marcos ou mesmo uma tumba.
Capítulo 3 225
Ângela Massumi Katuta

ação, ‘Am Anfang war die Tat’ 313 . E algo menos: o lugar, dito e marcado, fixado.
Assim, o Verbo não se fez carne, mas lugar e não-lugar. (LEFEBVRE, 1991, p.
34).
Parafraseando as sábias palavras de Lefebvre (1991, p. 34): no começo era o Topos,
que era e ainda é ou são “as coisas no mundo” e as “coisas do mundo” e que nele têm lugar.
Coisas olhadas, sentidas, tocadas, discernidas do não-eu, marcadas, vistas, usadas, nominadas,
denominadas, dominadas porque necessárias na e para a ação, para a sobrevivência humana, e
hoje, para a produção de excedentes por muitos para o usufruto de poucos. Das relações
dialéticas engendradas entre o Topos e as ações humanas surge a linguagem, estrutura
estruturante e estruturada, coroamento do domínio relativo dos seres humanos em relação aos
outros elementos da natureza.
Muitos estudiosos tendem a inverter o processo, defendendo a tese metafísica de que a
idéia, a linguagem, a palavra, antecede a ação, ocultando ou mesmo desconsiderando o papel
do Topos que, apesar de ser um elemento inerente à vida no planeta, inclusive a humana,
torna-se uma relação 314 muitas vezes não considerada, ou considerada de maneira invertida,
como é o caso da afirmação de Glyn Isaac (apud CAVALLI-SFORZA, 2003, p. 87-88):
Há indícios indiretos de que a linguagem humana moderna atingiu seu estado atual
de desenvolvimento cerca de 50 a 150 mil anos atrás. Como observou o arqueólogo
Glynn Isaac, as culturas paleolíticas dessa época apresentam níveis mais elevados de
diferenciação local, fato que se reflete no grande número de nomes de que os
arqueólogos lançaram mão para nomear as culturas do período. Isaac postulou que
essa maior variação cultural lítica − e as diferenças locais nas línguas e dialetos que
provavelmente a acompanhou − surgiu com aumento geral da complexidade da
linguagem. A possibilidade de se comunicar de maneira mais refinada em virtude de
as línguas serem semelhantes às modernas deve ter favorecido muito a capacidade
de exploração e colonização de nossos antepassados.
Verifica-se aqui um exemplo típico de aplicação do pensamento metafísico moderno
ao real. O dogma do verbo criador está subjacente a este entendimento. É o verbo que dá
origem aos objetos e aos processos e não a ação. Nega-se, nesta concepção, o que o ser
humano tem de humano, que é a sua capacidade de adaptação em diferentes meios, ou seja,
sua maior flexibilidade relativa.
Glynn Isaac, bem como Cavalli-Sforza têm razão ao afirmarem que as culturas
paleolíticas apresentam uma ampla gama de diferenciações locais e que essas estão refletidas

313
No princípio era a ação. Traduzido por Santos, D. (1997, p. 24).
314
Estou a defender que espaço não é algo, um objeto, um vazio cheio de objetos, coisa ou substância como a
tradição científica hegemônica nos fez crer. Foi a concepção de espaço sob a égide desta perspectiva
substancialista, − o espaço como coisa −, referendado sobretudo pelo projeto societário hegemônico, assumido
sobretudo pela Física e pelo ideal de cientificidade do século XVII que dogmatizou, legitimou e nesse processo,
tornou verdadeira ou dominante essa concepção. Espaço é relação, ou melhor, se refere a um conjunto de
relações estabelecidas entre os seres humanos e o Topos que se fez e se faz verbo na e pela ação. Daí ter as mais
distintas conotações, concepções, configurações e figurações em diferentes sociedades humanas e ser expressão
de inúmeros projetos societários, como se pode observar nos mapas apresentados no Capítulo 2. Sobre esse
assunto ver Calderán (1981), Deleuze; Guattari (2002); Ostrower (2002).
Capítulo 3 226
Ângela Massumi Katuta

na denominação das culturas do período 315 , pelo fato de que se referem aos locais onde foram
encontradas as evidências − utensílios de pedra, machados de mão, lascas, lâminas, utensílios
de madeira e osso e, posteriormente, objetos de arte e ornamento pessoal. Contudo, a maior
variação cultural lítica, bem como as diferenças locais nas línguas e dialetos surgiram com a
complexificação das relações dos pré-hominídeos e, posteriormente, dos hominídeos com o
meio ambiente.
A complexidade da linguagem é, ao mesmo tempo, expressão e instrumento do
estabelecimento de relações mais complexas dos hominídeos entre si e com o seu meio
ambiente. Não teve uma origem com um fim previamente estabelecido. É como a inteligência
humana e o próprio ser humano fruto de um longo e gradual processo de evolução, sem
objetivo ou direção predeterminados.
Assim, o Topos era o Logos que não era Deus, e que não se fez Deus, mas era o lugar,
fonte de idéias na, para e a serviço da ação, da sobrevivência, (re)produção da carne, de si e
do Outro. Explorar, olhar, conhecer, fixar, marcar, remarcar, nominar, denominar, representar:
o lugar, o não-lugar, o lugar do outro, o meu lugar, o nosso lugar, o lugar póstumo, o aqui, o
alhures, o além e o acolá. Este é o fundamento tópico da realização e da constituição de nossa
identidade e de nosso viver desde os primórdios: “Onde?” e “O que?” são perguntas que
ecoam desde que o verbo se fez lugar e não-lugar.
Considerando o exposto, pode-se afirmar que foi por meio da ação sobre o lugar e a
conseqüente transformação de suas capacidades intelectivas que o Homo Sapiens Sapiens se
diferenciou dos outros animais. Buscar uma explicação do humano no ser humano para além
das relações dialéticas entre ações humanas, lugares, temporalidades e capacidades
intelectuais implica a assunção da crença cartesiana em uma pretensa diferença existente entre
corpo e espírito, expressão de um pensamento cujo processo civilizador estava voltado para a
subjugação dos outros elementos da natureza, incluindo-se entre eles os outros seres humanos.
Na perspectiva da visão cartesiana de mundo, o ser humano, criação divina, jamais
deveria ser igualado aos animais, que foram, nesta cosmologia, criados pela divindade, por
meio do verbo, para o usufruto de seus filhos. Abordar o especificamente humano nessa
perspectiva seria retroceder à chamada Revolução darwiniana que colocou os seres humanos
em seus devidos lugares, ou seja, no Planeta Terra, juntamente com outros animais, tornando-
os pertencentes ao domínio da natureza.

315
Complexo industrial de Omo, Indústria Olduvaiense, Pré-chelence (indústria de seixos − 2 milhões a 500 mil
anos), Chelense, Abeviliense, Acheulense, Clactoniense (indústria da Lasca − entre 500 a 150 mil anos),
Musteriense, Levaloisense, Perigordiense (indústria da lâmina esquírola − entre 150 a 40 mil anos),
Aurignaciense, Solutrense, Magdaleniense (indústria foliácea − entre 40 a 10 mil anos).
Capítulo 3 227
Ângela Massumi Katuta

As modernas teorias sobre a mente humana estão a indicar que ela deve ser
considerada produto da evolução humana. Atualmente esta constitui-se na alternativa mais
viável, se comparada às abordagens metafísicas que em geral trazem, enquanto fundamento
muitas vezes não explicitado, a noção da intervenção divina. Por isso, faz-se necessária a
concordância com Cosmides e Tooby (apud MITHEN, 2002, p. 68 et seq.) que:
tratam a mente como tratamos qualquer outro órgão do corpo − é um mecanismo
evoluído, construído e ajustado em resposta às pressões seletivas enfrentadas pela
nossa espécie durante sua evolução [...] a mente humana evoluiu sob a força das
pressões seletivas enfrentadas pelos nossos ancestrais enquanto viviam como
caçadores-coletores nos ambientes do Pleistoceno [...]. Na medida em que esse
modo de vida terminou há apenas uma fração de tempo em termos evolutivos,
nossas mentes permaneceram adaptadas à caça e à coleta.
Ao defender, como Engels (1976), que a dialética é da natureza − o que equivale
afirmar que o estudo da natureza nos conduz à dialética −, Branco (1989, p. 235-236) elucida
de forma extremamente didática o processo de evolução quantitativo e qualitativo pelo qual
passaram os cérebros dos seres vivos e, entre eles, os personagens centrais do presente
trabalho. A seguir transcrevi um trecho relativamente longo da obra do autor; contudo, em
função de sua importância para o desenvolvimento da presente reflexão, optei por reproduzi-
lo quase que na íntegra:
[...] a observação da face interior do crânio dos antepassados do Homo sapiens
sapiens − australopitecos, Homo erectus, Homo sapiens neandertalensis, etc −
demonstra-nos ter havido uma notável complexificação dos vasos sanguíneos que
irrigam as meninges 316 . Este aumento substancial do número de ramificações
acompanha a variação qualitativa operada ao longo do tempo. Hoje sabe-se que não
só a irrigação como também a velocidade de circulação do sangue no interior do
cérebro desempenham papel fundamental no seu bom funcionamento como sistema
produtor de pensamento e de estados de consciência. [...] face aos efeitos do seu
funcionamento não subsistem dúvidas quanto à diferença qualitativa entre o cérebro
do rato ou até mesmo do chipanzé e o do homem moderno; no entanto, verifica-se,
ao contrário do que imaginavam alguns investigadores, uma nítida unidade
anatómica. Não há nenhum elemento fundamental que se possa dizer ser pertença
exclusiva do ser humano, isto tanto no plano macroscópico como microscópico.
Encontramos o mesmo tipo de células (‘não existe nenhuma categoria celular
própria do córtex do homem’), as mesmas formas de interligação celular, circuitos
do mesmo género, etc 317 . Onde reside então a causa dessa tão nítida diferenciação
qualitativa do seu funcionamento sem que haja recurso a elementos novos? É que,
em contraste com esta uniformidade de ‘materiais’ utilizados, verifica-se ter existido
uma evolução quantitativa, que tudo sugere estar na origem do salto qualitativo. O

316
Isto indica alteração do texto genético que pode ter ocorrido ao acaso, mas também pode ter sido provocada
por fatores provenientes do meio. “[...] a acção (comportamento) do organismo sobre o ecossistema e deste sobre
o organismo (interacção organismo/meio) é susceptível de provocar importantes mutações que virão a ser
traduzidas num processo evolutivo. Repare-se que nem o meio nem o organismo podem ser entendidos como
pólos fixos de uma relação ela própria imutável (repetitiva). Os organismos diferem entre si, nomeadamente na
sua atitude comportamental [...], e daí resulta uma enorme variedade de interacções. Nada nesta relação
bidireccional é compatível ou semelhante ao processo mecânico considerado no sentido clássico.” (BRANCO,
1989, p. 233).
317
“[...] a partir de um determinado nível evolutivo este processo de desenvolvimento deixa de corresponder ao
aparecer de genes de estrutura − em conseqüência de mutações −, passando a consistir prioritariamente no
surgimento de novas combinações. Mas a evolução não é revelação porque o realizado não esgota, nem de perto
e nem de longe, o possível.” (BRANCO, 1989, p. 235).
Capítulo 3 228
Ângela Massumi Katuta

número total de neurônios aumenta muito, em conseqüência da expansão do


neocórtex (momento decisivo no processo evolutivo). (BRANCO, 1989, p.
236).
O autor (1989, p. 239) ainda salienta que a diferença qualitativa do funcionamento
cerebral dos seres humanos anatomicamente modernos residiu no aumento do número total de
neurônios, ou seja, em seu aumento quantitativo, apesar de a densidade média dessas células
nos mamíferos ter se mantido constante. Segundo Powell (apud BRANCO 1989, p. 236), é
por isso que se verifica, nesses seres, aproximadamente a mesma quantidade de neurônios por
milímetro quadrado, ou seja, cerca de 146 000.
O aumento do número total de neurônios torna possível a elevação do número de
conexões inter-neurônicas − crescimento do número de sinapses por neurônio. Portanto, é nos
seres humanos anatomicamente modernos que se encontrou uma arborização dendrítica e
axonal mais rica 318 . “[...] Tudo sugere que tenha sido essa alteração quantitativa na população
celular, e a conseqüente reorganização do cérebro, o factor (ou factores) decisivo para o
surgimento de coisas tão espantosas como sejam a linguagem, a consciência reflexiva e o
pensamento.” (BRANCO, 1989, p. 237). E assim, arremata o autor: “[...] O factor de
importância decisiva não é portanto a capacidade endocraniana, mas sim a sua organização
interna (sistema neurológico hipercomplexo).” (BRANCO, 1989, p. 238).
De minha parte, acrescentaria que foi por meio da ação ou do trabalho, em diferentes
lugares – o que, obviamente, implicou contínuas e necessárias reorganizações internas – que
uma dada espécie de Homo se tornou humana. No final das contas, o velho Engels 319 (1976,
p. 215-223) estava correto ao defender que a humanização do macaco se deu pelo trabalho:
[...] o trabalho por si mesmo criou o homem. [...] a mão não é apenas o órgão do
trabalho: é também produto deste. [...] o animal apenas utiliza a Natureza, nela
produzindo modificações somente por sua presença; o homem a submete, pondo-a a
serviço de seus fins determinados, imprimindo-lhes as modificações que julga
necessária, isto é, domina a Natureza. E esta é a diferença essencial e decisiva entre
o homem e os demais animais; e, por outro lado, é o trabalho que determina essa
diferença.

318
Apesar da densidade média de neurônios dos mamíferos ser praticamente a mesma (146000 neurônios por
milímetro quadrado), “[...] o mesmo já não acontece no que se refere à extensão do córtex − 22 dm2 no homem
contra os 5,4 dm2 do gorila. Daqui resulta uma espantosa ruptura no plano quantitativo: salta-se dos 7800
milhões de neurónios do gorila ou dos 7100 milhões do chimpanzé para a ordem dos 30000 milhões com o
Homo sapiens sapiens. É claro que este impressionante aumento do número total de neurónios significa do
mesmo passo uma não menos espectacular alteração quantitativa do número de sinapses, que no cérebro do
homem é da ordem dos 600 milhões por milímetro cúbico! (Entre 1014 e 1015 sinapses na totalidade do córtex
cerebral).” (BRANCO, 1989, p. 237).
319
Para entender uma parte significativa das teses materialistas dialéticas à luz dos conhecimentos científicos
contemporâneos, sugiro a excelente obra de João Maria de Freitas Branco (1989), intitulada Dialética, Ciência e
Natureza: um estudo sobre a noção de ‘Dialética da Natureza’ no quadro do pensamento científico moderno.
Nela, o autor defende a tese de que a dialética é da natureza, utilizando como exemplo inúmeros estudos
elaborados pelas mais diferentes especialidades científicas.
Capítulo 3 229
Ângela Massumi Katuta

Poder-se-ia dizer que o aumento do número total de neurônios expressou-se em uma


maior capacidade de realização de trabalho e vice-versa, o que diferenciou interna e
externamente o Homo Sapiens Sapiens dos outros seres do gênero Homo. O ser humano, bem
como sua produção material e simbólica são produtos do trabalho, foram constituídos pelo,
para e no trabalho. Verifica-se, portanto, a centralidade da categoria trabalho para o
entendimento e realização do humano no ser humano e para a compreensão dos processos de
desenvolvimento que necessariamente implicam comunicação e aprendizagem.
O trecho do livro de Branco (1989), reproduzido anteriormene, é extremamente
relevante para a presente reflexão. Sua afirmação reforça a idéia da renovação de
combinações − interações celulares −, em detrimento do surgimento de novas estruturas, a
partir de um determinado nível do processo evolutivo 320 .
Considerando o exposto, torna-se insustentável a relação ou o ponto de vista
cartesiano sobre a existência autônoma do corpo e do espírito − cérebro e mente −,
fundamento de uma série de desdobramentos epistemológicos que assolaram e ainda assolam
a ciência contemporânea e as práticas pedagógicas hodiernas. Esse ponto de vista apregoa ser
o espírito a expressão do humano no ser humano, pelo fato de que todos os outros seres vivos
possuem cérebro. Creio ter apresentado provas suficientes para, em concordância com Branco
(1989, p. 239), afirmar que corpo e espírito ou cérebro e mente não são duas entidades −
substâncias −, autônomas e distintas situadas no mesmo plano ontológico da existência do ser
humano. Fazem parte de uma
[...] totalidade sistémica complexa e contraditória (totalidade dialética). A
imaginação e o pensamento não possuem autonomia, dado que são estados ou
processos de um determinado biossistema. E uma das mais relevantes características
dos sistemas é a de possuírem propriedades emergentes (emergent properties), que
não se encontram entre seus componentes. (BRANCO, 1989, p. 239).
Por isso, aqui o humano no ser humano passa a ser compreendido e assumido
enquanto capacidade diferencial de realização de interações celulares, quantitativa e
qualitativamente mais complexas, motivadas, não apenas mas principalmente, pela ação ou
pelo trabalho em um dado contexto espaço-temporal, em relação às que se realizaram,
notadamente entre os primatas e os Homo Sapiens, e àquelas que se realizam em outros seres
vivos. Esta capacidade diferencial, engendrada no decorrer de um longo processo dialético de

320
Utiliza como argumento conclusões a respeito da microcefalia humana. Em casos extremos, seus portadores
têm o volume cerebral alterado para níveis inferiores aos verificados em certos gorilas (600cc ou 500cc). Apesar
da sensível diminuição do quociente de inteligência, verificou-se a continuidade de uma atividade
comportamental tipicamente humana. (BRANCO, 1989, p. 238). Isso indica que o fator relevante ou
diferenciador de nosso comportamento, em relação aos outros seres do gênero Homo e aos primatas como um
todo, no caso da referida doença, reside nas interações celulares e não no surgimento de novas estruturas.
Capítulo 3 230
Ângela Massumi Katuta

evolução e trabalho em diferentes lugares, se expressou em produções humanas materiais e


simbólicas mais complexas, tanto em qualidade quanto em quantidade.
Em uma perspectiva substancialista, elementos como trabalho, pensamento,
linguagem, percepção, memória e construção de conhecimentos são tomados como entidades,
substâncias e estruturas independentes entre si, inatas nos seres humanos e, pior, a-históricas.
Daí a possibilidade, nessa visão, de se acreditar em universais nos seres humanos e a ênfase
na procura por novas estruturas de pensamento, linguagem, percepção e de construção de
conhecimento. De minha parte, afirmo que tal entendimento não confere com as evidências
encontradas.
Apesar de descendermos de um pequeno grupo de africanos, que viveu entre 200 e
100 mil anos atrás, a cultura humana possui como característica primordial a variabilidade,
pois se desenvolveu em vários lugares tanto em termos de quantidade quanto de qualidade;
dessa forma, a diversidade é uma de suas características fundamentais. Somado a isso, as
pesquisas genéticas têm revelado que os grupos humanos
[...] são geneticamente próximos demais para diferir em algo mais do que detalhes
irrelevantes. O estudo genético de nosso passado está mostrando que as diferenças
culturais entre grupos não poder ter origem biológica. Estas diferenças se devem, na
realidade, às experiências dos indivíduos. [...] Hoje sabemos que os grupos humanos
se superpõem geneticamente a tal ponto que a humanidade não pode ser dividida em
categorias bem definidas. Sabemos que o comportamento humano é tremendamente
maleável sob a influência de diferentes contextos sociais. A história escrita em nosso
DNA é uma história de libertação e não de opressão. (OLSON S., 2003, p. 17-
19).
Os desdobramentos da metafísica e da visão substancialista em relação ao tratamento
da questão do trabalho, pensamento, linguagem, memória, percepção e construção de
conhecimentos foram significativos. Considerados como elementos ou substâncias existentes
em si e per si, acabaram por ser abordados de maneira metafísica, no contexto do duplo corte
epistemológico − do objeto e da razão −, característico da atitude científica construída no
Ocidente 321 .
A caracterização estática e descontextualizada dos elementos do conhecimento acabou
por se tornar lugar comum nos estudos dos mesmos. E, pior, no contexto da especialização e
conseqüente “aprofundamento” do saber, cada um dos processos, não raro, é abordado por
diferentes ciências ou especialidades, eliminando ou tornando ínfima a possibilidade de
abordá-los enquanto processos constituintes de um mesmo processo de conhecimento. Daí a
necessidade de abordagens menos substancialistas, que enfatizem a análise conjunta dos

321
Santos D. (1997, p. 21-23).
Capítulo 3 231
Ângela Massumi Katuta

referidos processos de conhecimento que auxiliem na constituição de práticas pedagógicas


menos alienantes.
Trabalho, pensamento, linguagem, memória, percepção e construção de
conhecimentos não são entidades ontologicamente existentes em si e per si, não são
substâncias, constituem uma rede de interdependências, apesar de sua independência relativa.
Ao mesmo tempo, são processos diferenciados, por se realizarem diferenciadamente 322 , em
um único e mesmo processo que é o do conhecimento e em um único e mesmo órgão que é o
cérebro humano, cujo complexo funcionamento talvez algum dia poderá ser desvendado 323 .
Muitas pesquisas nas áreas da neurociência e da ciência cognitiva têm demonstrado
que o trabalho, a linguagem, o pensamento, a memória, a percepção e a construção de
conhecimentos possuem íntima relação entre si. Não existem de forma autônoma, não são
substâncias se realizando espaço-temporalmente de maneira independente e a-histórica.
Para finalizar o presente item, pode-se afirmar que o humano no ser humano somente
pode ser entendido enquanto um conjunto de características que, tomadas em si, não são
específicas dos seres humanos. Esses últimos se diferenciam dos outros elementos da natureza
na forma de realização de suas características. Em função da maior capacidade de interações
celulares, quantitativa e qualitativamente mais complexas, os seres humanos em diversas
espaço-temporalidades construíram e ainda constroem o conhecimento de si, do outro e,
assim, do mundo como um todo sob as formas mais variadas. Dessa maneira, fica evidente o
fundamento histórico-cultural de nosso desenvolvimento, tal como preconizado por Vygotsky.
Não por acaso, constituímos diferentes concepções de espaço, pois nossa relação com os
lugares e os outros elementos do ambiente foi algo que cambiou ao longo do nosso processo
de hominização.
Por meio dos processos de migração, diversificação e complexificação das sociedades
humanas, cada uma delas passou a se relacionar com o mundo de uma forma diferenciada,
criando diversas organizações espaciais, formas de realização do trabalho, do pensamento,
linguagem, memória, percepção e, portanto, do conhecimento.
O ser humano se realiza enquanto humano por meio de processos educativos que são
engendrados socialmente em uma dada espaço-temporalidade, mas que se realizam e
expressam individualmente em cada um dos membros do grupo. A efetivação do
conhecimento ou dos processos educativos, além de ser a condição para que o ser humano se

322
As ciências cognitivas têm mapeado o cérebro humano e têm verificado que nele existem áreas especializadas
em determinadas funções; contudo, essa evidência não contradiz o que estou defendendo.
323
O estudo neurológico da consciência é uma área de desenvolvimento recente, antes da década de 1970 era um
tema quase intocável. (SACKS, 2004, p. 8).
Capítulo 3 232
Ângela Massumi Katuta

torne humano, constitui-se em requisito de sua sobrevivência enquanto espécie. Contudo, a


forma como os processos educativos serão realizados dependerá de cada organização social e
modo de produção.
Ensinar, treinar e, assim, habilitar e educar os membros da sociedade a sobreviverem
têm sido prioridade em todos os grupos humanos, caso contrário, não teriam sobrevivido até
os dias de hoje. Contudo, a forma como os processos de ensino e aprendizagem e o sentido
por meio dos quais esses se realizam se diferenciam de acordo com as espacialidades
construídas e reproduzidas pelas diversas sociedades nos modos de produção.
Ensinar a estabelecer racionalidades em relação a diferencialidade das relações
espaciais dos seres humanos com e no mundo não seria papel da disciplina de geografia na
sociedade ocidental hodierna? Essa não seria uma passagem que o “olhar de Jano” poderia
auxiliar a construir para que o retorno d’O Estrangeiro se efetive? Fazê-lo não se constitui em
uma das poucas garantias para que possamos viabilizar não apenas a nossa sobrevivência
futura mas também um modo de sua realização menos alienante? 324
A elaboração de respostas positivas às questões colocadas, entre as muitas possíveis,
passa, a meu ver, pela relação dialética a ser estabelecida no ensino da geografia entre a grade
dos lugares e a grade das linguagens, como adequadamente indica Lefebvre (1991, p. 32-33)
em sua obra Lógica formal /Lógica dialética:
Como poderia não existir correspondência (e correspondência garantida, articulação)
entre a grade dos lugares (topias) e a grade da linguagem, ambas postas sobre uma
‘realidade’infinitamente complexa e caótica, contraditória, a natureza que o leitor-
ator lê e decifra (uma na outra, uma pela outra), a fim de agir e conhecer?
É a correspondência entre a grade das linguagens e a dos lugares que poderá auxiliar
no retorno d’O Estrangeiro no contexto do ensino da geografia. Ler, decifrar a grade dos
lugares por meio da grade das linguagens (uma na outra, uma pela outra), a fim de agir e
conhecer: eis a passagem-caminho que poderá auxiliar na ruptura com o processo de
estrangeirização e alienação ao qual estão sujeitos os alunos da escola formal, atualmente
estrangeiros no “mundo da geografia”. Esse é o foco do item que segue.

324
Sobre esse assunto ver o livro de Guattari (1998).
Capítulo 3 233
Ângela Massumi Katuta

3.3. O retorno d’O Estrangeiro: a grade dos lugares e a grade da


linguagem
“[...] A missão do poeta é portanto mais complexa que a do cientista, do técnico ou do governante.
Pode servir-lhes de apoio ou de orientação, procura mesmo chamar sua atenção e modelar-lhes o
desempenho, mas as transcende todas na sua eficácia simbólica. [...] Todo discurso criativo
assinala um ato fundador, na medida em que nomeia situações e elementos imprevistos,
conferindo-lhes existência e lançando-os na luta por um espaço e uma posição, no interior das
hierarquias que encerram as palavras encarregadas de dizer o mundo conhecido e compreendido.”
(SEVCENKO, 1999, p. 247).

No presente item, aprofundo a reflexão sobre a correspondência entre a grade dos


lugares e a grade da linguagem no contexto do ensino da geografia. Por isso, reflito
inicialmente sobre a relevância dos processos educativos que ocorrem na escola, a fim de
apontar a especificidade do espaço escolar como locus do desenvolvimento de características
humanas constituídas histórica e geograficamente.
Posteriormente, abordo as relações entre pensamento e linguagem, indicando a
relevância dessa última nos processos educativos, especificamente no caso do ensino da
geografia, no qual a linguagem cartográfica, apesar de sua grande importância e mesmo
centralidade, não deve ser a única figuração espacial a ser utilizada. Como afirma Guattari
(1998, p. 153) na epígrafe que abre o presente Capítulo, diferentes modos de semiotização e
subjetivação quantas forem as concepções de espaço e espacialidades 325 . Por isso, finalizo a
reflexão mostrando a necessidade de usar, além da linguagem cartográfica, outras figurações
espaciais que permitam o contato com as mais diversas coordenadas semióticas, porque a
grade dos lugares somente é entendível ou racionalizável por meio da grade das
linguagens 326 ; daí a necessidade da utilização de outras linguagens no ensino da geografia.
Como afirmei no item anterior, é das relações dialéticas engendradas entre o Topos e o
trabalho humano que surge a linguagem, elemento essencial no processo de hominização dos
seres humanos. A relevância da ordem tópica na constituição das identidades humanas
encontra esteio não apenas nas idéias lefebvrianas, mas também nas pesquisas realizadas por
Luria e Vygostky, especificamente na obra intitulada Estudos sobre a história do
comportamento (1996, p. 58 e 164), na qual expressam concordância com outros
pesquisadores quando estes afirmam que profundas mudanças “[...] são produzidas em nossa
natureza pela enculturação (educação) e pela influência do ambiente sobre nós.”; além disso,

325
Tese corroborada por Wertheim (2001, p. 222-223).
326
Como acertadamente afirmou Wittgenstein (1995, p. 114-115): “Os limites da minha linguagem significa os
limites do meu mundo. [...] Que o mundo é o meu mundo revela-se no facto de os limites da linguagem (da
linguagem que apenas eu compreendo) significarem os limites do meu mundo. O mundo e a vida são um. Eu sou
o meu mundo. (O microcosmos).”
Capítulo 3 234
Ângela Massumi Katuta

na perspectiva de todos eles, “[...] ambientes diferentes acarretam diferenças significativas na


estrutura da mente [...] da criança.” Não se trata aqui de defender determinismos, mas de
salientar e resgatar a importância dos lugares, do topos, na sobrevivência e constituição das
identidades e racionalidades humanas, suas espacialidades e geografias, idéia essa essencial
no desenvolvimento da reflexão ora proposta.
O entendimento explicitado aponta para a relevância dos lugares e características do
ambiente em que os seres humanos vivem em sua estrutura de pensamento 327 . Entendo que,
atualmente, somente podemos romper com o processo de estrangeirização ao qual somos
diariamente expostos, quando temos a oportunidade de racionalizar ou entender onde, como e
porque ocorrem os processos de re-produção em escala ampliada das relações de produção
(MOREIRA, 1999, p. 51-52).
Na perspectiva esboçada, o espaço escolar bem como as atividades que nele se
realizam ganham centralidade no processo de enculturação e modificação na estrutura da
mente dos alunos. Eis a centralidade da escola, do território escolar, na hominização dos
sujeitos, que deve ser resgatada pela própria instituição bem como pelos sujeitos que nela
trabalham.
É também na obra vygotskiana que se verifica a relevância dos processos educativos
na hominização dos sujeitos, principalmente daqueles realizados no ambiente da escola
formal. Isso porque o autor e seus colaboradores entendem que:
[...] a aprendizagem é um momento intrinsecamente necessário e universal para que
se desenvolvam na criança essas características humanas não-naturais, mas formadas
historicamente 328 . [...] todo o processo de aprendizagem é uma fonte de
desenvolvimento que ativa numerosos processos, que não poderiam desenvolver-se
por si mesmos sem a aprendizagem. (VIGOTSKII, 1988, p. 115).
Verifica-se, por meio da afirmação do autor, a relevância dos processos de
aprendizagem, sejam eles formais ou não-formais, no processo de hominização do ser
humano. Isso porque a característica essencial dos referidos processos é a de engendrar e fazer
avançar a área ou zona de desenvolvimento potencial 329 ; em outras palavras, “[...] faz nascer,

327
É interessante notar que mesmo os trabalhos de Cavalli-Sforza (2003); Mithen (2002) e Olson S. (2003), os
dois primeiros da área de genética e o último da antropologia-arqueologia, apontam para a relevância dos lugares
e suas características ambientais que forjaram o desenvolvimento de tecnologias específicas, linguagens e
costumes, o que influenciou na transformação da carga genética humana, de sua capacidade intelectiva e,
portanto, de domínio dos outros elementos da natureza.
328
Por isso, toda aprendizagem, todo processo de hominização envolve distintas espaço-temporalidades, tese
essa que se contrapõe à de universalidade intelectiva presente no conceito de fases de desenvolvimento cognitivo
criado por Jean Piaget.
329
Conceito criado por Vygotsky que coloca em relevância a aprendizagem escolar na medida em que entende
que, para além do aprendizado sistematizado, a escola produz algo fundamentalmente novo no comportamento
da criança, que é o aumento de sua capacidade de aprendizagem sob a orientação do professor ou de
companheiros mais capazes; daí a centralidade das interações sociais no contexto das teorias vygotskianas. A
zona de desenvolvimento potencial ou proximal compõe um dos níveis de desenvolvimento. O primeiro nível é
Capítulo 3 235
Ângela Massumi Katuta

estimula e ativa na criança um grupo de processos internos de desenvolvimento no âmbito das


inter-relações com outros, que, na continuação, são absorvidos pelo curso interior de
desenvolvimento e se convertem em aquisições internas da criança.” (VIGOTSKII, 1988, p.
115). Observa-se nas teses vygotskianas a assunção e criação de conceitos que remetem à tese
do movimento do conhecimento e sua inesgotabilidade, bem como a corroboração, neste
contexto, da relevância da aprendizagem formal para o desenvolvimento de características
humanas formadas historicamente, portanto não-naturais.
Apesar de sermos resultantes do trabalho e da aprendizagem, hodiernamente, em
função do processo de divisão social do trabalho e das mudanças tecnológicas 330 , temos
instituições que se voltam para processos educativos específicos, como é o caso da escola
formal. É novamente Vigotskii (1988) quem mostra a diferença entre a aprendizagem
cotidiana que auxilia na formação de um certo número de hábitos 331 , e aquela propriamente
escolar, cujo ponto de vista pode ser transposto para a aprendizagem de conhecimentos
geográficos:
Algumas pesquisas demonstram que este processo ativa uma fase de
desenvolvimento dos processos psicointelectuais inteiramente nova e muito
complexa, e que o aparecimento destes processos origina uma mudança radical das
características gerais, psicointelectuais da criança; da mesma forma, que aprender a
falar marca uma etapa fundamental na passagem da infância para a puerícia. [...] A
aprendizagem escolar orienta e estimula processos internos de desenvolvimento.
(VIGOTSKII, 1988, p. 116).
Pelo fato de a aprendizagem escolar orientar e estimular processos internos de
desenvolvimento, ela pode auxiliar na ruptura com alguns habitus construídos no processo de
aprendizagem não-formal, não raro pleno de obstáculos epistemológicos 332 . O que significa

denominado por Vygotsky (1991a, p. 95) de nível de desenvolvimento real, ou seja, o “[...] nível de
desenvolvimento das funções mentais da criança que se estabeleceram como resultado de certos ciclos de
desenvolvimento já completados.” Esse nível, em geral, é detectado por meio de testes. A zona de
desenvolvimento proximal é “[...] a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se costuma determinar
através da solução independente de problemas, e o nível de desenvolvimento potencial, determinado através da
solução de problemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração com companheiros mais capazes. [...] A
zona de desenvolvimento proximal define aquelas funções que ainda não amadureceram, mas que estão em
processo de maturação, funções que amadurecerão, mas que estão presentemente em estado embrionário.”
(VYGOTSKY, 1991a, p. 97).
330
Fator que possui centralidade na extração da mais valia relativa. Sobre esse assunto ver Moreira (1999).
331
Habitus em um sentido eliasino e bourdieusiano.
332
Estou tomando emprestada a noção de obstáculo epistemológico cunhada por Bachelard (1996, p. 17) que a
conceitua como conjunto de conhecimentos e hábitos de pensamento anteriores que se transformam em
empecilho ao processo de aprendizagem. Para o mesmo autor, na escola “[...] não se trata, portanto, de adquirir
uma cultura experimental, mas sim de mudar de cultura experimental, de derrubar os obstáculos já sedimentados
pela vida cotidiana.” Verifica-se por meio do entendimento bachelardiano a idéia do não estancamento do saber,
seja no plano da singularidadade, da particularidade ou mesmo da generalidade. Esta reflexão torna-se
extremamente importante no contexto do entendimento dos processos educativos, área na qual as polaridades
têm predominado, ora em favor dos saberes científicos elaborados no plano da generalidade, ora em favor dos
saberes cotidianos elaborados no plano da singularidade. É na tensão dialética entre esses planos que o
Capítulo 3 236
Ângela Massumi Katuta

assumir que “[...] o processo de desenvolvimento não coincide com o da aprendizagem, o


processo de desenvolvimento segue o da aprendizagem, que cria a área de desenvolvimento
proximal.” (VIGOTSKII, 1988, p. 116).
Por isso, para o autor, “[...] a tarefa concreta da escola consiste em fazer todos os
esforços para encaminhar a criança nessa direção, para desenvolver o que lhe falta. [...] o
único bom ensino é o que se adianta ao desenvolvimento.” (VIGOTSKII, 1988, p. 113-114).
Propor atividades de ensino desafiadoras que auxiliem o aluno na realização do infinito
movimento que é o conhecimento, partindo da singularidade, passando pela particularidade e
daí para a generalidade, para fazer novamente esse mesmo movimento em um outro plano
diferenciado é papel da escola e se realiza por meio do trabalho com os códigos socialmente
construídos.
Em relação aos referidos códigos ou linguagens, Luria (1988) afirma que as funções
das palavras para pessoas sem instrução são completamente diferentes para aquelas instruidas.
Isso indica a relevância da escola no que se refere aos usos que os sujeitos fazem da
linguagem e seu impacto no pensamento e ações humanas.
Pessoas sem instrução usam a linguagem em sua função primária, ou seja, a empregam
“[...] apenas para ajudá-las a relembrar e reunir os componentes da situação prática mais do
que para permitir que formulem abstrações ou generalizações.” (LURIA, 1988, p. 51-52).
Nesse caso, ocorre a predominância do uso da linguagem enquanto recurso mnemotécnico.
Esse mesmo uso é feito por indivíduos pertencentes a grupos sociais primitivos 333 e aponta
para uma concepção de linguagem enquanto reprodução exata do real. Não raro, esse
entendimento também ocorre no meio escolar e acadêmico científico, daí a necessidade de
esclarecer que qualquer linguagem ou representação constitui-se em sucessivas aproximações
do fenomênico, apresentando possibilidades múltiplas de apreensões e compreensões do real.
Segundo Luria (1988, p. 52), pessoas instruídas ou com algum grau de instrução usam
a palavra para codificar objetos em esquemas conceituais:
[...] Novas experiências e novas idéias mudam a maneira de as pessoas usarem a
linguagem, de forma que as palavras tornam-se o principal agente da abstração e da

conhecimento escolar é gerado; dirimir obstáculos epistemológicos implica o avanço da zona de


desenvolvimento proximal e a construção da autonomia intelectual do aluno.
333
É importante esclarecer que Vygotsky denominava alguns grupos humanos de primitivos, destituído de
qualquer intenção de desvalorizá-los, como o mesmo esclarece no trecho que segue: “[...] De pleno direito, esses
povos não podem ser chamados de primitivos, porque todos eles parecem possuir um maior ou menor grau de
civilização. [...] No sentido estrito da palavra, hoje não existe homem primitivo em parte alguma e o tipo humano
como se apresenta entre os povos selvagens [os mais antigos] só relativamente falando pode ser chamado de
primitivo. A primitividade nesse sentido é o estágio mais baixo e o ponto de partida do desenvolvimento
histórico do homem.” (VYGOTSKY; LURIA, 1996, p. 96). É na perspectiva vygotskiana que o termo primitivo
está sendo empregado.
Capítulo 3 237
Ângela Massumi Katuta

generalização. Uma vez educadas, as pessoas fazem uso cada vez maior da
classificação para expressar idéias acerca da realidade.
Verifica-se, por meio da afirmação do autor, que uma linguagem não possui uma única
possibilidade de uso, o que corrobora com a idéia wittgeinsteniana de jogos de linguagem
(1995, p. 189-190); além disso, a defesa de que novas experiências e idéias modificam os usos
que as pessoas fazem da linguagem remete também à tese do mesmo autor de que essa
compõe a práxis humana (WITTGENSTEIN, 1995, p. 187).
Dessa maneira, verifica-se que o ambiente em que as pessoas vivem, em um amplo
sentido, é um elemento relevante no que se refere ao uso que fazem da linguagem, porque “Os
processos de abstração e generalização não são invariáveis em todos os estágios do
desenvolvimento socioeconômico e cultural. Pelo contrário, tais processos são produto do
ambiente cultural.” (LURIA, 1988, p. 52). É em função disso que se deve lutar pela
disseminação espacial eqüitativa dos ambientes educativos formais e não-formais; atualmente,
suas territorialidades expressam e reproduzem as desigualdades próprias de sociedades
capitalistas.
Os sujeitos sociais, ao entrarem em contato com “[...] códigos verbais e lógicos que
lhes permitem abstrair os traços essenciais dos objetos e subordiná-los a classes, seriam
também capazes de executar um pensamento lógico mais complexo.” (LURIA, 1988, p. 52).
Eis a importância da linguagem no contexto dos processos educativos e a necessidade de a
escola trabalhar com diversos códigos verbais e lógicos, principalmente em um país como o
Brasil, onde as desigualdades sociais atingem níveis absurdos, a fim de propiciar o
desenvolvimento da autonomia intelectual do educando, rompendo dessa maneira com o
processo de estrangeirização discente.
Nesta perspectiva, a reflexão sobre as matérias de ensino nas instituições escolares,
seus objetivos pedagógicos, os conteúdos a serem trabalhados, bem como sobre as linguagens
− códigos verbais e lógicos, coordenadas semióticas − a serem utilizadas torna-se
extremamente relevante a uma educação que vise à ruptura com o processo de
estrangeirização supra citado.
Segundo Olson D. (1997, p. 287), os sistemas de escrita ou de registro escrito devem
ser vistos como “[...] recursos para a comunicação visual [...] em vez de instrumentos para a
representação exata do que é dito: um objetivo que nenhuma escrita consegue alcançar. [...]
Os sinais que consistem em palavras, sílabas e letras têm cada um as suas vantagens e
desvantagens [...]”. Assim, é por meio das linguagens que os fenômenos podem ser
percebidos e racionalizados, e cada uma delas possui especificidades, vantagens e
desvantagens, sendo necessário que seus usuários, principalmente docentes, tenham
Capítulo 3 238
Ângela Massumi Katuta

consciência desse fato, a fim de que o uso das mesmas seja adequado a seus objetivos
pedagógicos.
As coordenadas semióticas ou linguagens possuem especificidades, daí capturarem ou
racionalizarem, sob diferentes aspectos, os lugares por meio de grades as mais diversas, o que
depende do tipo de trama e urdidura utilizadas em sua composição. Eis os limites e
especificidades de cada linguagem abordados por Wittgenstein (1995, p. 375) em sua obra
Investigações filosóficas, pois, segundo ele, uma forma de expressão inapropriada produz
confusão e imobilidade. Daí a necessidade de a escola trabalhar com diferentes códigos ou
coordenadas semióticas, para que seus alunos não estanquem na confusão e imobilidade,
fundamento do processo de estrangeirização e alienação discente no contexto do ensino de
geografia:
<<Assim uma pessoa que não aprendeu uma linguagem não pode ter certas
recordações?>> Certamente − não pode ter recordações verbais, não pode verbalizar
desejos ou medos, etc. 334 E recordações, etc., verbais não são apenas as
representações coçadas das experiências realmente vividas; pois não é a linguagem
também uma vivência? (WITTGENSTEIN, 1995, p. 486).
No caso específico da geografia ensinada, há de se trabalhar necessariamente com a
linguagem cartográfica. Esta, da forma como atualmente a conhecemos, é um dos
instrumentos para o entendimento da espacialidade do capital e, ao mesmo tempo, constitui-se
em exemplo de linguagem tecida no contexto da trama e urdidura demandadas pelo modo de
produção capitalista. É por isso que a análise das espacialidades produzidas sob a égide do
referido modo de produção necessita dessa linguagem; contudo, não pode nela estancar, tendo
em vista que “O capitalismo não subordinou apenas a si próprio sectores exteriores e
anteriores: produziu sectores novos transformando o que pré-existia, revolvendo de cabo a
rabo as organizações pré-existentes.” (LEFEBVRE, 1971, p. 95, apud MOREIRA, 1999, p.
54). Dessa maneira, revolveu também espacialidades, transformando-as, cooptando-as em sua
diferencialidade, tornando o espaço ocupado pelo neo-capitalismo o lugar da reprodução das
relações de produção (LEFEBVRE, apud Moreira, 1999, p. 52).
Por isso, Moreira (1999, p. 56) afirma com muita adequação que se faz necessário
polissemizar a diferença, instituir o que denomina de dialética da identidade-diferença
geográfica 335 ; daí a necessidade de “[...] rever o modo de ser representação [...], num outro

334
Lembremo-nos do personagem Fabiano criado por Graciliano Ramos em sua obra literária intitulada Vidas
Secas. A dificuldade do sertanejo de articular idéias e argumentar expressavam um não saber cujo fundamento
primordial era a falta de domínio da linguagem. (Grifo da autora).
335
“Diferença como conteúdo concreto. Não diferença como mediação da identidade, pura categoria do método
da representação [...] Sujeito que se polimorfiza com o tema da diferença. Morte do sujeito universal.
Nascimento do sujeito múltiplo. [...] Dialética do singular-plural, porque devém-revém da cadeia de reinvenções
do trabalho: do valor-trabalho, do mundo do trabalho, e, assim, dos sujeitos do trabalho. E diferenc(i)ação da
Capítulo 3 239
Ângela Massumi Katuta

que combine heterogêneo e homogêneo sem que a diferença desapareça na homogeneidade-


identidade por um ardil formal da razão.” Por quê?:
Porque trata-se de dialogizar a dupla direção do olhar: da identidade para a
diferença, da diferença para a identidade. De reatar a dialética das significações
múltiplas, do significado que também é significante, da identidade que também é
diferença, da ausência que também é presença, do homogêneo que também é
heterogêneo 336 .
Deve-se, portanto, somar à linguagem cartográfica muitas outras que apresentam as
espacialidades humanas de diferentes maneiras, o que significa ampliar a nossa capacidade de
apreendê-las e entendê-las em suas múltiplas determinações.
É novamente Wertheim (2001, p. 222-223) que expressa com propriedade a relação
entre a grade das linguagens e a grade dos lugares:
Assim como o ciberespaço é comunalmente produzido, assim também o são, num
sentido profundo, todos os espaços. [...] Aqui, novamente, a linguagem é chave, pois
cada tipo diferente de espaço requer um tipo diferente de linguagem. Assim como o
ciberespaço não pôde ganhar existência até que novos tipos de linguagem para a
comunicação eletrônica fossem desenvolvidos, assim também qualquer novo tipo de
espaço requer o desenvolvimento de uma nova linguagem. [...] a ‘produção do
espaço’ é necessariamente uma atividade comunal. Os espaços que habitamos são
indefectivelmente articulados por comunidades de pessoas, que não são capazes de
expressar suas idéias sobre a realidade senão através do meio da linguagem. O modo
como nos vemos inseridos num esquema espacial mais amplo não depende apenas
de nosso conhecimento dos ‘fatos’; está sempre em jogo uma questão de negociação
social e lingüística. Como o próprio Einstein reconheceu, é a linguagem que usamos
− os conceitos que articulamos e portanto as perguntas que formulamos − que
determina o tipo de espaço que somos capazes de ver.
Pelo fato de os espaços serem produzidos socialmente em diferentes contextos
históricos e geográficos, eles se constituem em fenômenos complexos; por isso, se faz
necessário ampliar e amplificar nossa capacidade de entendimento das espacialidades por
meio de diferentes linguagens no ensino da geografia. Obviamente que esse tipo de trabalho
implica o entendimento dos limites e possibilidades das linguagens em relação ao
entendimento das espacialidades, o que aponta para a necessidade de realização de pesquisas
aplicadas a esse objetivo que possam auxiliar na tecedura de práticas pedagógicas que
incorporem diferentes grades de linguagem a fim de entender a grade dos lugares.

forma-valor, indicativa da pluralização (não fim ou descentração) do sujeito: espaço polissêmico, porque de um
sujeito polissêmico.” (MOREIRA, 1999, p. 54).
336
É interessante notar que o entendimento de Moreira (1999) acerca da representação está muito próximo da
concepção que Lefebvre (1983) explícita em sua obra: La presencia Y la ausencia: contribucion a la teoria de
las representaciones. Ao enfatizarem o movimento no processo de conhecimento, identificam a necessidade da
dialetização dos significados que também são significantes (grade da linguagem), das identidades que são
também diferenças, da ausência que é presença, do homogêneo que é também heterogêneo: “El espacio así
concebido se define como juego de las ausencias y las presencias, representadas por la alternancia de las sombras
y de las claridades, de lo luminoso y de lo nocturno. Los ‘objectos’ en el espacio simulan la aparición y la
desaparición más profundas de las presencias.” (LEFEBVRE, 1983, p. 261). “O espaço assim concebido se
define como jogo das ausências e presenças, representadas pela alternância das sombras e claridades, do
luminoso e do noturno. Os ‘objetos’ no espaço simulam a aparição e o desaparecimento mais profundo das
presenças.” (Tradução da autora).
Capítulo 3 240
Ângela Massumi Katuta

Na geografia, muitos são os pesquisadores que têm feito esforços no que se refere à
pesquisa sobre diferentes linguagens, haja vista o aumento significativo da quantidade de
trabalhos sobre essa temática nos encontros, congressos e simpósios da área. No caso
específico da linguagem cartográfica, é importante destacar que os debates já se realizam há
algum tempo, sendo os trabalhos de Maria Elena Ramos Simielli, elaborados a partir de
1986 337 , um marco no Brasil no que se refere à reflexão e elaboração de materiais didáticos
voltados a uma cartografia especifica para o ensino básico.
As outras linguagens, se comparadas com os estudos realizados na área da cartografia
voltada para o ensino básico, necessitam de maior aprofundamento. Contudo, algumas teses já
vêem sendo defendidas. Somente a título de exemplo 338 podem ser citados os trabalhos de
Ferraz (2001, 2003), que abordam, respectivamente, a pintura, elementos da vida cotidiana
lidos a partir de rememorações proustianas, a produção fílmica; Oliveira Júnior (1999), que
aborda a linguagem filmica; Paganelli (1998), que aborda a pintura de paisagem do Rio de
Janeiro e os desenhos dos alunos da mesma paisagem; Santos D. (1997), que aborda as
concepções de espaço em mapas, na música e nos poemas.
Os trabalhos citados apreendem e compreendem as geografias e os lugares por meio
de outras grades que não as da cartografia. Isso não significa que apontem para a superação
dessa última; apenas indicam que existem outras linguagens passíveis de serem apropriadas
para que os lugares sejam compreendidos em suas múltiplas determinações. Apesar de
nutrirem relações mútuas, isso não significa que as grades dos lugares e as das linguagens
mantenham entre si correspondências biunívocas; estou partindo do pressuposto lefebvriano
de que ambas as grades:
[...] não coincidem não são idênticas, mas ambas se compõem de trajetos e
percursos, movimentos produzidos por uma ação. Ambas preenchem um tempo e
ocupam um espaço. Em ambas, vai-se de um ‘ponto’ ao outro ‘ponto’; e não
necessariamente, nem sempre, pelo caminho mais curto, porém através de uma
diversidade de caminhos, uns diretos e outros sinuosos. (LEFEBVRE, 1991, p.
33).
Dada a complexidade das relações humanas e aquelas estabelecidas pelo capital no
atual contexto, a apreensão e o entendimento das espacialidades e geografias produzidas pelos
seres humanos implicam a utilização de inúmeras grades de linguagens que nos permitam,
como afirma Moreira (1999), construir olhares para o espaço da diferença, para um espaço
337
Data de defesa de sua tese de doutoramento intitulada O mapa como meio de comunicação: implicações no
ensino da geografia do 1º grau. Sucessivamente a essa tese, nos quase vinte anos que a seguiram, verifica-se um
aumento expressivo de pesquisas sobre cartografia e ensino. Esse levantamento foi realizado por ARCHELA
(2000) em sua tese de doutoramento, orientada por Maria Elena Ramos Simielli, e está disponível em:
http://br.geocities.com/cartografiabr.
338
Não me ocupei em fazer um levantamento exaustivo dos trabalhos em geografia sobre linguagens pelo fato de
entender que essa atividade implicaria a realização de uma outra pesquisa.
Capítulo 3 241
Ângela Massumi Katuta

polissêmico, expressão dos sujeitos que os produzem. Eis o desafio colocado à disciplina de
geografia, cuja resposta deve estar fundada em uma ontologia do espaço “[...] pensado como a
coabitação tensa da diferença e da unidade.” (MOREIRA, 1999, p. 55-56). Trata-se então:
De articular com o olhar os ‘espaços da conceituação’, escalas de representação dos
conjuntos espaciais ditadas pela subjetividade do olho, numa leitura livre do
conceito de espacialidade diferencial [...] De portanto rever o modo de ser
representação [...], num outro que combine heterogêneo e homogêneo sem que a
diferença desapareça na homogeneidade-identidade por um ardil formal da razão.
Eis a ontologia e epistemologia do espaço nas quais devem estar ancoradas o ensino da
geografia e o uso que o mesmo deve fazer das representações e/ou linguagens. Esse é o “pulo
do gato” essencial e necessário para o retorno d’O Estrangeiro, que nenhuma metodologia de
ensino descolada dessa reflexão pode realizar.
A inserção do movimento, a combinação do heterogêneo e do homogêneo a fim de
entender a diferença e a unidade, somente pode se realizar a partir da ruptura com as
ontologias e epistemologias hegemônicas que, por meio da metafísica, tendem a simplificar o
complexo, a homogeneizar o não-homogeneizável, a eliminar a diferença por meio da
homogeneidade-identidade, a estancar no plano da generalidade, sem retornar à
particularidade e muito menos à singularidade.
Dessa maneira, uma via possível para o retorno d’O Estrangeiro reside no uso de
diferentes linguagens no ensino da geografia, que deve estar ancorado em uma ontologia e
epistemologia do “[...] espaço polissêmico, porque de um sujeito polissêmico.” (MOREIRA,
1999, p. 54), a fim de que sejam ampliadas suas coordenadas semióticas, suas grades de
linguagem para que ocorra o entendimento dos lugares.
O retorno d’O Estrangeiro ao “mundo da geografia” deve estar ancorado na
possibilidade e capacidade dessa disciplina dizer sobre o mundo conhecido em diferentes
escalas e por meio de várias linguagens, ou seja, sob diversas perspectivas que mantenham a
coabitação tensa da diferença e da unidade. Eis o desafio ontológico e epistemológico que
antecede à problemática das metodologias de ensino que, no atual contexto educacional, são
mostradas como as respostas mais adequadas e infalíveis à ruptura epistemológica
característica do ensino da geografia hegemônico que abordei até o momento.
Ler, decifrar a grade dos lugares por meio da grade das linguagens − uma na outra,
uma pela outra −, a fim de agir e conhecer: eis a passagem-caminho que poderá auxiliar na
ruptura com o processo de estrangeirização e alienação ao qual estão sujeitos os alunos da
escola formal, atualmente estrangeiros no “mundo da geografia”.
É papel da referida disciplina a ampliação de coordenadas semióticas que auxiliem os
sujeitos sociais no entendimento das diferentes espaço-temporalidades constituídas pelos
Capítulo 3 242
Ângela Massumi Katuta

diversos grupos humanos, não apenas as atualmente conhecidas e ainda existentes, mas
também aquelas que deixaram registros de sua existência 339 e muitas outras, ainda em
processo de vir a ser por estarem sendo tecidas pelos movimentos sociais. As últimas, por
fundarem-se no questionamento da ordem estabelecida, obviamente não passaram à história e
geografia oficiais, ou, se nelas constam, são apresentadas pejorativamente como disfunções
sociais ou com qualquer outro qualificativo deslegitimador; afinal, a construção do objeto
também se dá por meio da palavra.
Daí a necessidade de se trabalhar com a cartografia e com registros, representações e
formas de comunicação que se situam na esfera do real não realizado, como é o caso de
muitas linguagens artísticas ou não oficiais 340 , a exemplo da literatura, estudada por Sevcenko
(1999, p. 21). Para o autor: “A literatura portanto fala ao historiador sobre a história que não
ocorreu, sobre as possibilidades que não vingaram, sobre os planos que não se concretizaram.
Ela é o testemunho triste, porém sublime, dos homens que foram vencidos pelos fatos.”
Transpondo as idéias do autor para a geografia poder-se-ia dizer: algumas literaturas
bem como os diversos registros artísticos 341 , especialmente aqueles circunscritos às artes
plásticas 342 , podem falar ao geógrafo e seus alunos sobre os espaços que ainda não passaram à
existência, sobre as espacialidades que não vingaram, sobre as topias que não se
concretizaram ou estão em vias de concretização.
As linguagens que versam sobre o real não realizado também devem ter lugar no
ensino geográfico, pois são o testemunho dos grupos humanos que lutaram por espacialidades
mais democráticas e que foram vencidos, testemunham também a existência de espaços
fantasmagóricos, mefistofélicos que mantêm paralelismo com os fantasmas das desigualdades
sociais que ainda rondam o mundo dos vivos. Tais linguagens são igualmente sublimes por
apontar para as múltiplas possibilidades do vir a ser, para topias menos alienantes, para
figurações ligadas aos nossos desejos mais íntimos 343 e mesmo para lugares não existentes.
Sobre os lugares imaginários, Manguel (2003, p. não paginado) se pronuncia da
seguinte forma:

339
Ainda que eivado de dificuldades, o entendimento e estudo da geografia de grupos humanos pretéritos se
fazem necessários na elaboração de teorias sobre a constituição das espacialidades humanas, lacuna essa ainda
não preenchida pelos estudos geográficos.
340
Em um sentido bourdieusiano, as linguagens oficiais são aquelas diretamente ligadas ao exercício do poder,
instrumentos para a realização e reforço de uma hegemonia. Usei o termo “linguagem não oficial” para me
contrapor àquelas estabelecidas oficialmente pelos grupos hegemônicos.
341
Este ponto de vista precisou ser relativizado, pois as artes acadêmicas se situam hegemonicamente na esfera
da reprodução social. Sobre esse assunto ver Bourdieu (1996).
342
Afinal, como afirma Ostrower (2002, p. 174), as artes plásticas caracterizam-se por serem uma “[...]
linguagem visual composta unicamente de termos espaciais.”
343
Lembremo-nos das figurações espaciais ou pinturas feitas pelos artistas partícipes do movimento surrealista.
Capítulo 3 243
Ângela Massumi Katuta

[...] o mundo imaginário continua crescendo e incontáveis continentes da mente


nascem entre as capas de livros todos os anos. ‘Carregamos dentro de nós as
maravilhas que buscamos fora de nós’, disse o sábio sir Thomas Browne. ‘Há toda
uma África e seus prodígios em nós.’
Felizmente, com muita freqüência, alguém, via de regra um poeta − daquela estirpe
que possui muitos eus dentro de si, que pensam, sentem, que são lugares, que têm muitas
almas − que fala, indiferente a todos esses entes, nos apresentando as maravilhas que
buscamos fora de nós: imagens do real não existente. Daí Sevcenko (1999, p. 247), na
epígrafe que abre o presente item, afirmar que:
A missão do poeta é portanto mais complexa que a do cientista, do técnico ou do
governante. Pode servir-lhes de apoio ou de orientação, procura mesmo chamar sua
atenção e modelar-lhes o desempenho, mas as transcende todas na sua eficácia
simbólica. [...] Todo discurso criativo assinala um ato fundador, na medida em que
nomeia situações e elementos imprevistos, conferindo-lhes existência e lançando-os
na luta por um espaço e uma posição, no interior das hierarquias que encerram as
palavras encarregadas de dizer o mundo conhecido e compreendido.
(SEVCENKO, 1999, p. 247).
Para finalizar, poder-se-ia dizer que a missão do professor de geografia também é tão
complexa quanto a do poeta. Por meio da grade das linguagens deve mobilizar entendimentos
sobre a grade dos lugares, inaugurando dessa maneira um ato fundador: auxiliar os alunos a
entenderem os espaços enquanto coabitação tensa da diferença e da unidade, lançando-os na
luta por um espaço e uma posição em uma sociedade eivada de desigualdades com poderosas
armas: aquelas do saber sobre como se dá a (re)produção do espaço. Eis uma das vias
possíveis para o retorno d’O Estrangeiro.
Considerações sobre o ensino da Geografia, suas ontologias e epistemologias 244
Ângela Massumi Katuta

Considerações sobre o ensino da Geografia, suas ontologias e


epistemologias
“[...] Há uma pedagogicidade indiscutível na materialidade do espaço.” (FREIRE, 2004, p. 45).

Entender a ordenação e a materialidade dos espaços, eis o objetivo fundamental do


ensino da geografia na escola básica, que uma parte considerável das práticas docentes tenta
atingir e que o audacioso educador colocou em relevo, como consta na epígrafe do presente
item. Apesar de aparentemente simples, esse objetivo pedagógico dificilmente tem sido
alcançado, o que pode ser facilmente comprovado pelas representações sociais que as pessoas
possuem sobre o significado de se estudar a geografia. Não raro, essa disciplina é identificada
como um discurso sobre os fenômenos que ocorrem na superfície terrestre, desvinculados da
vida dos sujeitos que os vivenciam. Daí ser a memorização descontextualizada a principal
habilidade construída no contexto dessa disciplina.
A assunção, pela escola de massas, das ontologias e epistemologias hegemônicas
fundadas na metafísica − separação entre o sujeito e o objeto, o espaço e o tempo, entre
sujeito, espaço e tempo, a sociedade e a natureza, a dimensão individual e social etc. − auxilia
na (re)produção das relações de produção, por colaborar para a construção da subjetividade
capitalista, já abordadas por Gilles Deleuze e Félix Guattari em suas obras publicadas em co-
autoria ou individualmente.
Lefebvre (apud MOREIRA, 1999, p. 54) demonstra a mesma consciência dos autores
citados ao afirmar que “O capitalismo não apenas subordinou apenas a si próprio sectores
exteriores e anteriores: produziu sectores novos transformando o que pré-existia [...]”. Daí ter
entendido que, doravante, todo o espaço ocupado por esse modo de produção auxiliaria na
reprodução das relações de produção. A escola, bem como o ensino da geografia em sua face
hegemônica não passaram incólumes a esse processo; pelo contrário, auxiliaram a atenuar as
contradições do capital, disseminando sua concepção de espaço, possibilitando a sua
(re)produção, portanto, inviabilizando a produção de outras territorialidades.
Ao metaficisar as relações entre o sujeito e o objeto do conhecimento, o pensamento
hegemônico legitima a concepção fisicalista ou burguesa de espaço, ontologicamente
concebido como “[...] separado, externo, universal, dessensibilizado do homem, e, por isso,
agregador a partir do de fora [...]”. (MOREIRA, 1999, p. 55). Não por acaso, uma das
figurações espaciais criadas a partir do Renascimento pelos geógrafos, mercadores,
navegadores, viajantes, cartógrafos, entre outros, é o planisfério, a esfera colocada no plano,
Considerações sobre o ensino da Geografia, suas ontologias e epistemologias 245
Ângela Massumi Katuta

expressão de uma transformação cosmológica sem precedentes, cujo habitus inerente a essa
forma de representação se espraiou em escala planetária.
O planisfério coloca o sujeito, o observador, fora do mundo, sendo este último visto,
como diz Moreira (1999, p. 55), separado e externo, por sua imagem contrapor-se ao sujeito
cognitivo 344 . Essa representação universalizou-se pelo fato de a cosmologia de seus
elaboradores ter se hegemonizado a partir do poder da cruz, do ferro e do fogo,
dessensibilizando os ocidentais para o fato de que essa figuração espacial apresenta uma visão
de mundo tecida no contexto de um projeto societário que ainda predomina sobre os demais,
ora por inviabilizar outras territorialidades, ora por eliminá-las ou exterminá-las, como
ocorreu com aquelas produzidas pelos povos indígenas da América pré-colombiana e mesmo
com aquelas existentes em outros lugares do planeta, que apontavam para um processo
civilizador distinto daquele preconizado pelo capital.
É o que a montagem que fiz a seguir tenta demonstrar. Para sua composição, usei o
mesmo princípio de René Magritte: tensionar o imagético e o verbal, para que ambos saíssem
do lugar comum de complementaridade e hierarquia que, em geral, lhes é concedido em um
uso comum dessas linguagens e mesmo no ensino da geografia. “Num quadro, as palavras são
da mesma substância que as imagens. Vê se de outro modo as imagens e as palavras num
quadro.” (MAGRITTE, apud Foucault, 2002, p. 51).

344
Lembremo-nos dos sábios conselhos de Ginzburg (2001): toda imagem é afirmativa, necessitando da palavra
para negá-la, ainda que seja uma figuração de coisas que não existem. Sobre esse assunto ver o interessante
ensaio de Foucault (2002) intitulado Isto não é um cachimbo. Neste, o autor defende que uma imagem, qualquer
que seja ela, não pode ser confundida com algum aspecto do mundo nem com alguma coisa tangível, pois
apresenta a idéia de seu autor sobre o objeto, não é o mundo, mas a apresentação da idéia de alguém sobre ele.
Considerações sobre o ensino da Geografia, suas ontologias e epistemologias 246
Ângela Massumi Katuta

Ceci n’est pas le monde


E O ESPLENDOR dos mapas, caminho abstrato para a imaginação concreta,
Letras e riscos irregulares abrindo para a maravilha.

O que de sonho jaz nas encadernações vetustas,


Nas assinaturas complicadas (ou tão simples e esguias) dos velhos livros.
(Tinta remota e desbotada aqui presente para além da morte,
O que de negado à nossa vida quotidiana vem nas ilustrações,
O que certas gravuras de anúncios sem querer anunciam.

Tudo quanto sugere, ou exprime o que não exprime,


Tudo o que diz o que não diz,
E a alma sonha, diferente e distraída.

Ó enigma visível do tempo, o nada vivo em que estamos!)


(Fernando Pessoa, 1983, p. 150)
Figura 9 − Ceci n’est pas le monde (Isto não é o mundo)
É Guattari (1998, p. 37) quem nos lembra que a relação entre o sujeito e o fenomênico,
entre o primeiro e sua externalidade e, portanto, o espaço, é permeada pela intencionalidade
do sujeito que dá formatação ao objeto, sendo dele inseparável e conferindo-lhe identidade.
Daí não ser possível assumir no ensino da geografia uma única concepção de espaço; afinal,
os diferentes sujeitos sociais possuem as mais diversas intencionalidades. Inexiste objeto
puro, conhecimento puro; pelo contrário, todo objeto e conhecimento materializam a
intencionalidade dos sujeitos de uma época de um processo civilizador. Dessa maneira, diz-
nos o autor, a intencionalidade e racionalidade capitalísticas fundadas na oposição entre os
valores de uso e os de troca e na desconsideração de outros valores (de desejo, estéticos,
Considerações sobre o ensino da Geografia, suas ontologias e epistemologias 247
Ângela Massumi Katuta

ecológicos etc.) possuem poder de coação reterritorializante, eis o processo de


estrangeirização promovido pelo poder de coação do capital:
[...] fundado no primado das semióticas econômicas e monetárias e corresponde a
um tipo de implosão geral de todas as Territorialidades existenciais. [...] o valor
capitalístico não está à parte, fora dos outros sistemas de valorização; ele constitui o
coração mortífero de tais sistemas [...] que dissolve implacavelmente qualquer
tomada de consistência dos Universos de valor que pretendessem escapar à lei
capitalística. (GUATTARI, 1998, p. 69).
O espaço homogêneo resulta do poder de coação reterritorializante da racionalidade
capitalística, daí ser este isento de contradições, dessensibilizado, abstrato, tornando seus
usuários desterritorilizados ou estrangeiros no mundo da geografia. A escola e, no seu
interior, o ensino da geografia em sua face hegemônica corrobora e alimenta o referido poder
de coação visto que não rompe com a racionalidade capitalística; pelo contrário, a reproduz
quando da assunção apenas da concepção fisicalista de espaço, expressão de um sistema de
valorização tecido no contexto das relações capitalísticas fundadas no primado das semióticas
econômicas e monetárias.
Considerando-se o exposto, verifica-se a existência de uma rede de relações no
contexto do modo de produção capitalista, na qual está imersa toda a sociedade, fenômeno
esse denominado por Guattari (1998, p. 53) de máquina capitalística, cujos maquinismos de
base proliferaram: “[...] máquinas de Estado urbano, depois real, máquinas comerciais,
bancárias, máquinas de navegação, máquinas religiosas monoteístas, máquinas musicais e
plásticas desterritorializadas, máquinas científicas e técnicas etc...”.
A proliferação e a relação entre as máquinas tecnológicas e os maquinismos de base,
bem como seus reajustes, pressupõem uma serialização formal e uma certa diminuição da
singularidade das pessoas, fenômeno esse viabilizado também pela escola de massas, o que
amplia o processo de desterritorialização dos sujeitos, portanto sua estrangeirização.
Na perspectiva de Félix Guattari e Gilles Deleuze, o processo descrito se expressa nas
linguagens de cada grupo social, o que indica o tipo de pensamento viabilizado pelos
diferentes processos civilizadores, projetos societários e maquinismos. A simples comparação
dos léxicos usados pelos seres humanos primitivos com aqueles empregados por grupos
sociais contemporâneos de cultura ocidental demonstra que os primeiros possuem uma
variedade maior de léxicos que expressam as singularidades dos objetos e, portanto, dos
sujeitos, eis o rumo de seu processo civilizador.
Lévy-Bruhl e Jaensch (apud VYGOTSKY; LURIA, 1996, p. 121) relacionam a
enorme riqueza vocabular dos grupos primitivos com sua extraordinária memória topográfica
e riqueza de saberes geográficos: “[...] a fala do homem primitivo realmente nos parece uma
Considerações sobre o ensino da Geografia, suas ontologias e epistemologias 248
Ângela Massumi Katuta

descrição infinitamente complexa (se comparada com nossa linguagem), e mais refinada,
plástica e fotográfica de algum acontecimento em seus mínimos detalhes.”
Paradoxalmente, Vygotsky defende que o desaparecimento gradual de grande número
de detalhes concretos na linguagem caracteriza o seu desenvolvimento, isso porque o uso de
termos genéricos como árvore, peixe, flor, pássaro etc, indica maior capacidade de abstração,
portanto maior desterritorialização. Não por acaso, é nas sociedades que utilizam termos
genéricos que se verifica um maior desenvolvimento tecnológico e capacidade de domínio
dos outros elementos da natureza, ainda que o processo civilizador indique uma possível
extinção da espécie humana no planeta se a direção do mesmo não for modificada 345 .
A coexistência de termos específicos e genéricos no horizonte vocabular da sociedade
ocidental indica a realização de dois movimentos inerentes ao processo de conhecimento
detectados por Elias (1998a): envolvimento e alienação346 . Para o autor, o conhecimento
somente pode ser realizado a partir de ambos os movimentos. É por isso que, quando o
conhecimento estanca no plano da generalidade, como ocorre com o ensino da geografia
hegemônico, o processo de conhecimento não se realiza. O envolvimento que abarca os
planos da particularidade e da singularidade é negado no contexto do referido ensino; isso
porque o único conceito de espaço que utiliza é aquele cartesiano, em que os seres humanos
são desterritorializados, sendo então inevitável o reforço do processo de estrangeirização e
alienação discente.
A assunção apenas das ontologias e epistemologias hegemônicas leva à crença na
homogeneidade, na verdade absoluta dos fatos, apesar de viver-se a heterogeneidade e a
transformação dos conhecimentos. Verifica-se nesse processo o que Guattari (1998, p. 66)
denomina de alisamento da textura ontológica, ou seja, a homogeneização provocada pela
necessidade da (re)produção do capital, tendo como fundamento a necessária metaficização
do saber sobre o mundo e as coisas que nele existem.

345
Guattari (1998, p. 164-165) se expressa da seguinte maneira sobre esta questão: “A redefinição das relações
entre o espaço construído, os territórios existenciais da humanidade (mas também da animalidade, das espécies
vegetais, dos valores incorporais e dos sistemas maquínicos) tornar-se-á uma das principais questões da re-
polarização política, que sucederá o desmoronamento do eixo esquerda-direita entre conservadores e
progressistas. Não será mais apenas questão de qualidade de vida, mas do porvir da vida enquanto tal, em sua
relação com a biosfera.”
346
Termo também traduzido como distanciamento que, não por acaso, indica uma métrica: quanto maior o
distanciamento em relação ao fenomênico, maior a capacidade de generalização, homogeneização, elaboração de
leis que explicam a uniformidade do fenomênico e, conseqüentemente, menor a percepção dos detalhes, das
particularidades e singularidades. Eis o olhar renascente disseminado por meio da escola de massas.
Considerações sobre o ensino da Geografia, suas ontologias e epistemologias 249
Ângela Massumi Katuta

A possibilidade de ruptura com esse processo civilizador reside na assunção de


ontologias e epistemologias fundadas na tensão e contradição, nas quais a diferença e a
unidade coabitem em um mesmo espaço concebido como múltiplo, a fim de
[...] reatar a dialética das significações múltiplas, do significado que é também
significante, da identidade que também é diferença, da ausência que também é
presença, do homogêneo que também é heterogêneo. [...] De articular com o olhar os
‘espaços de conceituação’, escalas de representação dos conjuntos espaciais ditadas
pela subjetividade do olho [...]. (GUATTARI, 1998, p. 66).
Aqui, o que se quer realçar é a necessidade da assunção de ontologias e epistemologias
fundadas na tensão e contradição, no movimento do conhecimento, daí a necessidade da
relativização ontológica e enunciativa defendidas por Guattari (1998, p. 64-65):
A relatividade ontológica 347 aqui preconizada é inseparável de uma relatividade
enunciativa. O conhecimento de um universo − no sentido astrofísico ou no sentido
axiológico − só é possível através da mediação de máquinas auto-poiéticas 348 .
Convém que um foco de pertencimento a si exista em alguma parte para que
qualquer ente ou qualquer modalidade do ser possa vir à existência cognitiva. Fora
desse acoplamento máquina-universo, os entes só têm um puro estatuto de entidade
virtual. E acontece o mesmo com as suas coordenadas enunciativas.
Daí a necessidade da ampliação do rol de linguagens utilizadas no ensino da geografia
para além da cartografia, essa seminal ao conhecimento ora em questão. Mobilizar
sentimentos de pertencimento ao(s) lugar(es) para que esses adquiram existência cognitiva,
eis o papel das linguagens no ensino da referida disciplina, pois, como afirma Foucault (apud
SEVCENKO, 1999, p. 21) “[...] o ‘real não se subordina ao possível; o contingente não se
opõe ao necessário’. Pode-se portanto pensar numa história dos desejos não consumados, dos
possíveis não realizados, das idéias não consumidas.”
Nesta mesma perspectiva, pode-se pensar em uma geografia das espacialidades não
consumadas, daquelas possíveis e não realizadas e mesmo daquelas que foram eliminadas
pelo atual projeto societário, cuja possibilidade de vir a ser ou de manutenção foi eliminada
no processo de homogeneização-alisamento ontológico e epistemológico promovido pelo
capital. Onde encontrar essas espacialidades? De uma maneira ampla e me inspirando
sobretudo na idéia da obra Literatura como missão de Sevcenko (1999), eu diria que nos
incontáveis registros, representações ou coordenadas semióticas produzidos pelos grupos
humanos cujas espacialidades e, portanto, formas de vida e territorialidades foram e ainda são
marginalizados pelos saberes hegemônicos.
Tantas linguagens quantas forem as concepções de espaço, diferentes modos de
semiotização porque diversificados são os relacionamentos dos grupos humanos entre si e
com os territórios, porque diferentes são os processos de hominização. Eis a importância das
347
E epistemológica. Grifo da autora.
348
As linguagens possuem importância fundamental neste processo, por serem coordenadas semióticas por meio
das quais determinados tipos de pensamento passam à existência. Grifo da autora.
Considerações sobre o ensino da Geografia, suas ontologias e epistemologias 250
Ângela Massumi Katuta

linguagens enquanto suporte para a realização de práticas, discursos e entendimentos os mais


variados sobre os objetos, como bem nos lembra Sevcenko (1999, p. 247):
Todo discurso criativo assinala um ato fundador, na medida em que nomeia
situações e elementos imprevistos, conferindo-lhes existência e lançando-os na luta
por um espaço e uma posição, no interior das hierarquias que encerram as palavras
encarregadas de dizer o mundo conhecido e compreendido. [...] Há, por essa razão,
tensões tão fortes entre diferentes ordens de textos, como aquelas que se manifestam
no interior das sociedades.
Eis uma das vias por meio da qual O Estrangeiro poderá retornar ao mundo da
geografia. A generalidade e a abstração discursiva (distanciamento ou alienação) devem
marcar o ponto de chegada e, ao mesmo tempo, de partida do sujeito cognoscente no seu
interminável pensar sobre o mundo e as geografias produzidas pelos diferentes grupos
humanos, sendo que a particularidade e a singularidade (envolvimento) devem permitir o
afloramento do sentimento de pertencimento, portanto, a possibilidade de construção de
coordenadas semióticas que auxiliem os sujeitos na realização de espacialidades menos
alienadas. Envolvimento e alienação ou distanciamento, eis os dois movimentos do
conhecimento necessários a um ensino de geografia voltado à autonomia intelectual do
educando.
Entender a ordenação do real realizado se impõe como tarefa fundamental da
geografia no ensino básico, pois como afirma Guattari (1998, p. 33): “[...] A única finalidade
aceitável das atividades humanas é a produção de uma subjetividade que enriqueça de modo
contínuo sua relação com o mundo.”
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