Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
KATUTA, Â. M. O Estrangeiro No Mundo Da Geografia. Tese
KATUTA, Â. M. O Estrangeiro No Mundo Da Geografia. Tese
São Paulo
2004
O Estrangeiro no mundo da Geografia
Ângela Massumi Katuta
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA FÍSICA
São Paulo
2004
Ângela Massumi Katuta
___________________________________________
Orientadora: Profa. Dra. Maria Elena Ramos Simielli
Universidade de São Paulo
Membros da Banca:
2º Examinador: ______________________________________________________________
3º Examinador: ______________________________________________________________
4º Examinador: ______________________________________________________________
5º Examinador: ______________________________________________________________
A Os Nossos Antepassados:
1
Título da brilhante trilogia escrita por Ítalo Calvino (1997).
Agradecimentos
O presente trabalho expressa uma pequena parte de um conjunto de reflexões
que venho realizando há algum tempo, com muitas pessoas e nos mais variados fóruns,
desde as mesas dos botecos, conversas e encontros com amigos, passando por debates
sujeitos, vivos, mortos, (mais vivos que mortos e, também, mais mortos que vivos), que
trama de idéias que ora apresento para apreciação e debate. Daí a impossibilidade da
realização de agradecimentos pontuais a cada uma das pessoas, pois, por mais que me
esforce, sempre alguém ficará fora da lista. Por isso, agradeço a todas as pessoas com
À orientadora Profa. Dra. Maria Elena Ramos Simieli, pela orientação, liberdade,
Ao Douglas Santos grande mestre-amigo que, como talvez diria sua finada mãe,
exatamente esse movimento do conhecimento que nos faz enxergar nossas limitações-
Aos meus pais, Katsuta-sam e Dona Catarina por todos os sacrifícios, bons e
maus momentos que a paternidade e a maternidade impõem por parte daqueles que as
assumem corajosamente ou mesmo pela força das circunstâncias. Pela estima e amor
expressos nas “caretices”, manias e exageros próprios de um PAI e uma MÃE para
Aos meus finados avós – Fussae Katsuta, Tami Hidaka e Teizuke Hidaka – pela
mãos e de meus sonhos que apenas uma concepção linear de história e euclidiana de
Aos meus irmãos Regina (Nê), Paulo (Sukata) e Heltton (KBção) pelo sentido
À Simone C. P. Déak pela força, pelo ouvido que, ao ser um sem número de vezes
nossas vidas: bons e ruins, mas todos eles dignos de muitos brindes, você “natureba”,
Ao Renatinho pela amizade livre, leve e solta... como todas devem ser.
Ao Cláudio Benito Oliveira Ferraz, vulgo Claudião, que, como diria um certo
companheira Flaviana, que sempre esteve junto nos muitos momentos de celebração da
cuidadosa do trabalho.
feita nos idos de 1987, início de minha graduação. Hoje, acho que entendo o que o
sábio pedagogo queria dizer com a expressão “pedagogia da esperança”, outrora por
A todos os seres humanos com os quais vivi e convivi, aqueles que vi, li, ouvi e
aprendi algo, para o bem ou para o mal. Assim, os meus sentimentos mais profundos
Disto eu gostaria:
ver a queda frutífera dos pinhões sobre o gramado
e não a queda do operário dos andaimes
e o sobe-e-desce de ditadores nos palácios.
Disto eu gostaria:
ouvir minha mulher contar:
- Vi naquela árvore um pica-pau em plena ação.
e não: - Os preços do mercado estão um horror!
Disto eu gostaria:
que a filha me narrasse:
- As formigas neste inverno estão dando tempo às flores,
e não: -Me assaltaram outra vez no ônibus do colégio.
Disto eu gostaria:
que os jornais trouxessem notícias das migrações dos pássaros
que me falassem da constelação de Andrômeda
e da muralha de galáxias que, ansiosas, viajam
a 300 km por segundo ao nosso encontro
Disto eu gostaria:
saber a floração de cada planta,
as mais silvestres sobretudo,
e não a cotação das bolsas
nem as glórias literárias.
Disto eu gostaria:
ser aquele pequeno inseto de olhos luminosos
que a mulher descobriu à noite no gramado
para quem o escuro é o melhor dos mundos
Disto eu gostaria:
ver que os mapas estão a fazer
uma outra cartografia
para ouvir dizer que há alma na geografia!
(Ângela Massumi Katuta, plagiadora por uma boa causa)
Dias de Luta
(Ira!)
Resumo
A presente tese aborda o ensino da geografia nas escolas básicas e tem como fundamento o
entendimento de que uma parte considerável dos “problemas” relacionados à aprendizagem, na
referida disciplina, se origina da assunção, pelos sujeitos sociais que atuam na escola, das
ontologias e epistemologias hegemônicas. Tendo como referência esta orientação, abordo, no
primeiro capítulo, o processo ao qual denominei de “estrangeirização” e alienação discente,
apontando para a relevância da linguagem na realização desse processo. Na seqüência, fiz um
mapeamento dos principais debates já realizados pela civilização ocidental acerca da linguagem,
mostrando a necessidade de seu entendimento no contexto das relações sociais, que são espaço-
temporalmente engendradas. É a partir dessa compreensão que demonstro as relações entre modo de
produção, concepções de espaço, linguagens – tomando como exemplo a cartográfica – e geografias
hegemonicamente produzidas e, portanto, ensinadas. Em seguida, saliento a necessidade de uma
abordagem materialista dialética dos atos de conhecimento nos processos educativos, indicando que
a possibilidade de superação do processo de “estrangeirização” e alienação discente somente pode
ser pensada, se o conhecimento escolar estiver colocado a favor de um projeto societário fundado
no entendimento da ordenação dos espaços pelos seres humanos. Concluo a reflexão indicando que
uma das vias possíveis para o retorno d’O Estrangeiro ao mundo da geografia reside na assunção de
ontologias e epistemologias fundadas na tensão e contradição, o que impõe a necessidade de
agregar outras linguagens àquelas comumente utilizadas na geografia desde a época de sua
institucionalização.
14
Apresentação.............................................................................
Referências.................................................................................................. 251
Apresentação 14
Ângela Massumi Katuta
Apresentação
“Caindo, caindo, caindo. A queda não terminaria nunca? ‘Quantos quilômetros será que já caí até
agora?.’ Disse em voz alta. ‘Devo estar chegando perto do centro da Terra. Deixe-me ver: isso
seria uns seis mil e quinhentos quilômetros de profundidade, acho...’ (pois, como se vê Alice
aprendera várias coisas desse tipo na escola e, embora não fosse uma oportunidade muito boa de
exibir seu conhecimento, já que não havia ninguém para escutá-la, era sempre bom repassar) ‘...
sim, a distância certa é mais ou menos essa... mas, além disso, para que Latitude ou Longitude,
será que estou indo?’ (Alice não tinha a menor idéia do que fosse Latitude, nem do que fosse
Longitude, mas lhe pareciam palavras imponentes a dizer).
Logo recomeçou. ‘Gostaria de saber se vou cair direto através da Terra! Como vai ser engraçado
sair no meio daquela gente que anda de cabeça para baixo! Os antipatias, eu acho...’ (desta vez
estava muito satisfeita por não haver ninguém escutando, pois aquela não parecia ser a palavra
certa) ...’mas vou ter que perguntar a eles o nome do país. Por favor senhora, aqui é a Nova
Zelândia? Ou a Austrália?’ (e tentou fazer uma mesura enquanto falava... imagine fazer mesura
quando se está despencando no ar! Você acha que conseguiria?) ‘E que menininha ignorante ela vai
achar que sou! Não, não convém perguntar nada: talvez eu veja o nome escrito em algum lugar.´”
(CARROLL, 2002, p. 13).
2
O processo de memorização descontextualizada de conteúdos escolares não é tão inútil quanto parece. Em todo
processo educativo − formal ou não formal − aprendemos algo, mesmo que seja o menosprezo pela liberdade de
indagar e aprender por meio da atividade, como ocorria na educação medieval hegemônica. Atualmente, ao
Apresentação 15
Ângela Massumi Katuta
enfatizarmos a memorização em si e per si, enquanto habilidade central a ser desenvolvida na escola, ensinamos
a nossos alunos que essa instituição pouco ou nada tem a auxiliar no entendimento da realidade por eles
vivenciada. Por isso, mesmo do ponto de vista da memorização escolar descontextualizada, faz sentido falarmos
em aprendizagem. É preciso enxergar o que se aprende explicita e implicitamente. Entendo que a memorização
no sentido de lembrança, reminiscência, recordação é um processo mental inerente ao ato de conhecer humano.
Em outras palavras, a vida humana e, conseqüentemente, o conhecimento não pode realizar-se sem o ato de
memorizar, no sentido colocado. Na escola aprendemos muito mais que os conteúdos por ela trabalhados, nos
ensinam como entender, viver e agir no mundo. Daí a importância social dessa instituição.
3
Atualmente, parece existir uma tendência em nossa sociedade em não diferenciar os termos: informações ou
dados de conhecimento. Há de se elaborar distinções entre essas palavras porque, apesar de sua
interdependência, existe uma diferença qualitativa entre elas. O acesso a dados ou informações pode realizar-se
de forma pontual e descontextualizada e pode ocorrer pelos mais variados meios. No entanto, apenas isso não
garante a construção de conhecimentos, aqui entendida como capacidade de entender e agir no mundo.
4
A escolarização é um processo que, apesar de parecer restrito apenas à aprendizagem de conteúdos escolares,
sempre envolve a construção de entendimentos sobre o mundo e sobre como nele agir. A escola, desde as suas
origens mais remotas até tomar a forma hodierna, fato esse ocorrido no século XVIII, caracteriza-se por ter o
papel hegemônico de reprodução social. Daí a importância de atentarmos não apenas para os conteúdos nela
trabalhados, mas também para todo o conjunto de saberes, atividades e atitudes cuja aprendizagem, ao não ser
explicitada, seja talvez até mais eficiente. Trata-se, de forma geral, da aprendizagem de modos de vida, de ser e
de agir – construção de habitus –, que caracterizam o ser da escola hegemônica enquanto instituição. Sobre esse
assunto ver Bourdieu (2000a, 2000b); Bourdieu e Passeron (1975).
5
Grifo da autora.
Apresentação 16
Ângela Massumi Katuta
6
Muitos psicopedagogos estão refletindo sobre a importância de o professor considerar o erro de forma
construtiva no processo de ensino e aprendizagem. Teixeira (1997), em artigo intitulado A análise de erros: uma
perspectiva cognitiva para compreender o processo de aprendizagem de conteúdos matemáticos, sintetiza a
origem do erro segundo diferentes concepções: behaviorista, piagetiana, brousseauniana. Reflexões sobre a
função pedagógica dos erros são relevantes, pois apontam que todos eles possuem uma lógica subjacente,
portanto, cabe ao professor saber lê-los ou interpretá-los no processo de ensino e aprendizagem. Propostas que
apontam para a inerência do erro no processo de ensino e aprendizagem resgatam o seu lugar na educação formal
e indicam, implicitamente, que o mesmo compõe o processo de ensino, além de expressar também a qualidade
da realização da aprendizagem.
7
É importante salientar que as distinções e oposições realizadas freqüentemente em nossa sociedade, por
exemplo, entre cultura de massas, popular e erudita, costumam ser utilizadas como divisores de águas entre o
que se reconhece como conhecimento legitimo e ilegítimo, bom gosto ou mau gosto, e servem de substrato para
a realização de processos de hierarquização social, legitimação cultural e universalização de apenas uma forma, a
imposta como legítima ou hegemônica, de entender e viver no mundo. Tais posturas legitimam a realização do
autoritarismo, seja ele de direita ou de esquerda.
8
Entre eles ver Fernández Enguita (1989, 1993); Manacorda (1991, 2002).
Apresentação 17
Ângela Massumi Katuta
9
Sobre esse assunto ver Fernández Enguita (1989), Frigotto (1993, 1996), Gentili (1998).
10
Mais adiante abordarei tais questões.
11
Aprender e memorizar para muitos alunos são sinônimos, foi o que constatei em minha dissertação de
mestrado, o que indica a realização de uma prática pedagógica que também não distingue tais ações.
Apresentação 18
Ângela Massumi Katuta
12
Termo usado por Moreira (2004).
Apresentação 19
Ângela Massumi Katuta
13
Sobre esse assunto ver: Smith (1987, p. 92).
14
Termo usado por Bourdieu (1997, p. 42). Para esse autor “Os ‘sujeitos’ são, de fato, agentes que atuam e que
sabem, dotados de um senso prático [...], de um sistema adquirido de preferências, de princípios de visão e
divisão (o que comumente chamamos de gosto), de estruturas cognitivas duradouras (que são essencialmente
produto da incorporação de estruturas objetivas) e de esquemas de ação que orientam a percepção da situação e a
resposta adequada. O habitus é uma espécie de senso prático do que se deve fazer em dada situação.”
15
Ver também Marconi e Presotto (1986, p. 209 et seq).
Apresentação 20
Ângela Massumi Katuta
como todo e qualquer conjunto de alteridade, buscando, dessa maneira, dar um sentido à sua
vida e, portanto, ao mundo 16 . O mapa, assim como qualquer outra produção cultural,
apresenta a percepção que os diferentes grupos humanos possuem de si, dos outros, dos
lugares, bem como da sua cosmologia 17 e de sua geografia.
Um outro motivo que me levou a optar pela cartografia para discutir a questão do
estranhamento discente ao qual me referi anteriormente foi que parti do pressuposto de que
“[...] só podemos pensar e imaginar mediante imagens de espaço.” (OSTROWER, 2002, p.
173). Em outras palavras, as imagens de espaço são uma das condições para a realização do
pensamento e da imaginação humanos, são o seu meio e o modo de compreensão. Além disso,
como tais processos não ocorrem separados da percepção, interpretação, compreensão,
criação e outros, podemos afirmar que as imagens de espaço são essenciais para a realização
do humano no ser humano.
A mesma autora afirma que as primeiras experiências espaciais do ser humano não
podem ser abreviadas, nem substituídas, pois irão compor o que se denomina de espaços
vividos. Em um primeiro estágio de conscientização, as referências básicas e a “língua” ou
metalinguagem são as mesmas para todos: “[...] as formas de espaço constituem tanto meio
como modo de nossa compreensão. Fornecendo imagens para nossa imaginação, o espaço
torna-se mediador entre experiência e expressão.” (OSTROWER, 2002, p. 173) 18 .
Para a autora citada, o espaço será o referencial anterior a todas as linguagens. Por
isso, muitas são compostas por termos espaciais, podendo ser destacadas a cartografia e a
16
Estou remetendo a uma concepção mais ampla do vocábulo: mundo. Esse deve ser aqui entendido não apenas
em uma perspectiva fisicalista. Mais adiante retomarei a discussão sobre tais oposições, expressões da cisão
cartesiana ainda presente na concepção ocidental de mundo.
17
Para Harley e Woodward (1987, p. 3) “[...] maps constitute a composite of graphics elements that reveals the
cultural context of the map’s origin.” “[...] mapas constituem um conjunto de elementos gráficos que revelam o
contexto cultural de suas origens.” (Tradução da autora).
18
Sobre este assunto ver também Castoriadis (2000), principalmente o Capítulo VI de sua obra A instituição
imaginária da sociedade, intitulado A instituição social-histórica: o indivíduo e a coisa. Nele, o autor defende a
idéia de que o indivíduo se torna social ou rompe com a mônada psíquica mediante a separação do mundo
privado do público. O “tudo = eu”, estado de indistinção, separa-se, engendrando o interior e o exterior. Nesta
perspectiva, a instituição do social para o indivíduo se constitui na cumplicidade com as noções de espaço. O
“tudo = eu” deve romper-se, gerando o “eu = interior” e o “Outro (alteridade) = exterior”, relações espaciais
fundamentais para que ocorra a ruptura com a mônada psíquica, situação na qual o recém-nascido pode morrer
se não romper com o autismo indiviso, característico dessa fase. A falta, o desejo, a ausência, o desprazer e a
necessidade contribuem para o dilaceramento do mundo autístico. “[...] A ausência do seio é desprazer enquanto
dilaceramento do mundo autístico. Porque o esquema primário permanece como condição de presentificação de
toda significação, porque tudo é sempre vivido pela psique em função da indistinção eu-mundo-sentido-prazer, é
que a ausência do seio pode tornar-se figura, mais exatamente: componente constitutivo do ‘objeto’, em sua
alternância com a ‘presença’ deste. Uma margem de não-ser virtual começa a delinear-se na fronteira da
representação; a polaridade do sim/não, da realidade e da negação, do possível e do efetivo encontram aqui seus
primeiros germes subjetivos, e o esquema figura-fundo começa a ser estabelecido como articulação geral de uma
‘consciência’ e de uma ‘percepção’ embrionárias.” (CASTORIADIS, 2000, p. 346). Eis a origem da consciência,
percepção, representação e do próprio conhecimento, na perspectiva do autor.
Apresentação 21
Ângela Massumi Katuta
pintura, figurações espaciais humanas que, em uma época bastante remota e ainda hoje, não
são tão distintas quanto parecem 19 . Hoje, estas duas linguagens expressam, em diferentes
lugares, concepções de espaço engendradas em um longo período de tempo 20 .
Não obstante terem ocorrido abalos e transformações na concepção cartesiana-
newtoniana-kantiana de espaço na física e na pintura que originaram outros olhares sobre as
coisas do e no mundo, isso não se verifica nos discursos escrito, falado e cartografado da
geografia escolar. Tentar compreender tal fato, apostando na inserção de outras linguagens no
ensino da geografia, para que esta amplie a possibilidade de entendimento de outras
espacialidades, foi meu segundo e derradeiro objetivo.
A presente reflexão está orientada pela seguinte tese: Uma parte significativa dos
denominados “problemas” no processo de ensino e aprendizagem de conteúdos geográficos
possui ancoragem ontológica e epistemológica. Em outras palavras, as rupturas – entre alunos,
os discursos geográficos e os cartográficos – expressam o quão pouco se avançou no ensino
da geografia em relação ao dualismo cartesiano, presente no discurso geográfico hegemônico,
fundado na assunção da concepção cartesiana-newtoniana-kantiana de espaço.
No contexto da oposição epistemológica que se operou entre o gênero humano e a
natureza 21 , entre a res cogitans – domínio dos pensamentos, sentimentos e experiência
espirituais –, e a res extensa – domínio fisicamente extenso de matéria e movimento –,
aproximadamente do século XV 22 em diante, temos a expulsão dos seres humanos do “mundo
da natureza”. Essa oposição epistemológicatem por fundamento a ontologia baseada na
concepção cartesiana-newtoniana-kantiana de espaço.
A racionalidade científica e o ideal de cientificidade modernos foram tecidos a partir
da referida oposição, e, quando da institucionalização das primeiras escolas de massas no
Oitocentos e Novecentos sob a égide do Estado nacional, irão se impor como a visão
verdadeira do mundo, portanto, real e científica. Todo o conjunto de saberes cuja elaboração
19
A distinção entre pintura e cartografia e, conseqüentemente, entre arte e ciência, ainda hoje é questionada por
um conjunto considerável de profissionais; sobre esse assunto ver Alpers (1999), Harley e Woodward (1987,
1994), Woodward (1987). O mapa é um material extremamente profícuo para se pensar sobre as distinções entre
cartografia e pintura, ciência e arte, razão e sensibilidade, reflexão esta elaborada pelos autores citados. O livro
organizado por Woodward (1987) intitulado Art and Cartography, em linhas gerais, aborda as seguintes
temáticas: a arte em mapas, a arte como mapa, mapas nas artes, mapas como arte. Retomarei este assunto mais
adiante, por ora basta informar que existem reflexões de estudiosos questionando a moderna distinção entre
pintura e cartografia.
20
Sobre esse assunto ver a tese de SANTOS D. (1997).
21
Galileu, em sua doutrina sobre as qualidades primárias e secundárias, expressa o habitus de pensamento que se
tornou hegemônico, principalmente, a partir do século XVII.
22
Com Copérnico, passando por Kepler, Galileu, Descartes e Newton, apenas para citar os principais
sistematizadores de uma visão quantitativa de mundo que vinha sendo lentamente tecida desde o século XIII, que
culminou com a substituição da visão qualitativa, principalmente a partir do final da Idade Média e ao longo de
todo período conhecido como Renascimento.
Apresentação 22
Ângela Massumi Katuta
não era parametrizada por essa concepção de cientificidade foi exorcizado. Ocorre, dessa
forma, uma ruptura entre os saberes humanos e, no limite, a própria fragmentação do “ser
humano”, cuja humanidade a partir desse momento irá se caracterizar pelo estilhaçamento.
Uma parte dos saberes discentes no contexto do dualismo cartesiano será então tomada
como senso comum, portanto, não passível ou digna de ser abordada na escola. Essa
instituição, por sua vez, trabalhará com discursos socialmente considerados como científicos.
No caso do ensino da geografia, a escola irá reproduzir aqueles que pouco ou de uma forma
bastante generalizada abordam a ordenação dos lugares vivenciados pelos alunos que, em
tese, deveria auxiliá-los no entendimento das diferentes territorialidades, objetivo pedagógico
central para uma geografia escolar que aponte para a autonomia intelectual.
O discurso ainda hoje adotado em muitos livros didáticos de geografia é o da descrição
descontextualizada dos elementos que compõem a paisagem, concebida como mera soma das
partes de um fenômeno exterior ao ser humano. Dessa maneira, como afirma Moreira (1994),
ocorre o escamoteamento do mutável, das relações que são, para o autor citado, os
fundamentos paradigmáticos que referenciam a construção geográfica das sociedades. O
tratamento escolar hegemônico dos saberes – distinção rígida entre senso comum e
conhecimento científico – fraturou a tal ponto a concepção de mundo, a leitura que os seres
humanos modernos fazem de si e do Outro, que esses se transformaram em verdadeiros
viscondes “Medardo di Terralba”, personagem central do primeiro volume da brilhante
trilogia de Ítalo Calvino (1997) que em uma guerra entre cristãos e turcos é atingido por uma
bala de canhão, dividindo-se em duas metades que miraculosamente sobrevivem. As duas
partes representam, simbolicamente, as dicotomias presentes na concepção cartesiana de
mundo que ainda hoje é o substrato da cosmologia ocidental hegemônica. Bondade e
maldade, verdade e falsidade, real e imaginário, sujeito e objeto, tempo e espaço passam a
coexistir separadamente e de forma maniqueísta em constantes batalhas que ainda são as
nossas atualmente.
No contexto escolar, o conhecimento de senso comum e outros saberes que não podem
ser apropriados por uma concepção cartesiana-newtoniana-kantiana de espaço são entendidos,
na maior parte das vezes, como elementos a serem banidos, desconsiderados no processo de
ensino e aprendizagem, esvaziando assim, o aluno de si, de seus sentimentos e experiências.
Sai o ser humano de cena e fica o invólucro, ao qual denominamos, na relação pedagógica, de
aluno: O Estrangeiro no mundo da geografia. Este sujeito, na perspectiva da instituição
escolar e, portanto, também de seus docentes, deve aprender a verdade das coisas do mundo
Apresentação 23
Ângela Massumi Katuta
23
Esclareço que o problema não é a descrição entendida enquanto um dos momentos do conhecimento, mas a
descrição realizada em si e per si, descontextualizada do contexto social e espaço-temporal em que as paisagens
foram engendradas.
Apresentação 25
Ângela Massumi Katuta
engendrada no e pelo capital, bem como as linguagens dela decorrentes as únicas possíveis e,
portanto, verdadeiras. Ocorre, dessa maneira, o processo ao qual denominei de estancamento
do conhecimento, que conduz à deslegitimação de outras concepções de espaço. Daí a
importância de se entenderem as concepções de espaço, as geografias produzidas e as
linguagens enquanto saberes estruturados, estruturantes e instrumentos de dominação. Esse
entendimento pode auxiliar na ruptura com o processo de alienação e subjetivação
capitalística. No contexto do ensino da geografia, supõe a reflexão das relações entre as
concepções de espaço, as geografias e linguagens produzidas no contexto de um determinado
processo civilizador.
No terceiro e último capítulo, intitulado O retorno d’O Estrangeiro, indico a
necessidade de uma abordagem materialista dialética dos atos de conhecimento nos processos
educativos, refletindo sobre nossa dualidade enquanto seres humanos, dado que resultamos de
processos evolutivos e de desenvolvimento que se realizam por meio do trabalho. Estas
características humanas são desconsideradas pelas abordagens metafísicas em educação e
devem ser resgatadas na medida em que podem auxiliar no retorno d’O Estrangeiro, o que
aponta para um processo de ensino que ultrapasse o discurso da generalidade e, em uma
relação dialética, que aponte para a necessária retomada do movimento do conhecimento, o
que supõe o estabelecimento de uma relação dialética entre os seus vários momentos que vai
da generalidade, passa pela particularidade e chega à singularidade, para daí (re)fazer o
movimento do conhecimento. Para tanto, a apropriação de outras linguagens são necessárias,
ainda que a cartográfica deva ter centralidade.
Concluo a reflexão indicando a necessidade da assunção de ontologias e
epistemologias fundadas na tensão, no movimento e na contradição, o que remete à relevância
da apropriação pelo ensino da geografia de outras linguagens e concepções de espaço, o que
não significa abandonar a linguagem cartográfica; pelo contrário, trata-se de utilizá-la em um
contexto ampliado de coordenadas semióticas.
Capítulo 1 26
Ângela Massumi Katuta
24
É importante salientar que Camus, a meu ver, teceu a cena do assassinato com a intenção de explicitar o
contexto banal ou comum no qual o mesmo ocorreu. Assim procedendo, nos transmite subliminarmente a idéia
de que, no contexto apresentado, qualquer ser humano poderia ter cometido o crime. Dessa forma, o autor
captura o leitor, que, ao longo do restante do livro, acaba se identificando com Mersault.
25
Ver em Ginzburg (1988, 1991a, 1991b, 1996).
Capítulo 1 27
Ângela Massumi Katuta
O autor, neste livro, denuncia a homogeneização dos habitus – “[...] sistema dos
esquemas interiorizados que permitem engendrar todos os pensamentos, percepções e as
ações característicos de uma cultura e somente esses.” (BOURDIEU, 1992, p. 347) −, e o
próprio processo civilizador característico do Ocidente moderno que, sob a superfície de um
discurso pretensamente democrático 26 , oculta o autoritarismo e o desrespeito pela diferença e,
conseqüentemente, pelo Outro e suas espacialidades, como foi o que ocorreu com inúmeros
povos dizimados no processo de colonização. É importante salientar que o habitus, enquanto
conjunto de práticas humanas, também se refere à organização do território; portanto, se
insere no rol do que diz respeito às espacialidades engendradas pelos seres humanos.
Santos B. (2000a, p. 137) nos auxilia a entender a problemática colocada por Camus
(1997), ao abordar o problema da descontextualização espaço-temporal da identidade na
modernidade, tornada hegemônica, inicialmente na Europa, espraiando-se posteriormente para
o restante do mundo, com graves conseqüências, dentre as quais cabe ressaltar o genocídio e o
etnocídio enquanto materialização da negação do Outro e afirmação da metafísica 27 inerente a
toda sociedade absolutista e dominadora.
Ao polarizar e disseminar a idéia de indivíduo-Estado como a única legítima e
verdadeira, o processo civilizador encetado acabou por eliminar, inviabilizar ou tornou
inexeqüível a construção de outras identidades, entendimentos de mundo e espacialidades:
“[...] Na tensão entre subjectividade individual e subjectividade coletiva, a prioridade é dada à
subjectividade individual; na tensão entre subjectividade contextual e subjectividade
abstracta, a prioridade é dada à subjectividade abstracta. [...]”. (SANTOS B., 2000a, p. 137)
26
Para aqueles que assumem as regras, as normas sociais e comportamentais que apontam para uma
territorialidade que viabilize os setores hegemônicos da sociedade.
27
Esta palavra teve inúmeros significados depois de sua criação por Andronico de Rodes (50 a.C.) que, ao
organizar um conjunto de textos aristotélicos que sucediam ao tratado da física, o traduziu como “após a física”,
dessa maneira, passou a usar o termo para algo que está além da física, que a transcende. Segundo Japiassú e
Marcondes (1996, p. 180), tanto a tradição clássica quanto a escolástica fizeram usos específicos deste termo;
contudo, não os explicitarei pois não é no contexto de tais filosofias que o estou utilizando. Para saber a distinção
do significado da palavra metafísica na tradição clássica e, na escolástica, sugiro uma consulta à obra dos autores
citados. Assumirei aqui o conceito de ‘metafísica’ usado por Lefebvre (1991) entendido por ele como aquele
pensamento que separa o que é ligado, fundamento de sua crítica à metafísica kantiana: “[...] A separação
metafísica entre sujeito e objeto − que, ao mesmo tempo, coloca o problema e o torna insolúvel − reproduz e
agrava, nas condições da consciência moderna, a separação imaginária, o desdobramento fictício entre a parte
lúcida de nosso ser (a alma, o espírito) e a parte ‘natural’ (o corpo, o mundo).” (LEFEBVRE, 1991, p. 53-56).
Dessa maneira, afirma o autor: “[...] designaremos como ‘metafísicas’ as doutrinas que isolam e separam o que é
dado efetivamente como ligado.” (LEFEBVRE, 1991, p. 50). A separação arbitrária do sujeito e do objeto do
conhecimento deriva do posicionamento metafísico. Nesse contexto, este último termo se torna um problema,
pois elementos ontologicamente ligados são separados, o que leva muitos metafísicos a raciocinarem do seguinte
modo: “[...] ‘O sujeito do conhecimento, o ser humano, é um indivíduo consciente, um eu; que é um eu? É um
ser consciente de si e, portanto, fechado em si mesmo. Nele, não pode haver senão estados subjetivos, estados de
consciência. Como poderia sair de si mesmo, transportar-se para fora de si a fim de conhecer uma coisa diversa
de si? O objeto, caso exista, está fora do seu alcance. O pretenso conhecimento dos objetos, a própria existência
destes, não são mais que uma ilusão [...]’.” (LEFEBVRE, 1991, p. 51).
Capítulo 1 28
Ângela Massumi Katuta
Essa tensão, encarnada por Mersault e a sociedade em que vive, foi o foco ou a matéria-prima
do romance de Camus (1997) por meio do qual acabou por denunciar as opções societárias
das classes hegemônicas do Ocidente em sua face dominadora. São destinados à prisão ou
morte aqueles que não se prenderam ao projeto societário estabelecido, estão livres os sujeitos
encarcerados ao projeto societário hegemônico 28 .
Camus (1997), n’O Estrangeiro, expõe com sensibilidade e dramaticidade o cerne das
desilusões, desentendimentos e desatinos do coletivo no qual se insere Mersault: a construção,
assunção, reprodução e disseminação de subjetividades individualistas e abstraídas de suas
espaço-temporalidades que não se enxergam no Outro, por não terem aprendido a olhar-se,
não-saber este produzido por sociedades absolutistas e autoritárias como é a erigida sob o
modo capitalista de produção.
Para Lévi-Strauss (apud Bauman, 2001, p. 118), duas são as estratégias básicas usadas
pelos ocidentais no momento em que se vêem na obrigatoriedade de enfrentar a alteridade e,
portanto, o Outro:
– a primeira delas é a antropoêmica, que consiste em “[...] ‘vomitar’, cuspir os
outros vistos como incuravelmente estranhos e alheios: impedir o contato físico, o
diálogo, a interação social e todas as variedades de commercium, comensalidade e
connubium.” (BAUMAN, 2001, p. 118). Esta estratégia está voltada para a total
negação do Outro, seu exílio ou aniquilamento, e as ações derivadas desta
estratégia vão desde o encarceramento, deportação e assassinato até formas mais
“leves” de negações, igualmente violentas, como a defesa da legitimidade do
direito ao acesso diferenciado aos espaços sociais.
– a segunda estratégia usada no enfrentamento da alteridade é denominada de
antropofágica e visa ao total aniquilamento da alteridade do Outro por meio da
assimilação forçada – cruzadas culturais, guerras declaradas contra costumes
locais, calendários, cultos, dialetos e o estabelecimento e disseminação de
preconceitos e superstições.
A estratégia antropoêmica foi a usada pelo coletivo em relação à alteridade de
Mersault. Aniquilar o Outro por meio da pena de morte seguiu-se à conscientização da
diferença. A metáfora do espelhamento de Lewis Carrol (2002), presente em Através do
Espelho, pode então ser evocada para colocarmos o problema do olhar invertido da sociedade
28
Sobre as mudanças na vida social e política no contexto da modernidade, ver a obra de Bauman (2001)
intitulada Modernidade líquida, na qual o autor faz uma análise perturbadora das alterações sofridas pela vida
humana ao analisar da transformação do significado de léxicos como emancipação, individualidade,
tempo/espaço, trabalho e comunidade.
Capítulo 1 29
Ângela Massumi Katuta
29
Em um sentido eliasiano ou bourdieusiano.
Capítulo 1 30
Ângela Massumi Katuta
30
Problemática esta discutida por Moreira (1987) em seu livro O discurso do avesso.
31
Estou usando esta expressão para distinguir o atópico do utópico; o primeiro termo revela o que não tem lugar
e jamais o terá, qual Deus e a razão moderna, onipotentes e oniscientes em suas descontextualizações espaço-
temporais e o segundo, o que pode ter lugar mas que ainda não foi realizado. A desconsideração das espaço-
temporalidades é um dos fundamentos do pensamento metafísico, daí a possibilidade lógica da eliminação da
diferença, que se torna visível se as referidas relações forem consideradas.
32
Abordarei a questão com maior detalhe mais adiante.
33
Essa constatação tem demonstrado ser denominador comum nas pesquisas, debates e reflexões sobre o ensino
da geografia, entre estes ver: Carlos (1999), Castrogiovanni et al (1998), Cavalcanti (1998), Ferraz (1994, 2001,
2003), Gebran (1994), Kaercher (1997), Katuta (1997), Lacoste (1989), Moreira (1987, 1988, 1992, 1993, 1999),
Oliveira (1989), Pereira D. (1999, 2003), Pereira, Santos e Carvalho (1991), Pereira R. (1993), Resende (1989),
Schäffer e outros (1998), Souza e Katuta (2001), Vesentini (1989, 1992), Vlach (1990, 1991) entre outros. Ver
também os números especiais de alguns periódicos como Boletim Gaúcho de Geografia (1999), Caderno CEDES
n. 39 (1996), Caderno Prudentino de Geografia n. 17 (1995) e Terra Brasilis n. 1 (2000).
Capítulo 1 31
Ângela Massumi Katuta
34
Atentar para o lugar em que o sujeito é colocado para observar o planisfério: sua visão é a de quem está fora
de um mundo composto por objetos mensuráveis, pairando no ar, assistindo ao que nele está ocorrendo, fato esse
que indica que na linguagem cartográfica a prioridade é a da res extensa, domínio dos objetos mensuráveis.
35
Esta geografia vem sendo criticada por muitos autores, dentre eles Lacoste (1989) e Moreira (1987) em suas
obras intituladas, respectivamente: A geografia – isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra e O discurso
do avesso – para a crítica da geografia que se ensina.
36
No final da década de 1990, no Brasil, muitos segmentos da área da educação vêm propondo a junção de
várias disciplinas das ciências humanas em um único bloco denominado de humanidades. Esta proposta, em
geral, tem como fundamento a tese de que, ao se realizar a interdisciplinaridade, o conhecimento do objeto seria
resgatado em sua totalidade, como se esta fosse a mera soma das partes. Os disseminadores dessa tese se
esquecem de que o próprio ato de conhecer implica, necessariamente, a realização de recortes; não é possível a
Capítulo 1 32
Ângela Massumi Katuta
tudo conhecer e nem a tudo ver. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) 9.394/96 pode ser
tomada como expressão do processo de desvalorização social da disciplina de geografia. No Capítulo II que
dispõe sobre a Educação básica – educação infantil, ensino fundamental e médio –, no artigo 26 que reza sobre o
currículo do ensino fundamental e médio, a Lei faz menção direta a uma série de disciplinas como língua
portuguesa, matemática, arte, educação física, história e língua estrangeira moderna. Os saberes tradicionalmente
ensinados pela geografia são citados sem nenhuma referência à disciplina, fato este que passa a ser entendido por
muitos educadores enquanto possibilidade de inserção de outros profissionais das ciências humanas, como se
pode verificar no trecho que segue: “Os currículos a que se refere o caput devem abranger, obrigatoriamente, o
estudo da língua portuguesa e da matemática, o conhecimento do mundo físico e natural e da realidade social e
política, especialmente do Brasil.” (BRASIL, 1997, p. 15). Na seção IV, no artigo 36, que trata do currículo do
Ensino Médio, verifica-se a indicativa das seguintes diretrizes nos itens I e III, respectivamente: “I - destacará a
educação tecnológica básica, a compreensão do significado da ciência, das letras e das artes; o processo histórico
de transformação da sociedade e da cultura; a língua portuguesa como instrumento de comunicação; acesso ao
conhecimento e exercício da cidadania [...] III – domínio dos conhecimentos da Filosofia e Sociologia
necessários ao exercício da cidadania.” (BRASIL, 1997, p. 19-20). Nos níveis mais avançados do ensino básico,
como é o de nível médio, os saberes geográficos sequer são citados, o que permite antecipar um possível
desaparecimento ou maior desvalorização da disciplina e dos saberes geográficos no Brasil. Os saberes aos quais
não se teve acesso não são valorizados.
37
Entenda-se também simbólica dado que inexiste separação entre produção material e simbólica, como
adequadamente nos lembra Marx (1993, p. 163-164): “O homem é um ser genérico, não só no sentido de que faz
objecto seu, prática e teoricamente, a espécie (tanto a sua própria como a das outras coisas), mas também − e
agora trata-se apenas de outra expressão para a mesma coisa − no sentido de que ele se comporta perante si
próprio como a espécie presente, viva, como um ser universal, e portanto livre. A vida genérica, tanto para o
homem como para o animal, possui sua base física no facto de que o homem (como o animal) vive da natureza
inorgânica, e uma vez que o homem é mais universal do que o animal, também mais universal é a esfera da
natureza inorgânica de que ele vive. Assim como as plantas, os animais, os minerais, o ar, a luz, etc, constituem,
do ponto de vista teórico, uma parte da consciência humana, enquanto objectos da ciência natural e da arte − são
a natureza inorgânica espiritual do homem, seus meios de vida intelectuais, que ele deve primeiro preparar para a
fruição e perpetuação − assim também, do ponto de vista prático, formam uma parte da vida e da actividade
humanas. No plano físico, o homem vive apenas dos produtos naturais, na forma de alimento, calor, vestuário ou
habitação, etc. A universalidade do homem aparece praticamente na universalidade que faz de toda a natureza o
seu corpo inorgânico: 1) como imediato meio de vida; e igualmente 2) como objecto material e instrumento da
sua actividade vital. A natureza é o corpo inorgânico do homem, isto é, a natureza na medida em que não é o
próprio corpo humano. O homem vive da natureza, quer dizer: a natureza é o seu corpo, com o qual tem de
manter-se em permanente intercâmbio para não morrer. Afirmar que a vida física e espiritual do homem e a
natureza são interdependentes significa apenas que a natureza se interrelaciona consigo mesma, já que o homem
é uma parte da natureza.”
Capítulo 1 33
Ângela Massumi Katuta
38
Sobre esse assunto ver a obra de Branco (1989) Dialética, Ciência e Natureza, principalmente o Capítulo VI
intitulado Sintomas da dialética da natureza (p. 205-249).
39
Sobre esse assunto ver Santos D. (1997).
40
A disciplina de geografia, em geral, é trabalhada de maneira descontextualizada do viver cotidiano das pessoas
e, por isso, não raro está associada apenas a atividades alienantes por se realizarem apenas em si e per si, como o
trabalho alienado sob a égide do modo de produção capitalista. Atividades como o decalque e pintura de mapas,
memorização de informações topológicas ou de respostas descritivas são facilmente identificadas pelos mais
diferentes atores sociais como sendo próprias da disciplina de geografia. Junto a muitos estudiosos das ciências
humanas também existem aqueles que, por meio de uma noção de espaço e tempo métricos, cujos fundamentos
residem na física clássica, ao considerarem o tão propalado fenômeno da compressão espaço-temporal,
característico da modernidade ou pós-modernidade, estão a decretar o fim da geografia, à maneira de Francis
Fukuyama, o apologeta do fim da história. Richard O’Brien e Paul Virílio estão entre os fiéis disseminadores da
disparatada idéia do fim da geografia. O que há de interessante nas teses do fim da história e da geografia está no
fato de que as mesmas podem ser tomadas como sintomas de que as noções de espaço-temporalidade estão a
sofrer transformações. A crítica, negação da relevância e o incentivo ao abandono de uma concepção de espaço
são ações que apontam na direção de sua transformação.
Capítulo 1 34
Ângela Massumi Katuta
41
Este questionamento e embate não são novos pois, segundo Escolar (1996, p. 70), já na primeira década do
século XX, a Geografia − ciência e disciplina − é criticada pelas outras ciências humanas, dentre elas a história,
sociologia e economia política. Segundo Escolar (1996, p. 69), do ponto de vista interno às ciências humanas, a
rápida aparição da sociologia somada ao distanciamento da geografia em relação à filosofia, são argumentos
utilizados pela economia política e história na tecedura dos seus questionamentos endereçados à ciência
geográfica.
42
Esta geografia foi denominada por Lacoste (1989, p. 31) como “geografia dos professores” e caracterizada
como aquela que, apesar de ter aparecido há menos de um século sob a égide do Estado nação, “[...] se tornou
um discurso ideológico no contexto do qual uma das funções inconscientes é a de mascarar a importância
estratégica dos raciocínios centrados no espaço.”, pois é, aparentemente, extirpada de práticas políticas, militares
e decisões econômicas, ou seja, da práxis humana realizada no contexto do atual modo de produção,
dissimulando, dessa maneira, a eficácia e relevância das análises espaciais enquanto instrumentos de ação dos
espaços. De minha parte, acrescentaria às observações do autor que essa geografia nega, sobretudo, as
espacialidades não hegemônicas ao não estabelecer racionalidades acerca das mesmas e, assim, acaba por
marginalizar seus portadores, atuando como elemento altamente alienador, processo este que ocorre também
com o trabalho alienado no modo de produção capitalista. O que se verifica no referido modo de produção é a
realização da alienação do trabalhador por meio do trabalho, concebido aqui de maneira ampla, enquanto
atividade humana no contexto das relações sociais. Marx (1993, p. 162-163) descreve o processo de alienação do
trabalhador: “[...] o trabalho é exterior ao trabalhador, quer dizer, não pertence à sua natureza; portanto, ele não
se afirma no trabalho, mas nega-se a si mesmo, não se sente bem, mas infeliz, não desenvolve livremente as
energias físicas e mentais, mas esgota-se fisicamente e arruína o espírito. Por conseguinte, o trabalhador só se
Capítulo 1 35
Ângela Massumi Katuta
constituem fundamento para a criação do que Marx (1993) denomina de homem genérico e de
sua universalidade, podendo, dessa maneira, auxiliar no processo de ruptura com o que, na
presente reflexão, estou a denominar como processo de ”estrangeirização” ou alienação
discente.
O fundamento do presente capítulo é a idéia de que questões referentes às disciplinas
escolares, ou aos conhecimentos, somente podem ser analisadas em se considerando o
contexto social e espaço-temporal em que ocorrem tais processos. As idéias e instituições
hegemônicas de uma época são produzidas nos modos de produção da existência humana, em
diferentes momentos históricos e lugares, em um movimento de tensão entre os sujeitos
sociais. Esta é a materialidade dos processos, historicamente negada pelas mais diversas
tradições filosóficas atreladas ao idealismo e ao positivismo e suas variantes produzidas nas
ciências humanas, que deve ser resgatada a fim de que se tenha uma compreensão mais
congruente com a realidade.
Desta maneira, como se trata de demonstrar como ocorre o processo de
“estrangeirização” ou alienação discente, por meio da aprendizagem de saberes geográficos
escolares, o presente capítulo foi estruturado em duas partes.
Em um primeiro momento, abordei as tensões dialéticas entre processo produtivo e
institucionalização da escola moderna. O primeiro e o segundo processo mantêm entre si
relações diretas, o que não significa dizer que as mesmas tenham se realizado espaço-
temporalmente de maneira linear. A análise de tais relações, ao longo da referida espaço-
temporalidade, nos revela que as mesmas são eivadas de tensões e contradições, por serem
expressões das relações sociais contraditórias que se travam no modo de produção capitalista.
Em cada Estado nação, em função de suas especificidades históricas e geográficas, houve
particularidades no que se refere ao modo como o processo se desenrolou, o que não significa
que não se possa estabelecer linhas gerais de desenvolvimento, a fim de compreender o tipo
de sociedade que a escola moderna auxiliou a construir.
Aqui assumo que, no que se refere aos processos relativos ao ser humano e,
especificamente, às questões abordadas no presente Capítulo, a perspectiva materialista
sente em si fora do trabalho, enquanto no trabalho se sente fora de si. Assim, o seu trabalho não é voluntário,
mas imposto, é trabalho forçado. Não constitui a satisfação de uma necessidade, mas apenas um meio de
satisfazer outras necessidades. [...] O trabalho externo, o trabalho em que o homem se aliena, é um trabalho de
sacrifício de si mesmo, de mortificação. [...] Chega-se à conclusão que o homem (o trabalhador) só se sente
livremente activo nas suas funções animais − comer, beber e procriar, quando muito, na habitação, no adorno,
etc. − enquanto nas funções humanas se vê reduzido a animal. O elemento animal torna-se humano e o humano,
animal. Comer, beber e procriar, etc., são também certamente genuínas funções humanas. Mas abstractamente
consideradas, o que as separa da restante esfera da actividade humana e as transforma em finalidades últimas e
exclusivas é o elemento animal.”
Capítulo 1 36
Ângela Massumi Katuta
43
Atualmente ainda é muito comum nos depararmos com análises, principalmente as estruturalistas, que
correlacionam mecanicamente a escola e todas as ações nela realizadas com as estruturas hegemônicas de poder
e que, dessa maneira, acabam por imputar a essa instituição um papel meramente reprodutor. Existem ainda
outras análises, em geral idealistas, que, ao abordarem o espaço escolar de maneira descontextualizada,
ingenuamente o entendem enquanto instância facilitadora da ascensão social, econômica e cultural, dos
indivíduos, tomados indistintamente. Ambas as perspectivas negam tanto o caráter histórico, geográfico, social e
contraditório dos processos educativos, quanto os locais onde os mesmos se realizam e suas instituições. Tais
análises acabam por se caracterizar pela sua unilateralidade, ao que desconsiderarem o movimento de tensão
dialético existente entre as classes sociais formadas no contexto do modo de produção capitalista.
Capítulo 1 37
Ângela Massumi Katuta
engendram e que são inerentes aos processos educativos e que, neste contexto, são reduzidos
a meros processos comunicativos que se realizam no território restrito da sala de aula.
Infelizmente, este é o fundamento de muitas teses ancoradas na metafísica, que
defendem que os “problemas de aprendizagem” dos alunos se devem a uma incorreta
utilização de metodologias de ensino por parte do professor. É neste horizonte restrito em que
está confinada uma parte significativa de reflexões e trabalhos realizados sobre os processos
educativos, principalmente aqueles circunscritos à educação formal. E é deste equívoco que se
alimentam as práticas educativas alienadas e alienadoras que têm se realizado no espaço
escolar como um todo.
[...] os que fazem da educação um problema, os que pensam e escrevem sobre ela e,
por conseguinte, os que elaboram a idéia de educação que ainda domina nossa
civilização, são as classes sociais distanciadas do trabalho ou, com maior freqüência,
aquelas pessoas que se ocupam da educação dessas classes ociosas. [...] Para aqueles
que não estão condenados a dedicar sua vida ao trabalho, sob condições que lhes são
impostas, para eles, em troca, a educação, ou seja, os objetivos da formação do
homem e os métodos para alcançá-los são, por natureza, um problema.
(FERNÁNDEZ ENGUITA, 1993, p. 23).
É preciso salientar que, como adequadamente nos lembra Manacorda (2002), a
propalada problemática dos métodos de ensino ou da didática aparece somente em sociedades
absolutistas e dominadoras, junto a algumas classes sociais e sob condições específicas:
quando se usa de um dado saber para o domínio e miséria do outro ou, em outras palavras,
quando se trata de usar os processos educativos a serviço da alienação.
Não por foi acaso que, de acordo com Capponi (apud MANACORDA, 2002, p. 279),
o entendimento da educação como arte que existe per si, que precisa de métodos para
sustentar-se foi idéia dos jesuítas. Em outras palavras, processos educativos alijados das
condições materiais de produção, das relações humanas e suas espaço-temporalidades foram
pensados por sujeitos sociais que estavam a serviço da dominação e subjugação do outro.
Afinal, a alienação, a aculturação 44 e a dominação de populações autóctones necessitavam de
um método de ensino eficaz que, não raro, fazia uso da violência física e, invariavelmente, da
psicológica, isso porque a cultura ocidental foi imposta a vários povos por ser considerada a
única legítima. Sobre o século XVIII nos informa Manacorda (2002, p. 280):
O problema do método ou da didática é o fastidioso problema pedagógico deste
século e suas soluções não são isentas de pedanteria, também nos maiores autores:
mas como não ver que este é o problema real, decorrência inevitável da evolução
histórica? Desde o momento que a instrução tende, embora lentamente, a
universalizar-se e a laicizar-se, mudando destinatários, especialistas, conteúdos,
objetivos, o ‘como ensinar’ (até as coisas mais tradicionais, como a preparação
‘instrumental’, ou ‘formal’ do ler, escrever e fazer contas) assume proporções
gigantescas e formas novas; tanto mais se o problema do método se entrelaça com o
44
É importante lembrar que toda aculturação envolve culturação, ou seja, tais processos se realizam de maneira
imbricada.
Capítulo 1 39
Ângela Massumi Katuta
problema dos novos conteúdos da instrução ‘concreta’, que surgem com o próprio
progresso das ciências e com sua relativa aplicação prática.
Ao se universalizar um tipo de educação laica, cujos valores, visões de mundo e
fundamentos estavam umbilical e visceralmente ligados à educação que se realizava no seio
das famílias aristocráticas e burguesas, os “problemas” do ensino vão, pari passu, se
avolumando com a disseminação da escola por todo o mundo. Não por acaso, atualmente os
mesmos estão majoritariamente presentes em escolas que atendem à classe trabalhadora, pois
é exatamente esta que tem dificuldade em aceitar como universal – resistência? –, habitus
engendrados pelas e para as classes sociais hegemônicas.
Weber (apud BOURDIEU, 2000b, p. 93) em sua obra O judaísmo antigo
acertadamente afirma: “O camponês só se torna ‘burro’ ali onde ele é pego pela engrenagem
de um grande império, cujo mecanismo burocrático ou litúrgico lhe continua sendo estranho.”
Ao resgatar a afirmação weberiana, Bourdieu (2000b) nos lembra que, existem mecanismos
de conversão coletiva da visão de mundo que passam a operar de maneira acelerada, quando
da institucionalização e disseminação do sistema de ensino, junto às classes sociais menos
favorecidas.
A disseminação da visão de mundo burguesa por meio da escola cria muitos
“problemas” de ensino que se constituem, em grande medida, em função do descompasso
entre a visão de mundo considerada como a única legítima, passível de ser racionalizada e
universalizada por meio do ensino, e as representações de mundo e das coisas nele existentes
das classes sociais não hegemônicas que, via de regra, não têm adentrado a escola.
Contudo, ideologicamente, os “problemas do ensino” são interpretados como
carências, ora dos professores, ora dos alunos ou da sociedade em geral. O que os idealistas
ou metafísicos não quiseram enxergar − a educação enquanto conjunto de relações sociais que
expressa as contradições fundamentais da sociedade que a configura −, constitui-se, ainda
hoje, em um campo a ser necessariamente explorado, dada a força e legitimidade que
possuem as pesquisas e trabalhos alinhados às referidas formas de pensamento 45 .
45
Para Fernández Enguita (1993, p. 17 et seq.), um elemento revelador da força do idealismo e da metafísica na
abordagem dos processos formativos reside no fato de que a educação e a pedagogia constituem-se em uma das
poucas áreas das denominadas ciências humanas ainda hoje impermeáveis ao marxismo ou às abordagens da
Teoria Crítica. No caso do Brasil, o materialismo histórico tem sido o método assumido e defendido por
educadores que se recusam a reduzir a educação ao mero plano das idéias. Contudo, desde a década de 1980 até
o final da década de 1990, parece ter caído em desuso, principalmente por aqueles educadores afeiçoados em
novidades ou modismos pedagógicos. Atualmente, urge, na perspectiva destes últimos, descobrir o pedagogo
conselheiro que tenha uma fórmula mágica, verborrágica, para as mazelas da educação. O fosso entre o fazer e o
pensar, na educação formal, tem constantemente aumentado. A partir da tese de muitos assessores e conselheiros
do Ministério da Educação de que os professores do ensino básico não possuem competência para pensar o
processo de ensino e aprendizagem no qual atuam, o Ministério da Educação e Cultura (MEC) tem auxiliado a
aumentar ainda mais o referido fosso. Hoje, certamente mais do que antes, a perspectiva idealista em educação
Capítulo 1 40
Ângela Massumi Katuta
tem auxiliado na inviabilização de projetos democráticos na área, vide o exemplo do substitutivo para a Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB) da sociedade brasileira, sistematizado por Florestan Fernandez,
que foi solapado por Darcy Ribeiro e as elites deste país. O que se quer aqui dizer é que não podemos cometer o
equívoco de analisar a Educação de maneira descontextualizada do mundo e das relações produtivas que se
realizam espaço-temporalmente. Vivemos em uma sociedade em que o modo de produção capitalista; daí a
necessidade de matrizes teórico-metodológicas que nos auxiliem a entender a instituição escolar em suas
contradições e tensões dialéticas, no contexto desse modo de produção. Muito mais do que opção política, a
análise materialista dialética constitui-se em uma necessidade em direção a análises acerca da educação mais
congruentes com a realidade ora configurada.
46
Processos inerentes à alienação que ocorre no modo de produção capitalista, no qual a propriedade privada, a
divisão entre o trabalho intelectual e manual produz uma forma unilateral e hegemônica de entender a educação,
bem como os processos educativos. Ao tomá-los como coisas que possuem existência autônoma ou independente
das relações sociais de produção – reificação –, ocorre a ideologização ou inversão do sentido dos mesmos e sua
conseqüente fetichização ou adoração, por se tratarem, nesta concepção, de atividades enriquecedoras do espírito
humano, capaz de retirar os sujeitos de sua ignorância, colocando-os no caminho da verdade e do conhecimento.
Nesta perspectiva, oculta-se a base material, as relações sociais e de produção, nas quais as idéias se originam, o
que permite o estabelecimento da crença na neutralidade do conhecimento e dos sujeitos que as elaboram.
47
O autor elaborou a idéia de escola única ou unitária em contraposição às contradições existentes entre escola
clássica – destinada às elites e aos intelectuais –, e a profissional – destinada às classes instrumentais, cujo
destino é por ela predeterminado. A escola única ou unitária significa para Gramsci (1978, p. 118, 121, 125, 136)
o início de novas relações entre trabalho intelectual e trabalho industrial na vida social, seu objetivo pedagógico
deve visar à condução do jovem “[...] até os umbrais da escolha profissional, formando-o entrementes como
pessoa capaz de pensar, de estudar, de dirigir ou de controlar quem dirige.” (GRAMSCI, 1978, p. 136). Verifica-
Capítulo 1 41
Ângela Massumi Katuta
organização da cultura, que, somados aos Cadernos do Cárcere, constitui-se, ainda hoje, em
uma fonte relevante para a compreensão da educação formal, da escola e dos processos
educativos que nela se realizam.
Os estudos que tentam desmistificar a escola, ou mostrar sua outra face, chamam a
atenção para o papel da instituição na integração dos indivíduos nas relações sociais de
produção. As abordagens historiográficas de Foucault, dos historiadores revisionistas norte-
americanos, o estrutural-funcionalismo parsoniano, o estruturalismo althusseriano, com sua
teoria da ideologia e dos aparelhos ideológicos do Estado, e a análise do princípio de
correspondência presidida pela escola de Samuel Bowles e Herbert Gintis são abordagens
relevantes que fizeram os primeiros esforços na direção da ruptura com as tradicionais
abordagens da escola nas pesquisas em educação 48 . Data também do final da década de 1960,
coincidindo, não por acaso, com as manifestações mundiais dos movimentos estudantis, o
aumento dos debates sobre as possíveis contribuições do materialismo dialético na análise dos
processos educativos.
Apesar disso, como adequadamente afirmou Fernández Enguita (1993, p. 18), a
educação ainda hoje se constitui em uma área de pensamento refratária ao materialismo
dialético, isso porque na mesma ainda predominam temas, motivos e constantes que “[...]
perduram desde a maiêutica até a educação natural, desde o ‘mestre interior’ agostiniano até a
‘intuição’ de Pestalozzi, desde a ‘purgação’ de Sócrates até a educação negativa-
rousseauniana.” Segundo o referido autor, existem muitas idéias que aparecem reiteradamente
em educação e que, a meu ver, têm se constituído ainda hoje em obstáculos epistemológicos
que dificultam o pensar dos processos educativos mais congruentes com a realidade. São eles:
- O idealismo e a metafísica que, quase que de maneira absoluta, têm dominado as
análises e práticas educativas. O fundamento de tal habitus é a dissociação histórica que se
constituiu no Ocidente entre trabalho manual e intelectual no contexto da qual se originou a
escola, locus onde se vivencia e reproduz histórica, cotidiana e constantemente a cisão entre o
fazer e o pensar.
- A identificação restritiva entre educação e escola ou a redução dos processos
educativos e de aprendizagem à escola formal fomenta o sentimento de exclusivismo
se que o autor propõe uma educação para a vida democrática, que consiste em que “[...] cada ‘cidadão’ possa se
tornar ‘governante’ e que a sociedade o coloque, ainda que ‘abstratamente’, nas condições gerais de poder fazê-
lo: a democracia política tende a fazer coincidir governantes e governados (no sentido de governo com o
consentimento dos governados), assegurando a cada governado a aprendizagem gratuita das capacidades e da
preparação técnica geral necessárias ao fim de governar.”
48
Para um maior detalhamento sobre o posicionamento dos pesquisadores, suas escolas e teses centrais, sugiro a
leitura do livro de Fernández Enguita (1993) intitulado: Trabalho, Escola e Ideologia: Marx e a crítica da
educação, principalmente os Capítulos I, II, V e VII.
Capítulo 1 42
Ângela Massumi Katuta
meritocrático e a exclusão e desvalorização social dos que a ela não têm acesso, expressão de
uma concepção elitista e, por isso, altamente marginalizadora dos sujeitos. Este entendimento
tem assento freqüente na educação formal de sociedades divididas em classes. Ao negar o
caráter amplo da educação como processo inerente à formação humana ou que abrange a vida
do ser humano, abarcando todas as suas atividades, a identificação citada desvaloriza tanto
uma vasta gama de processos constitutivos dos seres humanos quanto os sujeitos sociais que
não atuam como profissionais da educação. Oculta-se dessa maneira, a dimensão educativa de
toda e qualquer relação humana.
- O pensamento pedagógico tende a ser a-histórico, posicionamento que alimenta a
crença na educação como um fenômeno natural, descontextualizado espaço-temporalmente.
Daí a defesa, em vários momentos históricos, de uma educação ajustada à “verdadeira
natureza humana” 49 , proclamando:
[...] como exigências naturais, humanas ou de toda vida em sociedades, as
exigências de uma sociedade particular, em um tempo concreto. Não em vão,
outorga-se reiteradamente a primazia, explícita ou implicitamente, à formação dos
costumes não à instrução propriamente dita. (FERNÁNDEZ ENGUITA,
1993, p. 29).
A primazia e o foco na formação dos costumes revelam a face oculta da escola,
enquanto instituição que auxilia na constituição-consolidação de habitus voltados à
(re)produção do status quo ou do modo capitalista de produção.
- O imanentismo, reverso da educação natural, constitui-se em outra constante no
pensamento pedagógico. O caráter de inculcação, imposição e socialização da educação
escolar se oculta por detrás da crença de que o que os alunos se tornam é o que já existe
dentro deles. O trabalho do professor consistiria, na perspectiva desta crença, em permitir que
as potencialidades discentes se desenvolvam livremente. Naturalizam-se, dessa maneira, os
fracassos e sucessos dos processos educativos, atribuindo-se o mérito dos mesmos ao
indivíduo e suas qualidades individuais. Escamoteia-se assim, todo um conjunto de condições
materiais, disputas ideológicas e simbólicas que influenciam na educação.
49
Concebida equivocadamente como universal e homogênea, portadora de determinadas características a priori.
Esta concepção está relacionada ao que Moreira (1993, p. 127) denomina de cultura da repetição que o
capitalismo “[...] herdou de toda uma evolução histórica que vem desde o escravismo antigo. A cultura da
repetição faz parte da velha tradição cultural da metafísica, segundo a qual há algo no mundo que é sempre
universal, sempre constante, na composição da ossatura do mundo. Algo que está onipresente em cada detalhe do
diverso, agindo para padronizá-la sob um arcabouço eterno, a exemplo da relação do uno e do múltiplo dos
criadores da filosofia. Este é o fundamento de muitas teorias pedagógicas que imputam aos seres humanos uma
série de características universais e que, ao assim agirem, apontam para a crença na eterna repetição dos
processos de aquisição do conhecimento e para a possibilidade do estabelecimento de leis ou regras gerais de
ensino que conduzirão a um correto processo de ensino e aprendizagem.”
Capítulo 1 43
Ângela Massumi Katuta
50
Que ocorria antes da Revolução Industrial que auxiliou na consolidação da educação das massas do século
XVIII em diante.
51
Desde os gregos, existem registros de que muitos pensadores defendiam uma educação para as elites e outra
para os dominados. No contexto da educação moderna ou das idéias que a influenciaram podem ser citados:
Montaigne, Locke, Lutero, Voltaire, Rousseau, Kant, Herbert Spencer entre outros.
Capítulo 1 44
Ângela Massumi Katuta
52
A escola tem existência histórica anterior ao modo de produção capitalista e, no contexto de tecedura das
relações capitalistas, foi pelo mesmo apropriada, juntamente com outras instituições que sobreviveram às
profundas transformações sociais. Contudo, não é a única instituição a auxiliar na produção do trabalhador
coletivo; outras também o fazem. Atualmente, com o desenvolvimento acelerado dos meios de comunicação de
massas e das redes virtuais, está ocorrendo uma substituição parcial das funções anteriormente exercidas pela
escola, enquanto principal fornecedora de informações à população em fase de escolarização. No entanto, a
instituição escolar exerce uma função outra, muitas vezes não completamente reconhecida, que é a de ser uma
das únicas instituições socializadoras em que os escolares passam uma quantidade razoável de horas por dia. O
impacto dessa socialização tem sido significativo na vida das pessoas. Esta é a outra face da escola que deve ser
desvelada.
Capítulo 1 45
Ângela Massumi Katuta
Para evidenciar as relações da escola moderna com o processo produtivo, realcei três
aspectos interdeterminantes:
- O processo histórico da reinvenção da escola, a partir de formas históricas anteriores
que serviam às classes sociais hegemônicas;
- Os objetivos, conteúdos pedagógicos e metodologias de ensino, assumidos por
algumas instituições escolares cujos currículos, em consonância com o projeto
societário das classes hegemônicas, estavam explicitamente voltados à disseminação
do habitus burguês, cuja ênfase do processo cognitivo residia na aprendizagem da
repetição;
- A lenta transformação da territorialidade da escola, diretamente ligada ao processo
produtivo.
É por meio da apreensão destes elementos que se pode verificar que a escola foi
institucionalizada por ser um dos instrumentos de viabilização do projeto societário das
classes hegemônicas imposto aos dominados em função de suas relações de interdependência
com o processo produtivo. A escola moderna passa à existência a partir da reinvenção de
modelos vigentes; contudo, sua configuração em cada local terá especificidades, dependendo
das tensões sociais existentes em cada sociedade onde foi institucionalizada pelo Estado-
nação, como demonstrarei nas linhas que seguem.
Iniciemos pelo primeiro aspecto relativo ao processo histórico, no qual observaremos a
relação entre a decadência do feudalismo e o engendramento do capitalismo na sua face
mercantil, vista a partir dos processos que fizeram com que a escola moderna passasse à
existência.
Capítulo 1 46
Ângela Massumi Katuta
53
Apesar de existirem escolas em diversos momentos históricos, é importante salientar que entre as instituições
que atualmente conhecemos e aquelas do medievo e da Antigüidade existem muito mais diferenças do que
pontos comuns. Considerando uma tal diversidade, faz-se necessário desconfiar de abordagens lineares com
tendência à homogeneização como, via de regra, se encontra nas diferentes histórias da educação ocidental.
54
Sobre esse assunto ver Luzuriaga (1984), Manacorda (2002) e outros autores que tratam da história da
Educação, da Escola e das Universidades no medievo que, com freqüência, fazem referência ao surgimento dos
primeiros mestres livres, processo este relacionado a uma crescente demanda burguesa por escolas, cuja ênfase
na profissionalização e domínio de artes não verbalistas lentamente as tornou laicas.
55
Scholasticus ou magischola foi um cargo cuja autoridade cresceu com o passar do tempo. Na Igreja assumiu
posições mais elevadas, transmitindo a função de ensinar a um seu substituto, o proscholus. O magischola
vendia a autorização necessária para o exercício do ensinar, denominada licentia docendi, daí a cobrança pelo
ensino por parte de quem a comprava. Sobre esse assunto ver Manacorda (2002).
56
Porque no intra-muros predominava a educação organizada pela Igreja.
57
Trívio ou Trivium compõe as três artes liberais elementares nas Universidades Medievais: gramática, retórica e
lógica. As artes liberais no medievo referiam-se ao conjunto das “artes” que compunham o curso completo dos
estudos nas universidades: trivium e quadrivium.
58
Quadrívio ou Quadrivium refere-se aos quatro estudos liberais − por ordem: aritmética, música, geometria e
astronomia − que se seguiam ao trivium.
Capítulo 1 47
Ângela Massumi Katuta
59
Assim denominada por ser formada a partir das corporações de ofício ou grêmios.
60
Neste ponto faz-se necessário um adendo à idéia do autor na medida em que também os discursos literários,
geográficos e históricos que passaram à versão hegemônica da história têm seu caráter prático ou razões práticas,
na medida em que auxiliaram na constituição do habitus burguês. A contraposição entre disciplinas de caráter
prático e humanístico insere uma falsa oposição no currículo escolar na medida em que todas elas estavam
fundadas em um mesmo projeto societário voltado à legitimação e perpetuação das hegemonias.
61
As escolas eclesiásticas se desenvolveram sobretudo a partir do século XI e formavam clérigos. Seu ensino se
compunha do trivium, do quadrivium e dos Evangelhos ou teologia. Segundo Eby (1976, p. 17-20), pouco antes
da Reforma no século XVI, havia predominantemente, nas escolas européias, três graus escolares: as escolas
vernáculas elementares, escolas de gramática latina e as universidades. Contudo, havia muitas espécies de
escolas diferentes voltadas para a educação masculina. Tais instituições eram extremamente elitizadas; isso
porque “[...] Exatamente que escola um menino iria freqüentar, se é que viesse a fazê-lo, dependeria das
circunstâncias de nascimento, parentesco, classe social, inteligência, país natal, e de sua aspiração na vida.”
(EBY, 1976, p. 17). Para exemplificar a variedade de escolas que marcam esse período, podem ser citadas
especificamente aquelas existentes no norte da Europa: escolas monásticas ou claustrais, encontradas em todo o
mundo cristão; responsáveis pela formação de monges, essas instituições eram as mais ricas e proporcionavam
“[...] a seus internos um modo de vida mais calmo e seguro que o encontrado em qualquer carreira secular.”
(EBY, 1976, p. 17); escolas catedralícias: localizadas em centros populosos, originalmente formavam sacerdotes,
mas passaram a preparar pessoas para ocupar posições elevadas na Igreja, no Estado ou nas atividades
comerciais; escolas colegiadas da Igreja: escola não catedralícia que funcionava em uma Igreja da paróquia,
ganhou existência com o crescimento e surgimento das cidades, sua forma de instrução e organização era a
mesma das escolas catedralícias; escolas das capelas: sua organização e instrução eram semelhantes às escolas
catedralícias e colegiadas, seus mestres eram os padres, cujo sustento era provido por doações usadas para a
celebração das missas pelas almas dos doadores e para a instrução dos meninos pobres; escolas de canto: criadas
depois do século VI quando Gregório, o Grande, introduziu o canto gregoriano. Essas escolas foram fundadas
para atender os serviços da Igreja que necessitavam de um coro, composto de homens e meninos. Nelas se
ensinavam música e latim e, às vezes, elementos de gramática. Escolas burguesas: escolas de gramática latina
dos burgos e escolas vernáculas sob a direção das cidades. Segundo Eby (1976, p. 18) as instituições
educacionais mais importantes dos séculos XV e XVI foram aquelas mantidas no noroeste da Europa pelas
cidades hanseáticas. Essas escolas foram fundadas sob o veemente protesto da Igreja, e sob os auspícios da
municipalidade burguesa. Nos Países Baixos houve pouca oposição ao estabelecimento dessas escolas, pelo fato
de que neles a Igreja exercia menor poder e a nobreza era a elas favorável, especialmente quando as mesmas
auxiliavam nas atividades comerciais. Daí seu caráter predominantemente prático, em oposição às escolas latinas
predominantemente “culturais”. Existiam ainda as escolas de hospitais, de caridade e de doação e aquelas que
funcionavam em orfanatos, sustentadas com fundos doados pelos ricos a fim de alcançarem a salvação da alma.
Nas instituições citadas a educação era destinada à instrução de crianças pobres. As Universidades eram as mais
importantes instituições, representantes dos interesses intelectuais e do poder da cultura da época: “[...] a seus
graduados era conferido o poder de praticar a arte de instrução por toda a cristandade.” Eby (1976, p. 19). Com
base no exposto, pode-se afirmar que o período que antecede às Revoluções Burguesas, do ponto de vista da
educação formal, é caracterizado pela diversidade. Com as referidas Revoluções, a constituição do Estado
Moderno e a regulação da escola por esse último, ocorrerá um movimento que tendeu a homogeneizar essas
instituições.
Capítulo 1 48
Ângela Massumi Katuta
idéias de Sócrates, Platão e Aristóteles. Na última formação citada, a distinção social era um
objetivo pedagógico explicitamente assumido e estava fundado na defesa da crença da
legitimidade e necessidade da hierarquização social para o adequado funcionamento do
“organismo social”.
Pode-se afirmar de uma maneira geral que, do ponto de vista territorial, mercantilismo
e escola laica ou laicização da escola e de seu discurso constituem-se em formações inerentes
a um novo conjunto de relações sociais engendrado pela burguesia européia em processo de
ascensão social, econômica, política e cultural. Os objetivos e conteúdos pedagógicos das
escolas modificam-se lentamente; aos poucos desaparecem aqueles ligados à educação
medieval na qual a religiosidade e o dogmatismo tinham centralidade 62 , ganhando espaço os
ligados ao desenvolvimento e disseminação do habitus burguês 63 .
Para Manacorda (2002, p. 169), “Os mestres livres são protagonistas da nova escola do
terceiro Estado: com eles tanto o conteúdo do ensino como o que podemos chamar de sua
situação jurídica e social vão mudando.” De minha parte acrescentaria que tais sujeitos
passaram a ter existência social na medida em que suas formas de ensino e atividades
atendiam às demandas tanto da classe burguesa, em processo de hegemonização, quanto da
aristocracia que estava a constituir o humanismo. Acrescentem-se ainda as transformações na
situação jurídica e social da escola, a alteração de sua territorialidade.
Por atenderem às demandas das classes sociais hegemônicas e, dessa maneira,
lentamente conquistarem relevância social, os mestres livres são considerados por muitos
historiadores da educação como os protagonistas das transformações dos objetivos e
conteúdos de ensino e um dos grupos sociais responsáveis pela criação da escola laica.
Contudo, não podemos nos esquecer da centralidade das demandas colocadas historicamente
por classes sociais que, em seu processo de hegemonização, fazem vingar, recriam ou
constroem a legitimidade de determinadas atividades e suas formas de realização. Os sujeitos
somente ganham relevância e sobrevivem em uma formação social, à medida que suas
62
Em decorrência da valorização da religiosidade e do dogmatismo, segundo Luzuriaga (1984, p. 78-79), havia
um conseqüente desprezo da educação para a vida terrena, com predomínio do ensino de matérias abstratas e
literárias, descuidando-se daquelas à época consideradas realistas e científicas; acentuava-se assim o ascetismo
por meio dos métodos de ensino verbalistas e mnemônicos que desvalorizavam a atividade, a liberdade de
indagar e ensinar. O fundamento de tais práticas educativas residia na crença de que o conhecimento era
revelado por Deus; daí a importância da linguagem e a preocupação com uma correta interpretação da palavra
divina, revelada nos textos sagrados por meio da exegese.
63
Para mais detalhes sobre a constituição da educação moderna, principalmente em seu período inicial, ver o
livro de Eby (1976), que o aborda com maior detalhe. O que se verifica na obra do autor é que não há ruptura dos
sujeitos sociais com a religiosidade; o que ocorre, de fato, é uma modificação no foco central da educação
formal, que abandona a religiosidade e o dogmatismo em favor da aprendizagem de saberes necessários à
burguesia em ascensão, ou seja, aqueles mais ligados à prática do comércio, à constituição de habitus burgueses
e à diferenciação social.
Capítulo 1 50
Ângela Massumi Katuta
64
Sobre as relações entre a aristocracia e burguesia no contexto da formação dos Estados aristocráticos e
nacionais na França e Alemanha, ver a obra em dois volumes intitulada O processo civilizador de Norbert Elias
(1993, 1994a).
65
No livro de Crosby (1999, p. 207), em parágrafos subseqüentes ao transcrito, verifica-se que já entre 1300 e
1600 a educação dos mercadores era feita a partir de estratégias de resolução de problemas, metodologia esta
atualmente disseminada como inovação pedagógica em propostas veiculadas por pedagogos europeus que sequer
remetem à historicidade da referida prática, expressão do idealismo inerente a uma boa parte da produção
pedagógica da atualidade.
Capítulo 1 51
Ângela Massumi Katuta
66
Entenda-se esse termo como um processo mais amplo do que a mera aprendizagem de conteúdos escolares e
que envolve, sobretudo, a constituição, reprodução e disseminação territorial de habitus voltados a um processo
civilizador.
67
Sobre o processo de doutrinamento, enquadramento ou aprendizagem das relações de produção capitalistas,
ver Fernández Enguita (1993, p. 210), principalmente o capítulo VII, no qual o autor discorre sobre os múltiplos
processos de violência a que foram submetidas “[...] enormes massas de camponeses, antigos serventes, diaristas
e pequenos meeiros [...]”, homens, mulheres e crianças expulsos de suas terras sem outro pertence que sua
capacidade nua de trabalho. Ao contrário do que muitos pensam, a submissão das pessoas ao capital, ou seja, sua
disciplinarização às relações capitalistas de produção foi realizada com extrema violência.
68
Para Elias (1994a, p. 98) apenas quando surge este monopólio permanente da autoridade central e o aparelho
especializado em sua administração, é que esses domínios assumem o caráter de Estados. O autor descreve da
seguinte maneira o mecanismo de formação de monopólios: “[...] se numa grande unidade social − [...] − um
Capítulo 1 53
Ângela Massumi Katuta
grande número de unidades sociais menores que, através de sua interdependência, constituem a maior, são de
poder social aproximadamente igual e, portanto, capazes de competir livremente − não estando prejudicadas por
monopólios preexistentes − pelos meios do poder social, isto é, principalmente pelos meios de subsistência e
produção, é alta a probabilidade de que algumas sejam vitoriosas e outras derrotadas e de que, gradualmente,
como resultado, um número sempre menor de indivíduos controle um número sempre maior de oportunidades, e
unidades em número cada vez maior sejam eliminadas da competição, tornando-se, direta ou indiretamente,
dependentes de um número cada vez menor. A configuração humana capturada nesse movimento, por
conseguinte, aproximar-se-á, a menos que medidas compensatórias sejam tomadas, de um Estado em que todas
as oportunidades são controladas por uma única autoridade: um sistema de oportunidades abertas transforma-se
num de oportunidades fechadas.” (ELIAS, 1994a, p. 99).
69
Segundo Eby (1976, p. 207), até o final do medievo a leitura e a escrita, por mais estranho que hoje possa
parecer, eram artes consideradas separadas, tanto que eram ensinadas por diferentes mestres, em escolas
distintas, inclusive em sua territorialidade. As escolas de escrever (Schriftschulen) eram regidas pelos
professores particulares. A escrita ganha relevância durante o fim da Idade Média quando se tornou essencial à
orientação de negócios e comércio. Quando do surgimento da imprensa no século XV, expressão de uma
demanda colocada pelo modo de produção em curso, a escrita passa a ser vista com outros olhos. “[...] A
unificação do ensino da escrita com o ensino da leitura ocorreu muito mais tarde.”
70
Sobre esse assunto ver o livro de Michael Baxandall (1991, p. 49) intitulado O olhar renascente: pintura e
experiência social na Itália da Renascença, no qual o autor resgata um resumo, do fim do século XIII, elaborado
por Giovanni de Gênova, presente no Catholicon, um dicionário ainda em uso no Quattrocento que remete à
função das pinturas produzidas no século XV: “Sabeis que três razões têm presidido a instituição de imagens nas
igrejas. Em primeiro lugar, para a instrução das pessoas simples, pois são instruídas por elas como pelos livros.
Em segundo lugar, para que o mistério da encarnação e os exemplos dos santos pudessem melhor agir em nossa
memória, estando expostos diariamente aos nossos olhos. Em terceiro lugar, para suscitar sentimentos de
devoção, que são mais eficazmente despertados por meio de coisas vistas que de coisas ouvidas.” Nestas breves
linhas, observa-se a valorização do sentido do olhar e das imagens por este captada, própria da Renascença e
uma arguta compreensão da pintura como recurso instrutivo e de memória capaz de suscitar devoção de maneira
extremamente eficaz, em função da materialidade da imagem e a relação realista nutrida com a mesma,
obviamente que em um sentido renascente. Ao discutir as diferenças entre palavras e imagens Ginzburg (2001, p.
138) capta a especificidade desta última no mesmo sentido como o fez Giovanni de Gênova: “Uma palavra como
‘bodecervo’ pode receber predicado de não-existência; a imagem correspondente não. As imagens, quer
representem objetos existentes, inexistentes ou objeto nenhum, são sempre afirmativas. Para dizer Ceci n’est pas
une pipe [Isto não é um cachimbo], necessitamos de palavras [...]. As imagens são o que são.” Observa-se dessa
maneira, a positividade das imagens, em comparação com as palavras. Eis sua especificidade, mostrada por meio
do exemplo usado pelo historiador. Para negar uma imagem ou compreendê-la, para assim fazer avançar o
conhecimento, as palavras são necessárias.
Capítulo 1 54
Ângela Massumi Katuta
este habilmente realizado por Norbert Elias, ao longo de uma parte considerável de suas obras
que afirma:
[...] Além de uns poucos escritos da época, são as obras de escultores e pintores do
período que transmitem o que melhor distingue sua atmosfera ou, como poderíamos
dizer, seu caráter emocional, a maneira como difere do nosso, ainda que apenas
alguns desses trabalhos reflitam a vida do cavaleiro medieval em seu contexto real.
(ELIAS, 1994a, p. 203).
Ao interpretar algumas gravuras produzidas entre 1475 e 1480, reunidas em uma obra
intitulada Livro de imagens da Idade Média (Mittelalterliches Hausbuch), Elias (1994a, p.
203-204) descreve as relações existentes entre as transformações das formas de vida do
cavaleiro no período e os olhares, anseios, impulsos e sentimentos dos mesmos em relação à
sua espacialidade, recém transformada e expressa nas gravuras:
E o que é que vemos? Quase sempre um campo aberto, dificilmente algo que lembre
a cidade. Pequenas aldeias, campos plantados, árvores, prados, colinas, pequenos
trechos de rio e, com freqüência, o castelo. Mas nada há no desenho do estado de
espírito nostálgico, da atitude ‘sentimental’ em relação à ‘natureza’, que lentamente
se tornam perceptíveis não muito depois, à medida que os principais nobres têm que
abandonar, com freqüência sempre maior, a vida relativamente descontraída de suas
propriedades ancestrais e ficam cada vez mais presos à corte semi-urbana e na
dependência de reis ou príncipes. Esta é uma das mais importantes diferenças, no
tom emocional, transmitidas pelos desenhos. [...] A ‘natureza’, o campo aberto,
mostrada em primeiro lugar e acima de tudo apenas como fundo para as figuras
humanas, adquire um brilho nostálgico, à medida que aumenta o confinamento da
classe superior nas cidades e cortes e se torna mais perceptível a cisão entre vida
urbana e rural. Ou a natureza assume, tal como as figuras humanas que envolve nos
desenhos, um caráter sublime, representativo. De qualquer modo, há mudança na
seleção pelo sentimento, no que atrai o sentimento na representação da natureza e no
que é julgado desagradável ou penoso. E o mesmo se aplica às pessoas
representadas. Para o público da corte absoluta, grande parte do que realmente existe
no campo, na ‘natureza’, não mais se retrata. A colina é mostrada, mas não a forca
nela plantada, nem o cadáver pendurado. O campo é mostrado, mas não mais o
camponês esfarrapado tocando penosamente seus cavalos. Tudo o que é ‘comum’ e
‘vulgar’, da mesma forma que desaparece da linguagem de corte, desaparece
também dos quadros e desenhos destinados à aristocracia de corte.
Em outras palavras, verifica-se que o que realmente existe em termos de materialidade
não tem relevância quando se trata da produção estética e cultural desta época. Os pintores,
em sua maior parte sustentados pela sociedade de corte71 , passam a suprimir, em suas
pinturas, todos os objetos e imagens vulgares que causassem o sentimento de repugnância à
aristocracia da corte. Observa-se o recurso e valorização da abstração na pintura e a negação
dos dados sensíveis e sua materialidade em nome de uma realidade idealizada pela
aristocracia de corte, expediente este muito usado para ocultar e desconsiderar as contradições
em muitos momentos históricos 72 e, também, usado nas escolas dessas mesmas classes
71
O fenômeno do mecenato, relevante no que se refere à produção artística como um todo, foi abordado por
Baxandall (1991), Bourdieu (1996) e Elias (1993, 1994a).
72
Ginzburg (2001, p. 102) interpreta a proclamação do dogma da transubstanciação pela Igreja católica em 1215
– presença real, concreta, corpórea de Cristo na hóstia, superpresença –, como uma vitória extraordinária da
abstração, vejam a metafísica em ação no contexto do Medievo. Em outras palavras, pode-se afirmar que ocorreu
Capítulo 1 55
Ângela Massumi Katuta
sociais. O que se ensinava e o que se via em termos de produção estética, cultural e escolar,
como em qualquer momento histórico, passa pelo crivo das classes hegemônicas. As
territorialidades registradas nos desenhos passam a ser as idealizadas pela aristocracia.
Voltados para atender às demandas de seus financiadores, verificamos nos desenhos o uso do
recurso da abstração que se tornará muito comum e será aplicado em todas as produções
culturais, quando a burguesia se torna classe hegemônica.
Como mostra Elias (1994a), os desenhos vão perdendo a força vital do vivido 73 , na
perspectiva do cavaleiro medieval, o sentimentalismo inerente aos mesmos vai
desaparecendo, e mostrando ou apresentando, portanto, maior contenção e domínio das
emoções em relação às espacialidades, valores característicos das sociedades de corte a serem
apreendidos em suas escolas e por meio das imagens. A arte da classe alta passa a “[...]
expressar cada vez mais exclusivamente suas fantasias desiderativas e a levou a suprimir tudo
o que conflitasse com o padrão de uma crescente repugnância.” (ELIAS, 1994a, p. 208).
Observem a demanda por imagens idealistas feitas pelas classes hegemônicas, expressão do
desejo, da necessidade e vontade de submissão de tudo e de todos às suas vontades. Os
objetivos educacionais das escolas destas classes também expressam tais desejos e vontades; é
o que se verifica quando Eby (1976, p. 150) elenca os saberes ensinados nas academias
calhaveirescas:
[...] 1) treinar a etiqueta da Corte; 2) preparar para o serviço militar; 3) preparar para
o trabalho político administrativo. Em acréscimo à etiqueta da Corte, era ensinado
francês, poesia, dança, desenho, pintura e música. Como uma preparação para o
serviço militar, equitação, esgrima, jogo de bola, caça, atividades militares e cultura
física eram praticados. Era dada atenção, também, a muitos estudos realistas:
geografia, história, tecnologia (especialmente em relação a fortificações e guerra),
genealogia e heráldica. Grego e hebraico foram abandonados, e a quantidade de
latim foi diminuída. Após o desenvolvimento dos ginásios modernos, estas
academias deixaram de existir. No entanto, elas serviram aos objetivos do momento,
e auxiliaram na transição dos velhos ginásios clássicos para o tipo mais realista.
no período em questão a negação dos “[...] dados sensíveis em nome de uma realidade profunda e invisível.”
Não por acaso, até porque os processos civilizadores tanto do Medievo quanto do Renascimento apontavam para
o mesmo padrão de projeto societário – dominação de muitos por poucos –, fato semelhante pode ser verificado
no século XV em relação à pintura patrocinada pela aristocracia de corte. Por meio dessa figuração espacial,
ocultava-se a existência de determinados fenômenos e salientavam-se aspectos esteticamente valorizados pela
aristocracia. Na ciência moderna, também se verifica a abstração de muitos elementos: quando da proclamação
do dogma da matematização, assim, nesta mesma linha de raciocínio, desenvolve-se a crença de que o
verdadeiro conhecimento da natureza advém da abstração matemática, todo fenômeno que não puder ser
traduzido em números será irrelevante, portanto, não racionalizável. Este também será o terreno no qual a
cartografia e geografias hegemônicas irão florescer.
73
Indicador da disseminação e legitimação de uma única noção de espacialidade fundada na matemática, em
detrimento de outras que apontavam para noções de espaço e sentimentos sobre o mesmo próprios das classes
sociais hegemônicas.
Capítulo 1 56
Ângela Massumi Katuta
74
Os relatos de Eby (1976) sobre a educação no princípio da era moderna indicam que a realização de viagens
era uma atividade altamente apreciada pelos educadores da época. Ao escrever sobre o que Comenius pensava
acerca da mesma, creio que o autor sintetiza o entendimento comum aos educadores e educandos da época em
relação à realização de viagens: “[...] Comenius acreditava nas vantagens das viagens para fornecer informação
direta a respeito da natureza humana e instituições. Sentia que esta experiência deveria suceder a carreira
universitária, depois que os hábitos morais estivessem plenamente formados.” (EBY, 1976, p. 163). É importante
salientar que uma tal “atividade pedagógica”, somente fazia sentido em uma sociedade cuja produção da riqueza
dependia em grande parte da pilhagem, dos negócios e do comércio a serem estabelecidos entre os pontos mais
longínquos do mundo à época conhecido. Além disso, indicam que já à época de Comenius (1613 a
aproximadamente 1671), a educação escolar estava a privilegiar cada vez mais o conhecimento do real em uma
perspectiva laica.
75
Em um sentido eliasiano. Sobre esse assunto ver a obra do autor intitulada Envolvimento e Alienação (1998a).
76
Como era o universo do europeu medieval. Grifo da autora.
Capítulo 1 57
Ângela Massumi Katuta
se fazem presentes, ainda que embrionariamente, neste universo e no currículo das escolas
cavalheirescas.
Quando da constituição dos Estados nacionais modernos e instauração da Reforma
Protestante, no decorrer dos séculos XV e XVI, houve a disseminação de escolas pelo
território europeu e conseqüentemente a sua diferenciação mais contundente: escolas clássicas
ou de formação humanística para ricos e aristocratas, e de doutrinamento religioso e
disciplinar para os pobres. Independentemente dos grupos sociais ao qual atendia, as escolas
dessa época, ainda que em menor grau se comparadas ao medievo, enfatizavam a formação
religiosa, embora inserissem conhecimentos realísticos em seu currículo.
A título de exemplo de uma escola que reunia as características esboçadas, é
interessante citar o caso das escolas francesas de Port Royal, fundadas no século XVII, que
tiveram uma duração de apenas 20 anos e procuravam “[...] formar líderes cristãos sólidos que
deveriam ser capazes de empregar, na salvação das almas, todos os recursos da literatura,
ciência e eloqüência. O bem-estar moral e espiritual dos alunos era o objetivo supremo.”
(EBY, 1976, p. 190). Segundo o mesmo autor, a importância de Port Royal reside na melhoria
que efetuou no ensino das Línguas e da Lógica.
Fizeram do francês o meio de instrução nas escolas elementares e secundárias e
aplicaram os princípios cartesianos de pensamento na organização do currículo e nos
métodos. Menos de meio século após o fechamento das Pequenas Escolas, estas
reformas estavam amplamente corporificadas na prática educacional francesa.
(EBY, 1976, p. 190).
Era muito comum na época, principalmente junto aos pedagogos seguidores de
Descartes, a defesa de que as ciências deviam ser empregadas somente como um instrumento
para aperfeiçoar a razão. Desejavam desenvolver homens justos e sensatos, daí a busca da
clareza por meio da introdução de métodos inovadores mais adequados às características das
crianças. As metodologias cartesianas tinham como pressuposto o entendimento de que a
inteligência dependia dos sentidos, por isso, toda instrução apelava para os olhos, assim como
para os ouvidos. Daí o uso de gravuras no ensino, tal como faziam Ratichius 77 e Comenius 78 :
77
Segundo Eby (1976, p. 141 et seq.) Wolfgang Ratke (1571-1635), conhecido também como Ratichius, foi um
dos primeiros e mais influentes dos reformadores didáticos de sua época e exerceu grande influência sobre as
idéias de Comenius. Seus princípios de ensino foram colocados em prática nos sistemas escolares reformados do
Principado de Gotha, criticado posteriormente por Karl Marx em um escrito de 1875, intitulado Notas à Margem
ao Programa do Partido Operário Alemão, mais conhecido como Crítica ao Programa de Gotha. Os princípios
de Ratichius procuravam respeitar a “ordem natural” pela qual a mente da criança aprende; assim, reorganizou os
métodos e os currículos escolares de acordo com os seguintes princípios: 1) Tudo está em sua ordem; ou o curso
da natureza; 2) Somente uma coisa de cada vez; 3) Cada coisa deve ser freqüentemente repetida; 4) Tudo
primeiro na língua materna; 5) Tudo sem violência; 6) Nada deve ser aprendido de cor; 7) Mútua conformidade
de todas as coisas; 8) Primeiro a própria coisa, e depois a explicação da coisa; 9) Tudo por experiência e
investigação de partes ou Tudo através de indução e experimentação. Para um maior detalhamento consultar a
obra de Eby (1976). Observa-se o quanto as idéias pedagógicas de Ratke expressam a forma moderna de pensar
até hoje presente com muito vigor nas escolas. Não por acaso, pela sua eficácia na época − aprendizagem mais
Capítulo 1 58
Ângela Massumi Katuta
“Na Geografia eram usados mapas e gravuras das maiores cidades. Nicole recomendava o uso
de gravuras que representassem armas, vestimentas e máquinas dos antigos e os retratos de
reis e pessoas ilustres.“ (EBY, 1976, p. 192). Ainda hoje, no plano pedagógico, a relação que
se mantém com as imagens é a mesma que a propalada por Descartes, fato este que indica a
permanência, na escola, de uma relação realista com as mesmas.
Verifica-se, em uma mesma concepção pedagógica, o realismo renascentista e a razão
cartesiana, presentes tanto na concepção dos materiais quanto nas formas de uso dos desenhos
e mapas empregados no ensino básico. Opera-se com a imagem por substituição ao real, sem
nem ao menos ponderar que toda imagem do fenomênico implica opções, tanto no que se
refere à eleição de determinadas características como sendo as mais relevantes a serem
apresentadas, quanto no que diz respeito às formas e técnicas de apresentação da figuração do
objeto. As formas que tomaram as figurações espaciais por nós hoje conhecidas como mapas
e gravuras e o tipo de uso que delas se fazia indicam que as capacidades e hábitos visuais e
intelectuais renascentes estavam largamente disseminados à época, isso a tal ponto que, em
Port Royal, a concepção renascente de realidade 79 passa a ser o fundamento de uma parte
significativa das “disciplinas realistas”.
rápida e eficiente, principalmente das línguas −, o sistema de ensino prussiano que adotou as idéias de Ratke
serviu de modelo a outros países, obviamente que com modificações de acordo com as próprias características e
necessidades.
78
Komensky (1592-1670), como o nome era originalmente pronunciado ou, John Amos Comenius, foi um dos
grandes sistematizadores da educação moderna alinhada mais a um pensamento político igualitário. Tendo como
fundamento o cristianismo primitivo, sistematizou suas idéias pedagógicas em pleno absolutismo; por isso,
apenas a sua parte metodológica foi aproveitada pelos sistemas escolares aristocráticos. Seus livros texto, nos
quais estavam sistematizados seus princípios de método, atingiram extrema popularidade, suas recomendações
curriculares foram amplamente disseminadas para a educação das elites, contudo, o fundamento de seu método
pedagógico foi relegado ao esquecimento, como o foram todas e quaisquer idéias e projetos voltados para uma
educação voltada à eliminação da distinção entre classes. Seus princípios e métodos de instrução tinham como
fundamento uma teoria da vida mental e do desenvolvimento das crianças, eis alguns: o conhecimento se dá por
meio dos sentidos; a imaginação evolui da sensibilidade e é indispensável para o desenvolvimento posterior do
conhecimento e do ser espiritual da criança; nada deve ser memorizado sem ter sido antes completamente
discutido e claramente compreendido; escrita, figuras e repetição fixam impressões mais permanentemente na
memória e devem ser empregadas constantemente, assim, deve-se fazer uso de quadros-negros, diagramas e
meios similares; a razão, compreensão ou faculdade de julgamento emerge durante a adolescência, quando a
reflexão e o raciocínio são os desenvolvimentos nascentes; a vontade de aprender está diretamente ligada com as
emoções da criança, assim, bons métodos de instrução são os únicos meios necessários para incitar o desejo de
aprender; os desejos ou afeições influenciam a vontade e determinam o caráter; as crianças não são iguais, por
isso se faz necessária a adaptação dos métodos pedagógicos às diferenças individuais, deve-se adaptar a
instrução à compreensão da criança, deve-se aprender fazendo. Para um maior detalhamento das idéias de
Comenius ver Eby (1976). Note-se a atualidade destes preceitos pedagógicos produzidos entre os séculos XVI e
XVII, o que demonstra que, ainda hoje, os processos educativos são mais orientados pelo bom senso do que
pelos conhecimentos cientificamente produzidos, fato este que coloca em xeque a concepção tecnicista de
educação e a formação docente fundada nessa concepção.
79
Mais adiante abordarei com maior detalhe este assunto; contudo, não poderia deixar de fazer referência ao
mesmo em tão oportuna situação.
Capítulo 1 59
Ângela Massumi Katuta
80
Distanciar ou recuar para melhor dominar ou tomar de assalto. Tradução da autora.
Capítulo 1 60
Ângela Massumi Katuta
81
Ver a Figura 6, no Capítulo 2, item 2.3.
Capítulo 1 61
Ângela Massumi Katuta
82
Entenda-se também simbólico porque toda mudança no campo econômico e político implica, necessariamente
transformações simbólicas. Como escreveram Marx e Engels n’A Ideologia Alemã: as idéias da classe dominante
“[...] são as idéias dominantes de cada época; ou, dito de outra forma, a classe que exerce o poder material
dominante na sociedade é, ao mesmo tempo, seu poder espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição
os meios para a produção material dispõe com isso, ao mesmo tempo, dos meios para a produção espiritual, o
que faz com que se submetam a ela as idéias dos que carecem dos meios necessários para produzir
espiritualmente. As idéias dominantes não são outra coisa que a expressão ideal das relações materiais
dominantes, as mesmas relações materiais dominantes concebidas como idéias; portanto, as relações que fazem
de uma determinada classe a classe dominante são também as que conferem o papel dominante às suas idéias.”
(MARX e ENGELS, apud FERNÁNDEZ ENGUITA, 1993, p. 162).
83
Somente para citar algumas inovações científicas e tecnológicas: a publicação dos Principia − Os princípios
matemáticos de Filosofia natural −, por Newton em 1687, uso, pelo mesmo, do prisma a fim de decompor a luz,
demonstrando que a branca não era pura como acreditavam os escolásticos; demonstração das experiências com
os gases realizadas por Boyle em 1662 e por Amonstons em 1699; estabelecimento de relações entre as forças
aplicadas a um fluido e a pressão resultante por Pascal em 1648, que tornou possível a criação de bombas
hidráulicas; descoberta por Kepler em 1609 de que as órbitas dos planetas se realizavam sob a forma de elipse;
descoberta dos anéis de Júpiter por Galileu em 1610; publicação por Napier em 1614 da tábua de logaritmos, que
facilitou os cálculos aritméticos; criação por Oughtred em 1622, a partir da tábua de logaritmos, da tábua de
calcular, que facilitou as contas feitas por engenheiros e cientistas, substituída apenas no século XX quando da
criação das calculadoras científicas; criação da geometria analítica e dos gráficos cartesianos por Descartes em
1637, e a conseqüente demonstração de que qualquer figura geométrica poderia ser descrita por uma equação
algébrica e vice-versa; estabelecimento das bases do cálculo de probabilidades pelos matemáticos Fermat e
Pascal em 1654; criação por Wallis da idéia de números complexos, úteis aos cálculos da física e engenharia;
invenção de forma independente do cálculo diferencial e integral por volta de 1669 por Newton e Leibniz;
descoberta das células por Hooke em 1665, que usou o microscópio criado por volta de 1590; demonstração do
funcionamento da circulação sangüínea por Harvey em 1628; descoberta dos glóbulos vermelhos em 1658 por
Swammerdam; proposição de que a química se constituísse como ciência experimental por Boyle em 1661;
constituição da idéia de substância simples e abandono da antiga teoria aristotélica dos quatro elementos (água,
fogo, ar e terra) que defendia que tudo seria formado pela mistura dos mesmos; invenção do relógio de pêndulo
(maior precisão) por Huygens em 1656; criação da máquina de calcular a partir das idéias de Pascal, − que, em
1642, criou um engenho capaz de somar e subtrair −, e de Leibniz, que em 1693 criou um aparelho que
multiplicava e dividia. Verifica-se a partir desta breve lista que a racionalidade matemática e a tentativa de
domínio da natureza não humana compunham a tecedura do pensamento hegemônico do século XVII. Este é o
substrato que vai servir como fundamento para a elaboração dos saberes geográficos sistematizados também
presentes nos mapas.
Capítulo 1 62
Ângela Massumi Katuta
84
Marx (1993, p. 164) afirma que “[...] o trabalho alienado 1) aliena a natureza do homem, 2) aliena o homem de
si mesmo, a sua função activa, a sua actividade vital, aliena igualmente o homem a respeito da espécie;
transforma a vida genérica em meio da vida individual. Em primeiro lugar aliena a vida genérica e a vida
individual; em seguida, muda esta última na sua abstracção em objectivo da primeira, portanto, na sua forma
abstracta e alienada.” O objetivo da vida individual passa a ser a manutenção da existência física, ou seja, a
primeira fica subsumida à realização da alienação; é nesta perspectiva que o elemento humano é reduzido a
animal. A vida genérica para Marx ou a capacidade de realização da atividade vital consciente é o que distingue
os seres humanos dos outros animais. O animal, diz o autor (MARX, 1993, p. 164), identifica-se imediatamente
com sua atividade vital, dela não se distingue, sendo a sua própria atividade. Em outros termos, é a própria
atividade vital do animal, determinada geneticamente, que o distingue dos outros animais. Os seres humanos
fazem da atividade vital o objeto de sua vontade e consciência, possuindo dessa maneira uma atividade vital
consciente; assim, ela não é como nos outros animais uma determinação biológica, com a qual eles
imediatamente coincidem. Por isso eles são seres genéricos, se realizam por meio de processos mediatizados. O
ser humano “[...] só é um ser consciente, quer dizer, a sua vida constitui para ele um objecto, porque é um ser
genérico. Unicamente por isso é que sua actividade surge como actividade livre.” (MARX, 1993, p. 164-165).
85
Tese defendida por Dobb (1977, p. 34-35) ao estudar o capitalismo: “[...] a história do Capitalismo e as etapas
de seu desenvolvimento não apresentam forçosamente as mesmas datas quanto às diferentes partes do país ou
indústrias diversas e, em certo sentido, estaríamos certos ao falar não de uma única história do Capitalismo, e da
forma geral apresentada por ela, mas de uma coleção de histórias do Capitalismo, tôdas com uma semelhança
geral de forma, mas cada qual separadamente datada no que diz respeito a suas etapas principais.”
Capítulo 1 63
Ângela Massumi Katuta
sobretudo quando este processo passa a ser realizado pela instituição escolar, em uma escala
ampla e diferenciada qualitativa e quantitativamente 86 , principalmente a partir do século
XVIII. A realização da escolarização das massas passou a implicar e ainda implica, na maior
parte das vezes, a assunção acrítica de uma dada forma de olhar, pensar e agir no mundo, ou
seja, a incorporação e disseminação do habitus das classes sociais hegemônicas, o que aponta
para o caráter de reprodução social que domina a escola e para o qual atentaram uma série de
estudiosos 87 .
É no final do século XVIII na Europa que ocorre um movimento geral de transição do
controle da educação da Igreja para o Estado, fato este que sinaliza a centralidade da educação
formal para a classe hegemônica burguesa. Manacorda (2002, p. 269) sintetiza em poucas
palavras as conquistas educacionais da burguesia, à época classe revolucionária: “[...]
universalidade, gratuidade, estatalidade, laicidade, e, finalmente, revolução cultural e primeira
assunção do tema trabalho.” Este último, não por acaso, obviamente que em sua face alienada,
passa a ser assumido pela escola moderna em função das profundas mudanças ocorridas no
modo de produção e, portanto, nas relações sociais de produção e na política.
Ora, se anteriormente prevalecia a produção artesanal individual, realizada em oficinas
associadas às corporações de ofício, na qual a instrução ocorria juntamente com o trabalho, o
que se vê daí em diante é a intensificação do processo de expropriação dos trabalhadores, de
seus saberes, de suas capacidades e portanto de si mesmos. Essa forma de produção foi
substituída subseqüentemente pela subsunção formal do trabalho ao capital 88 (cooperação
simples). Neste processo, os saberes da arte ou do ofício ainda estão em posse do trabalhador,
a completa alienação ainda não se realizou. É no contexto da subsunção real do trabalho ao
capital ou da divisão manufatureira 89 do trabalho que este se torna mais degradante, porque
86
A escolarização dos sujeitos realiza-se quantitativa e qualitativamente de maneira diferenciada dependendo
das classes sociais às quais os mesmos estão vinculados.
87
Sobre os mesmos ver o Capítulo VII do livro de Fernández Enguita (1993) intitulado A aprendizagem das
relações sociais de produção, no qual o autor faz um minucioso levantamento das teses que referendam a idéia
de que, para além dos conteúdos, a escola se constituiu predominantemente, sob a égide do capitalismo, em um
locus formador do habitus voltado à reprodução do referido modo de produção: esta é a face oculta da escola. É
por isso que ocorre a disseminação diferenciada dessa instituição junto às classes sociais, e se defende que seu
desaparecimento será improvável, apesar do desenvolvimento tecnológico dos meios de comunicação que têm
promovido uma difusão mais eficiente de certas informações.
88
Também denominada forma simples da exploração capitalista do trabalho, corresponde à extração da mais-
valia absoluta. Ocorre quando o trabalhador, destituído dos meios de produção, ainda tem o controle do processo
de trabalho; seu ritmo e intensidade, no entanto, encontra-se em posição de alienação em relação ao produto e
aos meios de produção, que pertencem a outra pessoa, e em relação a seus meios de vida, que não são obtidos
como resultado direto de seu trabalho ou em troca do produto dele mesmo, mas em troca de sua força de
trabalho. (MARX, 1977, apud FERNÁNDEZ ENGUITA, 1989, p. 15).
89
Ocorre quando o capitalista reorganiza o próprio processo da produção: “[...] A mais-valia absoluta cede então
caminho à mais-valia relativa, e a divisão de trabalho tradicional, herdada dos ofícios, à decomposição do
processo de produção da mercadoria em tarefas parcelares. O trabalhador, que já havia perdido a capacidade de
Capítulo 1 64
Ângela Massumi Katuta
fica reduzido a simples movimento mecânico, no qual a parte mais importante é feita pelas
propriedades materiais dos objetos, confiando-se cada vez mais ao indivíduo um número
menor de operações. Foi a partir da divisão manufatureira do trabalho que o trabalhador se
submeteu completamente à maquinaria. (MARX, 1993, p. 227).
Os modos de produção transformam as condições e as exigências da formação
humana, é por isso que mudam os processos educativos formais e não-formais. No contexto
do capitalismo, os trabalhadores perdem, não sem lutas e enfrentamentos, sua anterior forma
de instrução, que ocorria junto às corporações de artes e ofícios. Com a substituição dos
instrumentos e processos produtivos, promovidos tanto pela ciência moderna quanto pelo
desenvolvimento tecnológico, ocorre a alienação total do trabalho e do trabalhador,
convertido agora no moderno operário, submisso às máquinas.
A mudança das territorialidades − deslocamento das massas das oficinas artesanais
para as fábricas, dos campos para as cidades − expressa a ruptura com o modo de produção
Feudal e, portanto, com os habitus anteriores. Doravante capitalistas e operários se encontram
livres das amarras do modo de produção anterior: os primeiros tornam-se libertos para
explorar e alienar cada vez mais o trabalho e o trabalhador, auto-alienando-se. Por sua vez, os
trabalhadores tornam-se cada vez mais “livres” ou submissos, o que dá no mesmo, para o
trabalho alienado. No processo de realização da produção por meio do trabalho alienado,
produz-se apenas alienação, tanto dos capitalistas quanto dos trabalhadores90 . Manacorda
(2002, p. 271) descreve o processo na perspectiva do trabalhador da seguinte maneira:
[...] Ao entrar na fábrica e ao deixar sua oficina, o ex-artesão está formalmente livre,
como o capitalista, também dos velhos laços corporativos; mas, simultaneamente,
foi libertado de toda a sua propriedade e transformado em um moderno proletário.
Não possui nada: nem o lugar de trabalho, nem a matéria-prima, nem os
instrumentos de produção, nem a capacidade de desenvolver sozinho o processo
produtivo integral, nem o produto do seu trabalho, nem a possibilidade de vendê-lo
ao mercado. Ao entrar na fábrica, que tem na ciência moderna sua maior força
produtiva, ele foi expropriado também da sua pequena ciência, inerente ao seu
trabalho; esta pertence a outros e não lhe serve para mais nada e com ela perdeu,
apesar de tê-lo defendido até o fim, aquele treinamento teórico-prático que,
anteriormente, o levava ao domínio de todas as suas capacidades produtivas: o
aprendizado.
É na Modernidade que ocorre a perda do controle da escola e dos processos de
aprendizagem organizados por diferentes grupos sociais; esta instituição passa à tutela
hegemônica do Estado, ocorrendo, neste processo, um orquestramento, relativa
homogeneização e concentração ou centralização da formação educativa em suas mãos.
determinar o produto, perde agora o controle do seu processo de trabalho, entra em uma relação alienada com
seu próprio trabalho como atividade.” (MARX, 1977, apud FERNÁNDEZ ENGUITA, 1989, p. 15).
90
Neste sentido, Marx (1993, p. 174) afirma que a produção capitalista produz o homem sob a forma de
mercadoria, um ser espiritual e fisicamente desumanizado pela divisão do trabalho que se expressa sob a forma
de alienação, tanto dos trabalhadores quanto dos capitalistas; tem-se assim, o homem unilateral.
Capítulo 1 65
Ângela Massumi Katuta
Desde a época em que os trabalhadores tiveram acesso inicial à escola moderna até os
dias de hoje, verifica-se que ocorre a defesa de um discurso classista disfarçado de
universalista. Segundo as forças bem-pensantes devia-se, à época do que se costuma
denominar de democratização quantitativa da escola “[...] educá-los, mas não
demasiadamente.” (FERNÁNDEZ ENGUITA, 1989, p. 112). Tal afirmação e mesmo os
atuais dados sobre escolaridade e qualidade do ensino no Brasil, mensurados por meio do
conjunto de conteúdos e habilidades construídos pelos alunos, confirmam a realização ainda
hoje da diferenciação do aparelho escolar.
Bourdieu (1992, p. 220), ao resgatar as idéias de Philippe Áries, sistematizadas na
obra intitulada A criança e a vida familiar sob o antigo regime, explicita que “‘[...] desde o
século XVIII, a escola única 92 foi substituída por um sistema de ensino duplo onde cada área
corresponde a uma condição social e não a uma faixa etária: o liceu ou o colégio para os
burgueses (o secundário) e a escola para o povo (o primário).’” Verifica-se ainda hoje no
Brasil a prevalência desta dualidade rígida nas formações escolares, como mostram os dados
de órgãos responsáveis por informações relativas à escolaridade e nível sócio-econômico 93 .
Também as paisagens das cidades brasileiras nos revelam esta dualidade: vemos, em
diferentes lugares, escolas públicas, via de regra precarizadas e escolas particulares que, de
uma maneira geral, tendem a disseminar um ensino de melhor qualidade.
Temos no Brasil basicamente dois tipos de escola: uma voltada à formação das elites e
outra, adequadamente descrita por Frigotto (1993, p. 224) na epígrafe do presente item e
denominada pelo autor de escola improdutiva, que, no contexto da reprodução das relações
capitalistas de produção, torna-se produtiva para as classes hegemônicas. Isso porque essa
instituição justifica ou naturaliza a exploração da classe trabalhadora 94 , fazendo crer, por
exemplo, que o sucesso nos estudos resulta das habilidades das pessoas tomadas
individualmente −, ao impedir o seu acesso ao saber historicamente elaborado 95 e ao negar a
92
Voltada apenas para a formação das elites. Grifo da autora.
93
Ver dados do censo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) e do próprio INEP (Instituto
Nacional de Pesquisas Educacionais).
94
Por meio de vários mecanismos que resultam na oferta de uma educação precária.
95
Nas escolas desqualificadas, voltadas às classes sociais menos privilegiadas, ocorre uma ruptura
epistemológica entre os saberes dos alunos e os escolares. Esses últimos são assumidos muito mais como
obstáculos à escolarização do que como instrumentos que auxiliam no entendimento do mundo. A geografia
ensinada coleciona um acervo significativo de exemplos que demonstram a legitimação da espacialidade
burguesa, em detrimento daquelas produzidas por outros grupos sociais. A apresentação do mundo ao aluno,
como ocorre na maioria das vezes, de maneira descontextualizada, generalizada e cindida, aponta para um
projeto de ensino alienador. Ao negar ou não abordar as particularidades e singularidades nas quais são
engendrados os saberes coletivos dos trabalhadores, na vida e na produção de riquezas materiais, a geografia
ensinada aponta para uma aprendizagem voltada à reprodução social. Eis a ruptura epistemológica entre o aluno
Capítulo 1 67
Ângela Massumi Katuta
Pode-se afirmar que a escola ainda hoje atua enquanto locus de socialização
predominantemente voltado à (re)produção do modo de produção capitalista. Trata-se,
atualmente, da principal instituição criadora e socializadora do habitus 96 voltado à reprodução
do atual estado de coisas. Daí sua disseminação junto à classe trabalhadora, o que determinou
uma transformação radical da territorialidade escolar, na medida em que essa instituição
passou a acompanhar, de maneira relativa, as diferentes demandas das classes sociais por
educação, a partir principalmente do século XVIII.
Apesar do papel de reprodução exercido de maneira preponderante pela escola,
existem ambigüidades em seus interstícios, pelo fato de que a mesma é freqüentada por um
conjunto de sujeitos de diferentes classes sociais, que possuem atuações políticas as mais
diversas. Por isso, Fernández Enguita (1989, p. 228) afirma adequadamente que, apesar da
escola conservar essencialmente
[...] as características que lhe foram atribuídas para fazer dela um celeiro de
assalariados domesticados, atomizados e reconciliados com sua sorte, o tempo não
passou diretamente em vão. A gestão dos centros escolares conheceu uma certa
democratização que atingiu os alunos; os direitos destes em seu interior se
multiplicaram e se tornaram mais efetivos; a pedagogia evoluiu no sentido de uma
aproximação de conteúdos e métodos aos interesses e processos dos alunos; e, em
último lugar, mas não por sua importância, o discurso escolar viu-se inundado por
termos chaves tais como ‘atividade’, ‘criatividade’, ‘centros de interesse’,
‘liberdade’, ‘desenvolvimento pessoal’, etc.
As relações entre educação formal e trabalho são dialéticas, dado que são compostas a
partir da tensão entre duas dinâmicas: as demandas do modo de produção capitalista e da
democracia em todas as suas formas 97 . A escola é essencial tanto para a reprodução dos
habitus do modo de produção capitalista, quanto para auxiliar na produção de um outro
conjunto de habitus que concorram para a formação do que Marx denominava de homem
onilateral. Contudo, para a realização deste último tipo de ação, a atuação política consciente
por uma educação voltada para a autonomia se faz necessária 98 .
Manacorda (1991, p. 81), a partir da exegese feita das obras de Marx que propiciam
pensar a educação moderna, define onilateralidade como:
[...] a chegada histórica dos seres humanos a uma totalidade de capacidades
produtivas e, ao mesmo tempo, a uma totalidade de capacidades de consumos e
prazeres, em que se deve considerar sobretudo o gozo daqueles bens espirituais,
além dos materiais, e dos quais o trabalhador tem estado excluído em conseqüência
da divisão do trabalho.
96
Trata-se de um conjunto de disposições que faz o indivíduo participar da “[...] coletividade, de sua época e,
sem que este tenha consciência, orienta e dirige seus atos de criação aparentemente singulares.” Bourdieu (1992,
p. 342).
97
Para um maior detalhamento desta questão, ver Carnoy e Levin, apud Fernández Enguita (1998, p. 229 et
seq.).
98
Sobre esse assunto, ver o livro de Paulo Freire (2004) intitulado Pedagogia da Autonomia.
Capítulo 1 70
Ângela Massumi Katuta
99
Pensamento metafísico.
Capítulo 1 71
Ângela Massumi Katuta
100
Dois exemplos recentes na história da educação brasileira devem ser resgatados, a fim de confirmar a
capacidade de articulação dos interesses da sociedade civil organizada em torno de um projeto político
pedagógico de uma escola democrática: as elaborações do Projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional da Câmara Federal, derrotado e substituído pela Lei de Diretrizes e Bases (LDB) 9394/96 e do Plano
Nacional da Educação: proposta da sociedade brasileira. Esses documentos são expressões dos esforços
encetados pela sociedade brasileira, por meio de suas entidades representativas, que lutam cotidianamente pela
democratização da educação.
Capítulo 1 72
Ângela Massumi Katuta
controle da escola, campo aberto de disputas e tensões sociais em torno do acesso ao saber
elaborado, cuja apropriação ocorre, predominantemente, no interior do espaço escolar.
As escolas de massas fundadas no século XVIII e principalmente no XIX na Europa
passam a ter existência, em grande parte 101 , pelo fato de que a sobrevivência da classe que
alça ao poder político, econômico e simbólico, no contexto inicial da manufatura e depois da
indústria, estava diretamente ligada à produção da mercadoria força de trabalho.
A constituição de um determinado habitus é a condição para a realização do domínio
econômico em qualquer sociedade. Na produção manufatureira e industrial os domínios
cultural e econômico mantiveram entre si relações peculiares, em função de a própria
sobrevivência do capital impor a necessidade de disseminação do habitus capitalista a um
conjunto cada vez maior de pessoas, culminando com sua mundialização.
Uma parte dos habitus inerentes ao modo de produção capitalista passou a ser
disseminado pelas escolas já existentes, que, ao se revelarem eficientes na realização de mais
este papel – subjetivar e, portanto, corporificar nos sujeitos o que Gramsci (apud MOREIRA,
1994, p. 221) denomina de instituição disciplinar do trabalho cronometrado –, tenderam a se
espraiar acompanhando a territorialidade da manufatura, da indústria e portanto do capital.
Por isso, o foco central da aprendizagem escolar tornou-se a da repetição por repetição,
processo este proposto-imposto para as massas na escola moderna. O sincronismo atrelado à
maquinaria, enfim, a construção do habitus voltado à viabilização da referida forma de
produção, encontrou na escola um forte aliado, assim como ocorreu em outras instâncias
produtoras e disseminadoras da cultura hegemônica.
A proliferação da indústria demandou por um tipo de trabalhador que aceitasse ou se
submetesse a trabalhar para os proprietários dos meios de produção nas condições por eles
impostas. Os adultos, inicialmente, foram “convencidos” a executarem os papéis a eles
imputados por meio da expropriação, miséria, fome, internamento em hospícios, prisões e
mortes infligidas, violências extremamente eficientes no processo de submissão do ser
101
Havia também as reivindicações populares que lutavam pelo direito à escola; contudo, o registro dos
primeiros movimentos é precário ou inexiste, pois a memória das classes sociais desfavorecidas está fadada ao
esquecimento nos registros da história oficial. Por conta disso, e pelo fato deste tema, infelizmente, não ser
central em minhas reflexões, fica aqui registrado a indicação da relevância social do mesmo, em função da
tensão e transformações que os movimentos sociais acabarão produzindo no interior da escola. Em função disso,
os mesmos devem ser encarados como elementos relevantes para a democratização quantitativa e qualitativa da
escola. Sobre esse assunto ver o livro de Marília Pontes Sposito (1993) intitulado A ilusão fecunda: a luta por
educação nos movimentos populares, no qual a autora defende que a necessidade de saber e de apropriação do
conhecimento sistematizado estimula o cotidiano dos sonhos e das ilusões fecundas daqueles que, por serem
excluídos do acesso aos bens culturais, estariam destinados ao conformismo e à apatia, não fosse sua
participação nos movimentos sociais organizados que comprovam a luta destes sujeitos sociais contra os
processos de alienação e miserabilidade a que, historicamente, têm sido submetidos.
Capítulo 1 73
Ângela Massumi Katuta
105
Lefebvre (1970, apud MOREIRA, 1999, p. 51) credita a sobrevida do capitalismo à apropriação, em
específico, do espaço urbano. Dessa maneira, os autores entendem que o lugar da re-produção das relações de
produção situa-se no âmbito de toda a sociedade e alertam, dessa maneira, para a organização dos espaços
promovida pela fábrica e as instituições que com ela se disseminaram, como a escola de massas.
106
Horas semanais.
107
Número de horas semanais exigidas para a educação feminina.
Capítulo 1 75
Ângela Massumi Katuta
108
Lacoste (1989) e Moreira (1987, 1988, 1993) fizeram uma crítica vigorosa ao ensino da geografia.
Capítulo 1 76
Ângela Massumi Katuta
É por meio dos processos de ideologização, reificação e fetichização que ocorre uma
apreensão-compreensão invertida – metafísica – da realidade, ou seja, a alienação, processo
este ao qual remeti, fazendo referência no título do presente item à obra de Lewis Carrol
(2002) Através do Espelho. O tema da inversão especular, foco desta outra aventura de Alice,
se ampliado, admite a inclusão de qualquer relação assimétrica, temática essa habilmente
manipulada pelo autor ao longo de todo o romance 109 .
A geografia hegemônica ensinada, ao inverter – ação similar ao espelho de Alice – ou
colocar a realidade em suspensão por encetar uma apreensão alienada ou unilateral do
fenomênico, a partir do uso do esquema conceitual desvelado por Moreira (1993) N-H-E
(Natureza-Homem-Economia), acaba por transformar-se em instrumento de alienação. O
“mundo da geografia” fica assim reduzido a um mínimo múltiplo comum, podendo ser
expresso na seguinte fórmula: “[...] primeiro descrevemos a natureza, depois a população e
por fim a economia. Às vezes alteramos a ordem seqüencial.” (MOREIRA, 1993, p. i).
Ao tomar cada um dos elementos do espaço como independentes das relações sociais
de produção, ou seja, ao reificar o fenomênico por meio da moldura “N-H-E”, ocorre a
alienação do aluno e, portanto, sua “estrangeirização”, sendo a ideologização do entendimento
acerca dos espaços a resultante de todo este processo. É dessa maneira que passam à
existência os fenômenos no “mundo da geografia”, cuja base de ordenação discursiva está
ancorada na razão moderna fragmentária; daí serem a linguagem matemática e estatística, e
suas derivadas, os instrumentos hegemonicamente usados no estabelecimento de correlação
entre os fenômenos.
Subjacente à moldura conceitual da geografia hegemônica ensinada reside um projeto
societário excludente: aprende-se com ela a olhar o mundo e a construir territorialidades por
meio das relações que as classes sociais hegemônicas com ele mantêm. Negam-se as
espacialidades, os saberes geográficos d’O Estrangeiro, elimina-se a alteridade e sua
possibilidade. O Outro – o aluno com suas representações –, sob os auspícios da geografia
hegemônica, qual Mersault, é assassinado no território da sala de aula por meio de estratégias
antropoêmicas e antropofágicas, às quais fiz referência no início do presente capítulo.
A trama que se interpõe entre o aluno e a geografia ensinada origina o drama discente.
Dizer como é o mundo olhado pela moldura “N-H-E”; trata-se de uma aprendizagem: aquela
109
Sobre a problemática do significado da inversão especular em Através do Espelho e mesmo em Aventuras de
Alice no País das Maravilhas, ver as notas de rodapé 4 a 6 do Capítulo 1 da primeira obra citada, presente em
Alice: edição comentada, editada pela Jorge Zahar em 2002. Trata-se de uma possibilidade literária criada pelo
autor de explorar o nonsense, a contradição lógica: “[...] O mundo usual é virado de cabeça para baixo e de trás
para a frente; torna-se um mundo em que as coisas tomam todos os rumos menos os esperados.” (CARROL,
2002, p.138).
Capítulo 1 77
Ângela Massumi Katuta
110
“Turtle Island”, antigo nome do continente americano, de acordo com a tradição de povos indígenas dos
Estados Unidos de hoje (N.T.).
111
“Todo pensamento é movimento. O pensamento que estanca deixa produtos: obras, textos, resultados
ideológicos, verdades. Cessou de pensar. Veremos mais longe, e cada vez melhor, que não apenas todo
pensamento verdadeiro é pensamento (conhecimento) de um movimento, de um devir.” (LEFEBVRE, 1991, p.
90).
112
Santos B. (2000b) considera a ciência moderna como o horizonte cognitivo da burguesia ascendente que o
considerava estágio final de evolução da humanidade.
Capítulo 1 80
Ângela Massumi Katuta
113
Não podemos nos esquecer de que independentemente da lógica inerente aos relatos, descrições e
mapeamentos, o fato de estes se realizarem no contexto de determinadas práticas sociais, espaço-temporalidades
e possuírem objeto e conteúdo retira qualquer possibilidade destas produções serem neutras. Lembremo-nos das
palavras de Lefebvre (1991, p. 30): “A lógica serve a todas as classes (assim como o faz a língua). Todavia, ela
só é ‘neutra’ enquanto é vazia; e na medida em que, implicando a possibilidade de pensar, não seja um
pensamento. Nenhum pensamento, nenhuma idéia, nenhuma ‘reflexão’ que tenham objeto e conteúdo podem ser
completamente neutros. Nem mesmo as matemáticas!”
114
A (re)invenção da instituição escolar pelo capital se dá na medida em que a reprodução deste, a partir da
difusão da fábrica, supõe a apropriação e (re)produção do espaço urbano pelo capital a fim de viabilizar as
relações de produção. Sobre este assunto ver Moreira (1999).
Capítulo 1 81
Ângela Massumi Katuta
o entendimento das mesmas são reduzidos pela geografia hegemônica à moldura “N-H-E”. É
por meio deste posicionamento epistemológico que ocorre o estancamento do pensamento na
geografia, o embaciamento da visão, a formação unilateral. É importante salientar que este
processo ocorre também nas outras disciplinas escolares que, igualmente fundadas na tradição
metafísica, expressão do processo civilizador característico do Ocidente, legitimam e
disseminam formas de pensamento voltadas à dominação cultural, condição para a dominação
econômica e (re)produção do espaço do e para o capital.
Lefebvre (1991), com toda propriedade, explica que a unilateralidade dos sujeitos,
produzida sob a égide do modo de produção capitalista, é conseqüência da disseminação da
metafísica pelas classes sociais economicamente hegemônicas. O que significa dizer que, ao
negar o movimento do processo de conhecimento, e dessa maneira, restringir o ato de
conhecer apenas ao entendimento 115 , a metafísica acaba por “Propor um saber absoluto, ou
uma substância inicial (do sujeito ou objeto erigidos em verdades metafísicas), é o que define
uma ideologia [...]”. (LEFEBVRE, 1991, p. 28).
Ao citar os efeitos da unilateralidade, o caráter de classe do entendimento metafísico
do mundo fica mais evidente: “[...] Ela nega o resto do mundo, esquece-o ou finge esquecê-lo.
Fixando-se no pouco que atinge, o pensamento nega o movimento e nega seu próprio
movimento. Assim, elimina (aparentemente) a contradição dialética.” (LEFEBVRE, 1991, p.
266).
Baudrillard (1996, p. 67), em seu livro intitulado A troca simbólica e a morte,
denunciou por meio de uma metáfora o esquema social e cognitivo engendrado pela
burguesia. Nela, faz referência direta ao processo de metaficização do fenomênico encetado
por esta classe, que lhe permitiu controlar o mundo de maneira hegemônica, tendo como
fundamento a racionalidade produtivista do capital:
Vivia outrora nas Ardenas um velho cozinheiro a quem a edificação de pratos
esculturais e a ciência da plástica pasteleira levaram à presunção de retomar o
mundo onde Deus o havia deixado... em seu estado natural – para nele eliminar a
espontaneidade orgânica, substituindo-a por uma matéria única e polimorfa, a
argamassa: móveis de argamassa, cadeiras, gavetas, máquina de costura de
argamassa e fora, no pátio, uma orquestra inteira, violinos incluídos, de argamassa,
árvores de argamassa ponteadas de folhas verdadeiras, um javali de argamassa
armada mas com um crânio verdadeiro de javali no interior, carneiros de argamassa
cobertos de lã verdadeira. Enfim, Camille Renault reencontrara a substância original,
a massa de cujos diversos frutos só se distinguiam por nuanças “realistas”: o crânio
do javali, as folhas das árvores – mas isso não passava, sem dúvida, de uma
concessão do demiurgo aos visitantes... porque é com um sorriso adorável que esse
bom deus de 80 anos levava as pessoas a visitar sua criação. Ele não queria rivalizar
115
Movimento do pensamento que separa os “[...] objetos uns dos outros e do conjunto em questão, isola,
‘fragmenta’ [...]; por conseguinte, o entendimento analisa, disseca e destrói [...] função do objeto e do instante
isolado, do detalhe tomado fora do conjunto.” (LEFEBVRE, 1991, p. 103).
Capítulo 1 82
Ângela Massumi Katuta
com a criação divina, ele a refizera simplesmente para torná-la inteligível. Nada de
uma revolta luciferina, de uma vontade paródica, nem da perspectiva retrô de uma
arte “naïf”. O cozinheiro das Ardenas reinava simplesmente sobre uma substância
mental unificada (porque a argamassa é uma substância mental, ela permite, como o
conceito, ordenar os fenômenos e nela recortá-los à vontade). Seu projeto não estava
longe do dos construtores de estuque da arte barroca, nem era muito diferente da
projeção do terreno de uma comunidade urbana nos grandes aglomerados atuais.
(BAUDRILLARD, 1996, p. 67).
É no sentido do estabelecimento de uma substância mental unificada que atua a
metafísica; no caso da geografia hegemônica moderna a argamassa tem sido, desde a sua
institucionalização, o esquema conceitual “N-H-E”. A inteligibilidade subjacente ao processo
de (re)criação ou (re)invenção do mundo, a partir da citada moldura conceitual fundada em
uma concepção cartesiana-newtoniana de espaço, aponta para um projeto societário e para
espacialidades que convêm única e exclusivamente à burguesia. Trata-se, portanto, de uma
racionalização voltada para a reprodução das relações capitalistas de produção.
A unilateralidade e a alienação dos sujeitos constituem-se em resultantes concretas
deste processo de abstração. A dobra criada pela metafísica entre a geografia real e a da escola
produz efeitos muito mais deletérios do que imaginamos. É por meio da construção
epistemológica de seres atópicos em nossas escolas que se oculta “[...] o fundamento
paradigmático alicerçado no trabalho e na política que referencia a construção geográfica das
sociedades em cada tempo.” (MOREIRA, 1994, p. 4). É dessa maneira que a geografia
hegemônica auxilia na produção da alienação; contudo, como a escola é um território de lutas
e tensões sociais, as contradições inerentes à complexidade do mundo, vivenciadas e sentidas
na pele pelos alunos, acabam por mostrar os limites do olhar geográfico hegemônico.
Não se trata de discutir aqui a verdade ou falsidade da metafísica. Trata-se de mostrar
que esta perspectiva, ao estancar nos primeiros movimentos – isolamento, fragmentação,
análise, dissecação –, do processo infinito que é o conhecimento, por ter em seu horizonte
cognitivo a crença na permanência, na verdade absoluta e eterna, portanto, definitiva, acaba
constituindo uma visão fragmentada e redutora do fenomênico e do mundo. É exatamente este
processo que ocorre com a geografia hegemônica que impõe a grade conceitual “N-H-E” para
o entendimento de toda e qualquer espacialidade, neste caso, abstraída também do contexto
espaço-temporal e social de engendramento. É Lefebvre (1991, p. 105) que, de maneira
perspicaz, aponta como a metafísica se esquiva com destreza das exigências da razão viva ou
da dialética:
Mantém-se presa às operações do entendimento, que ela confunde com a razão. Separa,
isola (por exemplo, o sujeito e o objeto), mas não o faz com o objetivo de reuni-los mais
Capítulo 1 83
Ângela Massumi Katuta
contradição.
Eis o ardil da metafísica dissecada por Lefebvre (1991) em sua obra Lógica Formal
Lógica Dialética. No contexto da geografia hegemônica, a metafísica produz a falsa
impressão a quem entra em contato com este discurso fragmentado e fragmentador que se está
a conhecer o mundo. Contudo, pelo fato de que entendimento e razão 116 , dois movimentos do
pensamento dialeticamente opostos, não são reunidos na metafísica, por esta reduzir o
conhecimento ao entendimento, o movimento dialético do pensamento que vai do
desconhecido para o conhecido para, em espiral, ao desconhecido retornar e assim
infinitamente, não é completado. Daí afirmarmos que a metafísica estanca nos primeiros
movimentos inerentes ao conhecimento. O problema, contudo, não se reduz a uma questão de
verdade ou falsidade em termos absolutos, trata-se de não prosseguimento dos múltiplos
movimentos do pensamento 117 .
Por meio do discurso metafísico da geografia entra-se Através do Espelho de Alice,
acessa-se ao “mundo da geografia”, estacionário e estancado nos primeiros movimentos do
conhecimento, rompe-se com o que Lefebvre (1991, p. 116) denomina de ritmo do
conhecimento:
O ritmo do conhecimento, portanto, é o seguinte: parte do concreto, global e
confusamente apreendido na percepção sensível, e que se apresenta, portanto, sob
esse aspecto, como primeiro grau de abstração; caminha através da análise, da
separação dos aspectos e dos elementos reais do conjunto, através, portanto, do
entendimento, de seus objetos distintos e de seus pontos de vista abstratos,
unilaterais; e, mediante o aprofundamento do conteúdo e da pesquisa racional,
dirige-se no sentido da compreensão do conjunto e da apreensão do individual na
totalidade: no sentido da verdade concreta e universal. [...] O concreto não se
mantém à margem do conhecimento. Ao contrário, afirma-se como o próprio
objetivo do conhecimento: como o verdadeiro. (LEFEBVRE, 1991, p. 116).
A geografia ensinada realiza os movimentos do conhecimento apenas parcialmente.
Inicia pelo primeiro grau de abstração, destacando do plano da generalidade o objeto a ser
estudado, como a morfologia do terreno, o clima, a vegetação, hidrografia, a urbanização, a
industrialização etc., e, por meio do processo de análise, separa os objetos do seu conjunto e
de seu contexto social e espaço-temporal de realização, construindo pontos de vista unilaterais
ou do fenomênico em si; estancando no ato de entendimento, resulta deste processo o
116
“A razão, por sua vez, constata que o elemento não pode viver fora do conjunto, nem o órgão fora do todo
vivo. Por conseguinte, a razão restabelece, ou busca restabelecer, o todo; é função da vida, do conjunto do
movimento total. [...] A razão é função da unidade.” (LEFEBVRE, 1991, p. 104).
117
Sobre este assunto ver Lefebvre (1991), especificamente o Capítulo II intitulado Os movimentos do
pensamento.
Capítulo 1 84
Ângela Massumi Katuta
tratamento superficial dado aos conteúdos trabalhados em sala de aula. Ao negar o processo
de aprofundamento do conteúdo que realizaria a compreensão do conjunto e do individual na
totalidade, ou seja, a compreensão inerente às espacialidades, a geografia destrói ou assassina
a possibilidade de realização do conhecimento, transformando o aluno em um estrangeiro no
mundo em que vive.
O objetivo do conhecimento, diz Lefebvre (1991, p. 113), é o conhecimento do real,
do concreto; contudo, este não nos é dado de imediato. A abstração se impõe como condição
para o avanço e a própria realização do conhecimento, dado que o ato de pensamento
necessita destacar, da totalidade do real, o que comumente chamamos de objeto de
pensamento. Portanto, o próprio avanço do conhecimento impõe a necessidade de uma
ruptura momentânea no que Lefebvre (1991, p. 114) irá denominar de “[...] mundo dos
objetos práticos, dos instrumentos, da linguagem, da experiência familiar, da percepção e da
ação cotidiana [...]” que se constituem em um grau do conhecimento. Neste sentido, alerta o
autor:
[...] aquele que deseja captar imediatamente – olhando em torno de si o mundo
físico, ou a vida social e econômica, sem ter passado pela abstração, condena-se a
nada captar de essencial e de verdadeiramente concreto, a se manter no aparente, no
superficial, no contingente. Para atingir o verdadeiro, é preciso penetrar além do
imediato. [...] Elevar-se acima do prática e socialmente existente, dominá-lo, é
ademais pô-lo em causa e negá-lo [...]. É, por conseguinte, preparar-se para
transformá-lo, já que não poderia se tratar, para a razão, de abandoná-lo à sua
própria sorte, nem tampouco à passividade do ‘senso comum’ e à tolice dos
‘realistas’ que vêem apenas o imediato e a prática banal. (LEFEBVRE, 1991, p.
113-114-115).
Apesar de ser um momento necessário do movimento do conhecimento, não se pode
manter a separação provocada pela abstração, fazê-lo seria estancar-estagnar na metafísica:
“O entendimento abstrativo cai em erro (relativo) ao manter a separação. A razão restabelece
as relações, a unidade, isto é, o concreto.” (LEFEBVRE, 1991, p. 114).
Este fenômeno foi perspicazmente apreendido pelo genial reverendo Charles Lutwidge
Dodgson ou, como queiram alguns, Lewis Carrol (2002, p. 161), ao descrever as indagações
de Alice que antecedem seu movimento no tabuleiro de xadrez:
Evidentemente a primeira coisa a fazer era um levantamento completo da região que
iria atravessar. ‘É muito parecido com estudar geografia’, pensou Alice, erguendo-se
nas pontas dos pés na esperança de conseguir ver um pouco mais longe. ‘Rios
principais... não há nenhum. Montanhas principais... estou em cima da única, mas
não me pareça que tenha nome. Cidades principais...
Capítulo 1 85
Ângela Massumi Katuta
118
Essa questão será trabalhada no próximo item; contudo, adianto-me em esclarecer que estou me remetendo ao
uso que torna o conceito estacionário, estanca-se nele, que “[...] se coagula ao nível do entendimento analítico,
subjetivamente, arrancando da interação universal o fenômeno do ser em questão.” (LEFEBVRE, 1991, p. 273).
119
Problemática esta abordada por Ferraz (2001).
Capítulo 1 86
Ângela Massumi Katuta
120
Segundo Lefebvre (1991, p. 110), o fundamento da dicotomia que caracteriza o pensamento grego, do qual
somos herdeiros diretos, reside na forma de realização do trabalho, tendo, portanto, fundamento social. Pelo fato
de todo trabalho prático e produtivo ser relegado aos escravos, engendrou-se no bojo desta sociedade dicotomias
nefastas ao pensamento humano, como a separação entre: concreto e abstrato, contemplação e ação, teoria e
prática. “[...] o pensamento metafísico dos gregos foi uma ocupação aristocrática, um prazer luxuoso reservado
aos homens livres.”
121
Porque legitimado no jogo das tensões sociais a favor dos setores hegemônicos e em detrimento da antiga
constituição gentílica e dos expropriados dos meios de produção. Lembremos das palavras de Marx já
anteriormente comentadas: as idéias das classes dominantes são as idéias dominantes de um período.
Capítulo 1 87
Ângela Massumi Katuta
Sol), Rousseau (Discurso sobre a Desigualdade), Morelly (Os Códigos da Natureza), Fourier
(Novo Mundo Industrial), Louis Blanc (Organização do trabalho), Cabet (Viagem a Icária),
Engels (A situação das classes trabalhadoras na Inglaterra) e Marx (Manuscritos de Paris, A
ideologia Alemã, Grundisse).
Sob a égide do modo de produção capitalista, principalmente a partir do século XIX
com as revoluções burguesas, as representações, as linguagens e os saberes impostos como
legítimos e que conquistaram o patamar de objetividade e verdade no contexto da metafísica
foram aqueles produzidos e assumidos por esta classe. A revolução burguesa expressa, além
do domínio político e econômico burguês, sua hegemonia simbólica, campo este em que se
destacam as ciências e as artes acadêmicas enquanto produções que tiveram e ainda têm
grande influência na cosmologia e, portanto, na vida da sociedade ocidental e dos povos por
ela colonizados, principalmente no que se refere à construção de sua concepção metafísica de
conhecimento.
Expressão da hegemonia burguesa sobre o mundo o realismo renascente, subjacente às
pinturas e outras produções da época como as disciplinas escolares e os próprios saberes
científicos, expressava a assunção social em torno do que o pensamento hegemônico
considerava como uma representação objetiva do mundo. Ao contrário do que muitos pensam,
inexiste uma representação objetiva do mundo per si e em si; ela é objetivada e legitimada no
contexto ou tensão das relações humanas, dos modos de produção e portanto depende da
forma como o trabalho se realiza em cada sociedade, sendo também dele expressão.
Quando se constituem os grandes sistemas educacionais nacionais públicos europeus,
por volta do século XVIII e principalmente a partir da segunda metade do XIX, voltados à
formação de trabalhadores unilaterais e alienados para a indústria e, portanto, para a
(re)produção de espaços que a viabilizassem, pode-se afirmar que a geografia ensinada nas
escolas, voltada à hegemonia de poucos sobre muitos, já tinha sua identidade esboçada desde
a tradição clássica: “Dos romanos à ‘idade da ciência’ (séculos XVIII-XIX) a geografia terá
sua imagem cunhada como um inventário sistemático de terras e povos. Um tratado descritivo
e cartográfico com caráter ‘auxiliar da administração de Estado’ e pedagógico.” (MOREIRA,
1988, p. 19). Eis a forma de realização de todo resgate ou (re)invenção das tradições
hegemônicas inerentes a uma outra espaço-temporalidade: o olhar para trás enxerga como
legítimo e se (re)apropria ou se aproveita apenas dos saberes, atividades produtivas e relações
espaciais que se revelam fundamentais ao novo modo de produção.
Considerando-se a face socializadora da instituição escolar, abordada no item anterior,
e o tipo de geografia que se realiza ainda atualmente nas escolas, pode-se afirmar que os
Capítulo 1 88
Ângela Massumi Katuta
saberes geográficos escolares têm auxiliado, na maior parte das vezes, no estabelecimento do
habitus 122 voltado para a reprodução das classes hegemônicas. Este sistema de percepção e
ação do e sobre o mundo é inculcado nos alunos por meio da convivência prolongada com a
metafísica inerente às produções hegemônicas que, no jogo das tensões sociais, são colocadas
como as únicas legítimas e verdadeiras.
A geografia que passa à história, ao se consolidar na instituição escolar de massas do
século XVIII em diante, se mostrará útil na medida em que auxiliará na formação dos seres
unilaterais 123 e alienados em relação ao conhecimento das espacialidades produzidas. Essa
educação tem como fundamento uma prática social que orbita sub-repticiamente ao redor de
tratados descritivos e de materiais cartográficos, cuja elaboração e uso, fundados na
metafísica, se mostrarão úteis ao processo de estancamento do conhecimento e, portanto, de
alienação.
Na escola ensina-se a pensar metafisicamente e, portanto, a (re)produzir espacialidades
voltadas à (re)produção do capital. Essa educação ocorre tanto por meio do posicionamento
epistemológico dos agentes educadores, quanto pelo uso que se faz dos instrumentos criados
pela humanidade, voltados a um determinado entendimento da realidade. No caso da
geografia, como já afirmei anteriormente, tais processos ocorrem pelo estancamento na
abstração do objeto de pensamento; por isso, esse saber remete a todas as montanhas do
mundo mas a nenhuma em particular, a todos os padrões de mobilidade populacional mas ao
mesmo tempo a nenhum em particular. Do ponto de vista das linguagens que tradicionalmente
têm instrumentalizado as análises geográficas, o processo é também o mesmo.
Quando surgem as primeiras escolas do Estado, voltadas à grande massa da população,
a compreensão mecanicista e metafísica do mundo, sua conversão e divisão em res extensa –
domínio fisicamente extenso de matéria e movimento –, e res cogitans – domínio dos
pensamentos, sentimentos e experiências espirituais –, a separação sujeito-objeto, expressão
da razão fragmentária, já havia se processado e se tornado habitus hegemônico. Nos termos
lefebvrianos (1991), o mediato já se tornara imediato.
O ensino e a aprendizagem de um dado saber e concepção sobre e do espaço,
considerados como os únicos legítimos no plano das relações sociais engendradas no contexto
de uma concepção metafísica de conhecimento têm implicado a viabilização de saberes e
espacialidades voltados à reprodução das atuais condições de produção; portanto, na alienação
122
Sistema de normas sociais de percepção, entendimento e ação no mundo.
123
A metáfora de Ítalo Calvino (1997) apresentada em sua trilogia intitulada Os nossos antepassados, constitui-
se em uma belíssima abordagem da problemática da unilateralidade do ser humano sob a égide de regimes
totalitários, nele incluindo-se o modo capitalista de produção dissecado por Karl Marx.
Capítulo 1 89
Ângela Massumi Katuta
124
O trecho parafraseado corresponde a um excerto da obra de Marx intitulada Trabalho assalariado e capital:
“Um negro é um negro. Só em determinadas condições se converte em escravo. Uma máquina de fiar algodão é
uma máquina de fiar algodão. Só em determinadas condições se converte em capital. Tiradas destas condições,
não tem nada de capital, da mesma forma que o outro não é em si mesmo dinheiro, nem açúcar o preço do
açúcar.“
125
Sobre este assunto ver minha dissertação de mestrado (KATUTA, 1997) e o livro que publiquei em co-autoria
(SOUZA; KATUTA, 2001).
Capítulo 1 90
Ângela Massumi Katuta
126
Toda modificação no modo de produção implica transformações nas relações dos seres humanos entre si e
destes, com os outros elementos da natureza e de suas espaço-temporalidades.
127
Resulta de dois processos que se realizam concomitantemente: desenvolvimento e aprendizagem. Sobre esse
assunto ver Elias (1994b).
Capítulo 2 92
Ângela Massumi Katuta
128
Wittgenstein (1995) em sua obra Investigações Filosóficas elaborou um conjunto significativo de reflexões
sobre a necessidade da ampliação dos entendimentos que possuímos da linguagem, compreendida pelo autor
como práxis (p. 187), instrumento que possui as mais variadas funções (p. 180), daí o mesmo entender que não
se pode definir o sentido da palavra de forma descontextualizada, pois ela se realiza num dado contexto: “[...] o
sentido de uma palavra é o seu uso na linguagem.” (p. 207). “[...] Era isto também o que Frege queria dizer
quando disse que uma palavra só tem sentido no contexto de uma proposição.” (p. 214). “[...] a palavra é
indefinível.” (p. 306). “[...] uma pessoa só se orienta por um sinal na medida em que existir um uso contínuo, um
costume de se orientar por ele. [...] Seguir uma regra, fazer uma comunicação, dar uma ordem, jogar uma partida
de xadrez, são costumes (usos, instituições). Compreender uma proposição significa compreender uma
linguagem. Compreender uma linguagem significa dominar uma técnica.” (p. 320).
129
Mais adiante explicito melhor essa afirmação; no entanto, é preciso salientar que nenhuma linguagem e
conhecimento são neutros, isso porque subjacente ao uso e apropriação dos mesmos existe um conjunto de
elementos que auxiliam na realização de um determinado poder.
130
Pode parecer redundante, mas utilizei a expressão “linguagens humanas” pelo fato de entender que hoje não
se pode negar o conjunto de estudos sobre as linguagens dos animais. Contudo, há que ressaltar as
especificidades desse processo nos seres humanos, caso contrário, poderemos cair em armadilhas aprioristas.
Alexandr Romanovich Luria, colaborador de Lev Semenovich Vygotsky, em seu livro Pensamento e linguagem
(1986, p. 11 et seq.), ao discutir sobre a existência da linguagem nos animais − que remete à polêmica do
inatismo, e conseqüentemente, ao apriorismo kantiano e neo-kantiano −, entende que o importante é destacar a
diferença entre a linguagem dos seres humanos e dos animais que, na sua opinião, possuem uma “quase
Capítulo 2 93
Ângela Massumi Katuta
linguagem”. Por linguagem humana: “[...] entendemos um complexo sistema de códigos que designam objetos,
características, ações ou relações; códigos que possuem a função de codificar e transmitir a informação,
introduzí-la em determinados sistemas [...] Na realidade, todas estas características são próprias apenas da
linguagem no homem. [...] a linguagem desenvolvida do homem é um sistema de códigos suficientes para
transmitir qualquer informação, inclusive fora do contexto de uma ação prática. [...] No homem a linguagem
designa coisas ou ações, propriedades, relações, etc., e desta forma transmite uma informação objetiva,
elaborando-a; já a ‘linguagem’ natural dos animais não designa uma coisa permanente, uma característica, uma
propriedade, uma relação, expressa apenas um estado ou uma vivência do animal. É por isso que esta linguagem
animal não dá uma informação objetiva, mas simplesmente contagia os estados em que se encontra o animal que
emite o som [...] Portanto, o sinal nos animais é uma expressão de seu estado afetivo e a transmissão do sinal é a
transmissão deste estado, a inclusão nele dos outros animais e mais nada.” (LURIA, 1986, p. 25).
131
Na perspectiva dos referidos povos, aquela cujo poder auxiliará os seres humanos a encontrar o caminho para
o conhecimento da verdade das coisas.
132
O fundamento da crença na língua perfeita invariavelmente está ancorada na crença do conhecimento
verdadeiro, perfeito porque imutável, portanto, absoluto.
133
Elias (1993, 1994a).
Capítulo 2 94
Ângela Massumi Katuta
Borst (apud ECO, 2001, p. 17-18) defende que as discussões sobre a língua perfeita
constituem-se em obsessões que perpassam a história de todas as culturas. Entendo que essa
afirmação não pode ser generalizada, à maneira como os autores fazem, pois a centralidade do
referido debate em cada sociedade depende de sua cosmologia, do processo civilizador
inerente a cada grupo humano 134 . Antes, é preciso que se questione: O que se oculta por meio
de uma tal afirmação?
O debate sobre a perfeição da linguagem, da existência de linguagens perfeitas em
detrimento de outras, somente adquire centralidade ou relevância no contexto de um processo
civilizador ancorado na idéia da verdade. A linguagem perfeita, nesta perspectiva, se torna a
chave para um entendimento do real – externo aos seres humanos –, mais verdadeiro ou
legítimo em relação aos saberes produzidos por outras sociedades. Essa crença − na
linguagem perfeita, na verdade absoluta e imutável 135 −, aliada a outros elementos
característicos de determinadas formações sociais, auxiliou e ainda auxilia no processo de
subjugação de muitas sociedades e na conseqüente eliminação de suas espacialidades.
A crença na utopia da língua perfeita revela o habitus homogeneizador e
simplificador, típico da sociedade ocidental pós-feudal. A permanência e persistência desse
debate devem ser compreendidas no contexto da constituição do que hoje conhecemos como
civilização ocidental e do conjunto de entendimentos decorrentes deste processo. Em relação
à Lógica Ocidental Tung-Sun (2000, p. 180) afirma que:
[...] A idéia de substância é, na verdade, o fundamento ou fonte de todos os outros
desenvolvimentos filosóficos. Havendo uma descrição qualquer ela passa a ser
atributo. Um atributo deve ser atribuído a uma substância, de modo que a idéia de
substância é absolutamente indispensável ao pensamento, assim como o sujeito é
absolutamente indispensável à linguagem. Por isso, na história da Filosofia
ocidental, por mais diferentes que possam ser os argumentos, favoráveis ou
contrários à idéia de substância, o que constitui o problema central é essa mesma
idéia de substância.
A centralidade da linguagem, enquanto elemento que constitui ou compõe a identidade
ontológica das coisas na cosmologia ocidental, reside na idéia de substância. É no contexto
desta relação que se engendra a possibilidade da construção da crença na existência de uma
língua perfeita, expressão última da verdade ou reveladora da verdadeira substância dos
objetos. O mesmo autor afirma ainda que o fundamento da noção de substância, na referida
134
Elias, em seu célebre estudo intitulado O Processo civilizador (1994a, v. 1, p. 14-15), afirma que mudanças
do comportamento humano seguem determinados padrões e indicam uma direção específica. Por meio de uma
análise das atividades humanas, aparentemente triviais e insignificantes (por exemplo: do comportamento à
mesa, do hábito de assoar-se, escarrar, das atitudes em relação a funções corporais, do comportamento no quarto,
nas relações entre os sexos, entre outras), podemos verificar a lenta modificação na maneira como o indivíduo se
comporta e sente. Para o mesmo autor, essas mudanças, no caso da sociedade ocidental, ocorreram rumo a uma
“civilização” gradual que alterara, por exemplo, os sentimentos de vergonha e delicadeza. Os padrões do que a
sociedade exige e proíbe modifica-se geográfica e historicamente.
135
Que são as das classes hegemônicas.
Capítulo 2 95
Ângela Massumi Katuta
136
Adão na cosmologia cristã.
137
Eco (2001) em seu livro Em busca da língua perfeita na cultura européia fez um mapeamento extremamente
competente do assunto, de seus principais sistematizadores e debatedores no contexto da cultura greco-judaico-
cristã, da qual descendemos diretamente. A grande contribuição da obra em questão é a explicitação e análise de
algumas idéias contidas em alfarrábios, pertencentes à coleção de Eco, não disponíveis a qualquer leitor. Ainda
que refletindo em torno da idéia da possibilidade da existência de uma língua perfeita, questão essa cuja própria
elaboração explicita a atual hegemonia da cosmologia ocidental, o referido livro constitui-se em um marco dos
estudos sobre linguagem na medida em que resgata o debate desde os gregos, passando pelos judeus
(pansemiótica cabalística), romanos, pelos projetos de línguas universais que proliferaram no XVIII – o século
da linguagem - (línguas filosóficas do Iluminismo, linguagens científicas, espaciais, LIA – Língua Internacional
Auxiliar). A obra de Frédéric Nef (1995) A linguagem: uma abordagem filosófica mapeia temas e autores que
contribuíram com a filosofia da linguagem, desde os pré-socráticos, passando pela Idade Média, Iluminismo até
chegar a Wittgenstein. Em função da amplitude temporal e da diversidade de autores referenciados, utilizei a
última obra citada na tecedura da presente reflexão.
Capítulo 2 96
Ângela Massumi Katuta
pensamentos humanos. Trata-se de uma estrutura estruturada pelo fato de a linguagem ser
social e espaço-temporalmente construída; por isso se constitui enquanto meio de
comunicação apenas se há dois ou mais falantes ou detentores do mesmo código. A
linguagem é também estrutura estruturante por ser uma das condições necessárias para a
realização das capacidades cognoscitivas nos seres humanos, ou seja, sem ela jamais
conseguiríamos estruturar pensamentos e produzir coisas, como adequadamente afirmou
Wittgenstein (1995, p. 431). Somado a tais fatos, herdamos, por meio da linguagem, todo o
conjunto de representações sociais, espaciais e temporais inerentes ao meio social e
lingüístico em que nascemos e vivemos. Por isso, a linguagem também é relação social e, por
isso, é portadora das tensões inerentes a cada sociedade, sendo um dos instrumentos que
viabiliza o processo de violência simbólica, estudado por Bourdieu (2000a).
Os ‘sistemas simbólicos’, como instrumentos de conhecimento e de comunicação, só
podem exercer um poder estruturante porque são estruturados. O poder simbólico é
um poder de construção da realidade que tende a estabelecer uma ordem
gnoseológica: o sentido imediato do mundo (e, em particular, do mundo social)
supõe aquilo a que Durkheim chama o conformismo lógico, quer dizer, ‘uma
concepção homogénea do tempo, do espaço, do número, da causa, que torna
possível a concordância entre as inteligências’. (BOURDIEU, 2000a, p. 9).
Pode-se afirmar que o humano no ser humano somente pôde se realizar por meio de
processos intrinsecamente imbricados, amalgamados como são o trabalho, o pensamento, a
linguagem, a memória, a percepção e a construção de conhecimentos, tomados por Elias
(1994b, p. 12-13) como diferentes funções de um mesmo processo de conhecimento
substancialmente idêntico.
Em outras palavras, a própria sobrevivência dos seres humanos anatomicamente
modernos enquanto espécie supôs a lenta construção por meio do trabalho 138 , de instrumentos
138
Categoria essencial para o entendimento das produções humanas e, portanto, dos processos educativos.
Segundo Engels (1976, p. 215) “O trabalho é a fonte de tôda riqueza, afirmam os economistas. E o é, de fato, ao
lado da Natureza, que lhe fornece a matéria por ele transformada em riqueza. Mas é infinitamente mais do que
isso. É a condição fundamental de toda a vida humana; e o é num grau tão elevado que, num certo sentido, pode-
se dizer: o trabalho, por si mesmo, criou o homem.” (Grifo da autora). Também Vygotsky (1991b, p. 131)
comunga do mesmo entendimento quando afirma que “[...] No princípio era a Ação. A palavra não foi o
princípio − a ação já existia antes dela; a palavra é o final do desenvolvimento, o coroamento da ação.” Vera
John-Steiner e Ellen Souberman em posfácio ao livro de Vygotsky (1991a, p. 149-150) intitulado A formação
social da mente afirmam que “Os estudos de Vygotsky foram profundamente influenciados por Friedrich Engels,
que enfatizou o papel crítico do trabalho e dos instrumentos na transformação da relação entre os seres humanos
e o ambiente. [...] No livro Dialética da Natureza, Engels apresentou alguns conceitos básicos que foram
desenvolvidos por Vygotsky. Ambos criticaram os psicólogos e filósofos que sustentavam ‘que apenas a
natureza afeta o homem e apenas as condições naturais determinam o desenvolvimento histórico do homem’,
enfatizando que ao longo da história o homem também ‘afeta a natureza, transformando-a, criando para si novas
condições naturais de existência’. Além disso, Vygotsky argumentou que o efeito do uso de instrumentos sobre
os homens é fundamental não apenas porque os ajuda a se relacionarem mais eficazmente com seu ambiente,
como também devido aos importantes efeitos que o uso de instrumentos tem sobre as relações internas e
funcionais no interior do cérebro humano.” A concepção vygotskyana acerca do que vem a ser o ser humano,
segundo as mesmas autoras (VYGOTSKY, 1991a, p. 150), foi confirmada por arqueólogos e antropólogos
contemporâneos como “[...] os Leakeys e Sherwood Washburn.”
Capítulo 2 97
Ângela Massumi Katuta
necessários à realização dos conhecimentos – meio de orientação das ações humanas, segundo
Elias (1998a, 1998b) –, o que implicou o desenvolvimento de percepções, aprendizagens,
memórias, pensamentos, criação e usos das linguagens. Daí a impossibilidade lógica de
refletir sobre cada um dos processos em si e per si. As abordagens de cada um destes
elementos, de maneira cindida e descontextualizada das relações sociais e dos contextos
espaço-temporais em que os mesmos ocorrem, tendem a resultar em atitudes dogmáticas em
relação aos processos de conhecimento e seus elementos. Foi o que tentei evitar no caso da
reflexão que segue sobre a linguagem, um dos elementos centrais na constituição dos saberes
humanos e, portanto, geográficos.
Capítulo 2 98
Ângela Massumi Katuta
Pierre Bourdieu (2000a), em sua obra O Poder simbólico 139 , entende a arte, religião,
língua, mito e ciência como sistemas simbólicos. Por meio da mesma, procurou chamar a
atenção para as dimensões simbólicas das produções humanas. Defendia a idéia de que todas
elas devem ser encaradas como um conjunto de sistemas simbólicos – que são
concomitantemente instrumentos de conhecimento, comunicação e dominação 140 –, utilizados
para, pelo e no exercício do poder.
Para o autor, o desvendamento das relações de poder subjacente aos sistemas
simbólicos se faz necessário na medida em que “[...] o poder simbólico é com efeito, esse
poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem
saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem.” (BOURDIEU, 2000a, p. 7-8). Nos
estudos bourdieusianos, verifica-se a possibilidade e necessidade do entendimento das
relações de poder subjacentes aos diferentes sistemas simbólicos, um dos caminhos para o
desvelamento das ideologias subjacentes aos mesmos e um dos papéis de uma escola que se
queira transformadora.
Depreende-se do ponto de vista bourdieusiano que relações de poder e controle
também se expressam e se realizam nos e por meio dos sistemas simbólicos, na medida em
que os sujeitos sociais ignoram
[...] o trabalho de dissimulação, transfiguração (numa palavra, de eufemização) que
garante uma verdadeira transubstanciação das relações de força fazendo ignorar-
reconhecer a violência que elas encerram objectivamente e transformando-as assim
em poder simbólico, capaz de produzir efeitos reais sem dispêndio aparente de
energia. (BOURDIEU, 2000a, p. 15).
139
Para Bourdieu (2000a, p. 14) o poder simbólico deve ser compreendido “[...] como poder de constituir o dado
pela enunciação, de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão de mundo e, deste modo, a
acção sobre o mundo, portanto o mundo; poder quase mágico que permite obter o equivalente daquilo que é
obtido pela força (física ou económica), graças ao efeito específico de mobilização, só se exerce se for
reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário.”
140
Norbert Elias (1998b, p. 20) afirma que a linguagem humana é tanto meio de comunicação quanto de
orientação ou de conhecimento: “[...] os símbolos lingüísticos que se desenvolvem através do uso que um grupo
humano faz deles não se reduzem a sua função de meios de comunicação. Eu gostaria apenas de lembrar aqui
que, no meio humano, os símbolos especificamente sociais adquiriram uma função de meios de orientação e,
portanto, de conhecimento. [...] O fato de os homens deverem e poderem se orientar em seu mundo adquirindo
um saber, e de, com isso, sua vida individual e coletiva depender totalmente da aprendizagem de símbolos
sociais, é uma das particularidades que diferenciam o ser humano de todos os outros seres vivos.” As noções de
tempo e espaço que os seres humanos construíram, fazem parte dos símbolos que os mesmos são capazes de
aprender, com os quais devem se familiarizar como meios de orientação.
Capítulo 2 99
Ângela Massumi Katuta
Por isso, é preciso desvendar as relações de força inerentes aos produtos simbólicos,
visando ao entendimento de sua lógica e aos projetos societários a eles subjacentes 141 ,
inviabilizando assim a realização de determinado poder simbólico que tenha como
fundamento a reprodução das desigualdades sociais 142 . Essa atitude, ao defender a
necessidade de desvendamento das relações de poder que subjazem aos sistemas simbólicos,
aponta para a possibilidade da construção de projetos societários mais igualitários, o que não
significa que se possa estar livre das relações de poder e dominação; essas podem se realizar
de maneira diferente, visando a outros fins. A perspectiva bourdieusiana no que se refere aos
sistemas simbólicos pode conduzir para a emergência do que Santos B. (2000a, p. 74)
denomina de
[...] paradigma de um conhecimento prudente para uma vida decente. [...] Sendo
uma revolução científica que ocorre numa sociedade ela própria revolucionada pela
ciência, o paradigma a emergir dela não pode ser apenas um paradigma científico (o
paradigma de um conhecimento prudente), tem de ser também um paradigma social
(o paradigma de uma vida decente).
Considerando o exposto, no caso da presente reflexão, reafirma-se a necessidade do
desvelamento das relações intrínsecas entre linguagem, pensamento e poder, retirando a
primeira e, conseqüentemente, todos os outros elementos do conhecimento – pensamento,
linguagem, memória e percepção –, do campo da neutralidade em que o discurso científico
moderno hegemônico os colocou e que, até o momento, constitui-se em um dos obstáculos
epistemológicos 143 a serem superados em um âmbito científico e escolar. (Bachelard, 1996).
As pesquisas, estudos e debates realizados espaço-temporalmente sobre as linguagens
podem ser ordenados em torno de três eixos principais, já anteriormente citados na
perspectiva de Bourdieu (2000a): como estruturas estruturantes ou instrumentos de
141
É importante resgatar neste momento as idéias de Elias (1993, v. 2, p. 270) sobre o controle social e sua
relação com o exercício de poder. Para o autor “Nenhuma sociedade pode sobreviver sem canalizar as pulsões e
emoções do indivíduo, sem um controle muito específico do seu comportamento. [...] Não devemos nos enganar:
as constantes produção e reprodução de medos pela pessoa são inevitáveis e indispensáveis onde quer que seres
humanos vivam em sociedade, em todos os casos em que os desejos e atos de certo número de indivíduos se
influenciem mutuamente, seja no trabalho, no ócio ou mesmo no ato do amor. Mas não devemos acreditar nem
tentar convencer-nos de que os comandos e medos que hoje imprimem sua marca na conduta humana tenham
como ‘objetivo’ simples, e fundamental, essas necessidades básicas de coexistência humana, e que estejam
limitados em nosso mundo às restrições e medos necessários a um equilíbrio estável entre os desejos de muitos e
à manutenção da cooperação social. Nossos códigos de conduta estão tão cheios de contradições e de
desproporções como as formas de vida social, como, aliás, também a estrutura de nossa sociedade. As restrições
às quais o indivíduo está submetido hoje, e os medos correspondentes a elas, são em seu caráter, força e estrutura
decisivamente determinados pelas forças específicas geradas pela estrutura de nossa sociedade, que acabamos de
discutir: pelo seu poder e outros diferenciais, e as imensas tensões que criam.”
142
Não podemos ser ingênuos e acreditar que o desvendamento do poder simbólico significa a eliminação do
poder. O que se extingue não é o poder em si, mas seus fundamentos e formas de realização.
143
Obstáculo epistemológico em uma concepção bachelardiana (1996, p. 17 et seq.) refere-se a todas as causas
de inércia no processo de conhecimento – opinião e instinto conservativo são os mais destacados pelo autor –,
responsáveis pelo seu estancamento. Neste sentido, conhecer implica um movimento constante de reorganização
total do sistema de saber.
Capítulo 2 100
Ângela Massumi Katuta
144
Sobre esse assunto ver o volume um da instigante obra de Boaventura de Souza Santos (2000b), A crítica da
Razão indolente: contra o desperdício da experiência, principalmente o Capítulo 1 – Da ciência moderna ao novo
senso comum.
145
Quando a pesquisa remete a épocas anteriores, dependendo assim de consulta a documentos recentes ou
antigos, há que se ter clareza de que muitos dos que existem ou sobreviveram e que, portanto, puderam ser
consultados foram aqueles de que as sociedades cuidaram para que existissem e sobrevivessem aos processos de
seleção social e degradação inerentes a toda produção material. A título de exemplo podem ser citadas as idéias
dos sofistas que somente chegaram até nós, tal como as conhecemos, por terem sido comentadas muitas vezes
por seus adversários como Sócrates, Platão e Aristóteles. O triunfo da metafísica na tradição filosófica resultou
na eliminação e, muitas vezes, na construção de uma imagem negativa de outras escolas filosóficas. Deve-se
depreender por meio dessa ação que existe um conjunto de valores e habitus que favorecem a conservação de
determinados registros e a eliminação de outros, considerados de menor ou nenhuma importância, no contexto de
um projeto societário. Devemos ter clareza de que muitos documentos com os quais lidamos, apesar de se
referirem a um dado período, não devem ser usados como ponto de partida que, em geral, valida a constituição
de um olhar homogeneizador para um determinado momento histórico. Devemos estar atentos aos conselhos de
Ginzburg (1988, p. 16): “[...] Insistindo nos elementos comuns, homogêneos, da mentalidade de um certo
período, somos inevitavelmente induzidos a negligenciar as divergências e os contrastes entre as mentalidades de
várias classes, dos vários grupos sociais, mergulhando tudo numa ‘mentalidade coletiva’ indiferenciada e
interclassista. Desse modo, a homogeneidade − de resto sempre parcial − da cultura de uma determinada
sociedade é vista como ponto de partida e não como ponto de chegada de um processo intimamente coercitivo e,
enquanto tal, violento [...].” Nos registros cultos, tradicionais, ou tradicionalmente utilizados enquanto tal,
verifica-se, em larga medida, o modus vivendi, habitus, opus operatum e modus operandi dos setores
hegemônicos de uma sociedade. Resultando daí, a dificuldade da realização de estudos sobre a cultura popular,
enfrentamento realizado com grande competência por Carlo Ginzburg, ainda que seus estudos sofram algumas
críticas.
146
Para a elaboração do Quadro 1, usei como base de informações Heinemann (1993), Nef (1995), Mora (2000),
o Dicionário Básico de Filosofia de Japiassú e Marcondes (1996) e o Dicionário Oxford de Filosofia de Simon
Blackburn (1997). Um levantamento mais específico em outras obras demandaria aprofundamentos da temática
em questão, o que não se constituiu em objetivo central de minha tese.
Capítulo 2 101
Ângela Massumi Katuta
147
Elaborado principalmente com base no livro de Nef (1995) que o escreveu com a preocupação de demonstrar
a especificidade dos debates acerca da linguagem em diferentes momentos históricos.
148
Os sujeitos cujos nomes estão sublinhados tiveram suas reflexões sobre linguagem comentadas por Nef
(1995). Aqueles cujos nomes não estão em destaque, são os pensadores mais conhecidos das escolas citadas pelo
mesmo autor e foram inseridos com o objetivo de melhor elucidar a reflexão.
Capítulo 2 102
Ângela Massumi Katuta
monossemização dos diferentes aspectos da realidade, atitudes presentes, não por acaso, em
sociedades dominadoras e autoritárias, cujo processo de conhecimento tende a estancar, como
vimos no capítulo anterior.
Evidenciei, no Quadro 1, os organizadores ou pensadores, bem como os períodos e
locais nos quais viveram, pelo fato de estes servirem de meio de orientação para a realização
de análises um pouco mais contextualizadas. Dessa forma, tentei, na medida do possível,
romper com análises fundadas em tradições positivistas que permanecem filiadas “[...] à
ideologia romântica do gênio criador como individualidade única e insubstituível.”
(BOURDIEU, 1992, p. 183). Opor individualidade e coletividade
[...] para resguardar os direitos da individualidade criadora e os mistérios da criação
singular, é privar-se de descobrir a coletividade no âmago da individualidade sob a
forma da cultura, [...] do habitus que faz o criador participar de sua coletividade, de
sua época e, sem que este tenha consciência, orienta e dirige seus atos de criação
aparentemente mais singulares. (BOURDIEU, 1992, p. 342).
Tais abordagens obscurecem as condições materiais e simbólicas necessárias −
produção de excedentes, divisão social do trabalho, características geográficas de
determinados locais, processos históricos, estratificação social, cultura, habitus, entre outras
−, ao engendramento das mais variadas produções culturais, favorecendo dessa maneira a
constituição de abordagens ausentes de contextualizações sociais, espaciais e temporais,
necessárias ao entendimento de qualquer produto humano. Os autores arrolados no Quadro 1
foram os sistematizadores das idéias acerca da linguagem à época em que viveram; dessa
forma, expressaram o mais alto nível de sistematização possível em cada período, localidade,
processo civilizador e escola de pensamento em relação ao assunto citado.
É importante salientar que os registros dos debates acerca da linguagem datam de
aproximadamente um século depois do surgimento das primeiras discussões filosóficas de
Tales de Mileto (século VI a.C.), considerado por muitos como o fundador da filosofia e da
ciência. A filosofia constituiu-se no final do Período Arcaico (VIII − VI a.C.) 149 , que foi
marcado por profundas mudanças sociais, econômicas e territoriais, principalmente em
Atenas e Esparta, ao passo que as discussões sobre a linguagem datam do Período Clássico
(VI − IV a.C.), marcado por disputas pela hegemonia política e econômica entre as polis
Atenas, Esparta e Tebas, no contexto da supremacia grega.
Russel (2001, p. 15) em sua História do Pensamento Ocidental, obra que lhe valeu o
Prêmio Nobel de Literatura em 1950, ao descrever a Grécia, resumidamente explicita a lógica
do processo civilizador encetado pelos povos que compunham o Estado grego:
149
A história da Grécia é dividida em quatro períodos: 1) Pré-Homérico − Século XX a XII a.C.; 2) Homérico −
Século XII a VIII a.C.; Arcaico − Século VIII a VI a.C. e Clássico − Século VI a IV a.C.
Capítulo 2 104
Ângela Massumi Katuta
150
Sobre esse assunto ver os livros de Olson S. (2003); Cavalli-Sforza (2003); Mithen (2002) que tratam das
relações entre desenvolvimento cognitivo e evolução dos seres humanos anatomicamente modernos e suas
relações com a linguagem, conhecimento em suas mais variadas formas – arte, religião e ciência, que confirmam
a tese de Elias presente em suas obras sobre a questão da linguagem e conhecimento, concebidos pelo autor
como instrumentos de orientação para as ações humanas, fruto de dois processos que não podem ser tomados
individualmente: evolução e desenvolvimento.
Capítulo 2 105
Ângela Massumi Katuta
151
Grupo consangüíneo, organizado em estamentos, descendente de um ancestral comum que, inicialmente,
possuía algumas centenas de pessoas, prevalecendo então a solidariedade entre os seus membros. Com o
crescimento populacional da referida unidade, e a característica escassez de terras férteis na região, uma parte da
Capítulo 2 106
Ângela Massumi Katuta
população ficou ociosa. Com o aumento do poder político do pater (patriarca), uma nova colonização grega se
inicia com a anuência deste, principalmente no Mediterrâneo Ocidental, atual região da Itália e Sicília, período
conhecido como segunda diáspora, caracterizado por guerras expansionistas, fundação de colônias e aumento da
população escrava. Essas condições materiais auxiliam a conter temporariamente o problema da escassez de
terras férteis.
152
Cada polis terá subdivisões e denominações diferentes, expressão da independência dos pequenos Estados
gregos. De acordo com o Atlas histórico (1988, p. 16) “[...] Não existiu uma Grécia unida, porém dezenas de
pequenos Estados independentes que desenvolveram vida própria, embora unidos por vários vínculos comuns,
como a religião, a língua, os jogos olímpicos e as anfictionias.“ Essas últimas eram reuniões voltadas à
deliberação de decisões sobre negócios de interesses gerais, seus participantes eram denominados anfictíones,
membros do conselho de representantes dos antigos Estados gregos.
153
Alguns deles passaram a se dedicar ao comércio e artesanato, desenvolvendo um poderoso comércio marítimo
a partir do porto de Pireu, formando a classe dos demiurgos que, em geral, eram ricos.
154
As naucrárias eram pequenas circunscrições territoriais cuja função era prover, armar e tripular barcos de
guerra e dispor de cavaleiros. Instância necessária para a sobrevivência − constituição e defesa − das unidades
territoriais da área, expressão do estreito vínculo entre os Estados gregos, a riqueza e os territórios necessários
para a sua (re)produção, neste contexto, considerados enquanto bem supremo.
Capítulo 2 107
Ângela Massumi Katuta
independência se expressou nos âmbitos econômico, político, religioso e cultural. Por isso,
não seria exagero afirmar que, entre os séculos VI a IV, no final do Período Arcaico e ao
longo do Clássico, a divisão social, política e territorial da Grécia expressou-se também no
pensamento filosófico e, conseqüentemente, nos debates sobre a linguagem e o conhecimento.
De igual maneira não seria exagero afirmar que a polis foi o contexto sócio-espacial
que propiciou o surgimento da filosofia e da diversidade dos debates sobre a linguagem e o
conhecimento. Para Gomes (1997, p. 45), “Nada mais significativo do que o fato de ser polis,
o nome desta estrutura espacial, ‘a cidade’ e ser também simultaneamente um feixe de
relações sociais formais que originou a palavra ‘política’.” Considerando o exposto, pode-se
afirmar que a múltipla divisão da sociedade grega se expressou em suas produções filosóficas,
como não poderia deixar de ocorrer.
Em Atenas, durante todo o Período Arcaico − séculos VIII a VI a.C. −, com a
amenização das instabilidades políticas e a constituição de sua hegemonia naval − elemento
essencial em se considerando que o sentido do processo de colonização que estabelecia era do
continente ou das penínsulas para as ilhas −, houve uma grande prosperidade econômica,
política e cultural. Sua economia era sustentada por relações comerciais realizadas na região
do Egeu, Mar Negro e com as colônias jônicas, localizadas na Ásia Menor. A exploração de
minas também auxiliou na dinamização do porto Pireu, que se tornou um dos entrepostos
mais importantes da Antigüidade.
A despeito de todo o Período Clássico grego − séculos VI e IV a.C. − ter sido marcado
internamente por guerras expansionistas entre as cidades-Estado, principalmente entre Atenas
− mais dinâmica e democrática − e Esparta − militar e conservadora −, foi também esse o
período de maior efervescência cultural:
A primeira escola de filósofos científicos surgiu em Mileto. Esta cidade no litoral
Jônico era uma ativa encruzilhada de negócios e comércio. A sudeste ficavam
Chipre, Fenícia e Egito; ao norte, os mares Egeu e Negro; a oeste, através do Egeu, a
Grécia continental e a ilha de Creta. A leste, Mileto mantinha estreito contato com a
Lídia e, através desta, com os impérios da Mesopotâmia. Com os lídios, os milésios
aprenderam a prática de cunhar moedas de ouro para servir de dinheiro. O porto de
Mileto vivia apinhado de veleiros de muitas nações e os seus armazéns estocavam
mercadorias do mundo inteiro. Como conheciam o dinheiro como meio universal de
armazenar valor e trocar mercadorias, não admira que os filósofos milésios se
indagassem de que são feitas as coisas. (RUSSEL, 2001, p. 20).
Verifica-se por meio do excerto transcrito, que o pensar filosófico científico e outras
produções humanas não surgem do nada 155 , sempre existe todo um conjunto de condições
materiais que devem ser resgatadas, pois estas nos auxiliam a entender as questões políticas
subjacentes às obras ou trabalhos humanos. Daí a importância de se considerar o contexto
155
Nihilo nihil fit. Do nada nada advém.
Capítulo 2 108
Ângela Massumi Katuta
social, espacial e temporal no qual as mesmas foram engendradas, bem como o processo
civilizador e projeto societário a elas inerentes. Cada processo civilizador, em épocas e
lugares diferentes, aponta e constrói demandas diferenciadas em relação aos conhecimentos
humanos, produzindo portanto saberes e fazeres específicos.
[...] basta observar que cada uma das quaestiones, ou melhor, cada uma das formas
sucessivas que ela assumiu no curso de sua história [...], só pôde ter existido como
tal para espíritos armados de uma certa problemática, ou seja, de uma certa maneira
habitual de interrogar a realidade; além disso, cada uma das soluções sucessivas que
levaram à solução final, pode ser entendida por referência ao esquema de
pensamento fundamental que fazia surgir a questão e, ao mesmo tempo, orientava a
procura de uma solução irredutível ao esquema e, por conseguinte, imprevisível [...]
entende-se então, que o modus operandi 156 possa revelar-se no opus operatum 157 e
somente nele. (BOURDIEU, 1992, 355).
A contextura histórica e espacial de uma formação social é a condição para o
entendimento da existência da diversidade de escolas e filósofos gregos, presentes no Quadro
1, que são, por sua vez, os fundamentos das discussões sobre a linguagem que a sociedade
ocidental realiza hodiernamente.
Como afirmei anteriormente, pelo fato de a metafísica ter se tornado, na tradição
clássica e escolástica, a filosofia primeira, com a pretensão de constituir uma doutrina do ser
em geral, principalmente na Antigüidade, a semântica − estudo do significado das palavras e
outros signos − estava condicionada à epistemologia e, assim, ao debate da relação entre
linguagem e realidade. Nesta discussão está subjacente a idéia aristotélica do ser que, para
existir, deve ainda hoje, no contexto da lógica ocidental hegemônica, necessariamente possuir
identidade; por isso, segundo Tung-Sun (2000, p. 179), a mesma “[...] pode ser qualificada de
‘lógica da identidade’.”
Para o mesmo autor (p. 179 et seq.), a lei da identidade, além de controlar as operações
lógicas como deduções e inferências, influencia nos conceitos do pensamento, tornando-se a
matriz de outros desenvolvimentos filosóficos. Resulta daí a centralidade do debate na
Antigüidade em torno da capacidade da linguagem dizer o ser com atributos − substância,
essência que, neste contexto, é separado ou descontextualizado da existência −, idéia esta
combatida também por Wittgenstein (1995) em sua obra Investigações Filosóficas. Dessa
forma, afirma Tung-Sun (2000, p. 180):
[...] Havendo uma descrição qualquer, ela passa a ser atributo. Um atributo deve ser
atribuído a uma substância, de modo que a idéia de substância é absolutamente
indispensável ao pensamento, assim como o sujeito é absolutamente indispensável à
linguagem. Por isso, na história da Filosofia ocidental, por mais diferentes que
possam ser os argumentos favoráveis ou contrários à idéia de substância, o que
constitui o problema central é essa mesma idéia de substância. [...] Uma vez definido
esse quê, desenvolvem-se o sujeito e o predicado ou, em outras palavras, a
156
Modo ou maneira de produzir, realizar ou agir.
157
Obra produzida ou realizada.
Capítulo 2 109
Ângela Massumi Katuta
explicitando grande parte do que não fora totalmente esclarecido pelos pensadores
anteriores.” (RUSSEL, 2001, p. 72).
Nef (1995, p. 11) afirma que, do ponto de vista dos debates sobre a linguagem, a
Antigüidade e o Medievo formam um período relativamente homogêneo. Foram comentados
os mesmos textos de Aristóteles e as disciplinas dialética, retórica e lógica formavam, em
ambos os períodos, o alicerce da vida intelectual. Santo Agostinho e Boécio, principais
referências no debate sobre a linguagem, pertencem tanto à Antigüidade quanto ao Medievo.
A única diferença entre os períodos citados é que, na Idade Média, o fundamento do
pensamento ou da racionalidade esteve centrado no dogma da revelação cristã. É, em grande
parte, por meio deste que podemos entender tanto o que se resgata da tradição clássica quanto
a criatividade das soluções engendradas para os problemas que os tradutores medievais
encontraram, quando da tradução das obras clássicas.
Para Nef (1995, p. 11), em Santo Agostinho e Boécio, como em outros pensadores da
mesma época que, não por acaso, faziam parte hegemonicamente do clero, verifica-se o
esforço de preservação da essência do equipamento intelectual da herança antiga e a
constituição de estruturas de recepção dessa mesma herança no contexto da teologia cristã
que, nesse período, tem suas primeiras formulações elaboradas pelos padres da Igreja 159 .
Nesse período, a Igreja católica se constitui na portadora do poder teológico, político e
simbólico, sendo, portanto, a instituição responsável pela produção do saber hegemônico. O
fato de ser intérprete única da Bíblia e a filtradora dos textos produzidos por gregos e romanos
expressa seu poder simbólico e, de certa forma, explica a relativa homogeneidade intelectual
do período. A territorialidade do debate acerca da linguagem estava, portanto, centralizada na
Igreja católica.
O poder – político, teológico e simbólico – da Igreja católica explica-se, em parte, pelo
fato de esta instituição ter construído uma capacidade de aglutinação política e religiosa sem
precedentes; sua coesão e poder se expressaram, por exemplo, em suas produções culturais.
Seu discurso genérico de redenção, salvação e glorificação, que remetia a um mundo
metafísico − Cité de Dieu, cidade de Deus −, cujas representações estavam voltadas
159
Japiassú e Marcondes (1996, p. 104) afirmam que “[...] O período medieval foi marcado pelas sucessivas
tentativas de conciliação entre razão e fé, entre a filosofia e os dogmas da religião revelada, passando a filosofia
a ser considerada ancilla theologiae, a serva da teologia, na medida em que fornecia as bases racionais e
argumentativas para a construção de um sistema teológico, sem, contudo, poder questionar a própria fé [...]”.
Verifica-se neste período que não ocorreu a mera preservação e reprodução da tradição antiga, pois nem tudo o
que foi produzido foi resgatado. Em lugar disso, podemos observar uma apropriação e tradução criativa apenas
do que interessava ou chamava a atenção para e no contexto da cosmologia cristã, que tinha e tem até hoje a
metafísica enquanto um dos seus fundamentos básicos. Tais ações, obviamente, influenciaram na direção do
projeto societário em curso e seus desdobramentos em épocas posteriores.
Capítulo 2 111
Ângela Massumi Katuta
primordialmente aos expropriados dos meios de produção, fez dela a grande alentadora das
massas exploradas e, conseqüentemente, a grande produtora e representante ideológica da
nobreza e realeza.
A capacidade da Igreja católica em cercear e conduzir a vida da massa expropriada e
sua posição privilegiada em relação à nobreza e realeza estavam ancoradas na
descentralização territorial e política ocorrida em boa parte da Europa a partir do processo de
ruralização, aliado às invasões bárbaras.
Poder-se-ia afirmar que na Idade Média, em um primeiro momento, houve “[...] uma
tentativa de salvar o máximo possível de um corpo que estava minguando [...]”, e,
posteriormente se tentou “[...] dar sentido a um corpo crescente de conhecimentos [...]”
(CROSBY, 1999, p. 68). Pertencem ao primeiro momento − Antigüidade Tardia ou Baixa
Idade Média − Santo Agostinho e Boécio, os precursores da escolástica 160 .
As preocupações de Santo Agostinho, como todo filósofo patrístico 161 , foram sempre
teológicas; por isso, buscou conciliar fé e razão “[...] Mesmo quando se ocupa de questões
filosóficas, o seu objetivo é, em primeiro lugar, reconciliar o ensinamento da Bíblia com a
herança filosófica da escola platônica.” (RUSSEL, 2001, p. 183). Creditam-se a Boécio as
mais antigas traduções latinas dos escritos lógicos de Aristóteles; apesar disso, de acordo com
Russel (2001, p. 185), este sofreu mais influência da filosofia de Platão do que das
especulações teológicas dos Padres.
No final da Antigüidade e início da Idade Média verifica-se que os pensadores
tenderam a alinhar-se ao platonismo, principalmente ao neoplatonismo 162 , em detrimento das
160
Filosofia ensinada nas escolas, universidades e nos locais de instrução teológica da Igreja Católica no período
medieval, aproximadamente do século XI ao XVI. “[...] Combinava doutrina religiosa, estudo dos Padres da
Igreja e uma investigação filosófica e lógica baseada sobretudo em Aristóteles e, até certo ponto, em temas de
Platão [...]” (BLACKBURN, 1997, p. 122). Ver Japiassú e Marcondes (1996, p. 193-194), Blackburn (1997, p.
121-122).
161
A Patrística foi a filosofia dos padres da Igreja Católica que viveram entre o século I e IX. Trata-se da síntese
da filosofia grega clássica com a religião cristã, tendo seu início com a escola de Alexandria. A escolástica
derivou da patrística. Ver Japiassú e Marcondes (1996, p. 208-209), Blackburn (1997, p. 291).
162
Fusão da filosofia de Platão com doutrinas clássicas religiosas, pitagóricas e outras. Corrente filosófica do
século III, fundada por Amônio Sacas, divulgada por Plotino e seus seguidores Porfírio, Iâmblico e Proclo
(século V). Caracteriza-se por uma interpretação espiritualista e mística das doutrinas de Platão, com influência
do estoicismo e do pitagorismo. Na escola de Atenas, o neoplatonismo desenvolveu-se em uma direção
teológica, porém anticristã. Em Alexandria, surgiu uma mistura de elementos neoplatônicos e cristãos, cuja
forma mais desenvolvida se encontra em Boécio. Apesar de influenciar profundamente a filosofia medieval e
renascentista, ”[...] o Deus dos neoplatônicos acaba por ser excessivamente distante em relação ao mundo para
poder servir de forma satisfatória como Deus do judaísmo, do cristianismo e do islamismo. O Deus platônico é
como um lago que, sendo a fonte de um rio, está no entanto separado dele pelas quedas d’água intermediárias;
não é acessível pela oração, não se interessa nem remotamente pelo que se passa abaixo dele, e sequer toma
conhecimento disso.“ (BLACKBURN, 1997, p. 264-265). Depreende-se daí que a idéia de Deus que o
platonismo permitia não era das mais adequadas à cosmologia cristã; daí o resgate das idéias aristotélicas pelos
escolásticos, especificamente aquelas sobre o motor imóvel, por meio das quais buscaram uma definição de Deus
Capítulo 2 112
Ângela Massumi Katuta
idéias aristotélicas. À medida que ocorre o “esforço de reconciliação” 163 entre os saberes das
doutrinas filosóficas clássicas, os dogmas da fé cristã e as verdades reveladas pelas Sagradas
Escrituras − portanto, no momento em que a cosmologia cristã torna-se hegemônica,
principalmente do século XI em diante −, o pensamento filosófico remete,
predominantemente, às tradições aristotélicas. Para Russel (2001, p. 236-237)
[...] É fácil perceber por que Aristóteles é mais adaptável à teologia cristã do que
Platão. Utilizando uma linguagem escolástica, podemos dizer que uma teoria realista
não deixa muito espaço a um poder divino com uma função vital no comando das
coisas. O nominalismo 164 propicia uma abrangência muito maior nesse aspecto.
Naturalmente, ainda que o Deus dos judeus e dos cristãos seja algo muito diferente
da divindade aristotélica, é verdade também que o aristotelismo se enquadra melhor
no esquema cristão do que o platonismo. A teoria platônica pretende a inspirar
doutrinas panteístas 165 como, por exemplo, no caso de Spinoza, ainda que o seu
ramo do panteísmo seja puramente lógico [...].
Ao discorrer sobre a filosofia medieval, Burtt (1991, p. 41 et seq.) nos apresenta um
quadro extremamente interessante da influência de Platão e Aristóteles no período. O que se
verifica é que foram resgatadas, traduzidas, discutidas e valorizadas obras de ambos os
pensadores que permitissem a construção dos fundamentos patrísticos e escolásticos no
contexto da racionalidade cristã. Por isso o autor afirma que:
[...] o único trabalho original nas mãos dos filósofos era o Timeu, no qual Platão é
apresentado, mais que em qualquer outro diálogo, à luz do pitagorismo [...] Platão
parecia ser o filósofo da natureza; Aristóteles, que era conhecido apenas por sua
lógica, parecia um dialético árido. [...] Quando Aristóteles capturou o pensamento
medieval 166 , no século XIII, o neoplatonismo não estava, de modo algum, vencido,
mas permanecia como uma corrente metafísica algo reprimida mas ainda
amplamente influente, à qual os que dissentiam do peripateticismo ortodoxo
costumavam recorrer [...]. (BURTT, 1991, p. 41-42).
Se retomarmos os principais debates sobre linguagem que ocorreram no contexto da
Antigüidade tardia, listados no Quadro 1, pode-se verificar que os elementos norteadores dos
mesmos são a cosmologia e racionalidade cristã. A problemática da interpretação das
que, apesar de ser completamente auto-suficiente, não fosse de todo absorto em si mesmo. Sobre esse assunto
ver Japiassú e Marcondes (1996, p. 193-194), Blackburn, (1997, p. 264-265).
163
Processo esse nem sempre pacífico, como afirmam Crosby (1999) e mais especificamente Russel (2001).
164
Corrente filosófica originada na filosofia medieval cuja tese é a de que as coisas denominadas pelo mesmo
termo nada têm em comum exceto isso, defende ainda que as idéias gerais ou universais não têm existência real
nem na mente humana nem enquanto formas substanciais; são apenas signos lingüísticos, palavras ou nomes.
Grifo da autora.
165
O Panteísmo defende a concepção de que tudo deve sua existência a Deus e que com ele se identifica. Deus e
o universo são um, pois é um ser imanente à natureza, e não um ser exterior e transcendente. Os estóicos
defendiam a idéia de que Deus se confundia com a Alma do Mundo. Espinoza é o principal representante dessa
concepção, afirmando que “[...] Deus é a única substância infinita e eterna, da qual todas as coisas existentes são
apenas modos.” (JAPIASSÚ; MARCONDES, 1996, p. 206). Ver também em Blackburn, (1997, p. 279).
166
Entendo que, neste trecho, o autor faz uma inversão equivocada, foram os medievais − patrísticos e
principalmente escolásticos − que capturaram Aristóteles, pelo fato de que as idéias do filósofo se constituíam
em um porto mais seguro e tranqüilo para a ancoragem da racionalidade cristã do que a filosofia platônica. Uma
prova disso é que essa última predomina em dois momentos: quando do resgate da tradição clássica pelos
patrísticos e no período que marca o fim da hegemonia da Igreja Católica enquanto produtora da racionalidade
hegemônica.
Capítulo 2 113
Ângela Massumi Katuta
167
“[...] conjunto das ‘artes’ que, na Idade Média, compunham o curso completo dos estudos nas universidades,
conduzindo ao domínio das artes e compreendendo o trivium (gramática, retórica, dialética ou lógica) e o
quadrivium (aritmética, música, geometria e astronomia).” (JAPIASSÚ; MARCONDES, 1996, p. 18).
168
Segundo Japiassú e Marcondes (1996, p. 202), este termo é aplicado ao conjunto das obras lógicas de
Aristóteles, reunidas no século I a.C. por Andronico de Rodes. O Organon contém a teoria aristotélica do
método, ou seja, a estrutura do raciocínio e argumentação válidos que encontramos aplicados em toda ciência.
Nas obras que o compõe existe: a) uma teoria do termo, da predicação, das categorias mais gerais de substância,
relação, tempo etc (Categorias); b) uma teoria da proposição, pois esta é composta de termos e da afirmação e
negação (Da Interpretação); c) uma teoria do silogismo, que é constituído de proposições e da dedução válida
(Primeiros analíticos); d) uma teoria do silogismo demonstrativo que constitui o discurso científico (Segundos
Analíticos); e) uma teoria dos argumentos dialéticos (Tópicos); f) uma exposição das falácias e sofismas
(Refutações sofísticas).
169
Pertencentes à Escola de Alexandria, corrente filosófica neoplatônica
Capítulo 2 115
Ângela Massumi Katuta
170
Defende que as características comuns das coisas são criações cujas fontes são as idéias e reações humanas.
171
Em linhas gerais, trata-se de uma postura segundo a qual “[...] existe uma realidade exterior, determinada,
autônoma, independente do conhecimento que se pode ter sobre ela. O conhecimento verdadeiro, na perspectiva
realista, seria então a correspondência entre nossos juízos e essa realidade.“ (JAPIASSÚ; MARCONDES, 1996,
p. 231). Muitos autores afirmam que o uso irrestrito da lei da bivalência é sua principal característica.
Capítulo 2 116
Ângela Massumi Katuta
172
Técnica do acróstico por meio da qual se codifica ou decodifica um texto, tomando-se as iniciais de uma série
de palavras para a formação de outras.
173
Técnica passível de ser usada para codificar ou decodificar mensagens porque, em hebraico, os números são
representados por letras do alfabeto. Neste contexto, cada palavra tem um valor numérico derivado da soma dos
números representados por cada letra.
174
Arte da permutação das letras ou dos anagramas; em línguas em que as vogais podem ser interpoladas, há
maiores possibilidades de permuta do que em outros idiomas. Esta, segundo Eco (2001, p. 50), para os judeus
não é apenas uma técnica de leitura, mas se trata do mesmo procedimento com que Deus criou o mundo.
Subjacente a este entendimento está a crença de que, por meio de recursos ou alfabeto finitos, se produz um
número vertiginoso de substâncias ou combinações, o que remete aos fundamentos do cálculo fatorial.
Capítulo 2 117
Ângela Massumi Katuta
175
Método de ordenação discursiva e, portanto, de pensamento, característico do período Medieval −
aproximadamente século VIII ao XIV −, que visava à exposição de idéias por meio de uma sistemática
conhecida como disputa, na qual se apresentava uma tese que deveria ser refutada ou defendida a partir dos
fundamentos estabelecidos por uma autoridade sancionada pelo poder eclesiástico (Bíblia, Platão, Aristóteles ou
algum cânone da Igreja); daí a subordinação deste pensamento ao princípio maior da autoridade. Em outras
palavras, as idéias eram consideradas verdadeiras, se seus fundamentos lógicos estivessem baseados em alguma
autoridade reconhecida.
176
O debate sobre a significação na época medieval estava fundado na crença da correspondência biunívoca
entre linguagem, realidade e intelecção, ou seja, na gramática medieval que possuía caráter dedutivo e formal.
Daí as decisões científicas serem tomadas em função da significação, obtida por meio do estabelecimento de
regras formais. Nef (1995, p. 74) distingue três tipos de considerações dessa gramática: a primeira tratava da
base categorial, das partes do discurso – classificação das palavras; uma outra consideração dizia respeito à
forma geral das regras sintáticas – descrição das regras de concordância, análise de casos; a última tratava da
semântica – relação entre linguagem, realidade e intelecção. Esses são os fundamentos de grande parte das
teorias clássicas da lingüística e da semiótica.
177
“[...] Conhecimento dos princípios e fundamentos últimos de toda a realidade, de todos os seres.” (CHAUÍ,
1995, p. 54-55).
178
Estudo das mudanças ou translações sofridas, no tempo e no espaço, pela significação das palavras (fil.),
estudo da relação de significação dos signos e da representação do sentido dos enunciados. (semiót.). (Fonte:
Ferreira, 1988, p. 592).
Capítulo 2 119
Ângela Massumi Katuta
179
Russel (2001, p. 237) defende que a união entre filosofia e teologia pôde perdurar enquanto se admitia que a
razão, até certo ponto, apoiava a fé, ponto nodal da cosmologia medieval. A negação da possibilidade de
conciliação entre fé e razão pelos franciscanos expressa a emergência de uma racionalidade diferente daquela
constituída no medievo. Não se trata de substituição da fé ou da religião pela razão, mas da construção de outra
racionalidade, expressão das classes cuja hegemonia estava em curso. Thuiller (1994, p. 22) afirma que existe
apenas uma diferença de grau entre os conhecimentos científicos e míticos, pois “[...] nos dois casos, o objetivo é
encontrar ‘uma unidade oculta sob uma complexidade aparente’, elaborar um discurso explicativo utilizando
analogias etc.” Ampliando esta afirmação, poder-se-ia dizer que a diferença entre os saberes religiosos, míticos,
de senso-comum e científicos é apenas de gradação. A importância de cada um dependerá do contexto espaço-
temporal de cada sociedade humana, ancorada em um determinado modo de produção.
Capítulo 2 120
Ângela Massumi Katuta
180
Segundo Nef (1995, p. 100), o tema da origem da linguagem remonta aos epicuristas, ou seja, há
aproximadamente 300 a.C. O que temos, ainda hoje, em relação a esse debate é um conjunto de hipóteses não
comprovadas. Para Olson S. (2003, p. 163) essa é “[...] uma área da ciência na qual os fatos são extremamente
escassos, de modo que as hipóteses tendem a se multiplicar de forma descontrolada.” Elias (1998a, p. 271-272)
em seu livro Envolvimento e Alienação, chama a atenção para a forte tendência no pensamento científico de
elaboração de teses sobre as origens. Tomando como exemplo a hipótese do big bang ou sobre a origem do
universo, o autor afirma que essa é mais uma prova do “[...] quanto permanece forte o desejo humano de
segurança sobre a noção de começo absoluto e de quanto ainda é difícil para os indivíduos considerar processos
sem começo [...]. Dessa forma tem origem na física, progressivamente confirmado por cálculos e observações,
mas que brota, entretanto, como tantos outros mitos dos tempos primordiais, do mero desejo humano de
transferir a categoria ‘começo’ das partes, particularmente de si, para o todo, de modo a escapar da inquietante
concepção de uma infinitude sem princípio.” Por isso, em relação à linguagem e ao conhecimento, o mesmo
defende que “[...] primeiro, é preciso sacudir a força constrangedora do hábito. O costume habituou as pessoas,
que estão à espera deste tipo de explicação, a procurar uma resposta que tenha o caráter de um início. Tal
resposta não será encontrada.” (ELIAS, 1994b, p. 7-8).
Capítulo 2 121
Ângela Massumi Katuta
violência simbólica 181 as atividades cognitivas de toda uma sociedade, indicando a direção
tomada pelo seu processo civilizador e projeto societário.
Os conhecimentos, quaisquer que sejam eles, também devem ser considerados como
meios de orientação e, portanto, de sobrevivência dos seres humanos em um dado contexto
espaço-temporal 182 . Hodiernamente, para além de serem meios de orientação, os
conhecimentos também devem ser considerados instrumentos voltados à produção de
excedentes, cuja apropriação é realizada por uma pequena parcela da sociedade183 . Verifica-se
assim que, sob a aparente homogeneidade do saber socialmente institucionalizado no
Ocidente, subjazem tensões e conflitos entre os mais diferentes sujeitos sociais. Muitas lutas
pela legitimação de determinados produtos simbólicos são expressões das diferenças
simbólicas entre as classes. Não por acaso, a balança sempre tem sido favorável às classes
hegemônicas que detêm, em quase sua totalidade, o monopólio dos meios e instrumentos de
produção simbólica.
O movimento geral ao qual fiz referência anteriormente pode ser compreendido como
expressão do conjunto de transformações territoriais, sociais e históricas relativas a modos de
ocupar o espaço, produzir, viver, sentir e pensar hegemônicos, no contexto de uma dada
sociedade. Isso não significa que esses modos resultam de um projeto societário e de um
processo civilizador pensados a priori. Ao contrário, esses últimos são as resultantes do
conjunto de transformações territoriais, sociais e históricas engendradas a partir de razões
práticas, estejam elas direcionadas para atender apenas a subsistência dos grupos humanos ou
para a produção da riqueza de alguns a partir do empobrecimento e miséria de muitos.
181
Termo usado por Bourdieu (2000a, p. 11) e que se refere ao papel dos sistemas simbólicos enquanto
instrumentos políticos de imposição ou de legitimação da dominação que “[...] contribuem para assegurar a
dominação de uma classe sobre outra (violência simbólica) dando o reforço da sua própria força às relações de
força que as fundamentam e contribuindo assim, segundo a expressão de Weber, para a ‘domesticação dos
dominados’.”
182
Sobre esse assunto ver a instigante obra de ELIAS (1998b) intitulada Sobre o tempo. Por meio da mesma, o
autor discute a função do conhecimento, enquanto instrumento de orientação das ações humanas, em diferentes
momentos históricos e locais.
183
É preciso atentar para os indicadores de aumento das desigualdades sociais: 185 milhões de pessoas estão
desempregadas no planeta, o que equivale a 6,2% da força de trabalho; desde os anos 1990, as diferenças entre
países ricos e pobres têm aumentado, salvo exceções como a China; um grupo minoritário de nações,
correspondente a 14% da população mundial, domina metade do comércio mundial; no início dos anos 1960, a
renda per capita nas nações mais pobres era de US$ 212, enquanto nos países mais ricos era de US$ 11471,
passados 40 anos, ou seja, em 2002, as mesmas cifras passaram a US$ 267 (+26%) e US$ 32339 (+183%); o
produto interno bruto mundial (PIB), que era de 1,01 em 1990, caiu para 0,08 em 2003; entre 1985 e 2000, 16
países em desenvolvimento cresceram mais de 3% ao ano, 32 países em desenvolvimento cresceram menos de
2% e 23 países em desenvolvimento tiveram retração do PIB. Os dados evidenciam a face perversa do processo
civilizador encetado no Ocidente e do atual projeto societário, fundado no aumento das desigualdades sociais em
benefício de poucos. (FOLHA DE S. PAULO, 25 fev. 2004, Caderno B, p. 1).
Capítulo 2 122
Ângela Massumi Katuta
dinâmico essa grande mutação que conduzia à época moderna [...] uma nova
mentalidade se instaurou, marcada por um ‘realismo’ e um ‘racionalismo’
totalmente favoráveis ao estudo sistemático da natureza. Para que esse novo ideal
fosse plenamente explicitado seria preciso esperar pelo século XVII (Descartes
tornar-se ‘como um mestre e senhor da natureza’).
Em função do exposto, verifica-se que a mudança de habitus no período e as grandes
sistematizações científicas possuem íntima relação entre si. Essas são obras que concretizaram
as transformações sociais e territoriais que vinham sendo lentamente empreendidas. É no fim
do medievo que as matemáticas têm seu status mudado. Anteriormente, a aritmética e a
geometria não eram ignoradas. Seu estudo era feito em um contexto teórico nas universidades
existentes, freqüentadas pelas classes sociais hegemônicas ou em vias de hegemonização,
como eram, respectivamente, a aristocracia e a burguesia. No entanto, tais matemáticas não
tinham a importância que passaram a ter poucos séculos depois, quando da ascensão
econômica da burguesia.
O crescente incremento do comércio e do processo de urbanização propiciado pela
gradativa mudança do modo de produção, principalmente na bacia do Mediterrâneo, levou ao
fortalecimento da burguesia e de sua espacialidade, de seu modus vivendi e operandi, fato este
que influenciou os habitus da sociedade como um todo. Neste processo, ocorreu a inegável
disseminação de uma forma burguesa de relação e entendimento do mundo, bem como de sua
espaço-temporalidade. As matemáticas passaram a ter usos e aplicações cotidianas. Houve o
desenvolvimento de um entusiasmo coletivo pela mensuração de diferentes aspectos do real,
como confirma Thuillier (1994, p. 76):
[...] Não há dúvida de que nos arsenais, nos ateliês de mecânica e entre os artilheiros
o emprego das medidas e o sentido de quantidade se desenvolveram sensivelmente.
[...] a análise das formas geométricas tornou-se uma preocupação comum aos
comerciantes, aos engenheiros e aos artistas [...] Esse desenvolvimento das
matemáticas práticas, na Itália dos séculos XIV e XV, ajuda a compreender por que
e como o ‘olhar’ dirigido às coisas se transformou, e de algum modo se
‘geometrizou’. Descobrir as proporções, identificar os triângulos, os cones ou os
cilindros passou então a ser uma espécie de ‘hábito cultural’ amplamente difundido.
Constrói-se assim, aos poucos, uma outra racionalidade hegemônica para o
entendimento do mundo centrada em um método conhecido como científico − dedutivo e
experimental −, cujo fundamento estava ancorado na mensuração de diferentes aspectos do
real. A hegemonia do referido método, enquanto forma única de acesso à verdade ou ao
conhecimento verdadeiro, a despeito da perspectiva de seus elaboradores ou detratores, é
reveladora do sentido dominador inerente à cosmologia ocidental hegemônica.
Segundo Nef (1995, p. 99), o período entre os séculos XV e XIX foi marcado “[...]
positivamente por uma orientação, um debate, um tema e um projeto [...]”. Com a
constituição de uma racionalidade hegemônica, fundada na razão metafísica e não mais no
Capítulo 2 124
Ângela Massumi Katuta
184
Verifica-se, nessa perspectiva epistemológica, a oposição entre linguagem científica e popular, expressão de
posições cientificistas, em geral fundadas na metafísica e no ponto de vista escolástico. Estas tendem a defender
o conhecimento científico hegemônico e suas linguagens enquanto única forma de saber legítimo.
185
Sobre esse assunto ver a excelente obra de Bourdieu (1997) intitulada A economia das trocas lingüísticas,
especificamente a Parte I. Nela, o autor discorre sobre os fundamentos da economia simbólica subjacente à
produção e disseminação dos produtos culturais, usando como mote, para a explicitação de suas teses, o caso da
produção e reprodução da língua legítima, também conhecida como vernácula ou nacional.
Capítulo 2 125
Ângela Massumi Katuta
186
“Doutrina que afirma a existência de uma substância ou realidade autônoma composta de substâncias,
independente de nossa percepção ou conhecimento. Oposto a fenomenismo [...].” (JAPIASSÚ; MARCONDES,
1996, p. 255).
187
Seus maiores sistematizadores foram Newton, com sua ciência matemática e Descartes, com sua metafísica
dualista.
188
Talvez o termo mais adequado para expressar a visão à qual Wertheim se referiu não seja materialista, mas
substancialista ou empirista.
Capítulo 2 126
Ângela Massumi Katuta
189
Ainda hoje, em função da impossibilidade da transposição do mesmo tratamento e abordagem do real usados
nas ciências físicas, exatas e biológicas, muitas especialidades da área das ciências humanas continuam a ter sua
cientificidade questionada ou sequer reconhecida. Vários estudos dessa área são classificados como ideologia,
negando-se sua legitimidade enquanto estudo científico de determinado fenômeno. A “foice” do ideal de
cientificidade da ciência moderna operou e, ainda hoje, opera de maneira a desconsiderar uma parte considerável
dos estudos que a ela não se enquadram. Em função disso, ainda é comum que muitos pesquisadores da área das
ciências humanas se ocupem em estabelecer argumentos sobre a cientificidade dos estudos que realizam. Essa
atitude pode ser entendida como expressão de que a cientificidade das pesquisas realizadas, na referida área, não
é consensual na comunidade científica.
190
De minha parte insiro também a geográfica e todas as outras áreas. (Grifo da autora).
Capítulo 2 127
Ângela Massumi Katuta
Encontrar regularidades ou padrões gerais em si e per si, durante muito tempo e talvez,
até hoje, se constitui na única meta perseguida por muitos pesquisadores que estudam a
linguagem. Apresentar a realidade tal como a ela é tem sido o objetivo da razão hegemônica e
a função atribuída às linguagens no período; por isso, apenas algumas delas foram eleitas
como as mais adequadas a tal intento. Contudo, o que esta razão oculta é a íntima relação
entre os saberes produzidos, as linguagens e as práxis humanas.
Com a constituição e legitimação do ideal de cientificidade moderno ocorre, nas
ciências humanas, uma tendência geral de adequação de sua produção à hegemonia científica
colocada, monista e substancialista em seu fundamento. O desdobramento da sujeição ao
referido ideal, no que se refere à questão da linguagem, pode ser verificado na relativa
unidade com que se chega ao século XVIII: um debate, um tema e um projeto (NEF, 1995). A
necessidade da exatidão na realização dos processos comunicativos −, portanto, a eliminação
dos ruídos, a ênfase na retidão de conceitos universalizantes, a elaboração de leis universais e
descontextualizadas sobre os processos interpretativos, sua dissecação, substancialização e
compartimentação com a finalidade de elaborar regras voltadas a uma correta interpretação −,
é ação características do período e expressa a sujeição do debate sobre a linguagem ao ideal
de cientificidade hegemônico.
Para Wertheim (2001, p. 113), Descartes, em especial, fez a balança pesar fortemente
em favor do monismo, pois
[...] operou a divisão radical entre um domínio fisicamente extenso da matéria em
movimento (res extensa) e um domínio de pensamentos, sentimentos e experiência
espiritual (res cogitans) [...] Como a nova ciência iria descrever somente res
extensa, apenas esse domínio receberia a sanção da autoridade científica. À medida
que essa autoridade cresceu, tudo que estava fora do campo de ação da ciência
tornou-se cada vez mais objeto de ataque [...] Embora Descartes insistisse na
realidade da res cogitans, ao excluir radicalmente esse domínio imaterial dos
métodos e práticas da ciência, deixou-o extremamente exposto a ser visto como
‘irrealidade’. [...] Com o dualismo de Descartes, porém, não há mais vínculos entre o
domínio da matéria e o do espírito. Sem vínculos com o mundo concreto da ciência
física, a res cogitans cartesiana tornou-se rapidamente (como o Céu cristão) um
símbolo vazio.
Ao meu ver, não foi Descartes ou qualquer outro pensador que, individualmente, fez a
balança pesar a favor do monismo. Não podemos culpá-lo por sistematizar as idéias de sua
época. O habitus da sociedade em que o mesmo vivia, construído desde o século X, já estava
em processo de hegemonização. As idéias sistematizadas por Descartes expressam a
cosmologia das classes sociais hegemônicas, seus entendimentos sobre o real, a linguagem e a
espaço-temporalidade de uma época.
Uma atenta observação quanto aos métodos e práticas da ciência moderna hegemônica
revela a tecedura desta no contexto de uma civilização quantificadora, que transformou
Capítulo 2 128
Ângela Massumi Katuta
191
Sua obra de referência foi publicada em 1933 com o título Science and Sanity. Nela, o autor faz uma análise
exaustiva do comportamento de diferentes pessoas, relacionando-os com suas concomitantes reações semânticas.
Em linhas gerais conclui que suposições estruturais pré-científicas e a metafísica primitiva estão subjacentes ao
comportamento de pessoas que possuem hábitos aristotélicos de linguagem, porque seus pensamentos envolvem
postulados implícitos de identidade. Tais pessoas, segundo o autor, possuem padrões de reações
comprovadamente inadequados para a solução dos problemas contemporâneos. Por isso, tendem a estar mais
propensas ao desenvolvimento de neuroses e psicoses.
Capítulo 2 129
Ângela Massumi Katuta
em si, mas que devem ser explicitadas, a fim de que se rompa com o referido hábito de
pensamento ou obstáculo epistemológico, em uma perspectiva bachelardiana.
Relações entre pensamento, comportamento e estrutura da linguagem, às quais se
referem Korzybski (apud HAYAKAWA, 2000, p. 229), não são visíveis per si, mas elas
podem se tornar ou não visíveis, dependendo da forma como se realiza seu entendimento; daí
a necessidade de apreender a linguagem de maneira contextualizada, pois se trata de uma
relação social que se realiza espaço-temporalmente. É nesta perspectiva que se coloca a
importância da construção de outros olhares ou habitus de pensamento em relação à
linguagem.
A tentativa de substancialização da linguagem 192 e também de todos os processos
inerentes ao processo do conhecimento deve ser entendida no contexto da construção de um
entendimento substancialista e fisicalista de mundo. Esse entendimento é expressão de uma
mentalidade ou habitus burguês e caracteriza-se por ser eminentemente visual e quantitativo.
Os processos são percebidos, em cada um dos seus elementos constituintes, como entidades
ontológicas distintas entre si. O tempo, o espaço, os vários elementos da natureza, enfim,
todas as coisas existentes no mundo, inclusive a linguagem, foram racionalizados no contexto
da mentalidade hegemônica burguesa, lentamente construída a partir do século X.
No Renascimento e Iluminismo os debates sobre a gênese das idéias, a origem do
conhecimento e da linguagem foram amplamente realizados, tendo como pano de fundo o
questionamento sobre a possibilidade do conhecimento humano. Esses debates, ao serem
orientados pela racionalidade cartesiana, defendiam a possibilidade do conhecimento da
natureza, concebida enquanto domínio fisicamente extenso da matéria, cujos acontecimentos
se repetem de maneira infindável. No contexto da tradição cartesiana somada à kantiana é
possível pensar em universais lingüísticos e de conhecimento, em linguagem perfeita para a
correta expressão das idéias e em uma origem única dos conhecimentos, questões essas às
quais se dedicou uma parte significativa dos estudiosos da época.
A realização dos debates em torno das questões elencadas pode ser compreendida
enquanto expressão da importância epistemológica do cartesianismo, cujas teses sobre a
separação entre mente e matéria, as estruturas inatas de pensamento foram e muitas vezes
ainda são 193 o fundamento para a crença na existência de estruturas universais de pensamento
192
Ao meu ver, essa deve ser concebida como práxis, como adequadamente afirma Wittgenstein (1995, p. 187).
193
Vide as teorias lingüísticas de Noam Chomsky (1971, 1972) sobre a gramática gerativa-transformacional. Por
meio delas, o autor defende a existência de universais lingüísticos, princípios básicos comuns a todas as línguas,
prova da existência de universais inatos nos seres humanos.
Capítulo 2 130
Ângela Massumi Katuta
e linguagem 194 nos seres humanos. Tal crença foi reforçada pelo pensamento kantiano que,
com sua lógica transcendental, defendia a existência de princípios do conhecimento humano a
priori, que são as categorias do intelecto que:
[...] exaurem tudo o que o intelecto contém em si a priori, mas das quais ainda
podem ser deduzidos outros conceitos. Se decompuséssemos os conceitos
transcendentais dessa maneira, então teríamos uma gramática transcendental,
contendo o princípio da linguagem humana; por exemplo, como o presente, o
pretérito perfeito, o mais-que-perfeito se encontram em nosso intelecto, o que são os
advérbios etc. Se se refletisse sobre isto, ter-se-ia uma gramática transcendental. A
lógica conteria o uso formal do intelecto. (KANT, 2002, p. 86).
É interessante notar que as transformações do modo de produção em curso e o
conseqüente desenvolvimento tecnológico propiciaram o conhecimento de territórios até
então desconhecidos, fato esse que conduziu à verificação da existência de uma diversidade
ainda maior de línguas, habitus, espaço-temporalidades, enfim, de outras formas de vida e
entendimento do mundo, que se tornou ainda mais heterogêneo.
Contudo, à época da exploração e conquista de terras desconhecidas, a cosmologia
ocidental já havia passado por mudanças substanciais em função do desenvolvimento da
linguagem matemática 195 . Essa, durante longo tempo, esteve voltada ao entendimento e
domínio da natureza física. A referida linguagem permitiu a construção de conhecimentos
cuja ênfase residiu no estabelecimento de ações que auxiliassem a ter um maior domínio dos
outros elementos da natureza, a desenvolver tecnologias, conhecer e estabelecer domínios
sobre territórios e, assim, auferir mais lucros.
Na cosmologia ocidental hegemônica, a linguagem matemática torna-se a principal
ferramenta do período, no entendimento de um mundo concebido apenas como domínio
fisicamente extenso da matéria. O desejo por uma língua universal que expressasse
corretamente as idéias, destinada aos intercâmbios comerciais e científicos e às viagens e, no
caso específico de Leibniz, que propagasse o cristianismo universal e pacificasse a Europa 196 ,
torna-se um dos projetos centrais do período, expressão dos anseios dos setores hegemônicos
de uma sociedade.
No volume 2 do livro O processo civilizador, ao discorrer sobre o valor cognitivo da
formulação matemática, Elias (1993, p. 285) assim se expressa:
[...] Muitas pessoas consideram que o trabalho mais fundamental da pesquisa seria
explicar todas as mudanças através de algo imutável. E o respeito pela formulação
matemática tem origem, em grande parte, nessa valorização do imutável. Tal escala
194
Não por acaso as teses piagetianas também têm como fundamento a crença nas estruturas universais de
pensamento, fruto da adoção do inatismo cartesiano, base para a certeza da possibilidade de realização do
conhecimento, pois nesse contexto, tem caráter imediato e evidente.
195
Esse desenvolvimento foi lento e, segundo Crosby (1999), teve início no século XIII em função de
transformações intelectuais ocorridas na Europa Ocidental.
196
Sobre esse assunto ver Eco (2001, p. 328), em sua obra intitulada A busca da língua perfeita.
Capítulo 2 131
Ângela Massumi Katuta
de valores, porém, tem suas raízes não no trabalho cognitivo da pesquisa em si, mas
no anelo do pesquisador pela eternidade. [...] A compreensão dessas regularidades é
frutífera como meio para atingir uma meta diferente, um meio de orientar o homem
no tocante a si mesmo e ao seu mundo. Seu valor reside exclusivamente em sua
função de elucidar a mudança histórica.
A crença na idéia de gênese, origem e verdade absoluta, fundamentada pelo e no
contexto do método experimental, expressão da cosmologia ocidental renascentista
hegemônica, permeou todo o debate sobre a linguagem entre os séculos XV a XIX. O
movimento do mesmo direcionou-se, predominantemente, para o entendimento da alteridade
a partir do encaixe-redução da mesma no contexto da cosmologia européia, ou de
determinados grupos sociais hegemônicos.
É com esse olhar, engendrado no processo de construção da hegemonia de
determinados grupos sociais no contexto da formação dos diferentes Estados nacionais que se
analisou e descreveu as línguas vulgares, se reabilitou as línguas vernáculas e se criou e
legitimou hábitos, costumes e formas de pensar e viver adequadas ou voltadas à viabilização
do modo de produção em curso. O caso da Alemanha e sua intelligentsia constituem um
exemplo extremamente didático para entendermos a relação, ou a amálgama existente entre
habitus, grupos sociais, hegemonia política, econômica e simbólica 197 .
Entre os séculos XV e XIX ocorre uma mudança do uso e, portanto, do significado da
palavra lógica. Na Antigüidade e Medievo esse termo era concebido com um sentido
aristotélico e, assim, usado como sinônimo de ciência do real. Nesta perspectiva, as
categorias, como por exemplo, a de sujeito e predicado, e os princípios lógicos, como a lei da
identidade, refletem as categorias e princípios ontológicos, sendo assim, derivados da própria
natureza e estrutura do real. A isomorfia entre linguagem, realidade e pensamento estava
bastante presente nessa concepção.
Entre o Renascimento e Iluminismo, a lógica passa a ser concebida como ciência do
pensamento. As categorias e os princípios lógicos são, neste contexto, entendidos como
reflexos da estrutura e modo de operar do pensamento humano. O fundamento para essa tese é
a crença em estruturas universais de pensamento humano, inspiradas tanto no racionalismo
cartesiano como no transcendentalismo kantiano 198 , ao qual me referi anteriormente. Por isso,
a lógica, nesse contexto, teria o papel de explicitar e sistematizar as categorias e princípios do
pensamento humano. Um exemplo de pesquisa realizada a partir dessa perspectiva são os
trabalhos de Jean Piaget, cujas teorias estão ancoradas por essa concepção moderna de lógica.
197
Sobre esse assunto ver os excelentes trabalhos de Elias intitulados O processo civilizador (1994a),
principalmente o volume 1 e Os Alemães (1997).
198
Por meio dele Kant defendia que os seres humanos eram impelidos a adequar suas experiências a um padrão
predeterminado, ditado pela natureza humana. Assim, o raciocínio humano para Kant tinha limites definidos.
Capítulo 2 132
Ângela Massumi Katuta
O século XX, segundo NEF (1995, p. 135), marca um período de “[...] revolução, tão
importante quanto a do nominalismo no século XIV [...]”. Nele, há uma dupla tendência na
filosofia da linguagem: o reconhecimento da impossibilidade radical de apreender o
“pensamento nu”, sem roupagem lingüística, e a insistência no fato de que a atividade de
análise deve ser realizada por meio da e pela linguagem. Verifica-se que ambas as tendências
comungam da tese da impossibilidade de dissociação entre pensamento e linguagem.
Contudo, esses últimos são concebidos como entidades ônticas ou substâncias diferentes, mas
complementares entre si, como se entre ambos existisse uma espécie de isomorfismo.
Os entendimentos explicitados subsidiarão a criação da Filosofia analítica por Frege,
Russel e Carnap, cujo fundamento era o entendimento de que o processo de análise é
essencial para o método e progresso filosóficos. Daí a defesa da tese de que, subjacente à
forma de superfície de uma linguagem, se encontra uma estrutura lógica profunda, cuja
análise auxiliaria na resolução dos problemas filosóficos, entendimento este também
comungado por Noam Chomsky. Nesse contexto, os problemas apontados são entendidos
como resultantes das formas de superfície da linguagem comum, concebidas como
enganadoras. Verifica-se aqui o uso de uma pretensa cientificidade que aponta para a
homogeneização em detrimento da heterogeneidade da linguagem e, portanto, dos seres
humanos, expressão do processo civilizador sob a égide do capitalismo.
Deleuze e Guattari (2002, p. 41) criticam a tese da existência de constantes e
universais da língua que permitiria defini-la como um sistema homogêneo, essencial para o
estatuto acadêmico científico da lingüística em sua face hegemônica:
A lingüística em geral ainda não abandonou uma espécie de modo maior, um tipo de
escala diatônica, um estranho gosto pelas dominantes, constantes e universais.
Durante esse período, todas as línguas estão em variação contínua imanente: nem
sincronia, nem diacronia, mas assincronia, cromalismo como estado variável e
contínuo da língua [...].
Ao criticarem o excesso de valoração do homogêneo da língua maior ou padrão pela
lingüística, os autores fazem uma severa crítica ao atual modelo científico, também político,
ainda hoje hegemônico, por meio do qual a língua se torna objeto de estudo, sendo ”[...]
homogeneizada, centralizada e padronizada, língua de poder, maior ou dominante.”
(DELEUZE; GUATTARI, 2002, p. 45).
Neste sentido, os autores nos alertam sobre dois modos de tratamento possíveis de
uma mesma língua: “[...] Ora tratam-se as variáveis de maneira a extrair dela constantes e
relações constantes; ora, de maneira a colocá-las em estado de variação contínua.”
(DELEUZE; GUATTARI, 2002, p. 49). Os autores optam pelo segundo tratamento e acabam
instaurando o movimento em suas reflexões sobre a linguagem, militando “[...] Por uma
Capítulo 2 133
Ângela Massumi Katuta
Wittgenstein (1ª fase) 199 , Donald Davidson e de John Langshaw Austin era a de a filosofia
deveria analisar a lógica das sentenças, por meio da qual os problemas filosóficos seriam
resolvidos. Verifica-se nessa tese a crença de que os problemas filosóficos decorrem da
linguagem, das incertezas dela decorrente, e não dos usos que os seres humanos dela fazem.
Esse posicionamento é o que mais se aproxima daquele denominado por Bourdieu (1997) de
escolástico, e porque não dizer metafísico. Contudo, entre os estudiosos citados há profundas
divergências em relação ao tipo de análise a ser realizada.
É importante salientar que estudiosos de outras áreas também realizaram debates sobre
o pensamento e a linguagem nos séculos XX e XXI. Contudo, os mesmos não se encontram
elencados no Quadro 1, principalmente pelo fato de termos enfatizado as diferenças
filosóficas entre os debates sobre a linguagem, por entender que essas tendem a ser os grandes
divisores de águas que separam os atuais entendimentos que os profissionais de outras áreas
possuem sobre o tema.
O que se pode observar é que, por volta do século XVII em diante, o debate é feito por
especialistas das diferentes áreas do conhecimento científico, expressão da divisão intelectual
do trabalho no contexto da sociedade moderna 200 . Verifica-se também, nos estudos e debates
sobre a linguagem e o pensamento, o esfacelamento do objeto e da razão e, muitas vezes, a
impossibilidade da elaboração de determinadas questões e respostas em função da
manutenção de uma dada forma de especialização, processo esse característico do habitus
199
Os estudiosos das idéias wittgensteinianas tendem a dividir a obra desse pensador em duas fases. O primeiro
período culmina com o Tractatus Lógico-Philosophicus, única obra do autor publicada em vida, que se insere na
tradição da análise lógica da linguagem iniciada por Frege e Russel e desenvolvida pelo Círculo de Viena. A tese
subjacente à obra de Wittgenstein é a de que a linguagem possui uma estrutura lógica que reflete a estrutura
lógica do real. Nesta perspectiva, a linguagem tem com o mundo uma relação formal e estática. No segundo
período de seus estudos, o autor ou o “segundo Wittgenstein”, como é conhecido, enfatiza na obra intitulada
Investigações científicas, o uso da linguagem no contexto das mais diferentes atividades sociais e cotidianas,
elaborando o conceito de jogos de linguagem. É por meio desse conceito que as relações formais e estáticas da
linguagem com o mundo são interrompidas, cedendo lugar às ações humanas que dão significados múltiplos à
linguagem. Advém desse entendimento a crítica do autor ao processo de dicionarização da palavra que, segundo
ele, assassina a linguagem por enclausuramento.
200
Os estudos bourdieusianos sobre as trocas simbólicas e suas relações com o campo econômico elucidam de
forma extremamente competente o funcionamento daquilo que o próprio autor denomina de campos de produção
simbólica, dos quais fazem parte as produções científica e artística. Em função das especificidades, riqueza e
complexidade inerente às análises do autor, sugiro a leitura direta das seguintes obras do mesmo: A Economia
das Trocas Simbólicas (1992); As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário (1996); Razões Práticas:
Sobre a Teoria da Ação (1997); A economia das trocas lingüísticas: o que falar quer dizer (1998); O poder
simbólico ( 2000a); O campo econômico: a dimensão simbólica da dominação (2000b). É importante salientar
que o problema não reside na questão da especialização, pois hodiernamente ela se faz necessária não só, mas
também, em função da amplitude atingida pelo saber científico. Contudo, quando o campo de produção
científica passa a agir como se as especializações e a divisão social do trabalho fossem naturais e, portanto,
inquestionáveis, mesmo quando surgem evidências de que elas mais atrapalham que auxiliam nas investigações
científicas, nesse caso, entendo que é preciso rever o sentido tomado pelas especializações. Esse problema fica
evidente quando a investigação trata da linguagem, conhecimento e aprendizagem; mais adiante abordarei essa
questão.
Capítulo 2 135
Ângela Massumi Katuta
científico moderno. Não raro, tal habitus esses últimos influencia, em grande parte, na
urdidura e tecedura de determinadas questões e respostas às mesmas, inviabilizando outras.
Nas diversas áreas que se convencionou denominar de ciências humanas, os debates
sobre a linguagem, o pensamento e suas inter-relações tenderam a ser realizados por
diferentes ciências, profissionais e, portanto, por diversos olhares. Somado a isso ocorreu
também uma perspectiva de verticalização dos estudos com poucas áreas dialogando entre si.
A lingüística, semiologia, psicologia, sociologia e filosofia, bem como suas especialidades
internas, constituíram fóruns próprios para debater a questão, assim como algumas
especialidades das ciências biológicas que tratam da questão da linguagem e do pensamento
na perspectiva do processo de evolução.
O importante a ser salientado é que os modelos de ser humano por meio dos quais as
diversas áreas da ciência operam são muito diferentes entre si. No contexto da divisão entre
res extensa − domínio fisicamente extenso de matéria em movimento –, e res cogitans −
domínio de pensamentos, sentimentos e experiência espiritual, entre natureza e sociedade,
corpo e alma –, surgiram basicamente dois modelos de ser humano divergentes: um, das
ciências humanas e outro, das ciências naturais. Na perspectiva desses modelos, se “[...] algo
é geneticamente determinado, considera-se, normalmente, que pertence ao domínio da
biologia. Se algo é adquirido pela experiência, ou seja, pela aprendizagem, considera-se, em
geral, que não se trata de um problema biológico.” (ELIAS, 1994b, p. 26).
O que se tem verificado ultimamente é um movimento oposto ao anteriormente citado
em que muitas equipes interdisciplinares estão fazendo consideráveis esforços com o objetivo
de elaborarem questões e respostas cuja tecedura supõe um trabalho e esforço de diferentes
especialistas e especialidades da ciência. É o caso de alguns estudos que enfocam o
funcionamento da mente, as possibilidades de leitura da arte rupestre, principalmente a
parietal 201 , a história dos seres humanos, entre outros.
A título de exemplo pode-se citar o trabalho de Olson, S. (2003), por meio do qual o
mesmo procura fazer uma “nova síntese” entre arqueologia, lingüística e genética a fim de
refletir sobre a história da humanidade. A reflexão sobre a linguagem realizada por Elias 202
(1994b) em sua obra intitulada Teoria simbólica também se constitui em um bom exemplo de
tentativa de síntese que, a meu ver, tende a ser promissora no que se refere à elaboração de
201
Expressões figurativas gravadas nas paredes de cavernas elaboradas pelos seres humanos denominados pré-
históricos.
202
Esse autor, em uma outra obra intitulada Envolvimento e Alienação (1998a), fez uma interessante reflexão
relacionada à linguagem, ao pensamento e à construção de conhecimentos, especificamente na área das ciências
humanas.
Capítulo 2 136
Ângela Massumi Katuta
uma concepção menos maniqueísta de ser humano e da linguagem. São dignas de serem
citadas as obras de Vygotsky e seus colaboradores − principalmente Luria e Leontiev, pois as
dimensões biológica e social dos seres humanos são abordadas em suas relações dialéticas:
desenvolvimento e evolução são, nesta perspectiva, pares indissociáveis.
As reflexões de Gilles Deleuze e Félix Guattari também merecem destaque,
especialmente sua obra intitulada Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia, editada em 5
volumes pela editora 34 e, especificamente, o volume 2 (2002), no qual os autores elaboram
críticas aos postulados da lingüística e refletem sobre os regimes de signos, abordando a
linguagem em uma perspectiva de realização muito próxima às idéias wittgensteinianas, que
enfatizam o uso da linguagem e o contexto em que a mesma se realiza.
Atualmente existem três eixos básicos ou divisores de águas no que se refere às
abordagens acerca da linguagem, detectados por Bourdieu (2000a) e explicitados em sua obra
O poder simbólico: a linguagem como estrutura estruturante do pensamento e da ação, a
linguagem enquanto estrutura estruturada no contexto da qual “herdamos” ou nos é imputado
um conjunto de habitus, e a linguagem enquanto instrumento de dominação. A existência
desses eixos sinaliza uma forma de entender a linguagem no contexto da especialização,
retirando-a de seu contexto social e espaço-temporal de realização. É por meio e com esse
tipo de apreensão que ocorre a reificação e fetichização da linguagem, como se ela tivesse
poderes mágicos e sua existência se realizasse em si e per si, o que de fato não ocorre. Como
afirma Wittgenstein (1995) em sua obra Investigações Filosóficas: linguagem é práxis que se
realiza por meio dos diferentes jogos de linguagem. Daí não se poder capturá-la apenas em
uma perspectiva; há que entendê-la a partir dos usos, apropriações e práticas humanas que se
realizam em contextos sociais e espaço-temporais.
Nos itens que seguem, discutirei rápida e sucintamentemente cada uma das abordagens
pelo fato de entender que se trata de uma discussão relevante tanto para a presente tese,
quanto para os profissionais que se dedicam a trabalhar com os sistemas simbólicos, como é o
caso dos educadores. Contudo, adianto desde já que a linguagem, ao contrário do que fazem
inúmeros pesquisadores, deve ser compreendida no contexto social e espaço-temporal em que
se realiza; daí a impossibilidade da realização de abordagens unilaterais, como as que
comumente se faz, em respeito e sob a égide das diferentes especialidades do saber
denominado científico.
Entender a linguagem, fenômeno eminentemente humano, ora apenas como estrutura
estruturada, ora como estrutura estruturante ou como mero instrumento de exercício de poder
implica a elaboração de análises descontextualizadas que desconsideram os meios ou contexto
Capítulo 2 137
Ângela Massumi Katuta
A expressão jogo de linguagem deve aqui realçar o facto de que falar uma língua é
uma parte de uma actividade ou de uma forma de vida. Imagina a multiplicidade dos
jogos de linguagem nestes exemplos e em outros:
Dar ordens e agir de acordo com elas −
Descrever um objecto a partir do seu aspecto ou das suas medidas −
Construir um objecto a partir de uma descrição (desenho) −
Relatar um acontecimento −
Fazer conjecturas sobre o acontecimento −
Formar e examinar uma hipótese −
Representação dos resultados de uma experiência através de tabelas e diagramas −
Inventar uma história; lê-la −
Representação teatral −
Cantar numa roda −
Resolver adivinhas −
Fazer uma piada; contá-la −
Resolver um problema de aritmética aplicada −
Traduzir de uma língua para outra −
Pedir, agradecer, praguejar, cumprimentar, rezar.
Acrescentaria ainda à lista do autor: dar aulas de geografia, fazer mapas, estabelecer
leituras de outras linguagens, como a pintura, obras literárias ou outras produções materiais,
cujas figurações espaciais nos permitam entender as diferentes espacialidades produzidas
pelos seres humanos.
Verifica-se pelo exposto que a abordagem da linguagem enquanto práxis humana pode
envolver um conjunto ilimitado de ações e também de linguagens. Advém daí a necessidade
da opção e reflexão por um conjunto específico de práticas, a fim de evitar a queda em um
turbilhão de indeterminações que não nos levará a lugar algum. Assim, optei por fazer as
reflexões tendo como foco as práticas educativas formais no ensino básico da geografia, eis a
práxis norteadora do debate.
Com isso, estou a indicar que o que deve ter centralidade na reflexão sobre a
linguagem, em estudos ligados aos processos educativos, é o contexto em ela se realiza. A
opção por um dado uso, − linguagem como instrumento do conhecimento, como meio de
comunicação ou de dominação −, disciplina o olhar e o fazer para um contexto artificioso e
abstrato que, na perspectiva dos processos educativos formais, não faz muito sentido, pois
inviabiliza, formaliza e idealiza o olhar, o entendimento e, conseqüentemente, impede o
engendramento de práticas educativas mais contextualizadas.
Penso que dessa forma tenha demonstrado, ainda que sucintamente, a necessidade da
realização de contextualizações históricas e espaciais para o entendimento de qualquer prática
ou realização humana, caminho este que pode nos auxiliar a elaborar reflexões menos
centradas nos indivíduos, enfatizando os contextos histórico-espaciais, os habitus 203 ,
203
Termo freqüentemente usado por Norbert Elias e Pierre Bourdieu.
Capítulo 2 139
Ângela Massumi Katuta
204
Posicionamento epistemológico da filosofia hegemônica que foi sistematizada no século XVII, cujo postulado
era o de que todos os fenômenos naturais devem ser explicáveis pelas leis do movimento. Galileu, Descartes e
Newton foram seus principais sistematizadores. A natureza passa a ser considerada como uma “máquina”,
possuindo mecanismos de funcionamento. A idéia de movimento, no mecanicismo, supunha a garantia de sua
duração e princípio. No contexto do mesmo, é possível a admissão da idéia de um início por um criador, que
garantiria, inclusive, a conservação do movimento. Verifica-se que o mecanicismo não se contrapunha à idéia de
um criador, que está subsumida nesse sistema. Esse fato corrobora as afirmações que fiz anteriormente ao
afirmar que, entre o medievo e o Renascimento, não ocorreu uma ruptura entre ciência e religião. O que houve
foi uma mudança no fundamento da racionalidade hegemônica, que passa da revelação divina à razão humana.
Contudo, essa última, na perspectiva do postulado mecanicista, não rompe com a idéia da existência de um
criador. Por isso, a teologia desdobra-se em teologia revelada − apoiada na palavra divina − e teologia natural ou
racional − baseada exclusivamente na razão humana que, por meio da metafísica, trata da existência divina e
seus atributos.
205
Apesar dos múltiplos significados que esse léxico acabou ganhando ao longo de vários momentos históricos
na perspectiva do conhecimento, o idealismo reduz o objeto do conhecimento ao sujeito cognoscente e do ponto
de vista ontológico; refere-se à redução da matéria ao pensamento ou ao espírito.
206
Doutrina filosófica elaborada por Leucipo e desenvolvida por Demócrito e Epicuro, desenvolvida
posteriormente por Lucrécio. Defende a idéia de que a matéria é composta por átomos − que são eternos e
possuem todos a mesma natureza, diferindo na forma −, partículas elementares indivisíveis e tão pequenas que
não podem ser percebidas a olho nu. Em psicologia, é uma doutrina que defende a idéia de que espírito e
pensamento são elementos psíquicos separados como os átomos e moléculas nos corpos materiais.
207
Suas idéias são oriundas do behaviorismo que se contrapunha ao dualismo cartesiano − mente e corpo são
duas substâncias separadas: o eu, apesar de estar ligado a um corpo, é auto-suficiente e capaz de ter existência
independente. O behaviorismo defendia que os estados mentais são construções lógicas derivadas de disposições
comportamentais; advém daí a defesa da medição científica do comportamento. O funcionalismo, por sua vez,
defende a tese de que os estados mentais devem ser estudados por meio de uma tríplice relação: as suas causas,
seus efeitos em outros estados mentais e no comportamento.
Capítulo 2 141
Ângela Massumi Katuta
rigorosa. Eliminam-se assim aqueles elementos não passíveis de serem tratados por meio
desses recursos intelectuais.
Ao examinar minuciosamente os resultados de investigações anteriores208 , Vygotsky
(1991b, p. 2) chegou à conclusão de que “[...] desde a Antigüidade até hoje, todas as teorias
oscilam entre a identificação, ou fusão, do pensamento e da fala, por um lado, e sua disjunção
e segregação igualmente absolutas, quase metafísicas, por outro.” Para o mesmo, esses
métodos de análise “[...] Quer se inclinem para o naturalismo puro ou para o idealismo
extremo, todas essas teorias têm uma característica em comum − sua tendência anti-histórica.
Elas estudam o pensamento e a fala sem qualquer referência à história do seu
desenvolvimento.” (VYGOTSKY, 1991b, p. 131). Percebe-se nas idéias vygotskianas uma
focalização nas abordagens da linguagem enquanto instrumento de conhecimento.
Verifica-se por meio das afirmações do autor que tanto as teses naturalistas quanto
idealistas compartilham de um fundo comum de conhecimentos: o pressuposto da natureza
idêntica de todas as conexões e o de que os significados da palavra não se alteram social e
espaço-temporalmente. Vislumbra-se, por meio dos pressupostos, a possibilidade do
estabelecimento de leis gerais e generalizações à luz das regularidades, cujos fundamentos
metateóricos são as idéias de ordem e estabilidade do mundo e a de que o passado se repete
no futuro, característico do pensamento científico moderno (SANTOS B., 2000b, p. 64).
As fases do desenvolvimento cognitivo, estabelecidas por Jean Piaget e colaboradores,
são expressões destes fundamentos. Muitos estudos de lingüística, semiótica, psicologia,
filosofia da linguagem entre outros, também assumem tais posicionamentos, ao limitarem
suas análises à lógica interna do funcionamento dos diferentes sistemas lingüísticos.
Inviabiliza-se dessa forma o entendimento do engendramento dos mesmos em um contexto
social e espaço-temporal, bem como a compreensão da apropriação e dos usos que os
diferentes agrupamentos humanos fazem dos sistemas lingüísticos.
Como afirmei anteriormente, os debates e as ciências que abordam as relações entre
pensamento e linguagem, principalmente na área das ciências humanas, foram e ainda são
expressões da hegemonização da racionalidade científica engendrada em meados do século
XVII. Daí as reflexões estarem voltadas para a ontogênese 209 e filogênese 210 da linguagem, do
208
Para melhor detalhamento de sua análise, sugiro a leitura de seu livro intitulado Pensamento e linguagem e
também do primeiro capítulo do livro de Luria (1986) Pensamento e linguagem: as últimas conferências de
Luria, intitulado O problema da linguagem e a consciência.
209
“Princípio formulado pelo médico inglês Harvey em 1628, dizendo respeito ao desenvolvimento do
organismo individual a partir do ovo até o estado adulto.” (JAPIASSÚ; MARCONDES, 1996, p. 200). Em
psicologia e outras áreas que tratam da cognição, esse termo refere-se ao desenvolvimento cognitivo do
organismo individual, desde o seu nascimento até a fase adulta.
Capítulo 2 142
Ângela Massumi Katuta
210
Diz respeito à evolução do phylun, ou espécie. Ernst Heinrich Haeckel (1834-1919) biólogo evolucionista
alemão, defendia a tese de que a ontogênese reproduz a filogênese, ou seja, um indivíduo ao longo de seu
desenvolvimento passa por diferentes estágios de evolução, que também são os de sua espécie. Piaget, ao se
propor a desvendar como os seres humanos constroem seus conhecimentos, tomou a teoria de Haeckel como
fundamento do seu trabalho, pois sua hipótese primordial era a de que: “[...] a evolução das diversas formas de
pensamento da criança é de natureza a nos informar sobre o mecanismo da inteligência e sobre a formação da
razão humana em geral [...]”. (PIAGET; INHELDER, 1993, p. 11). Esse pressuposto, inerente às teorias de
Piaget e seus colaboradores, generalizam, para a espécie humana, características e desenvolvimentos que não são
generalizáveis, tomando aquilo que é próprio do desenvolvimento humano, de sua aprendizagem e habitus
mentais como tendo o sentido de evolução. Dessa forma, via de regra, os estudos piagetianos concebem como
filogenéticas características resultantes de processos de aprendizagem.
211
Apesar de Bourdieu se referir apenas ao Estado, a produção e reprodução dos instrumentos de construção da
realidade ocorre em todas as formações sociais sob a égide dos mais diferentes modos de produção; é por isso
que se realizam de maneira diferenciada.
212
Sobre essa questão ver também os dois volumes do livro de Norbert Elias (1993, 1994a), intitulado O
processo civilizador, principalmente o volume 2, Parte I - Capítulo 2: Sobre a sociogênese do Estado e a Parte II
– Sinopse: Sugestões para uma Teoria de Processos Civilizadores. Nesses, o autor aborda os mecanismos de
competição e monopolização dos territórios, primeiro estágio da monarquia nascente, enfatizando a análise da
sociedade de corte para entender os processos sociais civilizadores inerentes a essa organização: controle social,
autocontrole, abrandamento das pulsões − psicologização e racionalização −, e engendramento dos sentimentos
de vergonha e repugnância.
213
Como as noções de espaço e tempo.
Capítulo 2 143
Ângela Massumi Katuta
214
Noção usada por Pierre Bourdieu e Norbert Elias para dar conta da “[...] unidade de estilo que vincula práticas
e os bens de um agente singular ou uma classe de agentes [...], é esse princípio gerador e unificador que retraduz
as características intrínsecas e relacionais de uma posição em um estilo de vida unívoco, isto é, em um conjunto
unívoco de escolha de pessoas, de bens, de práticas. Assim como as posições das quais são produtos, os habitus
são diferenciados; mas são também diferenciadores. [...] são princípios geradores de práticas distintas e
distintivas” (BOURDIEU, 1997, p. 21-22).
215
Descartes, ao dividir radicalmente a realidade em domínio fisicamente extenso da matéria (res extensa) e
domínio de pensamentos, sentimentos e experiência espiritual (res cogitans), contribuiu, juntamente com a
ciência matemática de Newton, para o desenvolvimento de um materialismo monista desenfreado. Doravante, a
nova ciência somente descreveria a res extensa, que receberia a sanção da autoridade científica. “Embora
Descartes insistisse na realidade da res cogitans, ao excluir radicalmente esse domínio imaterial dos métodos e
práticas da ciência, deixou-o extremamente exposto a ser visto como ‘irrealidade’. Com o dualismo de
Descartes, porém, não há mais vínculos entre o domínio da matéria e o do espírito. Sem vínculos com o mundo
concreto da ciência física, a res cogitans cartesiana tornou-se rapidamente (como o Céu cristão) um símbolo
vazio. Como não é de surpreender, não demorou para que as pessoas estivessem lançando dúvidas sobre a sua
existência.” (WERTHEIM, 2001, p. 113).
Capítulo 2 144
Ângela Massumi Katuta
daí inúmeros problemas (ELIAS 1994a, p. 6-7). Tal modelo se baseia na crença arraigada da
distinção radical entre os seres humanos e a natureza. Resulta desse entendimento uma série
de bipolaridades − natureza e cultura, corpo e mente, sujeito e objeto −, por meio das quais se
criou uma série de obstáculos epistemológicos para o entendimento de inúmeros fenômenos,
entre eles, as relações entre linguagem, pensamento, memória e conhecimento.
Por ora é importante assinalar que reflexões sobre as linguagens, enquanto instrumento
do conhecimento, são importantes, mas não devem abstrair o contexto de sua realização e,
muito menos, os sujeitos sociais responsáveis por esse processo. Fazê-lo seria imobilizar tanto
a linguagem quanto o conhecimento em uma camisa de força, eliminando a possibilidade de
análise dos diferentes sistemas simbólicos no contexto de seus usos e, portanto, de sua
realização.
Capítulo 2 145
Ângela Massumi Katuta
216
No século XX, o termo semiologia − que se referia unicamente à teoria dos signos humanos, culturais e,
especialmente, textuais − ficou ligado à tradição semiótica fundada no quadro da lingüística de Ferdinand de
Saussure, que foi continuada por Louis Hjelmslev e Roland Barthes. Autores anglófonos e alemães usavam o
termo semiótica, que designava uma ciência mais geral dos signos, incluindo os signos animais e da natureza.
Em 1969, por iniciativa de Roman Jakobson, a Associação Internacional de Semiótica pôs fim à rivalidade
existente entre os dois termos, decidindo adotar “semiótica” como o termo que se refere às investigações nas
tradições da semiologia e da semiótica geral. (NÖTH, 1995, p. 23-24). O termo semiótica atualmente refere-se
ao estudo dos sistemas simbólicos.
217
Embora seja um equívoco tomá-las como monoblocos, poder-se-ia dizer com um enorme risco de
generalização que os estudos predominantes em cada uma destas áreas do saber enveredam na direção da matriz
positivista. Em se considerando o contexto societário e, conseqüentemente, científico no qual as referidas
especialidades foram constituídas, o estruturalismo demonstrou ser terreno fértil para a elaboração de muitas
teorias sobre a linguagem e sua interpretação, que almejavam conquistar o patamar de cientificidade hegemônico
da época.
218
Termo usado freqüentemente por semiólogos e lingüistas que se refere a qualquer linguagem falada por
oposição às linguagens artificiais, criadas, em geral, por cientistas, cuja sintaxe e regras são estabelecidas em
geral para fins teóricos. Sobre as linguagens artificiais ver o livro de Eco (2001) intitulado Em busca da língua
perfeita, especificamente os capítulos 15 e 16, cujos títulos são, respectivamente, As línguas filosóficas do
Iluminismo até hoje e As línguas internacionais auxiliares (LIA).
Capítulo 2 146
Ângela Massumi Katuta
Cabe enfatizar que o problema dessas abordagens, apontado por autores como
Lefebvre, Bakhtin e Elias, não reside na questão da análise da estrutura lógica da linguagem,
mas em seu estancamento neste nível de compreensão. Uma grande parte das temáticas
abordadas pelas análises kantianas estavam ancoradas em crenças sobre a possibilidade de
uma correta interpretação sígnica, reveladora da verdade dos fatos, e da descoberta de uma
gramática universal, que auxiliaria na correta tradução de textos em línguas e suportes
diferenciados. Este posicionamento está fundado na crença da verdade absoluta, na isomorfia
entre o objeto, a linguagem e a idéia, rigorosamente criticados pelos autores alinhados à teoria
crítica. A tendência à monossemização da linguagem era e ainda é comum nas abordagens
alinhadas à tradição kantiana, que primam, por meio da exaustiva análise da estrutura interna
da linguagem e da elaboração de regras sintáticas, pela correta enunciação e apreensão dos
signos e, conseqüentemente, pela emissão e interpretação eficientes que, no caso, implicaria a
realização de processos comunicativos com o mínimo possível de ruído 219 .
Coelho Neto (1999, p. 16-17) afirma que a lingüística, matriz da semiótica, passou por
vários momentos. Inicialmente, com os gregos, tomou a forma de gramática, cuja função era
auxiliar na elaboração de regras visando à distinção entre o certo e o errado, o verdadeiro e o
falso. Pode-se afirmar mediante a idéia do autor que as relações entre os aspectos formais da
linguagem e a epistemologia ocorrem desde longa data. Subjacente às reflexões lingüísticas
dos gregos verifica-se a crença de que a verdade, o conhecimento correto, as atitudes certas,
poderiam ser formulados a partir da aplicação de regras formais na elaboração das idéias e
frases.
Posteriormente à tradição grega, irão predominar ainda no campo lingüístico os
estudos de filologia que, por meio do comentário de textos e a comparação dos mesmos em
diferentes épocas, visavam a determinar a língua de cada autor, explicar inscrições em línguas
arcaicas ou procurar a origem das palavras. Lembremo-nos de que a alta Antiguidade e a
Idade Média foram épocas de (re)invenção da tradição anterior, portanto, a problemática
colocada para a época estava assentada muito mais na recuperação, tradução e interpretação
de textos escritos, resultando na preocupação com a origem das palavras, um dos instrumentos
auxiliares na realização das exegeses.
Como afirma Elias (1998a, p. 272), a procura pelas origens expressa o quanto ainda o
desejo humano de segurança está fundado na noção de um começo absoluto, expressão da
219
Segundo Simielli (1986, p. 31) “Ruído vem a ser qualquer interferência em um sistema de comunicação, que
possa atrapalhar ou acarretar perda de informação [...]”.
Capítulo 2 147
Ângela Massumi Katuta
220
Tais metodologias tendiam à monossemização, pois seu intuito primordial era o estabelecimento de regras e
leis que ditassem uma correta interpretação da palavra divina.
Capítulo 2 148
Ângela Massumi Katuta
primeiro era derivado de um modelo desenvolvido para a interpretação bíblica, pois “[...] A
hermenêutica cristã medieval postulava que a interpretação da Bíblia tinha que ser feita sobre
quatro níveis capazes de revelar quatro sentidos diferentes do mesmo texto.” (NÖTH, 1995, p.
37).
O primeiro nível buscava apreender o significado literal ou histórico, explicando o
sentido dos personagens, localidades e eventos tais como estes apareciam na superfície do
texto. O segundo nível de interpretação buscava o sentido metafórico ou moral. Por meio
desse, via de regra, realizava-se o sentido do texto bíblico para a vida individual de cada ser
humano. No terceiro nível interpretativo, buscava-se na Bíblia o sentido alegórico referente a
Cristo e à Igreja. O quarto sentido buscado era o místico ou anagógico e se referia aos
mistérios celestes que teriam lugar no futuro dos fiéis cristãos (NÖTH, 1995, p. 37).
É importante salientar que esses quatro sentidos exegéticos − literal, metafórico ou
moral, alegórico e místico − guardam muita similitude com o método de leitura da Torá pelos
cabalistas, já abordado na presente reflexão: literal, alegórico-filosófico, hermenêutico e
místico. Essas formas de leitura expressam a centralidade de uma racionalidade que tendia
para a monossemização do signo, tanto da parte dos judeus, quanto dos cristãos. Verifica-se
ainda que, subjacente aos métodos citados, reside a crença na possibilidade da realização do
conhecimento do mundo a partir do dogma da revelação, cuja chave de entendimento estava
contida nos livros sagrados. Por isso, era importante a elaboração de metodologias que
decodificassem corretamente a palavra do criador.
O segundo modelo semiótico, o da assinatura das coisas, foi criado no medievo cristão
e atingiu seu ápice na Renascença, quando o médico e sábio suíço Paracelsus (1493-1541) o
estudou detidamente 221 . Neste sistema, Deus é concebido como o autor das mensagens do
mundo, o grande codificador. Contudo, este é acompanhado de três outros emitentes
(assinantes) de signos naturais: o homem, o princípio interior do desenvolvimento chamado
archaeus e as estrelas ou planetas (astra) (NÖTH, 1995, p. 38-39). Acreditava-se que os
signos naturais eram passíveis de serem decodificados por meio de “ciências” antigas como a
221
Japiassú e Marcondes (1996, p. 170-171) afirmam que durante o medievo e a renascença, práticas mágicas,
sobretudo a alquimia e astrologia, possuíam papel importante por serem tentativas de conhecer e controlar pré-
cientificamente da natureza. Entendo que as práticas consideradas atualmente como mágicas não devem ser
desconsideradas quando se trata de discutir a história das racionalidades ou conhecimentos humanos a que hoje
denominamos científico, e mesmo os debates sobre a linguagem enquanto estrutura estruturada. Subjacente às
inúmeras mancias − “ciências decodificadoras” −, está também o aceno positivo em relação à possibilidade da
inteligibilidade do mundo. Naquele contexto, elas eram entendidas como capacidades de interpretação dos
códigos ou criptogramas compostos pelo criador do mundo. Tais “ciências” remontam aos povos da Antigüidade
como egípcios, sumérios, assírios, caldeus, babilônios, fenícios e hebreus. Para uma análise mais detida sobre
esta questão, sugiro a leitura do livro de Pierre Thuillier (1994) intitulado De Arquimedes a Einstein: a face
oculta da invenção científica.
Capítulo 2 149
Ângela Massumi Katuta
A filosofia está escrita nesse grande livro, o universo, que se abre permanentemente
diante de nossos olhos, mas o livro só pode ser compreendido se primeiro
aprendermos a compreender a linguagem e a ler as letras de que se compõe. Ele está
escrito na língua da matemática, e seus caracteres são triângulos, círculos e outras
figuras geométricas, sem os quais é humanamente impossível entender uma só de
suas palavras; sem eles, fica-se vagando por um labirinto tenebroso. (GALILEU,
apud CROSBY, 1999, p. 222).
Os estudos e debates hegemônicos sobre a linguagem, enquanto meio de comunicação,
estão ainda hoje firmemente ancorados na idéia de exatidão, mensuração e decodificação,
presentes nas idéias de Galileu, que podem ser tomadas como expressão do habitus burguês
que se espraiou pelo mundo.
Com base no exposto, pode-se afirmar que a idéia da ausência de uma racionalidade
na Idade Média não se sustenta. Pelo contrário, é no esteio do medievo que será tecida a
concepção hegemônica ou moderna de ciência. Mesmo os primórdios dos debates sobre a
linguagem enquanto estrutura estruturada se fazem presentes nessa época.
A partir das primeiras décadas do século XIX, principalmente em função do aumento
do comércio e intercâmbio no mundo, estudos de gramática e filologia comparadas tornam-se
centrais na lingüística; a idéia de exatidão, própria do habitus burguês, estava subjacente a tais
práticas. A descrição era a principal atividade realizada e visava, além de abordar as relações
estabelecidas pelos ocidentais entre as diferentes línguas, ao entendimento de uma língua por
meio de outra. Verifica-se aqui a crença no primado da possibilidade da tradução exata ou
correta dos significados de uma língua para outra, negando-se o fato de que toda tradução
possui limite: não sendo mero ato de transposição, implica criação, adequação; portanto, não é
neutra, pois os significados são expressões das relações sociais que se realizam espaço-
temporalmente.
A explicação dos significados lingüísticos a partir das relações sociais não tinha
centralidade nessas reflexões. É evidente a tentativa de enquadramento desses estudos ao ideal
de cientificidade moderno, em se considerando o rigor descritivo e formal que permeavam
tais trabalhos. Havia também o esforço de tornar cada vez mais objetivos os parâmetros de
comparação lingüísticos que, obviamente, estavam fundados e valorizavam pontos de vista
fundados na cosmologia ocidental hegemônica em detrimento de outras.
No último quarto do século XIX, destacam-se nos estudos lingüísticos aqueles
realizados principalmente pelo grupo alemão dos neogramáticos. Esses defendiam a
perspectiva histórica como sendo a única capaz de explicar a língua como produto coletivo
dos vários grupos falantes. Esse grupo combatia a idéia de que a língua é uma entidade
fechada, defendendo que ela somente ganha existência nos sujeitos falantes. Daí a
possibilidade de seu entendimento enquanto expressão das relações de poder entre os
Capítulo 2 151
Ângela Massumi Katuta
diferentes atores sociais e, inclusive, a sua utilização para a realização dessas relações no
contexto do Estado nacional. Esse foi um grande divisor de águas entre os estudos da
linguagem como meio de comunicação. Ao resgatar a importância da história nos estudos
lingüísticos, os neogramáticos apontam para possibilidades de análises mais amplas e
contextualizadas: para além das análises internas já realizadas pelos grupos hegemônicos
haveria de se abordar a linguagem do ponto de vista de seus falantes. Esses entendimentos se
aproximam das reflexões elaboradas por Ludwig Wittgenstein, Norbert Elias, Pierre
Bourdieu, Gilles Deleuze e Félix Guattari.
Apesar do grupo de neogramáticos alemães, nos estudos sobre linguagem como meio
de comunicação se verifica uma tendência hegemônica de monossemização dos sentidos e
significados, característicos de análises que privilegiam e acreditam em descrições isentas, na
verdade das palavras e no conhecimento verdadeiro tomado de forma absoluta. Tais
tendências indicam a direção do processo civilizador e o habitus do pensamento hegemônico,
tecidos ao longo de um período extenso, que remonta às civilizações antigas como as gregas,
judaicas e cristãs.
Em seu livro, Coelho Neto (1999, p. 81 et seq.), apesar de defender a possibilidade de
que a semiótica venha a romper o círculo dentro do qual se isola da vida social, − propõe o
que denomina de semiótica selvagem ou poética do signo 222 −, faz crítica à mesma pelo fato
de essa ser produtora de ideologia, principalmente por não assumir que a produz. A semiótica
circular, nas palavras do autor:
[...] se apresenta quase como verdadeira prática técnica, transformando matérias-
primas, ou matérias produzidas por uma técnica prévia, em produtos técnicos através
de instrumentos de produção determinados − produzindo igualmente, na esteira
dessa transformação, a ideologia correspondente a esses meios de produção e às
relações por eles estabelecidas. Essa prática semiótica não produz uma visão crítica
de si mesma e está assim condenada a ser engolida por essa entidade que desconhece
ou diz desconhecer. (COELHO NETO, 1999, p. 83).
Bourdieu (2000a, p. 13) critica a abordagem do que Coelho Neto (1999) denomina de
semiótica circular, pois suas análises tendem a “[...] cair na ilusão idealista a qual consiste em
tratar as produções ideológicas como totalidades auto-suficientes e autogeradas, passíveis de
222
A partir das idéias de pensadores como Buñuel, Lyotard, Peirce, Bachelard, Jorge Luis Borges, Lacan e
outros, o autor aponta para a necessidade de a semiótica abandonar a rigidez dos métodos formais por meio dos
quais se torna um mero discurso burocrático, em um sentido hegeliano − lugar da alienação, por escamotear em
sua fala a questão do poder. “[...] A ausência da questão do poder significa que se está deixando no vazio a
questão daquilo que instaura esse poder, a questão do sujeito. Como o poder, o discurso burocrático é anônimo,
sem rosto, sem marca.” (COELHO NETO, 1999, p. 99). O autor indica a necessidade da realização de reflexões
sobre a possibilidade da constituição de uma semiótica como instrumento de construção, multiplicação e fruição
dos signos. “[...] Abolindo-se a distinção entre criação e leitura, entre produção e crítica, restaria a festa dos
signos.” (COELHO NETO, 1999, p. 115). Para um esclarecimento mais detalhado das idéias do autor, sugiro a
leitura de sua obra que, ao que tudo indica, se aproxima das concepções de linguagem de Deleuze e Guattari
(2002), que propõem uma lingüística cromática, fundada na pragmática e portanto, nas relações sociais.
Capítulo 2 152
Ângela Massumi Katuta
uma análise pura e puramente interna (semiologia).” Na mesma página, em nota de rodapé,
ainda afirma que é preciso
[...] evitar também o etnologismo (visível em especial na análise do pensamento
arcaico) que consiste em tratar as ideologias como mitos, quer dizer, como produtos
indiferenciados de um trabalho colectivo, passando assim em silêncio tudo o que
elas devem às características do campo de produção. (BOURDIEU, 2000a, p.
13).
A perspectiva dos estudos semióticos hegemônicos, via de regra, centra-se na análise
dos sistemas lingüísticos ou produtos simbólicos em si, constituindo-se em estudos
minuciosos que visam dissecá-los internamente; por isso, em geral, desconsideram as relações
entre os sujeitos sociais que as produzem e consomem, bem como o lugar social desses no
contexto espaço-temporal da sociedade em que vivem.
Os limites dos estudos de semiótica, apontados por muitos autores alinhados à teoria
crítica, residem no fato de que eles restringem-se a análises puramente internas. Dessa
maneira, os sistemas simbólicos acabam adquirindo uma aura de neutralidade, como se
fossem produtos culturais de toda uma sociedade, que, nesta perspectiva, é concebida como
um monobloco. A tensão social presente nos atos de produção, reprodução e legitimação dos
produtos simbólicos, sua classificação no contexto social, ampla disseminação, consumo,
legitimação ou eliminação, em geral, não são considerados em muitos estudos que abordam a
linguagem em sua internalidade.
Subjacente a uma boa parte dos debates sobre as diferentes linguagens enquanto meio
de comunicação e informação, verifica-se uma certa tendência à realização de entendimentos
monossemizantes. Por isso, nessa perspectiva, a sintaxe tem importância enquanto
metodologia de construção e análise dos sistemas lingüísticos, assegurando-se dessa maneira
a possibilidade lógica da distinção entre significados corretos, incorretos, verdadeiros ou
falsos, alienados do jogo das relações sociais que se dão espaço-temporalmente. Em uma
grande parte dos estudos bourdieusianos sobre a produção de bens simbólicos, confirma-se o
fato de que a metafísica e a escolástica subjazem a uma parte considerável dos estudos sobre a
linguagem, principalmente os relativos à semiologia circular ou hegemônica.
Henri Lefebvre (1983, p. 231-232) em seu livro La presencia e la ausencia, defende a
idéia de que uma criação, obra ou linguagem, possui muitos momentos de realização 223 , entre
223
Ao criticar posicionamentos que se apropriam formalmente da obra de arte (p. 209-254) – monossemia
ancorada na iconoclastia – o autor afirma que as possibilidades de sua apreensão são infinitas, daí o mesmo usar
a expressão “momentos da obra”. A título de elucidação, alguns deles podem ser citados: imediação, memória,
trabalho, forma, presença e ausência, centralidade, cotidiano e não-cotidiano, entre outros. Verifica-se na postura
do autor uma concepção que prima pela fugacidade do significado, entendido aqui como realização, movimento,
ato, e não como produto acabado, cujo sentido pode e deve ser esgotado em sua totalidade. Rompe-se dessa
Capítulo 2 153
Ângela Massumi Katuta
eles o da mediação, o mais difícil de reconhecer, pois, por vocação, o contém e o supera, o
nega e o restabelece transformado ou transfigurado, desdobrando-se por sua vez em mediação
objetiva − a sensação e o sensorial −, a percepção sensível, e subjetiva − a vivência, o
espontâneo, as emoções. Assim, o movimento de mediação deve ser considerado quando da
análise das criações humanas, que, via de regra, são apreendidas e compreendidas de maneira
estática, substancialista, tendendo à isomorfia, em um sistema engendrado no contexto da
cosmologia hegemônica e da ciência moderna.
Verifica-se na abordagem lefebvriana que a realização de qualquer obra humana não
se esgota em si ou a partir do momento em que seu autor a considera finalizada, acabada. Em
seu entendimento, Lefebvre (1983) não encontra lugar para as relações mecanicistas que
muitas teorias da comunicação estabelecem entre emissor e receptor, no contexto das quais o
ruído é expressão de falha ou de erro no processo comunicativo.
Na tecedura lefebvriana, o Outro se faz necessário enquanto elemento inerente a
qualquer processo comunicativo, enquanto aquele que realiza os múltiplos significados
possíveis de qualquer obra humana. Aqui, erro, mentira, verdade, correção somente adquirem
sentido no contexto das relações sociais engendradas espaço-temporalmente.
Para Lefebvre (1983, p. 232), as obras diferem dos produtos porque esses se trocam,
circulam, remetem diretamente ao dinheiro para pagá-los. As primeiras, apesar de não se
separarem absolutamente do produto, do trabalho produtivo, das trocas, do mercado e do
dinheiro, superam a imediaticidade inicial, ao serem atravessadas-trespassadas por um
“trabalho” mais amplo ou por mediações: as representações, os encontros, as técnicas. Assim,
a obra se deixa ver, escutar, apropriar-se, não se contenta em comunicar e portar uma
informação, proporciona gozos.
Verifica-se no referido livro uma crítica aos teóricos que analisam a linguagem de
maneira puramente interna. São comparados a estudiosos que, ao enfatizarem a análise da
estrutura lógica da obra ou da linguagem, restringem suas abordagens às expressões e
significados das obras, elaborando assim, análises triviais, próximas da tautologia ou muitas
vezes obscuras, pois essas dependem do que se considera no processo analítico − o contexto,
as condições de produção, os meios: monossemia ancorada na iconoclastia.
Para o autor, os teóricos da linguagem flexibilizaram e amplificaram a abordagem ora
explicitada, outorgando maior importância ao significado que à expressão e, assim, à
imutabilidade, à estabilidade e, portanto, à morte do signo, em detrimento do movimento, da
maneira, com a lógica aristotélica da linguagem e com os raciocínios substancialistas, que tendem a enrijecer o
entendimento de processos como o de apropriação de uma obra, linguagem, entre outros produtos humanos.
Capítulo 2 154
Ângela Massumi Katuta
224
Elias (1994b, p. 111 et seq.).
225
“A teoria lingüística das significações aplicada às obras de arte mostra seus limites. Alcança mal o sentido.
[...] Exagera no que se refere à palavra e às significações associadas com a palavra, ou seja, as representações.
Portanto, reduz e simplifica o sentido que resulta dos conjuntos de palavras e inclusive lhes preexiste em
qualidade de representações mais amplas que as que se relacionam com as palavras tomadas separadamente.”
(Tradução da autora).
226
Mikhail Bakhtin foi um dos estudiosos da linguagem mais profícuos; tentou desenvolver uma filosofia da
linguagem com fundamento marxista. Suas reflexões, embora pouco disseminadas no âmbito da educação
formal, constituem-se em uma contribuição digna de ser mais intensamente explorada no que se refere ao
entendimento dos processos comunicativos no contexto da sala de aula.
Capítulo 2 155
Ângela Massumi Katuta
dos signos. Um sistema de signos somente pode constituir-se a partir de um coletivo que a
bakhtiniana, não pode ser um processo restrito à dimensão individual; trata-se, segundo as
palavras do autor (Bakhtin, 1997, p. 35) de um fenômeno social; por conseguinte, a palavra
“[...] é o fenômeno ideológico por excelência. A realidade toda da palavra é absorvida por
sua função de signo. A palavra não comporta nada que não esteja ligado a essa função,
nada que não tenha sido gerado por ela. A palavra é o modo mais puro e sensível de
227
O autor apresenta estudos subsidiados por essa idéia, trabalhando com as noções de habitus e com a teoria dos
campos, essenciais na tecedura de suas teses nas seguintes obras: A Economia das Trocas Simbólicas (1992); As
regras da arte: gênese e estrutura do campo literário (1996); Razões Práticas: Sobre a Teoria da Ação (1997);
A Economia das Trocas Lingüísticas: O que falar quer dizer (1998); O poder simbólico (2000a); O campo
econômico (2000b).
Capítulo 2 157
Ângela Massumi Katuta
último, o autor chama a atenção para a existência, dependendo das condições materiais de
produção, de uma autonomia relativa no referido processo que, via de regra, não é
considerado por algumas análises alinhadas à ortodoxia marxista.
Ao realizar suas reflexões a partir da perspectiva brevemente esboçada, o autor se
contrapõe tanto aos estudos que tendem a salientar as explicações meramente externas que
enfatizam a ação direta de grupos junto aos sistemas simbólicos, quanto às interpretações
internas cujas compreensões puramente a-históricas excluem qualquer referência a
determinações históricas ou a funções sociais 228 .
Bourdieu (1997, p. 60) considera esta oposição uma espécie de curto-circuito redutor.
Em oposição às análises por ele denominadas de reducionistas e simplistas, elaborou sua
Teoria dos Campos, por meio da qual procurou aplicar um modo de pensar relacional, visando
à superação e síntese das análises externas e internas 229 . A intenção primordial da referida
teoria é a de demonstrar a complexidade inerente aos processos de realização do poder
simbólico no modo de produção capitalista. Além disso, com a mesma, o autor demonstra
que, no contexto da divisão social do trabalho, a produção simbólica e seus produtores
compõem um campo de produção que possui autonomia relativa, fato esse negado por
análises reducionistas que ou não consideram esse aspecto em suas reflexões, ou tendem a
estabelecer uma relação simplista e direta entre modo de produção, divisão social do trabalho,
produção cultural e exercício de poder.
Dessa forma, pode-se afirmar que as análises bourdieusianas estão focadas, em sua
grande maioria, na tensão de ambos os aspectos da linguagem e dos produtos simbólicos:
enquanto estruturas estruturadas e como instrumentos de realização do poder. O aspecto da
linguagem como estrutura estruturante, apesar de ser muitas vezes citado pelo autor, não é
228
Essa oposição é muito freqüente nas pesquisas em geografia. Muitas tendem a compreender os sistemas
simbólicos enquanto expressão direta, conseqüência determinante ou final das classes sociais hegemônicas que
compõem uma sociedade. Esse entendimento restringe uma obra ao seu contexto. A redução do mapa, como
expressão direta do olhar de uma determinada classe social, ou seja, como pura ideologia, é um bom exemplo
desse tipo de abordagem. Outras pesquisas tendem a limitar-se a uma análise puramente interna e a-histórica dos
sistemas simbólicos, enfatizando a obra como texto. Nessa perspectiva, o mapa acaba reduzido a meio de
comunicação, ou ideologia pura. Essa abordagem taxa como redutoras ou grosseiras as análises pautadas em
contextos. Verifica-se assim, nas pesquisas em geografia, a existência de um divisor de águas, expressão da
dificuldade da efetivação de análises relacionais, que tem seu fundamento na forma de construção do objeto que,
segundo Bourdieu (2000a, p. 26 et seq.), não se realiza de forma automática, “de uma assentada”. Trata-se de
trabalho de grande fôlego, que se realiza aos poucos, por meio de retoques, emendas e correções sucessivas. “[...]
tomar para objecto o trabalho social de construção do objecto pré-construído: é aí que está o verdadeiro ponto de
ruptura.” (BOURDIEU, 2000a, p. 28). A (re)construção do objeto implica a conversão do olhar e, portanto, a
destruição-construção de entendimentos social e espaço-temporalmente construídos. Os fatos estudados podem
ser os mesmos, a diferença reside na forma da construção do objeto, ou seja, na relação cognitiva, no olhar, nas
intenções cognitivas e civilizadoras que lançamos aos fatos, expressão de uma construção social.
229
Essa abordagem se aproxima, de certa maneira, às propostas por Deleuze e Guatarri (2002) e Lefebvre
(1983).
Capítulo 2 158
Ângela Massumi Katuta
enfatizado, pelo fato de que ele parece comungar, em grande parte, com as análises
sociológicas e mesmo filosóficas, que tendem a reduzir ou transpor mecanicamente o
individual no social. Verifica-se assim que o modelo de ser humano com o qual opera não
apenas a teoria bourdieusiana, mas também aquelas que abstraem mecanicamente o individual
no social, ainda são insuficientes para abordar a linguagem e outros produtos simbólicos em
suas relações e tensões dialéticas como sendo concomitantemente e, de maneira inexorável,
estruturas estruturantes, estruturas estruturadas e instrumentos de poder.
Em Campo do Poder, Campo Intelectual e Habitus de classe (p. 182 et seq.), texto
publicado originalmente em 1971 que compõe uma coletânea publicada no Brasil sob o título
A economia das trocas simbólicas (1992), o autor nos permite compreender seu
posicionamento de redução do individual ao social. Essa opção foi orientada a fim de se
contrapor tanto à noção substancialista de indivíduo, um dos maiores obstáculos
epistemológicos com o qual se defrontaram as apreensões estruturais, quanto para romper
com o objeto pré-construído que vem a ser o artista individual, a obra singular, próprios da
tradição positivista que se filia ao ideal da ideologia romântica, do gênio criador, da
individualidade única e insubstituível:
[...] o indivíduo diretamente perceptível, ens realissimum pedindo insistentemente
para ser pensado em sua existência separada e exigindo por isso uma apreensão
substancialista, reveste-se aqui com a forma de uma individualidade ‘criadora’ cuja
originalidade deliberadamente cultivada parece propícia a suscitar o sentimento da
irredutibilidade e a reverência. (BOURDIEU, 1992, p. 182).
A opção bourdieusiana de enfatizar em suas análises a abordagem dos sistemas
simbólicos como estruturas estruturadas e instrumentos de realização do poder se constitui em
um avanço significativo em relação às análises reducionistas 230 , anteriormente apresentadas
no presente item. Contudo, os limites da mesma são estabelecidos na medida em que, apesar
de criticar as análises reducionistas, acaba reduzindo o individual ao social.
Ao mesmo tempo em que elimina um determinado obstáculo epistemológico criado
por tradições positivistas em sua face estruturalista, cria um outro, muito comum a análises
sociologizantes. A redução do individual ao social expressa as disputas internas entre os
diferentes campos de produção de saber, na área das ciências humanas, pela autoridade
discursiva e, portanto, simbólica em relação ao entendimento dos processos humanos.
A defesa da idéia de que as ideologias são sempre duplamente determinadas − pelas
classes hegemônicas e pelos que as produzem − foi, para o autor, um meio de evitar a redução
brutal do entendimento dos produtos ideológicos como meramente atrelados aos interesses
das classes a que eles servem, sem se deixar enredar pela ilusão idealista que aborda as
230
São igualmente dignas de menção as obras de Deleuze e Guattari (2002), Elias (1994b) e Lefebvre (1983).
Capítulo 2 159
Ângela Massumi Katuta
produções ideológicas como totalidades autogeradas, passíveis de uma análise restrita à sua
lógica interna.
[...] A noção de campo, é em certo sentido, uma estenografia conceptual de um
modo de construção do objecto que vai comandar – ou orientar – todas as opções
práticas da pesquisa. Ela funciona como um sinal que lembra o que há que fazer, a
saber, verificar que o objeto em questão não está isolado de um conjunto de relações
de que retira o essencial das suas propriedades. Por meio dela, torna-se presente o
primeiro preceito do método, que impõe que se lute por todos os meios contra a
inclinação primária para pensar o mundo social de maneira realista ou, para dizer
como Cassirer, substancialista: é preciso pensar relacionalmente. Com efeito, poder-
se-ia dizer, deformando a expressão de Hegel: o real é relacional. (BOURDIEU,
2000a, p. 27-28).
Apesar de defender uma abordagem relacional, como afirmei anteriormente, em
função da concepção de ser humano que possui e pelo fato de sobre-valorizar a dimensão das
relações sociais em detrimento da noção de indivíduo, por concebê-la somente em sua face
substancialista, a perspectiva bourdieusiana ficará restrita ao estudo das tensões existentes
entre os produtos simbólicos e grupos sociais. A relação entre o social e o psicológico não é
realizada pelo autor. Verifica-se também em seus trabalhos os limites da especialização do
olhar e, portanto, da construção do objeto, engendrados no contexto da instituição imaginária
de nossa sociedade, perspectiva à qual Castoriadis (1982) fará referência a fim de construir os
fundamentos de sua tese e, portanto, de seu objeto.
A especificidade do ser humano reside exatamente no fato de este ser ao mesmo tempo
e indissociavelmente biológico, social e individual. Daí a necessidade do estabelecimento de
análises relacionais, cuja tensão poderia nos auxiliar em uma compreensão mais complexa dos
processos de linguagem e, portanto, do pensamento, memória, percepção e construção de
conhecimentos. Contudo, essas análises, em função da necessidade de mobilização de um
fundo enorme de conhecimentos, informações e dados disponíveis, exigem o estabelecimento
de esforços conjuntos dos produtores das várias áreas do saber, para que os fenômenos
lingüísticos sejam efetivamente abordados em sua complexidade. Ainda que considerássemos
a inesgotabilidade das reflexões passíveis de serem realizadas no contexto ora esboçado, a
abordagem explicitada seria desejável, pois poderia auxiliar na construção de entendimentos
menos simplificadores e monolíticos do fenômeno em questão.
Apesar do exposto, a ênfase da análise bourdieusiana ao contexto das relações sociais
em que se realizam as produções simbólicas, tentando tornar relativas tanto as ações das
classes sociais hegemônicas quanto o papel dos produtores simbólicos, procurando relacionar
esses pontos de vista a fim de abordar as formas de constituição e legitimação do poder
simbólico, foram e são uma contribuição significativa às pesquisas sobre os produtos
Capítulo 2 160
Ângela Massumi Katuta
simbólicos, pois anteriormente eram desconsiderados por muitos enquanto objetos de estudos
passíveis de serem abordados pelas pesquisas em ciências humanas.
Para Bourdieu (1997, p. 61 et seq.) os antagonismos sociais e não os referenciais
teórico-metodológicos são os únicos obstáculos à superação e à síntese dos posicionamentos
decorrentes das análises dos sistemas simbólicos, a partir das perspectivas internalistas e
externalistas. “[...] Dado que cada campo se coloca ao se opor, ele não pode perceber os
limites que impõe a si mesmo no próprio ato de constituir-se.” (BOURDIEU, 1997, p. 62).
Verifica-se por meio desta afirmação que a possibilidade de superação e síntese das análises
internalistas e externalistas está presente no pensamento bourdieusiano, na medida em que
esse autor construiu o objeto, no caso, os sistemas simbólicos, em uma perspectiva
diferenciada:
As determinações externas invocadas pelos marxistas - por exemplo, o efeito das
crises econômicas, das transformações técnicas ou das revoluções políticas – só
podem exercer-se pela intermediação das transformações da estrutura do campo
resultantes delas. O campo exerce um efeito de refração (como um prisma):
portanto, apenas conhecendo as leis específicas de seu funcionamento (seu
‘coeficiente de refração’, isto é, seu grau de autonomia) é que se pode compreender
as mudanças nas relações entre escritores, entre defensores dos diferentes gêneros
(poesia, romance e teatro, por exemplo) ou entre diferentes concepções artísticas (a
arte pela arte e a arte social, por exemplo), que aparecem, por exemplo, por ocasião
de uma mudança de regime político ou de uma crise econômica. (BOURDIEU,
1997, p. 61).
Em uma perspectiva bourdieusiana, a noção de campo de produção simbólica, de
habitus e a teoria dos campos são extremamente importantes para o entendimento das idéias
do autor e auxiliam no entendimento da relevância destas no contexto do campo de produção
dos estudos sobre os produtos simbólicos.
Pelo exposto, verifica-se em Bourdieu e em outros autores que realizam estudos sobre
a linguagem enquanto instrumento de dominação 231 a possibilidade de entendimento dos
sistemas simbólicos em uma perspectiva menos reducionista e alienada. Contudo, é preciso
salientar que essa empreitada exige, em um primeiro momento, o estabelecimento do ponto de
ruptura: a construção do objeto pré-construído que implica, necessariamente, uma
(des)construção, pois a crença na neutralidade da linguagem, bem como dos processos a ela
inerentes constituem-se em obstáculos epistemológicos a serem necessariamente superados. É
o que constantemente as teorias críticas tentam fazer ao resgatar 232 ou (re)construir, um
231
Já citados no presente capítulo.
232
Uso o termo resgate, pois concordo com Freitas (2002, p. 154 et seq.) que as reflexões da área educacional,
principalmente as realizadas na década de 1990, abandonaram muitas categorias de pensamento necessárias ao
estabelecimento de entendimentos contextualizados e relacionais. Um dos exemplos é o da categoria trabalho,
em sua concepção materialista dialética. Atualmente, segundo a mesma autora, as políticas neoliberais colocadas
em prática por organismos internacionais e a política educacional brasileira reduzem a noção de trabalho à “[...]
Capítulo 2 161
Ângela Massumi Katuta
capacidade de empregabilidade ou laboralidade, uma ‘nova’ competência geral propugnada pelas diretrizes
oficiais a ser desenvolvida no ensino médio profissional [...]”. (FREITAS, 2002, p. 160). Em contraposição ao
entendimento da categoria trabalho como mercadoria − que referenda Projetos de Educação e Formação docente
que privilegiam o controle do desempenho, com vistas à competência e competitividade, ou seja, o atual projeto
societário −, deve-se resgatar seu sentido enquanto ação de e para a realização humana, que traz no seu âmago
um projeto societário mais justo, por defender uma outra concepção de Educação e formação docente com vistas
a uma “[...] formação humana omnilateral, a autonomia e o aprimoramento pessoal.” (FREITAS, 2002, p. 160).
233
Idéia esta presente também em Guattari; Rolnik (1999, p. 15): “O que caracteriza os modos de produção
capitalísticos é que eles não funcionam unicamente no registro dos valores de troca, valores que são da ordem do
capital, das semióticas monetárias ou dos modos de financiamento. Eles funcionam também através de um modo
de controle da subjetivação, que eu chamaria de ‘cultura de equivalência’ ou de ‘sistemas de equivalência na
esfera da cultura’. Desse ponto de vista o capital funciona de modo complementar à cultura enquanto conceito de
equivalência: o capital ocupa-se da sujeição econômica, e a cultura, da sujeição subjetiva. E quando falo em
sujeição subjetiva não me refiro apenas à publicidade para a produção e o consumo de bens. É a própria essência
do lucro capitalista que não se reduz ao campo da mais-valia econômica: ela está também na tomada de poder da
subjetividade.”
Capítulo 2 162
Ângela Massumi Katuta
disseminação de escolas voltadas para a grande massa da população. E, o que ela tem
predominantemente aprendido de importante que justifique a manutenção e disseminação de
instituições escolares até os dias de hoje em todo o planeta? Linguagens, relações sociais,
veículos disseminadores do habitus engendrado no e, portanto, para o modo capitalista de
produção. É o que demonstrarei nas páginas que seguem, focalizando o caso específico do
ensino da geografia.
Capítulo 2 163
Ângela Massumi Katuta
Como afirmei no item anterior, toda e qualquer linguagem, por tratar-se de relação
social, deve ser considerada ao mesmo tempo estrutura estruturada, estruturante e instrumento
de dominação. Obviamente que, dependendo do uso que dela se faz, ocorrerá o predomínio de
um ou outro papel. Assim ocorre com a linguagem falada, a escrita, a cartográfica e todas as
outras.
O domínio cultural dos sujeitos 234 , necessário para que a submissão econômica
capitalista se efetive, ocorre também por meio da linguagem e dos usos que dela se faz,
veículo e condição da realização das relações humanas e do próprio ser humano, resultado de
234
Guattari e Rolnik (1999, p. 27) afirmam que “Tudo é produzido pela subjetivação capitalística – tudo o que
nos chega pela linguagem, pela família e pelos equipamentos que nos rodeiam – não é apenas uma questão de
idéia, não é apenas uma transmissão de significações por meio de enunciados significantes. [...] Trata-se de
sistemas de conexão direta entre as grandes máquinas produtivas, as grandes máquinas de controle social e as
instâncias psíquicas que definem a maneira de perceber o mundo.”
Capítulo 2 164
Ângela Massumi Katuta
seu trabalho ou ação 235 . Insere-se, nesta perspectiva, a relevância de reflexões sobre este
sistema simbólico em estudos que procuram desvendar as relações inerentes à subjetivação
capitalística 236 , que se realizam por meio das linguagens tornadas hegemônicas, amplamente
utilizadas e disseminadas na escola básica.
Deleuze e Guattari (2002, p. 11-12), no volume 2 de sua obra intitulada Mil Platôs:
capitalismo e esquizofrenia, explicitam o uso que comumente a escola faz da linguagem, fato
esse que a identifica como uma agenciadora da palavra de ordem por predominar, em suas
ações, a imposição de coordenadas semióticas aos alunos, em função das linguagens
comumente empregadas e das maneiras como elas são utilizadas:
235
Sobre este assunto ver os livros de Vygotsky (1991a, 1991b).
236
Termo usado por Guattari; Rolnik (1999).
Capítulo 2 165
Ângela Massumi Katuta
237
Excetuando-se a de Galcerán (1981), que atua na área de história da arte.
238
Sobre este assunto ver o texto de Moreira (1992), no qual há várias indicações bibliográficas de escritos de
geógrafos que abordaram a questão.
239
Encontro Nacional de Geógrafos, grifo da autora.
Capítulo 2 167
Ângela Massumi Katuta
seres humanos em suas relações com o Outro, atuando como instrumento de orientação de
suas ações – coordenadas semióticas –; não por acaso, uma parte considerável dos processos
terapêuticos se realiza por meio da linguagem.
Em relação ao significado do símbolo, a autora afirma que o mesmo somente adquire
sentido “[...] à medida em que concerne à história vivida do sujeito; somente então é que pode
adquirir sua significação.” É a partir da atribuição de significados ao mundo e aos objetos nele
existentes, do entendimento das territorialidades vivenciadas cotidianamente, que se pode
romper com o processo de alienação do sujeito; ou seja, ao elaborar múltiplos sentidos para os
objetos, as territorialidades vividas, os seres humanos lentamente passam de um grau maior de
alienação para um menor.
O que Pankow (1988) defende é que a linguagem somente adquire significações
quando se refere à dimensão vivida pelo sujeito, à sua territorialidade, tornando-se, neste caso,
instrumento de conhecimento do mundo e de si, pois, como já afirmara Wittgenstein (1995),
linguagem é práxis. Quando esta conexão não é estabelecida, a linguagem serve,
predominantemente, como instrumento de dominação e alienação, como adequadamente
apontaram Deleuze e Guattari (2002, p. 11) em trecho já transcrito no presente capítulo. O
que a linguagem nunca deixa de ser é estrutura estruturada e estruturante ou coordenada
semiótica, que permite aos seres humanos, em um contexto espaço-temporal, por meio de
uma determinada arquitetura de pensamento, se relacionarem com os outros e com o mundo.
Contudo, a mesma será ou não instrumento de dominação dependendo dos usos que os
sujeitos sociais dela farão.
A idéia de que a linguagem somente adquire significações quando se refere à
dimensão vivida pelo sujeito também está presente em Silva (1986, p. 37 et seq.), quando este
reflete sobre o espaço como ser. Ao referendar a tese lukácsiana de que a meta do pensamento
é a passagem do conhecimento que vai do universal, passando pelo particular até chegar ao
singular, para, em um outro movimento dialético, realizar infinitas vezes este movimento que
nunca ocorre de maneira igual, Silva (1986, p. 54) indica que “[...] o pensamento, como
movimento da estrutura, ou estrutura em movimento, ou, ainda, movimento-estrutura – ganha
concretude na materialidade da idéia. A idéia espacializa-se [...] a idéia espacializada passa a
sobrepor-se à consciência para-si e para-outro.” Espaço, linguagem, territorialidades e,
portanto, a geografia real 240 nutrem, dessa maneira, relações de sobredeterminação.
240
Termo usado por Moreira (2004).
Capítulo 2 169
Ângela Massumi Katuta
241
E também na obra de Guattari (1998) intitulada Caosmose: um novo paradigma estético, principalmente nos
Capítulos intitulados Espaço e Corporeidade e Restauração da Cidade Subjetiva.
242
Que obviamente implica a alienação, no caso de nossa sociedade, a territorialização para a (re)produção do
capital.
Capítulo 2 170
Ângela Massumi Katuta
mônada psíquica, condição para a sobrevivência de cada ser humano e fundamento para a
constituição das linguagens e conhecimentos 243 que derivam de nossas noções de
espacialidade e das imagens de espaço por nós construídas. Observa-se, dessa maneira, a
centralidade das noções de espaço, das imagens espaciais e de suas próprias figurações,
enquanto elementos inerentes ao estabelecimento das racionalidades humanas.
Ainda sobre a simbologia toponímica e os registros espaciais, Santos D. (1997, p. 36)
esclarece que a sobrevivência humana “[...] implicou, sempre, algum tipo de deslocamento. Ir
e vir é o ato primário da construção do registro toponímico e cartográfico e tais registros vão
expressar, a cada momento histórico, a forma mesma em que se realiza esse movimento.” 244
Mudam os registros, as linguagens, seus suportes, os olhares, porque se alteram as relações de
produção das sociedades humanas e, com elas, suas espaço-temporalidades, linguagens e suas
geografias.
Muitos estudiosos (Lewis, 1987; Ostrower, 2002; Santos, D., 1997; Szamosi, 1988,
entre outros) defendem a tese, com a qual concordo, sobre a impossibilidade de realização do
pensamento humano sem a categoria espaço. Lewis (1987, p. 50 et seq.) corrobora esta
perspectiva ao afirmar que, antes mesmo da emergência do Homo sapiens, as capacidades de
transmissão e recepção de informações sobre relações espaciais entre fenômenos e eventos já
eram bem desenvolvidas em muitos animais. Esses sistemas de mensagens ou formas de
mapeamento são geneticamente predeterminados, bem como suas “linguagens”, portanto,
resultam do processo de evolução dos seres vivos. Em outras palavras, em se considerando os
processos evolutivos, pode-se afirmar que as noções de espaço são imprescindíveis à
sobrevivência de muitos seres vivos, inclusive dos humanos.
Os seres humanos possuem como traço distintivo dos outros animais a capacidade de
realização do trabalho. Esta atividade é a responsável pela construção das simbologias
243
Sobre esse assunto ver Ostrower (2002, p. 173), cujo entendimento foi transcrito na Apresentação do presente
trabalho, que afirma que somente podemos imaginar e pensar mediante imagens de espaço, fundamento anterior
de todas as linguagens.
244
Castoriadis (2000) em seu livro intitulado A instituição imaginária da sociedade também compartilha deste
mesmo ponto de vista. Especificamente nos capítulos VI e VII da referida obra, o autor defende a existência de
um núcleo monádico ao nascermos, ou seja, não nos diferenciamos do outro, a noção de interno e o externo –
relações espaciais topológicas – ainda não se constituíram. A ruptura da mônada ou diferenciação entre o eu e o
inominável, entre a internalidade e externalidade, fundamento para a constituição da realidade, ocorre somente
mediante a necessidade, no caso do recém-nascido, a necessidade somática, antecede todas as outras. Os bebês
que não conseguem romper com o núcleo monádico morrem de anorexia, indicativo de não ruptura com a
onipotência efetiva da psique. A ausência do seio é ruptura do fechamento monádico, dilacera o mundo autístico
do bebê, é componente constitutivo do objeto, em sua presença-ausência, “[...] a polaridade do sim/não, da
realidade e da negação, do possível e do efetivo encontram aqui seus primeiros germes subjetivos, e o esquema
figura-fundo começa a ser estabelecido com articulação geral de uma ‘consciência’ e de uma ‘percepção’
embrionárias.” (CASTORIADIS, 2000, p. 346). Verifica-se também nesse autor a idéia de que a consciência e
percepção embrionárias derivam das primeiras noções de espaço do recém-nascido.
Capítulo 2 171
Ângela Massumi Katuta
Figura 1 − Mapa cosmológico produzido na Índia, aproximadamente entre 8 000-2 500 a.C.,
no Mesolítico (tamanho original: 44 X 75 cm).
Fonte: SMITH (1994, p. 14).
245
Os encaminhamentos que estou dando à reflexão demandam uma concepção de mapa diferente das que
comumente são utilizadas na ciência cartográfica e, muitas vezes, na cartografia geográfica. Entendo por mapas
as representações gráficas que facilitam entendimentos espaciais de coisas, conceitos, condições, processos ou
eventos no mundo humano (HARLEY; WOODWARD, 1987, p. XVI). A concepção explicitada permite
considerar uma grande variedade de figurações espaciais como mapas, inclusive aquelas classificadas como pré-
históricas, presentes em diferentes suportes como em paredes de cavernas, jarros e outros objetos de cerâmica.
No debate sobre as origens da arte, muitas peças consideradas como artísticas são também classificadas pelos
historiadores da cartografia como mapas. Foi somente na época moderna que os mapas passaram a ser definidos,
rigorosamente, do ponto de vista de sua equivalência ou isomorfia métrica com o real. A concepção de mapa que
adotei, é utilizada freqüentemente por pesquisadores da história da cartografia, educadores e outros profissionais
que possuem uma visão menos alinhada a uma concepção moderna de cartografia, essencialmente cartesiana-
newtoniana pelo fato de ter, na matematização e mecanização do espaço, seus principais fundamentos.
Capítulo 2 172
Ângela Massumi Katuta
Figura 2 − Mapa pictórico, pintura rupestre produzida em Çatal Hüyük, Turquia, em 6 000
a.C., no Neolítico (tamanho original: aproximadamente 3 metros).
Fonte: SMITH, (1987, p. 74).
Figura 3 − Paisagem em Jarro produzida em Tepe Gawra, Iraque, entre 4 000-3 000 a.C.
(diâmetro original: 70 cm)
Fonte: SMITH, (1987, p. 72).
É importante salientar que as figuras apresentadas nos permitem inferir que antes
mesmo do aparecimento da escrita os seres humanos elaboravam figurações espaciais sob as
mais diferentes formas. Expressar espacialidades se colocava como necessidade aos grupos
humanos à época; contudo, dificilmente se pode discutir o uso ou significado atribuído às
figurações espaciais no contexto do momento histórico em que foram produzidas.
Estudos sobre o comportamento animal revelaram que cada uma das espécies possui
procedimentos de mapeamento característicos. Lewis (1987) cita um estudo de caso de lobos
do nordeste de Minnesota, cuja espacialidade recobre aproximadamente uma extensão de 100
a 300 quilômetros quadrados. A cada três semanas, em intervalos regulares, esses animais
deixam sinais olfativos ao longo de rotas estabelecidas na referida área. Notou-se também
uma concentração maior de sinais em entroncamentos e em locais próximos aos limites dos
seus territórios. Este fato evidencia a importância que a delimitação territorial e a noção de
espacialidade têm para a sobrevivência do animal em questão, revelando também a existência
de comportamentos espaciais, como a realização de “mapeamentos”, em outros seres que não
os humanos.
Géza Szamosi, em seu livro intitulado Tempo & Espaço: as dimensões gêmeas, faz
observações relevantes sobre as concepções de espaço e tempo, considerando-as como
padrões construídos pelos seres vivos ao longo de seus processos evolutivos. Ao referir-se, no
Capítulo 3 de seu livro, à cosmologia mamífera afirma que esta:
[...] atingiu um novo estágio com a evolução dos seres humanos. Pois os humanos
não apenas percebem objetos no espaço e no tempo, mas também criam símbolos
para ‘objetos’, para ‘espaço’ e para ‘tempo’. Com o uso dos símbolos humanos,
foram criadas as cosmologias de espaço e tempo simbólicos. (SZAMOSI, 1988, p.
47).
Capítulo 2 174
Ângela Massumi Katuta
Espaço e tempo simbólicos são um dos traços que caracterizam o humano no ser
humano e este somente se realiza, em qualquer sociedade, por meio da linguagem. É isto o
que as cosmologias humanas têm de comum, ou seja, a capacidade de criação simbólica,
característica esta que permite a tecedura das mais diversas concepções de espaço e tempo,
objeto, espaço-temporalidades e linguagens, responsáveis pela elaboração de referências
simbolizantes ou coordenadas semióticas, como as apresentadas nas Figuras 1 a 5. As
figurações espaciais antecedem a escrita, enquanto forma de registro humano, o que evidencia
a relevância dos saberes espaciais para os processos de sobrevivência e humanização da
espécie em questão.
Os pesquisadores citados por Lewis (1987) verificaram também que, a maioria das
mensagens espaciais dos animais é composta por pistas que demarcam o ambiente, e supõem
a presença do receptor na área. Para uma parte considerável dos seres vivos, as capacidades
relacionadas à transmissão e recepção de informações espaço-temporais foram e são,
elementos importantes à sobrevivência de sua espécie. Os primeiros hominídeos não fugiram
à regra, embora devessem ter um comportamento muito diferente dos outros animais e mesmo
dos insetos 246 , cuja determinação genética não lhes proporciona plasticidade ou variabilidade
em termos comportamentais.
Segundo Lewis (1987), nos seres humanos, a consciência espacial e a habilidade em
comunicá-la tomaram formas diferentes daquelas dos outros animais e mesmo dos
hominídeos que os precederam. Os estudos dos registros toponímicos, principalmente de
mapas pré-históricos 247 , indicam que a constituição da linguagem humana e o
desenvolvimento de sua consciência espaço-temporal estão rigorosamente relacionados.
Corroborando a afirmação do autor citado, Wertheim (2001, p. 169), ao estudar as
concepções de espaço desde a cosmologia medieval até os dias atuais, afirma que
psicanalistas lacanianos, no esteio de Freud, acreditam que a própria mente humana tem
estrutura espacial. Ostrower (2002), ao refletir sobre as imagens figurativas, afirma que a
246
Luria em seus estudos sobre a linguagem humana (1986, p. 23-26), ao fazer referência às “linguagens” de
animais e insetos, afirma que elas possuem características diferentes da humana, e utiliza como exemplo a
“dança” da abelha, por meio da qual essa comunica o seu estado de ânimo. Alguns autores como Deleuze e
Guattarri (2002, p. 13-14), apoiados pelas reflexões de Émile Benveniste, em sua obra Problémes de linguistique
génerale, não consideram essa forma de comunicação uma linguagem propriamente dita, pois argumentam que
esses insetos não são capazes de transmitir o que lhes foi comunicado.
247
A cartografia histórica tem feito interessantes reflexões sobre os mapas produzidos pelos antigos, e as
publicações dos professores de geografia John Brian Harley e David Woodward constituem-se um rico material;
destaco a coleção em dois volumes intitulada The History of Cartography. O volume 1 trata da cartografia pré-
histórica, antiga e medieval produzidas na Europa e na área do Mediterrâneo; o volume 2 trata da cartografia
produzida pelas sociedades do leste e sudeste asiáticos.
Capítulo 2 175
Ângela Massumi Katuta
248
Segundo Ginzburg (2001, p. 100 et seq.), o medo e a desvalorização das imagens prevalecem em toda a Idade
Média européia, daí a pequena variedade de mapas e pinturas no período. A imago era entendida como ficção,
abstração, realidade pálida e empobrecida, por isso era desvalorizada. A presentia, palavra ligada há tempos às
relíquias dos santos foi cada vez mais associada à eucaristia. Dessa maneira, em 1215, com a proclamação do
dogma da transubstanciação, o medo das imagens lentamente começa a diminuir. “[...] Aprende-se a domesticar
as imagens, inclusive as da Antigüidade pagã. Um dos frutos dessa reviravolta foi o retorno à ilusão na escultura
e na pintura. Sem esse desencantamento do mundo das imagens, não teríamos nem Arnolfo di Cambio, nem
Nicola Pisano, nem Giotto. A ‘idéia da imagem como representação no sentido moderno do termo’, de que
Gombrich falou, nasce aqui.” (GINZBURG, 2001, p. 102). Mercantilismo, aristocracia e suas territorialidades,
espacialidades, concepções de espaço e imagens nutrem relações muito profundas entre si. Não por acaso, a
Itália e a Holanda se tornaram destacadas produtoras de imagens, seja sob a forma de pinturas ou mapas. Sobre
este assunto ver excelente livro de Svletana Alpers (1999) intitulado A arte de descrever.
Capítulo 2 178
Ângela Massumi Katuta
Europa. O braço meridional é constituído pelo rio Nilo, que separa a Ásia da ‘Líbia’.
(DREYER-EIMBCKE, 1992, p. 47).
A cartografia hegemônica do Ocidente latino no medievo, como todo e qualquer
conhecimento, era elaborada conforme os preceitos bíblicos, sendo as escolas monásticas ou,
de maneira geral, os clérigos seus principais produtores. O mapa de um mundo, criado pelo
Deus cristão, era elaborado a partir da palavra divina revelada por meio da Bíblia, por isso, a
cartografia da Idade Média caracteriza-se por evidenciar a espacialidade hegemônica cristã. A
palavra de Deus escrita na Bíblia, essencial para o entendimento do mundo à época, era
elemento fundamental para a construção de mapas TO. Conseqüentemente, para entendê-los,
se faz necessário um certo domínio da cosmologia cristã presente na Bíblia, especificamente
do livro do Gênesis no Velho Testamento.
Muitos autores tendem a afirmar que os mapas elaborados nesta época expressavam
uma visão subjetiva do mundo, em oposição às imagens consideradas objetivas presentes nos
atuais planisférios 249 . Contudo, gostaria de salientar que se trata de uma afirmação
questionável na medida em que uma tal oposição tem como fundamento uma concepção
absolutista da verdade e do significado do que seja ou não um conhecimento verdadeiro,
expressão da concepção do ideal científico moderno, fundado em uma visão fisicalista e
substancialista de mundo.
Lembremo-nos das sábias palavras de Elias (1998a), que entende que todo
conhecimento tem sido para os seres humanos um meio de orientação, essencial para a
sobrevivência dos grupos sociais. Ora, se a racionalidade cristã bem como seus mapas
perduraram por um longo tempo, foi exatamente porque tais conhecimentos eram
relativamente congruentes com a realidade da época. Atendiam à demanda realizada pela
sociedade naquele momento histórico, portanto, compunham o seu projeto societário. A
divisão entre conhecimento subjetivo e objetivo, nesta perspectiva, deixa de fazer sentido na
medida em que se entende que todo conhecimento é produzido social e espaço-
temporalmente. A idéia da existência de um indivíduo independentemente da dimensão social
é uma falácia. Sociedade e indivíduo nutrem entre si relações dialéticas, contudo, o segundo
somente pode se realizar por meio das determinações sociais.
249
Dentre eles Kimble (2000, p. 235 et seq.), cujo livro intitulado A geografia na Idade Média, faz referência à
cartografia da época, especificamente no Capítulo 8, intitulado Os Mapas na Idade Média. Para o autor: “[...] No
todo, provavelmente é correto dizer que a grande maioria destes mappaemundi são para serem considerados
como obras de arte e não de informação. Seus autores estavam criando algo muito diferente da malha
cartográfica moderna cujo mérito é ser documento essencialmente útil, e por uma construção científica.”
(KIMBLE, 2000, p. 236).
Capítulo 2 179
Ângela Massumi Katuta
250
Garcia (1995, p. 239) afirma que a matéria da narração é o fato ou um episódio real ou fictício, entendido
como qualquer acontecimento de que o ser humano participe direta ou indiretamente. A narração supõe ação, um
enredo, tendendo, portanto, mais à polissemia do que a uma descrição. É importante salientar que entendo que
inexiste a monossemia e polissemia em si e per si, essas devem ser consideradas no contexto dos jogos de
linguagem socialmente realizados. Um objeto ou linguagem não são monossêmicos ou polissêmicos em si,
dependendo dos usos sociais que deles se fazem, acabam por apresentar maior ou menor grau de polissemia.
Capítulo 2 180
Ângela Massumi Katuta
entre cartografia e arte, essa é uma fronteira que teria “[...] intrigado os holandeses. Pois numa
época em que os mapas eram considerados um tipo de pintura, e em que as pinturas
desafiavam os textos como uma maneira fundamental de compreender o mundo, a distinção
não era nítida.” (ALPERS, 1999, p. 253).
É preciso salientar que, ao contrário do que muitos pensam, o divisor de águas entre as
pinturas e os mapas não é tão nítido quanto parece. Os exemplos mostrados por Alpers (1999)
e os mapas estudados pela equipe de Harley e Woodward (1987, 1994), alguns poucos
apresentados no item anterior do presente Capítulo, demonstram este fato de maneira
inquestionável. Em diferentes momentos históricos, cartografia e pintura se distanciam, se
aproximam, amalgamam, qual o movimento de ritornelo 251 em um grande concerto.
Não por acaso, as imagens, figurações espaciais ou mapas “pré-históricos” estudados
pelo grupo de pesquisadores ligados a Harley e Woodward (1987, 1994) foram, igualmente,
objetos de pesquisa dos historiadores de arte. Também Alpers (1999), como mostrei
anteriormente, tende a questionar em seu estudo uma nítida distinção entre mapas e pintura. É
que, se abordada em sua espaço-temporalidade, a cartografia produzida pelos seres humanos
nem sempre esteve fundada em uma concepção moderna de espaço. Subjacente a toda
cartografia existem diferentes concepções de espaço, que não são as mesmas porque o modo
de produção, bem como as relações sociais que os seres humanos estabelecem entre si e com
o meio que os circunda e suas territorialidades são diferentes. Conseqüentemente, seus mapas
e geografias serão diferentes.
Ao defendermos a existência de uma nítida separação entre mapas e pinturas estamos
descolando ambas as produções dos seus contextos espaço-temporais de realização, negamos
as linguagens como práxis, enquanto relações humanas que são e, portanto, os jogos de
linguagem nos quais elas se realizam. Este habitus é próprio da cosmologia ocidental
hegemônica que, ao enfatizar a identidade do objeto descolada das relações sociais na qual a
mesma é tecida, tende a estancar o movimento do conhecimento. Retiramos tais produções do
âmbito das práxis humanas e as diferenciamos somente a partir de sua forma, expressão de
uma concepção moderna e hegemônica de espaço.
Na perspectiva científica moderna de mapa, fundada na concepção de espaço
cartesiano-newtoniano-kantiano, são poucas as sociedades humanas que possuem mapas. Este
entendimento me parece insustentável, dado que a própria sobrevivência dos seres humanos
251
Em um concerto clássico, a volta de todos os instrumentos da orquestra após um solo instrumental.
Capítulo 2 181
Ângela Massumi Katuta
252
De maneira bem simplória, são as noções de espaço que se referem, respectivamente, à métrica, às distâncias
e extensões e às projeções, perspectivas.
253
Termo usado por Pankow (1988, p. 185).
Capítulo 2 182
Ângela Massumi Katuta
dissemina a moderna noção de espaço, lentamente produzida para e pelo capital. Por isso,
afirma Wertheim (2001, p. 55):
Não há palavras capazes de explicar o ‘lugar’ que não está em parte alguma, o ‘ponto’ que está em toda
parte. Nenhuma metáfora pode descrever a fusão de corpo e alma na Unicidade que para os cristãos medievais
era a fonte de tudo. No instante dessa visão beatífica, a linguagem finalmente falha a um de seus maiores
expoentes. Espaço do corpo e espaço da alma amalgamaram-se num espaço único. O mistério está além da
intelecção.
A linguagem falha porque cada noção de espaço e, portanto, as espacialidades
engendram diferentes linguagens. “[...] Assim como o ciberespaço não pôde ganhar existência
até que novos tipos de linguagem para a comunicação eletrônica fossem desenvolvidos, assim
também qualquer novo tipo de espaço requer o desenvolvimento de uma nova linguagem.”
(WERTHEIM, 2001, p. 223). Em outras palavras, o desenvolvimento da linguagem –
estrutura estruturada, estruturante e instrumento de poder – é a condição para a realização da
espacialidade humana e, portanto, para a construção de sua noção de espaço, seus territórios e
suas geografias. Espacialidades diferentes, necessariamente, se expressam-realizam por meio
de linguagens igualmente diversas.
A seguir, está apresentado o mapa-múndi produzido por Macróbio em 1483 e,
subseqüentemente, um outro, datado de 1850/51 produzido por John Tallis & Co, que usa a
projeção de Mercator para apresentar a rota da viagem realizada pelo capitão Cook:
Figura 8 – Mapa moderno produzido por John Tallis & Co. (1850/51)
Fonte: Dreyer-Eimbcke (1992, p. 187).
Se compararmos as Figuras 6 e 7, pode-se verificar que subjacente às mesmas temos
concepções diferenciadas de espaço, portanto de espacialidades, cosmologias e geografias. No
mapa de Macróbio, pode-se verificar que há um aumento significativo das massas de água em
relação às terras emersas, ao contrário do mapa TO. Aparecem também outros continentes e
locais, ao mesmo tempo em que suas localizações começam a se tornar mais congruentes com
o real.
É no período situado entre o Medievo e o Renascimento que os mapas vão se tornando
mais descritivos que narrativos. Não por acaso, muitos deles, cada vez com maior freqüência,
passam a apresentar a palavra Descriptio. Segundo Alpers (1999, p. 247) “[...] Esse era um
dos termos que mais se usavam para designar o empreendimento cartográfico. Os autores ou
editores de mapas eram referidos como ‘descritores do mundo’, e seus mapas ou atlas como o
mundo descrito.” Observa-se que foi exatamente na passagem do modo de produção feudal
para o capitalista que ocorreu a constituição da crença ocidental no isomorfismo entre a
linguagem e o objeto que ela representa. O mapa passa a ser entendido como instrumento de
descrição do mundo tal qual ele é, ocultando-se as relações entre modo de produção e
produção cultural, entre mapas cartesianos-newtonianos, o habitus das classes sociais
hegemônicas e as espacialidades a elas inerentes.
Capítulo 2 184
Ângela Massumi Katuta
Apesar de inexistir uma exata separação entre narração e descrição, Alpers (1999) nos
chama a atenção para a necessidade da distinção entre as tendências narrativas e descritivas
em pinturas e mapas. Isso porque elas podem nos auxiliar no discernimento entre esses dois
modos de produzir figurações espaciais. “[...] Descritivo é, de fato, um modo de caracterizar
muitos dos trabalhos que estamos acostumados a qualificar de realistas.” (ALPERS, 1999, p.
30). Tais obras se caracterizam pela quietude ou imobilidade, sintoma da oposição existente
entre estas e os pressupostos da arte narrativa.
“Parece haver uma proporção inversa entre descrição atenta e ação: a atenção à
superfície do mundo descrito se faz em detrimento da representação da ação narrativa.”
(ALPERS, 1999, p. 30). Para a autora, “[...] as imagens descritivas, pelo menos no século
XVII, eram fundamentais para a compreensão ativa do mundo pela sociedade.” (ALPERS,
1999, p. 31). Eis o ponto de vista ou a crença moderna que a geografia da leitura ou escolar
irá também assumir no século XVIII e, com maior eficácia, no XIX, no processo de
disseminação da territorialidade das escolas voltadas para os trabalhadores.
Foi Panofsky que, ao comentar a obra descritiva do holandês Jan van Eyck, fez uma
brilhante caracterização da descrição:
[...] opera como um microscópio e como um telescópio ao mesmo tempo [...] o
observador é compelido a oscilar entre uma posição razoavelmente afastada da
pintura e várias posições muito perto dela [...] Nem um microscópio nem um
telescópio se prestam para observar a emoção humana. [...] A ênfase antes é na
quietude que na ação. [...] Medido pelos padrões ordinários, o mundo do Jan van
Eyck maduro é estático. (PANOFSKY, apud ALPERS, 1999, p. 30).
Dessa maneira, fica óbvia a diferença entre o mapa TO, narrativo, e os mapas de
Macróbio e de John Tallis & Co, nesta perspectiva, tendendo e apontando para a descrição.
Por meio da comparação das Figuras 6, 7 e 8, nota-se também que, com o passar dos anos,
cada vez mais o mapa ocidental hegemônico avança rumo à descrição.
É importante salientar que na pintura, principalmente a partir do século XIX, ocorre
um movimento diametralmente oposto ao da cartografia bem como da geografia
hegemônicas. Isso porque nesse campo artístico passa à existência um sentimento de
menosprezo às obras descritivas que, aparentemente, representavam tudo o que existia na
natureza “de maneira exata” e “não seletiva” 254 .
O referido sentimento se tornará cada vez mais fortalecido entre a aristocracia e as
elites urbanizadas e letradas da Europa, o que levou a uma certa desvalorização da arte
descritiva. Alpers (1999) entende esse processo como resultante do desprezo que os grupos
254
Eis um exemplo didático que mostra que a exatidão e a seleção são idéias social e espaço-temporalmente
construídas e legitimadas por grupos hegemônicos.
Capítulo 2 185
Ângela Massumi Katuta
255
Os primeiros livros impressos foram feitos por chineses e japoneses no século VI. No século XV, o ourives
alemão Johannes Gutenberg criou a imprensa de tipo móvel, método de impressão que permitia imprimir
grandes quantidades de páginas a baixo custo, em um menor tempo. (BENDER, 1994, p. 26-27). Observa-se já
no período em questão, o emprego da lógica do capital: produzir mais, a custos cada vez mais baixos em menor
tempo.
256
Sobre esse assunto ver Alpers (1999).
257
Segundo Alpers (1999, p. 31) Leon Battista Alberti afirmará que a storia na pintura (narrativa) “[...]
comoverá a alma do observador quando cada homem aí pintado mostrar claramente o movimento de sua alma. A
história bíblica do massacre dos inocentes, com suas hordas de soldados enfurecidos, crianças moribundas e
mães aflitas, foi o epítome daquilo que, deste ponto de vista, a narração pictórica e portanto a pintura devem
ser.” É interessante destacar que a pintura narrativa tinha como foco os seres humanos e não a natureza,
concebida à época como imóvel e imutável.
Capítulo 2 186
Ângela Massumi Katuta
258
Segundo Santos D. (1997, p. 258), à época de Luiz XIV foi fundada a Académie Royale (1635), que oferecia
altos salários a quem se dedicasse a pesquisas astronômicas e cartográficas. “A criação da Académie tinha por
objetivo construir mapas precisos, tanto de Paris quanto da França e do mundo todo. Na época já era claro que o
desenvolvimento de uma cartografia precisa resultaria, independentemente da escala, na possibilidade de um
melhor planejamento – tanto das viagens e, portanto, do comércio exterior e controle das colônias, quanto da
ação interna do poder do Estado.”
Capítulo 2 187
Ângela Massumi Katuta
Aos poucos, com as navegações e o capitalismo em sua face mercantil, a Terra vai
ganhando a conformação que atualmente conhecemos. Outras terras emersas passam a
compor o mundo conhecido. Em relação ao (re)aparecimento de uma porção maior de terras
austrais nos mapas europeus, como é o caso daquele elaborado por Macróbio presente na
Figura 7, Dreyer-Eimbcke (1992, p. 116) afirma que:
Sob a influência do cristianismo, foi caindo em esquecimento a ciência da
esfericidade da Terra. Durante quase mil e quinhentos anos, a Terra era considerada
um disco, e qualquer opinião contrária acabou considerada heresia. Assim, a idéia de
um continente austral sobreviveu apenas a uma tradição árabe, de onde retornou ao
Ocidente no decorrer das cruzadas, voltando então a se tornar patrimônio comum
dos estudiosos na época das grandes descobertas.
Verifica-se que o resgate da idéia da esfericidade da Terra é realizado em um contexto
de expansão comercial, período em que as noções métricas de espaço passam à hegemonia.
Para ilustrar o que foi afirmado, resgatemos novamente Wertheim (2001, p. 23), que afirma
que entre o Renascimento e a
[...] ‘revolução científica’ do século XVII – ocorreu uma profunda mudança, tendo a
atenção ocidental se desviado cada vez mais do conceito teológico de alma para a
concretude física do corpo. Desde o Iluminismo, no século XVIII, vivemos numa
cultura que tem sido esmagadoramente dominada por preocupações não espirituais,
mas materiais. Em suma, no Ocidente moderno vivemos numa era profundamente
materialista e fisicalista.
O que se verifica no processo de transição do Feudalismo para o Capitalismo, período
no qual foram produzidos os mapas apresentados nas Figuras 6, 7 e 8, é uma lenta mudança
na cosmologia ocidental hegemônica, portanto, em suas linguagens e racionalidades, em suas
espacialidades, concepções de espaço, figurações espaciais, territorialidades, geografias e
cartografias. Recorramos mais uma vez a Santos D. (1997, p. 43), que habilmente sintetiza os
movimentos responsáveis pela criação das novas noções de espaço, que rapidamente se
tornaram hegemônicas:
Da terra fixa à construção de uma concepção de planeta móvel, girando em torno de
si mesmo e do centro do Universo (o Sol), do mapa em TO ao mapa de Mercator, da
Europa como centro do Universo à Europa como continente hegemônico (na parte
de cima e ao centro dos mapas), da relação de suserania à propriedade privada da
terra agrícola, dos caminhos à construção de estradas, dos feudos à retomada das
cidades, o que se observa é uma transformação radical na concepção ocidental de
espaço e espacialidade fundada, inclusive, na apropriação e transformação
generalizada de novos (e, até então, desconhecidos) territórios. Se é possível afirmar
que a construção da sociedade burguesa pressupõe um redimensionamento da noção
de tempo, o que se quer é evidenciar a dimensão espacial dessa dinâmica e, portanto,
em que medida a construção de novas relações sociais reconstrói, de um lado, o
arranjo paisagístico tanto da Europa quanto das novas terras conquistadas e, de
outro, como e por que tais transformações expressam-se também, na constituição do
discurso científico.
O espaço métrico euclidiano e projetivo, como afirma Santos D. (11997, p. 264), se
coloca, no contexto do novo modo de produção, como categoria articuladora do pensamento
sobre o real, fundamental na (re)produção das novas relações sociais e paisagens. Afinal de
Capítulo 2 188
Ângela Massumi Katuta
259
Abstração matemática do espaço. Grifo da autora.
Capítulo 2 189
Ângela Massumi Katuta
260
Sobre esse assunto ver Bertanini (1985).
Capítulo 2 190
Ângela Massumi Katuta
261
Estou adotando a taxonomia de Elias (1998b). O autor define como nível de síntese elevado elaborações
intelectuais mais sistematizadas, as menos sistematizadas são classificadas por ele como possuindo um baixo
nível de síntese.
Capítulo 2 192
Ângela Massumi Katuta
262
Pintura descritiva.
Capítulo 2 193
Ângela Massumi Katuta
263
Grifo da autora.
Capítulo 2 194
Ângela Massumi Katuta
264
Grifo da autora.
265
Grifo da autora.
Capítulo 2 195
Ângela Massumi Katuta
que lhes era familiar, deve ter auxiliado na redução do medo ou do pavor dos extensos
entornos desconhecidos.
A tese explicitada por Lewis apresenta um complicador, ou seja: subjacente ao
entendimento do autor é passível de ser verificada uma concepção moderna de espaço, a partir
da qual se entende o topos enquanto lugar fisicamente existente. Para Newton, citado por
Burtt (1991, p. 193): “O lugar é uma parte do espaço que um corpo toma [...]”. Trata-se do
topos moderno, que foi lentamente construído desde Copérnico, no século XV, passando por
Kepler, Galileu, Descartes até atingir sua formatação final com Newton, já no século XVII,
apenas para citar rapidamente os expoentes que sistematizaram uma nova cosmologia fundada
em uma concepção fisicalista de espaço. Essa, por sua vez, desconsidera a existência de locais
e espacialidades não suscetíveis de serem fisicizados por meio do uso do raciocínio
isomórfico, como são, por exemplo, os lugares da alma; daí o autor poder afirmar que as
informações topográficas pareciam não ter tanta importância prática para os primeiros seres
humanos.
De minha parte entendo que, em se tratando de concepções de espaço, não é possível
aceitar apenas aquela que foi, em grande parte, gerada no contexto do modo capitalista de
produção e da ciência moderna. Não será muito reducionismo pensar os lugares apenas como
parte do espaço que um corpo toma? E, neste contexto, entender os mapas como instrumentos
que representam extensões do espaço de acordo com a normatização elaborada a partir da
concepção moderna de espaço?
Para respondermos a estas questões consideremos nosso parente próximo, o Homo
Sapiens de Neandertal, cujos vestígios encontrados na África, Ásia e Europa datam do
Pleistoceno superior, no Paleolítico médio, por volta de 150 a 40 mil anos. Há evidências de
que sua subsistência dependia da caça e da coleta; verificou-se também o aperfeiçoamento das
técnicas de fabricação de instrumentos, por isso, esses Homo eram considerados sapiens.
Especificamente com os neardertalenses, instrumentos simples passaram a ser compósitos: às
ferramentas juntaram-se cabos. Há evidências de que esses tiveram apenas rudimentos de arte,
no entanto, deixaram vestígios de crença em uma vida espiritual. Segundo Szamosi (1988, p.
61) os neandertalenses colocavam comida e armas nas sepulturas de seus mortos, havendo
também indícios da realização de sacrifícios humanos há aproximadamente 70 mil anos.
Do exposto, concordo com muitos antropólogos ao afirmarem que as ações dos
neandertalenses foram deliberadas. Essas dificilmente seriam realizáveis sem um sistema de
crenças, cosmologia, espacialidades e linguagens que as justificassem. Em outras palavras,
contrariando as idéias de Lewis (1987), entendo que havia um senso prático, construído por
Capítulo 2 196
Ângela Massumi Katuta
esses hominídeos, que, de certa forma, os guiavam na realização de suas ações no espaço. No
caso dos neandertalenses, há fortes evidências demonstrando a existência de crenças em um
mundo-lugar dos mortos. E, como afirma Szamosi (1988, p. 62), se isto é verdade, então “[...]
a cosmologia simbólica precedeu a humanidade anatomicamente moderna, já que os
Neandertal eram anatomicamente diferentes do Homo Sapiens sapiens (seres humanos
contemporâneos)”. Tendo essa afirmação por base, é possível defender que as imagens de
espaço, pensamento, linguagem e imaginação precederam os Homo Sapiens sapiens.
Com o aparecimento dos primeiros seres humanos, as figurações espaciais do
Paleolítico superior, período situado entre 40 a 12 mil anos, passam por um grande
desenvolvimento cultural e tecnológico. Esse é um período caracterizado também pelo
surgimento de manifestações artísticas, como são consideradas pelos historiadores da arte as
representações paisagísticas com alguns aspectos planos, “mapas” primitivos, pintura,
gravura, escultura e modelagem.
Para Debray (1994, p. 20):
O nascimento da imagem está envolvido com a morte. Mas se a imagem arcaica
jorra dos túmulos é por recusar o nada e para prolongar a vida. As artes plásticas
representam um terror domesticado. Por conseguinte, quanto mais apagada da vida
social estiver a morte, menos viva será a imagem e menos vital nossa necessidade de
imagens.
Ao explicitar o entendimento de que a condição para a existência de imagens foi a
construção social da idéia de vida após a morte e, portanto, da tomada de consciência pelos
seres humanos da alteridade que os aterrorizava, Debray nos apresenta forte indicativo da
existência de um senso prático que parametrizava as ações dos primeiros seres humanos,
principalmente no que se refere à produção imagética.
Considerando o exposto, podemos afirmar que as imagens 266 , de uma forma geral,
foram e são elementos estruturadores e estruturantes do pensamento e imaginação humanos e
também foram e são usadas enquanto instrumentos de dominação. Expressam os habitus de
determinados segmentos sociais, principalmente daqueles hegemônicos e não podem ser
pensadas ou analisadas sem se considerar o senso prático e político a elas subjacentes no
contexto espaço-temporal de sua realização. Em outras palavras, toda ação humana é dotada
de razões práticas, o que significa dizer que a compreensão das imagens de espaço deve ser
266
Entendidas aqui na perspectiva colocada por Ferraz (2001, p. 113): “[...] a imagem pode ser figurativa, mas
também pode ser originária de outras fontes diferentes – assim como pode desembocar em uma diversidade de
formas de manifestações que não a figura em si –, podendo ter origem em textos escritos, imaginados, em
sentimentos profundos de prazer ou dor, para não falar no silêncio ou na própria música, de forma que expresse
uma dada impressão, ou permita formar uma idéia da mente humana, uma imagem fruto de experiências, de
outras imagens ou percepções diversas.”
Capítulo 2 197
Ângela Massumi Katuta
267
Essa afirmação expressa um total acordo com a proposição elaborada por Santos D. (1997, p. 38) em sua tese
de doutoramento: “O fim da sociedade feudal e a hegemonia da sociedade burguesa (genericamente identificado
como o período que vai do Renascimento ao Iluminismo) é, entre outros, um processo de desenvolvimento e
hegemonização de um novo processo produtivo, cujo objetivo fundamental ultrapassa os limites da subsistência
e atinge o paradigma da acumulação. Pode-se dizer que, o que se observa, é uma transformação radical (objetiva
Capítulo 2 198
Ângela Massumi Katuta
uma multiplicidade considerável de registros toponímicos dos quais os alunos são portadores,
ato este que auxilia no processo ao qual denominei anteriormente de estrangeirização e
alienação discente.
Ao estancar o movimento inerente ao processo de conhecimento, pelo fato de, em
geral, discursar apenas no plano da generalidade e não partir da singularidade, passando para
a particularidade para então chegar à generalidade, a geografia ensinada transmuta-se em
ideologia, apontando para o processo de (re)produção das atuais espacialidades e, portanto,
para a manutenção do atual modo de produção, projeto societário e cosmologia.
Dessa maneira, a geografia escolar, por meio das linguagens e usos que
tradicionalmente delas se fazem, realiza a sujeição subjetiva, condição para a sujeição
econômica por meio das quais ocorre a apropriação e (re)produção do espaço do e para o
capital. Eis o papel que esta disciplina, como todas as outras, não sem conflitos, vem
predominantemente realizando, desde a disseminação das primeiras de escolas de massas.
Considerando o exposto, pode-se afirmar que a ruptura com o processo de
estrangeirização e alienação discente, especificamente no que se refere ao ensino da
geografia, dependerá em grande parte da (re)construção do olhar docente em relação aos
processos educativos que não devem estancar no plano da generalidade. Somado a isso, para o
retorno d’O Estrangeiro ao “mundo da geografia” faz-se necessário, além da assunção do
movimento inerente ao processo do conhecimento, o resgate da importância da dimensão
espacial na constituição das identidades e territorialidades. Esse é o foco central que deve
nortear os entendimentos da organização dos espaços pelos diferentes grupos humanos, o que
implica a apropriação e uso das mais variadas linguagens, principalmente aquelas que
apresentam diferentes figurações espaciais. Estas são as idéias presentes no Capítulo que
segue.
e subjetiva) do significado do viver, sendo, assim, a construção de uma nova cosmovisão e de seus modelos
(jogo simbólico) explicativos (cosmologia) [...].”
Capítulo 3 199
Ângela Massumi Katuta
Os impulsos cruzados
Do que sinto ou não sinto
Disputam em quem sou.
Ignoro-os. Nada ditam
A quem me sei: eu ‘screvo.
(PESSOA, 1982, p. 151).
espiral’: o retorno acima do superado para dominá-lo, e aprofundá-lo, para elevá-lo de nível
libertando-o de seus limites (de sua unilateralidade).”
No presente capítulo intitulado “O retorno d’O Estrangeiro”, abordo, em um primeiro
momento, a necessidade de se pensar os atos de conhecimento de maneira menos cindida no
contexto dos processos educativos, indicando a necessidade da reflexão sobre nossa dualidade
enquanto seres humanos, pois somos síntese de processos evolutivos e de aprendizagem dos
saberes historicamente construídos; daí sermos, ao mesmo tempo, seres sociais e individuais.
É esta característica humana dual, geralmente desconsiderada nas abordagens hegemônicas
em educação, que deve ser focalizada pelos educadores.
Em função de compreender o ser humano de maneira unilateral ora como natureza ou
como espírito, essas abordagens tendem para entendimentos dos processos de ensino e
aprendizagem fundados na metafísica que, por separar o inseparável, aponta para a
(re)produção das atuais relações de produção, portanto, para a alienação e a unilateralidade
nos processos educativos.
Compreender a autonomia, bem como a interdeterminação dos atos e elementos do
conhecimento − trabalho, pensamento, linguagem, memória, percepção e construção de
conhecimentos −, nos processos educativos, reflexão também inserida no primeiro item do
presente capítulo, pode auxiliar na condução de uma aprendizagem escolar menos alienada e
menos pautada na repetição. A compreensão de que existe uma relação complexa entre esses
elementos implica a assunção de que conhecimento é movimento e, quando este estanca,
deixa de sê-lo, entendimento essencial para que ocorra o necessário esforço, no processo de
ensino e aprendizagem, do estabelecimento do jogo de compreensões entre a singularidade, a
particularidade e a generalidade ou, em termos eliasianos, para que ocorra o envolvimento e o
distanciamento, movimentos dialéticos inerentes ao conhecimento.
Considerando o exposto, pode-se afirmar que a ruptura com o processo de
estrangeirização e alienação discente dependerá da (re)construção do olhar docente em
relação aos processos educativos, que não devem estancar no plano da generalidade,
especialmente quando se trata do ensino da geografia. Daí a importância da assunção do
movimento inerente ao processo do conhecimento e de uma abordagem materialista dialética
dos atos-elementos que envolvem o conhecimento.
No caso específico da disciplina em questão, entendo que O retorno d’O Estrangeiro
ao “mundo da geografia” passa necessariamente pelo resgate da dimensão espacial na
construção das identidades, territorialidades e racionalidades humanas, em suas múltiplas
escalas e expressões. Esse é o foco central da segunda parte do presente capítulo intitulada: O
Capítulo 3 201
Ângela Massumi Katuta
olhar de Jano Através do Espelho de Alice. Nela, por meio da alusão ao fenômeno do
espelhamento, foco da obra de Carrol (2002) em Através do Espelho, procurei rapidamente
resgatar a importância das noções de espaço no processo de humanização do ser humano; daí
a opção de abordar espaço-temporalidades pretéritas a fim de mostrar que essas noções são
estruturas estruturadas e estruturantes que compõem o habitus das diferentes formações
sociais em diferentes momentos históricos.
Finalizo o capítulo apontando para a necessidade da ampliação do uso de diferentes
linguagens no ensino da geografia, isso, sem desmerecer a relevância da linguagem
cartográfica para esse saber. Entendo que o acesso e uso de diferentes linguagens auxiliam na
ampliação das coordenadas semióticas para que O Estrangeiro possa retornar ao “mundo” da
geografia. A eliminação da dobra entre a geografia real e a da leitura ou da escola, implica a
assunção das correspondências existentes entre “[...] a grade dos lugares (topias) e a grade da
linguagem, ambas postas sobre uma ‘realidade’ infinitamente complexa e caótica,
contraditória [...]”. (LEFEBVRE, 1991, p. 32-33). São as linguagens e os códigos lógicos
disseminados pela escola e pelas diferentes matérias de ensino, que nos parametrizam para o
estabelecimento de inter-relações entre as coisas, fundamento para a construção de
entendimentos menos caóticos e sincréticos sobre o real e para a ruptura com o processo de
estrangeirização e alienação aos quais somos cotidianamente expostos.
Capítulo 3 202
Ângela Massumi Katuta
268
Estou usando de maneira ampla a expressão “processo educativo”, entendendo que a mesma supõe tanto o
ensino quanto a aprendizagem, formais ou não-formais, escolares e pré-escolares.
269
Pelo fato de ter falecido precocemente aos trinta e oito anos, suas teses e contribuições estão presentes em
várias obras publicadas postumamente. Sobre os fundamentos das teses vygotskianas ver principalmente o livro
escrito com um dos seus discípulos intitulado Estudos sobre a história do comportamento: o macaco, o primitivo
e criança (VYGOTSKY; LURIA, 1996).
Capítulo 3 203
Ângela Massumi Katuta
270
O autor está fazendo referência direta a um conceito que criou, denominado de zona de desenvolvimento
potencial ou proximal que é “[...] A diferença entre o nível das tarefas realizáveis com o auxílio dos adultos e o
nível das tarefas que podem desenvolver-se com uma atividade independente [...]”. (VIGOTSKII, 1988, p. 112).
Em outra obra, o mesmo autor define a zona de desenvolvimento proximal da seguinte maneira: “[...] é a
distância entre o nível de desenvolvimento real, que se costuma determinar através da solução independente de
problemas, e o nível de desenvolvimento potencial, determinado através da solução de problemas sob a
orientação de um adulto ou em colaboração com companheiros mais capazes.” (VYGOTSKY, 1991a, p. 97).
Para o autor, é papel da escola trabalhar no sentido de fazer avançar a zona de desenvolvimento proximal, daí a
ênfase nas interações sociais entre crianças e adultos e mesmo entre as primeiras e companheiros mais capazes.
271
A grafia do nome do autor foi alterada em função da tradução.
272
Elias (1993, p. 194) denomina tecido social o substrato básico em que “[...] planos e ações, impulsos
emocionais e racionais de pessoas isoladas constantemente se entrelaçam de modo amistoso ou hostil. Esse
tecido básico, resultante de muitos planos e ações isolados, pode dar origem a mudanças e modelos que
nenhuma pessoa isolada planejou ou criou. Dessa interdependência de pessoas surge uma ordem sui generis,
uma ordem mais irresistível e mais forte do que a vontade e a razão das pessoas isoladas que a compõem. É
essa ordem de impulsos e anelos humanos entrelaçados, essa ordem social, que determina o curso da mudança
histórica, e que subjaz ao processo civilizador.”
273
Essa é expressão de mudanças no processo civilizador que operam em diferentes períodos da história da
humanidade. Tomei de empréstimo a Teoria da civilização preconizada por Norbert Elias (1993, p. 17) que, a
Capítulo 3 204
Ângela Massumi Katuta
partir da mesma, destaca as “[...] ligações entre mudanças na estrutura da sociedade e mudanças na estrutura do
comportamento e da constituição psíquica.” Em outras palavras, transformações sociais, comportamentos e
constituição psíquica dos seres humanos não devem ser compreendidos em si e per si, como demanda a tradição
científica ancorada na metafísica. Tais elementos são expressões de um processo civilizador que não é racional e
nem irracional, embora tenha ordem e direção específicas. “A civilização não é ‘razoável’, nem ‘racional’, como
também não é ‘irracional’. É posta em movimento cegamente e mantida em movimento pela dinâmica autônoma
de uma rede de relacionamentos, por mudanças específicas da maneira como as pessoas se vêem obrigadas a
conviver. [...] É precisamente em combinação com o processo civilizador que a dinâmica cega dos homens,
entremisturando-se em seus atos e objetivos, gradualmente leva a um campo de ação mais vasto para a
intervenção planejada nas estruturas social e individual – intervenção esta baseada num conhecimento cada vez
maior da dinâmica não-planejada dessas estruturas.” (ELIAS, 1993, p. 195).
274
Entenda-se por material toda e qualquer produção humana, seja ela material ou simbólica.
Capítulo 3 205
Ângela Massumi Katuta
275
Um bom exemplo disso são as reflexões sobre educação elaboradas por Alexander Romanovich Luria, Alex
N. Leontiev, Antônio Gramsci, Gaudêncio Frigotto, Lev Semenovich Vygotsky, Mariano Fernandez-Enguita,
Mario Alighiero Manacorda, entre outros, cujas reflexões são tecidas a partir da referida categoria, elemento
essencial que nos distingue de outros animais.
Capítulo 3 206
Ângela Massumi Katuta
real e intui o seu próprio reflexo num mundo por ele criado. (MARX, 1993, p.
165).
Em Marx (1993), o trabalho tem um caráter dialético, podendo ser o fundamento da
alienação ou conscientização, da realização da humanização e da “desumanização” 276 .
Quando o trabalho, a atividade vital, a vida produtiva dos seres humanos se volta para a
satisfação de uma única necessidade − a de manter a existência física −, ou seja, quando se
torna simples meio de manutenção da vida biológica humana, ocorre a alienação do e pelo
trabalho; a condição para isso é a desterritorialização de determinados segmentos sociais,
fenômeno estudado por Deleuze e Guattari (2002) e por vários geógrafos. Marx (1993, p. 162)
descreve de maneira sucinta o processo de alienação ativa − alienação da atividade e atividade
da alienação −, ao responder a questão “Em que consiste a alienação do trabalho?”:
[...] o trabalho é exterior ao trabalhador, quer dizer, não pertence à sua natureza;
portanto, ele não se afirma no trabalho, mas nega-se a si mesmo, não se sente bem,
mas infeliz, não desenvolve livremente as energias físicas e mentais, mas esgota-se
fisicamente e arruína o espírito. Por conseguinte, o trabalhador só se sente em si fora
do trabalho, enquanto no trabalho se sente fora de si. Assim, o seu trabalho não é
voluntário, mas imposto, é trabalho forçado. Não constitui a satisfação de uma
necessidade, mas apenas um meio de satisfazer outras necessidades. O seu caráter
estranho ressalta claramente do facto de que ele não é o seu trabalho, mas o de outro,
no facto de que não lhe pertence, de que no trabalho ele não pertence a si mesmo,
mas a outro. [...] a atividade do trabalho não é a sua atividade espontânea. Pertence a
outro e é a perda de si mesmo. Chega-se à conclusão de que o homem (o
trabalhador) só se sente livremente activo nas suas funções animais − comer, beber e
procriar, quando muito na habitação, no adorno, etc. − enquanto nas funções
humanas se vê reduzido a animal. O elemento animal torna-se humano e o humano
animal. Comer, beber e procriar, etc., são também certamente genuínas funções
humanas. Mas, abstractamente consideradas, o que as separa da restante esfera da
actividade humana e as transforma em finalidades últimas e exclusivas é o elemento
animal.
Sob a égide da alienação pelo, no e do trabalho no modo de produção capitalista
ocorre a fragmentação do sujeito, de sua razão, de suas espacialidades, de seu mundo e,
portanto, de seu objeto. Verifica-se o papel da metafísica, enquanto arquitetura de pensamento
276
No meu entender, humanização pelo e para o capital, para o outro, portanto, alienação no sentido marxista. É
importante salientar que inexiste processo de desumanização, pois nenhum processo evolutivo retrocede.
“Também na biosfera a evolução é estatisticamente irreversível. Ao contrário da mutação pontual (reversível), a
evolução biológica, como exemplo a diferenciação das espécies, é fruto de múltiplas mutações independentes,
sendo por isso mesmo um processo irreversível. [...] Segundo a teoria da evolução biológica, a hipótese de um
grupo de organismos fazer marcha para trás numa determinada via evolutiva já encetada, e assim voltar a reviver
estados anteriores, é expressão de uma pura impossibilidade.” (BRANCO, 1989, p. 213). É importante esclarecer
que Marx (1993) usava o termo desumanização enquanto processo resultante da negatividade do trabalho
alienado. Como vimos, para Marx, o trabalho, enquanto ação, humaniza os seres humanos. Em contraposição, o
trabalho, em sua negatividade e enquanto atividade alienadora, “desumaniza” pelo fato de negar a possibilidade
de construção do humano no ser humano. A perspectiva marxista não defende a existência de processos de
retroação; o que se afirma é que a identidade do ser humano somente se realiza por meio do trabalho, processo
esse fundado na aprendizagem. Por isso, Marx (1993, p. 174) defende a tese de que “A produção não produz
unicamente o homem como uma mercadoria, a mercadoria humana, o homem sob a forma de mercadoria; de
acordo com tal situação, produ-lo ainda como um ser espiritual e fisicamente desumanizado... Imoralidade,
deformidade, hilotismo dos trabalhadores e capitalistas... O seu produto é a mercadoria autoconsciente e activa...
a mercadoria humana...”.
Capítulo 3 207
Ângela Massumi Katuta
277
De Lewis Carrol (2002).
278
Necessariamente desterritorializado de acordo com Deleuze e Guattari (2002), o que implica sempre uma
territorialização alienada.
Capítulo 3 208
Ângela Massumi Katuta
279
Para Piaget e Inhelder (1993, p. 470) a ordem de sucessão genética das noções de espaço é paralela à ordem
da construção axiomática da geometria, pois: “[...] as relações topológicas precedem nos dois casos as estruturas
projetivas e euclidianas e estas últimas encontram-se, nos dois casos; em situação de equivalência do ponto de
vista da complexidade de suas noções iniciais.”
280
É importante ressaltar aqui que entendo a metafísica como um habitus revelador do posicionamento do sujeito
em relação ao conhecimento e em relação às coisas do mundo. A postura metafísica frente ao conhecimento deve
ser entendida como uma prática em relação à vida entre as várias possíveis. É Lefebvre (1991, p. 52) quem
permite a elaboração dessa afirmação, ao caracterizar os metafísicos: “[...] Não é de excluir, ademais, que sua
atitude comporte certas conseqüências práticas em sua maneira de viver: por exemplo, uma certa distração, um
certo desprezo pela vida concreta, um desinteresse pelos problemas humanos, uma falta de capacidade para
imaginar os sofrimentos e aspirações dos demais seres. O fato é que sempre subsiste um hiato entre sua teoria e
sua prática. Sua teoria não pode passar à prática, ou só pode indiretamente, inconscientemente. A metafísica
consiste sempre de uma teoria desligada da prática, sem unidade com a prática, sem ligação direta e consciente
com a mesma. A metafísica encontra seu domínio favorito da vida real, nas nuvens, num além do mundo físico
(que é o sentido mesmo da palavra ‘metafísica’), num ‘aquém-mundo’ [...] que serve indubitavelmente para
depreciar o mundo real e seus problemas vivos.”
Capítulo 3 209
Ângela Massumi Katuta
− no caso das ciências humanas, os próprios seres humanos −, a ancoragem desse pensamento
à metafísica. Termo esse usado com diferentes acepções 281 , o que evidencia uma efetiva
preocupação com o mesmo por parte da civilização grega, judaica e cristã, da qual somos
herdeiros diretos.
É importante relembrar que o termo metafísica está sendo usado no sentido empregado
por Lefebvre (1991) em sua obra Lógica Formal/Lógica Dialética, como já esclarecido no
Capítulo 1. Isso pelo fato de o autor explicitar, objetivamente, o fundamento primordial −
cisão ou ruptura entre sujeito e objeto −, que auxilia a esclarecer os problemas relativos aos
processos de ensino e aprendizagem de saberes dos geográficos hegemônicos, ancorados no
habitus metafísico, por meio do qual tem atuado uma grande parcela da escola formal e dos
sujeitos que nela trabalham.
Pode-se afirmar que a existência de inúmeros modelos de ser humano, um para cada
ciência específica − um ser humano para cada especificidade, ou olhar, raciocínio biunívoco
por excelência −, acaba por revelar a ancoragem da mesma aos ideais metafísicos, habitus
este característico da cosmologia ocidental hegemônica, no qual foi tecida a concepção de
cientificidade predominante.
Com a cisão metafísica 282 entre os elementos que tornam possível o conhecimento − o
sujeito e o objeto −, cria-se, segundo Lefebvre (1991, p. 50), o problema do conhecimento,
pois o habitus metafísico de pensamento separa o ser − alma espírito, res cogitans −, da
281
Ver as várias acepções ou jogos de linguagem, nos quais esse termo é utilizado no Dicionário básico de
Filosofia de Japiassú e Marcondes (1996) e no Dicionário Oxford de filosofia de Simon Blackburn (1997), ou
em qualquer outro material. Todos eles demonstrarão a polêmica histórica existente em torno das idéias
metafísicas quando do uso desse termo e o seu progressivo abandono, principalmente de sua face idealista por
muitas teorias. Fato esse que evidencia o esgarçamento desse tecido de racionalidade e o necessário abandono do
mesmo, se o intuito for avançar no sentido da busca por um conhecimento mais congruente com a realidade.
282
A meu ver, expressão hodierna do que Bourdieu (1997, p. 200 et seq.) denomina de scholastic view, ponto de
vista escolástico. Construído no contexto específico de universos sociais, econômicos e espaço-temporais, como
é o campo da produção cultural (campo jurídico, científico, artístico, filosófico, entre outros), cujas origens
remontam ao Medievo, mas que possui existência até hoje. Neste campo estão engajados agentes que adquiriram
o privilégio de lutar pelo monopólio do universal, contribuindo para reproduzir verdades e valores tidos, em cada
momento, como universais e eternos. O referido autor define, da seguinte forma, o ponto de vista escolástico:
“[...] Trata-se de um ponto de vista muito específico sobre o mundo social, sobre a linguagem ou sobre qualquer
objeto do pensamento, que se tornou possível graças à situação de skholé, de lazer, da qual a escola − palavra
também derivada de skholé − é uma forma especial, como situação institucionalizada de lazer estudioso. A
adoção desse ponto de vista escolástico é o preço de entrada tacitamente exigido por todos os campos do saber:
a disposição ‘neutralizante’ (no sentido de Husserl), que implica suspender qualquer tese sobre a existência e
qualquer intenção prática, é a condição − pelo menos igual à posse de uma competência específica − de acesso
ao museu e à obra de arte. É também a condição do exercício escolar como jogo gratuito, experiência mental,
que é um fim em si mesmo” (BOURDIEU, 1997, p. 50). A sobrevivência deste habitus voltado à eternização e
universalização de determinados saberes, que é sempre erigido no contexto da diferencialidade das classes
sociais, é expressão da hegemonia de algumas delas nos campos de produção econômica e simbólica.
Capítulo 3 210
Ângela Massumi Katuta
natureza − corpo, mundo, physis 283 , res extensa. Assim procedendo, o conhecimento deixa de
ser um fato 284 , para se tornar um problema insolúvel. Como relacionar duas realidades
definidas ontologicamente como sendo uma exterior à outra e uma sem a outra? Como
entender os espaços definidos ontologicamente como sendo exteriores a quem os produz,
retirando os do contexto das relações sociais que os engendram?
[...] Muitos metafísicos raciocinam do seguinte modo: ‘O sujeito do conhecimento, o
ser humano, é um indivíduo consciente, um eu; que é um eu? É um ser consciente de
si e, portanto, fechado em si mesmo. Nele, não pode haver senão estados subjetivos,
estados de consciência. Como poderia sair de si mesmo, transportar-se para fora de
si a fim de conhecer uma coisa diversa de si? O objeto, caso exista, está fora do seu
alcance. O pretenso conhecimento dos objetos, a própria existência destes, não são
mais que ilusão...’. (LEFEBVRE, 1991, p. 50-51).
O impacto das concepções metafísicas nas práticas educativas e, especificamente, no
trabalho pedagógico docente e nos processos de ensino e aprendizagem, sejam eles formais ou
não-formais, tem sido significativo, pois a cisão sujeito-objeto passa a ser (re)produzida junto
aos sujeitos sociais envolvidos nos processos educativos, alienando-os. As práticas educativas
formais, ao contrário de serem pensadas e organizadas a partir de objetivos pedagógicos
fundados no movimento do conhecimento, se realizam em si e per si, estancam na
generalidade como se os universos de existência do sujeito e do objeto do conhecimento
fossem autônomos.
É importante esclarecer que o problema não é o processo de generalização e abstração
dos saberes, necessários ao estabelecimento de racionalidades, ponto de partida e de chegada
do infinito movimento próprio do conhecimento. O que se quer aqui evidenciar, como bem
nos alertou Lefebvre (1991), é que a generalização e a abstração se tornam um problema
apenas quando da separação entre o sujeito e o objeto do conhecimento. É neste contexto que
283
Em um sentido aristotélico: essência das coisas que possuem uma fonte de movimento própria, princípio de
crescimento e mudança, cujo funcionamento foi estabelecido por um criador. Esse ponto de vista alimenta a tese
do motor imóvel, fundamento da crença de que as coisas possuem um princípio que lhes é inerente, por meio do
qual são levadas a realizar suas potencialidades, transformando-se naquilo que faz parte de sua natureza, de sua
ontologia que, no contexto desse pensamento, possui existência a priori. (BLACKBURN, 1997, p. 150-151). O
mundo torna-se, nesta perspectiva, uma espécie de criptograma a ser decodificado e lido, por meio da linguagem
matemática, elemento-chave para a decifração do mundo. É importante atentar aqui para a ligação direta entre a
idéia de physis aristotélica, retomada, traduzida e, portanto, (re)criada pelos homens de ciência no Medievo e na
Renascença e a possibilidade de, por meio dessa produção simbólica, justificar a existência de Deus, bem como
de entender a mensagem deste para os homens, por meio da leitura da natureza. O parágrafo escrito por Galileu,
atesta essa relação: “A filosofia está escrita nesse grande livro, o universo, que se abre permanentemente diante
de nossos olhos, mas o livro só pode ser compreendido se primeiro aprendermos a compreender a linguagem e a
ler as letras de que se compõe. Ele está escrito na língua matemática, e seus caracteres são triângulos, círculos e
outras figuras geométricas, sem os quais é humanamente impossível entender uma só de suas palavras; sem eles,
fica-se vagando por um labirinto tenebroso.” (GALILEO, 1957, p. 237-238, apud CROSBY, 1999, p. 222).
284
Que nos diferencia de outros seres vivos (p. 20) e de essencial importância para todos os seres humanos,
afirmação essa facilmente verificável por meio da capacidade de sobrevivência que os mesmos têm apresentado,
pelo menos até os dias de hoje, em relação às outras espécies vivas (p. 29). (ELIAS, 1998b).
Capítulo 3 211
Ângela Massumi Katuta
esse último se torna um problema, principalmente para os sujeitos que atuam nas instituições
formais de ensino.
No contexto da metafísica instaurada entre o sujeito e o objeto, opera-se
pedagogicamente a partir do seguinte entendimento: o objeto, em sua generalidade e abstração
é exterior ou externo ao sujeito, daí ser o mesmo para todos os sujeitos sociais. Assim, nos
processos de ensino cabe ao professor descrever ou apresentar os conhecimentos abstraídos
aos alunos, que devem apreendê-los e retorná-los nos processos avaliativos, a fim de
comprovarem o “aprendizado”. É justamente nesse contexto epistemológico-pedagógico que
o conhecimento se torna um problema. A zona de desenvolvimento proximal estanca porque
estanque foi o processo de ensino, incapaz de fazer a ligação entre o desenvolvimento
cognitivo real e o potencial para um dado saber.
Da mesma maneira como ocorrem com os processos de ensino e aprendizagem, as
reflexões pedagógicas fundadas no habitus metafísico pouco ou em quase nada podem
auxiliar no repensar dos processos educativos, isso porque se constituem em abordagens que
promovem a cisão e o estancamento dos elementos do conhecimento, propondo saídas que
tendem para o tecnicismo em educação, dada a centralidade de sua abordagem em técnicas,
metodologias e instrumentos de ensino, expressões de um fazer docente descontextualizado
em relação às práticas humanas historicamente tecidas.
O que aqui se quer destacar não é a irrelevância dos aspectos que denomino de
instrumentais da prática docente, que possuem a sua devida importância nos processos
educativos. Contudo, há de se reconhecer que grande parte dos chamados “problemas” de
ensino e aprendizagem na escola formal é de ordem epistemológica, oriundos da cisão
metafísica entre sujeito e objeto.
No caso específico do ensino da geografia hegemônica, ao estancar na generalidade e,
portanto, enfatizar as relações espaciais euclidianas e projetivas, a referida disciplina acaba
por auxiliar na (re)produção do espaço para o capital, na medida em que auxilia no processo
de subjetivação capitalística, assumindo como espaço, espacialidades e territorialidades
passíveis de entendimento apenas aqueles tecidos sob a égide do capital. Não por acaso,
desconhecemos as geografias de outros povos, apesar de alguns antropólogos 285 , nos quais se
basearam Vygotsky e Luria (1996, p. 122), indicarem que a geografia dos grupos sociais
primitivos 286 é muito mais rica que a dos ocidentais 287 .
285
Entre os mais citados figura Lévy-Bruhl.
286
Vygotsky e Luria (1996, p. 96) utilizam esse termo em sentido relativo. Entendem que a primitividade “[...] é
o estágio mais baixo e o ponto mais baixo e o ponto de partida do desenvolvimento histórico do homem.”
Capítulo 3 212
Ângela Massumi Katuta
Somente neste sentido, segundo os mesmos autores, é que esse termo pode ser empregado, pois todos os grupos
humanos parecem possuir um grau maior ou menor de civilização.
287
Os autores elaboraram esta conclusão a partir de estudos sobre a linguagem nas sociedades primitivas. Essas
pesquisas demonstraram que nesses grupos sociais as palavras não se diferenciam dos objetos, continuando
intimamente ligadas às percepções sensoriais imediatas. “[...] No sul da Austrália, cada cadeia de montanhas
bem como cada montanha possui seu nome próprio. O nativo pode dizer precisamente o nome de cada uma das
distintas colinas, resultando assim que a geografia do homem primitivo é muito mais rica do que a nossa.”
(LÉVY-BRUHL, apud VYGOTSKY; LURIA, 1996, p. 122).
288
Com isso, não estou a defender que a descrição não seja relevante na construção dos saberes. Ela é um dos
momentos imprescindíveis ao conhecimento que, para se realizar, não deve nela estancar.
289
Obviamente que no contexto do habitus metafísico de pensamento nunca terão, isso porque o objeto é pré-
construído e não expressa as relações do sujeito no e com o mundo ou sua práxis.
290
Com essa afirmação não defendo que esses aspectos não sejam relevantes na prática docente. Estou querendo
chamar a atenção para o fato de que o processo de escolarização pouco tem auxiliado na construção dos saberes
geográficos discentes. Apesar de o conteúdo do saber ser social e espaço-temporalmente construído, esse
somente se realiza no contexto da individualidade dos sujeitos, daí a necessidade do estabelecimento de relações
pedagógicas menos alienadas. A construção de racionalidades sobre as espacialidades humanas faz-se necessária
enquanto movimento de ruptura com o habitus metafísico e pode auxiliar na construção da identidade e
racionalidade dos sujeitos.
Capítulo 3 213
Ângela Massumi Katuta
sobrevivência, tem sido um dos aspectos mais eficientes da aprendizagem escolar. Será que a
lição não poderia ser outra?
Na razão hegemônica, prioriza-se o objeto em detrimento dos sujeitos, concebidos
como seres individuais a-históricos, separados do objeto. Dessa forma, sujeito e objeto
acabam ganhando existência em si e per si, funda-se a crença na independência de ambos,
como se os mesmos não fossem expressões do conjunto da sociedade e das mediações,
tensões, contradições e relações por ela e nela historicamente estabelecidas e vivenciadas.
A cisão metafísica entre o sujeito e o objeto é perniciosa, pois fica aberta a
possibilidade da crença na existência ontológica de uma realidade à parte do sujeito e na
existência de sujeito(s) independente(s) do(s) objeto(s). Conseqüentemente, no contexto dessa
relação cognitiva, ao sujeito individual está destinado o papel de ser o decifrador de uma
verdade ou realidade, aqui concebida como sendo externa a ele, cujas estruturas devem ser
decodificadas pela razão e pelas linguagens hegemônicas. Esse posicionamento frente ao
saber é expressão da crença judaico-cristã no dogma do conhecimento do mundo enquanto
revelação, que foi resgatada, transmutada e reforçada pela ordem burguesa, dado que a mesma
vinha ao encontro da necessidade de sua reprodução social.
A razão ocidental hegemônica reificou o objeto e a própria razão, concebendo essa
última como universal, resultante de um padrão predeterminado pela natureza humana,
entendimento este proveniente da transposição do habitus de cientificidade hegemônico,
construído a partir das formulações das ciências naturais e exatas. A crença na exatidão das
leis da natureza é expressão da direção tomada pelo processo civilizador, cujo tecido social foi
lentamente urdido durante séculos a fio, e no nosso caso, pelo menos desde a civilização
greco-romana.
Considerando o exposto, é possível afirmar que, ao longo da saga humana no planeta,
diferentes sociedades teceram as mais diversas formas de ordenação da experiência 291 e do
espaço. Os fundamentos lógicos dos meios de orientação ou dos conhecimentos, como
adequadamente afirmam Vygostsky e Luria 292 (VYGOTSKY, apud LURIA, 1986, p. 20-21)
na epígrafe do presente item, não devem ser procurados nas características “naturais” ou
inatas dos seres humanos, ou nas coisas em si, entendidas sob a égide da metafísica como
universais, mas nas razões práticas, nas condições externas engendradas para e por meio das
291
Elias (1998b) em sua obra intitulada Sobre o Tempo, realiza um exercício de análise extremamente profícuo
em direção à confirmação dessa idéia. Ao estudar as transformações históricas da ordenação das experiências
humanas no que se refere à noção de tempo, o autor põe em xeque muitas teses aprioristas que pregam a
universalidade de determinadas noções como a de tempo.
292
Bem como Pierre Bourdieu, Norbert Elias e Cornelius Castoriadis em várias de suas obras.
Capítulo 3 215
Ângela Massumi Katuta
relações sociais inseridas nos modos de produção que, dependendo do ângulo de visada da
análise, pode apontar ou delinear as tendências gerais tomadas pelo processo civilizador 293 .
Eis o divisor de águas entre o olhar metafísico que separa o sujeito do objeto e um outro que
tenta apreendê-los em suas relações, tensões, movimento e contradições a partir das práxis
humanas.
Considerando-se o exposto, pode-se afirmar que, para o retorno d’O Estrangeiro, faz-
se necessário romper com o habitus inerente ao pensamento metafísico, para se (re)construir
um olhar sobre o mundo menos substancialista e, conseqüentemente, metafísico em relação
aos processos de conhecimento, a fim de romper com a tendência hegemônica no ensino da
geografia, bem como com sua noção de ser humano e de mundo.
É importante esclarecer que a presente reflexão tem como fundamento e conseqüente
desdobramento a defesa da idéia de que trabalho, pensamento, linguagem, memória,
percepção e construção de conhecimentos são processos ontologicamente interdependentes 294
que compõem um mesmo processo de conhecimento especificamente humano, cuja função
primordial sempre foi a de servir de meio de orientação, que tem garantido a sobrevivência
dos seres humanos anatomicamente modernos pelo menos até os dias de hoje. Daí a
necessidade da constituição de abordagens menos fragmentadas dos atos de conhecimento nos
processos educativos.
A meu ver, a perspectiva vygotskiana possibilita a elaboração de respostas ao
problema colocado, por ter como fundamento uma concepção de ser humano triádica, ou seja,
assume como característica humana o fato de sermos, ao mesmo tempo, seres biológico,
social e individual. Essa característica é, via de regra, negada pela geografia ensinada e muitas
vezes pelas mais variadas disciplinas escolares e ciências que procuram entender os processos
educativos e de aprendizagem.
Em uma perspectiva vygotskiana, são as necessidades materiais que motivam o
desenvolvimento do pensamento e comportamentos humanos. Por isso, o autor defende que:
293
Um processo civilizador, para Elias (1994a, p. 246), é um processo de longo prazo, que envolve estruturas
sociais e de personalidade. Por meio desse conceito o autor atesta a existência de uma estrutura particular de
relações humanas, de uma estrutura social peculiar e de correspondentes formas de comportamento (p. 73).
Contudo, o mesmo nos alerta para o fato de um processo civilizador não seguir uma linha reta. Por meio de
estudos do mesmo, numa escala espaço-temporal mais ampla, pode-se verificar sua tendência geral; contudo, em
uma escala menor, pode-se observar que os mais diversos movimentos que se entrecuzam produzem mudanças
ou surtos numa ou noutra direção (p. 185). Por isso, é preciso que o pesquisador tenha clareza da escala de
análise espaço-temporal com a qual vai lidar, inclusive para que não tome as flutuações de uma breve escala por
tendência geral e vice-versa.
294
A fim de romper com os dualismos ontológicos − sujeito e objeto, causa e efeito −, próprios de determinadas
tradições metafísicas, Elias (1998a, p. 170) defende a idéia de que toda a existência dos seres humanos está
atrelada ao mundo; resulta desse entendimento a existência de uma interdependência básica entre ambos, ou seja,
ontológica e existencial.
Capítulo 3 216
Ângela Massumi Katuta
295
Um dos mais antigos deuses de Roma, de origem indo-européia, possui dois rostos contrapostos, um no verso
do outro. Segundo Chevalier e Gheerbrant (1999, p. 512), é um deus das transições, das passagens, “[...]
marcando a evolução do passado e do futuro, de um estado a outro, de uma visão a outra, de um universo a
outro, deus das portas.” Preside aos começos e é também considerado o guardião das portas. Tomei emprestada
as metáforas construídas em torno de Jano, para chamar a atenção de que o entendimento do humano no ser
humano supõe a necessária construção de um olhar que avance para além de uma visão cindida − a do espelho,
da cientificidade do século XVII −, para outra mais congruente com o real. Assim, se faz necessária a revisão, a
releitura de eventos passados, a fim de construirmos um entendimento outro do presente. A mudança de visão se
faz necessária porque poderá nos possibilitar a construção de outros fundamentos para o trabalho na sala de aula.
296
Obra já citada de Lewis Carrol (2002).
297
É importante salientar que as periodizações são aproximadas, dado que a exatidão em relação a
acontecimentos tão pretéritos, pelo menos até o momento, é impossível de ser alcançada.
298
Engloba o Período entre 150 a 10 mil anos, que se estende desde o início da terceira glaciação (Riss/Würn) até
o final da glaciação de Würn. Caracterizado por ter “[...] um clima bastante instável, com fases úmidas, de
chuvas pesadas, e com períodos de glaciações intercalados de períodos de seca.” (MARCONI; PRESOTTO,
1986, p. 69). O avançar e recuar das geleiras marcaram mudanças climáticas significativas, afetando assim,
concomitantemente, a vida na Terra e as características ambientais dos lugares. Há indícios de que no
Pleistoceno Médio e Superior, existiram pelo menos oito ciclos de glaciação-interglaciação, com ocorrência de
inúmeras oscilações menores, “[...] com fases nítidas de frio durante os períodos interglaciais, chamados estádios
e fases de aquecimento durante os períodos glaciais chamados interestádios.” (MITHEN, 2002, p. 48). O que
significa dizer que as condições climáticas hodiernamente características do Pólo Norte se estenderam e
recuaram várias vezes para o interior da Europa, Ásia e América do Norte. Apesar de o gelo não ter atingido a
África, determinou em muitos locais desse continente fases muito úmidas de grande pluviosidade alternadas de
secas. Face a essas instabilidades climáticas, o processo de seleção natural atuou intensamente entre os seres
vivos que emigraram ou extinguiram-se, adaptaram-se, evoluíram ou desapareceram.
Capítulo 3 218
Ângela Massumi Katuta
modernos 299 , que habitaram inicialmente o leste africano 300 . Em algumas ocasiões,
sabidamente aquelas que reuniram piores condições materiais de sobrevivência para espécies
com determinadas características, os Homo Sapiens Sapiens chegaram próximos da extinção,
por se constituírem em uma espécie fisicamente mais frágil, se comparados aos outros
hominídeos, principalmente aos neandertalenses 301 . Apesar do risco de extinção, conseguimos
superar inúmeras adversidades, o que é facilmente comprovado pelo fato de ainda termos,
pelo menos até hoje, em números absolutos, uma taxa de crescimento mundial em contínua
elevação.
É sabido que outros hominídeos − Homo Sapiens de Neandertal −, cujos vestígios
datam de aproximadamente 150 a 30 mil anos atrás, viveram na mesma ocasião que nossos
ancestrais. Verificou-se que os seres humanos anatomicamente modernos habitaram
praticamente os mesmos locais onde viviam os neandertalenses: Europa, Oriente Médio, Ásia
e África. Apesar da coexistência espaço-temporal durante um tempo relativamente longo, até
hoje ainda não foram encontradas evidências da existência do estabelecimento de relações
sociais entre ambos e, especificamente, nem de miscigenação, muito menos de conflito.
Olson S. (2003, p. 15) descreve a distribuição territorial e os processos migratórios de
nossos ancestrais, os Homo Sapiens Sapiens, da seguinte forma:
[...] Há cerca de 100.000 anos, os humanos modernos tinham se espalhado para o
norte ao longo do vale do Nilo e atravessado a península do Sinai para chegar ao
Oriente Médio. Há mais de 60.000 anos, ocuparam o litoral da Índia e do sudeste
asiático e navegaram até a Austrália. Há 40.000 anos, os humanos modernos
chegaram à Europa e ao Extremo Oriente. Finalmente, há pouco mais de 10.000
anos, atravessaram uma planície que ligava a Sibéria ao Alasca e se espalharam pela
América do Norte e do Sul.
O fato de termos convivido durante um certo tempo com outros hominídeos cujos
ancestrais nos era comum, somado ao de que fomos os únicos do gênero Homo a ter
299
Aqueles que possuem características anatômicas semelhantes às nossas. Existe todo um conjunto de medidas
antropométricas que as especificam, elaboradas pela antropometria mas desnecessárias no contexto da presente
reflexão.
300
Estou adotando a hipótese atualmente a mais aceita conhecida como africana, que defende uma origem única
de todos os seres humanos anatomicamente modernos na África. O fundamento da mesma reside nos resultados
de testes realizados com o DNA presente nas mitocôndrias e com os cromossomos Y, que apontam para uma
única origem africana dos seres humanos anatomicamente modernos. Outra hipótese, atualmente menos aceita,
conhecida como multirregionalismo, defende que os humanos constituem uma única espécie desde o
aparecimento do gênero Homo, há quase dois milhões de anos. Os vários humanos que se espalharam pela Ásia e
Europa são considerados como subespécies ou raças, que cruzaram e evoluíram até se transformarem nos seres
humanos anatomicamente modernos. Assim, segundo essa teoria, “[...] os africanos descendem em parte do
Homo sapiens arcaico que viveu na África, os asiáticos descendem em parte do Homo erectus, que viveu na
Ásia, e os europeus descendem em parte do homem de Neandertal, que viveu na Europa.” (OLSON, S., 2003, p.
37).
301
Para Mithen (2002), suas características anatômicas são adaptações à vida em ambientes glaciais −
compleição robusta, corpulento e musculoso, com pernas curtas e peito bojudo. “[...] Ao que parece, os
neandertais teriam sofrido por consideráveis ferimentos e doenças degenerativas, que provavelmente refletem
um estilo de vida de grandes exigências físicas.” (MITHEN, 2002, p. 40).
Capítulo 3 219
Ângela Massumi Katuta
sobrevivido até os dias de hoje, nos remete diretamente à seguinte questão: que características
nos auxiliaram no processo de luta pela nossa sobrevivência enquanto espécie? Ou de outra
forma: Por que os outros hominídeos desapareceram e conseguimos sobreviver? É tentando
elaborar respostas a essas questões que poderemos vislumbrar o humano no ser humano e,
portanto, a sua especificidade em um dado contexto socioespacial, elemento diretamente
responsável, pelo menos até os dias de hoje, pela nossa sobrevivência.
É importante salientar que as características dos objetos e dos seres não devem ser
compreendidas de maneira absoluta, como se fossem universais e atemporais. A especificação
das mesmas dependerá das relações que os sujeitos sociais estabeleceram com o mundo. Daí
as características de um objeto necessariamente expressarem as relações dos seres humanos
com o mundo. A própria Ciência e o desenvolvimento de conhecimentos científicos no
Ocidente têm demonstrado que o conhecimento de um objeto não se realiza nos seres
humanos de maneira absoluta, depende em grande parte do processo civilizador inerente a um
modus vivendi. Além disso, verifica-se também que os paradigmas não são definitivos, estão
em estado contínuo de vir a ser.
Como é dito na Dialética da natureza, o mundo existe como progresso infinito [...]
de conversão contínua das formas de movimento, pelo que só podemos apreender
através do recurso a leis históricas não-definitivas. Conhecer a realidade objectiva da
natureza significa conhecer a natureza tal como ela é: como matéria em movimento.
Não se trata de conhecer algo que é, mas sim algo que está sendo; pressupõe-se uma
extensão contínua da apropriação humana das diferentes formas de movimento em
permanente conversão. (BRANCO, 1989, p. 108-109).
A reflexão sobre características especificamente humanas não deve ser aqui entendida
enquanto debate sobre o universal no ser humano ou sobre as características inerentes a todos
os seres humanos, mas como reflexão sobre um conjunto de diferencialidades que os têm
diferenciado dentre os outros elementos da natureza, auxiliares no seu processo de
sobrevivência desde o Paleolítico Superior, há muitos mil anos.
Lewis (1987, p. 50 et seq.) afirma que antes da emergência do Homo sapiens 302 , ou
seja, entre 500 e 150 mil anos atrás, as capacidades de transmissão e recepção de informações
302
O termo Homo Sapiens ou de Neandertal refere-se a um grupo de indivíduos assemelhados em relação ao
esqueleto cuja existência data da Glaciação de Würm, no Pleistoceno Superior, há 150 mil anos. Esses são o
resultado de uma lenta e crescente evolução física e cultural, iniciada com o Australopithecus ramidus e
anamensis − há quatro milhões de anos e meio. Os homo mais antigos − habilis, rudolfensis e ergaster − datam
de dois milhões de anos. Foram encontrados indícios da existência do Homo Sapiens nos locais atualmente
conhecidos com a seguinte denominação: Europa − Alemanha, França, Bélgica, Itália, Espanha, Iugoslávia e
Rússia; Ásia − Iraque, Israel, China e Java; África − Marrocos e Gâmbia. Esta territorialidade tem relação íntima
com as características climáticas, seus desdobramentos e movimentos no período, caracterizado por clima
instável − fases úmidas, com períodos de glaciações, intercalados de períodos secos. Os períodos interglaciares,
mais quentes, foram mais longos do que os glaciares. Nas fases interglaciais, a flora e a fauna sofreram
alterações, animais, fontes de proteína para alguns grupos de hominídeos, espalharam-se para longe das regiões
equatoriais, chegando ao norte da Europa. Nessa área, assim como no norte da América, com o progressivo
Capítulo 3 220
Ângela Massumi Katuta
aquecimento, começaram a surgir florestas, indício de condições materiais de vida menos rigorosos. O avanço e
recuo das geleiras no interior da Europa, Ásia e América do Norte obviamente afetaram o clima, a distribuição
das águas superficiais, a vida animal e vegetal da Terra. Face às instabilidades do período, muitas formas
animais e vegetais extinguiram-se, migraram e se dispersaram, como foi o caso de muitos hominídeos, cuja
distribuição espacial foi explicitada. Para saber mais detalhes sobre o Período, ver Marconi e Presotto (1986) e
Mithen (2002).
303
Segundo Harry Jerrison, da Universidade da Califórnia, “[...] durante o último quarto de bilhão de anos, o
sistema nervoso dos mamíferos, ao se adaptar ao ambiente, evoluiu para analisar e organizar as informações
recebidas pelos sentidos de tal forma que o mundo conhecido se tornou um mundo de objetos distintos e
permanentes em um espaço e um tempo ampliados. Os mamíferos, e os humanos portanto, só vêem e podem ter
sentido do mundo segundo essa estrutura.” (SZAMOSI, 1988, p. 10).
304
Para um melhor detalhamento sugiro a leitura de Mithen (2002) e Olson S. (2003).
305
Segundo Vygotsky e Luria (1996, p. 164), ambientes distintos acarretam diferenças significativas na estrutura
da mente, tese elaborada a partir de inúmeros dados da psicologia de crianças e de adultos provenientes de
grupos sociais os mais variados estudados por Lévy-Bruhl.
Capítulo 3 221
Ângela Massumi Katuta
306
Grifo da autora.
307
Szamosi (1988, p. 61); Marconi; Presotto (1986, p. 79).
308
Segundo Cavalli-Sforza (2003, p. 87), “[...] chipanzés e gorilas conseguem aprender a usar apenas trezentas
ou quatrocentas palavras, e mesmo isso exige esforço especial e comunicação não oral, pois não são capazes de
articular a língua e a faringe para produzir sons comparáveis aos nossos. O vocabulário de um ser humano médio
é no mínimo dez ou vinte vezes maior, e pode chegar a 100 mil palavras ou mais.” Verifica-se pelo exposto que
possuir capacidade simbólica não se caracteriza enquanto capacidade humana, outros animais a possuem, o que
evidencia que, ao contrário do que muitos cientistas das ciências humanas afirmam, fazemos parte da natureza,
apesar de termos nossas especificidades, assim como qualquer outro elemento. Não somos seres especiais como
acreditam muitos, criados por uma entidade com um projeto subjacente à nossa existência; possuímos
características específicas, assim como qualquer outro objeto da natureza.
Capítulo 3 222
Ângela Massumi Katuta
309
Atividades que outros hominídeos também realizavam.
310
Não adentrarei o complexo e infindável debate sobre o que deve ou não ser considerado como objeto artístico,
pois o mesmo supõe, na escala temporal que estou mobilizando na reflexão, a elaboração de levantamentos sobre
as transformações pelas quais passou tanto a noção de estética, quanto da própria arte, pelo fato de que as
mesmas são sempre expressões de uma sociedade. Verificou-se que em sociedades ágrafas ou naquelas onde a
especialização de funções não é tão diversificada, a maior parte das suas artes é representada sobretudo pelos
“[...] desenhos de sua cerâmica, ou entalhado de suas canoas, ou a pintura de seus escudos, e coisas análogas.”
(HERSKOVITS, 1973, p. 180). No que se refere à denominada arte pré-histórica, não podemos fazer distinção
entre um utensílio e um objeto artístico; isso somente faz sentido em sociedades como a nossa que produz
objetos especificamente artísticos. Por isso, utilizei como exemplo e referência de arte pré-histórica objetos
produzidos pelo Homo Sapiens Sapiens freqüentemente indicados como artísticos em livros de história da arte e
de antropologia cultural. Tal opção se justifica em função do foco de meu interesse, que é o de tomar os referidos
objetos como exemplos do especificamente humano nos Homo Sapiens Sapiens, em contraposição aos Homo
Sapiens ou neandertalenses que, segundo Varagnac (apud MARCONI; PRESOTTO, 1986, p. 94), “[...]
ignoraram a arte ou tiveram apenas rudimentos dela, mas deixaram vestígios de uma vida espiritual [...]”.
Capítulo 3 223
Ângela Massumi Katuta
311
Não devemos nos esquecer que quase desaparecemos em alguns períodos.
312
Amontoado de pedras na forma de cone, feito por diferentes grupos humanos para indicar lugares conhecidos,
marcos ou mesmo uma tumba.
Capítulo 3 225
Ângela Massumi Katuta
ação, ‘Am Anfang war die Tat’ 313 . E algo menos: o lugar, dito e marcado, fixado.
Assim, o Verbo não se fez carne, mas lugar e não-lugar. (LEFEBVRE, 1991, p.
34).
Parafraseando as sábias palavras de Lefebvre (1991, p. 34): no começo era o Topos,
que era e ainda é ou são “as coisas no mundo” e as “coisas do mundo” e que nele têm lugar.
Coisas olhadas, sentidas, tocadas, discernidas do não-eu, marcadas, vistas, usadas, nominadas,
denominadas, dominadas porque necessárias na e para a ação, para a sobrevivência humana, e
hoje, para a produção de excedentes por muitos para o usufruto de poucos. Das relações
dialéticas engendradas entre o Topos e as ações humanas surge a linguagem, estrutura
estruturante e estruturada, coroamento do domínio relativo dos seres humanos em relação aos
outros elementos da natureza.
Muitos estudiosos tendem a inverter o processo, defendendo a tese metafísica de que a
idéia, a linguagem, a palavra, antecede a ação, ocultando ou mesmo desconsiderando o papel
do Topos que, apesar de ser um elemento inerente à vida no planeta, inclusive a humana,
torna-se uma relação 314 muitas vezes não considerada, ou considerada de maneira invertida,
como é o caso da afirmação de Glyn Isaac (apud CAVALLI-SFORZA, 2003, p. 87-88):
Há indícios indiretos de que a linguagem humana moderna atingiu seu estado atual
de desenvolvimento cerca de 50 a 150 mil anos atrás. Como observou o arqueólogo
Glynn Isaac, as culturas paleolíticas dessa época apresentam níveis mais elevados de
diferenciação local, fato que se reflete no grande número de nomes de que os
arqueólogos lançaram mão para nomear as culturas do período. Isaac postulou que
essa maior variação cultural lítica − e as diferenças locais nas línguas e dialetos que
provavelmente a acompanhou − surgiu com aumento geral da complexidade da
linguagem. A possibilidade de se comunicar de maneira mais refinada em virtude de
as línguas serem semelhantes às modernas deve ter favorecido muito a capacidade
de exploração e colonização de nossos antepassados.
Verifica-se aqui um exemplo típico de aplicação do pensamento metafísico moderno
ao real. O dogma do verbo criador está subjacente a este entendimento. É o verbo que dá
origem aos objetos e aos processos e não a ação. Nega-se, nesta concepção, o que o ser
humano tem de humano, que é a sua capacidade de adaptação em diferentes meios, ou seja,
sua maior flexibilidade relativa.
Glynn Isaac, bem como Cavalli-Sforza têm razão ao afirmarem que as culturas
paleolíticas apresentam uma ampla gama de diferenciações locais e que essas estão refletidas
313
No princípio era a ação. Traduzido por Santos, D. (1997, p. 24).
314
Estou a defender que espaço não é algo, um objeto, um vazio cheio de objetos, coisa ou substância como a
tradição científica hegemônica nos fez crer. Foi a concepção de espaço sob a égide desta perspectiva
substancialista, − o espaço como coisa −, referendado sobretudo pelo projeto societário hegemônico, assumido
sobretudo pela Física e pelo ideal de cientificidade do século XVII que dogmatizou, legitimou e nesse processo,
tornou verdadeira ou dominante essa concepção. Espaço é relação, ou melhor, se refere a um conjunto de
relações estabelecidas entre os seres humanos e o Topos que se fez e se faz verbo na e pela ação. Daí ter as mais
distintas conotações, concepções, configurações e figurações em diferentes sociedades humanas e ser expressão
de inúmeros projetos societários, como se pode observar nos mapas apresentados no Capítulo 2. Sobre esse
assunto ver Calderán (1981), Deleuze; Guattari (2002); Ostrower (2002).
Capítulo 3 226
Ângela Massumi Katuta
na denominação das culturas do período 315 , pelo fato de que se referem aos locais onde foram
encontradas as evidências − utensílios de pedra, machados de mão, lascas, lâminas, utensílios
de madeira e osso e, posteriormente, objetos de arte e ornamento pessoal. Contudo, a maior
variação cultural lítica, bem como as diferenças locais nas línguas e dialetos surgiram com a
complexificação das relações dos pré-hominídeos e, posteriormente, dos hominídeos com o
meio ambiente.
A complexidade da linguagem é, ao mesmo tempo, expressão e instrumento do
estabelecimento de relações mais complexas dos hominídeos entre si e com o seu meio
ambiente. Não teve uma origem com um fim previamente estabelecido. É como a inteligência
humana e o próprio ser humano fruto de um longo e gradual processo de evolução, sem
objetivo ou direção predeterminados.
Assim, o Topos era o Logos que não era Deus, e que não se fez Deus, mas era o lugar,
fonte de idéias na, para e a serviço da ação, da sobrevivência, (re)produção da carne, de si e
do Outro. Explorar, olhar, conhecer, fixar, marcar, remarcar, nominar, denominar, representar:
o lugar, o não-lugar, o lugar do outro, o meu lugar, o nosso lugar, o lugar póstumo, o aqui, o
alhures, o além e o acolá. Este é o fundamento tópico da realização e da constituição de nossa
identidade e de nosso viver desde os primórdios: “Onde?” e “O que?” são perguntas que
ecoam desde que o verbo se fez lugar e não-lugar.
Considerando o exposto, pode-se afirmar que foi por meio da ação sobre o lugar e a
conseqüente transformação de suas capacidades intelectivas que o Homo Sapiens Sapiens se
diferenciou dos outros animais. Buscar uma explicação do humano no ser humano para além
das relações dialéticas entre ações humanas, lugares, temporalidades e capacidades
intelectuais implica a assunção da crença cartesiana em uma pretensa diferença existente entre
corpo e espírito, expressão de um pensamento cujo processo civilizador estava voltado para a
subjugação dos outros elementos da natureza, incluindo-se entre eles os outros seres humanos.
Na perspectiva da visão cartesiana de mundo, o ser humano, criação divina, jamais
deveria ser igualado aos animais, que foram, nesta cosmologia, criados pela divindade, por
meio do verbo, para o usufruto de seus filhos. Abordar o especificamente humano nessa
perspectiva seria retroceder à chamada Revolução darwiniana que colocou os seres humanos
em seus devidos lugares, ou seja, no Planeta Terra, juntamente com outros animais, tornando-
os pertencentes ao domínio da natureza.
315
Complexo industrial de Omo, Indústria Olduvaiense, Pré-chelence (indústria de seixos − 2 milhões a 500 mil
anos), Chelense, Abeviliense, Acheulense, Clactoniense (indústria da Lasca − entre 500 a 150 mil anos),
Musteriense, Levaloisense, Perigordiense (indústria da lâmina esquírola − entre 150 a 40 mil anos),
Aurignaciense, Solutrense, Magdaleniense (indústria foliácea − entre 40 a 10 mil anos).
Capítulo 3 227
Ângela Massumi Katuta
As modernas teorias sobre a mente humana estão a indicar que ela deve ser
considerada produto da evolução humana. Atualmente esta constitui-se na alternativa mais
viável, se comparada às abordagens metafísicas que em geral trazem, enquanto fundamento
muitas vezes não explicitado, a noção da intervenção divina. Por isso, faz-se necessária a
concordância com Cosmides e Tooby (apud MITHEN, 2002, p. 68 et seq.) que:
tratam a mente como tratamos qualquer outro órgão do corpo − é um mecanismo
evoluído, construído e ajustado em resposta às pressões seletivas enfrentadas pela
nossa espécie durante sua evolução [...] a mente humana evoluiu sob a força das
pressões seletivas enfrentadas pelos nossos ancestrais enquanto viviam como
caçadores-coletores nos ambientes do Pleistoceno [...]. Na medida em que esse
modo de vida terminou há apenas uma fração de tempo em termos evolutivos,
nossas mentes permaneceram adaptadas à caça e à coleta.
Ao defender, como Engels (1976), que a dialética é da natureza − o que equivale
afirmar que o estudo da natureza nos conduz à dialética −, Branco (1989, p. 235-236) elucida
de forma extremamente didática o processo de evolução quantitativo e qualitativo pelo qual
passaram os cérebros dos seres vivos e, entre eles, os personagens centrais do presente
trabalho. A seguir transcrevi um trecho relativamente longo da obra do autor; contudo, em
função de sua importância para o desenvolvimento da presente reflexão, optei por reproduzi-
lo quase que na íntegra:
[...] a observação da face interior do crânio dos antepassados do Homo sapiens
sapiens − australopitecos, Homo erectus, Homo sapiens neandertalensis, etc −
demonstra-nos ter havido uma notável complexificação dos vasos sanguíneos que
irrigam as meninges 316 . Este aumento substancial do número de ramificações
acompanha a variação qualitativa operada ao longo do tempo. Hoje sabe-se que não
só a irrigação como também a velocidade de circulação do sangue no interior do
cérebro desempenham papel fundamental no seu bom funcionamento como sistema
produtor de pensamento e de estados de consciência. [...] face aos efeitos do seu
funcionamento não subsistem dúvidas quanto à diferença qualitativa entre o cérebro
do rato ou até mesmo do chipanzé e o do homem moderno; no entanto, verifica-se,
ao contrário do que imaginavam alguns investigadores, uma nítida unidade
anatómica. Não há nenhum elemento fundamental que se possa dizer ser pertença
exclusiva do ser humano, isto tanto no plano macroscópico como microscópico.
Encontramos o mesmo tipo de células (‘não existe nenhuma categoria celular
própria do córtex do homem’), as mesmas formas de interligação celular, circuitos
do mesmo género, etc 317 . Onde reside então a causa dessa tão nítida diferenciação
qualitativa do seu funcionamento sem que haja recurso a elementos novos? É que,
em contraste com esta uniformidade de ‘materiais’ utilizados, verifica-se ter existido
uma evolução quantitativa, que tudo sugere estar na origem do salto qualitativo. O
316
Isto indica alteração do texto genético que pode ter ocorrido ao acaso, mas também pode ter sido provocada
por fatores provenientes do meio. “[...] a acção (comportamento) do organismo sobre o ecossistema e deste sobre
o organismo (interacção organismo/meio) é susceptível de provocar importantes mutações que virão a ser
traduzidas num processo evolutivo. Repare-se que nem o meio nem o organismo podem ser entendidos como
pólos fixos de uma relação ela própria imutável (repetitiva). Os organismos diferem entre si, nomeadamente na
sua atitude comportamental [...], e daí resulta uma enorme variedade de interacções. Nada nesta relação
bidireccional é compatível ou semelhante ao processo mecânico considerado no sentido clássico.” (BRANCO,
1989, p. 233).
317
“[...] a partir de um determinado nível evolutivo este processo de desenvolvimento deixa de corresponder ao
aparecer de genes de estrutura − em conseqüência de mutações −, passando a consistir prioritariamente no
surgimento de novas combinações. Mas a evolução não é revelação porque o realizado não esgota, nem de perto
e nem de longe, o possível.” (BRANCO, 1989, p. 235).
Capítulo 3 228
Ângela Massumi Katuta
318
Apesar da densidade média de neurônios dos mamíferos ser praticamente a mesma (146000 neurônios por
milímetro quadrado), “[...] o mesmo já não acontece no que se refere à extensão do córtex − 22 dm2 no homem
contra os 5,4 dm2 do gorila. Daqui resulta uma espantosa ruptura no plano quantitativo: salta-se dos 7800
milhões de neurónios do gorila ou dos 7100 milhões do chimpanzé para a ordem dos 30000 milhões com o
Homo sapiens sapiens. É claro que este impressionante aumento do número total de neurónios significa do
mesmo passo uma não menos espectacular alteração quantitativa do número de sinapses, que no cérebro do
homem é da ordem dos 600 milhões por milímetro cúbico! (Entre 1014 e 1015 sinapses na totalidade do córtex
cerebral).” (BRANCO, 1989, p. 237).
319
Para entender uma parte significativa das teses materialistas dialéticas à luz dos conhecimentos científicos
contemporâneos, sugiro a excelente obra de João Maria de Freitas Branco (1989), intitulada Dialética, Ciência e
Natureza: um estudo sobre a noção de ‘Dialética da Natureza’ no quadro do pensamento científico moderno.
Nela, o autor defende a tese de que a dialética é da natureza, utilizando como exemplo inúmeros estudos
elaborados pelas mais diferentes especialidades científicas.
Capítulo 3 229
Ângela Massumi Katuta
320
Utiliza como argumento conclusões a respeito da microcefalia humana. Em casos extremos, seus portadores
têm o volume cerebral alterado para níveis inferiores aos verificados em certos gorilas (600cc ou 500cc). Apesar
da sensível diminuição do quociente de inteligência, verificou-se a continuidade de uma atividade
comportamental tipicamente humana. (BRANCO, 1989, p. 238). Isso indica que o fator relevante ou
diferenciador de nosso comportamento, em relação aos outros seres do gênero Homo e aos primatas como um
todo, no caso da referida doença, reside nas interações celulares e não no surgimento de novas estruturas.
Capítulo 3 230
Ângela Massumi Katuta
321
Santos D. (1997, p. 21-23).
Capítulo 3 231
Ângela Massumi Katuta
322
As ciências cognitivas têm mapeado o cérebro humano e têm verificado que nele existem áreas especializadas
em determinadas funções; contudo, essa evidência não contradiz o que estou defendendo.
323
O estudo neurológico da consciência é uma área de desenvolvimento recente, antes da década de 1970 era um
tema quase intocável. (SACKS, 2004, p. 8).
Capítulo 3 232
Ângela Massumi Katuta
324
Sobre esse assunto ver o livro de Guattari (1998).
Capítulo 3 233
Ângela Massumi Katuta
325
Tese corroborada por Wertheim (2001, p. 222-223).
326
Como acertadamente afirmou Wittgenstein (1995, p. 114-115): “Os limites da minha linguagem significa os
limites do meu mundo. [...] Que o mundo é o meu mundo revela-se no facto de os limites da linguagem (da
linguagem que apenas eu compreendo) significarem os limites do meu mundo. O mundo e a vida são um. Eu sou
o meu mundo. (O microcosmos).”
Capítulo 3 234
Ângela Massumi Katuta
327
É interessante notar que mesmo os trabalhos de Cavalli-Sforza (2003); Mithen (2002) e Olson S. (2003), os
dois primeiros da área de genética e o último da antropologia-arqueologia, apontam para a relevância dos lugares
e suas características ambientais que forjaram o desenvolvimento de tecnologias específicas, linguagens e
costumes, o que influenciou na transformação da carga genética humana, de sua capacidade intelectiva e,
portanto, de domínio dos outros elementos da natureza.
328
Por isso, toda aprendizagem, todo processo de hominização envolve distintas espaço-temporalidades, tese
essa que se contrapõe à de universalidade intelectiva presente no conceito de fases de desenvolvimento cognitivo
criado por Jean Piaget.
329
Conceito criado por Vygotsky que coloca em relevância a aprendizagem escolar na medida em que entende
que, para além do aprendizado sistematizado, a escola produz algo fundamentalmente novo no comportamento
da criança, que é o aumento de sua capacidade de aprendizagem sob a orientação do professor ou de
companheiros mais capazes; daí a centralidade das interações sociais no contexto das teorias vygotskianas. A
zona de desenvolvimento potencial ou proximal compõe um dos níveis de desenvolvimento. O primeiro nível é
Capítulo 3 235
Ângela Massumi Katuta
denominado por Vygotsky (1991a, p. 95) de nível de desenvolvimento real, ou seja, o “[...] nível de
desenvolvimento das funções mentais da criança que se estabeleceram como resultado de certos ciclos de
desenvolvimento já completados.” Esse nível, em geral, é detectado por meio de testes. A zona de
desenvolvimento proximal é “[...] a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se costuma determinar
através da solução independente de problemas, e o nível de desenvolvimento potencial, determinado através da
solução de problemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração com companheiros mais capazes. [...] A
zona de desenvolvimento proximal define aquelas funções que ainda não amadureceram, mas que estão em
processo de maturação, funções que amadurecerão, mas que estão presentemente em estado embrionário.”
(VYGOTSKY, 1991a, p. 97).
330
Fator que possui centralidade na extração da mais valia relativa. Sobre esse assunto ver Moreira (1999).
331
Habitus em um sentido eliasino e bourdieusiano.
332
Estou tomando emprestada a noção de obstáculo epistemológico cunhada por Bachelard (1996, p. 17) que a
conceitua como conjunto de conhecimentos e hábitos de pensamento anteriores que se transformam em
empecilho ao processo de aprendizagem. Para o mesmo autor, na escola “[...] não se trata, portanto, de adquirir
uma cultura experimental, mas sim de mudar de cultura experimental, de derrubar os obstáculos já sedimentados
pela vida cotidiana.” Verifica-se por meio do entendimento bachelardiano a idéia do não estancamento do saber,
seja no plano da singularidadade, da particularidade ou mesmo da generalidade. Esta reflexão torna-se
extremamente importante no contexto do entendimento dos processos educativos, área na qual as polaridades
têm predominado, ora em favor dos saberes científicos elaborados no plano da generalidade, ora em favor dos
saberes cotidianos elaborados no plano da singularidade. É na tensão dialética entre esses planos que o
Capítulo 3 236
Ângela Massumi Katuta
generalização. Uma vez educadas, as pessoas fazem uso cada vez maior da
classificação para expressar idéias acerca da realidade.
Verifica-se, por meio da afirmação do autor, que uma linguagem não possui uma única
possibilidade de uso, o que corrobora com a idéia wittgeinsteniana de jogos de linguagem
(1995, p. 189-190); além disso, a defesa de que novas experiências e idéias modificam os usos
que as pessoas fazem da linguagem remete também à tese do mesmo autor de que essa
compõe a práxis humana (WITTGENSTEIN, 1995, p. 187).
Dessa maneira, verifica-se que o ambiente em que as pessoas vivem, em um amplo
sentido, é um elemento relevante no que se refere ao uso que fazem da linguagem, porque “Os
processos de abstração e generalização não são invariáveis em todos os estágios do
desenvolvimento socioeconômico e cultural. Pelo contrário, tais processos são produto do
ambiente cultural.” (LURIA, 1988, p. 52). É em função disso que se deve lutar pela
disseminação espacial eqüitativa dos ambientes educativos formais e não-formais; atualmente,
suas territorialidades expressam e reproduzem as desigualdades próprias de sociedades
capitalistas.
Os sujeitos sociais, ao entrarem em contato com “[...] códigos verbais e lógicos que
lhes permitem abstrair os traços essenciais dos objetos e subordiná-los a classes, seriam
também capazes de executar um pensamento lógico mais complexo.” (LURIA, 1988, p. 52).
Eis a importância da linguagem no contexto dos processos educativos e a necessidade de a
escola trabalhar com diversos códigos verbais e lógicos, principalmente em um país como o
Brasil, onde as desigualdades sociais atingem níveis absurdos, a fim de propiciar o
desenvolvimento da autonomia intelectual do educando, rompendo dessa maneira com o
processo de estrangeirização discente.
Nesta perspectiva, a reflexão sobre as matérias de ensino nas instituições escolares,
seus objetivos pedagógicos, os conteúdos a serem trabalhados, bem como sobre as linguagens
− códigos verbais e lógicos, coordenadas semióticas − a serem utilizadas torna-se
extremamente relevante a uma educação que vise à ruptura com o processo de
estrangeirização supra citado.
Segundo Olson D. (1997, p. 287), os sistemas de escrita ou de registro escrito devem
ser vistos como “[...] recursos para a comunicação visual [...] em vez de instrumentos para a
representação exata do que é dito: um objetivo que nenhuma escrita consegue alcançar. [...]
Os sinais que consistem em palavras, sílabas e letras têm cada um as suas vantagens e
desvantagens [...]”. Assim, é por meio das linguagens que os fenômenos podem ser
percebidos e racionalizados, e cada uma delas possui especificidades, vantagens e
desvantagens, sendo necessário que seus usuários, principalmente docentes, tenham
Capítulo 3 238
Ângela Massumi Katuta
consciência desse fato, a fim de que o uso das mesmas seja adequado a seus objetivos
pedagógicos.
As coordenadas semióticas ou linguagens possuem especificidades, daí capturarem ou
racionalizarem, sob diferentes aspectos, os lugares por meio de grades as mais diversas, o que
depende do tipo de trama e urdidura utilizadas em sua composição. Eis os limites e
especificidades de cada linguagem abordados por Wittgenstein (1995, p. 375) em sua obra
Investigações filosóficas, pois, segundo ele, uma forma de expressão inapropriada produz
confusão e imobilidade. Daí a necessidade de a escola trabalhar com diferentes códigos ou
coordenadas semióticas, para que seus alunos não estanquem na confusão e imobilidade,
fundamento do processo de estrangeirização e alienação discente no contexto do ensino de
geografia:
<<Assim uma pessoa que não aprendeu uma linguagem não pode ter certas
recordações?>> Certamente − não pode ter recordações verbais, não pode verbalizar
desejos ou medos, etc. 334 E recordações, etc., verbais não são apenas as
representações coçadas das experiências realmente vividas; pois não é a linguagem
também uma vivência? (WITTGENSTEIN, 1995, p. 486).
No caso específico da geografia ensinada, há de se trabalhar necessariamente com a
linguagem cartográfica. Esta, da forma como atualmente a conhecemos, é um dos
instrumentos para o entendimento da espacialidade do capital e, ao mesmo tempo, constitui-se
em exemplo de linguagem tecida no contexto da trama e urdidura demandadas pelo modo de
produção capitalista. É por isso que a análise das espacialidades produzidas sob a égide do
referido modo de produção necessita dessa linguagem; contudo, não pode nela estancar, tendo
em vista que “O capitalismo não subordinou apenas a si próprio sectores exteriores e
anteriores: produziu sectores novos transformando o que pré-existia, revolvendo de cabo a
rabo as organizações pré-existentes.” (LEFEBVRE, 1971, p. 95, apud MOREIRA, 1999, p.
54). Dessa maneira, revolveu também espacialidades, transformando-as, cooptando-as em sua
diferencialidade, tornando o espaço ocupado pelo neo-capitalismo o lugar da reprodução das
relações de produção (LEFEBVRE, apud Moreira, 1999, p. 52).
Por isso, Moreira (1999, p. 56) afirma com muita adequação que se faz necessário
polissemizar a diferença, instituir o que denomina de dialética da identidade-diferença
geográfica 335 ; daí a necessidade de “[...] rever o modo de ser representação [...], num outro
334
Lembremo-nos do personagem Fabiano criado por Graciliano Ramos em sua obra literária intitulada Vidas
Secas. A dificuldade do sertanejo de articular idéias e argumentar expressavam um não saber cujo fundamento
primordial era a falta de domínio da linguagem. (Grifo da autora).
335
“Diferença como conteúdo concreto. Não diferença como mediação da identidade, pura categoria do método
da representação [...] Sujeito que se polimorfiza com o tema da diferença. Morte do sujeito universal.
Nascimento do sujeito múltiplo. [...] Dialética do singular-plural, porque devém-revém da cadeia de reinvenções
do trabalho: do valor-trabalho, do mundo do trabalho, e, assim, dos sujeitos do trabalho. E diferenc(i)ação da
Capítulo 3 239
Ângela Massumi Katuta
forma-valor, indicativa da pluralização (não fim ou descentração) do sujeito: espaço polissêmico, porque de um
sujeito polissêmico.” (MOREIRA, 1999, p. 54).
336
É interessante notar que o entendimento de Moreira (1999) acerca da representação está muito próximo da
concepção que Lefebvre (1983) explícita em sua obra: La presencia Y la ausencia: contribucion a la teoria de
las representaciones. Ao enfatizarem o movimento no processo de conhecimento, identificam a necessidade da
dialetização dos significados que também são significantes (grade da linguagem), das identidades que são
também diferenças, da ausência que é presença, do homogêneo que é também heterogêneo: “El espacio así
concebido se define como juego de las ausencias y las presencias, representadas por la alternancia de las sombras
y de las claridades, de lo luminoso y de lo nocturno. Los ‘objectos’ en el espacio simulan la aparición y la
desaparición más profundas de las presencias.” (LEFEBVRE, 1983, p. 261). “O espaço assim concebido se
define como jogo das ausências e presenças, representadas pela alternância das sombras e claridades, do
luminoso e do noturno. Os ‘objetos’ no espaço simulam a aparição e o desaparecimento mais profundo das
presenças.” (Tradução da autora).
Capítulo 3 240
Ângela Massumi Katuta
Na geografia, muitos são os pesquisadores que têm feito esforços no que se refere à
pesquisa sobre diferentes linguagens, haja vista o aumento significativo da quantidade de
trabalhos sobre essa temática nos encontros, congressos e simpósios da área. No caso
específico da linguagem cartográfica, é importante destacar que os debates já se realizam há
algum tempo, sendo os trabalhos de Maria Elena Ramos Simielli, elaborados a partir de
1986 337 , um marco no Brasil no que se refere à reflexão e elaboração de materiais didáticos
voltados a uma cartografia especifica para o ensino básico.
As outras linguagens, se comparadas com os estudos realizados na área da cartografia
voltada para o ensino básico, necessitam de maior aprofundamento. Contudo, algumas teses já
vêem sendo defendidas. Somente a título de exemplo 338 podem ser citados os trabalhos de
Ferraz (2001, 2003), que abordam, respectivamente, a pintura, elementos da vida cotidiana
lidos a partir de rememorações proustianas, a produção fílmica; Oliveira Júnior (1999), que
aborda a linguagem filmica; Paganelli (1998), que aborda a pintura de paisagem do Rio de
Janeiro e os desenhos dos alunos da mesma paisagem; Santos D. (1997), que aborda as
concepções de espaço em mapas, na música e nos poemas.
Os trabalhos citados apreendem e compreendem as geografias e os lugares por meio
de outras grades que não as da cartografia. Isso não significa que apontem para a superação
dessa última; apenas indicam que existem outras linguagens passíveis de serem apropriadas
para que os lugares sejam compreendidos em suas múltiplas determinações. Apesar de
nutrirem relações mútuas, isso não significa que as grades dos lugares e as das linguagens
mantenham entre si correspondências biunívocas; estou partindo do pressuposto lefebvriano
de que ambas as grades:
[...] não coincidem não são idênticas, mas ambas se compõem de trajetos e
percursos, movimentos produzidos por uma ação. Ambas preenchem um tempo e
ocupam um espaço. Em ambas, vai-se de um ‘ponto’ ao outro ‘ponto’; e não
necessariamente, nem sempre, pelo caminho mais curto, porém através de uma
diversidade de caminhos, uns diretos e outros sinuosos. (LEFEBVRE, 1991, p.
33).
Dada a complexidade das relações humanas e aquelas estabelecidas pelo capital no
atual contexto, a apreensão e o entendimento das espacialidades e geografias produzidas pelos
seres humanos implicam a utilização de inúmeras grades de linguagens que nos permitam,
como afirma Moreira (1999), construir olhares para o espaço da diferença, para um espaço
337
Data de defesa de sua tese de doutoramento intitulada O mapa como meio de comunicação: implicações no
ensino da geografia do 1º grau. Sucessivamente a essa tese, nos quase vinte anos que a seguiram, verifica-se um
aumento expressivo de pesquisas sobre cartografia e ensino. Esse levantamento foi realizado por ARCHELA
(2000) em sua tese de doutoramento, orientada por Maria Elena Ramos Simielli, e está disponível em:
http://br.geocities.com/cartografiabr.
338
Não me ocupei em fazer um levantamento exaustivo dos trabalhos em geografia sobre linguagens pelo fato de
entender que essa atividade implicaria a realização de uma outra pesquisa.
Capítulo 3 241
Ângela Massumi Katuta
polissêmico, expressão dos sujeitos que os produzem. Eis o desafio colocado à disciplina de
geografia, cuja resposta deve estar fundada em uma ontologia do espaço “[...] pensado como a
coabitação tensa da diferença e da unidade.” (MOREIRA, 1999, p. 55-56). Trata-se então:
De articular com o olhar os ‘espaços da conceituação’, escalas de representação dos
conjuntos espaciais ditadas pela subjetividade do olho, numa leitura livre do
conceito de espacialidade diferencial [...] De portanto rever o modo de ser
representação [...], num outro que combine heterogêneo e homogêneo sem que a
diferença desapareça na homogeneidade-identidade por um ardil formal da razão.
Eis a ontologia e epistemologia do espaço nas quais devem estar ancoradas o ensino da
geografia e o uso que o mesmo deve fazer das representações e/ou linguagens. Esse é o “pulo
do gato” essencial e necessário para o retorno d’O Estrangeiro, que nenhuma metodologia de
ensino descolada dessa reflexão pode realizar.
A inserção do movimento, a combinação do heterogêneo e do homogêneo a fim de
entender a diferença e a unidade, somente pode se realizar a partir da ruptura com as
ontologias e epistemologias hegemônicas que, por meio da metafísica, tendem a simplificar o
complexo, a homogeneizar o não-homogeneizável, a eliminar a diferença por meio da
homogeneidade-identidade, a estancar no plano da generalidade, sem retornar à
particularidade e muito menos à singularidade.
Dessa maneira, uma via possível para o retorno d’O Estrangeiro reside no uso de
diferentes linguagens no ensino da geografia, que deve estar ancorado em uma ontologia e
epistemologia do “[...] espaço polissêmico, porque de um sujeito polissêmico.” (MOREIRA,
1999, p. 54), a fim de que sejam ampliadas suas coordenadas semióticas, suas grades de
linguagem para que ocorra o entendimento dos lugares.
O retorno d’O Estrangeiro ao “mundo da geografia” deve estar ancorado na
possibilidade e capacidade dessa disciplina dizer sobre o mundo conhecido em diferentes
escalas e por meio de várias linguagens, ou seja, sob diversas perspectivas que mantenham a
coabitação tensa da diferença e da unidade. Eis o desafio ontológico e epistemológico que
antecede à problemática das metodologias de ensino que, no atual contexto educacional, são
mostradas como as respostas mais adequadas e infalíveis à ruptura epistemológica
característica do ensino da geografia hegemônico que abordei até o momento.
Ler, decifrar a grade dos lugares por meio da grade das linguagens − uma na outra,
uma pela outra −, a fim de agir e conhecer: eis a passagem-caminho que poderá auxiliar na
ruptura com o processo de estrangeirização e alienação ao qual estão sujeitos os alunos da
escola formal, atualmente estrangeiros no “mundo da geografia”.
É papel da referida disciplina a ampliação de coordenadas semióticas que auxiliem os
sujeitos sociais no entendimento das diferentes espaço-temporalidades constituídas pelos
Capítulo 3 242
Ângela Massumi Katuta
diversos grupos humanos, não apenas as atualmente conhecidas e ainda existentes, mas
também aquelas que deixaram registros de sua existência 339 e muitas outras, ainda em
processo de vir a ser por estarem sendo tecidas pelos movimentos sociais. As últimas, por
fundarem-se no questionamento da ordem estabelecida, obviamente não passaram à história e
geografia oficiais, ou, se nelas constam, são apresentadas pejorativamente como disfunções
sociais ou com qualquer outro qualificativo deslegitimador; afinal, a construção do objeto
também se dá por meio da palavra.
Daí a necessidade de se trabalhar com a cartografia e com registros, representações e
formas de comunicação que se situam na esfera do real não realizado, como é o caso de
muitas linguagens artísticas ou não oficiais 340 , a exemplo da literatura, estudada por Sevcenko
(1999, p. 21). Para o autor: “A literatura portanto fala ao historiador sobre a história que não
ocorreu, sobre as possibilidades que não vingaram, sobre os planos que não se concretizaram.
Ela é o testemunho triste, porém sublime, dos homens que foram vencidos pelos fatos.”
Transpondo as idéias do autor para a geografia poder-se-ia dizer: algumas literaturas
bem como os diversos registros artísticos 341 , especialmente aqueles circunscritos às artes
plásticas 342 , podem falar ao geógrafo e seus alunos sobre os espaços que ainda não passaram à
existência, sobre as espacialidades que não vingaram, sobre as topias que não se
concretizaram ou estão em vias de concretização.
As linguagens que versam sobre o real não realizado também devem ter lugar no
ensino geográfico, pois são o testemunho dos grupos humanos que lutaram por espacialidades
mais democráticas e que foram vencidos, testemunham também a existência de espaços
fantasmagóricos, mefistofélicos que mantêm paralelismo com os fantasmas das desigualdades
sociais que ainda rondam o mundo dos vivos. Tais linguagens são igualmente sublimes por
apontar para as múltiplas possibilidades do vir a ser, para topias menos alienantes, para
figurações ligadas aos nossos desejos mais íntimos 343 e mesmo para lugares não existentes.
Sobre os lugares imaginários, Manguel (2003, p. não paginado) se pronuncia da
seguinte forma:
339
Ainda que eivado de dificuldades, o entendimento e estudo da geografia de grupos humanos pretéritos se
fazem necessários na elaboração de teorias sobre a constituição das espacialidades humanas, lacuna essa ainda
não preenchida pelos estudos geográficos.
340
Em um sentido bourdieusiano, as linguagens oficiais são aquelas diretamente ligadas ao exercício do poder,
instrumentos para a realização e reforço de uma hegemonia. Usei o termo “linguagem não oficial” para me
contrapor àquelas estabelecidas oficialmente pelos grupos hegemônicos.
341
Este ponto de vista precisou ser relativizado, pois as artes acadêmicas se situam hegemonicamente na esfera
da reprodução social. Sobre esse assunto ver Bourdieu (1996).
342
Afinal, como afirma Ostrower (2002, p. 174), as artes plásticas caracterizam-se por serem uma “[...]
linguagem visual composta unicamente de termos espaciais.”
343
Lembremo-nos das figurações espaciais ou pinturas feitas pelos artistas partícipes do movimento surrealista.
Capítulo 3 243
Ângela Massumi Katuta
expressão de uma transformação cosmológica sem precedentes, cujo habitus inerente a essa
forma de representação se espraiou em escala planetária.
O planisfério coloca o sujeito, o observador, fora do mundo, sendo este último visto,
como diz Moreira (1999, p. 55), separado e externo, por sua imagem contrapor-se ao sujeito
cognitivo 344 . Essa representação universalizou-se pelo fato de a cosmologia de seus
elaboradores ter se hegemonizado a partir do poder da cruz, do ferro e do fogo,
dessensibilizando os ocidentais para o fato de que essa figuração espacial apresenta uma visão
de mundo tecida no contexto de um projeto societário que ainda predomina sobre os demais,
ora por inviabilizar outras territorialidades, ora por eliminá-las ou exterminá-las, como
ocorreu com aquelas produzidas pelos povos indígenas da América pré-colombiana e mesmo
com aquelas existentes em outros lugares do planeta, que apontavam para um processo
civilizador distinto daquele preconizado pelo capital.
É o que a montagem que fiz a seguir tenta demonstrar. Para sua composição, usei o
mesmo princípio de René Magritte: tensionar o imagético e o verbal, para que ambos saíssem
do lugar comum de complementaridade e hierarquia que, em geral, lhes é concedido em um
uso comum dessas linguagens e mesmo no ensino da geografia. “Num quadro, as palavras são
da mesma substância que as imagens. Vê se de outro modo as imagens e as palavras num
quadro.” (MAGRITTE, apud Foucault, 2002, p. 51).
344
Lembremo-nos dos sábios conselhos de Ginzburg (2001): toda imagem é afirmativa, necessitando da palavra
para negá-la, ainda que seja uma figuração de coisas que não existem. Sobre esse assunto ver o interessante
ensaio de Foucault (2002) intitulado Isto não é um cachimbo. Neste, o autor defende que uma imagem, qualquer
que seja ela, não pode ser confundida com algum aspecto do mundo nem com alguma coisa tangível, pois
apresenta a idéia de seu autor sobre o objeto, não é o mundo, mas a apresentação da idéia de alguém sobre ele.
Considerações sobre o ensino da Geografia, suas ontologias e epistemologias 246
Ângela Massumi Katuta
descrição infinitamente complexa (se comparada com nossa linguagem), e mais refinada,
plástica e fotográfica de algum acontecimento em seus mínimos detalhes.”
Paradoxalmente, Vygotsky defende que o desaparecimento gradual de grande número
de detalhes concretos na linguagem caracteriza o seu desenvolvimento, isso porque o uso de
termos genéricos como árvore, peixe, flor, pássaro etc, indica maior capacidade de abstração,
portanto maior desterritorialização. Não por acaso, é nas sociedades que utilizam termos
genéricos que se verifica um maior desenvolvimento tecnológico e capacidade de domínio
dos outros elementos da natureza, ainda que o processo civilizador indique uma possível
extinção da espécie humana no planeta se a direção do mesmo não for modificada 345 .
A coexistência de termos específicos e genéricos no horizonte vocabular da sociedade
ocidental indica a realização de dois movimentos inerentes ao processo de conhecimento
detectados por Elias (1998a): envolvimento e alienação346 . Para o autor, o conhecimento
somente pode ser realizado a partir de ambos os movimentos. É por isso que, quando o
conhecimento estanca no plano da generalidade, como ocorre com o ensino da geografia
hegemônico, o processo de conhecimento não se realiza. O envolvimento que abarca os
planos da particularidade e da singularidade é negado no contexto do referido ensino; isso
porque o único conceito de espaço que utiliza é aquele cartesiano, em que os seres humanos
são desterritorializados, sendo então inevitável o reforço do processo de estrangeirização e
alienação discente.
A assunção apenas das ontologias e epistemologias hegemônicas leva à crença na
homogeneidade, na verdade absoluta dos fatos, apesar de viver-se a heterogeneidade e a
transformação dos conhecimentos. Verifica-se nesse processo o que Guattari (1998, p. 66)
denomina de alisamento da textura ontológica, ou seja, a homogeneização provocada pela
necessidade da (re)produção do capital, tendo como fundamento a necessária metaficização
do saber sobre o mundo e as coisas que nele existem.
345
Guattari (1998, p. 164-165) se expressa da seguinte maneira sobre esta questão: “A redefinição das relações
entre o espaço construído, os territórios existenciais da humanidade (mas também da animalidade, das espécies
vegetais, dos valores incorporais e dos sistemas maquínicos) tornar-se-á uma das principais questões da re-
polarização política, que sucederá o desmoronamento do eixo esquerda-direita entre conservadores e
progressistas. Não será mais apenas questão de qualidade de vida, mas do porvir da vida enquanto tal, em sua
relação com a biosfera.”
346
Termo também traduzido como distanciamento que, não por acaso, indica uma métrica: quanto maior o
distanciamento em relação ao fenomênico, maior a capacidade de generalização, homogeneização, elaboração de
leis que explicam a uniformidade do fenomênico e, conseqüentemente, menor a percepção dos detalhes, das
particularidades e singularidades. Eis o olhar renascente disseminado por meio da escola de massas.
Considerações sobre o ensino da Geografia, suas ontologias e epistemologias 249
Ângela Massumi Katuta
Referências
ALPERS, Svletana. A arte de descrever. São Paulo: Edusp, 1999.
ARCHELA, Rosely Sampaio. Análise da cartografia brasileira: bibliografia da cartografia na
geografia no período de 1935-1997. Tese (Doutorado em Geografia) − Universidade de São
Paulo, São Paulo, 2000.
ATLAS histórico. Barcelona: Marin, 1988.
BACHELARD, Gaston. A formação do espírito científico. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem: problemas fundamentais do
Método Sociológico na Ciência da Linguagem. 8. ed. São Paulo: Hucitec, 1997.
BAUDRILLARD, Jean. A troca simbólica e a morte. São Paulo: Loyola, 1996.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
BAXANDALL, Michael. O olhar renascente: pintura e experiência social na Itália da
Renascença. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.
BENDER, Lionel. A era da Imprensa. _____. Invenções. São Paulo: Globo, 1994. p. 26-27.
BERTANINI, Tonino. O “espaço do corpo” e os territórios da vida cotidiana. Seleção de
textos, São Paulo, n. 10, p. 111-141, jun. 1985.
BEY, Hakim. TAZ: zona autônoma temporária. São Paulo: Conrad, 2001.
BLACKBURN, Simon. Dicionário Oxford de filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
BOLETIM GAÚCHO DE GEOGRAFIA. Porto Alegre: Associação dos Geógrafos
Brasileiros, Seção Porto Alegre, n. 25, 1999.
BOSI, Alfredo. Fenomenologia do olhar. In: NOVAES, Adauto et al. O Olhar. São Paulo:
Companhia das Letras, 2002. p. 65-87.
BOURDIEU, Pierre. A Economia das Trocas Simbólicas. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 1992.
______. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Companhia das
Letras, 1996.
______. Razões Práticas: Sobre a Teoria da Ação. São Paulo: Papirus, 1997.
______. A economia das trocas lingüísticas: o que falar quer dizer. 2. ed. São Paulo: Editora
da Universidade de São Paulo, 1998.
______. O poder simbólico. 3. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000a.
______. O campo econômico: a dimensão simbólica da dominação. Campinas: Papirus,
2000b.
BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean Claude. A reprodução – Elementos para uma teoria
do sistema de ensino. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1975.
Referências 252
Ângela Massumi Katuta
BRANCO, João Maria de Freitas. Dialética, Ciência e Natureza: um estudo sobre a noção de
‘Dialética da Natureza’ no quadro do pensamento científico moderno. Lisboa: Caminho,
1989.
BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. 2. ed. Capítulo II, Seção I, III, IV,
1997, p. 13-21.
BURTT, Edwin Arthur. As bases metafísicas da Ciência Moderna. Brasília: UNB, 1991.
CADERNO PRUDENTINO DE GEOGRARIA. Presidente Prudente: Associação dos
Geógrafos Brasileiros, Seção Presidente Prudente, n. 17, 1995.
CADERNOS CEDES. Campinas: Papirus, n. 39, 1996.
CALVINO, Ítalo. Os nossos antepassados: O visconde partido ao meio; O barão nas árvores;
O cavaleiro inexistente. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
CAMUS, Albert. O Estrangeiro. 16. ed. Rio de Janeiro: Record, 1997.
CARLOS, Ana Fani Alessandri (Org.). A geografia em sala de aula. São Paulo: Contexto,
1999.
CARROL, Lewis. Alice: edição comentada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
CASSIRER, Ernest. Linguagem e Mito. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2000.
CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. 5. ed. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 2000.
CASTROGIOVANNI, Antonio Carlos et al (Org.). Geografia em sala de aula: práticas e
reflexões. Porto Alegre: Associação dos Geógrafos Brasileiros, Seção Porto Alegre, 1998.
CAVALCANTI, Lana de Souza. Geografia, escola e construção de conhecimentos.
Campinas: Papirus, 1998.
CAVALLI-SFORZA, Luigi Luca. Genes, Povos e Línguas. São Paulo: Companhia das
Letras, 2003.
CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. 2. ed. São Paulo: Ática, 1995.
CHENEY, Sheldon. História da arte. São Paulo: Rideel, 1995. 4v.
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. 14. ed. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1999. p. 512.
CHOMSKY, Noam. Linguagem e Pensamento. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1971.
______. Lingüística Cartesiana. Petrópolis: Vozes; São Paulo: Ed. Da Universidade de São
Paulo, 1972.
CHOMSKY, Noam. et al. Novas perspectivas lingüísticas. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1973.
COELHO NETO, J. Teixeira. Semiótica, Informação e Comunicação: diagrama da Teoria do
signo. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 1999.
Referências 253
Ângela Massumi Katuta
______. Lógica Formal Lógica Dialética. 5. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991.
LEWIS, Malcolm G. The Origins of Cartography. In: HARLEY, John Brian; WOODWARD,
David. (Ed.). The History of Cartography: Cartography in Prehistoric, ancient, and Medieval
Europe and the Mediterranean, v. 1. Chicago: The University of Chicago Press, 1987. p. 50-
53.
LURIA, Alexandr Romanovich. Pensamento e Linguagem: as últimas conferências de Luria.
Porto Alegre: Artes Médicas, 1986.
LUZURIAGA, Lorenzo. História da Educação e da Pedagogia. 15. ed. São Paulo: Nacional,
1984.
MANACORDA, Mario Alighiero. Marx e a pedagogia moderna. São Paulo: Cortez; Autores
Associados, 1991.
______. História da Educação: da Antiguidade aos nossos dias. 10. ed. São Paulo: Cortez,
2002.
MANGUEL, Alberto; GUADALUPI, Gianni. Dicionário de lugares imaginários. São Paulo:
Companhia das Letras, 2003.
MARCONI, Marina de Andrade; PRESOTTO, Zelia Maria Neves. Antropologia: uma
introdução. São Paulo: Atlas, 1986.
MARX, Karl. Manuscritos Económico-Filosóficos. Lisboa: Edições 70, 1993.
MITHEN, Steven. A pré-história da mente: uma busca das origens da arte, da religião e da
ciência. São Paulo: Editora UNESP, 2002.
MOORE, Alan. A voz do fogo. São Paulo: Conrad, 2002.
MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Loyola, 2000. 4 v.
MOREIRA, Ruy. O discurso do avesso (Para a Crítica da Geografia que se ensina). Rio de
Janeiro: Dois Pontos, 1987.
______. O que é Geografia. 9. ed. São Paulo: Brasiliense, 1988.
______. Assim se passaram dez anos (a renovação da Geografia no Brasil 1978-1988).
Caderno Prudentino de Geografia, Presidente Prudente, n. 14, p. 5-39, jun. 1992.
______. O círculo e a espiral: a crise paradigmática do mundo moderno. Rio de Janeiro: Obra
Aberta, 1993.
______. Espaço, corpo do tempo: a construção geográfica das sociedades. Tese (Doutorado
em Geografia) − Universidade de São Paulo, São Paulo, 1994.
______. A diferença e a Geografia: o ardil da identidade e a representação da diferença na
geografia. Geografia, Rio de Janeiro, n. 1, p. 41-58, jun. 1999.
Referências 257
Ângela Massumi Katuta
______. O círculo e a espiral: para a crítica da geografia que se ensina – 1. Niterói: Edições
AGB Niterói, 2004.
NEF, Frédéric. A linguagem: uma abordagem filosófica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.
NOGUEIRA, Maria Alice; CATANI, Afrânio (Orgs.). Escritos de Educação – Pierre
Bourdieu. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1998.
NÖTH, Winfried. Panorama da Semiótica: de Platão a Peirce. São Paulo: Annablume, 1995.
OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Para onde vai o ensino da geografia? São Paulo:
Contexto, 1989.
OLIVEIRA, Cêurio de. Dicionário Cartográfico. 4. ed. Rio de Janeiro: IBGE, 1993.
OLIVEIRA JÚNIOR, Wenceslao Machado de. Chuva de cinema: natureza e cultura urbanas.
Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1999.
OLSON, David R. O mundo no papel: as implicações conceituais e cognitivas da leitura e da
escrita. São Paulo: Ática, 1997.
OLSON, Steve. A história da humanidade: desvendando 150 mil anos de nossa trajetória
através dos genes. Rio de Janeiro: Campus, 2003.
OSTROWER, Fayga. A construção do olhar. In: NOVAES, Adauto. O Olhar. São Paulo:
Companhia das Letras, 2002. p. 167-182.
PAGANELLI, Tomoko Iyda. Paisagem, uma decifração do espaço-tempo social: as
representações da paisagem da cidade do Rio de Janeiro. Tese (Doutorado em Geografia) –
Universidade de São Paulo, São Paulo, 1998.
PANKOW, Gisela. O homem e seu espaço vivido: Análises Literárias. Campinas: Papirus,
1988.
PEREIRA Diamantino. A dimensão pedagógica na formação do geógrafo. Terra Livre, São
Paulo, n. 14, p. 41-47, jan.-jul. 1999.
______. Paisagens, lugares e espaços: a geografia no ensino básico. Boletim Paulista de
Geografia, São Paulo, n. 79, p. 9-21, jul. 2003.
PEREIRA, Diamantino; SANTOS, Douglas; CARVALHO, Marcos de. A geografia no 1º
grau: algumas reflexões. Terra Livre, n. 8, p. 121-131, abr. 1991.
PEREIRA, Raquel Maria Fontes do Amaral. Da geografia que se ensina à gênese da
geografia moderna. 2. ed. Florianópolis: Ed. da UFSC, 1993.
PESSOA, Fernando. Ficções do Interlúdio, 1: poemas completos de Alberto Caeiro. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
______. Ficções do Interlúdio, 2-3: Odes de Ricardo Reis Para além do outro Oceano de
C[oelho] Pacheco. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
Referências 258
Ângela Massumi Katuta
SIMIELI, Maria Elena Ramos. O mapa como meio de comunicação: implicações no ensino
da geografia do 1º grau. Tese (Doutorado em Geografia)-Universidade de São Paulo, São
Paulo, 1986.
SMITH, Catherine Delano. Cartography in the Prehistoric Period in the Old World: Europe,
the Middle East, and North Africa. In: HARLEY, John Brian; WOODWARD, David. The
history of cartography: Cartography in Prehistoric, ancient, and Medieval Europe and the
Mediterranean, v. 1. Chicago: The University of Chicago Press, 1987. cap. 4, p. 54-101.
______. Prehistoric Carrtography in Asia. In: HARLEY, John Brian; WOODWARD, David.
The history of cartography: Cartography in Prehistoric, ancient, and Medieval Europe and the
Mediterranean, v. 2. Chicago: The University of Chicago Press, 1994. cap. 1, p. 1-22.
SOUZA, José Gilberto de; KATUTA, Ângela Massumi. Geografia e conhecimentos
cartográficos: a cartografia no movimento de renovação da geografia brasileira e a
importância do uso de mapas. São Paulo: Editora UNESP, 2001.
SPÓSITO, Marilia Pontes. A ilusão fecunda: a luta por educação nos movimentos populares.
São Paulo: EDUSP; Hucitec, 1993.
SZAMOSI, Géza. Tempo & Espaço: as dimensões gêmeas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.
TARNAS, Richard. A epopéia do pensamento ocidental: para compreender as idéias que
moldaram nossa visão de mundo. 3. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.
TEIXEIRA, Leny Rodrigues Martins. A análise de erros: uma perspectiva cognitiva para
compreender o processo de aprendizagem de conteúdos matemáticos. Nuances, n. 3, p. 47-52,
set. 1997.
TERRA BRASILIS. Rio de Janeiro: Sal da Terra, n. 1, jan./jun. 2000.
THUILLIER, Pierre. De Arquimedes a Einstein: a face oculta da invenção científica. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1994.
TUNG-SUN, Chang. A Teoria do Conhecimento de um Filósofo Chinês. In: CAMPOS,
Haroldo de. Ideograma: Lógica, Poesia, Linguagem. 4. ed. São Paulo: Universidade de São
Paulo, 2000. p. 167-201.
VESENTINI, José William. Para uma geografia crítica na escola. São Paulo: Ática, 1992.
______ (Org.). Geografia e ensino: textos críticos. Campinas: Papirus, 1989.
VLACH, Vânia. Geografia em debate. Belo Horizonte: Lê, 1990.
______. Geografia em construção. Belo Horizonte: Lê, 1991.
VIGOTSKII, Lev Semenovich; LURIA, Alexander Romanovich; LEONTIEV, Alex N.
Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. São Paulo: Ícone; Editora da Universidade de
São Paulo. 1988.
Referências 260
Ângela Massumi Katuta