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ANO 20
A N T R O P O LO G I A E VO L U Ç ÃO
52
04 A evolução dos mitos 24 Por que só o Homo
Analisar como histórias mudam sapiens perdurou
ao serem recontadas através das até a era moderna?
gerações lança luz sobre a história O hominíneo que sobreviveu
da migração humana Kate Wong
retrocedendo até o período
paleolítico. Julien d’Huy
E VO L U Ç ÃO E VO L U Ç ÃO
12 O paradoxo do exercício 30 Como aprendemos
Estudos sobre como a máquina a colocar nosso destino
humana queima calorias ajudam nas mãos alheias
a explicar por que a atividade As origens da moralidade.
física faz pouco para controlar Michael Tomasello
o peso — e sobre como nossa
espécie adquiriu alguns de seus
traços mais característicos.
E VO L U Ç ÃO
Herman Pontzer
36 A verdadeira paleodieta
E VO L U Ç ÃO Sinais microscópicos de desgaste
C A PA
18 Elos perdidos em fósseis de dentes revelam O Homo habilis é o provável autor
Nossos grandes cérebros humanos, o que nossos ancestrais comiam das ferramentas encontradas na
nossa postura ereta e o estilo de — e oferecem insights sobre como Jordânia, o que sugere que ele
também tenha se espalhado por
amar podem existir porque a mudança climática moldou a
outras partes da Ásia.
eliminamos peças-chave de DNA. evolução humana. Fotografia P.playlli/e.daynes/
Philip L. Reno Peter S. Ungar Science Photo Library/Fotoarena.
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A N T R O P O L OG I A
EVOLUÇÃO DOS
MITOS
Analisar como histórias mudam ao serem
recontadas através das gerações lança
luz sobre a história da migração
humana retrocedendo até o período paleolítico
Julien d’Huy
Ilustração de Jon Foster
A
versão grega de um mito bastante conhecido começa com Ártemis, deusa da
caça e protetora de mulheres jovens e inocentes. Ártemis exige que Calisto,
“a mais bela”, e suas outras servas façam voto de castidade. Zeus seduz Calisto
a renunciar à sua virgindade, e ela dá à luz um filho, Arcas. A ciumenta esposa
de Zeus, Hera, transforma Calisto num urso e a exila para as montanhas.
Enquanto isso, Arcas cresce e se torna um caçador, e certo dia encontra por
acaso um urso que o saúda de braços abertos. Não reconhecendo a mãe, mira
no animal sua lança, mas Zeus vem em seu socorro. Ele transforma Calisto na constelação da
Ursa Maior, ou “grande ursa”, e coloca Arcas por perto como Ursa Minor, o “pequeno urso.”
Do modo como os índios iroqueses do nordeste dos EUA estatísticas e modelagem computadorizada da biologia para
contam a história, três caçadores perseguem um urso e o sangue elucidar como e por que mitos e lendas populares evoluem. Além
do animal ferido tinge as folhas da floresta outonal. O urso então da Caçada Cósmica, analisei outras grandes famílias de mitos
sobe uma montanha e salta para o céu. Os caçadores e o animal que compartilham temas e elementos de enredo recorrentes.
se tornam a constelação da Ursa Maior. Entre os Chukchis, um Histórias de Pigmalião, por exemplo, retratam um homem que
povo siberiano, a constelação de Órion é um caçador que persegue cria uma escultura e se apaixona por ela. Em mitos de Polifemo,
uma rena, Cassiopeia. Entre os povos fino-úgricos da Sibéria, o um homem fica preso na caverna de um monstro e escapa ao se
animal perseguido é um alce e assume a forma de Ursa Maior. insinuar num rebanho de animais, sob o olhar atento do monstro.
Embora os animais e as constelações possam diferir, a estrutura Esta pesquisa fornece evidências novas e convincentes de que
básica da história não muda. Todas essas sagas pertencem a mitos e lendas populares seguem o movimento de povos ao redor
uma família de mitos conhecida como “A Caçada Cósmica” que do globo. Ela revela que certas histórias provavelmente remontam
se espalhou pela África, Europa, Ásia e Américas, entre povos ao período Paleolítico, quando humanos desenvolveram primitivas
que viveram há mais de 15 mil anos. Toda versão da Caçada ferramentas de pedra, e se disseminaram junto com as primeiras
Cósmica compartilha um enredo central comum: um homem ondas migratórias para fora da África. Meus estudos filogenéticos
ou um animal persegue ou mata um ou mais animais, e as também oferecem insights sobre as origens desses mitos ao ligarem
criaturas são transformadas em constelações. histórias e lendas orais transmitidas de geração em geração a
Folcloristas, antropólogos, etnólogos e linguistas vêm motivos que aparecem de forma recorrente em pinturas de arte
quebrando a cabeça, intrigados, há muito tempo sobre por que rupestre paleolítica. Basicamente, espero que meu contínuo esforço
complexas histórias míticas que surgem em culturas muito para identificar protomitos pré-históricos possa até oferecer um
separadas no espaço e no tempo são tão semelhantes. Nos últimos vislumbre do universo mental de nossos ancestrais, quando o
anos, surgiu uma abordagem científica para a mitologia Homo sapiens não era a única espécie humana na Terra.
comparada, em que pesquisadores aplicaram as ferramentas
conceituais que biólogos utilizam para decifrar a evolução das O CAMINHO DA CAÇADA CÓSMICA
espécies vivas. Nas mãos dos que analisam mitos, o método, Carl Jung, o pai da psicologia analítica, acreditava que mitos
conhecido como análise filogenética, consiste em conectar versões aparecem em estruturas similares em diferentes culturas porque
sucessivas de uma história mítica e construir uma árvore emergem de uma área da mente chamada inconsciente coletivo.
genealógica que traça a evolução do mito ao longo do tempo. “Mitos são, acima de tudo, fenômenos psíquicos que revelam a
Meus estudos filogenéticos usam do rigor extra de técnicas natureza da alma”, dizia. Mas a propagação de histórias de
EM SÍNTESE
Acadêmicos se perguntam há muito Novos modelos de pesquisa a proveitam Árvores filogenéticas revelam que Estudos recentes fornecem insights
tempo por que complexas histórias ferramentas conceituais e estatísticas da espécies de mitos evoluem lentamente sobre as origens pré-históricas de alguns
míticas, que surgem em culturas biologia evolutiva para destrinchar e e se equiparam a padrões de migrações mitos e a migração de eurasianos para
amplamente separadas em espaço e esclarecer a história de mitos. humanas em massa para fora da África a América do Norte há mais de 15 mil
tempo, são tão notavelmente semelhantes. e sua dispersão ao redor do mundo. anos.
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COMO É FEITO
Desconstruindo mitos
Mitos de Caçadas Cósmicas q ue retratam constelações de estrelas como animais perseguidos por caçadores são comuns na
Eurásia e nas Américas. Mitologistas comparativos estudam as surpreendentes similaridades e sutis variações nos mitos de cul-
turas amplamente dispersas utilizando ferramentas analíticas desenvolvidas por biólogos evolutivos. Primeiro, eles dissociam
uma determinada “espécie” de histórias míticas em pequenos blocos de construção, análogos a genes: os chamados “mitemas”.
Em seguida, registram fatores como a frequência dos elementos em várias histórias (abaixo). Análises computadorizadas de ele-
mentos similares podem revelar quais versões surgiram primeiro, antecedendo outras, e como as histórias centrais mudaram
com o tempo e o lugar. Os mitemas mostrados aqui são os blocos de construção de várias histórias de Caçadas Cósmicas asso-
ciadas às constelações de Ursa Maior, Ursa Menor, Órion e do aglomerado estelar das Plêiades.
23
8 – O zoema é
um alce 20
4
9 24
28
10 34
21
11 25
30
2 – O zoema é um 12
herbívoro 26
43
5 – O zoema é 13 – O zoema é um 36
um ungulado carneiro-montês
44
14
27 45
15 29 – Perseguidores estão
localizados no céu ou vão para o céu
16
31 46 48
1 – O zoema é um
grande mamífero 17
51
32
18 47
e
nap
o le
Mit 22 – Existe 35
37
um animal 49 – O animal está
7 – O zoema é vivo quando
um urso 38 transformado
3 – O zoema é um em uma
carnívoro 39 constelação
19 ou [está]
40 50 no céu
33
6
41
“A COSMIC HUNT IN THE BERBER SKY: A PHY-
LOGENETIC RECONSTRUCTION OF PALAEOLI-
UM ENREDO COMUM 42
THIC MYTHOLOGY”, JULIEN D’HUY, EM L ES
O caminho destacado pela linha tracejada azul ilustra um mito dos índios lenape, do
nordeste dos EUA, sobre como a constelação da Ursa Maior tomou a forma de um urso.
CAHIERS DE L’AARS, Nº 16; 2013
A lenda lenape compartilha diversos mitemas com vários mitos de Caçada Cósmica
preservados por outros grupos culturais na Eurásia e nas Américas, incluindo: o zoema
(categoria de mitema, ou espécie animal) é um grande mamífero (1); perseguidores
estão localizados no céu ou chegam a ele (29); o animal está vivo quando transformado
em uma constelação (49); uma das principais constelações da história é o asterismo
Grande Carro formado pelas sete estrelas mais brilhantes de Ursa Maior (86).
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O par
EVO LU Ç Ã O
Ainda nada
de
gırafa. Nós quatro havíamos
caminhado metade do dia em
busca da girafa ferida que Mwasad, um hadza de 30 e poucos
anos, alvejara na tarde anterior. Ele a atingira na base do pescoço,
a uns 20 metros de distância, com uma flecha embebida em um
poderoso veneno caseiro. Os hadza são tradicionais caçadores
‑coletores que vivem na savana do Norte da Tanzânia. Eles conhecem a
região e seus habitantes melhor do que você conhece sua mercearia
local. Mwasad havia deixado a girafa correr para dar tempo para o
veneno funcionar, esperando encontrá‑la morta pela manhã. Um animal
daquele tamanho poderia alimentar sua família e seu acampamento por
uma semana — mas só se ele conseguisse encontrá-lo.
EM SÍNTESE
O senso comum diz que pessoas número de calorias que pessoas com muita energia evoluíram.
fisicamente ativas queimam mais acesso às comodidades modernas. Comparações com gasto de energia
calorias que as menos ativas. A descoberta de que o gasto de energia de grandes primatas sugerem que o
Mas estudos mostram que tradicionais humana é rigidamente limitado abre mecanismo metabólico humano evoluiu
caçadores-coletores, com vidas questões sobre como nosso grande para trabalhar mais para sustentar nossas
fisicamente árduas, queimam o mesmo cérebro e outros traços que exigem características dispendiosas.
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Herman Pontzer é antropólogo no Hunter College.
Ele estuda o gasto de energia em humanos e grandes
primatas para testar hipóteses sobre a evolução da
anatomia e fisiologia humanas.
Mwasad levou nosso grupo — Dave Raichlen, da Universidade o metabolismo humano. Os dados indicam que, ao contrário da
de Arizona, um garoto hadza de 12 anos chamado Neje e eu — noção convencional, humanos tendem a queimar o mesmo número
para fora do acampamento assim que amanheceu. Dave e eu de calorias independentemente de seu grau de atividade física.
pouco podíamos ajudar. Mwasad nos convidara como um gesto Mas nós evoluímos para queimar consideravelmente mais calorias
de amizade e como apoio adicional para carregar o animal que nossos primos antepassados. Esses resultados ajudam a
esquartejado ao acampamento se a busca desse resultado. Como explicar dois enigmas que à primeira vista parecem discrepantes,
estudiosos da ecologia humana e da evolução, ficamos animados mas que estão, de fato, relacionados: primeiro, por que praticar
com a oportunidade — a destreza dos hadza como rastreadores exercícios em geral não ajuda a eliminar peso e, segundo, como
é lendária. Isso era melhor que a perspectiva de passar um longo alguns dos traços exclusivos da humanidade surgiram.
dia no acampamento mexendo em equipamento de pesquisa.
Caminhamos sem qualquer trilha por uma hora por um mato A ECONOMIA DE CALORIAS
dourado que chegava à cintura, pontuado por árvores de acácias Pesquisadores interessados em ecologia e evolução humanas
espinhosas, direto até as manchas de sangue onde a girafa fora costumam se concentrar em gasto de energia porque energia é
atingida. Essa parte do caminho foi curiosa, como se alguém fundamental para tudo em biologia. Pode-se aprender muito
tivesse nos levado até o meio de um campo de trigo de 4 km² sobre qualquer espécie ao medir seu metabolismo: a vida é
para mostrar onde havia derrubado um palito de dente e, então, essencialmente um jogo de transformar energia em crianças, e
se abaixasse com displicência para recuperá-lo. Seguiram-se cada traço é adaptado por seleção natural para maximizar o
horas em busca do animal ferido sob um sol inclemente, enquanto retorno evolucionário de cada caloria gasta. Idealmente, a
encontrávamos sinais cada vez mais tênues. população estudada deve viver no mesmo ambiente no qual a
Ainda nada de girafa. Pelo menos eu tinha água. Sentamos espécie originalmente evoluiu, onde as mesmas pressões ecológicas
à sombra de alguns arbustos logo depois do meio-dia, fazendo que formaram sua biologia ainda estão atuando. Isso é difícil
uma pausa enquanto Mwasad pensava para onde a criatura de conseguir com sujeitos humanos porque a maioria das pessoas
ferida poderia ter ido. Eu tinha um quarto de água — suficiente, está distante do trabalho diário de conseguir comida em um
achei, para atravessar o calor da tarde. Mwasad, no entanto, ambiente selvagem. Por quase todos os últimos dois milhões de
não tinha levado água com ele, como é típico dos hadza. Enquanto anos, humanos e nossos ancestrais viveram e evoluíram como
empacotávamos tudo para reiniciar a busca, eu ofereci a bebida caçadores-coletores. A agricultura só surgiu há cerca de 10 mil
a ele. Mwasad me olhou meio de lado, sorriu e tomou todo o anos; as cidades industrializadas e a tecnologia moderna
líquido da garrafa de um longo gole. Ao terminar, devolveu-me apareceram há poucas gerações. Povos como os hadza, dos
sem cerimônia a garrafa vazia. últimos caçadores-coletores que restam no mundo, são chave
Isso era karma. Dave e eu, junto com Brian Wood, da para entender como nossos corpos evoluíram e funcionaram
Universidade Yale, vivêramos o mês anterior com os hadza, antes das vacas, dos carros e dos computadores.
conduzindo as primeiras medições diretas do gasto diário de A vida para os hadza é fisicamente árdua. De manhã as mulheres
energia de um grupo caçador-coletor. Recrutamos duas dezenas deixam o acampamento em pequenos grupos, algumas com crianças
de homens e mulheres hadza, entre eles Mwasad, para beberem numa trouxa às costas, em busca de frutos silvestres e outros
pequenas garrafas incrivelmente caras de água enriquecida com comestíveis. Tubérculos são um alimento básico para os hadza, e
dois isótopos raros, deutério e oxigênio 18. Analisar a concentração elas podem gastar horas desenterrando-os do solo com gravetos.
desses isótopos em amostras de urina de cada participante nos Os homens andam quilômetros caçando com arcos e flechas que
permitiria calcular a taxa diária de produção de dióxido de fabricam. Quando a caça está escassa, usam machadinhas para
carbono de seu corpo e, assim, de seu gasto diário de energia. cortar galhos de árvores, em geral a uns 10 metros do chão, para
Esse método, conhecido como água duplamente marcada, é o colher mel silvestre. Até as crianças ajudam, carregando baldes
padrão ouro em saúde pública para medir as calorias queimadas de água do poço mais próximo. No fim da tarde, voltam ao
por dia durante a vida cotidiana normal. É simples, seguro e acampamento e sentam no chão para conversar junto a pequenas
preciso, mas exige que os participantes tomem até a última gota fogueiras, partilham os ganhos do dia e cuidam das crianças. Os
da água enriquecida. Nós havíamos nos esforçado para deixar dias passam assim nas estações secas e chuvosas há milênios.
claro que eles não podiam desperdiçar, tinham de consumir a Mas esqueça qualquer ideia romântica de paraíso perdido.
dose inteira. Mwasad parecia ter levado a mensagem a sério. Caça e coleta é um jogo cerebral e arriscado, no qual a moeda são
Brincadeiras à parte, meus colegas e eu havíamos aprendido as calorias e a falência é a morte. Homens como Mwasad gastam
com os hadza muito sobre como o corpo humano queima calorias. centenas de calorias por dia caçando e rastreando, apostando que
Somado às descobertas de pesquisadores que estudam outros serão recompensados. Inteligência é tão vital quanto resistência.
povos, nosso trabalho revelou alguns fatos surpreendentes sobre Enquanto outros predadores só podem confiar em sua velocidade
D E S C O B E R TA S
VOL. 7, NO 7, ARTIGO Nº E40503; 25 DE JULHO DE 2012 (à esq.); “METABOLIC ACCELERATION AND THE EVOLUTION OF HUMAN
Bebedores de ●
a Populações humanas ●
b Humanos x primatas
combustível
FONTES: “HUNTER-GATHERER ENERGETICS AND HUMAN OBESITY,” DE HERMAN PONTZER ET AL., EM PLOS ONE,
BRAIN SIZE AND LIFE HISTORY,” DE HERMAN PONTZER ET AL., EM NATURE, VOL. 533; 19 DE MAIO DE 2016 (à dir.)
5
Mulheres ocidentais Média de Humanos Média de
Homens ocidentais gasto de Chimpanzés Grandes gasto de
Gasto total de energia (milhares de calorias por dia)
Cientistas criam que pessoas mais ativas queimavam Mulheres hadza energia* e bonobos primatas energia*
mais calorias que as menos ativas. Mas dados do 4 Homens hadza Gorilas
gasto de energia de caçadores-coletores e de Orangotangos
populações sedentárias de EUA e Europa revelaram
●
resultados próximos a . Se o metabolismo humano 3
é tão restrito, como nosso cérebro, nossa expectativa
de vida longa e outros traços energeticamente
custosos que nos distinguem de nossos parentes 2
primatas evoluíram? Humanos consomem e gastam
por dia centenas de calorias a mais que grandes
●
primatas b , sugerindo que nosso mecanismo 1
metabólico mudou para queimar energia mais
rápido, suprindo os traços onerosos.
*Para levar em conta as diferenças em gasto de energia decorrentes do 0
tamanho do corpo, as médias ocidentais são calculadas pelo porte
corporal dos hadza e as médias dos grandes primatas são calculadas pela
0 25 50 75 100 0 25 50 75 100
média do tamanho do corpo humano. Massa corporal magra (kg) Massa corporal magra (kg)
evoluídas para manter o gasto de energia diário limitado. aquela energia colocada em filhotes significa menos para a
Todas essas evidências apontam para a obesidade como sendo manutenção do corpo e longevidade. O Tyrannosaurus rex pode
a doença da gula e não da preguiça. As pessoas ganham peso agradecer por sua grande cabeça com temíveis dentes e poderosos
quando as calorias que eles comem superam as calorias que elas membros posteriores aos seus insignificantes braços e mãos.
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18 Scientific American Brasil
ELOS
EVO LU Ç Ã O
PERDIDO S
Nossos grandes cérebros
humanos, nossa postura ereta
e o estilo de amar podem
existir porque eliminamos
peças-chave de DNA
Philip L. Reno
Ilustração de Chris Gash
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Q
Philip L. Reno é professor
associado de ciências biomédicas
da Faculdade de Medicina
Osteopática de Filadélfia.
EM SÍNTESE
Análises recentesidentificaram mais de 500 trechos Três trechos parecemser de interruptores de DNA, e A perda de outro interruptorde nossos ancestrais
de DNA que foram perdidos no genoma humano, a perda de dois deles liberou o crescimento do cérebro pode ter refinado nossa postura ereta, que deixou
mas ainda existem em chimpanzés e outros mamíferos. e a ligação entre pares no acasalamento humano. nossas mãos livres para fazer e carregar ferramentas.
●
a Dentro da célula dos rins ●
b Dentro da célula dos rins
Promotor ativo
mRNA
●
c Dentro da célula dos rins ●
d Dentro da célula da pele
INTERRUPTORES DE MACHOS
Meus resultados foram animadores: eles realmente pareciam
mostrar que eu estava trabalhando com um verdadeiro interruptor
para ligar o receptor androgênico, um que seres humanos haviam
1 4 perdido. Nos embriões de ratos, o tubérculo genital (que se
desenvolve como clitóris ou pênis) se tingiu de azul, assim como
TESTE DO RATO: para ver o que um interruptor genético fazia,
as glândulas mamárias e pontos na face do rato onde se formam
cien- tistas o injetaram em embriões de rato com DNA que
bigodes sensoriais chamados vibrissas. Todos esses tecidos são
tornava as células azuis onde o interruptor estava “ligado”. O azul
conhecidos por fazer o receptor androgênico responder à
apareceu em pontos que desenvolvem bigodes sensoriais e outros
testosterona. Olhando mais de perto, vi que a coloração nos
folículos capilares (1) e células que formam o pênis ou clitóris e
genitais em desenvolvimento estava situada em locais onde farpas
glândulas mamárias (2). Outras técnicas mostraram o interruptor
muito próximo a genes que permitem que células respondam a
de proteína formam mais tarde o pênis do rato.
hormônios sexuais como testosterona (3), e em ratos machos Bigodes sensoriais e pênis espinhosos não são características
adultos o interruptor é muito ativo em células que criam pênis humanas, evidentemente. Mas elas ocorrem em muitos mamíferos,
espinhosos (4). incluindo ratos, macacos e chimpanzés. Também é sabido que
uma perda de testosterona resulta em bigodes mais curtos em
roedores machos e na ausência de espinhas no pênis de roedores
e primatas. Farpas no pênis e bigodes igualmente podem
suas diferen- ças, têm a mesma estrutura corporal básica, não desaparecer se um interruptor crucial do DNA é perdido e o
surpreende que o amplo terreno contendo interruptores em receptor androgênico não for mais feito nesses tecidos.
nossos genomas tenha muitas similaridades. Enquanto seguia com meus experimentos, outros se ocupavam
O que importava para nós eram as diferenças. Especificamente, com as supressões que haviam escolhido, também com resultados
queríamos descobrir sequências que tinham sido preservadas ao fascinantes. O então pós-graduando Alex Pollen descobriu que
longo da evolução em muitas espécies (indicativo de que eram sua porção de DNA ativava o gene neural próximo em pontos
sequências importantes), mas não estavam mais presentes nos precisos no cérebro em desenvolvimento. O gene está envolvido
humanos. Para fazer isso, nossos colaboradores genômicos com num processo-chave: ajuda a matar os neurônios excedentes, que
CORTESIA DE PHILIP L. RENO
putacionais compararam, primeiramente, os genomas de são produzidos em demasia durante o desenvolvimento do embrião.
chimpanzés, macacos e ratos. Eles apontaram centenas de trechos Isso leva a um pensamento tentador: como o cérebro humano é
de DNA que permaneceram quase inalterados entre as três espécies. muito maior que o do chimpanzé (1.400 cm3 ante 400 cm3), a
O próximo passo era esquadrinhar essa lista para encontrar perda desse interruptor poderia ter contribuído para tal aceleração
porções que não existiam no genoma humano e, portanto, tinham evolutiva, ao liberar os freios para o crescimento do cérebro?
Vahan B. Indjeian, então um pós-doutorando no laboratório, ela, um acasalamento bem-sucedido gera um compromisso
descobriu, de modo parecido, que seu interruptor ligava o gene considerável — gestação, amamentação e criação de cada cria
ligado ao crescimento do esqueleto, desenvolvendo membros até sua independência — e a fêmea não reproduz de novo
pos- teriores, especificamente os dedos dos pés. Os humanos enquanto o desmame não terminar.
têm os segundo, terceiro, quarto e quinto dedos mais curtos Humanos são diferentes. Eles formam laços entre pares
que os primatas e ratos, alterações que aprimoram o pé para bastante fiéis. Homens com frequência ajudam a criar os filhos,
o andar ereto. permitindo o desmame antecipado e aumentando a taxa de
É fácil ver como interruptores do cérebro e ossos se encaixam reprodução. A competição entre machos não é tão intensa. Nós
no padrão da evolução humana. A perda de ambos parece acreditamos que a perda dos pênis espinhosos aconteceu
relacionada com as marcas da humanidade: um cérebro grande juntamente com a perda de outros traços associados à competição
e o caminhar sobre duas pernas. A perda dos bigodes sensoriais acirrada (como os perigosos caninos) e o ganho de outros traços
é bastante fácil de racionalizar porque nós não farejamos mais que promoveram a união e a cooperação.
no escuro usando o focinho para encontrar comida ou capturar O bipedismo, como Lovejoy propôs, pode ser uma dessas
presas, mas usamos as mãos, à luz do dia, para encontrar características. É provável que a ajuda do macho inicialmente
alimentos. Apesar de sua importância reduzida, no entanto, não tenha tomado a forma de procurar alimentos ricos em gorduras
está claro como estaríamos melhor sem esses bigodes. e proteínas, como larvas, insetos e pequenos vertebrados que
exigiam busca e transporte. Os machos precisavam caminhar
RELAÇÕES SENSÍVEIS com as mãos livres para transportarem a carga, o que
A questão do pênis espinhoso é menos intuitiva, mas é provavelmente deu lugar à vantagem seletiva inicial para andar
potencialmente mais poderosa e também se encaixa perfeitamente sobre duas pernas.
na história de adaptação da nossa espécie. A perda de espinhos,
acreditamos, é uma de uma série de mudanças que juntas tiveram PERDA DE GENE E GANHO DE TRAÇOS
efeitos de grande alcance em nosso caminho evolutivo. Em E ainda há mais. Cooperação e aprovisionamento também
conjunto essas mudanças alteraram a maneira como acasalamos, teriam permitido que os pais criassem filhos dependentes por
a aparência física de machos e fêmeas, nossa relação de uns mais tempo e assim prolongassem o período juvenil após o
com outros e as formas como cuidamos de nossa prole. desmame. Isso teria propiciado um tempo maior para o
Feitos de queratina, a mesma substância de nossas unhas, aprendizado e, portanto, maximizado a utilidade de um cérebro
esses espinhos ocorrem em muitos mamíferos, incluindo grande e ágil — talvez abrindo espaço, de fato, para sua evolução.
primatas, roedores, gatos, morcegos e gambás, e variam desde Nesse sentido, as histórias individuais de nossas três perdas
simples cones microscópicos a grandes farpas e pontas estão profundamente interligadas.
multifacetadas. Eles podem ter várias funções, dependendo da Quando cheguei ao laboratório de Kingsley eu não imaginava
espécie: maximizar a estimulação, induzir a ovulação, remover o rumo que meu trabalho tomaria — que eu me encontraria
esperma depositado por outros machos ou irritar o revestimento debruçado sobre antiquados textos dos anos 1940 sobre estrutura
vaginal para limitar o inte- resse da fêmea em se acasalar com genital dos mamíferos. Meu laboratório está dando continuidade
outros. O tempo de cópula dos primatas dotados de espinhos a essa e outras pesquisas genéticas e mudanças evolutivas com
é curtíssimo: nos chimpanzés, tipicamente menos de dez grandes consequências: a modelagem evolutiva de delicados
segundos. E experimentos históricos com primatas mostram ossos no pulso humano a fim de aperfeiçoá-lo para a fabricação
que a remoção dos espinhos do pênis pode estender a cópula de ferramentas.
em dois terços. A partir dessas observações podemos depreender Talvez nunca saibamos muita coisa sobre toda essa história
que a perda dos espinhos penianos foi uma das mudanças em distante, não importa o quanto possamos descobrir a respeito.
humanos que fizeram o ato sexual ser mais demorado e, assim, Mas, mesmo se não pudermos ter certeza sobre o porquê de
mais íntimo, comparado com o de nossos antepassados com uma mudança evolutiva, com os instrumentos da moderna
espinhos. Isso soa agradável, mas também pode ter servido à biologia molecular podemos agora descobrir o como — uma
nossa espécie de uma perspectiva evolutiva. questão que é, em si, fundamental e fascinante.
Nossa própria estratégia reprodutiva é diferente da de qualquer
primata, que tem, no centro, intensa competição entre machos. PA R A C O N H E C E R M A I S
Entre chimpanzés e bonobos, os machos competem para se
Evolving New Skeletal Traits by Cis-Regulatory Changes in Bone
acasalar com quantas fêmeas férteis conseguirem. Eles produzem Morphogenetic Proteins. Vahan B. Indjeian et al. em Cell, vol. 164, nos 1–2, págs.
abundante quantidade de esperma (testículos de chimpanzés 45–56; 14 de janeiro de 2016.
são três vezes maiores que os de humanos), têm pênis espinhosos Genetic and Developmental Basis for Parallel Evolution and Its Significance for
e, como todos grandes primatas e macacos machos, têm caninos Hominoid Evolution. Philip L. Reno em Evolutionary Anthropology: Issues, News,
and Reviews, vol. 23, nº 5, págs. 188–200; setembro/outubro de 2014.
mortais como presas para desencorajar rivais. Eles deixam a
criação dos filhotes inteiramente para as fêmeas. Assim, para
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POR QUE SÓ O
HOMO SAPIENS
PERDUROU
ATÉ A parte 1
ERA
MODERNA?
O HOMINÍNEO
QUE SOBREVIVEU
K AT E WO N G : :
I LU S T R AÇ ÃO D E Y U KO S H IMIZ U
Cerca de 40 mil anos atrás, com base nas evidências T EORIA AMEAÇADA
atuais, o Homo sapiens se viu sozinho, como único O debate sobre a origem de nossa espécie
membro remanescente do que chegou a ser uma tradicionalmente se concentrou em dois modelos
família incrivelmente diversa de primatas bípedes, concorrentes. De um lado estava a hipótese da Origem
conhecidos em conjunto como hominíneos. (Nesse Recente Africana, defendida pelo paleoantropólogo
artigo, os termos “humano” e “hominíneo” referem Christopher Stringer e outros, que argumentam que
‑se ao Homo sapiens e seus parentes extintos.) Como o Homo Sapiens surgiu no Leste ou no Sul da África
o nosso tipo tornou-se o último humano em pé? nos últimos 200 mil anos e, por causa de sua inerente
Até há poucos anos, cientistas privilegiavam uma superioridade, substituiu depois as espécies arcaicas
explicação simples: o Homo sapiens surgiu de hominíneos ao redor do globo sem qualquer grau
relativamente recentemente, mais ou menos em sua significativo de procriação cruzada entre eles. Do
forma atual, em uma única região da África e dali se outro lado estava o modelo de Evolução Multirregional,
espalhou para o restante do Velho Mundo, suplantando formulado pelos paleoantropólogos Milford Wolpoff,
os neandertais e outras espécies humanas arcaicas Xinzhi We e o falecido Alan Thorne, que defende que
que encontrou pelo caminho. Não houve miscigenação o Homo Sapiens moderno evoluiu de neandertais e
EM SÍNTESE considerável interespécies, apenas a substituição outras populações arcaicas no Velho Mundo,
Até recentemente, o generalizada da velha guarda pelos recém-chegados conectadas por migração e acasalamento. Sob esse
modelo dominante da mais espertos, cuja supremacia parecia inevitável. ponto de vista, o Homo Sapiens tem raízes bem mais
origem humana defendia Mas o aumento das evidências obtidas com profundas, remontando a quase dois milhões de anos.
que o Homo sapiens surgiu descobertas arqueológicas e fósseis, além de análises No início dos anos 2000, o modelo Origem Recente
de uma única região da de DNA, levou os especialistas a cada vez mais Africana reunia evidências abundantes em seu favor.
África e substituiu espécies repensarem esse cenário. Parece agora que o Homo Análises do DNA de pessoas vivas indicavam que
humanas arcaicas no Velho
sapiens se originou bem antes do que se acreditava, nossa espécie se originou a não mais de 200 mil anos
Mundo sem cruzamento
com elas. possivelmente em locais espalhados pela África e atrás. Os mais antigos fósseis conhecidos atribuídos
Novas descobertas da não em uma única região, e alguns de seus traços a nossa espécie vinham de dois locais na Etiópia,
arqueológica, paleontologia característicos — incluindo aspectos do cérebro — Omo e Herto, datados de cerca de 195 mil e 160 mil
e genética estão evoluíram aos poucos. Além disso, ficou bem claro anos, respectivamente. E sequências de DNA
reescrevendo essa história. que o Homo sapiens misturou-se com outras espécies mitocondrial (os minúsculos círculos de material
As mais recentes humanas que encontrou e que a miscigenação pode genético encontrados nas centrais de energia da
pesquisas sugerem que o ter sido crucial para nosso sucesso. Essas descobertas célula, que são diferentes do DNA contido no núcleo
Homo sapiens surgiu de
pintam, em conjunto, um quadro muito mais da célula) recuperadas de fósseis de neandertal eram
grupos localizados ao longo
da África e que a complexo de nossas origens do que muitos diferentes do DNA mitocondrial de pessoas de hoje
reprodução cruzada com pesquisadores haviam imaginado, um que favorece — exatamente como se esperaria caso o Homo sapiens
outras espécies humanas a ideia de sorte, não de destino, quanto ao êxito de tenha substituído espécies de humanos arcaicos sem
contribuiu para nosso êxito. nossa espécie. acasalar com eles.
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pesquisadores concordam, só foi reunido em algum Deserto do Saara em uma vastidão exuberante de
momento entre 100 mil e 40 mil anos atrás. Então, vegetação e lagos. Esses episódios de Saara verde,
o que aconteceu no período de 200 mil anos ou mais como são conhecidos, teriam permitido que
que transformou nossa espécie do hominíneo populações antes isoladas pela inclemência do
corriqueiro em uma força da natureza conquistadora deserto se reunissem. Quando o Saara voltasse a
do mundo? Cientistas cada vez mais pensam como secar, populações se separariam de novo e poderiam
o tamanho e a estrutura da população inicial de viver seus próprios experimentos evolucionários por
Homo sapiens podem ter contado para a metamorfose. outro período até o retorno do verde.
Em um estudo publicado on-line em julho em Trends Uma população subdividida em grupos com cada
in Ecology & Evolution, a arqueóloga Eleanor Scerri, um se adaptando ao seu próprio nicho ecológico,
da Universidade de Oxford, e um grande grupo mesmo que migrações ocasionais entre grupos os
interdisciplinar de coautores, incluindo Stringer, mantivessem conectados, explicaria não apenas o
defendeu o que denominaram o modelo do mosaico da evolução da anatomia diferenciada do
Multirregionalismo Africano para a evolução do Homo sapiens, mas também o padrão de colcha de
Homo sapiens. Os cientistas ressaltaram que os retalhos da IPM, dizem Scerri e seus coautores.
primeiros supostos membros de nossa espécie — ou Diferentemente das ferramentas acheulianas, que
seja, os fósseis de Jebel Irhoud, do Marrocos, e os parecem ser relativamente iguais em todos os lugares
fósseis de Herto e Omo Kibish, da Etiópia, e um em que apareceram no Velho Mundo, as ferramentas
crânio parcial de Florisbad, África do Sul — parecem da IPM exibem consideráveis variações regionais.
muito diferentes das pessoas modernas. Tanto que Sítios que vão de 130 mil a 60 mil anos atrás no
alguns pesquisadores argumentaram que eles Norte da África, por exemplo, contêm tipos de
ferramentas não encontrados em sítios
do mesmo período no Sul da África,
Nós podemos ter, de fato, uma incluindo instrumentos de pedra com
parentes extintos pelo nosso êxito. mesma forma, sítios no Sul da África
contêm ferramentas finas em forma de
folha feitas de pedra que foi aquecida
pertencem a diferentes espécies ou subespécies. para melhorar sua mecânica de fratura — esses
“Mas talvez os primeiros Homo sapiens simplesmente implementos não aparecem nos registros do Norte
tivessem uma diversidade absurda”, sugere Scerri. da África. Tecnologia complexa e simbolismo se
E talvez procurar um único ponto de origem para tornaram mais comuns no continente com o tempo,
nossa espécie, como muitos pesquisadores vêm mas cada grupo tem sua própria forma de agir,
fazendo, é uma “busca em vão”, opina ela. adaptando sua cultura aos seus nichos e costumes
Quando Scerri e seus colegas examinaram os específicos.
últimos dados de fósseis, DNA e arqueologia, o O Homo sapiens não foi o único hominíneo a
surgimento do Homo sapiens começou a parecer desenvolver cérebro maior e comportamento
menos uma história de origem única e mais um sofisticado, no entanto. Hublin ressalta que fósseis
fenômeno pan-africano. Em vez de evoluírem como humanos de 300 mil a 50 mil anos atrás encontrados
uma pequena população em uma região particular na China, que ele suspeita serem de denisovanos,
da África —eles propõem—, nossa espécie surgiu exibem tamanho aumentado de cérebro. E
como uma grande população que foi subdividida neandertais inventaram ferramentas complexas e
em grupos menores distribuídos pelo vasto continente suas próprias formas de expressão simbólica e
africano que ficavam com frequência semi-isolados conexão social durante seu longo domínio. Mas
por milhares de anos a cada período por causa da esses comportamentos não parecem ter se tornado
distância e de barreiras ecológicas como os desertos. tão desenvolvido ou integral ao seu modo de vida
Esses episódios de solidão permitiram que cada quanto acabaram sendo no nosso, observa o
grupo desenvolvesse suas próprias adaptações arqueólogo John Shea, da Universidade Stony Brook,
biológicas e tecnológicas aos seus próprios nichos, que acredita que habilidades avançadas de linguagem
fosse uma árida floresta ou um gramado de savana, permitiram que o Homo sapiens triunfasse.
uma floresta tropical ou a costa marinha. Com muita “Todos esses grupos evoluíam no mesmo sentido”,
frequência, no entanto, os grupos entravam em diz Hublin. “Mas nossa espécie cruzou um limiar
contato, permitindo o intercâmbio genético e cultural antes dos demais em termos de habilidade cognitiva,
que alimentou a evolução de nossa linhagem. complexidade social e sucesso reprodutivo”. E quando
A mudança climática pode ter impulsionado a cruzou, há cerca de 50 mil anos, na estimativa de
fratura e a reintegração de subpopulações. Dados Hublin, “o leite fervido transbordou da panela”.
paleoambientais, por exemplo, mostraram que a Forjado e polido na África, o Homo sapiens pode
cada 100 mil anos mais ou menos, a África entra entrar em virtualmente todos ambientes da Terra
em uma fase úmida que transforma o proibitivo e prosperar. Tornou-se invencível.
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COMO
APRENDEMOS
A COLOCAR
NOSSO
DESTINO parte 2
NAS MÃOS
ALHEIAS
AS ORIGENS DA
MORALIDADE
M I C H A E L TO M A S E L L O : :
I LU S T R AÇ ÃO D E Y U KO S H IMIZ U
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Evolução da moralidade humana moderna
Animais com frequência cooperam com outros de sua própria espécie. Mas o jeito como
humanos o fazem é diferente. A forma humana de cooperação — conhecida
simplesmente como moralidade — se distingue por duas maneiras Interesse
próprio
relacionadas. Uma pessoa pode ajudar a outra com base em motivos
desinteressados movida por compaixão, preocupação e
benevolência. Membros de um grupo também podem buscar
meios para que todos se beneficiem com a adoção de regras
para promover a lealdade, a equidade e a justiça. Essas 6 milhões
capacidades evoluíram por centenas de milhares de anos à de anos
atrás
medida que humanos começaram a trabalhar juntos por conta
da necessidade básica de sobrevivência. Os aspectos
cognitivos e sociais desse processo podem ser entendidos por
meio do conceito filosófico da intencionalidade: as formas como
indivíduos interpretam o mundo e perseguem seus objetivos.
Intencionalidade individual
Uma capacidade de mudar de comportamento com flexibilidade
para atingir um objetivo em particular — geralmente para efeitos
de competição com outros — caracteriza a intencionalidade
individual. O comportamento do chimpanzé é em grande medida Busca
impulsionado pela perspectiva do interesse próprio, como era o colaborativa
do ancestral comum de humanos e chimpanzés — e talvez isso de alimento
tenha motivado também os primeiros membros da linhagem de “Nós”
hominins. Um exemplo desse comportamento ocorre quando antes
chimpanzés buscam plantas para se alimentar. Um pequeno de “eu”
grupo de animais procura junto, mas quando eles encontram
frutas, cada um pega seu quinhão e come separadamente sem
interagir com outros membros do grupo. Uma série semelhante
de comportamentos relativamente autocentrados são exibidos
quando eles caçam presas.
400 mil
anos atrás
Intencionalidade conjunta
Há cerca de 400 mil anos, um ancestral direto dos humanos — o
Homo heidelbergensis — começou a buscar fontes de alimentos
melhores. Caçar auroques e outros animais maiores, em vez de
lebres, exigiu cooperação intensificada e intencionalmente
conjunta, com foco nos objetivos comuns. Esse tipo de trabalho
de equipe contrastava com a luta de cada animal por si dos
chimpanzés durante a caçada de um macaco. Para sobreviver, os
caçadores-coletores paleolíticos tiveram de tornar suas práticas
de busca de alimentos “obrigatórias” e não apenas uma questão
de opção. Indivíduos escolhidos para a caça eram selecionados
porque entendiam implicitamente a necessidade de cooperar e Pressão
não monopolizar o resultado da iniciativa. para organização
Uma “moralidade da segunda pessoa” surgiu, pela qual ficava cultural
entendido que o “eu” tinha de ser subordinado ao “nós”. Moralidade
do certo
e errado
Intencionalidade coletiva
Quando os grupos começaram a crescer de tamanho 150 mil anos
atrás, os bandos menores que formavam uma tribo desenvolveram
uma série de práticas comuns que representavam o início formal
das culturas humanas. Um conjunto de normas, convenções e
instituições surgiu para definir os objetivos do grupo e estabelecer 100 mil
divisões do trabalho que determinava papéis para cada um de seus anos atrás
membros — uma intencionalidade coletiva que distinguia uma
tribo. Esses objetivos eram internalizados por cada membro da
tribo como uma “moralidade objetiva” pela qual todos sabiam
imediatamente a diferença entre certo e errado conforme o
determinado pelo conjunto de práticas culturais do grupo.
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36 Scientific American Brasil
E VOLUÇ ÃO
A
VERDADEIRA
PALEODIETA
Sinais microscópicos de desgaste em fósseis de dentes revelam
o que nossos ancestrais comiam — e oferecem insights
sobre como a mudança climática moldou a evolução humana
Peter S. Ungar
Ilustração de Jon Foster
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E
Peter S. Ungar é paleontólogo da Universidade do
Arkansas. Sua pesquisa foca a dieta e adaptações
alimentares em primatas vivos e fósseis, incluindo
ancestrais humanos. Seu mais recente livro é
Evolution’s Bite ( Princeton University Press, 2017).
especialização em objetivos duros não exclua o consumo mangabei fuliginoso da Costa do Marfim, por exemplo,
de alimentos mais moles, ela pode dar ao animal mais tem dentes com esmalte espesso e fortes mandíbulas
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e, de fato, preferem alimentos duros. Boa parte de seu tempo A árvore da família humana tem muitos ramos.
de coleta de alimentos é dedicada a esquadrinhar o solo da Atualmente, o Homo sapiens é a única espécie humana
floresta em busca de sementes da árvore Sacoglottis, que têm viva, mas, no passado, muitas espécies humanas, ou
invólucros que parecem caroços de pêssego. Scott McGraw hominíneos, partilhavam o planeta. Por que nossa
argumenta que essa prática permite que eles evitem competir linhagem sobreviveu quando outras se extinguiram é
por alimento com as dez outras espécies de primatas que vivem uma questão que perdura. Minha incursão nesse mistério
na região. Assim como os gorilas diferem na frequência com que começou quando decidi estudar a dieta de membros
ingerem alimentos desafiadores em termos mecânicos, alguns de um desses extintos ramos, um grupo de espécies
mangabeis os comem o tempo todo e outros só o fazem em raras pertencente ao gênero Paranthropus. Os Paranthropus
ocasiões. viveram no Leste e Sul da África entre 2,7 milhões e 1,2
Exemplos como esses mostram que a escolha alimentar dos milhão de anos atrás, durante a época do Pleistoceno.
primatas é complexa e depende não apenas dos dentes, mas Nenhuma dessas espécies deu origem a nós; eles eram
também da disponibilidade, mais experiências evolucionistas
concorrência e preferência pessoal. O que caminhavam ao lado de
formato dos dentes pode nos dizer algo
sobre o que um animal no passado era O formato dos dentes pode nossos antigos ancestrais. Os
Paranthropus tinham pré-molares
pegadas alimentares.
de gramíneas ou guepardos carnívoros, descobrir o que elas comiam,
ficam com arranhões longos e paralelos teríamos poucas esperanças de
de quando os dentes opostos deslizam reconstruir dietas de outros fósseis
uns pelos outros, arrastando abrasivos de hominíneos com mandíbulas
entre eles. Espécies que esmagam alimentos duros, como e dentes menos característicos.
mangabeis que comem nozes e hienas que trituram ossos, tendem O paleoantropólogo John Robinson tentou reconstruir
a ter superfícies com microcrateras, cobertas de covas de diversos a dieta do Paranthropus, em 1954. Robinson acreditava
tamanhos e formatos. que os molares e pré-molares grandes, achatados e
Como essas marcas costumam se desgastar e sobrepor em densamente esmaltados do Paranthropus robustus da
questão de dias, podemos aprender algo sobre a variedade, e África do Sul evoluíram para triturar partes de plantas,
talvez até a proporção dos alimentos ingeridos, se considerarmos como brotos e folhas, bagas e frutas silvestres resistentes.
dentes de indivíduos coletados em diferentes momentos e lugares. Partes lascadas nesses dentes sugeriram a ele que o P.
Os padrões de microdesgastes dos mangabeis de Kibale costumam robustus comia raízes e bulbos granulosos. O falecido
se parecer com os de comedores de frutas macias, com riscos Phillip Tobias viu as coisas de forma diferente,
fracos e finas covas, embora uns poucos espécimes tenham covas argumentando nos anos 1960 que as lascas ocorriam
mais acentuadas. Os dentes dos mangabeis de Taï, em durante o consumo de alimentos duros, e não ásperos.
contrapartida, têm superfícies muito mais cheias de crateras, Ao mesmo tempo, Tobias estava descrevendo uma nova
na média. Apesar do formato semelhante dos dentes das duas espécie de Paranthropus do Leste da África, o
espécies, as pegadas alimentares os distinguem como o previsto, Paranthropus boisei. Ao ver seu crânio pela primeira vez,
com base em observações de suas dietas. ele teria dito a famosa frase: “Nunca tinha visto um
quebra-nozes tão admirável”.
M ENUS ANTIGOS Nascia a ideia de um hominíneo especializado em
Com os padrões de microdesgastes de animais vivos cujos hábitos quebrar nozes. O Paranthropus aparecia em acentuado
alimentares são conhecidos a partir de observação direta servindo contraste com os primeiros Homo fósseis encontrados
de guia, cientistas podem usar microdesgastes em fósseis de nos mesmos depósitos sedimentares, com seus dentes
dentes para inferir o que espécies extintas comiam no dia a dia e mandíbulas mais delicados, cérebros maiores e o
e lançar luz sobre suas escolhas alimentares. Com essa finalidade, emergente kit de ferramentas em pedra para processar
meus colegas e eu fizemos um grande esforço para analisar os alimentos. Pesquisadores arrumaram uma explicação
microdesgastes de fósseis humanos. Nosso trabalho gerou para as diferenças, chamada hipótese da savana. Quando
resultados surpreendentes. os prados começaram a se espalhar pela África, nossos
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1 2
surgiram exatamente quando os prados estavam se DIETAS suposto ancestral, e o P. boisei, que vivia juntamente
espalhando pelo Leste e Sul da África, e a mesa do DIVERGENTES: com ele, o H. habilis apresenta uma faixa algo mais
bufê biosférico começava a ficar coberta por relva. Se Enquanto o ampla de texturas de microdesgastes, desde complexas
o P. boisei estava moendo produtos de gramíneas ou Paranthropus superfícies esburacadas até superfícies com simples
ciperáceas com seus grandes dentes achatados e boisei (1) se riscos. A descoberta sugere que o H. habilis comia uma
poderosas mandíbulas em vez de triturar alimentos especializava maior variedade de alimentos do que seus predecessores
duros e quebradiços, isso deveria deixar exatamente em comer ou seus contemporâneos. Seu sucessor H. erectus
o padrão de textura de microdesgaste que meus colegas gramíneas ou apresenta texturas de microdesgastes ainda mais variadas,
e eu encontramos. Essa dieta também explicaria por ciperáceas, seu talvez sugerindo uma dieta também mais ampla.
que o P. boisei desgastava seus molares tão rápido. contemporâneo Esses resultados se encaixam no modelo dominante
Jamais saberíamos isso só examinando os formatos Homo habilis (2) de como a mudança climática moldou a evolução
de seus dentes planos, mas as pegadas alimentares parece ter tido humana, o qual suplantou a hipótese da savana. O
sugerem que as duas espécies de Paranthropus usaram uma dieta mais estudo de dados climáticos de material do oceano
sua anatomia especializada de formas diferentes e abrangente. profundo, feito em meados dos anos 1990 pelo geólogo
inesperadas. Como os mangabeis de Kibale, o P. robustus Nicholas Shackleton, mostrou que havia mais na história
parece ter tido uma dieta generalista que incluía objetos da mudança climática do que supunha a hipótese da
duros. Mas, para o P. boisei, a relação entre dentes e savana. As condições de fato ficaram mais frias e secas
dieta parece ter sido muito diferente do que vemos no longo prazo, mas também houve alterações climáticas
hoje em primatas. Dentes grandes e achatados estão de curto prazo, e estas se tornaram cada vez mais
longe de serem ideais para triturar gramíneas, mas intensas durante a evolução humana.
cada um usa o que tem. E, uma vez que uma plataforma Rick Potts, do Smithsonian, ponderou que esse
de moagem fosse algo melhor do que o que os padrão climático variável favoreceria espécies mais
hominíneos dispunham antes, ela seria selecionada versáteis, incluindo hominíneos — uma ideia que se
como regular, senão ótima, para a tarefa em questão. tornou conhecida como a hipótese da seleção da
O microdesgaste de nossos ancestrais diretos aponta variabilidade. A África no Pleistoceno não era um bom
para uma estratégia alimentar diferente. Meus colegas lugar para um comedor muito exigente. Para Potts, não
e eu olhamos duas espécies primitivas: o mais “primitivo” foi tanto a expansão dos campos de savana, mas a
Homo habilis, um hominíneo com cérebro menor que necessidade de flexibilidade que direcionou a evolução
reteve algumas características relativas à vida nas árvores, humana. Sob essa luz, o cérebro maior do Homo e as
JOHN R. FOSTER Science Source
e o Homo erectus, um hominíneo de cérebro maior, ferramentas de pedras para processar uma variedade
ligado ao solo. Nossas amostras são pequenas porque de alimentos fazem sentido. Eles teriam permitido que
os microdesgastes exigem dentes preservados, e não há nossos ancestrais sobrevivessem a mudanças ambientais
muitos. Mas eles mostram um padrão interessante. cada vez mais intensas e se mantivessem enquanto a
Comparado com o Australopithecus afarensis, seu Natureza oferecia e retirava itens mais rapidamente
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AGULHA
NO
ARQUEOLOGIA
PALHEIRO www.sciam.com.br 45
É sempre um alívio chegar à Caverna
Denisova, no sul da Sibéria. Após uma
viagem de 11 horas cheia de solavancos
para o Sudeste de Novosibirsk,
cruzando a estepe e as encostas dos
montes Altai, o acampamento surge em
uma curva da estrada de terra, e todos
os pensamentos da longa jornada se
dissipam. Vales escarpados, rios correndo
velozmente e as tradicionais casas de madeira do
povo Altai dominam a paisagem, enquanto águias
‑reais sobrevoam nas alturas. A uns 200 metros dali
está a própria caverna calcária, empoleirada bem
acima do rio Anui, que nos acena com a promessa
de uma das mais empolgantes pesquisas em curso
no campo da origem humana.
FRAGMENTO DE OSSO da caverna Denisova, na Sibéria,
é o mais recente espécime a ser identificado como um
membro da família humana/grandes primatas usando
zooarqueologia por espectrometria de massa (ZooMS).
EM SÍNTESE
Durante as partes média e finalida Idade da Pedra, Pesquisadores se esforçampara entender a natureza Agora, uma combinaçãode técnicas está permitindo
o Homo sapiens se espalhou da África para a Eurásia. e a amplitude das interações entre esses grupos durante aos cientistas passar um pente-fino em grandes
Subsequentemente, grupos humanos arcaicos da essa transição. Mas muitos dos sítios arqueológicos quantidades de ossos não identificados e encontrar
região, incluindo neandertais e denisovanos, relevantes desse período não têm fósseis que possam restos humanos que podem ser datados e
desapareceram. ser atribuídos a uma espécie ou outra com base em geneticamente sequenciados. O método já rendeu
sua anatomia. insights sobre a dinâmica interespécies.
PESQUISADORES
inspecionam
depósitos
arqueológicos
na caverna
Denisova antes
de colherem
amostras para
análises por
ZooMS e
datação por
radiocarbono.
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De quem é esse osso, afinal?
Com ZooMS, pesquisadores podem atribuir fragmentos de ossos ao seu grupo taxonômico correto. O ZooMS analisa a proteína
de colágeno preservada no osso. Uma enzima corta o colágeno nas cadeias de peptídeos que o compõem. Um espectrômetro de
massa usa um laser para transmitir uma carga elétrica aos peptídeos, que então correm em direção a um detector que mede
quando cada peptídeo o atinge. O espectro de valores resultante é uma “impressão digital” única que pode ser comparada com
uma biblioteca de impressões digitais de colágeno de espécies conhecidas para identificar um osso misterioso.
Amostra de osso é
colocada em base ou Colágeno Fragmentos
ácido forte para extrair extraído de peptídeos
o colágeno
Colágeno do Laser
Peptídeos são inseridos em
osso estruturado um espectrômetro de massa
A mistura de peptídeos
longos e curtos exclusiva a
uma espécie resulta em um
Detector espectro característico
Peptídeos Peptídeos
curtos, longos,
rápidos lentos
Intensidade
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1 2
ANALISAR nossas amostras, DC1227, tinha os marcadores de ossos “inúteis” e provado que o conceito funcionaria.
fragmentos peptídeos característicos que codificam os hominídeos. A equipe de Pääbo estava planejando extrair o muito
fósseis utilizando Nós tínhamos um fragmento de osso humano — a mais informativo genoma nuclear do osso, que ganhou
ZooMS exige proverbial agulha no palheiro! Ficamos eufóricos. Nossa a identidade fóssil “Denisova 11”, ou “Denny”, como o
cortar uma ideia maluca parecia ter dado resultado. apelidamos. Enquanto isso, decidimos testar nosso
amostra de 20 No dia seguinte fomos para nosso laboratório em método em outro sítio.
miligramas de Oxford para encontrar o osso entre as amostras arquivadas.
cada minúsculo Ficamos um pouco desanimados quando vimos que o NÓS CONTRA ELES
espécime (1). osso que tínhamos era minúsculo mesmo para um A caverna Vindija, n a Croácia, é um sítio-chave para
Outras amostras espécime de Denisova — apenas 25 milímetros de entender os neandertais na Europa. Por muitos anos,
são preparadas comprimento — o que não deixava muito espaço para a datação por radiocarbono indicava que os neandertais
para datação por mais estudos. Mas, dada a excepcional preservação poderiam ter sobrevivido até 30 mil anos atrás, uma
radiocarbono (2) . biomolecular dos restos de Denisova, acreditamos que evidência para uma potencial fase de sobreposição
seria suficiente para permitir a aplicação de técnicas que com humanos anatomicamente modernos, que chegaram
queríamos usar para descobrir o máximo que pudéssemos à região entre 42 mil e 45 mil anos. Uma coexistência
de um osso. Nós o fotografamos em alta resolução, o tão longa sugere que, em vez de terem sido empurrados
submetemos a uma tomografia computadorizada, e para a extinção por humanos, os neandertais foram
perfuramos para coletar amostras adicionais para análise assimilados em sua população. Enquanto reavaliávamos
de isótopo e datação antes que Brown levasse o osso a cronologia Vindija, decidimos que poderia ser
para análise de DNA no laboratório de Pääbo. interessante usar o ZooMS para examinar os ossos não
Várias semanas depois saíram os resultados da identificados do sítio. Um trabalho anterior com os
datação. A ausência de qualquer carbono radioativo ossos mais completos de Vindija mostrou que ursos
rastreável na amostra indicava que nosso pequeno osso da caverna dominavam os restos mortais, respondendo
tinha mais de 50 mil anos. E não demorou muito para por cerca de 80% dos ossos, logo não esperávamos
que Pääbo nos dissesse que seu DNA mitocondrial — encontrar a variedade e abrangência da fauna que
que reside nas organelas celulares que produzem havíamos detectado em Denisova. Cara Kubiak, então
energia e é passado de mãe para filho — indicava que outra de nossas estudantes, dedicou-se ao projeto.
o osso vinha de um indivíduo que tinha uma mãe Surpreendentemente, a 28ª amostra das 383 que
neandertal. Nós tínhamos encontrado um fragmento analisamos rendeu uma sequência de peptídeos
de osso de hominíneo escondido entre milhares de consistente com hominídeos. Posteriormente, a equipe
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PA L E O A N T R O P O L O G I A
UMA NOVA
JORNADA
PARA O
GÊNERO
HOMO Descoberta de ferramentas na Jordânia faz
recuar em meio milhão de anos data de saída do
homem da África e pode ajudar a solucionar
vários enigmas da evolução humana
Walter Neves, Giancarlo Scardia, Fabio Parenti, Astolfo Araújo
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E m 2013, dois dos autores deste
artigo, Fabio Parenti e Walter
Neves, foram visitar uma série de
antigos sítios arqueológicos na
região do vale do rio Zarqa, na
Jordânia. Parenti havia trabalhado
ali nos anos 1990, escavando
ferramentas da Idade da Pedra, e
junto com Neves retornava à área com o intuito
de retomar o trabalho. Ao observar os diversos
barrancos duros feito concreto que se
espalhavam pela paisagem seca, Neves,
veterano de quatro décadas de escavações na
América do Sul, sentiu-se deslocado. “Mas
como é que vamos criar uma área de escavação
aqui?”, indagou. “Aqui a escavação tem que ser
na vertical!”, respondeu Parenti. LÍBANO
SÍRIA
Haifa
EM SÍNTESE
Ferramentas líticasencontradas por pesquisadores A descoberta fazrecuar em meio milhão de anos a A hipótese de queo Homo habilis se espalhou pela
brasileiros e italianos na Jordânia foram datadas data estimada de saída da África do gênero Homo. Eurásia pode jogar uma nova luz sobre algumas das
em cerca de 2,5 milhões de anos, o que faz delas Achava-se que o primeiro a deixar a África teria sido maiores polêmicas envolvendo a evolução do gênero
o mais antigo material lítico que já foi encontrado o Homo erectus, mas agora é o Homo habilis que Homo, como os fósseis encontrados em Dmanisi, na
fora da África. parece ter sido o criador das ferramentas. Geórgia e na Ilha de Flores.
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registro fóssil, os primeiros hominínios conhecidos aparecem
Como se descobriu a há cerca de 7 milhões de anos. Eles são classificados em três
grandes grupos, em ordem cronológica: os pré-australopitecínios,
idade das ferramentas? os australopitecínios e os Homo.
A característica que define esta linhagem é a bipedia, isto
Um fóssil ou um artefato é HOLOCENO é, a possibilidade de se locomover sobre duas pernas. Hoje se
0
geralmente datado pela idade do sabe que a evolução para a bipedia ocorreu em duas fases
Sup.
sedimento no qual é encontrado. complementares: primeiro surgiu a bipedia facultativa, associada
Há vários métodos para datá-los, a uma anatomia extremamente adaptada à vida nas árvores.
dependendo do tipo de Provavelmente, os primeiros hominínios não eram lá muito
Brunhes
Médio
sedimento ou rocha presente. No eficientes quando tinham que se deslocar no chão, embora
caso do vale do rio Zarqa foram 0,5 fossem capazes de fazê-lo. Só bem mais tarde apareceu a bipedia
encontrados depósitos fluviais estritamente terrestre, com o surgimento do Homo erectus a
acima de um basalto (lava partir de 1,8 milhão de anos.
solidificada preta enriquecida de No modelo evolutivo tradicional, toda a evolução hominínia
silicatos de magnésio e ferro) e ocorreu entre 7 milhões e 1,8 milhão num só lugar: a África.
abaixo do chamado caliche Até fins dos anos 1990 assumia-se que qualquer hominínio que
1
(horizonte de calcário produzido tivesse se aventurado fora da África deve ter possuído três
PLEISTOCENO
isótopos do potássio para o hominínios que o precederam. Mais importante ainda: o modelo
argônio e do urânio para o 1,5 tradicional estabelece que essa primeira saída não poderia ter
chumbo, respectivamente. ocorrido antes de aproximadamente 1,5 milhão de anos, quando
Inferior
Esses métodos são parecidos se estima ter surgido na África a indústria lítica conhecida
com o conhecido método do como Acheulense.
radiocarbono, usado para datar O conceito de indústria lítica serve para descrever os métodos
matéria orgânica mais recente 2 de fabricação de ferramentas de pedras que os hominínios
que 50 mil anos. Os minerais foram desenvolvendo ao longo do tempo. As mais antigas
incorporam um isótopo “pai” ferramentas de pedra lascada conhecidas até o momento foram
(urânio ou potássio no nesso encontradas em Kada Gona, na Etiópia, e são datadas de 2,7
caso) no momento de sua milhões de anos. Essas ferramentas são conhecidas como
formação, seja por solidificação, indústria Olduvaiense, porque foram descritas primeiro na
no caso da lava, ou precipitação 2,5 Garganta de Olduvai, na Tanzânia. Essa indústria era muito
química, no caso da calcita do simples, basicamente caraterizada por golpes controlados e
Piacenziano
mineral, o isótopo “pai” decai, (percutor ou martelo) sobre uma pedra mais macia (núcleo),
formando novos átomos “filhos” a fim de retirar dessas últimas lascas extremamente cortantes
em um ritmo constante. Medindo 3 de vários tamanhos.
com espetrômetros de massa a As lascas eram usadas para remover a carne de carniças
razão entre átomos pai e átomos remanescentes de animais caçados por grandes felinos, próximas
Intervalos de polaridade
filhos (e fazendo várias assunções magnetica normal a rios e lagos, antes que as hienas as atacassem. Por que carniças?
e correções) é possível calcular a Intervalos de polaridade Simples: com o arsenal Olduvaiense seríamos incapazes de
idade da formação do mineral ou magnetica inversa matar qualquer grande mamífero.
da rocha analisados. Hoje, graças aos estudos de microtraços de utilização
A idade da Formação Dawqara encontrados na borda de vários artefatos Olduvaienses, sabemos
(e dos artefatos ali encontrados) também foi confirmada pelo que, no início, os hominínios lascadores não tinham qualquer
paleomagnetismo. As rochas atuam como um meio natural modelo mental de ferramenta formal em seus cérebros. Eles
de gravação magnética e, no momento da sua formação, buscavam apenas lascas com gumes muito cortantes. Só com
preservam o sinal do campo magnético terrestre (sobretudo o surgimento da Indústria Acheulense na África, por volta de
a sua direção). O campo magnético da Terra não é fixo, mas 1,7 milhão de anos, os primeiros hominínios começaram a
muda de direção ao longo do tempo, invertendo o polo impor sobre a pedra, também por lascamento controlado,
norte com o polo sul e vice-versa. Essas inversões de modelos formais de ferramentas líticas.
polaridade magnética estão bem conhecidas e datadas Até recentemente, dizia-se que o gênero Homo teria surgido
(gráfico acima). Assim, no caso de uma sucessão vertical de há não mais que 1,8 milhão de anos no continente africano,
sedimentos como no vale do rio Zarqa, é possível “ler” a com base em achados na Garganta de Olduvai, na Tanzânia, e
historia das inversões do campo magnético terrestre e nas margens do Lago Turkana, no Quênia. No último caso, três
conhecer o momento de deposição da Formação Dawqara. espécies parecem ter sido contemporâneas já nessa data: Homo
habilis, Homo rudolfensis e até certo ponto o Homo erectus.
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EM DMANISI,na República da Geórgia, foram encontrados
fósseis que combinam características mais primitivas com
outras mais modernas. Da esquerda para direita veem-se os
crânios 1, 2, 3, 4 e 5 em visão frontal (acima) e lateral (abaixo).
O grande problema é que não há um critério claro para estritamente terrestre, exibiam muito mais afinidades
definir o gênero Homo. Le Gross Clark, um dos pais da moderna morfológicas com os demais representantes do gênero Homo,
paleoantropologia britânica, sugeriu, ainda nos anos 1950, que incluindo o H. erectus, do que com qualquer australopitecínio.
nenhum hominínio com menos de 750 cm3 de capacidade Portanto, defenestrar habilis e rudolfensis do gênero Homo,
craniana poderia ser classificado nesse gênero. Para Louis como desejam Wood e Collard, transferindo-os para o gênero
Leakey, o responsável pelas escavações em Olduvai nos anos Australopithecus, pode fazer todo o sentido do mundo sob uma
1950 e 1960, o critério deveria ser fabricação de ferramentas, perspectiva corporal, mas isso não ocorre quando a morfologia
enquanto que para Bernard Wood, da Universidade de craniana é levada em consideração.
Washington, e Mike Collard, da Universidade de Akron, ambas Embora essa discussão ainda continue em curso, há um certo
dos EUA, o critério deveria ser a bipedia estritamente terrestre. consenso de que o primeiro representante do gênero Homo foi
O primeiro critério caiu logo que Louis Leakey encontrou o habilis e que ele teria surgido na Etiópia há cerca de 2,7 milhões
em Olduvai hominínios com cerca de 650 cm3 fabricando de anos. Mas o que o habilita a ser o primeiro representante do
ferramentas de pedra lascada, o que era impensável para Le nosso gênero? Capacidade craniana de cerca de 650cm3 superior
Gross Clark. O segundo, quando Tim White, da Universidade à de qualquer australopitecínio; uma face pouco projetada; e
de Berkeley, encontrou em 1996 no Afar, na Etiópia, ferramentas por último, mas não menos importante: dentes muito pequenos,
putativamente associadas ao Australopithecus garhi, datado no que se assemelha bastante ao Homo sapiens.
de 2.5 milhões de anos.
O terceiro critério fez sucesso por pelo menos uma década, O ESTRANHO HOMEM DA GEÓRGIA
até que um dos autores (WN), junto com colegas argentinos, Mas afinal, quando os primeiros hominínios t eriam deixado a
publicou na revista Nature um estudo mostrando que os crânios África e qual teria sido esse hominínio? Um sítio encontrado
de H. habilis e H. rudolfensis, que não apresentavam bipedia no início dos anos 1990 fora da África é fundamental para
58 Scientific American Brasil Fotografia de Ani Margvelashvili – Museu Nacional da Geórgia
responder ambas as perguntas: Dmanisi, na República da craniana — um assunto ao qual voltaremos mais à frente.
Geórgia, que fica entre Europa e Ásia. O segundo fator de grande destaque em Dmanisi é sua
O sítio de Dmanisi fica num
promontório basáltico definido
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Uma nova jornada para o homem
DESCOBERTA NA JORDÂNIA AJUDA A REPENSAR EVOLUÇÃO DO GÊNERO HOMO E SUA EXPANSÃO PELO PLANETA.
3 3
2 4 2 4
1 2
1
1 Surge na África, há cerca de 2,7 milhões de anos, 1 O Homo habilis surge na África há 2,7 milhões de
o Homo habilis, o primeiro hominínio a fabricar anos.
ferramentas de pedra lascada.
2 O Homo erectus, um descendente do habilis, teria 2 O Homo habilis logo se desloca em direção ao
sido o primeiro a deixar a África em direção ao Oriente Médio, aonde chegou por volta de 2,5
Oriente Médio, cerca de 2 milhões de anos atrás. milhões de anos.
3 O Erectus se espalha pela Eurásia e por volta de 3 O Homo habilis se desloca para o norte da Eurásia
1,8 milhão de anos, o erectus já estava na Geórgia, e passa por transições que levariam ao Homo
onde deu origem ao Homo Georgicus. erectus.
4 A espécie continua se espalhando pelo continente 4 Por fim, o Homo floresiensis também seria um
asiático. Outro descendente da migração do hominínio surgido a partir desta expansão
erectus foi o Homo floresiensis, que habitou a ilha de primitiva do Homo habilis.
Flores, na Indonésia, até apenas 60 mil anos atrás
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De onde viemos?
Nós pertencemos a uma linhagem evolutiva conhecida como Hominínia, que está organizada em três grandes grupos: os pré-
australopitecíneos, ou hominínios antigos, os australopitecíneos (em laranja) e o gênero Homo (verde),de onde surgiu o Homo sapiens.
Denisovans
1 MILHÃO
DE ANOS Homo_neanderthalensis
Homo_floresiensis
Homo_heidelbergensis
Homo_antecessor
2 MILHÕES
DE ANOS
Paranthropus_robustus
Homo_erectus Homo_rudolfensis Homo_habilis Australopithecus_sediba Paranthropus-boisei
3 MILHÕES
DE ANOS HUMANOS Austrelopithecus_garhi Australopithecus_africanus
Paranthropus_aethiopicus
4MILHÕES
DE ANOS
Kenyanthropus_platyops Australopithecus_afarensis
AUSTRALOPITECÍNEOS ROBUSTOS
Australopitecus anamensis
5 MILHÕES
DE ANOS
Ardipithecus_Ramidus
AUSTRALOPITECÍNEOS
6 MILHÕES
DE ANOS
Ardipitechus Kadabba
Orrorin Tugenensis
7 MILHÕES
DE ANOS Sahelanthropus_tchadensis
HOMINÍNIOS ANTIGOS
entre 2,48 e 1,95 milhão de anos. Estavam encontrados, então, milhões de anos). Nossas descobertas ajudam também a
os vestígios mais antigos da presença hominínia fora da África, compreender a debatida diversidade craniana em Dmanisi,
desbancando Dmanisi! conforme discutida anteriormente. Agora que sabemos que
Refeitos do susto, começamos a elaborar sobre as implicações muito provavelmente o Homo habilis foi o primeiro hominínio
de nossas descobertas para a compreensão da primeira saída que deixou a África, fica claro que os crânios de Dmanisi podem
da África e de qual foi o primeiro hominínio a fazê-lo. Primeiro, representar exatamente o mosaico de transição entre habilis
nossas descobertas retroagem em cerca de 700 mil anos a e erectus. Nesse sentido, e se concordarmos com os georgianos
primeira saída da África, aceitando-se Dmanisi (1,8 milhão de que ali haveria apenas uma espécie, o mais recomendável seria
anos) como a datação mais antiga até o momento conhecida. atribuir aos cinco crânios encontrados em Dmanisi o epíteto
Em segundo lugar, o papel do Homo erectus como a primeira de H. georgicus. Portanto, o erectus não teria surgido na África,
espécie a sair da África. Há 2,5 milhões de anos, essa espécie como se pensa, mas sim no Cáucaso, de onde teria se expandido
ainda não estava presente naquele continente. Portanto, as para o resto do Velho Mundo, voltando inclusive para a África.
datações obtidas por nós na Jordânia implicam que uma forma Nesses percursos teria ganho em capacidade craniana.
pré-erectus deve ter sido o primeiro hominínio a deixar o Pesquisas recentemente relatadas na revista Nature por
continente africano. colegas chineses revelaram artefatos primitivos de pedra lascada
Embora não tenhamos encontrado hominínios fósseis na na província de Shaanxi, na China, datadas, em princípio, entre
Jordânia, o maior candidato a essa façanha é o H. habilis, que 1,9 e 2,1 milhões de anos. Esses achados têm sido, vivamente
estava no local (leste da África) e no momento certos (2,7 questionados pelo “mainstream” da paleoantropologia, por
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