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EDIÇÃO ESPECIAL EVOLUÇÃO

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OS PRIMATAS NÃO HUMANOS QUE SABEM USAR FERRAMENTAS


A VERDADEIRA PALEODIETA
ANTROPOLOGIA REVELA OS MAIS ANTIGOS MITOS
E S PE C I A L E VO LU Ç ÃO

ANO 20

A N T R O P O LO G I A E VO L U Ç ÃO
52
04 A evolução dos mitos 24 Por que só o Homo
Analisar como histórias mudam sapiens perdurou
ao serem recontadas através das até a era moderna?
gerações lança luz sobre a história O hominíneo que sobreviveu
da migração humana Kate Wong
retrocedendo até o período
paleolítico. Julien d’Huy
E VO L U Ç ÃO E VO L U Ç ÃO
12 O paradoxo do exercício 30 Como aprendemos
Estudos sobre como a máquina a colocar nosso destino
humana queima calorias ajudam nas mãos alheias
a explicar por que a atividade As origens da moralidade.
física faz pouco para controlar Michael Tomasello
o peso — e sobre como nossa
espécie adquiriu alguns de seus
traços mais característicos.
E VO L U Ç ÃO
Herman Pontzer
36 A verdadeira paleodieta
E VO L U Ç ÃO Sinais microscópicos de desgaste
C A PA
18 Elos perdidos em fósseis de dentes revelam O Homo habilis é o provável autor
Nossos grandes cérebros humanos, o que nossos ancestrais comiam das ferramentas encontradas na
nossa postura ereta e o estilo de — e oferecem insights sobre como Jordânia, o que sugere que ele
também tenha se espalhado por
amar podem existir porque a mudança climática moldou a
outras partes da Ásia.
eliminamos peças-chave de DNA. evolução humana. Fotografia P.playlli/e.daynes/
Philip L. Reno Peter S. Ungar Science Photo Library/Fotoarena.

2  Scientific American Brasil


A R Q U E O LO G I A
44 Agulha no palheiro
Uma nova técnica para identificar
minúsculos fragmentos de ossos
fossilizados está ajudando a
responder questões-chave a
respeito de quando, onde e como
as espécies humanas interagiram
umas com as outras. Thomas
Higham e Katerina Douka
PA L E OA N T R O P O LO G I A
52 Uma nova jornada para o
gênero homo
Descoberta de ferramentas na
Jordânia faz recuar em meio
milhão de anos data de saída do
homem da África e pode ajudar a
solucionar vários enigmas da
evolução humana. Walter Neves,
Giancarlo Scardia, Fabio Parenti,
44 Astolfo Araújo

DIRETOR Alfredo Nastari REDAÇÃO


ANO 20 Comentários sobre o conteúdo editorial, sugestões,
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A N T R O P O L OG I A

EVOLUÇÃO DOS

MITOS
Analisar como histórias mudam ao serem
recontadas através das gerações lança
luz sobre a história da migração
humana retrocedendo até o período paleolítico
Julien d’Huy
Ilustração de Jon Foster

4  Scientific American Brasil


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Julien d’Huy é candidato a doutorado em história na
Universidade Panthéon-Sorbonne, em Paris. Sua pesquisa
multidisciplinar, conduzida em associação com o Instituto
de Mundos Africanos, lança mão da teoria evolutiva e
modelagem computadorizada na análise comparativa de mitos.

A
versão grega de um mito bastante conhecido começa com Ártemis, deusa da
caça e protetora de mulheres jovens e inocentes. Ártemis exige que Calisto,
“a mais bela”, e suas outras servas façam voto de castidade. Zeus seduz Calisto
a renunciar à sua virgindade, e ela dá à luz um filho, Arcas. A ciumenta esposa
de Zeus, Hera, transforma Calisto num urso e a exila para as montanhas.
Enquanto isso, Arcas cresce e se torna um caçador, e certo dia encontra por
acaso um urso que o saúda de braços abertos. Não reconhecendo a mãe, mira
no animal sua lança, mas Zeus vem em seu socorro. Ele transforma Calisto na constelação da
Ursa Maior, ou “grande ursa”, e coloca Arcas por perto como Ursa Minor, o “pequeno urso.”

Do modo como os índios iroqueses do nordeste dos EUA estatísticas e modelagem computadorizada da biologia para
contam a história, três caçadores perseguem um urso e o sangue elucidar como e por que mitos e lendas populares evoluem. Além
do animal ferido tinge as folhas da floresta outonal. O urso então da Caçada Cósmica, analisei outras grandes famílias de mitos
sobe uma montanha e salta para o céu. Os caçadores e o animal que compartilham temas e elementos de enredo recorrentes.
se tornam a constelação da Ursa Maior. Entre os Chukchis, um Histórias de Pigmalião, por exemplo, retratam um homem que
povo siberiano, a constelação de Órion é um caçador que persegue cria uma escultura e se apaixona por ela. Em mitos de Polifemo,
uma rena, Cassiopeia. Entre os povos fino-úgricos da Sibéria, o um homem fica preso na caverna de um monstro e escapa ao se
animal perseguido é um alce e assume a forma de Ursa Maior. insinuar num rebanho de animais, sob o olhar atento do monstro.
Embora os animais e as constelações possam diferir, a estrutura Esta pesquisa fornece evidências novas e convincentes de que
básica da história não muda. Todas essas sagas pertencem a mitos e lendas populares seguem o movimento de povos ao redor
uma família de mitos conhecida como “A Caçada Cósmica” que do globo. Ela revela que certas histórias provavelmente remontam
se espalhou pela África, Europa, Ásia e Américas, entre povos ao período Paleolítico, quando humanos desenvolveram primitivas
que viveram há mais de 15 mil anos. Toda versão da Caçada ferramentas de pedra, e se disseminaram junto com as primeiras
Cósmica compartilha um enredo central comum: um homem ondas migratórias para fora da África. Meus estudos filogenéticos
ou um animal persegue ou mata um ou mais animais, e as também oferecem insights sobre as origens desses mitos ao ligarem
criaturas são transformadas em constelações. histórias e lendas orais transmitidas de geração em geração a
Folcloristas, antropólogos, etnólogos e linguistas vêm motivos que aparecem de forma recorrente em pinturas de arte
quebrando a cabeça, intrigados, há muito tempo sobre por que rupestre paleolítica. Basicamente, espero que meu contínuo esforço
complexas histórias míticas que surgem em culturas muito para identificar protomitos pré-históricos possa até oferecer um
separadas no espaço e no tempo são tão semelhantes. Nos últimos vislumbre do universo mental de nossos ancestrais, quando o
anos, surgiu uma abordagem científica para a mitologia Homo sapiens não era a única espécie humana na Terra.
comparada, em que pesquisadores aplicaram as ferramentas
conceituais que biólogos utilizam para decifrar a evolução das O CAMINHO DA CAÇADA CÓSMICA
espécies vivas. Nas mãos dos que analisam mitos, o método, Carl Jung, o pai da psicologia analítica, acreditava que mitos
conhecido como análise filogenética, consiste em conectar versões aparecem em estruturas similares em diferentes culturas porque
sucessivas de uma história mítica e construir uma árvore emergem de uma área da mente chamada inconsciente coletivo.
genealógica que traça a evolução do mito ao longo do tempo. “Mitos são, acima de tudo, fenômenos psíquicos que revelam a
Meus estudos filogenéticos usam do rigor extra de técnicas natureza da alma”, dizia. Mas a propagação de histórias de

EM SÍNTESE

Acadêmicos se perguntam há muito Novos modelos de pesquisa a proveitam Árvores filogenéticas revelam que Estudos recentes fornecem insights
tempo por que complexas histórias ferramentas conceituais e estatísticas da espécies de mitos evoluem lentamente sobre as origens pré-históricas de alguns
míticas, que surgem em culturas biologia evolutiva para destrinchar e e se equiparam a padrões de migrações mitos e a migração de eurasianos para
amplamente separadas em espaço e esclarecer a história de mitos. humanas em massa para fora da África a América do Norte há mais de 15 mil
tempo, são tão notavelmente semelhantes. e sua dispersão ao redor do mundo. anos.

6  Scientific American Brasil


caçadas cósmicas pelo mundo não pode ser explicada por uma a análise filogenética revela que uma das histórias míticas mais
estrutura psíquica universal. Se esse fosse o caso, essas histórias encantadoras de transformação súbita — a história de Pigmalião
apareceriam em todo lugar. Em vez disso, elas são quase — é um excelente exemplo desse padrão estável de evolução.
inexistentes na Indonésia e na Nova Guiné, e muito raras na Da maneira como os gregos a contam, Pigmalião, um belo
Austrália, mas estão presentes nos dois lados do Estreito de escultor de Chipre, despreza a companhia de mulheres locais
Bering, que, segundo evidências geológicas e arqueológicas, se relegadas a uma vida de prostituição sem amor por não prestarem
encontrava acima do nível da água entre 28 mil e 13 mil a.C. A homenagem adequada a Afrodite, a deusa do amor e padroeira
hipótese mais plausível é que ancestrais eurasianos dos primeiros da ilha. Lançando-se em seu trabalho, Pigmalião cinzela uma
americanos trouxeram a família de mitos com eles. estátua de mulher em marfim, à qual dá o nome de “Galateia”
Para testar esta hipótese, criei um modelo filogenético. Biólogos (“amor adormecido”). Veste-a em trajes extravagantes e joias, beija,
usam a análise filogenética para investigar relacionamentos acaricia e conversa com ela todo dia. Num festival em homenagem
evolutivos interespécies, ao construírem diagramas de ramificação a Afrodite, Pigmalião vai ao templo da deusa, sacrifica um touro
que representam relações de ancestralidade em comum com base e reza para encontrar uma esposa igual à amada estátua. Quando
em características compartilhadas. Histórias míticas são excelentes volta para casa e beija Galateia, é surpreendido pelo calor da peça.
alvos para tais análises porque, assim como espécies biológicas, Afrodite havia trazido Galateia à vida. O poeta romano Ovídio
elas evoluem aos poucos, sendo que novas partes de uma história imortalizou a lenda popular grega em Metamorfoses e inspirou
central são acrescentadas e outras perdidas ao longo do tempo, incontáveis escritores, dramaturgos e artistas desde então.
à medida que ela se propaga de uma região a outra. Minha pesquisa sugere que a evolução do mito de Pigmalião
Em 2012, construí um modelo esqueletal baseado em 18 seguiu uma migração humana do nordeste para o sul da África,
versões do mito da Caçada Cósmica, compiladas e publicadas que estudos genéticos prévios indicam ter ocorrido por volta de
anteriormente por folcloristas e antropólogos. Converti cada dois mil anos atrás. Nas lendas de várias tribos ao longo dessa
um desses relatos em elementos discretos da história, ou “mitemas” rota, um homem esculpe a imagem de uma mulher e se apaixona
— um termo emprestado do falecido antropólogo estrutural por ela; a boneca ganha vida e se casa com seu senhor. De acordo
francês Claude Lévi-Strauss. Como os genes, os mitemas são com o povo Venda, da África do Sul, um homem esculpe uma
características herdáveis de “espécies” de histórias, que passam mulher de madeira. Depois que ela é animada, o chefe da tribo
de uma geração para a próxima e mudam devagar. Exemplos tenta sequestrá-la. O escultor resiste e lança a mulher ao chão,
de mitemas de caçadas cósmicas incluem: uma mulher quebra no que ela se transforma novamente em madeira.
um tabu; um ser divino interrompe um caçador; um deus Uma árvore filogenética que construí com a versão grega de
transforma um animal em uma constelação. Minha análise Pigmalião e outra do povo bara, de Madagáscar, como pontos
inicial produziu uma base de dados de 44 mitemas. Então, para de partida produziu resultados intrigantes. Os mitos gregos e
cada versão de uma história, codifiquei os diversos mitemas bara se espelham estruturalmente, embora representem a maior
como 1 (presente) ou 0 (ausente), e apliquei uma série sucessiva separação geográfica entre qualquer uma das histórias incluídas
de algoritmos estatísticos para traçar padrões evolutivos e no modelo computadorizado. Além disso, os baras se estabeleceram
estabelecer árvores genealógicas. Em 2013, expandi o modelo numa ilha que não permitia grande expansão populacional e
para incluir 47 versões da história e 93 mitemas. Por fim, acabei diversificação mitológica, e os gregos permaneceram isolados
usando três bancos de dados distintos para aplicar algoritmos do contato com o folclore africano por grande parte de sua
diferentes e checar os meus resultados. história. Ainda assim, tanto a versão bara quanto a grega do
Uma das árvores filogenéticas mais atualizadas da Caçada mito apresentam semelhanças notáveis com uma versão anterior
Cósmica [ver box à página 10] sugere que a família de mitos da história contada pelas tribos berberes do Saara.
chegou às Américas em vários pontos diferentes. Um ramo da Uma análise estatística e empírica sugere que os relatos de
árvore conecta versões gregas e algonquianas do mito. Outro gregos e baras devem preservar uma versão da saga surgida entre
indica que ele atravessou o Estreito de Bering e depois prosseguiu, os berberes há entre três mil e quatro mil anos, e parece encapsular
avançando em território esquimó e seguindo rumo ao nordeste uma versão muito antiga do mito: um homem faz uma estátua
das Américas, possivelmente em duas levas distintas. Outros de um tronco de árvore para diminuir sua solidão; ele, ou outro
ramos sugerem que algumas versões do mito se propagaram homem, veste-a; a estátua ganha vida, graças a uma divindade,
mais tarde do que as outras da Ásia rumo à África e às Américas. e se transforma em uma linda jovem que se torna esposa de seu
criador, embora outra pessoa também deseje desposá-la. É claro
UMA METAMORFOSE MÍTICA que o protomito real provavelmente era tão rico em complexidade
Biólogos evolutivos observaram que a maioria das espécies quanto as versões nas quais se baseia a reconstrução.
pouco muda, na maior parte do tempo. Quando há uma mudança
evolutivamente significativa, costuma limitar-se a raros e velozes O MONSTRO NA CAVERNA
eventos de ramificação de especiação. Este fenômeno chama-se No passado, estudiosos de mitologia comparada se apoiavam
equilíbrio pontuado. O mesmo parece ocorrer com mitos. Quando em intuição e no processamento manual de dados, o que limitava
versões mitológicas “irmãs” divergem rápido, devido a gargalos tanto a amplitude quanto os detalhes granulares do trabalho que
migratórios, desafios de populações rivais ou influências ambientais podiam executar. Com a análise filogenética por computador,
e culturais, seguem-se depois longos períodos de estabilidade. podemos testar o impacto de empréstimos mitológicos entre
Em geral, estruturas de histórias míticas, que às vezes seguem diferentes grupos culturais. Podemos criar bancos de dados grandes
inalteradas por milênios, são muito parecidas com a história dos e flexíveis que incorporam a riqueza de observações empíricas
movimentos migratórios humanos em larga escala. Ironicamente, feitas ao longo dos anos. E podemos expandir esses bancos de dados

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COMO É FEITO

Desconstruindo mitos
Mitos de Caçadas Cósmicas q  ue retratam constelações de estrelas como animais perseguidos por caçadores são comuns na
Eurásia e nas Américas. Mitologistas comparativos estudam as surpreendentes similaridades e sutis variações nos mitos de cul-
turas amplamente dispersas utilizando ferramentas analíticas desenvolvidas por biólogos evolutivos. Primeiro, eles dissociam
uma determinada “espécie” de histórias míticas em pequenos blocos de construção, análogos a genes: os chamados “mitemas”.
Em seguida, registram fatores como a frequência dos elementos em várias histórias (abaixo). Análises computadorizadas de ele-
mentos similares podem revelar quais versões surgiram primeiro, antecedendo outras, e como as histórias centrais mudaram
com o tempo e o lugar. Os mitemas mostrados aqui são os blocos de construção de várias histórias de Caçadas Cósmicas asso-
ciadas às constelações de Ursa Maior, Ursa Menor, Órion e do aglomerado estelar das Plêiades.

23
8 – O zoema é
um alce 20

4
9 24
28
10 34
21
11 25
30

2 – O zoema é um 12
herbívoro 26
43
5 – O zoema é 13 – O zoema é um 36
um ungulado carneiro-montês
44
14

27 45
15 29 – Perseguidores estão
localizados no céu ou vão para o céu
16

31 46 48
1 – O zoema é um
grande mamífero 17
51
32
18 47

e
nap
o le
Mit 22 – Existe 35
37
um animal 49 – O animal está
7 – O zoema é vivo quando
um urso 38 transformado
3 – O zoema é um em uma
carnívoro 39 constelação
19 ou [está]
40 50 no céu
33
6

41
“A COSMIC HUNT IN THE BERBER SKY: A PHY-
LOGENETIC RECONSTRUCTION OF PALAEOLI-

UM ENREDO COMUM 42
THIC MYTHOLOGY”, JULIEN D’HUY, EM L ES

O caminho destacado pela linha tracejada azul ilustra um mito dos índios lenape, do
nordeste dos EUA, sobre como a constelação da Ursa Maior tomou a forma de um urso.
CAHIERS DE L’AARS, Nº 16; 2013

A lenda lenape compartilha diversos mitemas com vários mitos de Caçada Cósmica
preservados por outros grupos culturais na Eurásia e nas Américas, incluindo: o zoema
(categoria de mitema, ou espécie animal) é um grande mamífero (1); perseguidores
estão localizados no céu ou chegam a ele (29); o animal está vivo quando transformado
em uma constelação (49); uma das principais constelações da história é o asterismo
Grande Carro formado pelas sete estrelas mais brilhantes de Ursa Maior (86).

8  Scientific American Brasil Gráfico de Accurat


COMO LER ESTA ILUSTRAÇÃO 1 – O zoema é um grande mamífero 38 – O zoema captura o Sol 62 – Quatro animais se transformam em
2 – O zoema é um herbívoro 39 – Um animal é punido por seu quatro estrelas do Grande Carro
Cada um dos 88 círculos representa um mitema de
3 – O zoema é um carnívoro orgulho 63 – Sete animais formam sete
uma Caçada Cósmica (um componente da história) 4 – O zoema é um animal com chifres 40 – Um homem desce sozinho do estrelas do Grande Carro
conforme definido pelo autor. Abaixo, ordenamos 5 – O zoema é um ungulado céu para a Terra e destrói o 64 – Três estrelas do Cinturão de
6 – O zoema é um pescador caminho para acessar o céu Órion são interpretadas como
livremente esses mitemas (listados mais 7 – O zoema é um urso 41 – Uma pessoa divina interdita um um único animal
completamente à direita) de acordo com categorias 8 – O zoema é um alce caçador 65 – As três estrelas do Cinturão de
9 – O zoema é uma rena 42 – A caçada prossegue até a queda Órion são interpretadas como
gerais, incluindo zoemas (animais) ( ), detalhes de 10 – O zoema é um cervo 43 – As Híades são um animal de caça três perseguidores
perseguição ( ), transformações de animais e 11 – O zoema é um alce americano 44 – Betelgeuse é um animal de caça 66 – Uma das estrelas vizinhas de
perseguidores ( ), e manifestações das histórias 12 – O zoema é um camelo 45 – Cassiopeia é um animal de caça Órion é uma espada atirada pelo
13 – O zoema é um carneiro-montês 46 – Perseguidores são cães caçador para atingir os animais
em determinadas constelações em particular ( ). 14 – O zoema é um antílope 47 – Perseguidores são membros da 67 – A gordura ou o sangue que
15 – O zoema é uma zebra mesma família pinga do corpo do animal cai na
16 – O zoema é um porco 48 – Um animal persegue um animal Terra e se transforma em alguma
Tamanho e opacidade 17 – O zoema é um boi que persegue um animal outra coisa
de círculos mostram em 18 – O zoema é uma anta 49 – O animal está vivo quando 68 – A gordura se transforma em néctar
quantas lendas o 19 – O zoema é mãe do transformado em uma 69 – O sangue que pinga do animal
perseguidor, que foi constelação ou [está] no céu tinge a folhagem de outono
mitema aparece, 1 43 transformada em um urso 50 – O animal está morto quando 70 – Caçadores são o cabo do
variando de 1 a 43. 20 – É um animal de seis pernas transformado em constelação Grande Carro
21 – É um animal doméstico 51 – Um homem transforma seus 71 – A gordura se transforma em neve
22 – Há um animal irmãos em estrelas 72 – Caçadores formam sete estrelas
Linhas conectam 23 – Há quatro animais 52 – Caçadores se tornam estrelas do Grande Carro
mitemas que 24 – Há sete animais por causa de um parente 73 – O animal forma quatro estrelas
25 – Há dois animais 53 – Um deus transforma uma ninfa do Grande Carro
ocorrem juntos em lendas. 26 – Há três animais em um urso 74 – Caçadores formam cinco
27 – As Plêiades são um animal 54 – Um deus transforma um animal estrelas do Grande Carro
28 – Animais são associados a seus em uma constelação 75 – Membros decepados são
A cor do anel indica as regiões donos 55 – O cão é transformado em uma estrelas vistas no inverno
associadas a cada lenda do mitema; por 29 – Perseguidores estão localizados estrela 76 – O animal forma o Grande Carro
exemplo, este mitema ocorre em três no céu ou ascendem a ele 56 – Cada animal é transformado em 77 – O Grande Carro é um desenho
30 – Há um perseguidor uma estrela do Grande Carro 78 – Três estrelas são a sombra do animal
lendas, uma da Guiana (laranja) 31 – Há dois perseguidores 57 – As Plêiades são caçadores 79 – Alcor é um cão
e duas da Ásia (verde claro). 32 – Há cinco perseguidores 58 – As três estrelas do Cinturão de 80 – Alcor é um objeto
33 – Há três, ou pelo menos três, Órion são interpretadas como 81 – Alcor é uma flecha
perseguidores três animais 82 – Alcor é uma faca
África 34 – Órion é um perseguidor 59 – Membros da mesma família se 83 – Alcor é uma panela
Planalto da costa americana/Colúmbia Britânica 35 – Há sete perseguidores transformam em Ursa Maior e 84 – O herói é a origem de calor
Grande Bacia Americana/Grande Sudoeste 36 – A espada de Órion é uma Ursa Menor 85 – O animal cósmico é atingido por
Nordeste da América perseguidora 60 – Um animal se transforma em um dardo ou flecha
Ásia 37 – Uma mulher quebra um tabu uma estrela do Grande Carro 86 – Uma das principais constelações
Ártico 61 – Dois animais se transformam em da história é o asterismo Grande
País Basco duas estrelas do Grande Carro Carro, as sete estrelas mais
Grécia brilhantes de Ursa Maior
Guiana 87 – Uma das principais constelações
57 da história é Órion
88 – Uma das principais constelações
70 – Caçadores são o “cabo” da história é o aglomerado das
55 – O cão é do Grande Carro Plêiades
transformado
64 nape
em uma estrela Mito le
79 – Alcor é
74 um cão
85 – O animal cósmico é
65 atingido com um dardo
66 – Uma das estrelas ou flecha
de Órion é uma
espada lançada 84
80 – Alcor é
pelo caçador para um objeto
52 – Caçadores se atingir os animais 75
81
tornam estrelas
por causa
de um parente 67 68 82
83
53
58 – As três estrelas 69 86 – Uma das principais
do Cinturão constelações da
de Órion são história é o asterismo
interpretadas Grande Carro
como três animais 73 – O animal forma quatro
estrelas do Grande Carro
54
59
87 – Uma das principais
constelações da
60 história é Órion
71 72
56
61
77 88 – Uma das principais
constelações da
76 – O animal forma 78
62 história é o
o Grande Carro aglomerado estelar
63 das Plêiades
GENEALOGIA DE MITOS
para incluir novas versões de histórias e testar resultados anteriores.
Em 2012, construí o modelo inicial para um estudo filogenético
do mito de Polifemo com base em 24 versões da Europa e América Árvore genealógica
do Norte, e 79 mitemas. Em seguida, aumentei progressivamente
Análises de variações em mitos de Caçada Cósmica por meio
o tamanho da amostra para incluir 56 versões da história e 190
de vários modelos estatísticos diferentes revelam que os
mitemas extraídos de estudos anteriores publicados em inglês,
humanos que primeiramente povoaram as Américas trouxeram
francês, alemão e italiano. Também criei três bancos de dados
as histórias consigo quando cruzaram a ponte terrestre do
e apliquei diversos algoritmos evolutivos e estatísticos para
Estreito de Bering, vindos da Sibéria, há mais de 15 mil anos. Os
calibrar e fazer uma verificação cruzada de meus resultados.
ramos neste modelo indicam como versões do mito passaram
Polifemo, o filho monstruoso, caolho, e comedor de homens
de geração em geração e para diferentes grupos culturais
de Poseidon, deus do mar, faz uma aparição dramática na Odisseia
durante quatro ondas sucessivas de migração.
de Homero. Quando Odisseu desembarca na ilha dos ciclopes
em busca de comida, ele e 12 homens entram na caverna de Grupo cultural
Polifemo. O gigante volta do pastoreio de suas ovelhas, veda Uma comparação Povo Evenque 3
a entrada e devora quatro dos homens de Odisseu antes de estatística de 47 mitos
Povo Khanty
culturalmente distintos de Caçada
sair na manhã seguinte para cuidar de seu rebanho. Naquela Povo Saami (lapão) 1
Cósmica mostra como a análise de mitemas
noite, depois de Polifemo comer mais dois homens, Odisseu pode ser usada para determinar a conexão, ou Povo Evenque 1
o embebeda com vinho não diluído. Polifemo pede que o parentesco de histórias. Aqui, cada ramo Povos Ob-úgricos
seu generoso convidado lhe conte seu nome, e Odisseu marca um ponto significativo de divergência nos Povo Evenque 2
responde “Ninguém”. Assim que Polifemo adormece, componentes da história. O Grande Carro, por Povo Basco 1
Odisseu o cega com um graveto afiado, endurecido em uma exemplo, é um mitema-chave presente na Povo Basco 2
raiz da árvore 1 . Órion faz uma aparição Povo Twana
fogueira. Polifemo grita por socorro, mas quando chegam no grupo 2 , e o aglomerado
outros ciclopes e lhe perguntam quem o cegou, ele responde Povo Snohomish
estelar das Plêaides também
“Ninguém”. Enquanto isso, Odisseu e seus homens remanescentes entra em jogo. Hesíodo
escapam ao se agarrarem aos baixos-ventres das ovelhas do Ovídio
monstro quando Polifemo as solta para pastarem. Pseudo-Apolodoro
Os índios blackfoot, uma tribo algonquiana que dependia da Pausânias
Povo Ojibwa 1
caça de búfalos para sobreviver, transmitiram uma história
Povo Ojibwa 2
parecida de geração em geração. O trapaceiro Corvo, que é tanto
Povo Nlaka'pamux
humano quanto ave, esconde uma manada de búfalos em uma
Povo Lillooet
caverna. Corvo acaba sendo capturado e colocado em cima de Povo Coeur d’Alene
um buraco para escoar a fumaça da tenda, o que explica por que, Povo Seneca
desde então, corvos são pretos. Corvo promete libertar os búfalos. Povo Mi’kmaq
Mas quebra sua promessa. Dois caçadores heroicos se transformam Povo Cherokee
— um em um filhote de cachorro, o outro em um bastão de 1 Povo Meskwaki
madeira. A filha de Corvo pega o cachorrinho e o bordão e os Povo Mohawk
leva para a caverna. Ali, os dois caçadores se transformam Povo Lenape
novamente, um em um cão de grande porte, o outro em um Povo Wasco
homem, para tocarem os búfalos para fora, até a superfície. Eles Povo Copper
conseguem passar por Corvo ao se esconderem sob a pele de um Povo da Terra de Baffin
búfalo quando a manada sai correndo da caverna. Povo Netsilik
Povo Esquimós Polares
Uma árvore filogenética compósita da família de mitos de
Povo Igloolik
Polifemo indica que as histórias seguiram dois importantes
padrões migratórios: o primeiro, em tempos paleolíticos, propagou Povo Tuaregue 1
o mito na Europa e América do Norte. O segundo, em tempos Povo Tuaregue 2
neolíticos, seguiu a proliferação da criação de animais domésticos. Povo Saami 2
Uma versão da história de Polifemo, conservada de maneira Povo Chukchi
2 Povo Tsilhqot’in
fragmentada na Suíça talvez preserve uma forma mais antiga: o
Ásia Povo Kalina
monstro, um anão caolho encontrado por um caçador, é dono Grécia
de feras em uma montanha. Mas esta forma da história desapareceu, Povo Akawaio
País Basco
Povo Mojave
provavelmente quando as geleiras avançaram durante o Último África
Ártico Povo Chemehuevi
Máximo Glacial, que teve seu pico há cerca de 21.500 anos. Então,
Planalto da Costa Povo Maricopa
uma nova versão, em que o monstro reside em um abrigo, parece Americana/ Povo Kiliwa
ter se espalhado, levada por sucessivas migrações a partir de Colúmbia Britânica Povo Karanga
áreas no Cáucaso e Mediterrâneo que haviam oferecido refúgio Nordeste da Povo Tswana
América
FONTE: JULIEN D’HUY

a humanos e outras espécies contra severas mudanças climáticas. Povo Rutul


Grande Bacia
Elos na árvore filogenética sugerem que as versões homéricas de Americana/Sudoeste Povo Wagogo
Polifemo criaram uma tradição oral que teve uma difusão Guiana Povo Khoikhoi
independente entre muitos grupos, por exemplo, os ancestrais

10  Scientific American Brasil Gráfico de Jen Christiansen


dos povos da Hungria e da Lituânia de hoje. e recuperar histórias que desapareceram há muito.

BUSCA POR PROTOMITOS ANCESTRAIS DRAGÕES E SERPENTES PRIMORDIAIS


Reconstruções filogenéticas, tanto de histórias de Polifemo Minha atual pesquisa referenda o modelo “Fora da África”
como da Caçada Cósmica, se apoiam em décadas de pesquisas de afirmando que humanos anatomicamente modernos se originaram
estudiosos que basearam seus trabalhos principalmente em versões na África e, de lá, se dispersaram pelo planeta. Ela complementa
orais e escritas de mitos e lendas. Os atuais modelos também estudos filogenéticos de biólogos que indicam que a primeira
incorporam observações empíricas de temas/motivos mitológicos grande onda migratória que se irradiou da África seguiu a costa
da arte rupestre pré-histórica. Semelhanças entre motivos rupestres sul da Ásia, povoou a Austrália há uns 50 mil anos e chegou à
e histórias reconstruídas abrem uma nova janela sobre o universo América de algum lugar no Leste Asiático. Tanto a pesquisa
mental dos primeiros homens que migraram pelo Estreito de biológica quanto a mitológica apontam para uma segunda
Bering para o Novo Mundo, entre 30 mil e 15 mil anos atrás. migração que chegou à América do Norte mais ou menos ao
No mito de Polifemo, do modo como seu público original mesmo tempo vinda de um ponto de origem norte-eurasiano.
provavelmente o escutou, um caçador enfrenta um ou muitos Recentemente, construí uma superárvore filogenética para
monstros donos de um rebanho de animais selvagens. Ele entra traçar a evolução de mitos de serpentes e dragões surgidos nas
no lugar onde o monstro mantém os bichos e descobre que o primeiras ondas migratórias. Uma protonarrativa que
seu caminho de saída está bloqueado por um grande obstáculo. provavelmente antecedeu a época do êxodo da África inclui os
O monstro tenta matá-lo. O herói foge agarrado ao baixo-ventre seguintes elementos centrais: serpentes mitológicas protegem
de um animal. fontes de água, liberando o líquido apenas em certas condições.
Este protomito, revelado por três bancos de dados filogenéticos Elas são capazes de voar e formar um arco-íris. São gigantes e
distintos, muitos métodos estatísticos e dados etnológicos têm chifres ou galhadas em suas cabeças. Podem produzir chuvas
independentes, reflete a crença, muito forte em culturas antigas, e trovoadas. Répteis, imortais como outros que trocam suas
na existência de um dono de animais que os mantém numa peles ou “cascas” e assim rejuvenescem, são contrastados com
caverna e a necessidade de um intermediário para libertá-los. homens mortais e/ou considerados responsáveis por originarem
Também poderia ser parte de uma concepção paleolítica de a morte, talvez através de suas picadas/mordidas. Neste contexto,
como animais de caça emergem de um submundo. Na Caverna uma pessoa em uma situação desesperada tem a oportunidade
de Les Trois-Frères, nos Pireneus franceses, frequentada por de ver como uma cobra ou outro animal pequeno revive ou se
humanos durante o Paleolítico Superior, um painel mostra uma cura a si mesmo ou a outros animais. A pessoa usa o mesmo
pequena criatura com a cabeça de um bisão e corpo humano remédio e tem êxito. Construí este protomito baseado em cinco
que parece segurar um arco curto. Perdido no meio de uma bancos de dados distintos ao variar tanto a definição de serpente/
manada de bisões, outro animal, semelhante a um bisão, olha dragão quanto as unidades de análise, incluindo versões
na direção do híbrido humano, e os dois se encaram. Olhando individuais do mesmo tipo de lenda, tipos de serpentes e dragões,
com mais cuidado, a coxa traseira esquerda do “bisão” não é a e áreas culturais ou geográficas.
de um ruminante; suas proporções são muito menores, como Espero voltar ainda mais no tempo e identificar histórias
uma coxa humana — tanto assim, que o arqueólogo André Leroi­ míticas que lancem luz sobre interações entre Homo sapiens
‑Gourhan acreditou tratar-se de uma silhueta humana. Além primitivos e espécies humanas extintas no Paleolítico. Biólogos
disso, o artista desenhou meticulosamente o ânus e o orifício identificaram possíveis cruzamentos com neandertais, denisovanos
vulvar. Esses dois elementos podem ser comparados com algumas e talvez outros humanos arcaicos. Trocas materiais, assim como
versões ameríndias da história de Polifemo, em que o homem empréstimos linguísticos e mitológicos, também podem ter
se esconde no animal ao penetrar seu ânus. ocorrido. Minha meta mais imediata é expandir e refinar a
A primeira versão da Caçada Cósmica, a ancestral de todos os superárvore filogenética de mitos paleolíticos, que já inclui
relatos da história de Calisto, reconstruída a partir de três bancos histórias do sol-sustentador-de-vida como um grande mamífero
de dados, teria sido algo assim: um homem caça um ungulado; e de mulheres como guardiãs primordiais de santuários sagrados
a caça ocorre no céu ou termina lá; o animal está vivo quando é de conhecimento. 
transformado em uma constelação; e essa constelação é a que
conhecemos como Ursa Maior. Esta reconstrução da história da PA R A C O N H E C E R M A I S
Caçada Cósmica talvez explique a famosa “cena do poço” paleolítica
Première reconstruction statistique d’un rituel paléolithique: autour du motif
encontrada numa gruta em Lascaux, na França. A intrigante du dragon. J ulien d’Huy em Nouvelle Mythologie Comparée/Nova Mitologia
mancha preta isolada, perto da cernelha do bisão seria, então, Comparativa, nº 3. Publicado on-line em 18 de março de 2016.
uma estrela. A rigidez do animal, que não dá a impressão de estar Polyphemus, a paleolithic tale? J ulien d’Huy em The Retrospective Methods
de fato atacando, faria sentido se ela representasse uma constelação Network Newsletter, nº 9, págs. 43–64; Inverno 2014–2015.
A phylogenetic approach of mythology and its archaeological consequences.
em vez de uma ação. Além disso, para alguns especialistas, o
Julien d’Huy em Rock Art Research, vol. 30, nº 1, págs. 115–118; maio de 2013.
homem pode estar na vertical e o bisão ascendendo, o que A Cosmic Hunt in the berber sky: a phylogenetic reconstruction of palaeolithic
reproduziria a ascensão do animal protomítico ao céu. Por fim, mythology. Julien d’Huy em Les Cahiers de l’AARS, nº 16, págs. 16, 93–106; 2013.
as manchas pretas no chão embaixo do bisão sugerem as folhas
D E N OSSOS A RQU I VOS
outonais manchadas de sangue do animal caçado.
Ligar uma história mítica a uma imagem paleolítica é complicado. Correntes de cartas & histórias evolucionárias. C harles H. Bennett, Ming Li e Bin
Ma; edição nº 14, julho de 2003.
Estes exemplos servem só para ilustrar o poder interpretativo do
método filogenético, que torna possível propor hipóteses plausíveis

www.sciam.com.br  11
O par
EVO LU Ç Ã O

12  Scientific American Brasil


radoxo do
exercício
Estudos sobre como a máquina humana queima calorias
ajudam a explicar por que a atividade física faz pouco
para controlar o peso — e sobre como nossa espécie
adquiriu alguns de seus traços mais característicos
Herman Pontzer

Ainda nada
de
gırafa. Nós quatro havíamos
caminhado metade do dia em
busca da girafa ferida que Mwasad, um hadza de 30 e poucos
anos, alvejara na tarde anterior. Ele a atingira na base do pescoço,
a uns 20 metros de distância, com uma flecha embebida em um
poderoso veneno caseiro. Os hadza são tradicionais caçadores­
‑coletores que vivem na savana do Norte da Tanzânia. Eles conhecem a
região e seus habitantes melhor do que você conhece sua mercearia
local. Mwasad havia deixado a girafa correr para dar tempo para o
veneno funcionar, esperando encontrá­‑la morta pela manhã. Um animal
daquele tamanho poderia alimentar sua família e seu acampamento por
uma semana — mas só se ele conseguisse encontrá-lo.

EM SÍNTESE

O senso comum diz que pessoas número de calorias que pessoas com muita energia evoluíram.
fisicamente ativas queimam mais acesso às comodidades modernas. Comparações com gasto de energia
calorias que as menos ativas. A descoberta de que o gasto de energia de grandes primatas sugerem que o
Mas estudos mostram que tradicionais humana é rigidamente limitado abre mecanismo metabólico humano evoluiu
caçadores-coletores, com vidas questões sobre como nosso grande para trabalhar mais para sustentar nossas
fisicamente árduas, queimam o mesmo cérebro e outros traços que exigem características dispendiosas.

www.sciam.com.br  13
Herman Pontzer é antropólogo no Hunter College.
Ele estuda o gasto de energia em humanos e grandes
primatas para testar hipóteses sobre a evolução da
anatomia e fisiologia humanas.

Mwasad levou nosso grupo — Dave Raichlen, da Universidade o metabolismo humano. Os dados indicam que, ao contrário da
de Arizona, um garoto hadza de 12 anos chamado Neje e eu — noção convencional, humanos tendem a queimar o mesmo número
para fora do acampamento assim que amanheceu. Dave e eu de calorias independentemente de seu grau de atividade física.
pouco podíamos ajudar. Mwasad nos convidara como um gesto Mas nós evoluímos para queimar consideravelmente mais calorias
de amizade e como apoio adicional para carregar o animal que nossos primos antepassados. Esses resultados ajudam a
esquartejado ao acampamento se a busca desse resultado. Como explicar dois enigmas que à primeira vista parecem discrepantes,
estudiosos da ecologia humana e da evolução, ficamos animados mas que estão, de fato, relacionados: primeiro, por que praticar
com a oportunidade — a destreza dos hadza como rastreadores exercícios em geral não ajuda a eliminar peso e, segundo, como
é lendária. Isso era melhor que a perspectiva de passar um longo alguns dos traços exclusivos da humanidade surgiram.
dia no acampamento mexendo em equipamento de pesquisa.
Caminhamos sem qualquer trilha por uma hora por um mato A ECONOMIA DE CALORIAS
dourado que chegava à cintura, pontuado por árvores de acácias Pesquisadores interessados em ecologia e evolução humanas
espinhosas, direto até as manchas de sangue onde a girafa fora costumam se concentrar em gasto de energia porque energia é
atingida. Essa parte do caminho foi curiosa, como se alguém fundamental para tudo em biologia. Pode-se aprender muito
tivesse nos levado até o meio de um campo de trigo de 4 km² sobre qualquer espécie ao medir seu metabolismo: a vida é
para mostrar onde havia derrubado um palito de dente e, então, essencialmente um jogo de transformar energia em crianças, e
se abaixasse com displicência para recuperá-lo. Seguiram-se cada traço é adaptado por seleção natural para maximizar o
horas em busca do animal ferido sob um sol inclemente, enquanto retorno evolucionário de cada caloria gasta. Idealmente, a
encontrávamos sinais cada vez mais tênues. população estudada deve viver no mesmo ambiente no qual a
Ainda nada de girafa. Pelo menos eu tinha água. Sentamos espécie originalmente evoluiu, onde as mesmas pressões ecológicas
à sombra de alguns arbustos logo depois do meio-dia, fazendo que formaram sua biologia ainda estão atuando. Isso é difícil
uma pausa enquanto Mwasad pensava para onde a criatura de conseguir com sujeitos humanos porque a maioria das pessoas
ferida poderia ter ido. Eu tinha um quarto de água — suficiente, está distante do trabalho diário de conseguir comida em um
achei, para atravessar o calor da tarde. Mwasad, no entanto, ambiente selvagem. Por quase todos os últimos dois milhões de
não tinha levado água com ele, como é típico dos hadza. Enquanto anos, humanos e nossos ancestrais viveram e evoluíram como
empacotávamos tudo para reiniciar a busca, eu ofereci a bebida caçadores-coletores. A agricultura só surgiu há cerca de 10 mil
a ele. Mwasad me olhou meio de lado, sorriu e tomou todo o anos; as cidades industrializadas e a tecnologia moderna
líquido da garrafa de um longo gole. Ao terminar, devolveu-me apareceram há poucas gerações. Povos como os hadza, dos
sem cerimônia a garrafa vazia. últimos caçadores-coletores que restam no mundo, são chave
Isso era karma. Dave e eu, junto com Brian Wood, da para entender como nossos corpos evoluíram e funcionaram
Universidade Yale, vivêramos o mês anterior com os hadza, antes das vacas, dos carros e dos computadores.
conduzindo as primeiras medições diretas do gasto diário de A vida para os hadza é fisicamente árdua. De manhã as mulheres
energia de um grupo caçador-coletor. Recrutamos duas dezenas deixam o acampamento em pequenos grupos, algumas com crianças
de homens e mulheres hadza, entre eles Mwasad, para beberem numa trouxa às costas, em busca de frutos silvestres e outros
pequenas garrafas incrivelmente caras de água enriquecida com comestíveis. Tubérculos são um alimento básico para os hadza, e
dois isótopos raros, deutério e oxigênio 18. Analisar a concentração elas podem gastar horas desenterrando-os do solo com gravetos.
desses isótopos em amostras de urina de cada participante nos Os homens andam quilômetros caçando com arcos e flechas que
permitiria calcular a taxa diária de produção de dióxido de fabricam. Quando a caça está escassa, usam machadinhas para
carbono de seu corpo e, assim, de seu gasto diário de energia. cortar galhos de árvores, em geral a uns 10 metros do chão, para
Esse método, conhecido como água duplamente marcada, é o colher mel silvestre. Até as crianças ajudam, carregando baldes
padrão ouro em saúde pública para medir as calorias queimadas de água do poço mais próximo. No fim da tarde, voltam ao
por dia durante a vida cotidiana normal. É simples, seguro e acampamento e sentam no chão para conversar junto a pequenas
preciso, mas exige que os participantes tomem até a última gota fogueiras, partilham os ganhos do dia e cuidam das crianças. Os
da água enriquecida. Nós havíamos nos esforçado para deixar dias passam assim nas estações secas e chuvosas há milênios.
claro que eles não podiam desperdiçar, tinham de consumir a Mas esqueça qualquer ideia romântica de paraíso perdido.
dose inteira. Mwasad parecia ter levado a mensagem a sério. Caça e coleta é um jogo cerebral e arriscado, no qual a moeda são
Brincadeiras à parte, meus colegas e eu havíamos aprendido as calorias e a falência é a morte. Homens como Mwasad gastam
com os hadza muito sobre como o corpo humano queima calorias. centenas de calorias por dia caçando e rastreando, apostando que
Somado às descobertas de pesquisadores que estudam outros serão recompensados. Inteligência é tão vital quanto resistência.
povos, nosso trabalho revelou alguns fatos surpreendentes sobre Enquanto outros predadores só podem confiar em sua velocidade

14  Scientific American Brasil


e força para conseguir uma presa, humanos precisam ser mais O que estava faltando? O que mais estávamos entendendo errado
espertos que suas vítimas, avaliar suas tendências de comportamento sobre evolução e biologia humanas?
e esquadrinhar o ambiente em busca de sinais da caça. Mesmo
assim, os hadza só obtêm presas grandes como girafas cerca de MENTIRAS DA MINHA PULSEIRA FITBIT
uma vez por mês. Eles passariam fome se as mulheres não Parece óbvio e inquestionável que pessoas fisicamente ativas
executassem uma estratégia igualmente sofisticada e complementar, queimem mais calorias. Por isso aceitamos esse paradigma sem
usando seu conhecimento enciclopédico da vida vegetal local muita reflexão crítica ou evidência experimental. Mas, desde os
para levar para casa um prêmio confiável todos os dias. Essa busca anos 1980 e 1990, com o advento do método da água duplamente
de comida complexa e cooperativa tornou os humanos tão bem­ marcada, os dados empíricos com frequência desafiaram o senso
‑sucedidos, e está no centro do que nos faz únicos. comum sobre saúde pública e nutrição. O resultado dos hadza,
Faz tempo que pesquisadores de saúde pública e evolução por estranho que pudesse parecer, não era uma inesperada
humana pressupõem que nossos ancestrais caçadores-coletores trovoada, mas a primeira gota fria escorrendo pelo pescoço de
queimavam mais calorias que as pessoas nas cidades de hoje. uma chuva que se formava, sem ser notada, há anos.
Considerando-se como é árduo o trabalho físico de povos como Os primeiros estudos de água duplamente marcada entre
os hadza, parece impossível imaginar algo diferente. Muitas agricultores tradicionais na Guatemala, Gâmbia e Bolívia
pessoas que atuam em saúde pública chegam a argumentar que mostraram que o gasto de energia deles era em grande medida
essa redução no gasto diário de energia está por trás da pandemia semelhante ao dos moradores das cidades. Em estudo publicado
global de obesidade no mundo desenvolvido, com todas essas em 2008, Amy Luke, da Universidade Loyola de Chicago, deu
calorias não queimadas se acumulando como gordura. Uma de mais um passo ao comparar o gasto de energia e a atividade
nossas motivações para medir o metabolismo hadza foi determinar física de mulheres da área rural da Nigéria com os de mulheres
o tamanho deste déficit de energia e ver o nível de deficiência afro-americanas em Chicago. Como no estudo com os hadza, o
que nós, ocidentais, apresentamos em nosso gasto diário. De trabalho dela não encontrou diferenças no gasto diário de energia
volta aos EUA após uma estação em campo, empacotei os frascos entre as populações, apesar de grandes diferenças nos níveis de
de urina hadza com gelo seco e os enviei para o Colégio de atividades. Dando prosseguimento a esse estudo, Lara Dugas,
Medicina Baylor, sede de um dos melhores laboratórios de água também da Loyola, juntamente com Luke e outros, analisou
duplamente marcada do país, imaginando os números gritantes dados de 98 estudos em torno do mundo e mostrou que populações
de calorias que eles revelariam. mimadas pelas conveniências modernas do mundo desenvolvido
Mas aconteceu uma coisa curiosa a caminho do espectrômetro têm gastos de energia semelhantes aos dos países menos
de massa de relações isotrópicas. Quando as análises voltaram, desenvolvidos, onde a vida é fisicamente mais árdua.
os hadza se pareciam com todo mundo. Os homens hadza comiam Os humanos não são a única espécie com uma taxa fixa de
e queimavam cerca de 2.600 calorias por dia e as mulheres gasto de energia. Na esteira do estudo sobre os hadza, eu pilotei
hadza, cerca de 1.900 calorias por dia, o mesmo que adultos nos um grande esforço colaborativo para medir o dispêndio diário
EUA ou na Europa. Examinamos os dados de todas as formas, de energia entre primatas, um grupo de mamíferos que inclui
considerando os efeitos do tamanho do corpo, porcentual de macacos, símios, lêmures e nós. Descobrimos que primatas
gordura, idade e sexo. Nenhuma diferença. Como isso era possível? cativos vivendo em laboratórios e zoológicos gastam o mesmo

D E S C O B E R TA S
VOL. 7, NO 7, ARTIGO Nº E40503; 25 DE JULHO DE 2012 (à esq.); “METABOLIC ACCELERATION AND THE EVOLUTION OF HUMAN

Bebedores de ●
a   Populações humanas ●
b   Humanos x primatas

combustível
FONTES: “HUNTER-GATHERER ENERGETICS AND HUMAN OBESITY,” DE HERMAN PONTZER ET AL., EM PLOS ONE,

BRAIN SIZE AND LIFE HISTORY,” DE HERMAN PONTZER ET AL., EM NATURE, VOL. 533; 19 DE MAIO DE 2016 (à dir.)

5
Mulheres ocidentais Média de Humanos Média de
Homens ocidentais gasto de Chimpanzés Grandes gasto de
Gasto total de energia (milhares de calorias por dia)

Cientistas criam que pessoas mais ativas queimavam Mulheres hadza energia* e bonobos primatas energia*
mais calorias que as menos ativas. Mas dados do 4 Homens hadza Gorilas
gasto de energia de caçadores-coletores e de Orangotangos
populações sedentárias de EUA e Europa revelaram

resultados próximos a  . Se o metabolismo humano 3
é tão restrito, como nosso cérebro, nossa expectativa
de vida longa e outros traços energeticamente
custosos que nos distinguem de nossos parentes 2
primatas evoluíram? Humanos consomem e gastam
por dia centenas de calorias a mais que grandes

primatas b  , sugerindo que nosso mecanismo 1
metabólico mudou para queimar energia mais
rápido, suprindo os traços onerosos.
*Para levar em conta as diferenças em gasto de energia decorrentes do 0
tamanho do corpo, as médias ocidentais são calculadas pelo porte
corporal dos hadza e as médias dos grandes primatas são calculadas pela
0 25 50 75 100 0 25 50 75 100
média do tamanho do corpo humano. Massa corporal magra (kg) Massa corporal magra (kg)

Gráfico de Jen Christiansen www.sciam.com.br  15


número de calorias por dia que aqueles que vivem na natureza,
apesar das óbvias diferenças em atividade física. Em 2013,
pesquisadores australianos descobriram gastos de energia
semelhantes em ovelhas e cangurus confinados ou livres. E, em
2015, uma equipe chinesa relatou dispêndio de energia parecido
de pandas gigantes em zoológicos e na natureza.
Para um olhar mais detalhado, comparando indivíduos em vez
de médias de populações, me uni a Luke e sua equipe, incluindo
Dugas, para examinar atividade e gasto de energia em uma grande
análise plurianual conhecida como Modeling the Epidemiological
Transition Study (Mets). Mais de 300 participantes usaram
acelerômetros parecidos com uma pulseira Fitbit ou outros monitores
de condicionamento físico 24 horas por dia por uma semana CAÇADORES-COLETORES HADZA n  a Tanzânia gastam centenas
enquanto o gasto de energia diário era medido por água duplamente de calorias por dia em atividades, mas queimam o mesmo total de
marcada. Descobrimos que a atividade física cotidiana, medida calorias que moradores de cidades nos EUA.
pelos acelerômetros, tinha uma fraca relação com metabolismo.
Na média, espectadores passivos tendem a gastar cerca de 200
calorias a menos que pessoas moderadamente ativas: o tipo de gastam. Se o dispêndio diário de energia não mudou no decorrer
gente que faz algum exercício durante a semana e faz questão de da história humana, as principais culpadas pela moderna obesidade
ir pelas escadas. Mas, mais importante, o dispêndio de energia se pandêmica devem ser as calorias consumidas. Isso não deve ser
estabilizou em níveis mais altos de atividade: pessoas com vida novidade. Um velho ditado em saúde pública diz que é impossível
cotidiana mais intensamente ativa queimaram o mesmo número vencer uma dieta ruim, e estudiosos sabem por experiência pessoal
de calorias por dia que as de vida moderadamente ativa. O mesmo e montes de dados que apenas ir à academia para perder peso é
fenômeno que mantém o gasto de energia dos hadza em linha com ineficaz. Mas a nova ciência ajuda a explicar por que o exercício
o de outras populações ficou claro entre os indivíduos do estudo. é essa ferramenta tão fraca para a perda de peso. Não é que não
Como o corpo se ajusta a níveis mais altos de atividade para estejamos nos esforçando o suficiente. Nossos corpos armaram
controlar o gasto diário de energia? Como os hadza podem gastar um complô contra nós desde o início.
centenas de calorias por dia em atividades e ainda queimar o Ainda é preciso fazer exercícios. Este artigo não é um bilhete
mesmo total de calorias por dia na comparação com pes­soas da sua mãe para livrá-lo da aula de ginástica. Exercícios geram
sedentárias nos EUA e na Europa? Ainda não temos certeza, benefícios bem documentados, desde melhorar a saúde do coração
mas o custo da atividade em si não está mudando: sabemos, e do sistema imunológico até aprimorar o funcionamento do
por exemplo, que hadza adultos queimam o mesmo número de cérebro e contribuir para o envelhecimento saudável. De fato,
calorias que ocidentais para andar um quilômetro. Pode ser que suspeito que a adaptação metabólica à atividade é uma das razões
pessoas com níveis altos de atividade mudem seu comportamento para que os exercícios nos mantenham saudáveis, desviando
de formas sutis para economizar energia, como sentando-se energia de ações como a inflamação, que têm consequências
mais que ficando em pé ou dormindo mais tranquilamente. Mas negativas se durarem muito. A inflamação crônica tem sido ligada,
nossas análises dos dados do Mets sugerem que, embora essas por exemplo, à doença cardiovascular e distúrbios autoimunes.
mudanças possam contribuir, não são suficientes para responder Os alimentos que ingerimos certamente afetam nossa saúde,
pela constância vista no gasto de energia diário. e exercícios acompanhados de mudanças na dieta podem ajudar
Outra possibilidade intrigante é que o corpo crie espaço para a afastar quilos indesejáveis uma vez que o peso saudável for
o custo da atividade adicional reduzindo as calorias gastas nas atingido, mas as evidências indicam que é melhor pensar em
muitas tarefas ocultas que usam a maior parte de nosso orçamento dieta e exercício como ferramentas diferentes com forças
diário de energia: o trabalho doméstico que nossas células e diferentes. Faça exercício para se manter saudável e com vitalidade;
órgãos fazem para manter-nos vivos. Economizar energia nesses concentre-se na dieta para cuidar do peso.
processos pode abrir espaço em nosso orçamento de energia
diário, permitindo que gastemos mais em atividade física sem ORÇAMENTO DE ENERGIA E EVOLUÇÃO
aumentar o total de calorias gastas por dia. Por exemplo, os Mesmo que a recente ciência da adaptação metabólica ajude
exercícios costumam reduzir a atividade inflamatória que o a esclarecer a relação entre exercício e obesidade, um metabolismo
sistema imunológico arma assim como os níveis de hormônios limitado deixa os pesquisadores com questões existenciais
reprodutivos como estrogênio. Em animais de laboratório, o maiores. Se o gasto diário de energia é virtualmente imóvel,
aumento do exercício diário não tem efeito sobre o dispêndio como os humanos evoluíram de forma tão diferente de seus
de energia diário, mas resulta em menos ciclos ovulatórios e em parentes primatas? Nada na vida é de graça. Recursos limitados
reparação mais lenta de tecidos. E extremos podem levar alguns e mais investimento maior numa característica inevitavelmente
animais a comerem seus próprios filhotes em amamentação. significam menos investimento em outra. Não é coincidência
Humanos e outras criaturas parecem ter várias estratégias que coelhos se reproduzam muito, mas morram jovens; toda
HARRY HOOK Getty Images

evoluídas para manter o gasto de energia diário limitado. aquela energia colocada em filhotes significa menos para a
Todas essas evidências apontam para a obesidade como sendo manutenção do corpo e longevidade. O Tyrannosaurus rex pode
a doença da gula e não da preguiça. As pessoas ganham peso agradecer por sua grande cabeça com temíveis dentes e poderosos
quando as calorias que eles comem superam as calorias que elas membros posteriores aos seus insignificantes braços e mãos.

16  Scientific American Brasil


Mesmo os dinossauros não podem ter tudo. SORTE PARTILHADA
Humanos zombam desse princípio de austeridade, fundamental Em algum ponto naquele fim de tarde, nosso caminho se
para a evolução. Nosso cérebro é tão grande que, enquanto você voltou para o acampamento, Mwasad olhando adiante em vez
lê esse artigo sentado, o oxigênio de cada quarta respiração que de escrutinar o chão. Estávamos retornando para casa sem girafa.
você faz é necessário só para alimentar seu cérebro. Ainda assim Ali estava o risco fundamental na estratégia de alta energia
os humanos têm bebês maiores, se reproduzem com mais humana: ir para casa de mãos abanando era ao mesmo tempo
frequência, vivem mais tempo e são fisicamente mais ativos que mais provável e mais consequente. Muitos dos alimentos ricos
quaisquer de nossos parentes primatas. Os acampamentos hadza em energia de que precisamos para alimentar nossos metabolismos
estão repletos da alegria caótica das crianças e de saudáveis e mais rápidos são inerentemente difíceis de obter na natureza
vigorosos homens e mulheres em seus 60 e 70 anos. Nossa selvagem, aumentando o custo em energia de encontrar alimento
extravagância energética é um enigma evolutivo. Humanos são e elevando o risco de fome para os homens e mulheres que
tão genética e biologicamente semelhantes a outros primatas buscam alimentos e suas crianças no acampamento. Felizmente
que os cientistas há muito pressupõem que o metabolismo seja para Mwasad, os humanos desenvolveram alguns truques para
parecido também. Mas se o gasto de energia é limitado como evitar a inanição. Somos a única espécie que aprendeu a cozinhar,
nosso estudo e outros sugerem, como um inflexível metabolismo o que aumenta o valor calórico de muitos alimentos e torna sua
semelhante ao de macacos pode processar todas as calorias digestão mais eficiente. Nosso domínio do fogo converte raízes
necessárias para sustentar nossos onerosos traços humanos? vegetais que não seriam comestíveis — do inhame da cadeia de
Na sequência de nosso estudo comparativo do gasto energético mercearias Trader Joe aos tubérculos silvestres dos hadza — em
dos primatas, meus colegas e eu indagamos se o conjunto de verdadeiras bombas de amido e fécula. Também evoluímos para
traços adaptativos energeticamente custosos foi alimentado por sermos gordos. Sabemos bem disso pela crise de obesidade no
uma mudança evolucionária geral da fisiologia metabólica. Ocidente, mas mesmo adultos hadza, esbeltos por qualquer
Descobrimos nesse estudo que primatas queimam por dia só padrão humano, dispõem do dobro da gordura de chimpanzés
metade das calorias que outros mamíferos queimam. As taxas ociosos em zoológicos. Embora problemático na nossa era moderna,
metabólicas reduzidas dos primatas coincidem com suas taxas nossa propensão a acumular gordura provavelmente evoluiu em
lentas de crescimento e reprodução. Talvez, inversamente, a conjunto com nosso metabolismo mais rápido como uma reserva
reprodução mais rápida e outros traços dispendiosos dos humanos crítica de energia para sobrevivermos em tempos de escassez.
estejam relacionados à evolução de uma taxa metabólica Enquanto o sol laranja se punha pesadamente acima das
aumentada. Tudo o que precisávamos para testar essa ideia era árvores, nós retornávamos ao acampamento, Dave e eu em
pegar um grupo de frenéticos chimpanzés, astutos bonobos, direção às nossas barracas, Mwasad e Neje para as cabanas de
fleugmáticos orangotangos e instáveis gorilas de dorso prateado suas famílias, cada um de nós feliz por estarmos em casa. Apesar
para tomarem rigorosamente doses de água duplamente marcada da perda da girafa, ninguém sentiu fome naquela tarde. Em vez
sem qualquer desperdício e nos fornecessem umas poucas disso, com pouco alarde ou esforço consciente, o acampamento
amostras de urina. Em um tour de force científico, meus colegas utilizou nossa mais poderosa e engenhosa arma contra a inanição:
Steve Ross e Mary Brown, ambos do Parque Zoológico Lincoln, a partilha. Compartilhar alimento é tão fundamental para a
em Chicago, trabalharam com cuidadores e veterinários de mais experiência humana, a trama comum de todo churrasco,
de uma dúzia de zoológicos nos EUA para executarem a tarefa. aniversário, bar mitzvá, que consideramos uma coisa natural,
Levou um par de anos, mas eles acumularam dados suficientes mas que é uma parte única e essencial de nossa herança evolutiva.
sobre o gasto de energia de grandes primatas para que fosse Outros primatas não compartilham.
feita uma sólida comparação com humanos. Além de nossas necessidades nutricionais e obsessão com
Decerto, humanos queimam mais calorias por dia que qualquer gordura, talvez o mais profundo impacto de nosso gasto de
de nossos parentes grandes primatas. Mesmo depois de energia aumentado seja este imperativo humano de trabalhar
descontados os efeitos de tamanho do corpo, nível de atividade em conjunto. A evolução de um metabolismo mais rápido
e outros fatores, os humanos consomem e gastam cerca de 400 interligou nossa sina, exigindo que cooperemos ou morramos.
calorias a mais por dia que chimpanzés e bonobos; a diferença Sentado com Dave e Brian, contando as aventuras do dia,
com gorilas e orangotangos é ainda maior. Essas calorias extras comendo sardinhas em lata e batatas chips, percebi que não
representam o trabalho extra que nossos corpos fazem para poderia ser diferente. Não tem girafa, não tem problema. 
sustentar cérebros maiores, produzir mais bebês e manter nossos
corpos para que vivamos mais tempo. Não é só que comemos
PA R A C O N H E C E R M A I S
mais que outros macacos (embora façamos isso também); como
bem sabemos, acumular calorias extras num corpo não equipado Metabolic acceleration and the evolution of human brain size and life history.
para usá-las apenas resulta em obesidade. Nossos corpos, até o Herman Pontzer et al. em Nature, v ol. 533, págs. 390–392; 19 de maio de 2016.
Constrained total energy expenditure and metabolic adaptation to physical
nível celular, têm evoluído para queimar calorias mais rápido activity in adult humans. H  erman Pontzer et al. em Current Biology, v ol. 26, nº 3,
e fazer mais coisas. A evolução humana não aconteceu sem págs. 410–417; 8 de fevereiro de 2016.
concessões: nosso trato digestivo é menor e menos dispendioso Hunter-gatherer energetics and human obesity. H  erman ­Pontzer et al. em 
que o de outros primatas, que necessitam de um tubo digestivo PLOS ONE, vol. 7, nº 7, artigo nº e40503; 25 de julho de 2012.
maior e energeticamente dispendioso para digerir suas dietas D E N OSSOS A RQU I VOS
fibrosas baseadas em plantas. Mas as mudanças fundamentais
Alimentos e evolução humana. W
 illiam R. Leonard; janeiro de 2003.
que nos tornam humanos foram alimentadas por uma mudança
evolucionária em nosso motor metabólico.

www.sciam.com.br  17
18  Scientific American Brasil
ELOS
EVO LU Ç Ã O

PERDIDO S
Nossos grandes cérebros
humanos, nossa postura ereta
e o estilo de amar podem
existir porque eliminamos
peças-chave de DNA
Philip L. Reno
Ilustração de Chris Gash

www.sciam.com.br  19
Q
Philip L. Reno é professor
associado de ciências biomédicas
da Faculdade de Medicina
Osteopática de Filadélfia.

uando visitamos um zoológico e espreitamos nossos parentes


vivos mais próximos, os grandes primatas, certamente duas
coisas nos cativam. Uma: eles se parecem muito conosco. As
faces expressivas e as mãos habilidosas de chimpanzés, bonobos,
orangotangos e gorilas são incrivelmente semelhantes às nossas.
A outra coisa: essas criaturas, muito claramente, não são nossos genes e processo de desenvolvimento, tinha mudado à
pessoas. Nosso caminhar ereto, cérebro volumoso e inteligente medida que os humanos progrediam por sua incomum trilha
e uma lista de outros traços nos diferenciam de forma acentuada. evolutiva. Tive a sorte de conseguir uma vaga de pós-doutorado
Quais foram os eventos-chave da evolução que nos definiram com David Kingsley, da Universidade Stanford, que se debruçava
de maneira única como humanos? O que aconteceu — e como? justamente sobre algumas questões que me fascinavam.
Antropólogos e biólogos evolutivos vêm lidando com essas Entre outros trabalhos, o laboratório de Kingsley havia
questões há décadas, e cada vez mais se voltam para modernas identificado mudanças do DNA envolvidas na evolução de peixes
tecnologias genéticas para ajudar a resolver o mistério. esganagatas, da família Gasterosteidae — incluindo a eliminação
Descobrimos que algumas das mais importantes características de um trecho do DNA do peixe em água doce que, como se verificou,
humanas — traços que nos distinguem de nossos parentes mais causou a perda das barbatanas pélvicas espinhosas nessa espécie.
próximos — podem vir não de adições aos nossos genes, como Essa parte perdida do DNA continha um “interruptor” necessário
se podia supor. Em vez disso, são resultantes de perdas: o para acionar um gene relacionado ao desenvolvimento da espinha
desaparecimento de trechos-chave de DNA. pélvica no momento e no lugar corretos.
Vários laboratórios de pesquisa, incluindo o meu, traçaram Se esse tipo de processo aconteceu com esgana-gatas, por
alguns desses DNAs perdidos ao longo do tempo, comparando que não teria ocorrido também com humanos? Parecia razoável
genomas humanos com os de outros mamíferos e mesmo com supor que mudanças sutis em quando e onde os genes são
humanos arcaicos: os Neandertais e nossos primos menos conhecidos, ativados durante o desenvolvimento poderia ser uma forma de
os Denisovanos. Descobrimos que, nos cerca de oito milhões de o nosso genoma ter evoluído para gerar nossa anatomia única.
anos desde que nossa linhagem se separou dos chimpanzés, os Inspirado pelo exemplo do peixe, começamos a examinar se
genomas de nossos ancestrais perderam “interruptores” no DNA poderíamos encontrar em humanos interruptores importantes
que ativam genes-chaves durante o desenvolvimento. Os Neandertais que teriam desaparecido no decorrer da evolução. A atual
compartilham nossa perda, tornando claro que o sumiço ocorreu disponibilidade de genomas de humanos e primatas
no início de nosso percurso evolutivo. completamente sequenciados, assim como de instrumentos
De fato, a perda dessas sequências de DNA parece estar ligada computacionais necessários para analisá-los, tornou nossa
a traços genuinamente humanos: cérebros grandes, posição experiência possível. Um grupo nosso no laboratório de Kingsley
vertical ao caminhar e nossos hábitos inconfundíveis de se juntou ao cientista computacional Gill Bejerano e ao então
acasalamento. (A última parte do projeto me levou, no decorrer estudante de graduação Cory McLean, de Stanford, para planejar
de meus experimentos, a acumular um volume surpreendente os experimentos.
de informações sobre a estrutura do pênis dos primatas.) Sabemos que, no genoma de uma criatura, trechos do DNA
que desempenham tarefas importantes são preservados durante
PERDEDORES a evolução com grande fidelidade. Também sabemos que, quanto
Eu criei um grande interesse pela evolução humana durante mais duas espécies estejam proximamente relacionadas, mais
meus anos de doutorado com o reconhecido antropólogo C. Owen similares suas sequências genéticas serão. No caso de chimpanzés
Lovejoy, da Universidade Estadual de Kent, onde estudei a diferença e humanos, por exemplo, nossos genomas são 99% idênticos na
de esqueletos de machos e fêmeas de parentes humanos extintos. minúscula porção — menos de 1% — que traz instruções para
Eu queria continuar esse tipo de trabalho para saber o que, em produzir proteínas. E são 96% idênticos na porção muito maior

EM SÍNTESE

Análises recentesidentificaram mais de 500 trechos Três trechos parecemser de interruptores de DNA, e A perda de outro interruptorde nossos ancestrais
de DNA que foram perdidos no genoma humano, a perda de dois deles liberou o crescimento do cérebro pode ter refinado nossa postura ereta, que deixou
mas ainda existem em chimpanzés e outros mamíferos. e a ligação entre pares no acasalamento humano. nossas mãos livres para fazer e carregar ferramentas.

20  Scientific American Brasil


E VO L U ÇÃO

Ligando e desligando genes


Nem todos os genes humanos estão ativos em todas as células ou o tempo todo. Os diferentes padrões de atividade são chave para o
cres- cimento e a função de diferentes partes do corpo. Interruptores do DNA chamados promotores ajudam a controlar os padrões, e
um único gene pode ser afetado por múltiplos promotores que mudam os efeitos do gene em diferentes partes. Interruptores
presentes em outros animais, mas que nós perdemos, podem ter produzido traços humanos únicos.
Como promotores afetam as células
● ●
Um gene pode ser controlado por três promotores, ativos em diferentes formas em uma célula dos rins a  e uma célula da pele b . A célula dos rins
não produz uma molécula, chamada fator de transcrição, necessária para ativar os promotores e usar uma enzima importante, RNA polimerase
(amarelo), que lê o código genético. A célula de pele, em contrapartida, produz um fator de transcrição (rosa) que se liga ao promotor rosa. Isso ativa o
gene, produzindo uma molécula mRNA, ou RNA mensageiro (vermelho) que transmite as instruções do gene à célula.


a  Dentro da célula dos rins ●
b Dentro da célula dos rins
Promotor ativo

DNA Promoto inativor


Promotor inativo Fator de transcrição
RNA polimerase
Promotor inativo Gene ativo
Gene inativo

mRNA

Quando promotores são perdidos


● ●
Sem o promotor rosa, o gene na célula dos rins c  continua inativo. Mas, na célula da pele d , o gene anteriormente ativo está agora desligado e
não envia instruções para a célula. (Em outros tipos de células, a atividade afetada pelos dois outros promotores continuaria.)


c  Dentro da célula dos rins ●
d Dentro da célula da pele

Promotor ausente Promotor ausente

Gene inativo Gene inativo

Nossos interruptores perdidos


Trechos de DNA não codificantes de proteínas Elemento Elemento Mudança Perda
contêm elementos como interruptores. conservado conservado de sequência humana
Cientistas compararam esses trechos em de mamíferos de primatas específica de elemento
chimpanzés, humanos, macacos e ratos para a humanos conservado
descobrir interruptores em outros animais
Humano
que haviam desaparecido quando os humanos
evoluíram. Em alguns casos (triângulos),
Gene
os elementos de DNA estavam presentes
em todas as espécies, sugerindo que eram
importantes para todos os mamíferos.
Em outros casos (círculos), primatas tinham Chimpanzé
os elementos, mas ratos não, indicando que
os elementos eram importantes apenas para
a linhagem dos primatas. Uns poucos
elementos (retângulos) tinham mudanças
singulares em humanos que podem ter Macaco
sido importantes para nossa evolução.
E alguns elementos (pentágonos) estavam
em ratos, chimpanzés e macacos mas
ausentes em humanos. Essas regiões
perdidas podem ter contribuído para os Rato
traços que nos fazem diferentes.

Gráfico de Jen Christiansen www.sciam.com.br  21


do genoma que não contém esses genes que codificam proteínas. sido perdidas em algum momento depois que nossa linhagem
divergiu da do chimpanzé. Descobrimos mais de 500.
PROCURANDO NO LIXO Qual delas estudar, então? Como queríamos encontrar
Nós estávamos interessados nessa área muito mais ampla — interruptores que pudessem alterar o desenvolvimento dos
trechos que, no passado, eram chamados de DNA “lixo”, mas que, mamíferos, nós focamos remoções próximas a genes com papéis
agora se sabe, são repletos de interruptores que ligam e desligam conhecidos nesse processo. Um de meus colegas seguiu uma
genes. O trabalho desses interruptores é crucial. Embora boa exclusão perto de um gene que regula a formação dos neurônios;
parte de todas as células do corpo humano contenham os mesmos. outro trabalhou numa perda perto de um gene envolvido na
20 mil genes, eles não estão todos acionados em toda parte formação do esqueleto.
ou o tempo todo em todos os lugares. Apenas certos genes são De minha parte, por causa de meu interesse na evolução das
necessários para construir um cérebro, por exemplo, e outros diferenças nas formas dos corpos masculino e feminino, me
para ossos ou pelos. Como chimpanzés e humanos, apesar de atraiu uma perda perto de um gene para o receptor androgênico.
Androgênios como a testosterona são hormônios necessários
ao desenvolvimento de traços específicos do macho. Fabricados
nos testículos, circulam pela corrente sanguínea. Em resposta,
as células que ativamente fazem receptores de androgênios vão
então seguir um padrão masculino de desenvolvimento: formação
de pênis em vez de clitóris, por exemplo, ou (mais tarde na vida)
crescimento de barba e laringe expandida para uma voz grave.
Nós precisávamos testar, primeiramente, se essas porções
2
de DNA realmente continham interruptores. Para isso as extraímos
do DNA do chimpanzé e do rato e anexamos a um gene que
torna as células azuis — mas apenas quando esse gene é ativado.
Injeta- mos esse pedaço de DNA com o interruptor colado em
óvulos fer- tilizados de ratos para ver se alguma parte do embrião
ficava azul quando se desenvolvesse — indicando um interruptor
3
funcional no trecho do DNA — e, caso ficasse, onde.

INTERRUPTORES DE MACHOS
Meus resultados foram animadores: eles realmente pareciam
mostrar que eu estava trabalhando com um verdadeiro interruptor
para ligar o receptor androgênico, um que seres humanos haviam
1 4 perdido. Nos embriões de ratos, o tubérculo genital (que se
desenvolve como clitóris ou pênis) se tingiu de azul, assim como
TESTE DO RATO: para ver o que um interruptor genético fazia,
as glândulas mamárias e pontos na face do rato onde se formam
cien- tistas o injetaram em embriões de rato com DNA que
bigodes sensoriais chamados vibrissas. Todos esses tecidos são
tornava as células azuis onde o interruptor estava “ligado”. O azul
conhecidos por fazer o receptor androgênico responder à
apareceu em pontos que desenvolvem bigodes sensoriais e outros
testosterona. Olhando mais de perto, vi que a coloração nos
folículos capilares (1) e células que formam o pênis ou clitóris e
genitais em desenvolvimento estava situada em locais onde farpas
glândulas mamárias (2). Outras técnicas mostraram o interruptor
muito próximo a genes que permitem que células respondam a
de proteína formam mais tarde o pênis do rato.
hormônios sexuais como testosterona (3), e em ratos machos Bigodes sensoriais e pênis espinhosos não são características
adultos o interruptor é muito ativo em células que criam pênis humanas, evidentemente. Mas elas ocorrem em muitos mamíferos,
espinhosos (4). incluindo ratos, macacos e chimpanzés. Também é sabido que
uma perda de testosterona resulta em bigodes mais curtos em
roedores machos e na ausência de espinhas no pênis de roedores
e primatas. Farpas no pênis e bigodes igualmente podem
suas diferen- ças, têm a mesma estrutura corporal básica, não desaparecer se um interruptor crucial do DNA é perdido e o
surpreende que o amplo terreno contendo interruptores em receptor androgênico não for mais feito nesses tecidos.
nossos genomas tenha muitas similaridades. Enquanto seguia com meus experimentos, outros se ocupavam
O que importava para nós eram as diferenças. Especificamente, com as supressões que haviam escolhido, também com resultados
queríamos descobrir sequências que tinham sido preservadas ao fascinantes. O então pós-graduando Alex Pollen descobriu que
longo da evolução em muitas espécies (indicativo de que eram sua porção de DNA ativava o gene neural próximo em pontos
sequências importantes), mas não estavam mais presentes nos precisos no cérebro em desenvolvimento. O gene está envolvido
humanos. Para fazer isso, nossos colaboradores genômicos com num processo-chave: ajuda a matar os neurônios excedentes, que
CORTESIA DE PHILIP L. RENO

putacionais compararam, primeiramente, os genomas de são produzidos em demasia durante o desenvolvimento do embrião.
chimpanzés, macacos e ratos. Eles apontaram centenas de trechos Isso leva a um pensamento tentador: como o cérebro humano é
de DNA que permaneceram quase inalterados entre as três espécies. muito maior que o do chimpanzé (1.400 cm3 ante 400 cm3), a
O próximo passo era esquadrinhar essa lista para encontrar perda desse interruptor poderia ter contribuído para tal aceleração
porções que não existiam no genoma humano e, portanto, tinham evolutiva, ao liberar os freios para o crescimento do cérebro?

22  Scientific American Brasil


A perda de espinhos penianos, acreditamos, é uma das mudanças
causadoras de efeitos de grande alcance em nossa caminhada evolutiva.

Vahan B. Indjeian, então um pós-doutorando no laboratório, ela, um acasalamento bem-sucedido gera um compromisso
descobriu, de modo parecido, que seu interruptor ligava o gene considerável — gestação, amamentação e criação de cada cria
ligado ao crescimento do esqueleto, desenvolvendo membros até sua independência — e a fêmea não reproduz de novo
pos- teriores, especificamente os dedos dos pés. Os humanos enquanto o desmame não terminar.
têm os segundo, terceiro, quarto e quinto dedos mais curtos Humanos são diferentes. Eles formam laços entre pares
que os primatas e ratos, alterações que aprimoram o pé para bastante fiéis. Homens com frequência ajudam a criar os filhos,
o andar ereto. permitindo o desmame antecipado e aumentando a taxa de
É fácil ver como interruptores do cérebro e ossos se encaixam reprodução. A competição entre machos não é tão intensa. Nós
no padrão da evolução humana. A perda de ambos parece acreditamos que a perda dos pênis espinhosos aconteceu
relacionada com as marcas da humanidade: um cérebro grande juntamente com a perda de outros traços associados à competição
e o caminhar sobre duas pernas. A perda dos bigodes sensoriais acirrada (como os perigosos caninos) e o ganho de outros traços
é bastante fácil de racionalizar porque nós não farejamos mais que promoveram a união e a cooperação.
no escuro usando o focinho para encontrar comida ou capturar O bipedismo, como Lovejoy propôs, pode ser uma dessas
presas, mas usamos as mãos, à luz do dia, para encontrar características. É provável que a ajuda do macho inicialmente
alimentos. Apesar de sua importância reduzida, no entanto, não tenha tomado a forma de procurar alimentos ricos em gorduras
está claro como estaríamos melhor sem esses bigodes. e proteínas, como larvas, insetos e pequenos vertebrados que
exigiam busca e transporte. Os machos precisavam caminhar
RELAÇÕES SENSÍVEIS com as mãos livres para transportarem a carga, o que
A questão do pênis espinhoso é menos intuitiva, mas é provavelmente deu lugar à vantagem seletiva inicial para andar
potencialmente mais poderosa e também se encaixa perfeitamente sobre duas pernas.
na história de adaptação da nossa espécie. A perda de espinhos,
acreditamos, é uma de uma série de mudanças que juntas tiveram PERDA DE GENE E GANHO DE TRAÇOS
efeitos de grande alcance em nosso caminho evolutivo. Em E ainda há mais. Cooperação e aprovisionamento também
conjunto essas mudanças alteraram a maneira como acasalamos, teriam permitido que os pais criassem filhos dependentes por
a aparência física de machos e fêmeas, nossa relação de uns mais tempo e assim prolongassem o período juvenil após o
com outros e as formas como cuidamos de nossa prole. desmame. Isso teria propiciado um tempo maior para o
Feitos de queratina, a mesma substância de nossas unhas, aprendizado e, portanto, maximizado a utilidade de um cérebro
esses espinhos ocorrem em muitos mamíferos, incluindo grande e ágil — talvez abrindo espaço, de fato, para sua evolução.
primatas, roedores, gatos, morcegos e gambás, e variam desde Nesse sentido, as histórias individuais de nossas três perdas
simples cones microscópicos a grandes farpas e pontas estão profundamente interligadas.
multifacetadas. Eles podem ter várias funções, dependendo da Quando cheguei ao laboratório de Kingsley eu não imaginava
espécie: maximizar a estimulação, induzir a ovulação, remover o rumo que meu trabalho tomaria — que eu me encontraria
esperma depositado por outros machos ou irritar o revestimento debruçado sobre antiquados textos dos anos 1940 sobre estrutura
vaginal para limitar o inte- resse da fêmea em se acasalar com genital dos mamíferos. Meu laboratório está dando continuidade
outros. O tempo de cópula dos primatas dotados de espinhos a essa e outras pesquisas genéticas e mudanças evolutivas com
é curtíssimo: nos chimpanzés, tipicamente menos de dez grandes consequências: a modelagem evolutiva de delicados
segundos. E experimentos históricos com primatas mostram ossos no pulso humano a fim de aperfeiçoá-lo para a fabricação
que a remoção dos espinhos do pênis pode estender a cópula de ferramentas.
em dois terços. A partir dessas observações podemos depreender Talvez nunca saibamos muita coisa sobre toda essa história
que a perda dos espinhos penianos foi uma das mudanças em distante, não importa o quanto possamos descobrir a respeito.
humanos que fizeram o ato sexual ser mais demorado e, assim, Mas, mesmo se não pudermos ter certeza sobre o porquê de
mais íntimo, comparado com o de nossos antepassados com uma mudança evolutiva, com os instrumentos da moderna
espinhos. Isso soa agradável, mas também pode ter servido à biologia molecular podemos agora descobrir o como — uma
nossa espécie de uma perspectiva evolutiva. questão que é, em si, fundamental e fascinante. 
Nossa própria estratégia reprodutiva é diferente da de qualquer
primata, que tem, no centro, intensa competição entre machos. PA R A C O N H E C E R M A I S
Entre chimpanzés e bonobos, os machos competem para se
Evolving New Skeletal Traits by Cis-Regulatory Changes in Bone
acasalar com quantas fêmeas férteis conseguirem. Eles produzem Morphogenetic Proteins. Vahan B. Indjeian et al. em Cell, vol. 164, nos 1–2, págs.
abundante quantidade de esperma (testículos de chimpanzés 45–56; 14 de janeiro de 2016.
são três vezes maiores que os de humanos), têm pênis espinhosos Genetic and Developmental Basis for Parallel Evolution and Its Significance for
e, como todos grandes primatas e macacos machos, têm caninos Hominoid Evolution. Philip L. Reno em Evolutionary Anthropology: Issues, News,
and Reviews, vol. 23, nº 5, págs. 188–200; setembro/outubro de 2014.
mortais como presas para desencorajar rivais. Eles deixam a
criação dos filhotes inteiramente para as fêmeas. Assim, para

www.sciam.com.br  23
POR QUE SÓ O
HOMO SAPIENS
PERDUROU
ATÉ A parte 1

ERA
MODERNA?
O HOMINÍNEO
QUE SOBREVIVEU

K AT E WO N G  : :  
I LU S T R AÇ ÃO D E Y U KO S H IMIZ U

24  Scientific American Brasil


www.sciam.com.br  25
N
Kate Wong é editora sênior
de evolução e ecologia em
Scientific American.

o alvorecer do homo sapiens, nossos ancestrais nasciam


em um mundo que nós acharíamos totalmente surreal.
Não tanto porque o clima e os níveis do mar ou as
plantas e os animais eram diferentes, embora
evidentemente o fossem — mas porque outros tipos de
humanos viviam na mesma época. Por boa parte da
existência do Homo sapiens, de fato, muitas espécies de
humanos andavam pela Terra. Na África, onde nossa espécie começou, também vagavam
Homo heidelbergensis, com cérebros grandes, e Homo naledi, com cérebros pequenos. Na
Ásia, havia o Homo erectus, um misterioso grupo chamado denisovanos e, mais tarde, o
Homo floresiensis — criatura semelhante ao hobbit, diminuto, exceto pelos seus grandes pés.
O robusto neandertal, com sua testa proeminente, por sua vez, dominou a Europa e o Oeste
da Ásia. E provavelmente havia outras formas ainda não descobertas.

Cerca de 40 mil anos atrás, com base nas evidências T EORIA AMEAÇADA
atuais, o Homo sapiens se viu sozinho, como único O debate sobre a origem de nossa espécie
membro remanescente do que chegou a ser uma tradicionalmente se concentrou em dois modelos
família incrivelmente diversa de primatas bípedes, concorrentes. De um lado estava a hipótese da Origem
conhecidos em conjunto como hominíneos. (Nesse Recente Africana, defendida pelo paleoantropólogo
artigo, os termos “humano” e “hominíneo” referem­ Christopher Stringer e outros, que argumentam que
‑se ao Homo sapiens e seus parentes extintos.) Como o Homo Sapiens surgiu no Leste ou no Sul da África
o nosso tipo tornou-se o último humano em pé? nos últimos 200 mil anos e, por causa de sua inerente
Até há poucos anos, cientistas privilegiavam uma superioridade, substituiu depois as espécies arcaicas
explicação simples: o Homo sapiens surgiu de hominíneos ao redor do globo sem qualquer grau
relativamente recentemente, mais ou menos em sua significativo de procriação cruzada entre eles. Do
forma atual, em uma única região da África e dali se outro lado estava o modelo de Evolução Multirregional,
espalhou para o restante do Velho Mundo, suplantando formulado pelos paleoantropólogos Milford Wolpoff,
os neandertais e outras espécies humanas arcaicas Xinzhi We e o falecido Alan Thorne, que defende que
que encontrou pelo caminho. Não houve miscigenação o Homo Sapiens moderno evoluiu de neandertais e
EM SÍNTESE considerável interespécies, apenas a substituição outras populações arcaicas no Velho Mundo,
Até recentemente, o generalizada da velha guarda pelos recém-chegados conectadas por migração e acasalamento. Sob esse
modelo dominante da mais espertos, cuja supremacia parecia inevitável. ponto de vista, o Homo Sapiens tem raízes bem mais
origem humana defendia Mas o aumento das evidências obtidas com profundas, remontando a quase dois milhões de anos.
que o Homo sapiens surgiu descobertas arqueológicas e fósseis, além de análises No início dos anos 2000, o modelo Origem Recente
de uma única região da de DNA, levou os especialistas a cada vez mais Africana reunia evidências abundantes em seu favor.
África e substituiu espécies repensarem esse cenário. Parece agora que o Homo Análises do DNA de pessoas vivas indicavam que
humanas arcaicas no Velho
sapiens se originou bem antes do que se acreditava, nossa espécie se originou a não mais de 200 mil anos
Mundo sem cruzamento
com elas. possivelmente em locais espalhados pela África e atrás. Os mais antigos fósseis conhecidos atribuídos
Novas descobertas da não em uma única região, e alguns de seus traços a nossa espécie vinham de dois locais na Etiópia,
arqueológica, paleontologia característicos — incluindo aspectos do cérebro — Omo e Herto, datados de cerca de 195 mil e 160 mil
e genética estão evoluíram aos poucos. Além disso, ficou bem claro anos, respectivamente. E sequências de DNA
reescrevendo essa história. que o Homo sapiens misturou-se com outras espécies mitocondrial (os minúsculos círculos de material
As mais recentes humanas que encontrou e que a miscigenação pode genético encontrados nas centrais de energia da
pesquisas sugerem que o ter sido crucial para nosso sucesso. Essas descobertas célula, que são diferentes do DNA contido no núcleo
Homo sapiens surgiu de
pintam, em conjunto, um quadro muito mais da célula) recuperadas de fósseis de neandertal eram
grupos localizados ao longo
da África e que a complexo de nossas origens do que muitos diferentes do DNA mitocondrial de pessoas de hoje
reprodução cruzada com pesquisadores haviam imaginado, um que favorece — exatamente como se esperaria caso o Homo sapiens
outras espécies humanas a ideia de sorte, não de destino, quanto ao êxito de tenha substituído espécies de humanos arcaicos sem
contribuiu para nosso êxito. nossa espécie. acasalar com eles.

26  Scientific American Brasil


Nem todas as evidências se encaixam nessa história cerca de 40 mil anos e pertenciam aos neandertais.
certinha, no entanto. Muitos arqueólogos acham Mas as contínuas escavações e análises ao longo dos
que o começo de uma fase cultural conhecida como anos levaram pesquisadores a revisarem essa avaliação.
Idade da Pedra Média (IPM) marcou o surgimento Em junho de 2017, o paleoantropólogo Jean-Jacques
de pessoas que estavam começando a pensar como Hublin, do Instituto Max Planck para a Antropologia
nós. Antes dessa mudança tecnológica, espécies de Evolucionária em Leipzig, na Alemanha, e seus
humanos arcaicos no Velho Mundo faziam tipos de colegas anunciaram que haviam recuperado fósseis
ferramentas de pedra muito semelhantes aos adicionais no local, juntamente com ferramentas da
fabricados no chamado estilo acheuliano. A tecnologia IPM. Usando duas técnicas de datação, eles estimaram
acheuliana era centrada na produção de fortes facões que os achados tinham cerca de 315 mil anos. Eles
que eram feitos com uma fatia de pedra talhada até haviam descoberto os mais antigos traços do Homo
que adquirisse a forma desejada. Com o início da sapiens até agora e os mais antigos traços da cultura
IPM, nossos ancestrais adotaram um novo método da IPM — empurrando as evidências fósseis de nossa
de fabricação de ferramentas, invertendo o processo espécie mais de 100 mil anos para trás e ligando-as
de talhar para focar nas lascas menores e afiadas ao achado mais antigo que conhecemos da IPM.
que separavam do núcleo — um uso mais eficiente Nem todos concordam que os fósseis de Jebel
da matéria-prima que exigia planejamento sofisticado. Irhoud pertencem ao Homo sapiens. Alguns
E eles começaram a atar essas lascas afiadas a cabos especialistas acham que, em vez disso, eles podem
para criar lanças e outras armas na forma de projéteis. vir de um parente próximo. Mas, se Hublin e seus
Além disso, algumas pessoas que faziam ferramentas colaboradores estiverem certos sobre a identidade
na IPM também fizeram itens associados com dos ossos, a constelação de traços cranianos que
comportamentox simbólicox, incluindo colares de distinguem o Homo sapiens de outras espécies
conchas para joalheria e pigmentos para pintura. O humanas não surgiram todos em sintonia no início
recurso ao comportamento simbólico, incluindo a de nossa espécie, como supõem os apoiadores da
linguagem, é considerado como uma das marcas da teoria da Origem Recente Africana. Os fósseis se
mente moderna. parecem com humanos modernos por terem, por
O problema era que as datas mais remotas da exemplo, face pequena. Mas a caixa cerebral é
IPM eram de mais de 250 mil anos atrás — bem alongada como a das espécies humanas arcaicas e
anteriores às dos primeiros fósseis do Homo Sapiens, não arredondada como a nossa. Essa diferença de
de menos de 200 mil anos. Outra espécie humana formato reflete diferenças na organização do cérebro:
teria inventado a IPM ou o Homo Sapiens evoluiu comparados com humanos totalmente modernos,
bem antes do que os fósseis pareciam indicar? os indivíduos de Jebel Irhoud tinham lobos parietais
Em 2010 surgiu outro porém. Geneticistas —que processam os inputs sensoriais— menores, e
anunciaram ter recuperado o DNA nuclear de fósseis um menor cerebelo, que está envolvido na linguagem
de neandertal e o sequenciaram. O DNA nuclear e cognição social, entre outras funções.
forma a maior parte de nosso material genético. A Nenhuma das descobertas arqueológicas de Jebel
comparação do DNA nuclear do neandertal com o Irhoud tampouco exibe o completo aperfeiçoamento
de pessoas vivas revelou que não africanos de hoje característico da IPM. As pessoas ali faziam
carregam o DNA de neandertais, mostrando que, ferramentas de pedra IPM para caçar e abater gazelas
afinal, houve reprodução cruzada entre o Homo que vagavam pelas pradarias que recobriram essa
sapiens e neandertais, pelo menos ocasionalmente. área agora desértica. E eles faziam fogueiras,
Estudos posteriores de genomas ancestrais provavelmente para cozinharem seu alimento e se
confirmaram que os neandertais contribuíram para aquecerem no frio da noite. Mas eles não deixaram
o gene do humano moderno, assim como outros para trás nenhum traço de expressão simbólica.
humanos arcaicos. E, contrariando a noção de que De fato, no geral, eles não são especialmente mais
o Homo sapiens surgiu nos últimos 200 mil anos, o sofisticados do que os neandertais ou os Homo
DNA antigo sugeriu que os neandertais e o Homo heidelbergensis. Se pudéssemos viajar de volta no
sapiens separaram-se de seu ancestral comum bem tempo até a estreia de nossa espécie, não
antes, talvez há mais de meio milhão de anos. Se isso necessariamente apostaríamos nela como ganhadora
ocorreu, o Homo sapiens pode ter se originado há no bolão evolucionário. Embora os primeiros Homo
mais do dobro do tempo indicado pelo registro fóssil. sapiens mostrassem algumas inovações, “não houve
nenhuma grande mudança 300 mil anos atrás que
R AÍZES ANTIGAS indicasse que eles estavam destinados a serem bem­
Descobertas recentes n  o sítio arqueológico Jebel ‑sucedidos”, observa o arqueólogo Michael Petraglia,
Irhoud, no Marrocos, ajudaram a alinhar melhor as do Instituto Max Planck para a Ciência da História
evidências fósseis, culturais e genéticas — e Humana em Jena, Alemanha. “No começo do sapiens,
contribuíram para uma nova visão a respeito de parecia um jogo equilibrado”, acredita Petraglia.
nossa origem. Quando mineradores de barita
encontraram fósseis pela primeira vez no sítio, em JARDINS DO ÉDEN
1961, antropólogos pensaram que os ossos tinham O “pacote completo” do Homo sapiens, m uitos

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pesquisadores concordam, só foi reunido em algum Deserto do Saara em uma vastidão exuberante de
momento entre 100 mil e 40 mil anos atrás. Então, vegetação e lagos. Esses episódios de Saara verde,
o que aconteceu no período de 200 mil anos ou mais como são conhecidos, teriam permitido que
que transformou nossa espécie do hominíneo populações antes isoladas pela inclemência do
corriqueiro em uma força da natureza conquistadora deserto se reunissem. Quando o Saara voltasse a
do mundo? Cientistas cada vez mais pensam como secar, populações se separariam de novo e poderiam
o tamanho e a estrutura da população inicial de viver seus próprios experimentos evolucionários por
Homo sapiens podem ter contado para a metamorfose. outro período até o retorno do verde.
Em um estudo publicado on-line em julho em Trends Uma população subdividida em grupos com cada
in Ecology & Evolution, a arqueóloga Eleanor Scerri, um se adaptando ao seu próprio nicho ecológico,
da Universidade de Oxford, e um grande grupo mesmo que migrações ocasionais entre grupos os
interdisciplinar de coautores, incluindo Stringer, mantivessem conectados, explicaria não apenas o
defendeu o que denominaram o modelo do mosaico da evolução da anatomia diferenciada do
Multirregionalismo Africano para a evolução do Homo sapiens, mas também o padrão de colcha de
Homo sapiens. Os cientistas ressaltaram que os retalhos da IPM, dizem Scerri e seus coautores.
primeiros supostos membros de nossa espécie — ou Diferentemente das ferramentas acheulianas, que
seja, os fósseis de Jebel Irhoud, do Marrocos, e os parecem ser relativamente iguais em todos os lugares
fósseis de Herto e Omo Kibish, da Etiópia, e um em que apareceram no Velho Mundo, as ferramentas
crânio parcial de Florisbad, África do Sul — parecem da IPM exibem consideráveis variações regionais.
muito diferentes das pessoas modernas. Tanto que Sítios que vão de 130 mil a 60 mil anos atrás no
alguns pesquisadores argumentaram que eles Norte da África, por exemplo, contêm tipos de
ferramentas não encontrados em sítios
do mesmo período no Sul da África,
Nós podemos ter, de fato, uma incluindo instrumentos de pedra com

grande dívida de gratidão com nossos


distintas hastes que podem ter servido
como pontos de fixação para cabos. Da

parentes extintos pelo nosso êxito. mesma forma, sítios no Sul da África
contêm ferramentas finas em forma de
folha feitas de pedra que foi aquecida
pertencem a diferentes espécies ou subespécies. para melhorar sua mecânica de fratura — esses
“Mas talvez os primeiros Homo sapiens simplesmente implementos não aparecem nos registros do Norte
tivessem uma diversidade absurda”, sugere Scerri. da África. Tecnologia complexa e simbolismo se
E talvez procurar um único ponto de origem para tornaram mais comuns no continente com o tempo,
nossa espécie, como muitos pesquisadores vêm mas cada grupo tem sua própria forma de agir,
fazendo, é uma “busca em vão”, opina ela. adaptando sua cultura aos seus nichos e costumes
Quando Scerri e seus colegas examinaram os específicos.
últimos dados de fósseis, DNA e arqueologia, o O Homo sapiens não foi o único hominíneo a
surgimento do Homo sapiens começou a parecer desenvolver cérebro maior e comportamento
menos uma história de origem única e mais um sofisticado, no entanto. Hublin ressalta que fósseis
fenômeno pan-africano. Em vez de evoluírem como humanos de 300 mil a 50 mil anos atrás encontrados
uma pequena população em uma região particular na China, que ele suspeita serem de denisovanos,
da África —eles propõem—, nossa espécie surgiu exibem tamanho aumentado de cérebro. E
como uma grande população que foi subdividida neandertais inventaram ferramentas complexas e
em grupos menores distribuídos pelo vasto continente suas próprias formas de expressão simbólica e
africano que ficavam com frequência semi-isolados conexão social durante seu longo domínio. Mas
por milhares de anos a cada período por causa da esses comportamentos não parecem ter se tornado
distância e de barreiras ecológicas como os desertos. tão desenvolvido ou integral ao seu modo de vida
Esses episódios de solidão permitiram que cada quanto acabaram sendo no nosso, observa o
grupo desenvolvesse suas próprias adaptações arqueólogo John Shea, da Universidade Stony Brook,
biológicas e tecnológicas aos seus próprios nichos, que acredita que habilidades avançadas de linguagem
fosse uma árida floresta ou um gramado de savana, permitiram que o Homo sapiens triunfasse.
uma floresta tropical ou a costa marinha. Com muita “Todos esses grupos evoluíam no mesmo sentido”,
frequência, no entanto, os grupos entravam em diz Hublin. “Mas nossa espécie cruzou um limiar
contato, permitindo o intercâmbio genético e cultural antes dos demais em termos de habilidade cognitiva,
que alimentou a evolução de nossa linhagem. complexidade social e sucesso reprodutivo”. E quando
A mudança climática pode ter impulsionado a cruzou, há cerca de 50 mil anos, na estimativa de
fratura e a reintegração de subpopulações. Dados Hublin, “o leite fervido transbordou da panela”.
paleoambientais, por exemplo, mostraram que a Forjado e polido na África, o Homo sapiens pode
cada 100 mil anos mais ou menos, a África entra entrar em virtualmente todos ambientes da Terra
em uma fase úmida que transforma o proibitivo e prosperar. Tornou-se invencível.

28  Scientific American Brasil


C ONTATOS IMEDIATOS contemporâneas africanas herdaram de um ancestral
Centenas de milhares d e anos de separação e arcaico desconhecido uma variante de um gene que
reunificação com membros de nossa própria espécie pode ajudar a combater uma bactéria ruim da boca.
podem ter dado ao Homo sapiens uma vantagem O acasalamento com humanos arcaicos que tiveram
sobre outros membros da família humana. Mas esse milênios para desenvolver adaptações às condições
não foi o único fator para dominarmos o mundo. Nós locais podem bem ter permitido que o Homo sapiens
talvez tenhamos de fato uma substancial dívida de invasor se ajustasse a novos ambientes mais
gratidão com nossos parentes extintos por sua rapidamente do que se tivesse esperado que mutações
contribuição para nosso sucesso. As espécies humanas favoráveis fossem cultivadas em seu próprio
arcaicas que o Homo sapiens encontrou enquanto patrimônio genético. Mas nem tudo foi positivo.
migrava pela África e além de suas fronteiras não Alguns dos genes que obtivemos dos neandertais
eram meros concorrentes — eram também estão associados com depressão e outras doenças.
companheiros. A prova está no DNA das pessoas de Talvez esses genes representassem vantagens no
hoje: o DNA neandertal perfaz 2% dos genomas de passado e só começaram a causar problema no
eurasianos; o DNA denisovano compõe até 5% do contexto do modo da vida moderna. Ou, talvez, sugere
DNA dos melanésios. E um recente estudo de Arun Akey, o risco de desenvolver essas doenças era um
Durvasula e Sriram Sankararaman, da Universidade preço tolerável a pagar pelos benefícios que esses
da Califórnia, Los Angeles, publicado no arquivo on­ genes conferiam.
‑line de pré-impressão bioRxiv em março, descobriu Humanos arcaicos podem ter contribuído com
que quase 8% do ancestral genético da população outras coisas para nossa espécie, além do DNA.
iorubá, do Oeste da África, remonta a uma espécie Pesquisadores têm afirmado que o contato entre
arcaica desconhecida (pesquisadores ainda precisam grupos humanos divergentes provavelmente levou
recuperar DNA de fósseis africanos arcaicos para a intercâmbios culturais e podem até ter impulsionado
comparação). a inovação. Por exemplo, a chegada do Homo sapiens
Parte do DNA que o Homo sapiens pegou de à Europa Ocidental, onde os neandertais residiram
hominíneos arcaicos pode ter ajudado nossa espécie por longo tempo, coincidiu com uma explosão pouco
a se adaptar a novos habitats pelos quais passou em característica de criatividade tecnológica e artística
sua marcha pelo globo. Quando o geneticista Joshua nos dois grupos. Anteriormente, alguns especialistas
Akey, da Universidade de Princeton, e seus colegas sugeriam que os neandertais simplesmente imitaram
estudaram sequências neandertais em populações os criativos recém-chegados. Mas talvez tenha sido
humanas modernas, descobriram 15 que ocorrem com a interação dos dois grupos que provocou o avanço
alta frequência, um sinal de que elas tiveram efeitos cultural dos dois lados.
benéficos. Essas sequências de alta frequência se De certo modo, o fato de o Homo sapiens ter se
reúnem em dois grupos. Cerca da metade delas misturado com outras linhagens humanas não deve
influencia a imunidade. “Quando os humanos surpreender. “Sabemos a partir de muitos animais
modernos se dispersaram em novos ambientes, eles que a hibridação teve papel importante na evolução”,
foram expostos a novos patógenos e vírus”, explica observa a antropóloga biológica Rebecca Rogers, da
Akey. Por meio da reprodução cruzada “eles podem Universidade da Cidade do Cabo, na África do Sul.
ter pegado adaptações dos neandertais que eram mais “Em alguns casos, pode criar populações, e mesmo
capazes de combater esses novos patógenos”, acrescenta. novas espécies, que se adaptam melhor a ambientes
A outra metade das sequências de neandertais novos ou em transformação do que seus progenitores
que a equipe de Akey encontrou com alta frequência por causa de traços novos ou novas combinações de
nas populações humanas modernas está relacionada traços.” Os ancestrais humanos exibem um padrão
com a pele, incluindo genes que influenciam os níveis semelhante: a combinação de diferentes linhagens
de pigmentação. Pesquisadores anteriormente resultou na espécie adaptável, variável que somos
teorizavam que indivíduos Homo sapiens da África, hoje. “O Homo sapiens é o produto de uma complexa
que presumivelmente tinham pele mais escura para interação entre linhagens”, afirma Ackermann, e
se proteger da radiação ultravioleta prejudicial do floresceu precisamente por causa da variedade surgida
Sol, tiveram de desenvolver pele mais clara ao dessa interligação. “Sem isso, nós simplesmente não
entrarem em latitudes ao Norte para receber vitamina teríamos sido tão bem-sucedidos”, opina.
D suficiente, que o corpo adquire sobretudo pela Resta saber qual a frequência dessa mistura e
exposição ao Sol. Genes da pele de neandertais podem em que medida ela pode ter ajudado a acelerar a
ter ajudado nossos predecessores a fazerem evolução do Homo sapiens e de outros hominíneos.
exatamente isso. Mas pode ser que as circunstâncias demográficas e
Os neandertais não são os únicos humanos o ambiente em particular no qual nossa espécie se
arcaicos que nos forneceram genes úteis. Os modernos encontrou na África e fora dela levaram a mais
tibetanos, por exemplo, têm de agradecer ao oportunidades de intercâmbio genético e cultural
denisovanos por uma variante genética que ajuda a com outros grupos do que nossos colegas hominíneos
lidar com o ambiente de pouco oxigênio na elevada experimentaram. Nós tivemos sorte — e não somos
altitude do planalto tibetano. E populações menos maravilhosos por isso. 

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COMO
APRENDEMOS
A COLOCAR
NOSSO
DESTINO parte 2

NAS MÃOS
ALHEIAS
AS ORIGENS DA
MORALIDADE

M I C H A E L TO M A S E L L O   : :  
I LU S T R AÇ ÃO D E Y U KO S H IMIZ U

30  Scientific American Brasil


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S
Michael Tomasello é professor de psicologia e
neurociência na Universidade Duke e diretor emérito
do Instituto Max Planck para a Antropologia
Evolucionária em Leipzig, na Alemanha.

e a evolução está ligada à sobrevivência do mais apto, como foi


que os seres humanos se tornaram criaturas morais? Se a
evolução é a maximização da força de cada indivíduo, como os
humanos perceberam que precisavam realmente ajudar aos
outros e agirem de forma justa com eles?
Duas respostas têm sido tradicionalmente dadas dominação: o melhor lutador ganhava. No evento mais
a essas questões. A primeira: faz sentido que próximo a uma busca de alimentos colaborativa entre
indivíduos ajudem a própria espécie, com a qual eles os primatas, uns poucos chimpanzés machos podiam
compartilham genes, em um processo conhecido cercar um macaco e capturá-lo. Mas esse método de
como aptidão inclusiva. A segunda: podem surgir caça parece mais o de leões e lobos do que a forma de
situações de reciprocidade, em que eu te ajudo, você forrageio colaborativo adotada pelos humanos. Cada
me ajuda e nós dois nos beneficiamos no longo prazo. chimpanzé maximiza suas próprias chances na situação
Mas a moralidade não está apenas relacionada ao tentar bloquear uma via de fuga do macaco. O
com ser gentil com seus parentes, tal como as abelhas chimpanzé captor tentará consumir toda a presa sozinho,
e formigas que cooperam em atos de aptidão inclusiva. mas em geral não conseguirá. Então todos os indivíduos
E reciprocidade é uma proposta arriscada, porque, na área convergem para o animal capturado e começam
em algum ponto, um indivíduo pode se beneficiar e a agarrá-lo. O captor deve permitir isso ou terá de lutar
partir, deixando o outro no abandono. Além disso, contra os outros, o que provavelmente significará perder
nenhuma dessas explicações tradicionais toca no o alimento no tumulto; assim, ocorre a partilha de
que supostamente seja a essência da moralidade uma pequena quantidade de comida.
humana — o senso de obrigação que os seres humanos Há muito tempo nós, humanos, agimos de modo
sentem uns em relação aos outros. diferente. Por volta de 2 milhões de anos atrás, o
Recentemente uma nova abordagem para estudar gênero Homo surgiu, com cérebros maiores e novas
o problema da moralidade ganhou destaque. O habilidades para fazer ferramentas de pedra. Logo
insight-chave é o reconhecimento de que indivíduos depois, um período de esfriamento e seca global
que vivem em um grupo social no qual todos levou à proliferação de macacos terrestres, que
dependem dos demais para sua sobrevivência e bem­ competiam com o Homo por muitos recursos.
‑estar operam com um tipo específico de lógica. Nessa Os primeiros humanos precisavam de novas opções.
lógica da interdependência, como podemos chamá­ Uma alternativa era aproveitar as presas mortas por
EM SÍNTESE
‑la, se eu dependo de você, então é de meu interesse outros animais. Mas então, diz a antropóloga Mary
Sementes da moralidade ajudar a garantir seu bem-estar. De forma mais geral, C. Stiner, da Universidade do Arizona, alguns humanos
humana foram plantadas se todos nós dependemos uns dos outros, então todos primitivos — o melhor palpite é o Homo heidelbergensis
há cerca de 400 mil anos,
nós precisamos cuidar uns dos outros. há cerca de 400 mil anos — começaram a obter a
quando indivíduos
começaram a colaborar nas Como se chegou a essa situação? A resposta tem maior parte do alimento via colaboração ativa na qual
iniciativas da caça e coleta. a ver com circunstâncias em particular que forçaram indivíduos adotavam objetivos comuns para trabalhar
A interação cooperativa os humanos a adotarem meios de vida ainda mais juntos na caça e coleta. De fato, a colaboração se
cultivava o respeito e a cooperativos, especialmente quando eles estão tornou compulsória no que fosse essencial para a
equidade com outros buscando alimentos e outros recursos básicos. sobrevivência. Indivíduos se tornaram interdependentes
membros do grupo. uns dos outros nos aspectos imediatos e urgentes
Mais tarde, o crescimento O PAPEL DA COLABORAÇÃO para obter seu sustento diário.
das populações cimentou
Nossos parentes vivos m ais próximos, os chimpanzés Uma parte essencial do processo de busca de
um senso coletivo de
identidade de grupo e bonobos, procuravam frutos e vegetação em pequenos alimentos colaborativa obrigatória envolvia a escolha
que promoveu uma série grupos, mas quando os recursos eram encontrados de parceiro. Indivíduos que eram cognitivamente
de práticas culturais e cada indivíduo lutava para pegar seu próprio alimento. ou de alguma outra maneira incompetentes para a
normas sociais. Se surgisse qualquer conflito, era resolvido pela colaboração — aqueles incapazes de criar objetivos

32  Scientific American Brasil


comuns ou se comunicar efetivamente com outros sucesso comum. Os papéis eram, de fato,
— não eram escolhidos como parceiros, e assim intercambiáveis. Dessa forma, cada parceiro na caçada
ficavam sem alimento. Da mesma maneira, indivíduos tinha direitos iguais sobre a presa, em contraste com
que não cooperavam socialmente ou moralmente trapaceiros e oportunistas que não davam uma mão.
em suas interações com os outros — por exemplo, Ao escolherem um parceiro para um esforço
aqueles que tentavam monopolizar todo o espólio colaborativo, os humanos primitivos queriam
— também eram evitados como parceiros e assim selecionar um indivíduo capaz de executar um papel
eram condenados. O resultado: uma forte e ativa esperado e dividir lealmente o espólio. Para reduzir
seleção social surgia para os indivíduos competentes o risco inerente à escolha do parceiro, indivíduos
e motivados que cooperassem com os demais. que estavam para se tornar parceiros podiam usar
O ponto-chave para a evolução da moralidade é suas recém-descobertas habilidades de cooperação
que indivíduos humanos primitivos que eram para assumir um compromisso conjunto, prometendo
socialmente selecionados para busca colaborativa cumprir seus papéis, o que exigia uma divisão justa
de alimento pela sua escolha de parceiros da presa. Como parte desse compromisso, o potencial
desenvolveram novas formas de se relacionar com parceiro também poderia prometer implicitamente
os outros. Mais importante ainda, eles tinham fortes que aquele que desrespeitasse o compromisso seria
motivos para cooperar, tanto para trabalhar juntos merecedor de censura. (O quadro na próxima pág.
para atingir objetivos comuns como para sentir explica a evolução da moralidade no contexto do
solidariedade e ajudar parceiros existentes ou conceito filosófico de intencionalidade.)
potenciais. Se um indivíduo dependia de parceiros Aquele que se desviasse do que era esperado e
para o sucesso da busca por alimentos, então fazia quisesse permanecer em situação regular de
sentido em termos evolucionários ajudá-los sempre cooperação teria de voluntariamente se empenhar
que necessário para assegurar que estivessem em em um ato de autocondenação, psicologicamente
boa forma para futuras excursões. Assim, os indivíduos internalizado como um senso de culpa. Surgia a
passaram a se preocupar com como os outros os moralidade do “nós é maior do que eu”. Durante
avaliavam. Em experimentos em nosso laboratório, uma colaboração, o “nós” coletivo operava além do
mesmo crianças pequenas se preocupam a respeito nível individual egoísta para regular as ações dos
de como estão sendo avaliadas pelos outros, enquanto parceiros colaborativos “eu” e “você”.
chimpanzés aparentemente não se preocupam. O efeito das adaptações dos humanos primitivos
Na falta de registros históricos e, em muitos casos, para obrigar a busca colaborativa por alimento, então,
mesmo de evidências de artefatos arqueológicos e tornou-se o que é conhecido como moralidade de
restos fósseis, nosso laboratório em Leipzig, na segunda pessoa — definida como a tendência a se
Alemanha, e outros vêm investigando as origens do relacionar com outros com um senso de respeito e
pensamento e da moralidade humanos ao comparar equidade baseados em uma avaliação genuína ao
o comportamento de nossos parentes primatas mais mesmo tempo de si e dos outros como parceiros
próximos com os de crianças pequenas que ainda igualmente merecedores em uma iniciativa colaborativa.
precisam incorporar as regras de suas culturas. O senso de equidade foi realçado pelo sentimento de
A partir desses estudos podemos depreender que dever, a pressão social para cooperar e respeitar o seu
os humanos primitivos que se engajaram na busca parceiro. Isto é, enquanto todos os primatas sentiam
colaborativa de alimentos desenvolveram um novo a pressão de perseguir seus objetivos individuais da
tipo de raciocínio cooperativo que os levou a tratar forma que acreditavam que seria exitosa, a
os demais como parceiros igualmente dignos — ou interdependência que regia a vida social dos primeiros
seja, não apenas com solidariedade, mas também com humanos significou que os indivíduos sentiam pressões
um senso de equidade (com base em uma compreensão para tratar os outros como eles mereciam ser tratados
da equivalência entre si e os outros). Parceiros e esperar que os outros os tratassem igual. Essa
entendiam que eles podiam, em princípio, assumir moralidade da segunda pessoa não tinha todos os
qualquer papel em uma colaboração e que ambos atributos que definem a moderna moralidade, mas
precisavam trabalhar juntos para o sucesso conjunto. já continha seus traços mais importantes — respeito
Além disso, como dois indivíduos colaboravam e lealdade mútuos — na forma nascente.
reiteradamente um com outro na busca por alimento,
eles desenvolviam um entendimento — um “campo O NASCIMENTO DAS NORMAS
comum” mental — que definia a forma ideal necessária CULTURAIS
a cada parceiro para cumprir um papel para o êxito O segundo passo c rítico na evolução da moralidade
mútuo. Os padrões desse papel específico moldavam veio quando a busca colaborativa por alimento em
as expectativas do que cada um deveria fazer: por pequena escala dos primitivos humanos foi por fim
exemplo, ao caçar antílopes, o perseguidor deveria desestabilizada por dois fatores demográficos que
fazer X e o lanceiro deveria fazer Y. Esses padrões abriram caminho para os humanos modernos há mais
idealizados eram imparciais uma vez que especificavam de 200 mil anos. Essa nova era surgiu por causa da
o que cada parceiro tinha de fazer para desempenhar competição entre grupos humanos. A luta significou
o papel “adequadamente” de maneira a garantir o que populações vagamente estruturadas de

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Evolução da moralidade humana moderna
Animais com frequência cooperam com outros de sua própria espécie. Mas o jeito como
humanos o fazem é diferente. A forma humana de cooperação — conhecida
simplesmente como moralidade — se distingue por duas maneiras Interesse
próprio
relacionadas. Uma pessoa pode ajudar a outra com base em motivos
desinteressados movida por compaixão, preocupação e
benevolência. Membros de um grupo também podem buscar
meios para que todos se beneficiem com a adoção de regras
para promover a lealdade, a equidade e a justiça. Essas 6 milhões
capacidades evoluíram por centenas de milhares de anos à de anos
atrás
medida que humanos começaram a trabalhar juntos por conta
da necessidade básica de sobrevivência. Os aspectos
cognitivos e sociais desse processo podem ser entendidos por
meio do conceito filosófico da intencionalidade: as formas como
indivíduos interpretam o mundo e perseguem seus objetivos.

Intencionalidade individual
Uma capacidade de mudar de comportamento com flexibilidade
para atingir um objetivo em particular — geralmente para efeitos
de competição com outros — caracteriza a intencionalidade
individual. O comportamento do chimpanzé é em grande medida Busca
impulsionado pela perspectiva do interesse próprio, como era o colaborativa
do ancestral comum de humanos e chimpanzés — e talvez isso de alimento
tenha motivado também os primeiros membros da linhagem de “Nós”
hominins. Um exemplo desse comportamento ocorre quando antes
chimpanzés buscam plantas para se alimentar. Um pequeno de “eu”
grupo de animais procura junto, mas quando eles encontram
frutas, cada um pega seu quinhão e come separadamente sem
interagir com outros membros do grupo. Uma série semelhante
de comportamentos relativamente autocentrados são exibidos
quando eles caçam presas.
400 mil
anos atrás
Intencionalidade conjunta
Há cerca de 400 mil anos, um ancestral direto dos humanos — o
Homo heidelbergensis — começou a buscar fontes de alimentos
melhores. Caçar auroques e outros animais maiores, em vez de
lebres, exigiu cooperação intensificada e intencionalmente
conjunta, com foco nos objetivos comuns. Esse tipo de trabalho
de equipe contrastava com a luta de cada animal por si dos
chimpanzés durante a caçada de um macaco. Para sobreviver, os
caçadores-coletores paleolíticos tiveram de tornar suas práticas
de busca de alimentos “obrigatórias” e não apenas uma questão
de opção. Indivíduos escolhidos para a caça eram selecionados
porque entendiam implicitamente a necessidade de cooperar e Pressão
não monopolizar o resultado da iniciativa. para organização
Uma “moralidade da segunda pessoa” surgiu, pela qual ficava cultural
entendido que o “eu” tinha de ser subordinado ao “nós”. Moralidade
do certo
e errado
Intencionalidade coletiva
Quando os grupos começaram a crescer de tamanho 150 mil anos
atrás, os bandos menores que formavam uma tribo desenvolveram
uma série de práticas comuns que representavam o início formal
das culturas humanas. Um conjunto de normas, convenções e
instituições surgiu para definir os objetivos do grupo e estabelecer 100 mil
divisões do trabalho que determinava papéis para cada um de seus anos atrás
membros — uma intencionalidade coletiva que distinguia uma
tribo. Esses objetivos eram internalizados por cada membro da
tribo como uma “moralidade objetiva” pela qual todos sabiam
imediatamente a diferença entre certo e errado conforme o
determinado pelo conjunto de práticas culturais do grupo.

34  Scientific American Brasil Ilustração de Portia Sloan Rollings


colaboradores tiveram que se voltar para grupos sociais comum dos grupos humanos criaram uma perspectiva
mais integrados para se proteger de invasores externos. “objetiva” — não “eu”, mas “nós” como pessoa — ­­ a
Cada grupo desenvolveu divisões internas de trabalho, moralidade humana moderna veio a ser caracterizada
as quais levaram a uma identidade coletiva grupal. como uma forma objetiva de certo e errado.
Ao mesmo tempo, as populações cresciam. À medida Evidentemente, qualquer indivíduo poderia escolher
que os números subiam, as entidades tribais maiores agir contra a norma moral. Mas quando chamado
se dividiam em subunidades menores que ainda se para tarefas por outros membros do grupo, as opções
sentiam ligadas ao supergrupo — ou ao que poderia eram limitadas: poderia ignorar as críticas e censuras
ser caracterizado como uma “cultura” distinta. e ficar de fora das práticas e valores partilhados pela
Encontrar formas de reconhecer membros de seu cultura, o que talvez levasse à exclusão pelo grupo.
próprio grupo cultural que não eram necessariamente Humanos modernos veem as normas culturais como
familiares mais próximos — e então separá-los de meios legítimos pelos quais eles podem regular a si
membros de outros grupos tribais — se tornou essencial. e seus impulsos e sinalizar um senso de identidade
Esse tipo de reconhecimento era importante porque do grupo. Se uma pessoa se desviasse das normas, era
poderiam contar apenas com membros do próprio importante justificar a falta de cooperação aos outros
grupo cultural para compartilhar as próprias habilidades em termos de valores compartilhados pelo grupo (“Eu
e valores e serem parceiros confiáveis, particularmente negligenciei meus deveres porque precisei salvar uma
para a defesa do grupo. A dependência dos indivíduos criança em risco”). Assim, humanos modernos
no grupo levou assim a um senso de identidade e internalizaram não apenas ações morais, mas também
lealdade coletiva. Enquanto isso, uma falha em exibir justificavas morais e criaram uma identidade moral
a identidade e lealdade desse grupo poderia resultar com base na razão dentro da comunidade.
em ser rejeitado ou morrer em choques com rivais.
As pessoas hoje têm muitos modos diferentes de O POVO DE “NÓS”
marcar a identidade grupal, mas as formas originais Em meu livro A Natural History of Human Morality,
eram sobretudo comportamentais e baseadas em de 2016, parti do pressuposto de que uma grande
alguns pressupostos: pessoas que falam como eu, parte da explicação para a psicologia moral humana
preparam comida como eu e partilham minhas práticas vem de processos de evolução por meio da seleção
culturais são muito provavelmente membros do meu natural. Mais importante, no entanto, a seleção é
grupo cultural. Dessas suposições veio a tendência feita não pelo ambiente físico, mas pelo ambiente
dos humanos modernos à conformidade com as social. Em contraste com as abordagens evolucionárias
práticas culturais do grupo. Ensinar a sua criança a que baseiam seus argumentos na reciprocidade e
fazer as coisas da forma convencional definida pelo na administração da reputação de alguém na
grupo se tornou obrigatório para a sobrevivência. comunidade, eu enfatizo que os indivíduos humanos
Ensino e conformidade também assentaram as primitivos entendiam que normas morais faziam
bases para a evolução cultural cumulativa, na qual deles juízes e julgados ao mesmo tempo. A
uma prática ou um artefato usados por longo tempo preocupação imediata de qualquer indivíduo não
podem ser aprimorados e essa inovação pode então era apenas o que “eles” pensam de mim, mas o que
ser repassada às gerações seguintes como parte das “nós”, incluindo “eu”, pensamos de mim. A essência
convenções, normas e instituições de um grupo. desse relato é, assim, um tipo de orientação psicológica
Indivíduos nasciam nessas estruturas sociais em que “nós” é maior do que “eu”, o que confere às
colaborativas e não tinham escolha senão adaptar­ noções morais seus poderes especiais de legitimidade
‑se a elas. A característica psicológica-chave dos no processo de tomada de decisão pessoal.
indivíduos adaptados para a vida cultural era uma O desafio no mundo atual deriva de um
mentalidade grupal, pela qual as pessoas adotavam entendimento de que as adaptações biológicas dos
a perspectiva cognitiva do grupo como um todo para humanos para cooperação e moralidade são destinadas
cuidar de seu bem-estar e moldar-se ao seu jeito, sobretudo à vida em grupos menores ou grupos
uma inferência derivada de estudos do comportamento culturais que são internamente homogêneos, com
de crianças de três anos publicados nos anos 2000. grupos externos não sendo parte da comunidade
Pessoas de um grupo cultural tinham de se adaptar moral. Desde a ascensão da agricultura há cerca de
às práticas culturais e normas sociais dominantes 10 mil anos, nossas sociedades consistem em
para demonstrar que se identificavam com o grupo indivíduos de diversas linhas políticas, étnicas e
e sua forma de agir. Certas regras expressavam mais religiosas. Como consequência, ficou menos claro
que conformidade e identidade grupal. Elas tocavam quem constitui o “nós” e quem é do grupo de fora.
no senso de solidariedade e equidade (herdadas dos O resultante potencial para a desagregação leva a
humanos primitivos), que se tornaram normas morais. tensões internas e sociais dentro da sociedade e, no
Assim como algumas regras codificavam o jeito certo nível das nações, a guerras abertas, exemplo máximo
e o errado de fazer as coisas ao caçar ou fabricar de conflitos grupais internos e externos. Mas se
ferramentas, as normas morais categorizaram a quisermos resolver nossos maiores desafios como
maneira adequada de tratar outras pessoas. Como espécie é melhor estarmos preparados para pensar
os objetos coletivos do grupo e o campo cultural toda a humanidade como “nós”. 

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36  Scientific American Brasil
E VOLUÇ ÃO

A
VERDADEIRA
PALEODIETA
Sinais microscópicos de desgaste em fósseis de dentes revelam
o que nossos ancestrais comiam — e oferecem insights
sobre como a mudança climática moldou a evolução humana
Peter S. Ungar
Ilustração de Jon Foster

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E
Peter S. Ungar é paleontólogo da Universidade do
Arkansas. Sua pesquisa foca a dieta e adaptações
alimentares em primatas vivos e fósseis, incluindo
ancestrais humanos. Seu mais recente livro é
Evolution’s Bite ( Princeton University Press, 2017).

m um fim de noite de 1990 na estação de pesquisa Ketambe, no Parque Nacional


Gunung Leuser, na Indonésia, eu transcrevia anotações à luz de um lampião de
querosene sentado em minha barraca às margens do Rio Alas. Algo me incomodava.
Eu tinha ido reunir dados para minha dissertação, documentando o que e como
os macacos e grandes primatas de lá comiam. A ideia era relacionar essas observações aos
tamanhos, formas e padrões de desgaste de seus dentes. Macacos de cauda longa têm grandes
incisivos e molares sem corte — dentes construídos para comer fruta, de acordo com a sabedoria
convencional. Mas os que eu vinha monitorando nos quatro dias anteriores pareciam comer
apenas folhas tenras. Eu percebi então que as relações entre o formato dos dentes e suas funções
são mais complexas do que sugerem os livros-texto, e que o tamanho e a forma dos dentes de
um animal não determinam o que ele come. Isso pode soar como uma revelação esotérica, mas
tem implicações-chave para entender como animais — incluindo humanos — evoluíram.
Sou paleontólogo e ganho a vida reconstruindo Se a forma sempre seguiu a função, no entanto,
o comportamento de espécies extintas a partir de macacos não comeriam folhas. Mas como podemos
seus restos fossilizados. Especificamente, trabalho detectar escolhas de alimentos em registros fósseis?
para entender como animais no passado obtinham Eu passei décadas fazendo exatamente isso ao
alimentos de seu entorno e, assim, como mudanças estudar padrões de desgaste microscópicos em fósseis
EM SÍNTESE ambientais desencadearam a evolução. Aquele ano de dentes, incluindo os de alguns ancestrais humanos.
Paleontólogos em Ketambe moldou minha forma de pensar sobre Outros pesquisadores têm analisado as assinaturas
tradicionalmente primatas, e a comunidade viva mais ampla que os químicas de alimentos em dentes fósseis em busca
supunham q ue tamanhos e cerca. Comecei por ver a biosfera, a parte de nosso de pistas das dietas. Essas “pegadas alimentares”,
formatos dos dentes de um planeta que abriga a vida, como um tipo de bufê como as chamo, revelam os tipos de alimentos que
animal ditavam sua dieta.
gigante. Os animais se enfileiram ao lado do vidro os indivíduos de fato comiam, e seus dados oferecem
Mas a disponibilidade de
alimentos — que muda de proteção com pratos na mão para pegar os itens um quadro muito mais rico do passado do que
sazonalmente e em disponíveis em um dado lugar, em um certo momento. simplesmente o formato dentário. Em conjunto com
períodos de tempo mais O lugar de cada espécie na floresta, e na Natureza, insights de registros paleoambientais, essas
longos — é um fator ainda é definido pelas escolhas que ela faz. descobertas permitiram que testássemos algumas
mais importante na escolha Os dentes têm um papel na escolha do alimento. hipóteses importantes a respeito do impacto da
da comida pelo animal. Mas descobri em Ketambe que disponibilidade é ainda mudança climática na evolução humana. Os resultados
Análises de desgastes mais importante. Os macacos comiam folhas porque refinam a explicação clássica sobre como o ramo de
microscópicos e de traços
é isso que a Natureza oferecia no bufê biosférico nossa árvore genealógica humana teve êxito enquanto
químicos de alimentos em
dentes fósseis estão indo naquele tempo e lugar. A dieta deles mudou durante outros falharam.
além dos estudos o ano, quando as folhas caíram, as flores desabrocharam
convencionais do formato e as frutas amadureceram com a passagem das estações. O PARADOXO DE LIEM
dos dentes e revelam o que Comecei a imaginar como as mudanças na oferta de Observações de animais vivos r evelaram numerosas
ancestrais humanos alimentos ao longo de séculos, milênios ou mais criaturas que consomem alimentos além daqueles a
realmente ingeriam. podem afetar o que as espécies comem. que estão adaptados. Enquanto eu estava em Ketambe,
As descobertas sobre A maior parte dos paleontólogos não está Melissa Remis reunia dados de dietas de gorilas em
dietas, juntamente com
acostumada a pensar a respeito da vida no passado Bai Hokou, floresta tropical de planície na República
dados paleoambientais,
fornecem novos insights dessa forma. Nosso campo tem uma longa tradição Centro-Africana. Naquela época, a maior parte dos
sobre como a mudança de inferir a função a partir da forma ao supor que a pesquisadores achava que os gorilas eram especialistas
climática moldou a Natureza seleciona as melhores ferramentas para seja em dietas contendo talos, folhas e medulas de plantas
evolução humana. qual for o trabalho que um organismo tenha de fazer. não lenhosas como salsão silvestre. Dian Fossey,

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pesquisadora pioneira de gorilas, e outros mostraram
isso nas florestas nubladas em altitude elevada nas
montanhas Virunga, em Uganda e Ruanda. Fazia sentido.
Gorilas têm dentes e aparelho digestivo muito
especializados — molares afiados bem adequados para
cortar partes duras de plantas e um massivo intestino
grosso que abriga microrganismos que ajudam a digerir
celulose em alimentos fibrosos. Além disso, há pouca
coisa a mais para se comer naquelas altitudes.
Os gorilas da montanha Virunga eram, no entanto,
uma pequena população marginal de umas poucas
centenas de indivíduos vivendo em um hábitat extremo.
E quanto aos 200 mil gorilas a 1,6 mil km a Oeste nas
planícies das florestas tropicais da Bacia do Congo? Os
gorilas em Bai Hokou contavam uma história diferente.
Eles pareciam preferir frutas macias e adocicadas. De
fato, Remis viu gorilas andando 800 m ou mais, passando
direto por folhas e caules comestíveis, para chegar a
uma árvore frutífera. Alimentos fibrosos não estavam
à disposição. Mas os gorilas das planícies ocidentais
eram inconstantes na comparação com seus primos
das montanhas Virunga, limitando o volume de dados
que Remis pôde coletar. Alguns pesquisadores
questionaram se os gorilas poderiam na verdade preferir
frutas, considerando-se seus dentes e aparelho digestivo.
Como podemos saber o que um gorila quer comer?
Depois que Remis retornou de Bai Hokou, ela foi ao
zoológico de São Francisco para perguntar diretamente
aos gorilas. Ela ofereceu aos animais cativos vários
alimentos, desde mangas doces até tamarindos amargos,
limões azedos e, evidentemente, salsões duros. Os gorilas
do zoológico claramente preferiram as frutas carnosas
e adocicadas aos alimentos fibrosos e duros, opções quando necessário. O paradoxo, então, não é MANGABEIS DE
independentemente do que seus dentes e intestinos tanto que indivíduos evitam os alimentos aos quais CARA CINZA
sugeriam que eles devessem comer. Essa descoberta estão adaptados, mas que a anatomia especializada têm molares
confirmou que, embora os gorilas estejam adaptados pode levar a uma dieta mais generalizada. achatados, com
para os alimentos mais desafiadores em termos Outros primatas exemplificam o paradoxo de Liem, esmalte espesso,
mecânicos e químicos que tiverem para comer, esses incluindo um macaco mangabei de cara cinza do Parque que parecem
não são seus alimentos prediletos. Talvez, então, os Nacional Kibale, em Uganda. Mangabeis têm molares especializados
gorilas das montanhas Virunga ingiram alimentos duros achatados e muito esmaltados que parecem ser para triturar
e fibrosos o ano todo não porque os prefiram, mas especializados na trituração de alimentos duros e alimentos duros.
porque podem — e devem, dadas as limitadas opções quebradiços. Mas, ano após ano, Joanna Lambert os Mas eles apenas
do bufê biosférico naquela altitude. De fato, gorilas de observou comendo frutas frescas e macias e folhas tenras, recorriam a
montanhas próximas que vivem em menores altitudes exatamente como os macacos guenon de rabo vermelho esses alimentos
preferem comer frutas quando as têm disponíveis. que têm dentes mais finos e viviam próximos a eles. quando as frutas
No reino animal, a preferência por alimentos Então, no verão de 1997, tudo mudou. A floresta sofria macias e folhas
diferentes daqueles aos quais se está adaptado é comum com uma seca especialmente severa, causada pelo El que preferiam
o bastante para merecer um termo próprio: paradoxo Niño. As frutas tornaram-se escassas, as folhas murcharam não estavam
disponíveis.
de Liem. Karel Liem, da Universidade Harvard, observou e os macacos passavam fome. Os mangabeis comeram
esse paradoxo em 1980 em um ciclídeo de Minckley, mais cascas e sementes duras, mas o guenons não. Os
um peixe de água doce endêmico no Norte do México. dentes e mandíbulas especializados dos mangabeis
Esse peixe tem dentes achatados, semelhantes a pedras, permitiram que eles se voltassem para alimentos mais
na garganta, que parecem ser adequados para quebrar mecanicamente desafiadores. Mesmo se essas adaptações
caramujos de concha dura. Mas membros desse grupo são necessárias apenas uma ou duas vezes em uma
passam direto por esses caramujos quando dispõem geração, isso pode ser justamente o que os animais
de alimentos mais macios. Por que um animal precisam para superar tempos de escassez.
desenvolveria dentes especializados para itens menos A anatomia especializada também pode estar
apreciados e raramente comidos? Desde que a relacionada aos alimentos prediletos, no entanto. O
ALAIN HOULE

especialização em objetivos duros não exclua o consumo mangabei fuliginoso da Costa do Marfim, por exemplo,
de alimentos mais moles, ela pode dar ao animal mais tem dentes com esmalte espesso e fortes mandíbulas

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e, de fato, preferem alimentos duros. Boa parte de seu tempo A árvore da família humana tem muitos ramos.
de coleta de alimentos é dedicada a esquadrinhar o solo da Atualmente, o Homo sapiens é a única espécie humana
floresta em busca de sementes da árvore Sacoglottis, que têm viva, mas, no passado, muitas espécies humanas, ou
invólucros que parecem caroços de pêssego. Scott McGraw hominíneos, partilhavam o planeta. Por que nossa
argumenta que essa prática permite que eles evitem competir linhagem sobreviveu quando outras se extinguiram é
por alimento com as dez outras espécies de primatas que vivem uma questão que perdura. Minha incursão nesse mistério
na região. Assim como os gorilas diferem na frequência com que começou quando decidi estudar a dieta de membros
ingerem alimentos desafiadores em termos mecânicos, alguns de um desses extintos ramos, um grupo de espécies
mangabeis os comem o tempo todo e outros só o fazem em raras pertencente ao gênero Paranthropus. Os Paranthropus
ocasiões. viveram no Leste e Sul da África entre 2,7 milhões e 1,2
Exemplos como esses mostram que a escolha alimentar dos milhão de anos atrás, durante a época do Pleistoceno.
primatas é complexa e depende não apenas dos dentes, mas Nenhuma dessas espécies deu origem a nós; eles eram
também da disponibilidade, mais experiências evolucionistas
concorrência e preferência pessoal. O que caminhavam ao lado de
formato dos dentes pode nos dizer algo
sobre o que um animal no passado era O formato dos dentes pode nossos antigos ancestrais. Os
Paranthropus tinham pré-molares

dizer algo sobre o que um


capaz de comer e os alimentos mais e molares grandes, achatados e
desafiadores que seus ancestrais tinham espessamente esmaltados,
de enfrentar. Mas, para insights a mandíbulas pesadas, e as
respeito das escolhas de alimentos entre
opções disponíveis no bufê biosférico,
animal era capaz de comer. indicativas cristas sagitais e
cicatrizes oriundas de músculos
nós precisamos das “pegadas
alimentares”. Mas, para novas de mastigação poderosos e
massivos.

descobertas sobre o que


O microdesgaste dentário — os Esses eram traços claros de
riscos e cavidades que se formam na especializações dietéticas para
superfície do dente como resultado de mastigação extrema, assim essas
seu uso — é um tipo comumente
estudado de pegada alimentar. Espécies
ele efetivamente comia, espécies pareciam ser candidatas
ideais para análise de
que tendem a cortar ou rasgar
alimentos, como antílopes comedores é preciso analisar as microdesgastes. Se eu e meus
colaboradores não conseguíssemos

pegadas alimentares.
de gramíneas ou guepardos carnívoros, descobrir o que elas comiam,
ficam com arranhões longos e paralelos teríamos poucas esperanças de
de quando os dentes opostos deslizam reconstruir dietas de outros fósseis
uns pelos outros, arrastando abrasivos de hominíneos com mandíbulas
entre eles. Espécies que esmagam alimentos duros, como e dentes menos característicos.
mangabeis que comem nozes e hienas que trituram ossos, tendem O paleoantropólogo John Robinson tentou reconstruir
a ter superfícies com microcrateras, cobertas de covas de diversos a dieta do Paranthropus, em 1954. Robinson acreditava
tamanhos e formatos. que os molares e pré-molares grandes, achatados e
Como essas marcas costumam se desgastar e sobrepor em densamente esmaltados do Paranthropus robustus da
questão de dias, podemos aprender algo sobre a variedade, e África do Sul evoluíram para triturar partes de plantas,
talvez até a proporção dos alimentos ingeridos, se considerarmos como brotos e folhas, bagas e frutas silvestres resistentes.
dentes de indivíduos coletados em diferentes momentos e lugares. Partes lascadas nesses dentes sugeriram a ele que o P.
Os padrões de microdesgastes dos mangabeis de Kibale costumam robustus comia raízes e bulbos granulosos. O falecido
se parecer com os de comedores de frutas macias, com riscos Phillip Tobias viu as coisas de forma diferente,
fracos e finas covas, embora uns poucos espécimes tenham covas argumentando nos anos 1960 que as lascas ocorriam
mais acentuadas. Os dentes dos mangabeis de Taï, em durante o consumo de alimentos duros, e não ásperos.
contrapartida, têm superfícies muito mais cheias de crateras, Ao mesmo tempo, Tobias estava descrevendo uma nova
na média. Apesar do formato semelhante dos dentes das duas espécie de Paranthropus do Leste da África, o
espécies, as pegadas alimentares os distinguem como o previsto, Paranthropus boisei. Ao ver seu crânio pela primeira vez,
com base em observações de suas dietas. ele teria dito a famosa frase: “Nunca tinha visto um
quebra-nozes tão admirável”.
M ENUS ANTIGOS Nascia a ideia de um hominíneo especializado em
Com os padrões de microdesgastes de animais vivos cujos hábitos quebrar nozes. O Paranthropus aparecia em acentuado
alimentares são conhecidos a partir de observação direta servindo contraste com os primeiros Homo fósseis encontrados
de guia, cientistas podem usar microdesgastes em fósseis de nos mesmos depósitos sedimentares, com seus dentes
dentes para inferir o que espécies extintas comiam no dia a dia e mandíbulas mais delicados, cérebros maiores e o
e lançar luz sobre suas escolhas alimentares. Com essa finalidade, emergente kit de ferramentas em pedra para processar
meus colegas e eu fizemos um grande esforço para analisar os alimentos. Pesquisadores arrumaram uma explicação
microdesgastes de fósseis humanos. Nosso trabalho gerou para as diferenças, chamada hipótese da savana. Quando
resultados surpreendentes. os prados começaram a se espalhar pela África, nossos

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ancestrais chegaram a uma bifurcação evolucionária. O
Paranthropus seguiu um caminho, evoluindo para se especializar
em partes de plantas duras e secas da savana, como sementes e
Pegadas alimentares
raízes. Os primitivos Homo tomaram outro rumo, tornando-se Cavidades e arranhões a  microscópicos se formam nos dentes
cada vez mais versáteis, com uma dieta mais flexível que incluía como resultado de seu uso. Estudos dos padrões desses
carne. Essa flexibilidade na dieta é a razão de estarmos aqui hoje, microdesgastes em animais vivos mostram que espécies que
enquanto o Paranthropus se foi, de acordo com a teoria. Era mastigam alimentos macios e resistentes como gramíneas, por
uma história atraente, e estudos iniciais dos microdesgastes exemplo, apresentam riscos paralelos nos dentes; os que
dentários por Frederich Grine, nos anos 1980, mostraram que trituram alimentos duros e quebradiços, como nozes, têm
os dentes do P. robustus tinham mais arranhões que os de seus cavidades. Paleontólogos inferem a dieta de espécies humanas
próprios predecessores, aparentemente confirmando que esse extintas, incluindo Paranthropus robustus e Paranthropus boisei,
nosso primo se especializou em alimentos duros, mas quebradiços. com base nas texturas de microdesgastes em dentes fósseis.
Contudo, em 2005, quando Rob Scott, bolsista de pós-doutorado,
e eu reexaminamos os microdesgastes dentários do P. robustus Milhões de anos atrás Hoje
usando nova tecnologia, outra parte da história começou a surgir. 4 3 2 1
Sim, o espécime P. robustus apresentava, na média, microdesgastes Paranthropus robustus
mais complexos, com mais cavidades na superfície dos dentes, Homo neanderthalensis
mas alguns dos espécimes que estudamos tinham texturas mais Homo naledi
Homo habilis
simples, com menos cavidades. De fato, os microdesgastes no P. Homo erectus
robustus variavam bastante, sugerindo que, enquanto alguns Paranthropus boisei
haviam ingerido alimentos duros dias antes de morrer, outros Australopithecus africanus
Australopithecus afarensis
não o fizeram. Em outras palavras, a anatomia especializada do
P. robustus não significava que ele tivesse uma dieta especializada.
Índice de complexidade de microdesgaste dos dentes
Essa não era uma ideia nova. David Strait e Bernard Wood tinham Dieta mais macia Dieta mais dura
especulado um ano antes que o Paranthropus bem poderia ter 0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
sido um generalista ecológico com uma dieta flexível, com base
sobretudo em evidências indiretas. Mas nosso trabalho fornece Paranthropus robustus
Homo neanderthalensis
evidências diretas para o paradoxo de Liem entre os hominíneos. Homo naledi
Uma surpresa maior veio em 2009, quando meus colegas e eu Homo habilis
examinamos texturas de microdesgastes do P. boisei. Esse era o Homo erectus
quebra-nozes de Tobias, a espécie com os maiores dentes, mais Paranthropus boisei
Australopithecus africanus
pesadas mandíbulas e mais espesso esmalte de todos os hominíneos. Australopithecus afarensis
Eu esperava que os dentes do P. boisei tivessem desgastes semelhantes Macaco-folha-prateado
ao do mangabei fuliginoso, com tantas crateras como a superfície Macaco-cinomolgo
Mangabei de cara cinza
da lua. Mas não tinham. Superfície após superfície, tinham finos Mangabei fuliginoso
arranhões em todas as direções. Não só não eram especialistas em
objetos duros, como seu microdesgaste não mostrou qualquer
P. boisei P. robustus
sinal de alimentos duros. A hipótese do quebra-nozes pareceu
desmoronar. Então, o que o P. boisei comia com aqueles grandes
dentes achatados? Isso teve de aguardar um outro conjunto de
pegadas alimentares: as taxas de isótopos de carbono.
Diferentes assinaturas químicas de alimentos são algumas
vezes preservadas nos dentes. Como os microdesgastes, esses
sinais químicos podem ser lidos e decodificados. Por exemplo,
comparadas com árvores e arbustos, gramíneas tropicais têm
uma proporção mais alta de átomos de carbono, com sete
nêutrons em vez dos seis usuais; como resultado disso, os dentes
de animais que ingerem gramíneas tropicais têm previsivelmente
mais carbono “pesado”.
As taxas de isótopos de carbono dos dentes do P. robustus
indicam uma dieta dominada por produtos de árvores e arbustos,
mas com uma farta ajuda de gramíneas tropicais ou ciperáceos.
Essa descoberta é condizente com uma dieta de base ampla. Mas
o P. boisei mostra um padrão muito diferente, com taxas de
Estudos anteriores com base no formato dos dentes concluíram que o P.
isótopos de carbono sugerindo que g ­ ramíneas e ciperáceas robustus comia plantas resistentes e que o P. boisei se especializou em quebrar
perfaziam pelo menos três quartos de sua dieta. nozes. A análise dos microdesgastes, no entanto, revelou que o P. robustus
Esse resultado surpreendeu a muitos paleoantropólogos. Um tinha um padrão complexo de cavidades e riscos indicativo de um generalista
hominíneo semelhante a uma vaca? Seguramente nenhum na dieta. O P. boisei, por sua vez, não tinha nenhuma das cavidades que se
membro de nossa árvore genealógica que se preze passaria a esperaria em um quebra-nozes. Análises químicas posteriores indicaram que o
P. boisei comia sobretudo gramíneas ou ciperáceas.
vida comendo grama! Mas, para mim, fazia sentido. Essas espécies

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1 2

surgiram exatamente quando os prados estavam se DIETAS suposto ancestral, e o P. boisei, que vivia juntamente
espalhando pelo Leste e Sul da África, e a mesa do DIVERGENTES: com ele, o H. habilis apresenta uma faixa algo mais
bufê biosférico começava a ficar coberta por relva. Se Enquanto o ampla de texturas de microdesgastes, desde complexas
o P. boisei estava moendo produtos de gramíneas ou Paranthropus superfícies esburacadas até superfícies com simples
ciperáceas com seus grandes dentes achatados e boisei (1) se riscos. A descoberta sugere que o H. habilis comia uma
poderosas mandíbulas em vez de triturar alimentos especializava maior variedade de alimentos do que seus predecessores
duros e quebradiços, isso deveria deixar exatamente em comer ou seus contemporâneos. Seu sucessor H. erectus
o padrão de textura de microdesgaste que meus colegas gramíneas ou apresenta texturas de microdesgastes ainda mais variadas,
e eu encontramos. Essa dieta também explicaria por ciperáceas, seu talvez sugerindo uma dieta também mais ampla.
que o P. boisei desgastava seus molares tão rápido. contemporâneo Esses resultados se encaixam no modelo dominante
Jamais saberíamos isso só examinando os formatos Homo habilis (2) de como a mudança climática moldou a evolução
de seus dentes planos, mas as pegadas alimentares parece ter tido humana, o qual suplantou a hipótese da savana. O
sugerem que as duas espécies de Paranthropus usaram uma dieta mais estudo de dados climáticos de material do oceano
sua anatomia especializada de formas diferentes e abrangente. profundo, feito em meados dos anos 1990 pelo geólogo
inesperadas. Como os mangabeis de Kibale, o P. robustus Nicholas Shackleton, mostrou que havia mais na história
parece ter tido uma dieta generalista que incluía objetos da mudança climática do que supunha a hipótese da
duros. Mas, para o P. boisei, a relação entre dentes e savana. As condições de fato ficaram mais frias e secas
dieta parece ter sido muito diferente do que vemos no longo prazo, mas também houve alterações climáticas
hoje em primatas. Dentes grandes e achatados estão de curto prazo, e estas se tornaram cada vez mais
longe de serem ideais para triturar gramíneas, mas intensas durante a evolução humana.
cada um usa o que tem. E, uma vez que uma plataforma Rick Potts, do Smithsonian, ponderou que esse
de moagem fosse algo melhor do que o que os padrão climático variável favoreceria espécies mais
hominíneos dispunham antes, ela seria selecionada versáteis, incluindo hominíneos — uma ideia que se
como regular, senão ótima, para a tarefa em questão. tornou conhecida como a hipótese da seleção da
O microdesgaste de nossos ancestrais diretos aponta variabilidade. A África no Pleistoceno não era um bom
para uma estratégia alimentar diferente. Meus colegas lugar para um comedor muito exigente. Para Potts, não
e eu olhamos duas espécies primitivas: o mais “primitivo” foi tanto a expansão dos campos de savana, mas a
Homo habilis, um hominíneo com cérebro menor que necessidade de flexibilidade que direcionou a evolução
reteve algumas características relativas à vida nas árvores, humana. Sob essa luz, o cérebro maior do Homo e as
JOHN R. FOSTER Science Source

e o Homo erectus, um hominíneo de cérebro maior, ferramentas de pedras para processar uma variedade
ligado ao solo. Nossas amostras são pequenas porque de alimentos fazem sentido. Eles teriam permitido que
os microdesgastes exigem dentes preservados, e não há nossos ancestrais sobrevivessem a mudanças ambientais
muitos. Mas eles mostram um padrão interessante. cada vez mais intensas e se mantivessem enquanto a
Comparado com o Australopithecus afarensis, seu Natureza oferecia e retirava itens mais rapidamente

42  Scientific American Brasil


do bufê biosférico. A variação cada vez maior da com luxúria carne de mamute, nem sempre foi assim.
complexidade de microdesgastes do A. afarensis para Os neandertais viveram em uma ampla variedade de
o H. habilis e para o H. erectus pode simplesmente ser hábitats, desde estepes secas e frias até florestas quentes
evidência direta da variabilidade. e úmidas, e as condições mudavam ao longo do tempo
A ideia de Potts resistiu bem nas duas décadas desde e do espaço. Estudos recentes de seus molares mostram
que foi proposta, embora outros a tenham desenvolvido, que os neandertais que viveram em áreas mais
e novos detalhes tenham surgido sobre como mudanças arborizadas ou mistas apresentavam complexos
na paisagem da Terra e em sua órbita em torno do Sol microdesgastes esburacados, sugerindo que eles ingeriam
se combinaram para criar as condições sob as quais os mais plantas duras, quebradiças e talvez abrasivas. Os
humanos evoluíram. Por exemplo, em 2009, Mark neandertais que moravam nas estepes abertas, em
Maslin e Martin Trauth sugeriram que as alterações contrapartida, tinham microdesgastes menos complexos
climáticas enchiam e esvaziavam os lagos do Leste da nos molares, o que El Zaatari e seus colegas acreditam
África, prejudicando a vida nessas bacias. Esse fluxo que reflita uma dieta menos variada, composta
pode ter fragmentado e dispersado as populações de primordialmente de carne macia. Krueger, por seu
hominíneos, e estimulado a evolução humana. A aptidão lado, descobriu diferenças nos microdesgastes em
para buscar uma dieta mais variada teria ajudado na incisivos dos dois grupos; ela acha que as diferenças
sobrevivência naqueles tempos turbulentos. se devem ao fato de os neandertais das estepes terem
usado seus incisivos para ajudar a processar peles de
A PETITE E EVOLUÇÃO animais, e os neandertais da floresta terem comido
Embora as evidências disponíveis permitam traçar um uma maior variedade de alimentos. Curiosamente,
quadro plausível de como os primitivos hominíneos se essas diferenças persistem quer se considere os primeiros
adaptaram a seu mundo em transformação, só podemos neandertais ou os posteriores. Parece que os neandertais
fazê-lo com grossas pinceladas. O maior desafio para eram comedores flexíveis, com dietas relacionadas ao
entender como a mudança climática orientou a evolução hábitat e associadas aos alimentos disponíveis.
é correlacionar eventos climáticos específicos do passado O padrão, porém, difere das pessoas anatomicamente
com mudanças nos registros fósseis. modernas que viveram na Europa na última era do
Ambientes locais reagem a mudanças climáticas gelo. Não há muita diferença em microdesgastes nos
globais e mesmo regionais de formas diferentes, e molares dos que viviam em hábitats abertos e daqueles
nossos registros fósseis não são completos o bastante que ocupavam hábitats com uma mistura de vegetação
para dizer exatamente onde e quando espécies em florestal e aberta, considerando-se os indivíduos mais
particular surgiram e sumiram. Podemos errar por mil primitivos ou posteriores. Talvez os primeiros humanos
milhas e 100 mil anos ou mais. Podemos conseguir ligar modernos, ao enfrentar mudanças ambientais, fossem
a extinção ou evolução de uma dada espécie a um mais capazes de obter seus alimentos preferidos do
evento catastrófico, tal como o impacto de um asteroide que os neandertais.
na península de Yucatán que matou os dinossauros há
66 milhões de anos. Mas os eventos relacionados ao A LIMENTO PARA A MENTE
clima que associamos à evolução humana são muito Os estudos das dietas dos primeiros humanos estão
diferentes — ciclos repetidos de frio e seca se seguiram relacionados ao que as pessoas deveriam comer hoje
aos de calor e umidade. O fato de que os hominíneos para serem saudáveis — embora, talvez, não da maneira
eram provavelmente espécies flexíveis, capazes de se popularmente preconizada. Os gurus da “dieta
ajustar a muitos hábitats e aos alimentos disponíveis paleolítica” dizem que devemos ingerir os alimentos
torna o quadro mais obscuro. O melhor que podemos aos quais nossos ancestrais se adaptaram pela evolução.
fazer para entender como os hominíneos responderam Muitas doenças degenerativas crônicas têm sido ligadas
a ambientes em mudança reside assim no passado mais a um desencontro entre nossas dietas e os combustíveis
recente, em lugares que são muito bem estudados. que nossos corpos foram “projetados” para queimar,
Pesquisa publicada por Sireen El Zaatari, Kristin defendem eles. Certamente não é ruim lembrar, de
Krueger e seus colegas nos dois últimos anos mostra tempos em tempo, que nossos antepassados não comiam
como esse método pode funcionar. Seus estudos de salsichas nem milk-shakes.
microdesgastes em neandertais e nos humanos Isso não significa que deveríamos seguir uma dieta
anatomicamente modernos que os suplantaram então paleolítica específica. As pegadas alimentares nos
na Eurásia nos permitem revisitar o antigo mistério ensinam que as dietas dos primitivos hominíneos
dessa substituição por uma nova perspectiva. Os variavam ao longo do tempo e espaço e que nós
neandertais dominaram a Europa e o Oeste da Ásia provavelmente evoluímos para sermos comedores
entre 400 mil e 40 mil anos atrás, depois desapareceram. flexíveis, influenciados por mudanças climáticas, hábitats
Paleoantropólogos vêm debatendo há mais de um e disponibilidade de alimentos. Em outros termos, não
século o que aconteceu e por quê, e até hoje há pouco há uma dieta humana ancestral única a imitar. A
consenso a respeito. versatilidade alimentar permitiu aos nossos ancestrais
Embora a ciência popular costume repetir o conto se espalharem pelo planeta e encontrarem algo para
sobre brutais neandertais vivendo em condições quase comer em toda a miríade de bufês biosféricos da Terra.
glaciais, enrolados em peles de animais e engolindo Isso foi fundamental para o nosso sucesso evolutivo. 

www.sciam.com.br  43
AGULHA
NO

ARQUEOLOGIA

Uma nova técnica para identificar minúsculos fragmentos


de ossos fossilizados está ajudando a responder
questões-chave a respeito de quando, onde e como
as espécies humanas interagiram umas com as outras
Thomas Higham e Katerina Douka

44  Scientific American Brasil Fotografias de Christoffer Rudquist


RESQUÍCIOS FÓSSEIS p  odem incluir preciosos
restos humanos — o difícil é identificá-los.

PALHEIRO www.sciam.com.br  45
É sempre um alívio chegar à Caverna
Denisova, no sul da Sibéria. Após uma
viagem de 11 horas cheia de solavancos
para o Sudeste de Novosibirsk,
cruzando a estepe e as encostas dos
montes Altai, o acampamento surge em
uma curva da estrada de terra, e todos
os pensamentos da longa jornada se
dissipam. Vales escarpados, rios correndo
velozmente e as tradicionais casas de madeira do
povo Altai dominam a paisagem, enquanto águias­
‑reais sobrevoam nas alturas. A uns 200 metros dali
está a própria caverna calcária, empoleirada bem
acima do rio Anui, que nos acena com a promessa
de uma das mais empolgantes pesquisas em curso
no campo da origem humana.
FRAGMENTO DE OSSO da caverna Denisova, na Sibéria,
é o mais recente espécime a ser identificado como um
membro da família humana/grandes primatas usando
zooarqueologia por espectrometria de massa (ZooMS).

físicos. Essa ausência tem limitado nossa capacidade


de estabelecer quais espécies fizeram o que, e quando.
Agora, uma técnica para identificar antigos
A caverna Denisova está no centro de uma revolução fragmentos de ossos, conhecida como zooarqueologia
no entendimento dos cientistas de como nossos por espectrometria de massa (ZooMS, na sigla em
ancestrais no período paleolítico se comportavam e inglês), finalmente está permitindo que pesquisadores
interagiam. Nossa espécie, Homo sapiens, se originou comecem a responder a essas antigas questões. Ao
na África centenas de milhares de anos atrás. Quando analisar proteínas de colágeno preservadas nesses
por fim começou a se espalhar pela Europa e Ásia, aparentemente pouco significativos fragmentos de
encontrou outras espécies humanas, como os neandertais, fósseis, nós podemos identificar aqueles que vêm da
e compartilhou o planeta com eles por milênios antes família humanos/grandes primatas, e então tentar
que essas espécies arcaicas desaparecessem. Os cientistas recuperar DNA dessas espécies. Fazer isso pode revelar
sabem que esses grupos se encontraram porque as as espécies a que eles pertencem — sejam neandertais,
pessoas carregam hoje DNA de nossos parentes extintos H. sapiens ou quaisquer outras. Além disso, podemos
— o resultado de cruzamentos entre os primeiros H. realizar testes para determinar a idade dos fragmentos.
sapiens e membros desses outros grupos. O que não A datação direta dos fósseis é um processo destrutivo,
sabemos ainda, e estamos ansiosos para verificar, é que sacrifica parte do osso para análise. Curadores de
quando e onde seus caminhos se encontraram, com museus são, portanto, em geral reticentes a sujeitarem
que frequência houve cruzamento entre eles e como ossadas mais completas a esses testes. Mas eles não
eles podem ter influenciado suas respectivas culturas. têm essas reservas com os fragmentos.
Temos, de fato, alguns sítios arqueológicos importantes A capacidade de datar diretamente fósseis
desse período de transição que contêm instrumentos encontrados em associação com artefatos é especialmente
de pedra e outros artefatos. Mas muitos desses locais, animadora no que toca a Denisova e outros sítios que
incluindo Denisova, não têm fósseis humanos sabemos que abrigaram múltiplas espécies humanas
suficientemente completos para que sejam atribuídos no passado. Alguns pesquisadores argumentam que
a uma espécie em particular com base em seus traços artefatos simbólicos e decorativos, que são representantes

EM SÍNTESE

Durante as partes média e finalida Idade da Pedra, Pesquisadores se esforçampara entender a natureza Agora, uma combinaçãode técnicas está permitindo
o Homo sapiens se espalhou da África para a Eurásia. e a amplitude das interações entre esses grupos durante aos cientistas passar um pente-fino em grandes
Subsequentemente, grupos humanos arcaicos da essa transição. Mas muitos dos sítios arqueológicos quantidades de ossos não identificados e encontrar
região, incluindo neandertais e denisovanos, relevantes desse período não têm fósseis que possam restos humanos que podem ser datados e
desapareceram. ser atribuídos a uma espécie ou outra com base em geneticamente sequenciados. O método já rendeu
sua anatomia. insights sobre a dinâmica interespécies.

46  Scientific American Brasil


das habilidades cognitivas modernas, são únicos ao H. e humanos modernos cruzaram pelo menos três vezes
sapiens. Outros afirmam que neandertais e outras nos últimos 100 mil anos e que também houve
espécies fizeram esses itens também e podem até cruzamento entre neandertais e denisovanos, assim
mesmo ter passado algumas de suas tradições para os como entre nós e os denisovanos. Como resultado, a
H. sapiens que encontraram. A capacidade de identificar antiga visão de que o H. sapiens saiu da África e
e datar esses fragmentos fósseis significa que simplesmente eliminou essas populações arcaicas, em Thomas Higham é
pesquisadores podem começar a reconstruir a cronologia um piscar de olhos, deu lugar a um cenário mais diretor da Unidade do
Acelerador de
desses sítios com muito mais detalhes e elucidar um complexo de cruzamento e fluxo de genes entre grupos
Radiocarbono de
capítulo fundamental da pré-história humana. — um modelo de “substituição transbordante” das Oxford, da
origens dos humanos modernos. Mas a maior parte Universidade de
MISSÃO IMPOSSÍVEL dos fósseis em Denisova está tão incompleta que não Oxford. Sua pesquisa
Arqueólogos russos v êm escavando a caverna Denisova podemos discernir quais podem pertencer a uma espécie é voltada para a
desde os anos 1980. Mas foi um comunicado divulgado humana. E as dificuldades envolvendo o sítio têm sido datação de ossos em
sítios arqueológicos
em 2010 que colocou o local no mapa. Naquele ano, notórias até agora. nos períodos
cientistas do Instituto Max Planck de Antropologia Nós nos envolvemos com o projeto Denisova há seis paleolíticos médio e
Evolutiva, em Leipzig, anunciaram os resultados de anos por conta de nossa experiência em cronologia, superior.
suas análises genéticas de um osso encontrado em particularmente com o uso de datação por radiocarbono
Denisova em 2008. O DNA que eles obtiveram do fóssil para estabelecer períodos de tempo para sítios
— um pedaço de osso de dedo — revelou um tipo arqueológicos. Para materiais dos períodos paleolíticos
anteriormente desconhecido de hominíneo, ou membro médio e superior (cobrindo períodos de 250 mil a 40
da família humana, um que era tão relacionado aos mil e de 40 mil a 10 mil anos atrás, respectivamente),
neandertais quanto nós. O osso era de uma jovem, a datação é muito importante porque os sítios em geral
inicialmente batizada de “mulher X”, que pertencia a não têm tipos de ferramentas distintas associados com
um grupo que cientistas agora chamam de denisovano. períodos rigidamente definidos. Estamos trabalhando
Desde então, um punhado de outros ossos e dentes de para fornecer uma cronologia robusta em Denisova e
hominíneos foram descobertos entre os restos mortais outros locais paleolíticos na Eurásia. Katerina Douka
escavados, tanto de denisovanos quanto neandertais. Nós dois estivemos no sítio em 2014, participando é cientista
Essas descobertas em Denisova ilustram a poderosa de uma reunião da equipe Denisova, quando arqueológica do
informação que pode ser recolhida de fósseis utilizando­ apresentamos uma ideia que consideramos que poderia Instituto Max Planck
de Ciência da História
‑se métodos genéticos modernos, que nos revelam não ajudar a construir um quadro mais matizado das Humana, em Jena, na
só a presença de espécies até agora desconhecidas, mas interações que ocorreram entre nossas espécies, Alemanha. Ela lidera
também a natureza de sua interação conosco. Sabemos neandertais e denisovanos. uma equipe para
pelas análises genéticas, por exemplo, que neandertais Uma coisa que estava aparente em Denisova era que descobrir fósseis de
neandertais e
denisovanos entre
coleções de
fragmentos de ossos
não identificados de
sítios na Ásia.

PESQUISADORES
inspecionam
depósitos
arqueológicos
na caverna
Denisova antes
de colherem
amostras para
análises por
ZooMS e
datação por
radiocarbono.

www.sciam.com.br  47
De quem é esse osso, afinal?
Com ZooMS, pesquisadores podem atribuir fragmentos de ossos ao seu grupo taxonômico correto. O ZooMS analisa a proteína
de colágeno preservada no osso. Uma enzima corta o colágeno nas cadeias de peptídeos que o compõem. Um espectrômetro de
massa usa um laser para transmitir uma carga elétrica aos peptídeos, que então correm em direção a um detector que mede
quando cada peptídeo o atinge. O espectro de valores resultante é uma “impressão digital” única que pode ser comparada com
uma biblioteca de impressões digitais de colágeno de espécies conhecidas para identificar um osso misterioso.

Enzima Enzima tripsina corta a


Fragmento tripsina longa corrente de colágeno
fóssil em pontos específicos,
criando uma mistura de
peptídeos longos e curtos

Amostra de osso é
colocada em base ou Colágeno Fragmentos
ácido forte para extrair extraído de peptídeos
o colágeno

Colágeno do Laser
Peptídeos são inseridos em
osso estruturado um espectrômetro de massa

Peptídeos longos, lentos

A mistura de peptídeos
longos e curtos exclusiva a
uma espécie resulta em um
Detector espectro característico

Peptídeos curtos, rápidos

Peptídeos Peptídeos
curtos, longos,
rápidos lentos
Intensidade

Peptídeos mais longos se


movem mais lentamente,
peptídeos mais curtos se
movimentam mais rapidamente
e atingem o detector antes Tempo

Urso Humano Cavalo

48  Scientific American Brasil Ilustração de Falconieri Visuals


os restos de hominíneos conhecidos eram absolutamente certeza de que pertencia a um humano de algum tipo
minúsculos, com apenas três a cinco centímetros de e, então, poderíamos submetê-lo à análise genética
comprimento. O osso do dedo da mulher X, por exemplo, capaz de oferecer a identificação da espécie.
tinha o tamanho de uma lentilha e pesava menos de 40 O especialista em DNA antigo Svante Pääbo, do
miligramas. Uma grande proporção do material ósseo Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva, que
no sítio estava quebrada, principalmente por causa da liderou o Projeto Genoma Neandertal e cujo grupo
atividade de predadores como hienas, que se escondem publicou o genoma denisovano em 2010, estava em
em cavernas para darem cria e roerem ossos enquanto Denisova no encontro de 2014. Nós não havíamos
amamentam. Desde 2008, mais de 135 mil ossos foram encontrado formalmente Pääbo antes, e estávamos
retirados de Denisova, mas 95% deles não podem ser ansiosos para saber o que ele pensava de nossa ideia
identificados de forma taxonômica, devido à fragmentação. sobre analisar fragmentos de ossos e se ele estaria
Em contrapartida, a preservação de biomoléculas nesses interessado em colaborar com essa iniciativa. Ele adorou
fragmentos, incluindo daquelas moléculas que formam a ideia e nos deu seu apoio imediato. Nós então
o DNA, é impressionante: os dois mais completos genomas discutimos nosso plano com Anatoly Derevianko, da
de antigos hominíneos já recuperados vieram de fósseis Academia Russa de Ciências, que supervisiona o trabalho
de Denisova. E se, nos perguntamos, houvesse um meio feito em Denisova, e Michael Shunkov, diretor das
de analisar esses milhares de fragmentos para encontrar escavações. Os dois estavam interessados. Assim, ainda
mais ossos humanos? Se pudéssemos fazer isso, talvez em 2014 começamos o processo de amostragem de uns
conseguíssemos gerar mais dados genéticos e poucos milhares de pequenos fragmentos de, para
cronométricos ou mesmo encontrar um novo tipo de
hominíneo à espreita na caverna. Foi então que
percebemos que poderíamos realizar exatamente esse
tipo de análise usando ZooMS.
O ZooMS, também chamado impressão digital de O que nós descobrimos
massa de peptídeo de colágeno, permite que os
pesquisadores atribuam fragmentos de ossos ao grupo
não era um neandertal,
taxonômico correto ao analisar as proteínas nos ossos.
A proteína do colágeno do osso é feita de centenas de
mas um exemplar com
pequenos componentes denominados peptídeos que
variam levemente entre diferentes tipos de animais. Ao
uma mãe neandertal e
comparar as assinaturas de peptídeos de ossos
misteriosos com uma biblioteca dessas assinaturas de
um pai denisovano.
animais conhecidas, é possível atribuir os ossos não
identificados à família, ao gênero e, algumas vezes, à
espécie corretos. Desenvolvido inicialmente por Michael todos os efeitos, ossos “sem valor” que haviam sido
Buckley, agora na Universidade de Manchester, e Matthew escavados pouco antes do sítio.
Collins, da Universidade de York, o ZooMS tem sido Em resumo, parecia que seria um trabalho rápido.
usado há mais de uma década para identificar os ossos Na realidade, nós enfrentamos a imensa tarefa de remover
de animais em sítios arqueológicos. É relativamente meticulosamente uma amostra minúscula de osso de
barato, custando entre US$ 5 e US$ 10 por amostra, e cada fragmento para análise, tomando o cuidado de não
minimamente destrutivo — exige apenas cerca de dez tocar os espécimes potencialmente valiosos com nada
a 20 miligramas de osso para análise. Também é rápido; que pudesse contaminá-los. Uma de nossas estudantes,
uma pessoa pode examinar centenas de ossos por semana. Samantha Brown, que assumiu o projeto para sua
Até onde sabíamos, ninguém havia usado o ZooMS pesquisa de mestrado, realizou boa parte desse trabalho,
para procurar ossos humanos antes. Mas achamos que em nosso laboratório na Universidade de Oxford.
teríamos uma chance. Mesmo pequenos fragmentos Buckley colaborou conosco no projeto. Quando
seriam potencialmente úteis, pensamos, porque a tínhamos entre 700 e 800 amostras de ossos prontas,
preservação do DNA e do colágeno do osso em Denisova Brown foi ao seu laboratório para prepará-las e analisá-
é insuperável, dada sua temperatura média anual muito las. Os resultados foram interessantes: nós tínhamos
baixa e estável abaixo de zero grau Celsius. Sabíamos mamutes, hienas, cavalos, renas, rinocerontes-lanudos
que não conseguiríamos identificar até o nível de — toda a panóplia dos animais da Era do Gelo — mas,
espécie com o ZooMS. As assinaturas do peptídeo de infelizmente, nenhuma das assinaturas de peptídeos
colágeno das espécies humanas e dos grandes primatas correspondia aos hominídeos. Foi decepcionante, mas
são muito semelhantes para serem diferenciadas. Mas decidimos tentar uma segunda rodada para ver se
não se sabe de nenhum grande primata que tenha conseguíamos localizar mesmo que fosse um osso
vagado por aquela parte do mundo durante o paleolítico. humano naquela massa de fragmentos. Embora não
Portanto, se conseguíssemos identificar um pedaço de acreditássemos nas nossas chances, esperávamos que
osso como pertencente a um membro do grupo que estivéssemos errados.
engloba grandes primatas e humanos — conhecidos Então, em uma tarde no verão de 2015 nós recebemos
em conjunto como hominídeos —, teríamos uma razoável um e-mail de Buckley. Ele havia notado que uma de

www.sciam.com.br  49
1 2

ANALISAR nossas amostras, DC1227, tinha os marcadores de ossos “inúteis” e provado que o conceito funcionaria.
fragmentos peptídeos característicos que codificam os hominídeos. A equipe de Pääbo estava planejando extrair o muito
fósseis utilizando Nós tínhamos um fragmento de osso humano — a mais informativo genoma nuclear do osso, que ganhou
ZooMS exige proverbial agulha no palheiro! Ficamos eufóricos. Nossa a identidade fóssil “Denisova 11”, ou “Denny”, como o
cortar uma ideia maluca parecia ter dado resultado. apelidamos. Enquanto isso, decidimos testar nosso
amostra de 20 No dia seguinte fomos para nosso laboratório em método em outro sítio.
miligramas de Oxford para encontrar o osso entre as amostras arquivadas.
cada minúsculo Ficamos um pouco desanimados quando vimos que o NÓS CONTRA ELES
espécime (1). osso que tínhamos era minúsculo mesmo para um A caverna Vindija, n a Croácia, é um sítio-chave para
Outras amostras espécime de Denisova — apenas 25 milímetros de entender os neandertais na Europa. Por muitos anos,
são preparadas comprimento — o que não deixava muito espaço para a datação por radiocarbono indicava que os neandertais
para datação por mais estudos. Mas, dada a excepcional preservação poderiam ter sobrevivido até 30 mil anos atrás, uma
radiocarbono (2) . biomolecular dos restos de Denisova, acreditamos que evidência para uma potencial fase de sobreposição
seria suficiente para permitir a aplicação de técnicas que com humanos anatomicamente modernos, que chegaram
queríamos usar para descobrir o máximo que pudéssemos à região entre 42 mil e 45 mil anos. Uma coexistência
de um osso. Nós o fotografamos em alta resolução, o tão longa sugere que, em vez de terem sido empurrados
submetemos a uma tomografia computadorizada, e para a extinção por humanos, os neandertais foram
perfuramos para coletar amostras adicionais para análise assimilados em sua população. Enquanto reavaliávamos
de isótopo e datação antes que Brown levasse o osso a cronologia Vindija, decidimos que poderia ser
para análise de DNA no laboratório de Pääbo. interessante usar o ZooMS para examinar os ossos não
Várias semanas depois saíram os resultados da identificados do sítio. Um trabalho anterior com os
datação. A ausência de qualquer carbono radioativo ossos mais completos de Vindija mostrou que ursos
rastreável na amostra indicava que nosso pequeno osso da caverna dominavam os restos mortais, respondendo
tinha mais de 50 mil anos. E não demorou muito para por cerca de 80% dos ossos, logo não esperávamos
que Pääbo nos dissesse que seu DNA mitocondrial — encontrar a variedade e abrangência da fauna que
que reside nas organelas celulares que produzem havíamos detectado em Denisova. Cara Kubiak, então
energia e é passado de mãe para filho — indicava que outra de nossas estudantes, dedicou-se ao projeto.
o osso vinha de um indivíduo que tinha uma mãe Surpreendentemente, a 28ª amostra das 383 que
neandertal. Nós tínhamos encontrado um fragmento analisamos rendeu uma sequência de peptídeos
de osso de hominíneo escondido entre milhares de consistente com hominídeos. Posteriormente, a equipe

50  Scientific American Brasil


de Pääbo confirmou que se tratava geneticamente de adicionarmos mais fósseis humanos a nossa coleção.
neandertal. Esse osso tinha cerca de sete centímetros Nossos esforços renderam mais dois hominídeos:
de comprimento e, curiosamente, exibia marcas de DC3573, que descobrimos pertencer a um neandertal
cortes e outros sinais de modificação humana. Ossos de mais de 50 mil anos atrás, e DC3758, um osso de
de neandertais algumas vezes apresentam essas marcas, 46 mil anos que infelizmente não preservou nenhum
que podem ser evidência de abate e canibalismo. DNA antigo. Mais de 5 mil fragmentos de ossos nos
O espécime, conhecido como Vi-*28, revelou-se deram agora um total de cinco ossos de hominíneos
fundamental para nosso trabalho cronológico. que poderiam ter definhado na obscuridade eterna
Historicamente, arqueólogos e preparadores trataram se não fosse pelo ZooMS.
os ossos de Vindija com produtos para conservação para Mas o acontecimento mais emocionante estava por
protegê-los. Essa prática torna a datação por radiocarbono vir. Em maio de 2017, estávamos no Instituto Max Planck
muito difícil, porque adiciona carbono ao osso. de Antropologia Evolutiva e nos reunimos com membros
Diferentemente de outros ossos humanos do sítio, o Vi- seniores do laboratório de Pääbo, incluindo Matthias
*28 não estava conservado; identificado equivocadamente Meyer e Janet Kelso. Nós queríamos saber sobre a
como osso de animal, tinha escapado do tratamento — condição de Denisova 11 e se eles tinham conseguido
uma bênção para nós. A datação por radiocarbono do recuperar DNA nuclear, que nos daria um quadro muito
Vi-*28 revelou que pertencera a um neandertal de mais mais detalhado de quem era Denisova 11.
de 47 mil anos atrás. Essa descoberta, publicada em 2017, Não é comum em ciência alguém dar uma notícia
junto com dados que obtivemos de outros neandertais, que nos deixe de queixo completamente caído, mas foi
mostrou que eles desapareceram de Vindija há mais de exatamente isso que Meyer e Kelso fizeram. O DNA
40 mil anos, antes que humanos modernos chegassem nuclear, eles disseram, era curiosamente dividido:
lá. Os resultados de datações anteriores sugerindo que metade era consistente com neandertal e a outra metade
eles haviam perdurado pelo menos até há 30 mil anos parecia ser derivada de um denisovano. Eles achavam
eram uma ficção, influenciados pela contaminação de que Denisova 11 era 50%-50% híbrido. Para excluir
carbono que não havia sido removido efetivamente. qualquer possibilidade de erro, a equipe estava
Novamente, o ZooMS mostrava seu valor. executando as amostras novamente para verificar esse
Outras equipes também tiveram muito sucesso com espantoso resultado. Vários meses depois, os dados
a técnica. Em 2016, Frido Welker, do Museu de História finais confirmaram essa descoberta inicial. O DNA
Natural da Dinamarca, e seus colegas relataram o uso mitocondrial havia nos dado apenas metade do quadro.
do ZooMS para identificar 28 fósseis de hominíneos O que nós tínhamos descoberto não era um neandertal,
anteriormente não reconhecidos entre fragmentos de mas um exemplar com uma mãe neandertal e um pai
ossos não identificados do sítio Grotte du Renne, na denisovano — um híbrido de primeira geração, na
França. Há décadas, pesquisadores encontraram lá linguagem dos geneticistas. A equipe de Denisova
ossos de neandertais associados a uma série de artefatos anunciou essa espantosa descoberta na edição de Nature
surpreendentemente sofisticados, incluindo ferramentas de 6 de setembro, em um estudo liderado por Viviane
de osso, pendentes e ornamentos corporais — elementos Slon, do Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva.
de uma chamada cultura castelperroniense que seria Sabemos agora pelo DNA que Denisova 11 era do
a transição entre o paleolítico médio e o paleolítico sexo feminino e provavelmente viveu há cerca de 90
superior. A descoberta contrariou a antiga ideia de que mil a 100 mil anos. E as análises da densidade do osso
apenas o H. sapiens era capaz dessa engenhosidade. geradas a partir da tomografia permitiram que nosso
Ao fazer isso, tocou em um longo debate que questionava colega Bence Viola, da Universidade de Toronto,
se os neandertais estavam realmente associados com estimasse preliminarmente a idade dela ao morrer
artefatos avançados ou se os níveis arqueológicos no em 13 anos no mínimo. O próprio pai denisovano dela
sítio haviam sido de alguma forma comprometidos, teve um parente distante neandertal várias centenas
misturando ossos neandertais com artefatos posteriores de gerações antes. Evidentemente, talvez nunca
deixados para trás por H. sapiens. saibamos como essas uniões aconteceram na pré-
Os 28 fragmentos de ossos que Welker e seus colegas história, só sabemos que aconteceram. Tampouco
identificaram como humanos usando ZooMS vinham podemos estabelecer como Denisova 11 morreu, apenas
todos claramente da mesma camada que os adereços que seus restos mortais provavelmente foram
e ferramentas avançadas. Quando eles sequenciaram depositados em uma caverna sedimentar por um
os ossos, os resultados foram inequívocos: eram predador, possivelmente uma hiena.
espécimes neandertais e não H. sapiens. O trabalho Nunca saberemos se ela morreu e foi enterrada em
reforça a noção de que neandertais de fato fizeram a uma cerimônia por seus parentes, para ser removida
indústria castelperroniense e outras indústrias de depois por uma hiena, ou se perdeu a vida para um
transição e que possuíam mais habilidades do que se predador. Por dezenas de milênios essa diminuta parte
costuma atribuir a eles. de seu corpo permaneceu intocada na caverna e poderia
ter continuado lá por muitos outros anos, se não fosse
UMA CRIANÇA HÍBRIDA a inovadora ciência que nos permitiu dar vida a sua
Durante nosso trabalho em Vindija, continuamos a história. Esperamos que o ZooMS nos ajude a desvendar
analisar amostras de Denisova na esperança de muitos segredos semelhantes arquivados nos ossos. 

www.sciam.com.br  51
PA L E O A N T R O P O L O G I A

UMA NOVA
JORNADA
PARA O
GÊNERO
HOMO Descoberta de ferramentas na Jordânia faz
recuar em meio milhão de anos data de saída do
homem da África e pode ajudar a solucionar
vários enigmas da evolução humana
Walter Neves, Giancarlo Scardia, Fabio Parenti, Astolfo Araújo

52  Scientific American Brasil


O HOMO HABILISé o provável autor das
ferramentas encontradas na Jordânia, o que
sugere que ele tenha se espalhado também
por outras partes da Eurásia e talvez dado
origem a outras espécies do gênero Homo.

Fotografia P.plailly/e.daynes/Science Photo Library/Fotoarena

www.sciam.com.br  53
E m 2013, dois dos autores deste
artigo, Fabio Parenti e Walter
Neves, foram visitar uma série de
antigos sítios arqueológicos na
região do vale do rio Zarqa, na
Jordânia. Parenti havia trabalhado
ali nos anos 1990, escavando
ferramentas da Idade da Pedra, e
junto com Neves retornava à área com o intuito
de retomar o trabalho. Ao observar os diversos
barrancos duros feito concreto que se
espalhavam pela paisagem seca, Neves,
veterano de quatro décadas de escavações na
América do Sul, sentiu-se deslocado. “Mas
como é que vamos criar uma área de escavação
aqui?”, indagou. “Aqui a escavação tem que ser
na vertical!”, respondeu Parenti. LÍBANO

SÍRIA

Haifa

Nos primeiros dias, Neves estranhou o trabalho. Acostumado


Tel Aviv
à metodologia da escola francesa de arqueologia, que recorre a Vale do rio Zarqa
Mediterrâneo
apetrechos como colheres de pedreiro, palitos de madeira e pincéis
Jerusalém Amman
para ir delicadamente removendo os sedimentos do solo, viu-se
com um martelo nas mão, batendo com força contra pedras na Gaza
parede de um barranco. A experiência não fazia sentido para ele.
Em certo momento, a equipe decidiu-se por abrir uma trincheira JORDÁNIA
e proceder a uma escavação horizontal. Para retirar o duro material ISRAEL

que cobria o sedimento arqueológico, porém, foi preciso usar uma


EGITO
retroescavadeira e depois uma britadeira, o que “contrariava todos

EM SÍNTESE

Ferramentas líticasencontradas por pesquisadores A descoberta fazrecuar em meio milhão de anos a A hipótese de queo Homo habilis se espalhou pela
brasileiros e italianos na Jordânia foram datadas data estimada de saída da África do gênero Homo. Eurásia pode jogar uma nova luz sobre algumas das
em cerca de 2,5 milhões de anos, o que faz delas Achava-se que o primeiro a deixar a África teria sido maiores polêmicas envolvendo a evolução do gênero
o mais antigo material lítico que já foi encontrado o Homo erectus, mas agora é o Homo habilis que Homo, como os fósseis encontrados em Dmanisi, na
fora da África. parece ter sido o criador das ferramentas. Geórgia e na Ilha de Flores.

54  Scientific American Brasil


Walter Neves é professor
titular aposentado do Instituto
de Biociências e professor
sênior do Instituto de Estudos
Avançados da USP.

Fabio Parenti f oi presidente


do Istituto Italiano di
Paleontologia Umana e é
professor da Universidade
Federal do Paraná.

ferramentas e fragmentos. A datação do material,


feita por três métodos diferentes, apontou que as
peças mais antigas remontam a 2,5 milhão de anos.
Trata-se das ferramentas líticas mais antigas já
encontradas fora da África! Elas sugerem que a
saída dos nossos antepassados do continente
africano ocorreu mais de meio milhão de anos Giancarlo Scardia é
antes do que os paleantropólogos têm estimado. professor do Instituto de
Mas, para além da questão da emigração para fora Geociências e Ciências Exatas
da Unesp em Rio Claro.
da África, a descoberta da equipe brasileira/italiana
também pode lançar novas luzes sobre alguns dos
mais complicados enigmas que surgiram no campo
da evolução humana nos últimos vinte anos.

UM BREVE VOO PELA EVOLUÇÃO


Quem foram os criadores d  as ferramentas que
encontramos no vale do rio Zarqa? E por que a
data de 2,5 milhões de anos para estas ferramentas
pode causar tanta surpresa entre os estudiosos da
os meus princípios metodológicos”, lembra Neves. paleoantropologia? Para compreendermos melhor
Graças à expertise de Parenti em escavar no estas perguntas, e as respostas que estamos
duro ambiente rochoso do Oriente Médio, porém, propondo a elas, precisamos primeiro fazer um
a pesquisa foi um sucesso. No total, foram breve voo sobre a jornada evolutiva do homem. Astolfo Araújo é professor
recuperados cerca de 440 peças de pedra Nós pertencemos a uma linhagem evolutiva do Museu de Arqueologia e
manipuladas por antepassados humanos, entre denominada hominínia (veja box na pág 62). No Etnologia da USP.

www.sciam.com.br  55
registro fóssil, os primeiros hominínios conhecidos aparecem
Como se descobriu a há cerca de 7 milhões de anos. Eles são classificados em três
grandes grupos, em ordem cronológica: os pré-australopitecínios,
idade das ferramentas? os australopitecínios e os Homo.
A característica que define esta linhagem é a bipedia, isto
Um fóssil ou um artefato é HOLOCENO é, a possibilidade de se locomover sobre duas pernas. Hoje se
0
geralmente datado pela idade do sabe que a evolução para a bipedia ocorreu em duas fases

Sup.
sedimento no qual é encontrado. complementares: primeiro surgiu a bipedia facultativa, associada
Há vários métodos para datá-los, a uma anatomia extremamente adaptada à vida nas árvores.
dependendo do tipo de Provavelmente, os primeiros hominínios não eram lá muito

Brunhes
Médio
sedimento ou rocha presente. No eficientes quando tinham que se deslocar no chão, embora
caso do vale do rio Zarqa foram 0,5 fossem capazes de fazê-lo. Só bem mais tarde apareceu a bipedia
encontrados depósitos fluviais estritamente terrestre, com o surgimento do Homo erectus a
acima de um basalto (lava partir de 1,8 milhão de anos.
solidificada preta enriquecida de No modelo evolutivo tradicional, toda a evolução hominínia
silicatos de magnésio e ferro) e ocorreu entre 7 milhões e 1,8 milhão num só lugar: a África.
abaixo do chamado caliche Até fins dos anos 1990 assumia-se que qualquer hominínio que
1
(horizonte de calcário produzido tivesse se aventurado fora da África deve ter possuído três
PLEISTOCENO

por intemperismo). O basalto e o características: estatura e pernas grandes, uma capacidade um


caliche foram datados analisando pouco mais avançada de produzir ferramentas de pedra e uma
-se o decaimento radioativo de caixa craniana significativamente maior do que aquela dos
Matuyama
Milhões de anos

isótopos do potássio para o hominínios que o precederam. Mais importante ainda: o modelo
argônio e do urânio para o 1,5 tradicional estabelece que essa primeira saída não poderia ter
chumbo, respectivamente. ocorrido antes de aproximadamente 1,5 milhão de anos, quando
Inferior

Esses métodos são parecidos se estima ter surgido na África a indústria lítica conhecida
com o conhecido método do como Acheulense.
radiocarbono, usado para datar O conceito de indústria lítica serve para descrever os métodos
matéria orgânica mais recente 2 de fabricação de ferramentas de pedras que os hominínios
que 50 mil anos. Os minerais foram desenvolvendo ao longo do tempo. As mais antigas
incorporam um isótopo “pai” ferramentas de pedra lascada conhecidas até o momento foram
(urânio ou potássio no nesso encontradas em Kada Gona, na Etiópia, e são datadas de 2,7
caso) no momento de sua milhões de anos. Essas ferramentas são conhecidas como
formação, seja por solidificação, indústria Olduvaiense, porque foram descritas primeiro na
no caso da lava, ou precipitação 2,5 Garganta de Olduvai, na Tanzânia. Essa indústria era muito
química, no caso da calcita do simples, basicamente caraterizada por golpes controlados e
Piacenziano

caliche. Desde a formação do


PLIOCENO

muito bem estudados desferidos por uma pedra mais dura


Gauss

mineral, o isótopo “pai” decai, (percutor ou martelo) sobre uma pedra mais macia (núcleo),
formando novos átomos “filhos” a fim de retirar dessas últimas lascas extremamente cortantes
em um ritmo constante. Medindo 3 de vários tamanhos.
com espetrômetros de massa a As lascas eram usadas para remover a carne de carniças
razão entre átomos pai e átomos remanescentes de animais caçados por grandes felinos, próximas
Intervalos de polaridade
filhos (e fazendo várias assunções magnetica normal a rios e lagos, antes que as hienas as atacassem. Por que carniças?
e correções) é possível calcular a Intervalos de polaridade Simples: com o arsenal Olduvaiense seríamos incapazes de
idade da formação do mineral ou magnetica inversa matar qualquer grande mamífero.
da rocha analisados. Hoje, graças aos estudos de microtraços de utilização
A idade da Formação Dawqara encontrados na borda de vários artefatos Olduvaienses, sabemos
(e dos artefatos ali encontrados) também foi confirmada pelo que, no início, os hominínios lascadores não tinham qualquer
paleomagnetismo. As rochas atuam como um meio natural modelo mental de ferramenta formal em seus cérebros. Eles
de gravação magnética e, no momento da sua formação, buscavam apenas lascas com gumes muito cortantes. Só com
preservam o sinal do campo magnético terrestre (sobretudo o surgimento da Indústria Acheulense na África, por volta de
a sua direção). O campo magnético da Terra não é fixo, mas 1,7 milhão de anos, os primeiros hominínios começaram a
muda de direção ao longo do tempo, invertendo o polo impor sobre a pedra, também por lascamento controlado,
norte com o polo sul e vice-versa. Essas inversões de modelos formais de ferramentas líticas.
polaridade magnética estão bem conhecidas e datadas Até recentemente, dizia-se que o gênero Homo teria surgido
(gráfico acima). Assim, no caso de uma sucessão vertical de há não mais que 1,8 milhão de anos no continente africano,
sedimentos como no vale do rio Zarqa, é possível “ler” a com base em achados na Garganta de Olduvai, na Tanzânia, e
historia das inversões do campo magnético terrestre e nas margens do Lago Turkana, no Quênia. No último caso, três
conhecer o momento de deposição da Formação Dawqara. espécies parecem ter sido contemporâneas já nessa data: Homo
habilis, Homo rudolfensis e até certo ponto o Homo erectus.

56  Scientific American Brasil Ilustração de Giancarlo Scardia


Feito pelo homem ou pela natureza?
Para distinguir um artefato de pedra lascada de um seixo rolado pelo rio, os estudiosos levam em conta principalmente três fatores: a
existência e o número de contrabulbos, que são a marca (ou negativo) do lascamento; o ângulo deles com a face não trabalhada do
seixo, que deve ser menor que 90 graus; e a regularidade da sequência de contrabulbos, medida em vários artefatos. Veja um exemplo.

Margens superior e Sequência dos Sequência dos


lateral, formadas lascamentos da lascamentos da
por lascamentos face superior. face inferior. Os
alternantes das Os numeros numeros indicam
duas faces indicam ordem a ordem dos
dos gestos gestos

Desenho técnico da face


superior (esq.) e inferior
(dir.) de um seixo lascado
de sílex

Vista da face superior


(esq.) e inferior (dir.)
de um seixo lascado
de sílex

www.sciam.com.br  57
EM DMANISI,na República da Geórgia, foram encontrados
fósseis que combinam características mais primitivas com
outras mais modernas. Da esquerda para direita veem-se os
crânios 1, 2, 3, 4 e 5 em visão frontal (acima) e lateral (abaixo).

O grande problema é que não há um critério claro para estritamente terrestre, exibiam muito mais afinidades
definir o gênero Homo. Le Gross Clark, um dos pais da moderna morfológicas com os demais representantes do gênero Homo,
paleoantropologia britânica, sugeriu, ainda nos anos 1950, que incluindo o H. erectus, do que com qualquer australopitecínio.
nenhum hominínio com menos de 750 cm3 de capacidade Portanto, defenestrar habilis e rudolfensis do gênero Homo,
craniana poderia ser classificado nesse gênero. Para Louis como desejam Wood e Collard, transferindo-os para o gênero
Leakey, o responsável pelas escavações em Olduvai nos anos Australopithecus, pode fazer todo o sentido do mundo sob uma
1950 e 1960, o critério deveria ser fabricação de ferramentas, perspectiva corporal, mas isso não ocorre quando a morfologia
enquanto que para Bernard Wood, da Universidade de craniana é levada em consideração.
Washington, e Mike Collard, da Universidade de Akron, ambas Embora essa discussão ainda continue em curso, há um certo
dos EUA, o critério deveria ser a bipedia estritamente terrestre. consenso de que o primeiro representante do gênero Homo foi
O primeiro critério caiu logo que Louis Leakey encontrou o habilis e que ele teria surgido na Etiópia há cerca de 2,7 milhões
em Olduvai hominínios com cerca de 650 cm3 fabricando de anos. Mas o que o habilita a ser o primeiro representante do
ferramentas de pedra lascada, o que era impensável para Le nosso gênero? Capacidade craniana de cerca de 650cm3 superior
Gross Clark. O segundo, quando Tim White, da Universidade à de qualquer australopitecínio; uma face pouco projetada; e
de Berkeley, encontrou em 1996 no Afar, na Etiópia, ferramentas por último, mas não menos importante: dentes muito pequenos,
putativamente associadas ao Australopithecus garhi, datado no que se assemelha bastante ao Homo sapiens.
de 2.5 milhões de anos.
O terceiro critério fez sucesso por pelo menos uma década, O ESTRANHO HOMEM DA GEÓRGIA
até que um dos autores (WN), junto com colegas argentinos, Mas afinal, quando os primeiros hominínios t eriam deixado a
publicou na revista Nature um estudo mostrando que os crânios África e qual teria sido esse hominínio? Um sítio encontrado
de H. habilis e H. rudolfensis, que não apresentavam bipedia no início dos anos 1990 fora da África é fundamental para

58  Scientific American Brasil Fotografia de Ani Margvelashvili – Museu Nacional da Geórgia
responder ambas as perguntas: Dmanisi, na República da craniana — um assunto ao qual voltaremos mais à frente.
Geórgia, que fica entre Europa e Ásia. O segundo fator de grande destaque em Dmanisi é sua
O sítio de Dmanisi fica num
promontório basáltico definido

Até recentemente, dizia-se que


pelo encontro entre dois rios,
de maneira que os homens pré-
históricos que ali viveram
dispunham de fácil acesso a
água, matéria-prima para lascar
o gênero homo teria surgido
e uma rica fauna euroasiática
cujas carcaças lhes serviram há cerca de 1, 8 milhão de anos.
Mas hoje já se fala em mais
de comida. Entretanto, apesar
de o alimento ser abundante,
os hominínios de Dmanisi
tiveram uma vida tensa e
arriscada: conviveram, no
de 2,5 milhões.
mesmo promontório, com
grandes predadores, como o
tigre-dentes-de-sabre e as hienas gigantes. antiguidade, estimada entre 1,8 e 1,7 milhão de anos. Quando
Entre 1999 e 2005, foram encontrados ali cinco crânios de as datações vieram a público, foram comemoradas por toda a
nossos ancestrais que mostravam grande variabilidade morfo- comunidade paleoantropológica, pois se tratava dos sinais

www.sciam.com.br  59
Uma nova jornada para o homem
DESCOBERTA NA JORDÂNIA AJUDA A REPENSAR EVOLUÇÃO DO GÊNERO HOMO E SUA EXPANSÃO PELO PLANETA.

TEORIA ATUAL NOVO MODELO

3 3
2 4 2 4
1 2
1

1 Surge na África, há cerca de 2,7 milhões de anos, 1 O Homo habilis surge na África há 2,7 milhões de
o Homo habilis, o primeiro hominínio a fabricar anos.
ferramentas de pedra lascada.

2 O Homo erectus, um descendente do habilis, teria 2 O Homo habilis logo se desloca em direção ao
sido o primeiro a deixar a África em direção ao Oriente Médio, aonde chegou por volta de 2,5
Oriente Médio, cerca de 2 milhões de anos atrás. milhões de anos.

3 O Erectus se espalha pela Eurásia e por volta de 3 O Homo habilis se desloca para o norte da Eurásia
1,8 milhão de anos, o erectus já estava na Geórgia, e passa por transições que levariam ao Homo
onde deu origem ao Homo Georgicus. erectus.

4 A espécie continua se espalhando pelo continente 4 Por fim, o Homo floresiensis também seria um
asiático. Outro descendente da migração do hominínio surgido a partir desta expansão
erectus foi o Homo floresiensis, que habitou a ilha de primitiva do Homo habilis.
Flores, na Indonésia, até apenas 60 mil anos atrás

60  Scientific American Brasil Mapa Cleber Estevam


mais antigos da presença de hominínios fora do continente Dawqara, no vale do rio Zarqa, no norte da Jordânia, e as
africano — status esse mantido até nossas descobertas. temporadas de campo que ali efetuamos se estenderam até
As descobertas em Dmanisi derrubaram também os três 2016. A escolha ocorreu porque lá, nos anos 1980 e 1990,
dogmas que eram assumidos para a expansão hominínia para pesquisadores franceses e italianos (entre os quais um dos
fora da África: afinal, os hominínios da Georgia eram pequenos, autores deste artigo, Fabio Parenti), encontraram ferramentas
com estatura máxima de 1,60 m; possuíam cérebros diminutos, de pedra lascada muito primitivas, para as quais não havia um
cujo volume variava de 540 a 750 cm3 e eram praticantes da horizonte cronológico bem definido.
indústria Olduvaiense! Apesar de a Formação Dawqara não facilitar a preservação
Uma grande discussão, que também nos interessa muito, de fósseis, um fragmento de dente de mamute encontrado pela
foca o número de espécies que estão representadas em Dmanisi. missão italiana nos anos 1990 foi atribuído por Claude Guérin,
A equipe georgiana responsável pelas escavações já publicou da Universidade de Lyon, à espécie Mammuthus meridionalis,
vários artigos defendendo a ideia de que os crânios ali o que sugeria uma antiguidade por volta de 1 milhão de anos.
encontrados pertenciam a uma mesma espécie. Já um dos O problema de se buscar por sítios arqueológicos na Formação
autores deste artigo (WN) acredita que ali estejam representadas Dawqara é que ela é capeada por uma crosta calcária
duas espécies, se não dois gêneros distintos. extremamente dura, chamada caliche, que é difícil de ser
“Concordo que pelo menos um dos
crânios pertence a uma espécie à parte
dos demais”, diz Ian Tattersall, curador
emérito do American Museum of Se o Homo erectus foi o
primeiro hominínio a deixar
Natural History, de Nova Iorque e
referência no estudo de evolução
humana. “E não acho que os outros
quatro crânios pertençam ao Homo
erectus. Acho que são outra coisa.”
a África, só uma redução em
Independentemente de quantas
espécies estejam ali presentes, o fato seu cérebro poderia explicar
os fósseis de Dmanisi
é que os crânios de Dmanisi mostram
uma diversidade morfológica enorme,
como já dito. Algumas de suas
características apontam para uma
semelhança com o H. habilis (pequeno tamanho cerebral e atravessada por métodos arqueológicos convencionais — e até
ausência de toros occipital, por exemplo), e outras, com o H. mesmo por métodos não ortodoxos. Foi por isso que decidimos
erectus (toros supra-orbital muito desenvolvido e grande escavar, na vertical, os barrancos que os agricultores locais
robustez do crânio como um todo) . Por isso, tem sido muito produziram anteriormente, através do uso de máquinas pesadas
difícil para os georgianos atribuir um nome específico para (tratores e retroescavadeiras) para estabelecer seus campos de
esses crânios. cultivo.
Várias propostas já foram apresentadas na literatura, entre Como esperado, as escavações por nós conduzidas não
as quais H. habilis, H. ergaster, H. erectus e H. georgicus. Por encontraram nenhum hominínio fóssil, mas sim cerca de 440
falta de uma opção melhor, predomina hoje, na literatura, a artefatos de pedra por eles produzidos. Aqui cabe um comentário.
denominação H. erectus. A Formação Dawqara foi depositada por antigos rios, num
Portanto, levando-se em consideração os achados de Dmanisi, ambiente altamente dinâmico. Isso significa que os seixos e os
tudo parecia indicar, até recentemente, que o H. erectus teria blocos ali depositados podem ter colidido entre eles várias
sido a primeira espécie de hominínio a deixar a África e que vezes, produzindo, eventualmente, pseudo-lascas e pseudo-
isso teria se dado por volta de 1,8 milhão de anos. núcleos. Estes objetos são denominados pelos arqueólogos de
Porém, isso implicaria uma redução significativa do tamanho geofatos para diferenciá-los do lascamento humano deliberado
cerebral dessa espécie no Cáucaso, já que na África, no sudeste que é chamado de artefato. Às vezes, só um olho muito treinado
asiático e na China, por exemplo, o H. erectus apresenta uma pode diferenciar uma coisa da outra .
capacidade craniana média de 950 cm 3, se não mais. A No caso de nossas escavações, foram encontradas três
inteligência é sempre privilegiada pela evolução na maior parte situações: geofatos produzidos naturalmente pela dinâmica
das linhagens de mamíferos. Então, por que a seleção natural da deposição de sedimentos, artefatos retrabalhados pela ação
teria agido ali no sentido de fixar uma menor capacidade da água, e artefatos originais que não sofreram ação da natureza.
cognitiva? A análise desses últimos efetuada por um dos autores (FP)
revelou que as ferramentas encontradas na Formação Dawqara
O MEIO DO CAMINHO eram essencialmente Olduvaienses. Isso também ajuda a
Foi com esse quadro e m mente que estabelecemos em 2013 um desmistificar a ideia de que nossos ancestrais só teriam deixado
projeto paleoantropológico na Jordânia. A ideia era procurar a África após o desenvolvimento do Acheulense.
no Oriente Médio, que está no meio do caminho entre a África Mas a maior surpresa que tivemos foram as datas para os
e o Cáucaso, por sítios intermediários com idades entre 2 e 1,8 estratos nos quais os artefatos foram encontrados: usando três
milhão de anos. Nossas pesquisas se concentraram na Formação métodos distintos de datações, esses estratos foram datados

www.sciam.com.br  61
De onde viemos?
Nós pertencemos a  uma linhagem evolutiva conhecida como Hominínia, que está organizada em três grandes grupos: os pré-
australopitecíneos, ou hominínios antigos, os australopitecíneos (em laranja) e o gênero Homo (verde),de onde surgiu o Homo sapiens.

HOJE HUMANOS Homo sapiens


MODERNOS

Denisovans
1 MILHÃO
DE ANOS Homo_neanderthalensis
Homo_floresiensis
Homo_heidelbergensis
Homo_antecessor

2 MILHÕES
DE ANOS
Paranthropus_robustus
Homo_erectus Homo_rudolfensis Homo_habilis Australopithecus_sediba Paranthropus-boisei

3 MILHÕES
DE ANOS HUMANOS Austrelopithecus_garhi Australopithecus_africanus

Paranthropus_aethiopicus

4MILHÕES
DE ANOS
Kenyanthropus_platyops Australopithecus_afarensis
AUSTRALOPITECÍNEOS ROBUSTOS

Australopitecus anamensis
5 MILHÕES
DE ANOS
Ardipithecus_Ramidus
AUSTRALOPITECÍNEOS

6 MILHÕES
DE ANOS
Ardipitechus Kadabba

Orrorin Tugenensis

7 MILHÕES
DE ANOS Sahelanthropus_tchadensis

HOMINÍNIOS ANTIGOS

entre 2,48 e 1,95 milhão de anos. Estavam encontrados, então, milhões de anos). Nossas descobertas ajudam também a
os vestígios mais antigos da presença hominínia fora da África, compreender a debatida diversidade craniana em Dmanisi,
desbancando Dmanisi! conforme discutida anteriormente. Agora que sabemos que
Refeitos do susto, começamos a elaborar sobre as implicações muito provavelmente o Homo habilis foi o primeiro hominínio
de nossas descobertas para a compreensão da primeira saída que deixou a África, fica claro que os crânios de Dmanisi podem
da África e de qual foi o primeiro hominínio a fazê-lo. Primeiro, representar exatamente o mosaico de transição entre habilis
nossas descobertas retroagem em cerca de 700 mil anos a e erectus. Nesse sentido, e se concordarmos com os georgianos
primeira saída da África, aceitando-se Dmanisi (1,8 milhão de que ali haveria apenas uma espécie, o mais recomendável seria
anos) como a datação mais antiga até o momento conhecida. atribuir aos cinco crânios encontrados em Dmanisi o epíteto
Em segundo lugar, o papel do Homo erectus como a primeira de H. georgicus. Portanto, o erectus não teria surgido na África,
espécie a sair da África. Há 2,5 milhões de anos, essa espécie como se pensa, mas sim no Cáucaso, de onde teria se expandido
ainda não estava presente naquele continente. Portanto, as para o resto do Velho Mundo, voltando inclusive para a África.
datações obtidas por nós na Jordânia implicam que uma forma Nesses percursos teria ganho em capacidade craniana.
pré-erectus deve ter sido o primeiro hominínio a deixar o Pesquisas recentemente relatadas na revista Nature por
continente africano. colegas chineses revelaram artefatos primitivos de pedra lascada
Embora não tenhamos encontrado hominínios fósseis na na província de Shaanxi, na China, datadas, em princípio, entre
Jordânia, o maior candidato a essa façanha é o H. habilis, que 1,9 e 2,1 milhões de anos. Esses achados têm sido, vivamente
estava no local (leste da África) e no momento certos (2,7 questionados pelo “mainstream” da paleoantropologia, por

62  Scientific American Brasil


duas razões: primeiro, as camadas nas quais os artefatos foram já que o mesmo estava presente no sudeste asiático há pelo
encontrados foram datadas apenas por uma técnica de datação, menos 1,6 milhão de anos.
o paleomagnetismo. Esse método é extremamente útil, tanto O grande problema de se interpretar o H. floresiensis como
é que o empregamos na Jordânia, (veja quadro na página 56) um encolhimento do H. erectus é que isso exigiria uma redução
sobretudo quando não se tem nas formações geológicas demasiadamente drástica de tamanho, já que esses apresentavam
sedimentos que possam ser datados por métodos absolutos. uma estatura média de 1,7 m e uma capacidade craniana de
Mas já houve várias inversões do campo magnético na Terra. 950 cm3. Também não explicaria os braços longos e as pernas
Na ausência de uma datação absoluta para “calibrar” as curtas.
informações advindas dessa técnica, erros enormes podem ser Agora que sabemos que muito provavelmente foi o H. habilis
cometidos. que deixou a África pela primeira vez e não o H. erectus, o H.
Outro ponto é que esses achados parecem estar fora do floresiensis parece fazer mais sentido, já que seu encolhimento
lugar. Como uma população de hominínios pode ter chegado pode ter partido de uma estatura de cerca de 1,4 m, uma capacidade
ao leste asiático antes de ter chegado ao Cáucaso, que fica craniana de 600 cm3 e de proporções corporais que favoreciam
muito mais próximo da África? os braços em detrimento das pernas. Há, entretanto, um óbice a
Os resultados por nós obtidos na Jordânia também lançam essa hipótese: apesar das intensas pesquisas já efetuadas tanto
luzes sobre esse debate. Agora que
sabemos que os hominínios deixaram
a África por volta de 2,5 milhões de
anos, é perfeitamente possível que eles
tenham se dirigido também em direção
Se foi o Homo habilis quem
leste, e poderiam ter chegado à China
por volta de 2,1 milhões de anos atrás. deixou a África primeiro, o
O ENIGMA DO HOBIT
Por fim, m as não menos importante,
processo de encolhimento do
nossas descobertas também podem
contribuir para outro debate polêmico
“hobit” parece ser algo mais
que tem povoado nas últimas décadas
o imaginário tanto dos fácil de compreender
paleoantropólogos como das pessoas
em geral: o “hobit” da Ilha de Flores.
Encontrado em 2004, na caverna de Luang Bua, na Ilha de no sudeste asiático insular, quanto na China, até agora todos os
Flores, na Indonésia, esse diminuto esqueleto (também conhecido fósseis antigos ali encontrados são claramente de Homo erectus!
como LB1), datado entre 90 e 60 mil anos, tem provocado A grande pergunta que fica para ser respondida agora é se
grande polêmica entre especialistas da área. Para alguns trata- algum hominínio pré-humano também deixou a África, antes
se meramente de um sapiens patológico, provavelmente de 2,5 milhões de anos. A maior parte dos pesquisadores acredita
acometido por microcefalia; para outros, como Mike Morwood, que não, porque, em princípio, os australopitecínios não
da Universidade de Wollogong, que é um dos descobridores fabricavam ferramentas de pedra lascada e, sem elas, dificilmente
do fóssil, representaria uma nova espécie: o Homo floresiensis. teriam se expandido para fora do continente africano, seu habitat
O fato é que esse esqueleto aponta para uma estatura de natural. Mas isso pode ser apenas mais um dogma a ser derrubado.
cerca de um metro, com uma capacidade craniana de míseros Afinal de contas, os australopitecos ocuparam a África de norte
417 cm3; praticamente a de um australopitecínio. Essa redução a sul, do leste até o deserto do Chade. “Muitos eventos de
absurda de tamanho do corpo, e ainda mais pronunciada do diversificação aconteceram na África. Mas uma vez que esses
cérebro, tem sido explicada na literatura por aquilo que os hominínios deixaram a África, o potencial para diversificação
biólogos evolutivos denominam de “efeito ilha”. Animais que continua”, diz Ian Tattersall. Ele pensa que é possível que tenha
vivem em condições insulares são sabidamente menores do ocorrido, inclusive, uma leva migratória ainda anterior à do
que seus pares que vivem no continente. Isso, provavelmente, Homo habilis. “Acho que o Homem de Flores era um descendente
revela uma adaptação a um tipo de território com menos deste imigrante primitivo. Depois, uma outra migração deu
disponibilidade de recursos alimentares. Na própria Ilha de origem aos hominínios que encontramos na Geórgia.”
Flores existiam, por exemplo, mastodontes anões, que aliás De nossa parte, só podemos dizer que no caso do rio Zarqa,
foram caçados e comidos pelos próprios “hobits”. nenhuma ferramenta de pedra lascada foi encontrada abaixo
Outro traço do H. floresiensis são seus braços longos e do basalto datado de 2,5 milhões de anos, apesar das intensas
pernas curtas, que denotam claramente uma grande capacidade prospecções que fizemos nesses estratos. Embora não conheçamos
de subir em árvores. Aceitando-se o LB1 como uma nova espécie, exatamente como era o clima e a paisagem abaixo do basalto,
a posição dominante atualmente, a grande questão que se sabemos pelo menos que o rio estava lá, que mamutes viviam
coloca é sobre qual espécie o efeito ilha teria incidido. Há em na paisagem e que a deposição sedimentar era do mesmo tipo
Flores ferramentas de pedra lascada muito toscas, datadas em que acima do basalto. Novas escavações no vale do rio Zarqa ou
cerca de 800 mil anos. Para muitos, essas ferramentas estariam em outras áreas da Jordânia e do Oriente Médio serão necessárias
associadas a uma ocupação da ilha por parte do Homo erectus, para elucidar esse cenário. 

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