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Os primórdios da humanidade

Romélia Mara Alves Souto

Eu fazia um caminho a cada vez que passava.


Era a Terra o caminho.
O caminho era o homem.
Pedro Tierra

A presença humana no planeta é muito recente, data de pouco mais de vinte


e cinco mil anos atrás, se considerarmos apenas as raças humanas atuais. Os
antepassados do homem já existiam há mais ou menos cinquenta milhões de anos. Os
vestígios das espécies humanas primitivas, que já articulavam uma linguagem falada,
sepultavam seus mortos, conheciam o fogo e construíam armas e utensílios de pedra,
indicam sua presença há um milhão de anos. As primeiras noções de número, grandeza
e forma remontam a esse período – começo da Idade da Pedra. É nos esforços
empreendidos pelos homens primitivos, na tentativa de sistematizar esses conceitos, que
situamos a gênese da Matemática produzida no mundo ocidental.
Provavelmente, uma das primeiras abstrações feitas pelo homem foi o conceito
de conjunto, associado às necessidades de formar agrupamentos, compará-los, reparti-
los, separá-los. Essas operações levaram aos conceitos de igualdade e desigualdade e
às operações fundamentais de adicionar, subtrair, multiplicar e dividir. Esses e outros
conhecimentos, desde tempos imemoriais, eram prerrogativa de feiticeiros e
sacerdotes.
No período Neolítico, compreendido entre 6000 e 4000 a.C., aproximadamente,
aconteceu a chamada revolução agrícola. Nesse período, os grupos humanos
desenvolveram técnicas de navegação, domesticaram animais e criaram as primeiras
instituições político-sociais. Com a agricultura, tornaram-se necessários os registros de
tempo, a irrigação, a divisão de terras, o estudo dos astros e, com ele, o conhecimento
de propriedades da esfera, das direções angulares e dos círculos. As habitações
tornaram-se mais permanentes. Desenvolveram-se então as edificações com a
construção de monumentos. Sedimentaram-se as práticas da cerâmica, carpintaria e
tecelagem.
Da pintura e do entrelaçamento de juncos para a cestaria, da tecelagem e das
danças rituais podem ter surgido as primeiras noções de plano e a compreensão das
relações espaciais. Nas ornamentações do próprio corpo, de objetos e habitações,
manifestavam-se as noções de congruência, simetria e semelhança. Também nesse
período, os homens aprenderam a cozer os alimentos e fermentar a cerveja, além de
construir celeiros, rodas e barcos; inventaram a fundição do cobre e do bronze e
aprimoraram a linguagem. As práticas comerciais estimularam a cristalização do
conceito de número – surgiram a contagem e os sistemas de numeração.
O começo da civilização é alocado em torno do ano 4000 a.C. e a sua marca
é o advento da escrita. Junto com os registros escritos, surgiram os símbolos especiais
para os números. Nesse tempo, praticava-se a mineração (bronze e ferro) e havia
manifestações artísticas e literárias e produção de ciência e tecnologias para lidar com
as necessidades cotidianas e para manejar e explicar a realidade circundante. Da
necessidade de medir comprimentos, áreas e volumes, surgem as primeiras
sistematizações geométricas. Para a orientação no tempo e no espaço, são construídos
os calendários. As primeiras grandes civilizações surgiram nas regiões onde hoje se
situam o Oriente Médio, Índia, China, Egito, México e Peru.
Os principais ingredientes para que se desenvolvesse o pensamento matemático
foram a escrita, a necessidade de novas tecnologias, os ambientes urbanos e o tempo
livre. No início, esse desenvolvimento deu-se de maneira semelhante em sociedades
totalmente independentes.
Para abrir o debate sobre as primeiras manifestações culturais e sobre o surgimento das
primeiras ideias matemáticas, selecionamos o filme franco-candense “A Guerra do
Fogo”, uma produção de 1981, dirigida por Jean-Jacques Annaud.
O filme é um mergulho no tempo, um registro dos primeiros passos da civilização,
mostrando como a humanidade chegou à sua maior conquista: o domínio do fogo.
Filmado nas paisagens da Escócia, Islândia, Canadá e Quênia, esse belo trabalho recria
o drama da sobrevivência humana numa atmosfera de 80.000 anos atrás. Graças à
linguagem simbólica, tão própria do cinema, o roteiro condensa, num prazo de alguns
meses, 40 mil anos de história da humanidade, mostrando o florescer da razão, das
tecnologias, da linguagem e das relações emocionais – elementos que nos tornam
essencialmente diferentes das outras espécies.
Não há diálogos no filme, cujo enredo se desenrola em períodos que antecedem
a linguagem falada. Mas a comunicação é intensa e sob variadas formas. A trama
acompanha a vida de quatro tribos de homens primitivos, cada uma delas num estágio
diferente de desenvolvimento. O filme recria a atmosfera do Paleolítico e, por meio de
uma tribo de Homo Sapiens Sapiens, enfatiza a presença de inúmeros elementos
culturais, como a prática da pintura corporal, o uso de instrumentos lançadores de
flechas, de artefatos de cerâmica e de ervas medicinais e, principalmente, a técnica
de produzir fogo por atrito. Nesse grupo, percebe-se também uma comunicação em
um nível mais elaborado, com articulação de sons. As práticas rituais e as construções
das habitações denotam uma organização social mais complexa.
O seguinte preâmbulo é apresentado na tela antes da primeira cena:
Há 80.000 anos, a sobrevivência do homem numa vasta terra não
mapeada dependia da posse do fogo. Para aqueles humanos
primitivos, o fogo era um objeto de grande mistério, dado que ninguém
tinha domínio sobre sua criação. O fogo tinha que ser retirado da
natureza, conservado aceso, protegido do vento e da chuva e salvo
das tribos inimigas. O fogo era um símbolo do poder e significava
sobrevivência. A tribo que possuísse o fogo possuía a vida.

O fogo era fundamental para a sobrevivência dos vários grupos pré-históricos. A


narrativa mostra seu uso em diversas passagens: para afugentar alguns animais
agressivos, para moldar uma extremidade pontiaguda na madeira em brasa, para
proteger os homens do frio, ao redor da fogueira, para assar a carne. Uma tribo pacífica,
que cultuava o fogo, mas que não detinha o conhecimento para produzi-lo, após ter
sua fogueira apagada num confronto com uma tribo rival, sai à procura de uma nova
chama que garantiria a sobrevivência do grupo. Durante a jornada, eles entram em
contato com outra tribo da espécie Homo Sapiens Sapiens, tecnologicamente mais
avançada, e com eles adquirem novos conhecimentos, inclusive a arte de produzir
fogo. Aprendem também saberes não práticos, como contar histórias, dar risadas e
estabelecer relações amorosas. Na figura do personagem principal, Noha, os autores
recriam interpretações sobre o caminho evolutivo da espécie humana ao mudar das
relações baseadas exclusivamente na dominação para as relações de natureza
emocional. No percurso em busca do fogo, a espécie despertou para a contemplação
do outro e da natureza. Essa contemplação levou-os à indagação, fruto da curiosidade,
virtude que nos conduziu à faculdade da razão e que nos tornou diferentes das outras
espécies. Pela capacidade contemplativa, o homem aprendeu a amar e a raciocinar,
criou a filosofia e a ciência e fundou a civilização.
A saga do protagonista da história retrata não só a busca pelo fogo que ele
pode encontrar na natureza e que garante a sua sobrevivência, mas também a viagem
ao encontro do fogo simbólico da razão, que garantiu a sobrevivência e a supremacia
da espécie humana sobre as demais espécies vivas. O roteiro focaliza em diversos
momentos o despertar da capacidade contemplativa – quando o líder do grupo se
detém num momento de descanso a olhar para a mulher amada; quando ele e sua
companheira contemplam a lua cheia no céu e no momento seguinte observam o
ventre da mulher grávida. A capacidade de observação e a perplexidade diante do
mundo circundante são fatores essenciais para o desenvolvimento de saberes teóricos,
que levam à compreensão e à explicação da realidade. A contemplação foi o passo
primordial que conduziu a espécie humana à razão, diferindo-a dos outros animais. Nas
passagens citadas, percebemos a referência à contemplação do outro e à
contemplação da natureza. Na sua longa trajetória em busca do fogo, o homem
vivencia o amor, aprende a observar a natureza e o outro, aprende a rir, torna-se
racional. Ao regressar, ele compartilha suas experiências com o grupo e mostra que
aprendeu, também, a contar histórias. Trata-se de um passo muito importante no
aprendizado da preservação da memória. Já são indícios do desejo e do esforço da
humanidade em não desaparecer, que, mais tarde, serão expressos em registros
históricos. O roteirista Fernando Marés de Souza (2008) caracteriza bem esse aspecto do
filme quando afirma que
o protagonista Noah parece haver despertado o poder da contemplação (theoría), a
virtude necessária para desenvolver saberes contemplativos ou teóricos (épistèmé). A
contemplação de Noah o destina para a faculdade da razão (logos); - é pela
contemplação que o homem passa a observar a lua, a rir da tragédia alheia, a contar
histórias, a vivenciar o amor. Ao findar a jornada, o herói Noah agora possui algo que o
difere dos outros animais, dos outros primatas. Ele possui algo que o define humano (on
line).

Informações técnicas:
Título: A Guerra do Fogo
Título original: Quest for fire
Duração: 100 min.
Ano de lançamento: 1981
Direção: Jean-Jacques Annaud
Trilha sonora: Phillipe Sarde
Linguagem especial criada por Anthony Burgess
Linguagem corporal e gestual criada por Desmond Morris
Escrito por: Gerard Brach
Local: França/Canadá
Produção: John Kemeny/Denis Heroux

Elenco: Everett McGill, Rae Dawn Chong, Ron Perlman e Nameer El-Kadi.

Algumas questões para o debate: aquisição da linguagem e produção do


conhecimento; a capacidade contemplativa, a indagação e a aquisição do
conhecimento; a jornada rumo à humanização; a produção da ciência e da
tecnologia e os respectivos contextos socioculturais

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