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PINSKY, Jaime. As primeiras civilizações. 25. Ed. São Paulo: Contexto, 2018, pp.

124.

1. História natural, história social

O homem, diferentemente dos outros animais, teve que adaptar-se socialmente


para que pudesse sobreviver e se perpetuar através das eras; essa adaptação se
deu através da criação de uma cultura: a da caça, a de se vestir, a de se
alimentar, a da fabricação ferramentas, etc. Ou seja, o homem não mais estava
mais longe do comando de sua própria vida, agora ele construía seu próprio
destino. E é nesse momento que se pode distinguir a História Natural e a Social.
No, entanto há de que se passar essa cultura para as futuras gerações e a
linguagem é de extrema importância nisso, pois permite que as tradições sejam
difundidas.

O saber histórico, e aqui também incluso o arqueológico, deve ser feito com
bastante cuidado. As evidências surgem ao acaso, sem o controle dos
pesquisadores. Muitas vezes recorrem-se a uma reinvenção do passado e não a
sua reconstrução. Admitir que não existem “verdades” é o primeiro passo para
que o historiador exerça sua profissão de maneira correta.

No século XIX a ideia de que a ciência tudo resolve se difundiu, em contraste


com que o acontecia na Idade Média e em alguns momentos na Modernidade.
No entanto, isso hoje já não é mais tão bem aceito, visto que, principalmente na
História, há lacunas que nem mesmo os melhores cientistas podem resolver.

O Ramapithecus, tido atualmente como o “patriarca”, acredita-se ter vivido há 12


milhões de anos em regiões que compreendem a atual Europa, Ásia e África.
Eram macacos pequenos e viviam inicialmente em florestas, mas logo foram se
mudando para as savanas. Com o tempo essa espécie teve que adaptar-se e
passaram a se tornar cada vez mais bípede. E isso só foi possível graças à
seleção natural, como diz Darwin. Apesar de poder ser encarado como uma
vantagem, o bipedismo também trouxe prejuízos: os bebês não conseguiam mais
segurar-se em suas mães, logo, a postura ereta também deve que ser adotada
para facilitar o transporte dos mais novos. Além de carregar bebês, a postura
ereta ainda propiciou a esses macacos a possibilidade de carregar ferramentas –
ataque e defesa – para proteger-se no ambiente em que viviam.

A descoberta de fósseis é, como dito anteriormente, ao acaso. Não seguem uma


linha cronológica. E se os fósseis foram encontrados em determinados locais,
não significa que as espécies viveram ali, mas foram fossilizadas naquele local. E
também implica dizer que alguns períodos são mais conhecidos que outros, que
permanecem na obscuridade. Um desses períodos é o da descoberta do
Ramapithecus (12 milhões de anos) até cerca de 3 milhões. Desse período foram
descobertos os fósseis da linhagem dos Australopithecus africanus e boisei. De
início, achava-se que essa espécie era o ancestral direto do Homo sapiens, no
entanto, em 1972 foram descobertos fósseis de uma espécie contemporânea do
Australopithecus, o Homo habilis.

Essa nova espécie possuíam uma estrutura craniana grande e uma postura
quase humana. Logo, os pesquisadores começaram a pensar na hipótese de que
essas duas espécies sejam descendentes do Ramapithecus.

O Homo erectus, que descende diretamente do habilis, foi o responsável por


iniciar a diáspora, partindo da África para a Ásia e Europa. A razão pela qual
levou ele a sair de seu conforto ainda é incerta: pode ser a estabilidade
econômica e domínio tecnológico que permitiram sua saída e também o próprio
desejo de aventurar-se, ou ambos ou nenhuma destas. O Homo erectus
assustaria qualquer um de nós devido a sua aparência, embora haja
semelhanças com os humanos atuais: seu corpo assemelha-se a de um homem
robusto, mas a sua cabeça achata e maxilares proeminentes assustariam. O
arredondamento da cabeça e a redução dos maxilares só deve ter acontecido
com o surgimento do Homo sapiens há 500 mil anos e do Homo sapiens sapiens
há 50 mil anos. Do erectus descendem os sapiens neanderthalensis. Todos
esses descendem daquela espécie que deixou a África.

A capacidade de mobilidade permitiu que aquele Homo saísse de seu conforto: a


capacidade de transportar alimento, água e fogo. Além disso carregavam consigo
a sua própria experiência, que era transmitida através da linguagem. E apesar de
se pensar que esse Homo tenha se aventurado e seja mais evoluído do que os
que ficaram, essa é uma concepção falsa. Nada indica de que os que resolveram
ficar sejam menos evoluídos que o que saiu daquela terra.

O historiador tem que ter cuidado no seu trabalho, em afirmar certas coisas. Se
há o abandono de evidências, pode criar uma aventura de ficção; por outro lado,
se não trabalha com hipóteses e suposições pode tornar a história uma narrativa
rígida e sistemática. Não se sabe ao certo que levou o Homo erectus a sair da
África há um milhão de anos atrás. Os riscos podem não ter sido calculados.
Pode-se supor que a vontade humana, o poder decisório desta espécie
prevaleceu, ou seja, o espírito de aventura pode ter levado o erectus a sair do
seu conforto.

O autor, contudo, não afirma e apenas supõe. A humanidade, o processo de


humanização em si, diz ele, é consequência desse desejo de aventurar-se.
Pode-se perguntar o porquê de ter sido aquele Homo erectus e não outro, mas
essa pergunta jamais poderá ser respondida, uma vez que, não existe dois
homens iguais entre si. A subjetividade humana é parte essencial do
condicionamento histórico. É preciso atentar-se que certas sensações e
sentimentos não são históricos. Ou seja, não seria anacronismo pensar naquele
erectus como um curioso, levado pelo próprio desejo de aventurar-se.

2. Caçadores e coletores

O historiador, aquele que trabalha com o passado, está munido apenas de


alguns fragmentos do passado e, portanto, não pode fazer afirmações universais
e que não podem ser questionadas. Utilizando-se de uma teoria ou um método, o
historiador, através da aparência, tenta chegar à essência das coisas. No
entanto, o profissional que lida com o passado, principalmente o mais longínquo,
não tem acesso à aparência. E fica difícil precisar o que de fato aconteceu, por
exemplo, com aquele Homo erectus que partiu do continente africano para a Ásia
e Europa.

Há na ciência contemporânea vários métodos para tentar recompor o passado e


torna-lo mais apresentável, são três formas mais comumente usadas: 1) o
raciocínio lógico e a teoria; 2) escavações e análise de vestígios; 3) observação
de grupos contemporâneos que, supostamente, seguem um padrão de vida
primitivo. O primeiro tipo de análise é bastante limitado, e se o historiador ou
pesquisador fixar-se a ela pode acabar ocorrendo em preconceitos. Era comum
no século XIX dividir as sociedades em “civilizadas” (as complexas) e as “pré-
civilizadas” (as simples ou primitivas). Essa diferenciação dava-se analisando a
tecnologia das sociedades que estavam em estudo, e a premissa básica era de
que toda sociedade passava pelo estágio primitivo e iria evoluir. Ou seja, a
adoção de tecnologias que surgiram e se consolidaram na Europa era o estágio
final da humanidade. As comunidades “primitivas” eram vistas assim por não
terem a tecnologia do século XIX, eram tratados como crianças, de crenças
baseadas em superstições e uma arte ingênua. A acumulação material tornou-se
símbolo de civilização, mas é impossível negar que tudo isso esteja carregado de
etnocentrismo. Não há nada para se aprender com os nossos antepassados?

A resposta veio no século XX: sim. A ideia de que a ciência tudo resolve e a da
sabedoria contemporânea foram caindo por terra, e buscou-se aproximar de
algumas tradições e descobertas do passado. Havia uma certeza que o
hominídeo originava-se na Europa, o que não é o caso. Isso levou pesquisadores
e cientistas a questionarem a si mesmos o que eram esses “primitivos”. Para
tanto, resolveram analisar algumas espécies de primatas e algumas tribos
humanas que sobrevivem da caça e da coleta. Os relatos surpreendem pelo alto
nível das sociedades encontradas.

Um dos estudos de maior sucesso foi o realizado por pesquisadores de Harvard


em uma comunidade dos !Kung, que vivem no deserto de Calaari entre Angola,
Namíbi e Botsuana. Eram grupos de até no máximo trinta pessoas, para não
prejudicar a mobilidade social e também o abastecimento de alimentos no grupo.
Os acampamentos eram temporários. No meses de seca a situação muda: cerca
de cinco ou seis grupos se reúnem em único local que seja fonte de água e se
congregam durante esse período. A busca por alimentos é mais difícil haja visto
que o grupo aumentou em mais de 100%. Assim que a chuva recomeça, os
grupos separam-se. E é nesse momento que os grupos passam por renovações:
há cisões, acréscimos internos, etc. A cultura dos !Kung representada pelas
danças, canções e histórias é tão rica quanto a de qualquer outro povo. O grupo
divide as tarefas por gênero: homens caçam e mulheres coletam, estas são
responsáveis por mais de 70% da dieta do grupo. O trabalho semanal de homens
e mulheres nesse grupo correspondem a quase totalidade da média que é aceita
nos dias de hoje para a nossa sociedade.

A hipótese de que o Homo erectus saiu da África há 1 milhão de anos atrás por
questões de sobrevivência é posta em prova quando constata-se que o número
de indivíduos que saiu do continente é bastante pequeno. Há 100 mil anos
acredita-se que a população africana era dez vezes superior à de todo o globo. E
todos essas espécies eram caçadores-coletores.

O Erectus deu lugar ao Homo neanderthalensis e ao Homo sapiens fossilis.


Ainda é especulado o motivo pelo qual o homem de Neanderthal não vingou. Há
várias hipóteses: não conseguiu evoluir para sobreviver a uma determinada
mudança climática, genocídio provados pelos sapiens sapiens. Alguns cientistas
afirmam que o sapiens e os neandertais cruzaram-se entre si e algumas
características deixaram de existir com o tempo.

A caça e coleta vingou até 10 mil anos atrás, e perdeu fôlego com a adoção
definitiva da agricultura, o chamado período da grande revolução. A partir daí a
relação homem e natureza mudou, a História da humanidade havia finalmente
começado. A revolução não ocorreu acidentalmente e nenhuma outra espécie
poderia ter feito isso. Os hominídeos são dotados de capacidades que nenhum
outro animal é, por exemplo, o de criar ferramentas para atender demandas
específicas e o domínio do fogo. A Revolução Agrícola estava surgindo.

3. Agricultores e criadores

O advento da agricultura ocorreu de forma heterogênea nas mais diversas


regiões em que fora implantada, causa por motivos diferentes e contextos
históricos também diferentes. Costumava-se ter a ideia, através de uma
concepção evolucionista, de que obrigatoriamente haveria de ter essa passagem
da caça e coleta para a agricultura para simbolizar o surgimento de uma
sociedade “civilizada”. A caça e a coleta, segundo alguns, seria uma atividade
insegura e que só a agricultura seria segura o suficiente para garantir a
subsistência do grupo. No entanto, essa ideia mostrou-se incompleta: os campos
agrícolas não são totalmente seguros, uma vez que estão a mercê de
intempéries naturais como secas, pragas ou enchentes. Um grupo de caçadores-
coletores, por sua vez, como estavam em constante contato com a natureza
poderiam segurar-se de defender-se de problemas como escassez, por exemplo,
mudando sua localidade. Esse caráter necessário e positivo da passagem da
caça-colete para agricultura deve ser questionado.

Acredita-se que a primeira atividade agrícola aconteceu há 10 mil anos na região


de Jericó, em um oásis próximo ao Mar Morto. Há também a hipótese do Egito
ter sido o pioneiro na agricultura, mas essa ideia agora tem poucos adeptos.
Para poder datar um período são usados ruínas de silos em que os cereais eram
armazenados, uma vez que os campos de trigo desapareceram com o tempo. O
fenômeno, seja por difusão ou por agentes individuais, chegou na Índia (8 mil
anos), na China (7 mil), Europa (6500), África Tropical (5mil) e nas Américas
(4500). As espécies cultivadas não eram as mesmas e as plantas nativas
predominavam: cereais (trigo e cevada), milho, raízes e arroz.

A Revolução Agrícola tem esse nome porquê de fato mudou a estrutura da


sociedade dos caçadores-coletores. Essa mudança pode ser sentida
principalmente no crescimento das comunidades. Os caçadores-coletores
mantem um grupo pequeno, uma vez que alimentar um grande número de
pessoas era difícil e para manter o equilíbrio ambiental, as reservas de alimentos
não deveriam ser super exloradas. Além disso, o controle populacional servia
também porquê crianças eram empecilhos: dificultavam o transporte e também
na obtenção de alimentos, já que não conseguiam nem caçar nem colher.

Por sua vez, os grupos agrícolas tiveram que adotar a prática do sedentarismo,
mesmo que por um tempo, para poder obter lucro de suas plantações. E neste
período as crianças não eram mais um empecilho, agora elas poderiam trabalhar
na lavoura. A pouca mobilidade, trabalho infantil e reservas alimentares mais
abundantes o boom demográfico foi possível. Os grupos nem sempre ficavam
juntos, havia a reprodução mas também a subdivisão destes grupos. E esses
processos de divisões e deslocamentos propiciaram a difusão da agricultura e da
criação de animais. A difusão cultural é também característica essencial da
Revolução. A Revolução Agrícola era fácil de cooptar caçadores-coletores,
tornando-se praticamente irresistível e destrói todas as formas de existência que
a precedeu.
Acredita-se que a criação de animais é posterior ao surgimento da agricultura. O
historiador Gordon Childe pontua que a atividade pastoril deve ter surgido como
uma consequência de uma grande seca no Oriente Médio. A seca levou os
animais a procurar abrigo em algum oásis, e ali estava animais selvagens e
também o homem. O homem abriga esses animais e fornece alimento, afasta os
predadores e a história da domesticação começaria dessa forma. Os animai
confinados ora serviam como reserva de caça, ora eram expulsos pelos
agricultores quando chegava o período de plantação. Há também aqueles que
mantinham os animais em lugares-conforto para protege-los. O rebanho tornava-
se dependente do homem. O homem pode ter observado vantagens na criação
destes animais observando seu comportamento: a produção de esterco e de leite
e, mais tarde, o couro e a lã. No entanto, a atividade pastoril ainda era tida como
complementar, secundária à agricultura.

A economia pastoril foi se intensificando e expandido para outras regiões através


do tempo, tornando-se cada vez mais importante. Na Arábia e na Ásia central
tinha a criação como sua atividade central. Mas isso não significa que não
tenham passado pela Revolução Agrícola.

A palavra revolução pode levar a afirmações precipitadas, por exemplo, a de um


evento que ocorre de forma rápida. E isso não acontece. A Revolução Agrícola
não aconteceu de um dia para o outro, muito pelo contrário, foi necessário um
tempo enorme até que se tornasse a atividade principal do homem. Esse
processo inclui a percepção de fenômenos naturais, a acidentalidade, a criação
de teorias e métodos. Não é de se espantar a ideia de que agricultura e coleta
tenham sido atividades que aconteciam ao mesmo tempo durante o período
inicial da Revolução.

Com a agricultura haverá, pela primeira vez, a produção de excedente. Com isso,
os grãos produzidos devem ser guardados e consumidos lentamente para que
possa durar até a próxima colheita; além disso, parte desses grãos serão
utilizados como sementes. Começa a prática da poupança dos alimentos e
também da criação de locais para armazenar esses grãos. A produção de
excedente juntamente com a atividade pastoril produziria uma estabilidade
econômica e social para os grupos, que culminaria num posterior surgimento de
um pequeno comércio. É necessário atentar-se para o fato de que as trocas
entre grupos vizinhos eram comuns mesmo com a independência destes grupos.

A diversidade dos grupos não pode ser suplantada achando que todos os povos
do período compartilhavam de uma mesma cultura. Deve-se considerar o
ambiente em que vivem, a fauna e a flora, o tipo de matéria-prima disponível, etc.
Não existe uma cultura neolítica, mas sim culturas.

Os caçadores-coletores já realizavam uma divisão sexual das tarefas: o homem


caçava e a mulher coletava. Na atividade agrícola a divisão continuou, mas com
uma dinâmica totalmente diferente: os homens abrem caminho para o plantio, e
as mulheres ficam responsáveis por toda a rotina da lavoura. Além da rotina
doméstica, as mulheres eram as responsáveis por toda a produção agrícola. E
mesmo assim o homem era considerado o líder, mesmo tendo um trabalho
ínfimo na produção. A dominação masculina dava-se através de mitos, ritos e
instituições que garantem o seu poder. Na atividade pastoril o homem tinha um
papel mais ativo na produção, o que deixava as mulheres numa posição ainda
mais submissa. A força física é um aspecto importante no jugo masculino sobre o
feminino. No período neolítico, apesar da dominância dos homens, não havia
vantagens sobre isso; não havia a expropriação do excedente por determinado
grupo. Era uma sociedade igualitária, mas entre os homens a igualdade era
muito mais latente.

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