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ENTRE O DIABO, O PURGATÓRIO E O SINCRETISMO: A VIVÊNCIA

RELIGIOSA NA COLÔNIA “VERMELHA”, O BRASIL.

Falar das vivências religiosas no que se convencionou em chamar de Brasil é,


antes de tudo, um exercício mental e histórico cujo objetivo maior é entender a gênese
de elementos que estão presentes no cotidiano de todo o brasileiro seja através de
tradições, da transmissão de veículos midiáticos e até do próprio medo. Retornando à
tempos distantes, mais precisamente àquele em que o país ainda era colônia,
conseguiremos ter em vista as práticas, credos e usos de poder que abarcavam a
religiosidade colonial e que constituíram a história destas terras.

Inicia-se então pelos povos indígenas. Estes que costumam ser coadjuvantes de
sua própria história, serão aqui apresentados como protagonistas cuja atuação será de
fundamental importância. As etnias que aqui viviam não eram, como os primeiros
cronistas relatavam, grupos homogêneos; pelo contrário, distinguiam-se entre em si em
vários aspectos. A religiosidade não seria diferente. O que foi legado pelos viajantes
europeus foi a descrição isolada e superficial de rituais tupinambás que não
representavam a totalidade das práticas religiosas indígenas.

Os europeus se viam obrigados a homogeneizar a cultura nativa porque eles


mesmos viam-se como um todo igual e imóvel. As diferenças eram ocultadas ou
discriminadas. A imagem cristã europeia, portanto, é fragmentária e não corresponde a
multiplicidade de sentidos que teceu na colônia luso-americana. A cristandade brasileira
é marcada sobretudo pela confluência de credos e práticas que, por sua vez, deram
originalidade à religião brasileira.

É importante destacar a visão primeira da terra brasílica: a materialização do


próprio purgatório. A instauração da cruz após a chegada de Cabral e a nomeação do
novo território como Terra de Santa Cruz são significativas para percebermos o impacto
dos ideais religiosos para os homens que embarcavam no Novo Mundo. O Brasil, ao ser
assim denominado, rompeu com os planos catequizantes e tornou-se, na visão de alguns
cronistas, a própria imagem das chamas vermelhas (alusão a cor do pau-brasil,
importante gênero comercial nos primeiros momentos da colônia) do inferno.
Transformado em inferno ou em lugar de castigo, o Brasil logo foi se tornando o
epicentro da ação do Diabo e de seus ajudantes. A aproximação de ritos religiosos
indígenas, africanos e até àqueles sincréticos aproximavam-se, na visão europeia, de
suas crenças em relação à bruxaria e a feitiçaria. Foram os europeus que trouxeram os
demônios à América.

Aos jesuítas se deve a inserção do catolicismo do Brasil. Na colônia imperava-se


o padroado, caracterizado pelo afastamento do poder papal romano. O elo que ligava o
poder eclesiástico à prática religiosa colonial era frágil e proporcionou a abertura de
caminhos que levaram a arguição de lideranças outras que não as desejadas pela Igreja.
Em resposta ao regime do padroado, os jesuítas atribuíam a eles a situação caótica em
que se encontrava a colônia relacionando sua crítica a existência de “práticas
demoníacas”, em outras palavras, ao sincretismo religioso. A permissividade dos padres
seria a culpada pela degeneração dos ensinamentos cristãos dos colonos.

De maneira geral, a crença dominante no interior da colônia encontrava-se


baseada na visão dicotômica entre o bem, representado por Deus, e o mal, tendo o
Diabo como líder. Contudo, Laura de Mello e Souza nos mostra bem que a vivência
religiosa era heterogênea, ou seja, os colonos viviam a seu modo e regras à religião a
qual mais lhes aprazia. Não significa, entretanto, que não pudessem ser repreendidos
por isso; os autos inquisitoriais nos mostram que nem sempre escapavam impunes a
suas práticas heréticas.

O sincretismo religioso suplantou o desejo português de implantar a


cristianização em toda a colônia. Destacam-se aqui o sincretismo religioso africano que
poderia absorver elementos da fé cristã para si própria, como poderia adicionar ao
cristianismo aspectos ritualísticos de suas crenças originais; a mescla de práticas
religiosas indígenas com o cristianismo tem seu maior símbolo no evento das
santidades, estas seriam caracterizadas pela divinização de um homem, um messias, que
traria liberdade aos nativos que estavam sob o jugo dos colonizadores.

A aparente normalização das práticas sincréticas poderia, em um primeiro


momento, ser questionada pelo aspecto da fragilidade já citada do poderio dos agentes
eclesiásticos na consolidação da fé cristã na colônia, mas também pode ser colocada
como uma estratégia de controle social. Deste modo, permitir práticas religiosas que
surgissem dentro de determinados grupos sociais ou comunidades era garantia de que
não houvessem desagrados que pudessem colocar em risco o domínio dos colonos. Era
uma prática que não agradava os membros mais elevados do clero e por alguns jesuítas.
O clima de tensão era inevitável.

Destaco aqui grupos que sobressaíram como agentes de transgressão à


religiosidade cristã católico-romana: os judeus, os indígenas, os negros escravos e a
própria população da colônia que seguiam preceitos cristãos. Estes últimos poderiam,
por exemplo, negar o culto aos santos, à Virgem e em Jesus Cristo e afirmar apenas o
poder ao Deus todo-poderoso. Os judeus praticariam a sua fé com mais liberdade em
algumas regiões e em outras menos, tendo que recorrer à clandestinidade ou a mescla
com o cristianismo. “Entretanto, toda a multiplicidade de tradições pagãs, africanas,
indígenas, católicas, judaicas não pode ser compreendida· como remanescente, como
sobrevivência: era vivida, inseria-se, neste sentido no cotidiano das populações. Era
vivência. “ (SOUZA, 1986, p. 98-99).

Falar de religiosidade popular colonial, levando em conta a multiplicidade de


fatores, um tema bastante abstrato já que se pode optar por caminhos que não
necessariamente se cruzam um com o outro, podendo acarretar em esquecimentos
(inconscientes ou não) e em construção de imagens negativas de crenças diversas. A
religião cristã não era original, não era pura; fundia-se, na verdade, com as culturas
indígenas, africanas, judaicas, asiáticas, etc.

Os dogmas e os símbolos religiosos advindos do credo cristão encontravam uma


dificuldade de serem absorvida pela população colonial: a tendência a uma crença do
“toma-lá-dá-cá” era um empecilho gigantesco, uma vez que a religião tinha como
responsabilidade a troca de favores com seus agregados. A violência, o sofrimento, a
inoperância divina, o caráter “livre” de algumas almas e outros fatores contribuíam para
a descrença aos dogmas.

A própria imagem da Virgem Maria era imbuída de contrariedades: era


apresentada como milagreira ora como símbolo de luta, guerreira. Revelava-se na
desconfiança à figura dela a desconfiança que tinham os homens em sua condição de
mulher; “seria ela mesma uma virgem?” e outras questões se colocavam como barreiras
que impediam a devoção à Maria, mãe de todos.

Contrariando, talvez, o pensamento de que não houvessem discussões a respeito


dos credos coloniais, Laura de Mello e Souza nos apresenta uma realidade onde o
questionamento era concreto e rotineiro. Discussões a respeito do Juízo Final, da
existência do Purgatório e a Vida Eterna eram alvos certeiros do falatório cotidiano da
colônia. Assumiam uma consistência frágil no imaginário popular explicado, talvez,
pela sua presença jovial no cotidiano daquelas pessoas.

O próprio medo ao demônio e suas influências negativas eram vividos de formas


opostas de acordo com indivíduos ou grupos. Infelizes por não terem recebido as
benesses que esperavam de Deus, alguns colonos poderia recorrer ao credo ao Diabo.
Tinha-se a ideia também de que a prática da alteridade indígena que consistia em
aprender a conviver com o Diabo era presente na religiosidade colonial.

No cotidiano da colônia, Céu e Inferno, sagrado e profano, práticas


mágicas primitivas e europeias ora se aproximavam, ora se apartavam
violentamente. Na realidade fluida e fugidia da vida colonial, a indistinção era,
entretanto, mais característica do que a dicotomia. Esta, quando se mostrava,
era quase sempre devida ao estímulo da ideologia missionária e da ação dos
nascentes aparelhos de poder, empenhados em decantar as partes para melhor
captar as heresias. O que quase sempre sobrenadou foi o sincretismo religioso.”
(SOUZA, 1986, p. 149)

A colônia brasileira em seu mais íntimo quadro de atores sociais diversos


configura-se, como apontado na citação acima, como um verdadeiro caldeirão
efervescente de culturas, credos e crenças. Essa afirmação, contudo, não deve construir
uma imagem totalizante da vida cotidiana dos tempos coloniais; é um aviso, na verdade,
para que se possa pensar o objeto enquanto possuidor de uma multiplicidade de sentidos
que devem ser observados através das mais variadas perspectivas, pois só assim será
possível caracterizar um quadro social que seja o mais próximo possível da realidade.

REFERÊNCIAS

SOUZA, L. DE M. E. Inferno Atlântico: demonologia e colonização: séculos XVI-


XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

SOUZA, L. DE MELLO E. O diabo e a terra de santa cruz. 1. ed. São Paulo:


Companhia das Letras, 1986.

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