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AS RAÍZES DO PENSAMENTO POLÍTICO-CONSTITUCIONAL

BRASILEIRO

Marcelo Bueno Mendes

1) Universo político-ideológico recepcionado no Brasil na


primeira metade do Século XIX

Não obstante os entraves de ordem material1 para a difusão das ideias


políticas produzidas em solo europeu no século XVIII e início do XIX, circulavam,
de início, pelo Brasil, a despeito da censura, obras de autores ilustres como
Hobbes, Locke, Montesquieu, Voltaire,2 Rousseau, Abade Mably, Raynal,
D’Alembert, Turgot, dentre outros. Num período posterior, próximo à
Independência, a ilustração brasileira tinha acesso livre a Jeremy Bentham,
Adam Smith, Gibbon, De Pradt, Guizot, Edmund Burke, Kant, Gaetano Filangieri
e, sobretudo aos escritos de Benjamin Constant.3
Ao analisar as raízes do liberalismo pátrio e suas especificidades,
Wolkmer alerta-nos acerca da “clara distinção entre o liberalismo europeu, como
ideologia revolucionária articulada por novos setores emergentes e forjados na
luta contra os privilégios da nobreza, e o liberalismo brasileiro canalizado e
adequado para servir de suporte aos interesses das oligarquias, dos grandes
proprietários de terra e do clientelismo vinculado ao monarquismo imperial.” 4

1
Emília Viotti da Costa enumera: o analfabetismo, a marginalização do povo da vida política e a
deficiência dos meios de comunicação. Veja-se: Da Monarquia à República – Momentos
decisivos. 7. ed. São Paulo; UNESP, 1999, p. 30.
2
Para a inglesa Maria Graham, no Brasil “dos que leem assuntos políticos, a maior parte é
discípula de Voltaire e excede-se nas doutrinas sobre política e igualmente em desrespeito à
religião” (Vide: GRAHAM, Maria. Diário de uma viagem ao Brasil (1824). São Paulo:
Itatiaia/USP, 1990, p. 182.
3
Corrobora essa tese o artigo de Iara Liz Schiavinatto. Questões de poder na fundação do Brasil:
o governo de homens e de si (c. 1780-1830). In: MALERBA, Jurandir (Org.) A Independência
brasileira- Novas dimensões. Rio de Janeiro: FGV, 2006, nota 24 da p. 217. Dos historiadores
clássicos, indicamos a obra de Octávio Tarquínio de Sousa, mormente: A mentalidade da
constituinte. Rio de Janeiro: Barthel, 1931, p. 153.
4
WOLKMER, Antonio Carlos. História do Direito no Brasil. 3. Ed. Rio de Janeiro: Forense,
2005, p. 75.
As ideias políticas que alicerçaram movimentos como a Revolução
Americana de 1776 e a Revolução Francesa de 1789 não obtiveram eco no
Brasil. Afora alguns homens de luzes e espíritos libertários (v.g. Cipriano Barata
e Frei Caneca), o grosso da população ficou ao largo de experiências
revolucionárias. Wolkmer ressalta que a ausência “de uma revolução burguesa
no Brasil restringiu a possibilidade de que se desenvolvesse a ideologia liberal
nos moldes em que ocorreu em países como a Inglaterra, França e Estados
Unidos.”5
O universo ideológico que se consolidou no Brasil do fim do século XVIII
e início do século XIX, sobretudo no período pré e pós-independência,
pressupunha a preservação das instituições vigentes. Figuras importantes da
política luso-brasileira, como as de Conde Linhares (Rodrigo de Souza
Coutinho), José da Silva Lisboa (Visconde de Cairu), Silvestre Pinheiro Ferreira,
e José Bonifácio (com o auxílio de seus dois irmãos: Antonio Carlos e Martim
Francisco), mau grado suas idiossincrasias culturais, que aproximava ou
distanciava suas práticas políticas 6, contribuíram para a inculcação desse
imaginário.
Esta elite coimbrã, em menor ou maior grau, estava identificada com a
aristocracia proprietária, mormente, a dos proprietários rurais. Esse grupo de
homens ilustrados, segundo Arno Wehling, consagrou “um referencial negativo,
isto é, era-lhes bem claro o que não conviria ao país: a guerra civil, como
começava a ocorrer na América hispânica; a fragmentação política, como se
dera no vice-reino do Prata, permanente espelho político; a ditadura
republicana, como acontecera com a Convenção jacobina; a rebelião dos
escravos, como sucedera no Haiti.” 7 (os grifos são nossos)
Expressões como: guerra, anarquia, desordem, fragmentação, ditadura,
tirania, rebeliões, revoluções, entre outras, foram propagadas como forma de
representação social com o intuito de modelar comportamentos, de assimilar

5
WOLKMER, Antonio Carlos. Ideologia, Estado e Direito. São Paulo: RT, 1989, p.97.
6
Para uma distinção mais detida a respeito do discurso liberal de Cairu, José Bonifácio e Hipólito
José da Costa, veja-se: Isabel Lustosa. Cairu, panfletário: contra a facção gálica e em defesa do
trono e do altar. In: NEVES, Lúcia Maria Bastos P.; MOREL, Marco & FERREIRA, Tânia Maria
Bessone da C. História e imprensa- representações culturais e práticas de poder. Rio de
Janeiro: DP&A/FAPERJ, 2006, pp.293-294.
7
WEHLING, Arno. Ruptura e continuidade no estado brasileiro, 1750-1850. In: Revista
Electrónica de História Constitucional. Espanha. n. 5 – junho de 2004, p. 3. Disponível na
internet em: http://hc.rediris.es/05/Numero05.html?=09[13.02.08], acesso às 21:03h.
hábitos e atitudes. Projetos de dominação que sustentavam e perpetuavam as
relações de poder, exigiam, além do uso da força e de retribuições materiais
perpetrados por dominantes aos dominados, recursos simbólicos e imagísticos
que impusessem comportamentos à sociedade e que impedissem resistências
ou oposições.
Recorrendo a Bourdieu e Passeron, podemos notar que os atores sociais
que assimilaram o habitus8 a se reproduzir no Brasil, inconscientemente,
absorveram a cultura dominante. Por sua vez, as classes dominadas, destituídas
do “capital linguístico” que as segregava, agiram contrariamente às suas
convicções entrando no jogo de inculcação da classe dominante, acatando
tacitamente a institucionalização da violência simbólica, que era ignorado como
arbitrário. Esta violência simbólica manifestou-se de forma invisível. O arbitrário
cultural que inculca um aquiescer cúmplice de dominantes e dominados (para os
que se sujeitam à violência simbólica e para os que o exercem) necessariamente
deve demonstrar-se ignorado.
Indo mais além, perpetuar-se no poder impõe um constante legitimar-se.
As relações de força entre classes (ou grupos) dominantes e dominados que
integram determinada formação social necessitam de uma comunicação
pedagógica que inculque certas significações legitimadoras. Daí a perpetração
das ações pedagógicas (AP) que impõem arbitrários culturais dominantes de
reprodução de uma estrutura social, ou seja, “o domínio do arbitrário cultural
dominante, contribuindo por esse meio à reprodução das relações de força que
colocam esse arbitrário cultural em posição dominante”.9 Entrementes, é
condição de exercício da AP o desconhecimento social de sua verdade objetiva.
Assim, para que se realize a AP inculcadora é mister a atuação de uma
autoridade pedagógica (AuP) legitimadora das imposições do arbitrário cultural.
Portanto, para a consagração duradoura das AP promovidas pelas AuP, os
destinatários das AP devem recepcioná-las com credibilidade, isto é, a

8
Para uma análise mais aprofundada dessa categoria conceitual indicamos: BOURDIEU, Pierre.
O Poder simbólico. 5.ed. Rio de Janeiro: Ed. Bertrand Brasil, 2002, pp..59-73; BOURDIEU,
Pierre. Razões práticas – Sobre a teoria da ação. 7. ed. Campinas: Papirus, 2005, pp. 21-22 e;
BONNEWITZ, Patrice. Primeiras lições sobre a sociologia de Pierre Bourdieu. Petrópolis:
Vozes, 2003, p.77.
9
BOURDIEU, Pierre & PASSERON, Jean Claude. A reprodução: elementos para uma teoria
do sistema de ensino. 2. Ed.. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982, p. 25.
durabilidade das AP “é tanto maior quanto elas se aplicam a grupos ou classes
mais dispostos a reconhecer a AuP que os impõe”. 10
Como cultura legítima e detentora do poder de imposição da violência
simbólica, a AuP, uma vez desconhecida a verdade objetiva dos arbitrários
culturais dominantes, recebe por delegação dos dominados a autorização para
o exercício das AP. Ações estas que têm por “função principal, senão única,
reproduzir o estilo de vida de uma classe dominante ou de uma fração da classe
dominante”.11
Da mesma forma que as AP implicam a atuação de uma AuP que lhe dê
sustentabilidade, também a continuidade ou durabilidade dos arbitrários culturais
necessita de um trabalho pedagógico (TP) que produza um habitus a perpetuar-
se. Como substituto da repressão física, TP “permite ao grupo ou à classe que
delegue à AP sua autoridade de produzir sua integração intelectual e moral sem
recorrer à repressão externa e, em particular, à coerção física”.12 Além disso, o
TP confere condições de durabilidade ao exercício da AuP, logo, legitimando as
AP e os arbitrários culturais inculcadores.
Para Bourdieu e Passeron, é na realização dos TP que o
desconhecimento da verdade objetiva do arbitrário cultural se mostra de forma
mais crua, uma vez que o TP prolongado de inculcação tem o poder de “fazer
esquecer” o arbitrário da AP. Sob a alegação de mantença da ordem, os grupos
dominantes forcejam o “reconhecimento da legitimidade de sua cultura” por
intermédio de disciplinas e censuras “que servem tanto melhor aos interesses,
materiais ou simbólicos, dos grupos ou classes dominantes, quanto mais tomam
a forma da autodisciplina e da autocensura.” 13
De mais a mais, para confirmar e manter-se o habitus dominante os
destinatários legítimos de uma imposição simbólica devem estar “dotados do
habitus adequado”. O que isso significa? Os grupos dominantes restringem as
categorias receptadoras das AP de modo a inculcar um TP que dissimula “melhor
e mais completamente que qualquer outra o arbitrário da delimitação de fato de

10
Idem, obra citada, p.35.
11
Idem, ibidem, p. 42.
12
BOURDIEU, Pierre & PASSERON, Jean Claude. A reprodução: elementos para uma teoria
do sistema de ensino. 2. ed... Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982, p. 47
13
Idem, obra citada, p. 52
seu público, impondo assim mais sutilmente a legitimidade de seus produtos e
de suas hierarquias.”14 .
A despeito de Bourdieu e Passeron conformarem sua teoria ao sistema
de ensino (SE), a função e condição de estabilidade institucional de que fazem
referência para a reprodução dos arbitrários culturais inculcatórios ajusta-se
perfeitamente à tese que pretendemos demonstrar, qual seja: de que assim
como no sistema de ensino, aqueles que estão à testa do poder do Estado
necessitam de um “corpo de especialistas” homogêneo que perpetre a
continuidade das inculcações.
Novamente, abstraímos do foco da obra dos autores em análise para
reforçar a nossa proposição. Consoante Bourdieu e Passeron, é nos trabalhos
acadêmicos que se institucionaliza a reprodução dos arbitrários culturais. Vamos
além, como a arte de reprodução institucional requer a atuação de especialistas
de “formação homogênea” para instrumentalizar práticas homogeneizantes, no
Brasil das primeiras décadas de 1800, também havia um corpo de especialistas,
homogêneos ou homogeneizados, no qual recaia a atribuição de assegurar a
ortodoxia das políticas públicas, impedindo toda a prática (heterogênea e
heterodoxa) que não coadunasse com a função de reproduzir os arbitrários
culturais homogeneizantes.
Contrariamente às suas convicções “ideológicas”, os atores sociais
dominados assimilaram o habitus do sistema dominante reproduzindo arquétipos
de poder que valorizavam a violência simbólica, buscando meios, inclusive, para
justificá-los.
Essa imposição de vontades particulares, sufocando as mudanças
culturais que poderiam ser promovidas pela vontade coletiva, sustentou as
políticas públicas praticadas no Brasil nas primeiras décadas do século XIX.

2) Miopia na interpretação da realidade histórica

Ideologicamente avessos à democracia, mas nutridos de uma filosofia


política mascarada de liberal, a ilustração brasileira converteu-se ao

14
Idem, ibidem, p. 61
constitucionalismo restaurador. É dizer, o princípio filosófico de que se adestrou
a ilustração do Brasil ajustou-se a uma política oficial que, por intermédio do
constitucionalismo, pretendia a conservação estrutural do Estado brasileiro.
O primeiro passo para a conservação seria desmantelar qualquer esforço
de liberdade radical. Havia os oficialmente liberais, que estavam à testa do
poder, pregando a monarquia constitucional representativa, que no período de
efervescência emancipatória estava sob o comando de José Bonifácio e seus
irmãos; e aqueles liberais rotulados, pejorativamente, de “exaltados”,
“extremados”, “quiméricos”, “radicais”, “teóricos” e “metafísicos”. Existia uma
espécie de miopia ideológica que engendrou, sobretudo no homem político
brasileiro, uma personalidade histórica afeita à moderação. 15 O liberalismo oficial
revestia-se de legitimidade apoiando o constitucionalismo. O constitucionalismo
era o simulacro do liberalismo, pois se converteu nele. Entretanto, assentava os
seus princípios na proeminência do Estado sobre o indivíduo.
A organização do Estado nacional brasileiro necessitava de um marco
fundador. Este marco seria a criação de uma Constituição que expressasse ao
mundo que o Brasil se fazia, de forma definitiva, independente. Construiríamos
o nosso primeiro semióforo. Analisemos com mais acuidade semântica a
expressão: semióforo. Para Marilena Chaui 16

Semióforo é, pois, um acontecimento, um animal, um objeto,


uma pessoa ou uma instituição (...) são coisas providas de
significação ou de valor simbólico (...). É um objeto de
celebração por meio de (...) comícios e passeatas em datas
públicas festivas, monumentos; e seu lugar deve ser público (...)
locais onde toda a sociedade possa comunicar-se celebrando
algo comum a todos e que conserva e assegura o sentimento
de comunhão e de unidade (...).

Todavia, dentre as muitas acepções consagradas pela filósofa Marilena


Chauí para um semióforo, a que se refere ao sentido de "(...) posse e propriedade
daqueles que detêm o poder para produzir e conservar um sistema de crenças

15
“(...) os homens só podiam navegar em favor da corrente. Na contrarrevolução o pensamento
flutuava e era aniquilado quando tentava ultrapassar a barreira da moderação.” (MERCADANTE,
Paulo. A consciência conservadora no Brasil. 4. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 2003, p. 278).
16
CHAUI, Marilena. Brasil - Mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Ed. Fundação
Perseu Abramo, 2000, p. 12.
17
ou um sistema de instituições que lhes permite dominar um meio social" ,
adquire maior relevância para esta análise.
Um semióforo é objeto de disputa pelos grupos hierarquicamente
detentores do poder, seja ele político, religioso ou econômico. Como são alvo de
disputas ferrenhas, caso não os adquiram, fomentam a sua produção. Os
monumentos celebratórios e as datas festivas pelos feitos heroicos são
semióforos. A nação, que é o semióforo fundamental e matriz dos demais
semióforos, está à mercê do poder político que precisa construir e conservar
mitos simbólicos que atuem no imaginário popular de maneira que cristalize a
unidade e indivisibilidade dessa nação.
José Bonifácio, o mais importante intelectual orgânico do período pré e
pós-independência, colaborou para a disseminação do horror às ideias
republicanas em solo brasileiro. Esforçou-se para sedimentar uma certa
identidade no comportamento político do brasileiro para a convicção moderada,
afastando-se das ações radicais, optando pela conciliação à anarquia
revolucionária. Não obstante a sua efêmera passagem pela chefia de governo
do Império brasileiro (1819 a 1823), o velho Andrada, cooptou prosélitos à sua
ideologia.
Não há como se negar, José Bonifácio era um homem de luzes. Porém,
num aspecto o pensamento do velho Andrada não demonstrou originalidade.
Assim como o fizeram Rodrigo de Sousa Coutinho, José da Silva Lisboa,
Palmela e Silvestre Pinheiro Ferreira (todos integrantes da cúpula do governo
real), o “patriarca” seguia cegamente a razão de Estado dos príncipes. E esta
razão de Estado tinha como principal bandeira a mantença ou restabelecimento
da ordem. O povo deveria manter-se, entorpecidamente, distante dos surtos
revolucionários.18

17
CHAUI, Marilena. Brasil - Mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Ed. Fundação
Perseu Abramo, 2000, p. 13.
18
Essa foi a lição propagada pelo vigário de Vitória, e colega de deputação de Cipriano Barata
na Bahia, Marcos Antônio de Sousa, ao declarar que “depois da fatal experiência da França, não
é mais tempo de se alucinarem os homens com o otimismo político e governo perfeito. República
universal, felicidade perfeita sobre a terra, é quimera; o homem só deve procurar sua felicidade
na moral, nos sentimentos virtuosos, e por consequência na obediência às leis, aos imperantes,
e autoridades legitimamente constituídas. Enquanto se ocupa com o reino de entes metafísicos,
com repúblicas platônicas, e utopias para inteligências puras, enquanto distraído das ocupações
úteis se entrega a vãs teorias, o tempo voa, a sepultura se abre diante dos seus passos.” Citação
retirada da obra de Oliveira Lima: O movimento da independência – O império brasileiro (1821-
Tanto no Brasil quanto em Portugal temia-se pela “erupção oclocrática”;
ou seja, o termo oclocracia, nas três primeiras décadas do século XIX, aparecia
insistentemente no vocabulário político designando “o exercício caótico do poder
pelas camadas inferiores do povo”, o que significava, para a elite comandante a
institucionalização da “anarquia”19.
Estão enganados aqueles que acreditam que D. João VI e D. Pedro I
foram figuras de menor expressão histórica. Diante das tibiezas do pai e dos
arroubos do filho, fica-nos a impressão, que amiúde se propaga, de que não
fosse o assessoramento de homens de luzes nas chefias de Governo e nos
principais cargos áulicos, o Brasil se fragmentaria geográfica e ideologicamente.
D. João e D. Pedro foram educados para exercer o poder. E, fundamentalmente,
para permanecerem hegemonicamente à testa dele. Eles escolheram os
homens certos para a criação e propagação de imaginários inculcatórios de
conservação. Todos aqueles que os assessoravam tinham o perfil afeito àquilo
que, consoante García-Pelayo, designava-se: criptoabsolutismo.20
O Estado monárquico constitucional que emergia e iria confeccionar
nossa primeira Carta Magna não pretendia “fazer tábua rasa”. 21 O sistema
absolutista autoritário do fim do século XVIII e início do XIX ainda concebia
amplas prerrogativas ao Príncipe e às autoridades administrativas. Denominava-
se este modelo de doutrina, segundo Garcia-Pelayo, de “Estado-autoridade”
(Obrigkeitsstaat). O Estado monárquico constitucional, que se propunha para o
Brasil, ocultava em sua essência a seiva do Estado-autoridade.22

1889). 4. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1962, p. 256. Conforme Oliveira Lima, as ideias do
vigário Marcos Antônio de Sousa eram próximas às propensões ideológicas de Antônio Carlos.
19
SARAIVA, José Hermano. História de Portugal. Lisboa: Ed: Publicações Alfa, 1993, p. 328.
O termo utilizado por Carl Schmitt é: “oclocracia gentílica” (p.102) ao se reportar à obra do
historiador judeu alexandrino Philo quanto à Monarquia Divina como forma de refutação à
poliarquia e oligarquia. Conforme Schmitt: “A unidade do monarca é vista como constituição,
apresentação e manutenção da ordem estabelecida e como uma unidade da paz.” (Veja-se:
Teologia política. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 104).
20
GARCÍA-PELAYO, Manuel. El Estado de partidos. Madrid: Alianza, 1996, p.17. Segundo
João Scantimburgo convivíamos com” (...) o absolutismo prático sob as vestes de liberalismo
aparente.” (Vide: O Brasil e a revolução francesa. São Paulo: Pioneira, 1989, p. 270).
21
Caminhávamos em direção contrária aos princípios revolucionários de 1789. Consoante
Tavoillot “as duas molas principais da Revolução [seriam]: o ódio ao privilégio e a ideia de tábua
rasa.” (Veja-se: TAVOILLOT, Pierre-Henri. Fundação democrática e autocrítica liberal: Sieyès e
Constant. In: RENAUT, Alain (Dir.). História da filosofia política – As críticas da modernidade
política. Lisboa: Instituto Piaget, 2002, p. 86).
22
Na dicção de Raymundo Faoro: “É o liberalismo como tática absolutista.” (Vide: Existe um
pensamento político brasileiro? São Paulo: Ática, 1994, p. 79).
Além da representação simbólica de um príncipe demiurgo, ou
taumatúrgico na linguagem de Marc Bloch, que se procurava preservar do antigo
regime, a família real portuguesa e brasileira, a fortiori, empregou ardis que
surpreenderiam aos mais astutos estadistas. Assim o diga Napoleão em 1808.
Como salientamos páginas atrás, além do patriarca José Bonifácio,
outros homens de luzes, que também compuseram o aparelho estatal, atuaram
ativamente para atender aos interesses da coroa. Analisemos o caso de José da
Silva Lisboa.23
De todos os intelectuais que ocuparam funções públicas nas primeiras
décadas do século XIX, foram de Cairu as críticas mais veementes à doutrina
oclocrática.24 Em suas obras, editadas, principalmente, pela Imprensa Régia de
Lisboa e do Rio de Janeiro, volta e meia se lia narrativas extensas acerca dos
horrores revolucionários e das convulsões políticas promovidas por seus líderes.
Para Cairú “as revoluções são como terremotos: tudo arruínam e nada
reparam. A sociedade civil, depois das convulsões política, sempre torna a
compor-se de ricos, de pobres, nobres e plebeus, bons e maus, quem manda e
quem obedece. A cena será renovada e unicamente mudarão os atores.” 25 Mas,
sua repulsa aos impulsos apaixonados provocados pela irrupção revolucionária
não se detinha somente na percepção de que as Revoluções eram incapazes de
promover o progresso das nações, mas sim, ao contrário, instituiriam o
despotismo. Noutra passagem dos Extratos, Cairu pergunta-se:

O que se ganha em revoluções? As ambições desordenadas se


desenfream. É preciso confiar a força pública em novas mãos e
concentrá-la na de poucos, ou de algum para resistir-se aos
inimigos internos ou externos. Eis organizada a oligarquia, que
logo finda em ditadura e tirania. Tal é o desfecho das revoluções

23
Pioneiro na divulgação das obras de Edmund Burke e Adam Smith no Brasil e em Portugal,
José da Silva Lisboa é mais conhecido no mundo acadêmico pela honraria que recebera de D.
Pedro I em 1825 (Barão de Cairu) e em 1826 (Visconde de Cairu). A partir de agora
denominaremos o ilustre professor de Economia Política, em que, aliás, também detém o
pioneirismo, de Visconde de Cairu.
24
A propósito desse tema quatro obras de Cairu são pontuais: 1ª) Extratos das obras políticas
e econômicas de Edmund Burke. Rio de Janeiro: Imprensa Régia, 1812; 2ª) Memória dos
benefícios políticos do governo de El-Rey Nosso Senhor D. João VI. Rio de Janeiro:
Imprensa Régia, 1818; 3ª) Estudos do bem comum e economia política. Rio de janeiro:
Imprensa Régia, 1819-20 e; 4ª) Constituição moral e deveres do cidadão, com exposição da
moral pública conforme o espírito da Constituição do Império. Rio de Janeiro: Typografia
Nacional, 1824.
25
José da Silva Lisboa. Extratos das obras políticas de Edmund Burke. Rio de janeiro:
Imprensa Régia, 1812, p. VI.
antigas e modernas; e em alguns o despotismo se firmou para
sempre26

Cairu fora diretor da Imprensa Régia do Rio de Janeiro e,


coincidentemente, o primeiro livro editado no Brasil foi escrito por ele. 27 A
Imprensa Régia serviu de instrumento de propagação das ideias de Cairu e,
como sugere Antonio Penalves Rocha, a literatura difundida pelo economista “se
prestou à contenção das ideias revolucionárias francesas no Brasil.”28
Indagado se no Brasil “as ideias estavam fora do lugar”, expressão
cunhada por Roberto Schwartz para designar a importação de cânones político-
ideológicos estrangeiros, Penalves Rocha assevera que

Aqui não se vê ideia nenhuma fora do lugar, as ideias estão


plenamente ajustadas e elas têm um papel ideológico no sentido
gramsciano de ideologia, de criação de bloco histórico, a
economia política está participando deste bloco histórico, ela se
confunde com o próprio discurso do poder. Não é à toa que um
burocrata é o economista político de plantão e a Imprensa Régia
edita os livros de economia política.29

Os princípios políticos de Edmund Burke30 forneceria o “antídoto contra o


pestífero miasma, o sutil veneno das sementes da anarquia e tirania da França,
que insensivelmente voam por bons e maus ares, e por todos os ventos do
globo.”31 Na concepção gramsciana: Burke seria o intelectual orgânico, Cairu o

26
Idem, Ibidem.
27
Observações sobre o comércio franco no Brazil. Rio de Janeiro: Imprensa Régia, 1808-
1809, 2 vols.
28
Antonio Penalves Rocha. A Economia política e a reação aos “abomináveis princípios
franceses” no Brasil (1804-1827). In: Osvaldo Coggiola (Org.). A Revolução francesa e seu
impacto na América Latina. São Paulo: Nova Stella/Edusp, 1990, p. 319.
29
Antonio Penalves Rocha. A Economia política e a reação aos “abomináveis princípios
franceses” no Brasil (1804-1827). In: Osvaldo Coggiola (Org.). A Revolução francesa e seu
impacto na América Latina. São Paulo: Nova Stella/Edusp, 1990, p. 325.
30
Cairu qualificava Burke de “heroico antagonista dos anarquistas e infiéis de todos os estados
(...)” (veja-se: José da Silva Lisboa. Constituição moral e deveres do cidadão, com
exposição da moral pública conforme o espírito da Constituição do Império. Rio de Janeiro:
Typografia Nacional, 1824, p. vii).
31
José da Silva Lisboa. Extratos das obras políticas de Edmund Burke. Rio de janeiro:
Imprensa Régia, 1812, p. 5. A professora da UnB, Tereza Cristina Kirschner, relata que Burke
tornara-se símbolo da literatura contrarrevolucionária, e que tão logo a família real aporta em
território brasileiro, Rodrigo de Souza Coutinho, Ministro dos Negócios Estrangeiros e de Guerra,
e amigo de Cairu, põe em prática o seu desejo de divulgar a obra de Burke para todo o reino
português. Segundo Kirschner: “Coutinho e Lisboa pensavam que a publicação de extratos da
obra de Burke seria útil para iniciar o público leitor do império português nos corretos princípios
políticos ‘que exaltam os sentimentos de lealdade e honra nacional e expelem os falsos princípios
da anarquia e tirania da França’”. (Vide artigo: Burke, Cairu e o império do Brasil. In: JANCSÓ,
intelectual tradicional. Na cúpula posicionam-se os criadores da nova concepção
e na base os que divulgam a ideologia.
A doutrina de Burke caíra como uma luva para os propósitos da elite
dirigente luso-brasileira.32 Burke era enfático: “Não fomos convertidos por
Rousseau; não somos discípulos de Voltaire; Helvetius não teve sucesso entre
nós”.33 O escritor irlandês qualificava os pressupostos teóricos que balizaram as
práticas políticas dos revolucionárias franceses de

monstruosa ficção que, inspirando ideias falsas e vãs


esperanças a homens destinados a caminhar na obscuridade
de uma vida laboriosa, só serve para agravar e para tornar mais
amarga a desigualdade de fato que ela não pode suprimir, e que
a ordem da sociedade estabelece benefícios aos que devem
permanecer em uma posição obscura e aos que se elevam a
uma condição mais brilhante sem dúvida, mas não mais feliz.34

Não sabemos se Cairu obtivera conhecimento mais detido a propósito da


obra de Benjamin Constant,35 ou quem sabe de François Guizot, quando
escrevera os Extratos, mas a aproximação de suas doutrinas no que tange aos
ataques a Rousseau36 e Abade Mably, mostra-se espantosa.

István (Org.). Brasil: Formação do estado e da nação. São Paulo/Ijuí: Hucitec/FAPESP, 2003,
p. 680).
32
Herdamos da tradição portuguesa a centralização administrativa e, consequentemente, o staff
governamental do reino luso-brasileiro não acreditava “no poder de leis baseadas em princípios
abstratos e estranhos ao meio brasileiro. Norteava-os o princípio organicista de formação das
sociedades e de evolução das comunidades nacionais, que os homens da geração da
independência tinham colhido da leitura de Burke, repetidas vezes citados na Constituinte de
1823, e que os conservadores cultivavam amadurecidos pela leitura dos textos de Guizot e Royer
Collard sobre as ‘as forças de conservação’ das sociedades.” (cf. DIAS, Maria Odila Leite da
Silva. A interiorização da metrópole e outros estudos. São Paulo: Alameda, 2005, p. 147).
33
Edmund Burke. Reflexões sobre a revolução em França. 2.ed. Brasília: UnB, 1997, p. 107.
34
Idem, Ibidem, p. 72.
35
A professora Tereza Kirschner informa que Cairu, preocupado com os influxos que as ideias
dos teóricos franceses poderiam propagar em solo brasileiro, quando da iminência da ruptura
definitiva com Portugal, “selecionou alguns textos de Montesquieu, Madame de Stael, David
Hume, William Palley, Adam Fergunson, M. Portalis e, em especial de Edmund Burke”, que
seriam divulgados no periódico: Roteiro Brazílico em 23 de agosto de 1822. (São nossos o grifo
e o sublinhado). Não obstante coligirmos mais à frente citações de Cairu em que ele repele a
doutrina de Benjamin Constant, não parece razoável que o economista encontre esteio em
Madame de Stael para refrear os ímpetos revolucionários, se a doutrina de Constant, nessa
matéria, segue as mesmas diretrizes. (Vide artigo: Burke, Cairu e o império do Brasil. In:
JANCSÓ, István (Org.). Brasil: Formação do estado e da nação. São Paulo/Ijuí:
Hucitec/FAPESP, 2003, p. 686).
36
Parece-nos que os Princípios do Direito Político de Rousseau foram mal interpretados.
Rousseau, ao refletir acerca do abuso do governo e de sua tendência a degenerar, também se
contrapunha ao governo do “populacho”, senão vejamos: “Quando o Estado se dissolve, o abuso
do governo, seja ele qual for, toma o nome comum de anarquia. Estabeleçamos a distinção: a
democracia degenera em oclocracia, a aristocracia em oligarquia; acrescentaria que a realeza
Esses pensadores “conceberam a tentativa de introduzir a isocracia (grifo
nosso) dos anarquistas, seduzindo os povos com vãs tentativas de comunidade
de bens e igualdade de condições e fortunas”.37 Mais adiante, Cairu afirma que
os seguidores dessa doutrina têm um único escopo: “arruinarem as monarquias
legítimas e fazer a revolução nas propriedades; introduzindo em consequência
a anarquia e oclocracia, ou o governo tumultuário do povo, que a história
mostra, por fatais experiências, ser o mais feroz tirano”. 38 (os grifos são do autor).
A experiência francesa, opinião partilhada de Cairu e Burke, não poderia
ser esquecida.39 É dessa experiência que se fomentariam “as diretrizes para um
projeto político que priorizava a tradição, a ordem, a prudência nas reformas
políticas, a autoridade de um governo central e a unidade nacional. A tradição e
os costumes tão valorizados na reflexão de Burke com relação à Inglaterra,
tinham como referência, em Lisboa, a tradição monárquica portuguesa na sua
versão pombalina.”40
José Reinaldo de Lima Lopes qualifica a doutrina de Cairu como de “um
liberal em termos comerciais e um monarquista conservador em termos
políticos”.41 Em louvor à efígie de D. João VI, em 1818 Cairu confirma sua
aversão pelo terror jacobino e o temor das ideias de uma soberania popular,
imputando à

Infelizmente célebre, Revolução da França, e as mais nefárias


malfeitorias da Cabala ateística, que levantou triunfante
bandeira, com testa de medusa, e reino de terror, no
pandemônio de Paris, onde sucessivamente apareceram e
figuraram infernais Asmodeus com sua escuridade visível (...)
Com hipócrita proclamação de universal igualdade e liberdade,
e vil abatimento do que chamavam aristocracia da nobreza,

degenera em tirania (...)” (Grifo nosso). (Vide: ROUSSEAU, Jean Jaques. O Contrato social. 4.
ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 106).
37
Estudos do Bem-commum e economia política. Rio de janeiro: Imprensa Régia, 1819-20,
p. 153.
38
Idem, ibidem, p. 210.
39
Para o jus-historiador Antonio Carlos Wolkmer “o romantismo representou, em muitos Estados
europeus, a restauração conservadora diante das consequências políticas desestabilizadoras e
radicais da Revolução Francesa. Muitos autores, como Burke, Hegel, Bonald e Maistre,
assumem posições conservadoras por fazerem apelo a formulações que primavam por
‘conservar e manter a ordem existente’.” (grifo nosso) (cf. Síntese de uma história das ideias
jurídicas – da antiguidade clássica à modernidade. Florianópolis: Boiteux, 2006, p. 155).
40
Tereza Cristina kirschner. Burke, Cairu e o império do Brasil. In: JANCSÓ, István (Org.). Brasil:
Formação do estado e da nação. São Paulo/Ijuí: Hucitec/FAPESP, 2003, p. 691.
41
Vide nota 3 do artigo: Iluminismo e jusnaturalismo no ideário dos juristas da primeira metade
do século XIX. In: JANCSÓ, István (Org.). Brasil: Formação do estado e da nação. São
Paulo/Ijuí: Hucitec/FAPESP, 2003, p. 198.
opulência, e literatura, tentaram estabelecer a lei agrária dos
facciosos demagogos de Esparta e Roma, seduzindo todas a
classes que vivem de seu honesto trabalho sob a comum
proteção do direito estabelecido em todos os países de
constituição monárquica para atacarem as propriedades e
transcenderem da sua esfera.42

O misoneísmo que sustentava a razão de Estado das primeiras décadas


do século XIX no Brasil não ficou adstrita a personalidades como o Conde de
Linhares e Cairu. Outros homens de luzes, que ocuparam cargos públicos de
comando político, adotaram a mesma perspectiva. São os casos de Silvestre
Pinheiro Ferreira e José Bonifácio.
Silvestre Pinheiro Ferreira, Ministro dos Negócios Estrangeiros e da
Guerra no período da primeira constituinte das nações portuguesas (1821-1822),
acompanhara a D. João VI em seu regresso a Portugal em 1821. Chamado pela
Coroa a emitir parecer a respeito do movimento revolucionário liberal eclodido no
Porto em 1820, e à deliberação dos deputados vintistas sobre a imperiosa
necessidade do retorno da família real a Lisboa, é peremptório em sua análise

Sua majestade saindo do Brasil não deixava nele outros


elementos de governo senão autoridades desprezadas e
desgraçadamente pela maior parte desprezíveis; tropas
detestadas e infelizmente pela má conduta de muitos de seus
membros merecedores da geral execração; e finalmente povos
que tendo uma vez deposto as autoridades de todas as classes,
e criando em lugar delas, ao capricho do acaso, as que
atualmente existiam, bem depressa e muito mais facilmente
fariam suceder a estas outros e outras, sem que à razão
humana fosse dado prever as fatalíssimas consequências de
tão honrosa anarquia.43

O democratismo,44 próprio da doutrina revolucionária de inspiração


rousseauniana, também fora combatida pelo jornalista Hipólito José da Costa. O
seu Armazém Literário (Correio Braziliense), impresso em Londres de 1808 a

42
José da Silva Lisboa. Memória dos benefícios políticos do governo de El-Rey Nosso
Senhor D. João VI. Rio de Janeiro: Imprensa Régia, 1818, p. 22.
43
Silvestre Pinheiro Ferreira. Cartas sobre a Revolução do Brasil. Rio de janeiro: Revista do
IHGB, Tomo LI, p. 259. Alguns anos antes (1814-1815) escreveu, por ordem de D. João, as
“Memórias políticas sobre os abusos gerais e modo de os reformar e prevenir a revolução
popular”. Rio de Janeiro: Revista Trimestral do IHGB, Tomo XLVII, pte. 1ª, 1884. (grifos nossos).
44
A expressão democratismo remete à idéia de movimento revolucionário de doutrina inspirada
em Rousseau. Esse termo, nessa acepção, tem como principal divulgador o historiador
português Joel Serrão. Leia-se a propósito: “Democratismo versus liberalismo”. In: PEREIRA,
Mirian Halpern; SÁ, Maria de Fátima (Coord.). O Liberalismo na península ibérica na primeira
metade do século XIX. Lisboa: Sá da Costa, 1981, (1º vol.).
1823, serviu, consoante Vicente Barreto, “de fundamento para as ideias que
seriam incorporadas ao exercício e às necessidades do poder por José
Bonifácio”.45
Um dos mais importantes teóricos brasileiros do liberalismo do início do
século XIX, Hipólito José da Costa, o “fundador da imprensa brasileira”,
proclamava, nos 18 anos de estada na Inglaterra, parafraseando, mutatis
mutandis, a Montesquieu que: “Nenhuma máxima he mais verdadeira que ésta,
em política. Deve-se fazer tudo a bem do povo; mas nada deve ser feito pelo
povo.”46 A propósito do governo popular, Hipólito era de opinião de que seria “o
mais bem calculado para sacar a publico os talentos, que há na nação, e para
desenvolver o enthusiamo, que resulta de se considerárem todos os cidadãos, em
via de ter parte, ou voto, na administraçaõ dos negócios públicos”. Entretanto, não
compreendia o governo popular como “a entrega da authoridade suprema nas
maõs da populaça ignorante; porque isso he o que constitue verdadeiramente a
anarchia; e nesta se deve cahir necessariamente todas as vezes, que o vigor e
enthusiasmo do povo, excede a energia e talentos dos que governam”. 47

O antidemocratismo de Hipólito José da Costa o faz crer “que as apparencias


de democracia saõ as que mais lisongêam os individuos das classes mais
numerosas”. 48 A sedição de cariz republicano incrementado em Pernambuco em
1817 fora duramente criticada por Hipólito. Após a Revolução francesa de 1789 e
o “time of troubles” (tempo de aflição), para utilizarmos um termo caro a Toynbee,
que perpetrara o terror jacobino, qualquer movimento revolucionário que se
deflagrasse no Brasil nesse período encontraria forte resistência. Hipólito não fugia
à regra. Seu repúdio ao ato de sublevação promovido em Pernambuco o fez
escrever que aquela insurreição

(...) foi obra do momento, parto da inconsideraçaõ, e nunca


sustentada por plano combinado: pois tudo mostra naõ só a
precipitaçaõ, erros, e injustiça dos cabeças; mas a sua total
ignorância em materias de Governo, administraçaõ, e modo de
conduzir os negócios publicos: em uma palavra naõ mostraram

45
A Ideologia liberal no processo da independência do Brasil (1789-1824). Brasília: Câmara
dos Deputados, 1973, p.110.
46
Hipólito José da Costa. Correio Braziliense, 1809, vol. III, p. 383. Com riqueza de detalhes,
veja-se: Carlos Rizzini, o Livro IV, Capítulo II, da obra: Hipólito da Costa e o Correio
Braziliense. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1957, pp.224-236.
47
Hipólito José da Costa. Correio Braziliense, 1809, vol. II, p. 175. Veja-se Anexo 3.
48
Hipólito José da Costa. Correio Braziliense, 1817, vol. XVIII, p. 674. Veja-se Anexo 4.
outra qualidade recomendavel, senaõ a energia, que he filha do
enthusiasmo, em todos os casos de revoluçoens. Este
acomntecimento, desastroso como he em dous sentidos, que
áo depois explicaremos, produzirá com tudo um effeito benefico;
e he demonstrar ao povo do Brazil, que as reformas nunca se
devem procurar por meios injustos, quaes, são os da opposiçaõ
de força ao Governo, e effusaõ de sangue.49

É de se perceber que os fautores de opinião da época nutriam-se do mais


profundo sentimento anti-revolucionário. Concebiam “o modelo revolucionário
francês como o reino da anarquia e a destruição da sociedade civil. A anarquia
revolucionária constituía a maior ameaça ao bem supremo, a liberdade. (...) Na
imaginação política liberal da época a anarquia seria a conseqüência necessária
do democratismo, entendido este como o regime de governo no qual a lei
resultaria da mutável vontade popular.” 50

A trajetória política do Brasil está toda ela impregnada pela acomodação.


Aqueles que se rotulavam liberais, não tardavam a adaptar-se ao espírito
conservador. Como observa Paulo Mercadante: “próximos aos conservadores
estão os liberais, que se arrogavam revolucionários, mas que temiam a
revolução. Constringem, durante toda a vida do Império, a elite espavorida,
agitando problemas e exigindo reformas. Assoalhavam um programa que não
ousariam executar; melancólicos revolucionários de Pernambuco, Minas e São
Paulo, uma vez no governo, metamorfoseavam-se em conservadores liberais.”51
Não é sem razão que Manoel Bomfim, em 1905, afirmava que o mais
funesto legado que nos transmitiram fora o conservantismo. Os homens públicos
do Brasil receberam esta atávica carga genética. Eram hostis a quaisquer
inovações políticas, econômicas e sociais. Os dirigentes da nação

Não suportam que as coisas mudem em torno deles. Adotam as


ideias, aceitam as palavras, mas não podem aclimatar-se às
coisas que essas palavras designam. É este fundo de
conservantismo afetivo que traz aos homens das classes

49
Hipólito José da Costa. Correio Braziliense, 1817, vol. XIX, p. 105. Veja-se Anexo 5. Antes
disso, em novembro de 1813, Hipólito preocupava-se com os influxos jacobinos: (...) porque he
seguro indicio, de que o terror inspirado pela revolução Francesa, que fazia desattender a toda
a proposiçaõ de reformas, principia a abater-se, é ja se naõ olha para as ideas de melhoramento
das instituiçoens publicas, como tendentes á anarchia, em vez de servirem á firmeza do
Governo.” (Correio Braziliense, 1813, vol. XI, p. 924).
50
Vicente Barreto. Ideologia e política no pensamento de José Bonifácio de Andrada e Silva.
Rio de Janeiro: Zahar, 1977, p. 112.
51
MERCADANTE, Paulo. A Consciência conservadora no Brasil – Contribuição ao estudo
da formação brasileira. 4. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 2003, p. 145.
dirigentes a preocupação, comum de todos, qualquer que seja
o seu programa, quaisquer que sejam as suas ideias: o
conservar ou conquistar a aquiescência dessa classe dos
retardatários de ofício – indivíduos que não compreendem,
sequer, que as sociedades sofrem uma evolução constante. Na
prática, todos esses homens das classes dirigentes são
escravos passivos da tradição e da rotina; são ativos apenas
para opor-se a qualquer inovação afetiva, a qualquer
transformação real, progressista. Dir-se-ia medo ou preguiça;
conservam, porque têm a impressão de que assim estão no
caminho mais seguro para evitar o imprevisto e criar o menos
possível de dificuldades no momento. Vivem – eles e o país que
dirigem - uma vida de adiamentos e vãos expedientes. Para
todos, o ideal é dizerem-se conservadores. 52

A tipologia ideológica assumida nos discursos políticos das personagens


até aqui analisadas, mostra-se politicamente reformista, no entanto, socialmente
conservadora. O liberalismo de todas elas se edificava excessivamente realista.
José Bonifácio, que segundo Vicente Barreto fora o 1º (primeiro) utilitarista
brasileiro,53 afinou suas ideias e discursos nesse mesmo diapasão. Não
propriamente assimilado ao aforismo de Bentham que prescreve a maximização
da felicidade: “O máximo de felicidade ao maior número”; mas sim, ao princípio
que reivindica um maior controle democrático com o escopo de se assegurar a
felicidade geral.54 O que podemos inferir, resgatando a dicção de Ilmar Rohloff
de Mattos, quando faz referência ao olhar que a Coroa, no 2º Império brasileiro,
conferia aos interesses da sociedade, é que

(...)este olhar era entendido fundamentalmente como o


exercício de uma vigilância, os olhos do imperador confundindo-
se com o olho do poder, de modo muito semelhante ao que lhes
sugeria Bentham por meio do panopticon: ter sob o olhar o
conjunto dos cidadãos e dos não-cidadãos, a totalidade do
território, implicava exercer uma visibilidade organizada, e
essa organização de um olhar dominante e vigilante
pressupunha a centralização. 55 (os grifos são nossos).

Conforme Manoel Bomfim, fora no espírito refletido, realista e moderado


de José Bonifácio que se balizaram as principais políticas públicas do período
pré e pós-independência. Na Europa, educara-se “na época em que os

52
A América Latina – Males de origem. 2. ed. Rio de janeiro: Topbooks, 1993, p. 160.
53
Idem, Ibidem, p. 120.
54
António Manuel Hespanha. Cultura jurídica européia: síntese de um milênio. Florianópolis:
Fundação Boiteux, 2005, p. 346.
55
O Tempo de saquarema – A formação do estado imperial. 2. ed. São Paulo: Hucitec, 1990,
p. 201.
moderados e reacionários desacreditavam e inflamavam os princípios de justiça
e liberdade proclamados em 89, na França.” 56
O senso comum57 de gentes sensatas, e as personagens que estudamos
até aqui, unanimemente, foram sensatas, compreenderam as ações
revolucionárias sob a perspectiva do medo. Fica-nos a impressão de que este
imaginário se impregnou patologicamente na intelligentsia luso-brasileira da
primeira metade do século XIX. José Bonifácio, não obstante ser um homem de
luzes, era inexoravelmente sensato.
Em verdade, José Bonifácio foi uma espécie de “personagem oculta” na
cena político-parlamentar da primeira constituinte do Brasil. O velho Andrada não
era um homem de ação, mas sim de contemplação. José Bonifácio pensava
como um vate, profetizava, mas não detinha habilidade para divulgar suas ideias
por meio da oratória. 58 Tribuno por excelência era o secundogênito dos
Andradas, Antônio Carlos.59 Seria dele a tarefa de divulgar as ideias do irmão
mais velho na Constituinte de 1823.
O protagonismo de Antônio Carlos no cenário político brasileiro nas cinco
primeiras décadas do século XIX fica para outra oportunidade.

56
A América Latina – Males de origem. 2. ed. Rio de janeiro: Topbooks, 1993, p. 228.
57
Na terminologia de Luis Alberto Warat, caracteriza-se “o senso comum teórico (...) como uma
caravana de ecos legitimadores de um conjunto de crenças, a partir das quais podemos
dispensar o aprofundamento das condições e das relações que tais crenças mitificam.” (Veja-se:
WARAT, Luis Alberto. Saber crítico e senso comum teórico dos juristas. In: Epistemologia e
ensino do Direito: o sonho acabou. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004, V. II, p. 32.
58
“José Bonifácio não era a pessoa mais adequada para aplicar as próprias ideias” (CALDEIRA,
Jorge. O herói desconhecido. In: Revista de História da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro:
Ano 2, n. 24, setembro de 2007, p. 45.
59
Antônio Carlos era reconhecido como o Mirabeau brasileiro, tamanha a rapidez de raciocínio
e a facilidade para se manifestar em público.

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