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DIREITO TRIBUTÁRIO

‘Propósito negocial’ e o planejamento tributário


Análise da misti-cação à inconstitucionalidade

CASSIANO MENKE

11/07/2020 09:32

Crédito: Marcos Santos/USP Imagens

Boa parte das decisões administrativas e judiciais envolvendo o exame do


planejamento tributário no Direito brasileiro tem se apoiado sobre bases
inconstitucionais
Você e misti-cadas.
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Julga-se, no mais das vezes, como se houvesse, na análise do tema, uma


premissa axiomática incontestável. Diz-se que, para os atos e negócios
jurídicos praticados pelo particular serem realmente e-cazes perante o
Fisco, eles deveriam observar, para além dos requisitos que lhes são
próprios, segundo estabelece o Direito Civil, um requisito especial,
metanormativo, denominado de propósito negocial.
:
Referidas decisões repetem, mesmo não havendo enunciado legal algum a
apoiá-las quanto a este ponto, que a ausência do mencionado propósito
autorizaria a administração tributária a desconsiderar arranjos e rearranjos
societários realizados pelo contribuinte. Menospreza-se a verdade e a
validade dos negócios jurídicos praticados pelo particular.

E, em vez de considerá-las, dirige-se o olhar, principalmente, para a análise


sobre se os atos do contribuinte apresentariam razões extratributárias a
justi-cá-los. Na suposta falta dessas razões, acaba-se por proibir que o
indivíduo disponha da sua liberdade econômica. Isto é, impede-se que o
particular aja de tal forma a pagar um menor valor a título de tributos em
certas operações, mesmo sendo essas operações válidas e verdadeiras.

Ocorre, todavia, que esse entendimento deve ser repensado. Ele, como se
disse, está apoiado em bases inconstitucionais e misti-cadas.

Inconstitucionais, porque a invocação do propósito negocial tal qual dito


acima viola o dever de legalidade baseado no art. 5.º, II, e no art. 150, I, da
CF/88. De acordo com esse dever, o Fisco só está autorizado a praticar atos
estatais que restrinjam a liberdade individual se houver amparo em lei para
sua ação.

Veja-se, entretanto, que não há, no Código Tributário Nacional (CTN), um


dispositivo sequer ao qual se poderia reconduzir o pseudorrequisito do
propósito negocial comumente mencionado.

Não há, na realidade, na legislação tributária como um todo, complementar


ou ordinária, qualquer enunciado normativo que autorize o Fisco a
desconsiderar atos e negócios do contribuinte por causa da busca, por este,
de economia -scal.

E não se diga que os arts. 116, parágrafo único, e 149, VII, do CTN
estabeleceriam essa permissão ao poder público. Decididamente não o
estabelecem. Note-se, nesse aspecto, que tais dispositivos, juntos, permitem
:
que a administração tributária desconsidere atos e negócios do contribuinte
apenas nas hipóteses em que há vícios de validade e de verdade no agir do
particular.

Isto é, só cabe ao Fisco decretar ine-cácia dos negócios do sujeito passivo


quando se veri-ca, por parte deste, simulação (negócios/empresas
fantasmas) ou dissimulação (negócios/empresas mascarados), ou, ainda,
quando os atos do particular estão eivados por fraude ou pela invalidade.

Exatamente nesse sentido, aliás, foi que a ministra Carmem Lúcia, em


recentíssima manifestação, datada de 12 de junho de 2020, se pronunciou
quanto ao conteúdo normativo do art. 116, parágrafo único, do CTN. Em seu
voto, proferido no julgamento da ADI n.º 2.446, pelo STF, a julgadora, relatora
do caso, a-rmou o seguinte:

“A norma não proíbe o contribuinte de buscar,


pelas vias legítimas e comportamentos coerentes
com a ordem jurídica, economia ;scal, realizando
suas atividades de forma menos onerosa, e,
assim, deixando de pagar tributos quando não
con;gurado fato gerador cuja ocorrência tenha
sido licitamente evitada”.

Não é demais lembrar, ainda, que o CTN não estabelece de-nições próprias
de simulação, dissimulação, fraude e invalidade para “-ns tributários”. Por
isso que, no âmbito -scal, deve prevalecer a de-nição que o Código Civil
Brasileiro (CCB) -xou para esses institutos de Direito Privado, conforme,
aliás, determina o art. 109 do CTN.

E, na análise dos dispositivos do CCB que dispõem sobre a simulação, a


dissimulação (art. 167) e a invalidade (arts. 104 e 166) dos negócios
jurídicos, logo se percebe que a busca por economia ;scal não se enquadra,
nem de longe, em qualquer das categorias acima mencionadas.
:
Moral da história: inexiste, no conjunto dos enunciados normativos que
servem à regulação, direta e indireta, da matéria tributária, qualquer
dispositivo que permita construir a tal metanorma envolvendo o propósito
negocial.

Inexiste, a rigor, como se disse, enunciado normativo capaz de autorizar que


o poder público desconsidere atos e negócios quanto aos quais o particular,
ao realizá-los, buscou, com licitude e verdade, pagar um volume menor de
tributos em suas operações.

Essa ausência de dispositivos normativos conduz, pois, à seguinte


conclusão: se o legislador tributário não tratou, por atos legais, de tal tema,
então não cabe, por óbvio, ao Fisco, por atos infralegais, querer fazê-lo.

Essa conclusão foi manifestada, recentemente, pelo TRF4, em


importantíssimo caso envolvendo o presente assunto. A 2.ª Turma desse
tribunal decidiu, em 10 de dezembro de 2019, por desconstituir auto de
infração lavrado pela Receita Federal do Brasil por meio do qual esta cobrava
imposto de renda sobre ganho de capital.

A situação envolvia contribuinte que realizara a alienação de imóvel rural


mediante prévia cisão empresarial e a consequente constituição de nova
empresa, esta a pessoa jurídica que, a rigor, vendeu o bem em condições
tributárias menos onerosas. Em seu voto, o relator do processo, des. Rômulo
Pizzolatti, se manifestou no seguinte sentido:

Em conclusão, portanto, a reorganização patrimonial realizada pelo


contribuinte, quando levada a efeito por meio de negócios jurídicos e
operações verdadeiros, ainda que tenha por resultado a economia de tributos,
não autoriza o Fisco a desconsiderá-los, pois não existe – e nem poderia
existir, porque ofenderia o artigo 170 da Constituição Federal – uma norma
geral que obrigue o administrado a, frente à possibilidade de submeter-se a
dois regimes ;scais, optar pelo mais gravoso. Trata-se de verdadeira liberdade
econômica, somente restringível – e de maneira casuística – pelo legislador,
nunca pela administração pública.
:
Veja-se que o relator, a despeito de apontar a inconstitucionalidade acima
exposta, foi além: a-rmou que, mesmo na hipótese de haver lei a estabelecer
o aludido requisito do propósito negocial, tal ato legal ofenderia o art. 170, da
CF e seria, por isso, inconstitucional por restrição indevida da liberdade
econômica.

Por outro lado, a misti-cação envolvendo o entendimento que defende a


aplicação da “teoria do propósito negocial” no Direito Tributário parece
decorrer do seguinte: buscou-se, com base no uso de um, por assim dizer,
“emotivismo argumentativo”[1], suprimir do debate aquele que parece ser seu
ponto central: a inconstitucionalidade da utilização do critério do propósito
negocial, tal como acima exposto.

Veja-se que a referida estratégia de argumentação vem se baseando, em boa


parte, no apelo a princípios gerais, como o da solidariedade social. Baseia-se,
ainda, na invocação à suposta injustiça -scal que decorreria do fato de se
tolerar que o contribuinte, diante de dois regimes tributários possíveis,
escolhesse o que lhe é menos oneroso.

Note-se que essa técnica argumentativa emotivista, utilizada por


determinadas autoridades -scais, busca persuadir o julgador a adotar certo
entendimento com relação à nulidade dos planejamentos tributários antes
mesmo de se discutir a constitucionalidade e a legalidade da premissa na
qual se baseia o agir estatal.

A premissa é colocada fora de questionamentos. Busca-se, como se percebe


nos casos envolvendo o presente assunto, usar palavras carregadas de
conotações subjetivas, tais como “prejuízo ao erário”, “dano aos cofres
públicos”, “violação à solidariedade”, “necessidade de promoção do bem
comum”, etc.

Isso para que, com elas, sejam provocados, de um lado, sentimentos


positivos quanto à ideia que envolve o referido propósito negocial e, de outro
lado, se despertem sentimentos negativos no interlocutor quanto à busca
por economia -scal, como se esta fosse algo ética e juridicamente incorreto.
:
A respeito de tal estratégia argumentativa, no sentido de deixar “fora de
questionamentos” a premissa do propósito negocial, a 2.ª Turma do TRF4,
no mesmo julgamento acima mencionado, assim se posicionou:

Com efeito, a ideia em voga aponta para uma imediata descon;ança com
práticas que visem à economia de tributos, ideia essa introjetada pelos órgãos
responsáveis pela arrecadação tributária, que, mediante um trabalho de
convencimento bem elaborado, suprimiram da discussão a premissa de que
parte o seu posicionamento, qual seja, a de que existiria a necessidade de um
“propósito negocial” – ou seja, de alguma razão extratributária nos arranjos e
rearranjos societários. Trata-se, contudo, de evidente falácia, uma vez que a
premissa é sim discutível, e o ardil foi colocá-la justamente fora de
questionamentos.

En-m, como se vê, parece que o Poder Judiciário começa a corrigir o


equívoco que perdura há tempo no Direito Tributário com relação ao tema
deste artigo. Parece estar claro que não há, no sistema jurídico brasileiro,
fundamento que autorize o Fisco a impor, aos cidadãos, um “dever” de, por
assim dizer, maior onerosidade ;scal.

Tal imposição é falaciosa e, acima de tudo, inconstitucional. É tempo, pois,


de se rever posicionamentos. É tempo, a rigor, de se -xar uma nova matriz
decisória para o assunto, de tal sorte a reconduzir o debate para o eixo do
qual ele nunca deveria ter se afastado, qual seja: o do respeito irrestrito à
Constituição Federal de 1988.

[1] ÁVILA, Humberto. Constituição, liberdade e interpretação. São Paulo: Malheiros,

2019, p. 70.

CASSIANO MENKE – Advogado doutor em Direito Tributário e sócio coordenador da área de


Direito Tributário do escritório Silveiro Advogados.
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